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Numa hora de fome, miséria, injustiça, abuso de

poder e sincretismo religioso-semelhante ã que


vivemos agora - apareceu um homem frágil, mas
corajoso, chamado Elias. Sua postura profética e
mensagem respaldada pelos céus servem de
exemplo para os homens e mulheres que anelam
ser usados por Deus para enfrentar os desafios e
angústias dos conturbados dias de hoje.
O pastor Caio Fábio D'Araújo Filho nos apresenta
um retrato extremamente humano e bem contex-
tualizado de um Elias sujeito ás mesmas paixões
que nós, mas que soube ser instrumento de Deus
numa das épocas mais negras da vida política, so­
cial e espiritual de Israel.
Na dependencia de Deus em m eio a
crise, no equilíbrio entre o natural e o
sobrenatural, na sustentação
estranha, mas divina, de sua vida, na
capacidade de orar pelo impossível,
Elias, através da pena hábil do pastor Caio Fábio,
se reveste novamente de carne e sangue para nos
ensinar o que significa viver comprometido com
Deus e a justiça, e exercer os ministérios e as li­
deranças eficazes de que o Brasil e o mundo tan­
to carecem.

Leitura para uma vida bem-sucedida


Caixa Postal 5010 - 31611 Venda Nova. MG
CAIO FABIO

RUAS

Betânia
Leitura para uma vida bem-sucedida
Caixa Postal 5010 - 31611 Venda Nova, MG
Publicado com a devida autorização e
com todos os direitos reservados pela
Editora Betânia S/C
Caixa Postal 5010
31611 Venda Nova, MG

Primeira edição, 1990

Ê proibida a reprodução total ou parcial


sem permissão escrita dos editores.

Composto e impresso nas oficinas da


Editora Betânia S/C
Rua Padre Pedro Pinto, 2435
Belo Horizonte (Venda Nova), MG

Printed in Brazil
Para Cristina Cbristiano,
com gratidão pelo seu esforço
durante a confecção deste livro. Sem
sua participação, sua publicação
não teria sido possível.
SUMÁRIO
Introdução ........................................................................9

Capítulo primeiro - Elias, Um Homem


Presente........................................14

Capítulo segundo - Elias, U m Homem Depen­


dendo de Deus em Meio à
C ris e ........................................... 23

Capítulo terceiro - Elias, U m Homem que


Aprendeu a Lidar com o
P oder............................................42

Capítulo quarto - Elias, U m Homem de Pala­


vras e O bras............................... 72

Capítulo quinto - Elias, U m Homem que


Aprendeu Sobre a Própria
Fraqueza..................................... 81

A pêndice:........................................................................99

• A Busca de um Compromisso Pessoal


• O Caminho Entre o Sonho e a Idéia Feita
Instituição
• O Chamado à Igreja e aos Indivíduos
• Servindo a Deus por Nada
CAIO FÁBIO DARAÚJO FILHO

Amazonense, casado, quatro filhos. Converteu-


se ao evangelho em junho de 1973. O encontro com
Jesus Cristo revolucionou a sua existência, resgatan­
do-a de um viver desesperado, e transformando-o
num apaixonado pregador do evangelho.
Em 1974 iniciou seu ministério de TV através do
programa “Jesus, Esperança das Gerações”, que após
três anos passou a se chamar “Pare e Pense”, hoje
transmitido pela Rede Bandeirantes de Televisão aos
domingos, às 7h da manhã. Este ministério se ex­
pande agora com o Projeto VINDESAT.
Em janeiro de 1977 foi ordenado pastor da Igre­
ja Presbiteriana do Brasil, à qual pertence.
Fundou a VINDE — Visão Nacional de Evange-
lização — missão que preside desde 1978, e que tem
servido de apoio ao seu ministério de evangelização.
Tem realizado cruzadas em todo o Brasil, inclusive
no exterior. Conferencista, tem participado, como
palestrante convidado, de eventos de alcance mundial,
na Europa, União Soviética, América Latina e Esta­
dos Unidos. Além de evangelista e conferencista,
dedica-se com entusiasmo a produzir livros, que
muito têm contribuído à edificação da igreja evan­
gélica do Brasil. Traduzidos vários deles ao espanhol,
alcançam já a América Latina e a América do Norte,
tendo sido publicados, até outubro de 1988, 21 tí­
tulos, dos quais 7 estão em processo de distribui­
ção em países de língua espanhola.

7
O Rev. Caio Fábio foi evangelista do Presbitério
de Manaus (74-76), pastor da Igreja Presbiteriana
Central de Manaus (77-80) e pastor da Igreja Presbi­
teriana Betânia, em Niterói (81-84). E membro da Fra­
ternidade Teológica Latino-Americana e da Comis­
são Presbiteriana de Evangelização, como também
presidente da VINDE — Visão Nacional de Evange­
lização — entidade interdenominacional que pres­
ta serviços às igrejas evangélicas na área de reflexão
teológica, cruzadas de evangelização pelo Brasil e ex­
terior, atuando também na produção de programas
de televisão.
Introdução

Por Que
“Elias Está Nas Ruas”

Era agosto de 1989. Passava o ano nos Estados


Unidos com a família, após 14 anos de trabalho quase
ininterrupto no Brasil. N a ocasião tentava separar um
tempo para estudar e também para estar um pouco
mais com a família e comigo mesmo. Nesse dia eu
me entretinha estudando João 17, preparando as
mensagens que iria pregar no VII Congresso da VIN­
DE, em Serra Negra, São Paulo.
De repente o telefone toca. Era o diretor de even­
tos da VINDE, Pr. João Bezerra, comunicando-me
que o Rev. John Stott — preletor oficial do Congres­
so da VINDE em 1989 — acabara de chegar ao Bra­
sil, e pretendia atender a alguns compromissos an­
teriores ao nosso Congresso, inclusive conversar
comigo sobre alguns assuntos. Dando início à con­
versa, disse-me o Rev. Stott que estava extremamen­
te preocupado, pois temia que houvesse algum tipo
de repetição no que ele e eu iríamos apresentar em
nossas conferências. Pedi-lhe então que me desse pe­
lo telefone um esboço de suas mensagens. Logo me
dei conta de que ele também havia pensado em usar
João 17 numa de suas palestras. Em seguida ele me
perguntou:
“ E você, Caio, vai pregar o quê?” Não sabia o que
dizer. Eu era seu cicerone; cabia portanto a mim abrir
mão de qualquer coisa, a fim de que ele se sentisse

9
em casa. Mas a sua pergunta, assim tão de chofre,
me deixou um tanto atordoado. A única coisa que
me veio ao coração foi Elias. Acabara de fazer mi­
nha devoção matinal em I Reis 17.21. Então respon­
dí: “ Bem, acho que vou falar sobre Elias”.
Quando desliguei o telefone, estava extremamen­
te preocupado. Investira 15 dias estudando João 17,
e agora, a poucos dias do nosso encontro em Serra
Negra, tinha que começar tudo de novo. N o entan­
to, alguma coisa a mais começou a acontecer den­
tro de mim. Um ardor especial na alma me acome­
teu. Pus-me a estudar Elias, certo de que tais estu­
dos, conquanto estivessem muito mais para o nível
devocional do que teológico, seriam uteis para a
maioria absoluta dos que la comparecessem.
Quando cheguei ao Brasil mi encontrar o Rev.
John Stott no Amazonas, na casa de meus pais. De
lá seguimos para uma viagem inesquecível pelos rios
Negro e Solimões. Durante aqueles dias passavamos
bom tempo em oração e meditação na Palavra, todas
as noites. Foi numa dessas noites que John me pe­
diu que compartilhasse com ele o que iria pregar no
Congresso. Fiz isso durante umas duas horas.
Fomos para Serra Negra. Preguei as mensagens.
A certa altura John Stott me disse: “ Penso que esse
material que você compartilhou com os 1400 que es­
tão aqui precisa ser dividido com o maior número pos­
sível de líderes e cristãos evangélicos no Brasil.” E
continuou: “ Tenho acesso a um fundo europeu pa­
ra publicação de livros; vou conseguir um recurso
para você publicar esse material, a fim de que ele
seja oferecido quase sem custos.”
Essa afirmação de John Stott me animou muitís­
simo a publicar o texto. N o entanto, tenho plena
consciência das limitações imensas do material, re­
flexo das minhas próprias.
Elias Está Nas Ruas é um livro-mensagem. Não
é um texto para teólogos, nem para pessoas em bus­
ca de novidade teológica. E uma confissão de fé, es­
perança e sonho. E também um desabafo que sai

10
quente do íntimo do meu coração.
Por isso tudo, quero dizer-lhe duas coisas básicas:
1. Não leia este livro ouvindo m inha voz com
um tim bre exortativo. Sei que o texto é forte, mas
sei também que não é um juízo meu dirigido a nin­
guém. O fato de ter consciência de que sou uma pes­
soa ainda tão inacabada me impede de produzir qual­
quer coisa para outros que não seja antes de tudo
uma exortação a mim mesmo. Eu não sou Elias, em­
bora me agrade saber que em certo sentido também
sou semelhante a ele — nas fraquezas (Tg 5.17). Tam­
bém não sou nenhum referencial radical de coerên­
cia absoluta para com as verdades deste livro. Estou
bem consciente de que há na minha vida — tanto
quanto na vida de todo ser humano — muitas ambi-
güidades a serem tratadas pela graça de Deus. Por
isso, quando você ler minhas críticas à igreja (neste
livro o termo é genérico, refere-se à variada colcha
de retalhos denominacional da qual nós evangélicos
fazemos parte), não as entenda como que feitas com
uma atitude superior (como se faladas de cima), ou
exterior (como se faladas de fora). Não há em mim
nenhum dos dois sentimentos. Não estou acima; tam­
pouco fora. Fazendo minhas certas palavras de C. S.
Lewis, diria que “conheço muito sobre as feiuras des­
se hospital, apenas porque sou um paciente inter­
nado nele também”.
2. N ão entenda que m inhas afirmações so­
bre certas perversões do cristianism o entre nós
têm em si a intenção de dizer que está tudo ar­
ruinado. Não está! Deus está trabalhando, e muito.
N o entanto, o que temos dito é que as nossas expres­
sões de maior visibilidade nacional — aquilo que nos
põe nos noticiários de TV, jornal e rádio — como
povo de Deus no Brasil têm sido quase sempre aque­
las que em vez de “glorificarem ao Pai que está nos
céus” (Mt 5.16), fazem “ o nome de Deus ser blasfe­
mado entre os gentios por nossa causa” (Rm 2.24).
Ora, sempre que o povo de Deus não glorifica o no­
me de Deus diante do mundo, através de obras de

11
justiça, fé e amor, o resultado é que nossa frieza ou
nossas ações egoístas, arrogantes e impuras fazem o
mundo blasfemar de Deus no nosso rosto. Quanto
a isso não pode haver qualquer equívoco: o mundo
não tem outro modo de “ ver” Deus a não ser atra­
vés da igreja. E se a igreja não vive e não reflete o
caráter e o amor do Deus santo, então o mundo blas­
fema o nome de Deus. E impossível que um ser hu­
mano que viva sem Deus na história “veja” a Deus
sem que haja um legítimo testemunho de Deus. As­
sim, testemunhos verdadeiros geram fé, e testemu­
nhos falsos geram ódio e blasfêmia. Talvez esta seja
a lição que nos dá o Apocalipse quando nos diz que
o apóstolo João “ouviu a voz do que falava” com
ele e, voltando-se para vê-lo, viu “os sete candeei­
ros de ouro”. Somente depois disso viu ele Cristo an­
dando entre os candeeiros de ouro. A primeira vi­
são de João não foi Cristo (aquele que falava com
ele), mas a igreja (os sete candeeiros). A lição é tre­
menda: quando um observador externo, um ser hu­
mano comum na história, ouve a voz de Cristo atra­
vés do testemunho oral dos crentes, na tentativa de
olhar para ver a Cristo, ele vai primeiro ver a igreja.
Cristo está dentro dela. Quem olha do mundo na di­
reção da qual se ouviu a voz de Cristo na história
vai sempre ver a igreja, porque é ela que dá teste­
munho de Cristo. Por isso a igreja que dá testemu­
nho da Palavra de Jesus tem também que ser reflexo
da glória de Deus, caso contrário o testemunho da
igreja não gera fé em Jesus, mas blasfêmia e rejeição.
Apesar de estar muito preocupado com o que es­
tá acontecendo na igreja evangélica em geral neste
país, estou, todavia, bastante cônscio do fato de que
há no Brasil muito mais do que “sete m il que não
dobraram os joelhos a Baal”. Conheço centenas de
pastores simples e apaixonados por Jesus e seu Rei­
no. Conheço um sem número de cristãos abnegados,
honestos, e que inspiram lindas visões de Deus em
muitos ao redor de si. Se você não tiver isso em men­
te, lerá este livro com a idéia de que eu acho que

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tudo está estragado. Não é assim. No entanto, há
uma razoável e representativa parcela do que temos
feito ou do que é feito em nome do povo de Deus
na sociedade em volta de nós, que é absolutamente
associado com a teologia de Baal e não de Cristo.
Quanto ao nome do livro — Elias Está Nas Ruas
— tirei de uma idéia neotestamentária associada ao
fato de que Elias é o profeta aguardado em tempo
de crise. O Novo Testamento menciona Elias mais
de trinta vezes, e sempre em lugares importantes. Ne­
nhum profeta viveu na memória do povo judeu mais
do que Elias. E minha esperança é que um pouco des­
sa sua memória seja recuperada por nós nestes dias
de crise.
Por último quero agradecer àcjueles por cujo tra­
balho este livro está sendo possível: Allinges Lenz
César Mafra Mac Knight, que transcreveu as fitas, cor­
rigiu e estilizou o texto; minha cunhada Rose Fer­
nandes, que o datilografou; Antônio Carlos Barro,
que ajudou muito lendo o material e fazendo algu­
mas valiosas sugestões; Ehud Garcia, que também o
leu e apresentou sugestões; e, como sempre, mi­
nha esposa, que ao longo desses 17 anos de vida em
comum tem sido minha melhor e mais presente
amiga.

Rev. Caio Fábio D Araújo Filho


Claremont, Califórnia, janeiro de 1990.

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1

Elias,
Um Homem Presente

“Eis que aí está Elias(...)” (I Rs 18.11). Gosto desta


afirmação. Ela evidencia a presença do profeta. Elias
estava lá. Ele era um homem presente: vivendo, p ar­
ticipando e se confundindo com a própria historia.
Ele se encontrava no centro dos problemas, confli­
tos e agonias do seu povo. Conhecia palmo a palmo
a sua realidade. E fácil constatar tal fato quando se
observam as várias cidades às quais se faz menção
na história desse homem de Deus. Ele visitou, por
exemplo, Jezreel, no norte (I Rs 18.46); Gilgal e Gi-
leade (de onde procedia), a noroeste (I Rs 2.2); Je­
rico, a sudeste (II Rs 2.4); e Berseba, no extremo-sul
(I Rs 19.3). Mais que isso: conhecia o próprio chão
da peregrinação de seus pais, pois é possível
encontrá-lo no deserto, em Horebe, no monte san­
to, ouvindo a voz do mesmo Deus que dera a Lei a
Moisés (I Rs 19.8).
Este é o prim eiro pré-requisito para quem
quer ser relevante no seu contexto e no seu m o­
m ento histórico: conhecer seu povo, seu chão,
sua herança, sua saga. Um homem ou uma mu­
lher de Deus que não esteja profundamente encra­
vado, enraizado no presente, e que não tenha nos
ouvidos os ecos do passado da história da fé, não
terá a menor condição de ministrar e viver com qual­
quer relevância.

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O Contexto H istórico de Elias

Elias era profeta do reino norte, tendo vivido no


auge da corrupção do seu país.
Vamos examinar algumas das condições que pre­
valeciam no tempo da sua atuação:
1. O país vinha de um a polarização partidá­
ria, conforme diz a Escritura:
“...o povo se dividiu em dois partidos: metade
do povo seguia a Tibni(..) a outra metade seguia
a Onri” (I Rs 16.21).
Pouco tempo antes de Elias aparecer no cenário
nacional, o que se tinha a nível político era um bi-
partidarismo radical.
2. Era também um tempo no qual abundavam
os m aus governantes. Governantes ruins exerciam
o poder, de modo a provocar a ira de Deus. Isso é
perfeitamente ilustrado pelo que diz o texto bíblico
quando nos conta que O nri assumiu o poder, e
tendo-o assumido agiu “pior do que todos quantos
foram antes dele" (I Rs 16.25,26). Aquela situação
parecia indicar o fato de que não existia a menor pos­
sibilidade de mudança no cenário nacional. Quan­
do O nri morreu, em seu lugar reinou o filho, Acabe
(I Rs 16.28).
3. Acontece que a sucessão do poder não cor­
respondia de m aneira nenhum a a um a nova ati­
tude social, política e religiosa. Pelo contrário,
o que atestamos é que Acabe, o sucessor de Onri,
teve a capacidade de fazer pior do que tudo o que
O nri imaginara realizar (I Rs 16.31-33). Ele na ver­
dade viera para multiplicar a tragédia, a iniqüidade
e a desgraça do país. Nesse sentido o próprio casa­
mento de Acabe com Jezabel foi um casamento po­
lítico que só engrossou ainda mais o caos no qual
o país já estava. De fato, tratava-se de uma aliança
com a Fenícia porque Jezabel era filha de Etbaal, rei
de Tiro (I Rs 16.31). Jezabel foi criada como uma
devota do deus de Tiro, Baal. Após seu casamento
com Acabe, ela recebeu consentimento para conti­

15
nuar sua religião nativa, fazendo de Samaria a sua
sede. Por isso, um templo a Baal foi construído ali
por ela. Mas não foi aí que seu caminho pagão ter­
minou. Jezabel era uma mulher de temperamento ex­
tremamente forte, e aparentemente foi uma das mais
comprometidas missionárias que o culto a Baal ja­
mais possuiu. Enfurecida com aqueles que se lhe
opunham em seu caminho (especialmente Elias), di­
rigiu todas as medidas repressivas possíveis contia
esses, chegando mesmo a ameaçá-los de morte (I Rs
18-19).(i)
4. O tempo de Elias era um tem po em que as
maldições — e não as bênçãos — estavam se cum ­
prindo. I Reis 16.34 nos coloca diante da típica fra­
se brasileira: “ Quanto mais rezo, mais assombração
me aparece.” Isso porque naqueles dias Hiel resol­
vera reconstruir Jericó. Quando lançou os funda­
mentos cumpriu-se a primeira parte da profecia de
Josué — seu filho primogênito morreu. E quando as­
sentou a porta da cidade nos umbrais, morreu-lhe
o último filho (Js 6.26). Assim, aquele era realmen­
te um tempo em que desgraças se cumpriam, e não
bênçãos. Não era tempo para esperançosos vaticínios
políticos.
5. Do ponto de vista econômico poder-se-ia di­
zer que aquele era, sem dúvida, um tem po de crise
de energia. Walter Brueggemann afirma que o texto
inequivocamente fala de uma das mais básicas cri­
ses de energia: a ausência de chuva(2). N o início do
capítulo 17 somos colocados diante de uma situação
de ameaça tremenda, quando Elias profetiza, diante
do Senhor, anos de absoluta falta de chuva, e até
mesmo orvalho! Como iria sobreviver a agricultura
diante da carência total do elemento primeiro de sus­
tentação da natureza?
6. Diante disso o país m ergulhou nu m tre­
mendo caos. A pior conseqüência da crise era a fo­
me — o que está dito em I Reis 18.2: “e a fome era
extrema". Tal descrição corresponde às realidades
que vemos acontecer freqüentemente à nossa volta,

16
quando o povo, e principalmente as crianças, mor­
rem à míngua, e aos milhares em nossos dias.
7. N o entanto, a p ior crise daqueles dias era
a crise do valor da vida hum ana. A vida dos ca­
valos e mulas valia mais do que a vida humana — ou,
pelo menos, poder-se-ia dizer que aos olhos da au­
toridade constituída, “os bens do estado”, no caso
em questão os cavalos e as mulas, valiam mais a preo­
cupação e o cuidado governamentais do que a vida
da população (I Rs 18.5,6). Isso porque, no auge
da seca, o rei Acabe chama Obadias e lhe diz que vá
às fontes de água e a todos os vales, para ver se se
encontra erva e, assim, pelo menos a vida dos ani­
mais é salva. A inversão do valor da vida era ca­
racterística dos códigos de reflexão e interpretação
filosófica daqueles dias.
8. E mais ainda: o poder constituído usava a
vida hum ana em função do próprio hum or. Quan­
do lemos o capítulo 21 percebemos quão hedion­
dos eram os meios que o rei usava para alcançar seus
intentos, diante dos quais a vida não significava nada.
Conta-nos o capítulo 20 que Acabe voltara frustra­
do, depois do encontro com um profeta que lhe trou­
xera uma duríssima palavra do Senhor. Tal palavra
viera em função da extrema benevolência de Acabe
para com as estruturas de opressão que Deus lhe en­
tregara a fim de que fossem aniquiladas (I Rs 20.1-42).
Diz o texto que ele chegou a sua casa "desgostoso
e indignado” (I Rs 20.43). O u seja, ele era um dés­
pota de hum or extremamente difícil. Um hum or no
qual frustração e ira casavam-se para praticar o mal.
Por isso passou-lhe pela mente que precisava pos­
suir a vinha ao lado do seu palácio, e assim agregar
maior conforto à sua propriedade. Foi então ao do­
no da vinha e lhe propôs comprá-la, dele receben­
do uma resposta negativa, que muito o contrariou,
atiçando-lhe mais ainda o ânimo azedo (I Rs 21.1-4).
Neste ponto Jezabel, sua esposa, se aproxima e lhe
diz que é muito fácil resolver o problema, bastando-
lhe simplesmente valer-se de sua autoridade de rei.

17
Para oprimir o fraco e tomar-lhe o desejado era su­
ficiente usar do poder que detinha (I Rs 21.5-7).
9. E neste ponto que a religião aparece a fim
de ser m anipulada em favor de Acabe e Jeza-
bel (I Rs, 21. 8-16). Assim, Nabote é acusado de he­
resia pelos teólogos do rei, aqueles que eram os respon­
sáveis pela afirmação da verdade em nome de Deus e
em favor de V. Exa. Nabote foi assim apedrejado e m or­
to, sendo a sua vinha transferida às mãos do governante.
10. E assim que temos que dizer que a religião
era praticada em perspectiva de profunda au­
tenticação de poder político. Não havia mais,
nem de longe, vestígios de uma límpida e cristalina
teologia, algo que trouxesse à vida alguma noção de
Deus e seu caráter. Baal, a essa altura, já se ia as­
sem elhando a Javé, e Javé a Baal. E quando olha­
mos à volta temos a impressão de que com respeito
à perspectiva política algo semelhante começa a
acontecer no Brasil em relação a uma parte da atitu­
de política da igreja evangélica, na sua imensa ca­
pacidade de abençoar os mais variados Estados de
Poder (a direita) ou na sua capacidade de lutar apai-
xonadamente por ideologias políticas (a esquerda)
com paixão que num cristão só são justificáveis
quando concentradas no Reino de Deus. Nos dias
de Elias o poder constituído tinha sua própria ca-
pelania espiritual, que o consolava, e que dizia a ele
— ao poder — o que ele gostaria de ouvir. Portanto,
a capelania do Presidente Acabe existia a fim de levar-
lhe aos ouvidos exclusivamente aquelas “profecias”
que lhe provocassem cócegas na alma, em lugar de
lhe trazer a justa e apropriada Palavra do Senhor (I
Rs 22.10-13). E aqueles que não se amoldassem a
esta cartilha da piedade ortodoxa, como Micaías,
mereciam a alienação e o despojamento. A associa­
ção entre o poder político constituído e a religião
oficial era indiscutível, fato consumado.
11. Outra tragédia dos dias de Elias é que um a
profunda crise moral se instalara em todos os

18
níveis da nação, e isso incluía a religião. O cul­
to a Baal implicava também culto à fertilidade hu­
mana, na qual o sexo exercia o maior e mais prepon­
derante papel em perspectiva. Assim, cultuar Baal
significava internalizar conceitos teológicos de libe­
ração sexual, na medida em que essa imagem estava
extremamente ligada à idéia da fertilidade de modo
geral, incluindo a fertilidade da terra. Dessa forma
se pode dizer que o culto a Baal fornecia uma cos-
movisão pela qual todas as demais dimensões da vi­
da eram enxergadas, pensadas, imaginadas, julgadas,
e vividas. Certamente a questão Javé ou Baal não era
trivial. Como John Bright nos diz modernamente,
tendemos a encará-la apenas como um tipo de bata­
lha denominacional, e muitas vezes julgamos a pro­
fética hostilidade de Elias para com Baal um sinto­
ma de que a mente do profeta era um tanto estrei­
tai3). Mas nós estamos fundamentalmente equivoca­
dos. Aquelas não eram questões de trivialidades re­
ligiosas. Não se tratava de uma querela acontecida
dentro de uma mesma religião, na intenção de mos­
trar quais das duas perspectivas era superior; as re­
ligiões eram completamente diferentes, não tinham
nada a ver uma com a outra. Precisamos entender
que Israel, como um povo, descansava na confian­
ça de que Deus o havia chamado, feito um pacto com
ele, havendo-o designado a viver em obediência e
justiça, o que lhe dava uma destinação especial co­
mo povo. Baal, todavia, era em si mesmo um deus
que jamais emprestaria a Israel tal significação his­
tórica. A religião dele não fazia o ser humano ir além
de sua própria natureza animal. A par disso, estimu­
lava também a que se vivesse em função desta mes­
ma natureza, a qual nada tinha a ver com demandas
morais, mas provia o ser humano com certos rituais
externos designados para apaziguar a divindade e
manipular os poderes divinos, visando aos próprios
fins materiais. Tal percepção da vida era totalmente
inepta para criar um sentimento comunitário, visto
que a internalização da teologia de Baal implicava

19
uma perspectiva de vida que acontecia apenas de si
para si, fazendo com que nenhuma vida comunitá­
ria fosse possível. Conseqüentemente, tanto no pas­
sado quanto hoje, paganismo nào é coisa trivial; nem
pode ser minimizado sob o disfarce de seu presu­
mível valor cultural.
Isso, certamente, deveria nos levar a perguntar:
Quando vemos alguns líderes da igreja evangélica
manifestarem os mais bizarros conceitos e vivências
morais possíveis — extremamente semelhantes àque­
las que aparecem na conduta moral do umbandista,
do macumbeiro, etc. — não seria isso um indicador
de que estamos possuídos por uma cosmovisão pa­
ga, igual àquela que domina a mente do resto do
país? A nossa capacidade em fazer alianças espúrias,
e manifestar comportamentos reprovados ate mes­
mo pelos ateus da imprensa não seria suficiente evi­
dência a denunciar o fato de que temos na mente
os códigos de comportamento de Baal, e não os do
Deus de Elias?

U m a Necessária Conexão H istórica


Aquele era o mundo de Elias. As similaridades
com a nossa realidade como país são tão óbvias, que
dispensam maiores associações. N o entanto algumas
delas precisam vir à nossa memória, ainda que de
passagem.
1. Primeiramente há entre a nossa realidade e a
de Elias uma forte similaridade na crise social e eco­
nômica. Nunca se morreu tanto em nosso país co­
mo se morre agora: sobem a milhares os assassina­
tos dolosos. A violência nos bolsões de criminali­
dade do Brasil mata mais que em alguns países em
guerra, como o Líbano. Jamais crianças minguaram
de modo mais completo do que aquele em que se
tem manifesto em nossos dias.
2. Existe ainda, por outro lado, a similaridade do
ponto de vista de crise institucional, que também
se tem agravado. Temos umas instituições apodreci­

20
das, enfermas e corruptas.
3. Temos ainda similaridades em relação à cri­
se moral, manifesta de maneira tremendamente pu-
trefacta e perceptível mediante as diárias e inconce­
bíveis histórias de suborno, corrupção, exploração
do dinheiro e dos bens 'públicos, contratações ile­
gais, empregos fantasmas, e uma liberação sexual que
não fica atrás dos padrões de perversão de Sodoma
e Gomorra, mas ao contrário, tem lições de sodo-
mia sofisticada a dar àquelas sociedades do passa­
do. Isto porque nunca a sociedade brasileira experi­
mentou traços de maior corrupção, permissividade
e pecado moral em qualquer das áreas com que a
moralidade possa ser associada do que em nossos
dias. E se reduzíssemos essa nossa perspectiva mo­
ral apenas a um nível que a relacionasse de maneira
específica ao uso irregular, patologizado e adoeci­
do do sexo, teríamos que reconhecer que o nosso
país sofre uma espécie de possessão de espírito de
prostituição em todas as dimensões da sua vida.
Há realmente forte similaridade entre aquele tem­
po e os dias de hoje em nosso país!
4. A idolatria cresce, os cultos aos mortos pro­
liferam, e todas as manifestações espirituais que não
fo p m de se auto-aclamarem como manifestações ex­
plicitas das trevas têm se expandido horrivelmente ■
em nosso meio.
5. Por último existe a própria crise evangéli­
ca. Essa é a crise daqueles que se entendem bem co­
mo querem ser entendidos como povo de Deus. A
crise religiosa dos dias de Elias tem seus paralelos
tremendos com a nossa situação evangélica contem­
porânea. Isso pode ser perfeitamente percebido, por
exemplo, mediante nossa crise moral, tão drastica­
mente ilustrada na promiscuidade de muitos dos mi­
lhões de membros das igrejas evangélicas, bem co­
mo — totalmente perceptível — na promiscuidade hoje
tão evidente em não desprezível parcela da comu­
nidade pastoral.
As mesmas similaridades podem ainda ser nota­

21
das através da nossa desonestidade, tragicamente re­
velada até mesmo nos negócios feitos entre as insti­
tuições evangélicas que comercializam produtos co­
mo livros, discos, vídeos, etc., e em cujo tn.balho se
tem muitas vezes bem mais dificuldade em se verem
compromissos de pagamentos financeiros honrados
do que entre aqueles que, não sendo cristãos, nego­
ciam conosco. Sem falar na falta de caráter no exer­
cício do mandato político, tão esmagadoramente de­
monstrada por expressiva (note que expressiva não
significa a totalidade) parte dos representantes
evangélicos no Congresso, os quais nos trouxeram
mais vergonha pública do que jamais nos acarretou
antes qualquer outro grupo ou ação evangélica.
Nossa crise de bom-senso, como a que temos as­
sistido no que tange ao conflito entre igrejas ditas
evangélicas e terreiros de macumba, onde já não se
expulsa demônio no nome de Jesus, mas no tapa e
no bofetão.
A nossa crise de unidade também depõe contra
nós, pela incapacidade de nos relacionarmos uns
com os outros, superarmos caprichos particulares,
vencermos obstáculos inventados por nos mesmos,
a fim de nos criarmos barreiras separatistas; e, no mo­
mento, nossa crise ideológica, a qual ' ‘1
cebida através do modo apaixonado
res se dividem entre conservadores de direita e pro­
gressistas de esquerda, mostrando ao país que de fato
nosso discurso sobre a essencialidade e absoluta im­
portância do Reino de Deus em nossa vida não é ver­
dade, pois freqüentemente rompemos com os irmãos
em função de nossas paixões e opções ideológicas.
Estas são algumas das marcas das similaridades
entre o tempo de Elias e os dias de hoje. Nossa es­
perança é que se nos assemelhamos nas tragédias ao
Israel daqueles dias, possamos aprender com Elias
a viver num tempo como aquele, a fim de que ao
final de tudo também vejamos o fogo do poder de
Deus cair sobre nós.

22
2

Elias,
Um Homem Dependendo
de Deus em Meio à Crise

Elias aparece em cena na arena histórica de Is­


rael numa hora em que a vida só não seria cínica se
vivida numa perspectiva profética, ou seja, com co­
ragem de enfrentar os inimigos do reino de Deus
mediante palavras e obras. Aqueles eram dias de fo­
me, miséria, contradições, sincretismo religioso, in­
justiças e abuso do poder. Dias de luto. Dias co­
mo muitos dos nossos no Brasil de hoje.
As similaridades entre o mundo de Elias e o nosso
precisam ser outra vez ligeiramente estabelecidas. Só
que desta vez quero começar olhando para o Brasil.
Nosso país tem um dos modelos econômicos ^capi­
talistas mais famigerados e injustos do planeta. É um
capitalismo tão brutal que mesmo os países mais ca­
pitalistas do mundo se recusam a chamar aquilo
que temos aqui de capitalismo.
1. Entre as tragédias do capitalismo brasi­
leiro está a sua terrível dependência externa.
Tal dependência se evidencia pela grotesca e impa­
gável dívida, sendo que o revoltante dela vem do
fato de que foi contraída por um governo carente
de legitimidade democrática e que é acusado de não
ter administrado os empréstimos recebidos de acor­
do com as reais necessidades do país. Essa dívida ex-

23
terna atinge hoje (1990) o exorbitante total de mais
de 100 bilhões de dólares, e escoa, perversamente,

das condições sociais no país.


Para que se tenha uma idéia da situação, é impres­
cindível que se diga que de 1972 a 1988 o Brasil en­
viou aos Bancos credores cerca de US$ 176 bilhões.
N o entanto a dívida externa continua aumentando
a índices que a transformam no melhor negócio do
mundo para os Bancos credores.
2. O u tra tragédia brasileira é aquela da con­
centração de recursos. Sendo agora a oitava eco­
nomia do Ocidente, o Brasil é no entanto a quadra­
gésima segunda em distribuição de renda no m un­
do. Além disso estudos mostram que 70% de sua renda
são controlados por apenas 10% da população, e que
10% da população são proprietários de 90% das terras,
o que revela um estado de iniquidade estrutural na
sociedade brasileira o qual ofende o senso de justiça
social encontrado nas Escrituras.
Essa enfermidade essencial gera todos os males
sociais e econômicos possíveis: a fome que mata 109
mil crianças por ano, o desabrigo que deixa 8 mi­
lhões de crianças nas ruas, a violência urbana que
mata anualmente mais do que se mata na maioria dos
países onde há guerra civil, e a esfomeada e perver­
sa inflação, que tem suas origens nas injustiças as­
sentadas no nível estrutural da sociedade brasileira
e no desenvolvimento de uma cultura inflacionária
que tem penetrado o subconsciente do país como um
todo.
3. Além de tudo há ainda o resultado direto
e geral da instabilidade econômica que é a busca
alucinada p or lugares nos quais se possam achar
melhores condições de vida e prosperidade. Por
isso, boa parcela da população brasileira vive a reali­
dade de um ininterrupto movimento migratório, o
ue acentua a calamidade urbana nas grandes cida-
3 es. H á trinta anos, 70% dela viviam nas zonas rurais.

24
Hoje apenas 30% permanece nestas vastas áreas de
terra do país. Somos um país no qual a grandeza de
nossas cidades é referida freqüentemente por nós de
modo extremamente orgulhoso. Quando dizemos que
o Brasil terá até o ano 2000 algumas das maiores ci­
dades do mundo — isso constituirá um dia uma das
nossas maiores tragédias. Se algo dramático não for
feito urgentemente, o Brasil do próximo milênio se­
rá um dos lugares mais violentos e insuportáveis do
mundo, com um trânsito urbano e rural de veículos
absolutamente assassino, com índices indizíveis de
estupros, crimes à mão armada, lutas entre gangues,
assaltos, seqüestros, escravidão de crianças abando­
nadas, guerras pela posse de terra no campo, baixís­
sima qualidade de vida na cidade, etc.
4. A nível de ecologia, poderiamos dizer que
o Brasil tem , possivelmente, o mais rico siste­
m a ecológico do planeta. De outro lado, toda­
via, temos tam bém que afirm ar que o nosso sis­
tem a ecológico talvez seja o mais ameaçado do
m undo. O Brasil como país e sociedade é indigno
do patrimônio ecológico que possui. É verdade que
o que se faz de trágico com a natureza ao redor do
mundo é também brutal e indizível. N o entanto, a nossa
parcela de irresponsabilidade para com a natureza não
tem tamanho ou comparação. O Brasil tem vocação
natural para ser o maior paraíso ecológico do mun­
do. Um país que tem o rio Amazonas, a floresta Ama­
zônica, o pantanal matogrossense, os rios, montanhas,
vales e litorais admiráveis não tem o direito de dei­
xar tal patrimônio ser destroçado pela vociferante ex­
ploração econômica que come a natureza com mais
sofreguidão que os cupins mais famintos do Amazo­
nas, que conseguem devorar um tronco de árvore
podre.

Gente Para Esta H ora


Quem são as pessoas para viver esta hora, para
enfrentar a história, atendendo ao chamado de Deus?

25
A nível de uma afirmação rápida e geral eu diria que
têm que ser pessoas que mesmo não assistindo a mu­
dança alguma, persistam na coragem de não se ca­
lar. Pessoas que tenham o rosto duro e a decisão de
não emudecer e não retroceder diante dos desafios
e das angústias a elas inerentes, fazendo todavia tudo
isso sem perder a doçura humana e um espírito ha­
bitado pela singeleza do amor de Cristo. Quem são
tais pessoas?

Aqueles que Aprendem a D epender de Deus


Até aí sei que não estou dizendo absolutamente
nada de novo. E até com certo constrangimento que
faço esta afirmação. Isso porque há em nosso meio
uma tendência a pronunciar sentenças como essa com
extrema facilidade. Seja como for, é meu desejo re­
fletir sinceramente sobre o que realmente significa
depender de Deus em tempo de crise — da escassez
financeira, quando não há bens sobrando para se fa­
zer nada; em tempo de tentação no que diz respeito
a colocar de lado a ética e o compromisso com a ver­
dade para assumir os atalhos que forneçam acesso
a esses bens que poderão “ajudar-nos” a fazer a obra
de Deus.
Como é possível viver a dependência de Deus nu­
ma conjuntura de tanta inquietação, justamente em
razão de que se tem tão pouco? Antes de tudo preci­
so dizer que o fato de depender de Deus em tempo
de crise não é uma questão de somenos importân­
cia. Observando a Escritura percebo que alguns dos
eventos mais importantes na história do povo de Deus
tiveram a ver com o aprendizado da lição da depen­
dência de Deus no tempo de escassez, de ausência
de recursos e dificuldades as mais variadas.
O primeiro texto que cito, e que ilustra o que acabo
de dizer, se encontra em Deuteronômio 8, onde Deus
diz que a finalidade da peregrinação do povo de Is­
rael pelo deserto era, entre outras coisas, ensinar-lhe
o caminho pelo qual ele os guiara durante 40 anos,

26
e cujo objetivo era humilhá-lo e prová-lo, para ver
se guardariam ou não os seus mandamentos.
Diz o v. 3 do cap. 8: “Ele te humilhou, e te dei­
xou ter fome, e te sustentou com o maná, que tu
não conheceste, nem teus pais o conheceram, para
te dar a entender que não só de pão viverá o ho­
mem, mas de tudo o que procede da boca do Senhor,
disso viverá o homem”. Num certo sentido esta é uma
perspectiva da didática de Deus. E na intenção de nos
ensinar tal lição que ele está nos dizendo que nós só
aprendemos a depender dele se estivermos vivendo
num contexto de escassez.
Deus queria ensinar sobre a relevância, a paixão,
o amor pela Palavra e a obediência a seus mandamen­
tos. Mas tinha que ser num tempo de tendência à mur-
muração, em lugar de tendência à gratidão; de busca
por precárias soluções humanas e não divinas; num
tempo de freqüente amargura e não de esperança. E
o interessante de tudo isso é que Deus só pode fazer
isso através de uma caminhada pelo deserto, mais ca­
racterizada pela ausência do que pela presença de con­
forto, pela escassez mais do que pela fartura de ali­
mentos. Acredito que não há nenhum outro instru­
mento ou conjuntura em meio aos quais possamos
aprender a lição da dependência de Deus, a não ser
os da aflição. E se isso é verdade, estamos no lugar
e no momento certo, com as conjunturas certas para
aprendermos a lição correta e então nos tornarmos
povo de Deus na história.
N a vida de Jesus esse mesmo paralelo se cumpre.
Ele é o Filho de Deus, chamado do Egito, devendo
passar, portanto, pela experiência do deserto, a qual
se caracteriza em sua vida pelo momento da fome,
da tentação de transformar pedras em pães e de aceitar
por todas as induções satânicas a tentação de usar
outros meios para atingir os seus propósitos, em vez
de aprender a lição de que, do ponto de vista de Deus,
os fins não justificam os meios. E realmente, do ponto
de vista de Deus importa cjue aprendamos a obediência
a ele, fazendo a opção etica do compromisso com

27
ele mesmo quando as coisas à volta nos convidam
a assumir um outro caminho, e a optar por outros
meios.

Dependendo de Deus em Tempo de Escassez


Os homens e as mulheres para este tempo são pes­
soas que aceitam o desafio de depender ae Deus na
escassez. Em I Reis 17.1-17 vemos que Elias é colo­
cado numa conjuntura de total impotência, de de­
pendência de terceiros, sendo obrigado a descobrir
quem eram os agentes de Deus para a sua manuten­
ção. Por que faço menção disto? Talvez você enten­
da que este não é um tema que se destine a pastores
e líderes, mas a um público leitor de cristãos comuns.
E como este livro terá um grande público de leitores
pastores certamente, se você é pastor, está pensando
que o assunto está começando a ficar devocional de­
mais para as suas elevadas e especializadas preocu­
pações pastorais. N o entanto estou convencido do
oposto; e meu convencimento diz respeito ao fato
de que estou consciente de que estamos vivendo no
Brasil um tempo de profunda tentação; tentação de
sermos sustentados por aqueles que não são os agentes
de sustento do reino; tentação de usarmos para isso
os meios que não são os de Deus; tentação de acei­
tarmos os recursos que não são os do céu para a ma­
nutenção da nossa vida. Também sofremos a tenta­
ção de usar o carisma e a graça de Deus para conse­
guir dinheiro e poder. No deserto, o diabo nos seduz
com a tentação aa manipulação da graça de Deus para
fins de autobenefício (tentação de transformar pedras
em pães); com a tentação da manipulação do mar­
keting, para fins de impressionar o público, a fim de
que este nos dê reconhecimento pelas vias erradas
(tentação de pular do pináculo do templo na hora
ao culto público, como o que aconteceu com o evan­
gelista americano que disse que se o povo não lhe
mandasse 8 milhões de dólares Deus o mataria); e
com a tentação de nos entregarmos às forças políti­

28
cas (que também são forças espirituais), a fim de che­
garmos ao poder (tentação de se curvar ante aquele
que é o príncipe dos poderes deste mundo, o dia­
bo). Ora, todas essas coisas só são tentações quando
estamos vivendo em tempo de escassez. Que tenta­
ção há em transformar pedras em pães quando se tem
pão com fartura? Ou que possível tentação há em cha­
mar a atenção do povo para nós se já usufruímos de
tal reconhecimento? O u ainda, que tentação há em
escolher a via errada para o poder, se já se tem o po­
der pelas vias certas? Portanto, quando você ler o que
se segue, a respeito de confiar em Deus em tempo
de crise, não pense que se trata de uma ingênua e
devocional mensagem. Ao contrário, ela é essencial­
mente importante, e de sua real vivência depende toda
a nossa vida.
Meu desejo é que você amplie esta temática do
sustento de Deus e veja se estamos ou não vivendo
a tentação de procurar recursos pelos meios errados
em nossas igrejas. Veja se aquilo que hoje muito per­
turba boa parte dos políticos evangélicos, bem co­
mo a maioria dos nossos homens de negócios, os pas­
tores e todos nós que estamos sofrendo nessa época
de escassez, tem ou não algo a ver com a tentação
de estendermos nossas mãos a fim de fazermos uso
de meios e modos que não são os de Deus para nos­
so sustento.
Quem são — repito — os homens e as mulheres
para esta hora? Para mim, olhando para a vida de Elias,
a primeira resposta é a seguinte:

Vivendo Entre o N atural e o Sobrenatural


As pessoas para esta hora são aquelas que apren­
dem a viver entre o natural e o sobrenatural.
Gosto da tensão ante a qual somos colocados neste
episódio da vida de Elias (I Rs 17.4-7). Isso porque
Elias nos é mostrado como alguém que está realmente
nessa fronteira, vivendo na zona cinzenta entre o natural
e o sobrenatural, sem fazer opção, mas aceitando o

29
fato de que Deus sempre vem a nós através dessas
duas dimensões, as quais, presentes, formam o que
podemos chamar de existência, como seu todo. Por
que afirmo que Elias se encontrava naquela frontei­
ra? É que o encontramos entre corvos fiéis e ri­
beiros que poderíam secar. Vemos agentes (cor­
vos) absolutamente sobrenaturais na sua missão, pois
eram guiados por Deus. Tais corvos-agentes de Deus
trazem diariamente o alimento a Elias, sem que se saiba
de onde vieram, nem como conseguiram a comida.
Mas fosse como fosse, eles sempre chegaram com a
pontualidade da graça, da agenda e do relógio de Deus.
Por outro lado, não vemos Elias vivendo qualquer
tipo de romantismo em relação a isso. Ao contrário,
vemo-lo exatamente ao lado de um meio natural de
subsistência — acampado junto de um ribeiro, que
não era absolutamente produto de uma intervenção
“ nova” de Deus. O ribeiro estava lá quase desde sempre.
Penso que essa é a tensão na qual nós que esta­
mos comprometidos com a igreja neste tempo de crise
precisamos aprender a viver: a de ficarmos entre o
natural e o sobrenatural; a de mantermos essa ten­
são, expondo-nos ao milagre, porém junto às fontes
naturais, concretas, mensuráveis, que existem próximas
a nós.
Isso implica tam bém mobilidade. O u seja, im­
plica que não nos prendamos a meios fixos, mas es­
tejamos abertos a uma ação criativa, na descoberta
do que pode ser mais prático para o nosso sustento,
aqui e agora. Isso porque, quando o ribeiro secou,
Elias teve a mobilidade de mudar de posição e ir adi­
ante.
Viver nessas circunstâncias implica tam bém
viver com sabedoria. Isto é, discernir sabiamente
entre os agentes de Deus e os recursos humanos, a
fim de que trabalhemos ambos, e assim não desper­
dicemos o que Deus está nos trazendo ou nos mos­
trando através dos dois agentes reais de manifesta­
ção da sua provisão a nosso favor: os corvos (sobre­
natural) e o ribeiro (natural).

30
Se não vivermos nessa tensão, nessa mobilida­
de, com esse discernimento, então a tentação será
a de nos convertermos em pessoas infantilmente de­
pendentes de Deus, ou arrogantemente independentes
dele. Quando me refiro a não ser infantilmente de­
pendente de Deus estou fazendo alusão a uma pers­
pectiva de confiança mórbida e parasitário descan­
so. Obviamente tal confiança é patológica. Isso por­
que há um certo tipo de dependência de Deus que
não é dependência, mas passividade existencial doen­
tia; não é descanso, mas preguiça conformada; não
é fé, mas falência da esperança. De fato, muitos dos
que ouço afirmar que estão dependendo de Deus não
estão dependendo ae coisa nenhuma; apenas disfarçam
sua ausência de coragem para viver e sua falta de es­
perança em Deus atrás de uma pretensa aparência de
confiança, que nada mais é do que uma lânguida, pas­
siva, mórbida e total falta de atitude. Conheço pes­
soas que há anos me dizem não haver feito nada ain­
da porque estão “dependendo do Senhor”. Elas vão
“depender” de Deus a vida inteira! A vida vai passar
e elas vão ser verdadeiras Carolinas na janela da His­
tória, como diria o Chico Buarque: “ O tempo pas­
sou na janela, e só Carolina não viu...” Esperando,
esperando, não contra a esperança, mas esperando
com uma desesperança conformada, travestida de fé,
e que não passa de falência de toda visão e poder
de sonhar.
De outro lado, temos os cristãos independentes,
que se secularizaram, estão prontos a usar apenas os
instrumentos e os meios disponíveis e materializados,
e em função dessa opção também muitas vezes es­
colhem valer-se de quaisquer meios sem depositar
confiança no fato de que Deus é um Deus que traba­
lha com corvos e com fontes de água natural, que
age no sobrenatural quando nos expomos a ele com
bom senso, às margens das fontes naturais dos seus
recursos. *
* A maior evidencia de que presentemente desistimos de esperar em
Deus talvez venha da nossa generalizada atitude de abandono dab

31
Refletindo a respeito do episódio do sustento de
Elias por intermédio dos corvos à beira do ribeiro,
Walter Brueggemann diz que o propósito daquela pas­
sagem não é chamar-nos a confiar em passarinhos,
numa espécie de inocente, ingênua e romântica con­
fiança no cuidado de Deus, mas um convite a que
nos tornemos vulneráveis à semelhança de Jesus quan­
do arriscou a si próprio durante toda a sua vida e seu
ministério. E mais, ele diz que este cenário nos leva
a identificar quais são as nossas profundas salvaguardas
relacionadas às seguranças pessoais das quais somos
chamados a desistir. Brueggemann então pergunta,
aplicando o texto à nossa vida: “ Onde é que está o
território selvagem no qual somos chamados a en­
trar por causa do evangelho?” E ele conclui que o
texto nos ensina que quando obedecemos a Deus ao
ponto de nos expormos ao perigo, dons surpreedentes
nos são ofertados pelo Deus da graça. Da mesma
forma, esses dons de Deus não são dados ou não
são vistos entre aqueles que têm todas as coisas
garantidas.!4)
N o Brasil, viver entre o natural e o sobrenatural
pode significar, para um pastor, o exercício paralelo
de uma profissão que o “ajude” (como a torrente de
Elias), enquanto ele recebe o complemento salarial
da igreja. Para uma igreja local isso pode significar
o desenvolvimento de um planejado orçamento, ba­
seado numa realística receita, mas que não condi­
ciona as pessoas em relação a sonharem com as sú­
bitas aparições dos corvos de Deus, trazendo consi­
go maravilhosas surpresas. Para uma missão (parae-
clesiástica) isso pode significar o desenvolvimento

oração. Isso porque muitas vezes chegamos a pensar que ê melhor deixar
de orar do que orarmos correndo o risco de não sermos respondidos.
Orar é profundamente comprometedor, pelo simples fa to de que colo­
ca em cheque nossa f é em Deus. Isso porque quando Deus não res­
ponde nós nos vemos obrigados a arranjar uma resposta para o si­
lêncio de Deus. Dessa form a, para muitos, em lugar da opção pela
oração é melhor qualquer outra opção na qual nem eles nem Deus
sejam checados diante do fa to ensurdecedor do silêncio divino. A s­
sim eles evitam ter que ter uma resposta ao silêncio de Deus, e evitam

32
de meios autônomos de geração de recursos que per­
mitam à organização sobreviver sem depender tan­
to das ofertas, quase sempre preguiçosas, de boa par­
te dos crentes brasileiros. Para um político cristão,
pode significar a atitude de manter-se firme aos princípios
do reino mesmo que isso lhe deixe com a margem de se­
gurança política muito estreita ou reduzida a quase
nada. Para um pai de família isso pode significar
“agarrar” a oferta de emprego que apareceu, ainda
que ela não lhe pareça muito segura, mas apenas o ne­
cessário para o hoje.

Aprendendo de Onde Vem o Sustento


Os homens e mulheres para viverem esta hora
são aqueles que aprendem de onde vem o sustento
de Deus. De acordo com I Reis, Deus fez isso usan­
do corvos e viúvas. Isso é tremendo, mas é também
uma situação constrangedora: viver entre corvos e
viúvas! Talvez julgássemos melhor viver entre o rei
e o primeiro ministro... Realmente entre corvos e viú­
vas é uma posição de fraqueza indesejável. Isso me
constrange tremendamente, pois freqüentemente me
vejo diante da tentação de estar entre agentes mais
poderosos do que entre esses simples, que a graça
de Deus elege para nos trazer sustento e provisão.
Talvez você argumente que a vida de Elias é um
caso isolado. Não: ele é a regra desse modus ope-
randi de Deus. Se você tem dúvida, olhe para a maio­
ria dos fatos bíblicos e históricos e observe como
quase sempre é de gente desse tipo, de agentes se­
melhantes aos que usou para manifestar sua provi-

ter que ter ruiva de Deus, pelo fa to de que o silêncio dele os forçou
a terem que defendê-lo diante dos homens em razão de seu silêncio.
Por isso eles deixam de orar a fim de evitar as consequências do si­
lêncio da demora de Deus. Esta é também a razão por que os cristãos
que desistem de esperar em Deus, decidem que eles mesmos são, atra­
vés de seus atos políticos, as respostas do homem ao silêncio de Deus
na história. Saber disso deveria nos levar a uma avaliação do proje­
to político da maioria dos cristãos em volta de nós, a fim de saber
mos se a resposta política deles à realidade que os circunda é u m ato

33
são a Elias que ele também fez uso a fim de trazer
sustento aos seus profetas e ao seu povo. Aliás devo
lhe dizer que, olhando para a história do povo de
Deus, encontramos com muita clareza o fato de que
sua performance em relação ao sustento é quase sem­
pre cheia de titubeios pelo fato de que freqüente-
mente esquecemos quem são os usuais agentes de
Deus para o nosso sustento. Isso porque sempre que
esse povo está sendo sustentado por esses agentes,
ele vive de fato como povo de Deus. Mas quando
ele se envolve com fontes de sustento que não po­
dem ser identificadas como sendo de Deus, então
ele se torna corrupto.
Observe a história de Israel e da igreja, e veja co­
mo os tempos da nossa maior simplicidade — quan­
do o sustento não vinha da mesa do rei, mas das viú­
vas e dos corvos — foram justamente os de maior
vitalidade e vigor espiritual. Não havia dinheiro pa­
ra erigir grandes catedrais; até o século IV a igreja
Cristã não soube o que era isso. N ão havia dinheiro
chegando dos impostos do Estado, verbas públicas
para financiar a igreja, ou qualquer das chamadas
“ bênçãos da generosidade do rei”. N o entanto ha­
via graça, poder, paixão, integridade e generosida­
de. Ouço freqüentemente alguns irmãos muito es­
pirituais dizerem: “Ah, irmãos, que bênção! O go­
verno tem uma verba reservada ao povo de Deus,
aleluia!” Este é um aleluia constantiniano, um ale­
luia que até o imperador dá com prazer. Mas não é
um aleluia que os profetas ousariam pronunciar!
A leitura da Bíblia nos mostra que o povo de Deus
deve depender o mínimo possível dos poderes po­

de revolta diante i a demora de Deus ou um a sadia expressão de fé


no Deus da história. Qualquer das duas situações é possível. E m m i­
nha maneira de ver, a maioria daqueles que estim ulam a igreja à
ação p olítica como prioridade sobre as outras dimensões da vida são
pessoas que não oram e não esperam mais em Deus na perspectiva
de fazerem uso dos agentes de Deus na história. São pessoas que não
sabem ou não gostam de viver entre os corvos e o ribeiro. Digo isso
porque observo atônito a morte da f é no Deus que age na história
independentemente das "mediações políticas hum anas”. Verifico tal

34
líticos. Não se trata de ter ou não direito a tais re­
cursos. A questão é mais profunda. Ela tem a ver com
o fato de que a história quase não tem registros de
relação da igreja com as forças políticas dominan­
tes ou a caminho de se tornarem, que não tenha re­
dundado em rendição a tais poderes. Mesmo aque­
les personagens bíblicos que nos são mostrados fa­
zendo uso dos recursos do Estado — como no caso
de Esdras, Neemias e Daniel — fazem isso com total
discrição, evitando pedir qualquer coisa que eles
mesmos pudessem conseguir sem a ajuda real.
A igreja vive hoje no Brasil a crise de não saber
de quem deve depender: se de Deus ou do poder
político que a igreja possa exercer a fim de ter seu
próprio sustento facilitado. E eu repito: isso vem do
fato de não estarmos sabendo identificar as legíti­
mas fontes do sustento do povo de Deus. E assim,
não entendendo que existe provisão e “ provisão”,
sem nenhuma pré-visão nos envolvemos em coisas
cujos fins poderiamos perfeitamente prever. Dessa
maneira muitas vezes nos alegramos com as “provi­
sões” que não são provisões, mas apenas tentações.
Creio que se houvéssemos tido isto em mente não
teríamos nos últimos anos sofrido a vergonha que
sofremos. Somos acusados de estarmos nos aprovei­
tando, trocando, barganhando em nome de Deus —
e até com a unção de maravilhosas reuniões de ora­
ção — o dinheiro do Estado através de alguns polí­
ticos evangélicos, pastores e representantes de alguns
órgãos que ilegitimamente “ representam” os evan­
gélicos. Esse dinheiro não nos tem chegado para fa­
zer o bem, mas para nos comprar e nos corromper,
pois não temos sabido discernir que Deus é um Deus
realidade através do desaparecimento quase total do desejo de orar
na vida da m aioria daqueles que vivem a política como expressão
m áxim a do poder hum ano de fa ze r história. Quando a oração não
está presente é porque de fato já não cremos no Deus que intervém,
cremos apenas nas intervenções do homem.
Não podemos partir para a ação que prescinde da oração. É pre­
ferível correr o risco de ter como resposta à sua oração o ensurdece­
dor silêncio de Deus, mesmo sabendo que tal situação pode fa ze r o

35
que age quase sempre em fraqueza em vez de com
os recursos do Estado.
Esta é uma das santas contradições do Deus da
Bíblia. Ele é o Todo-Poderoso que age em fraqueza;
e que usa a fraqueza justamente para que possa ser
Todo-Poderoso. Porque se escolhesse instrumentos
de poder suas ações não seriam as ações do seu pró­
prio poder. Mas para que ele seja o Deus da graça
e do poder é sempre necessário que seus instrumen­
tos sejam os da fraqueza, por meio dos quais o seu
brando poder se manifesta na nossa vida.

Patrocinados Pelas Primícias


As pessoas para esta hora também são aquelas em
cuja vida a obra de Deus é patrocinada pelo fruto
das primícias. Aprecio muito o capítulo 17, especial­
mente o v. 13 de I Reis, quando Elias, na sua mobili­
dade, sai da fronteira de Israel — fronteira institu­
cional da bênção — e vai para Sarepta, onde vê uma
viúva à porta da cidade e lhe diz que lhe faça um
bolo. Ao que ela responde que do pouco de farinha
que tinha iria realmente fazer um bolo, mas por certo
seria o último de sua vida e de seu filho. Mas Elias
lhe diz que faça o que ele mandou, ou seja, primei­
ro um bolo pequeno para ele, e depois para ela mes­
ma e para o filho, pois o Senhor lhe garantira que
a farinha não se iria acabar, como também o óleo
não terminaria, até que o Senhor fizesse chover so­
bre a terra.
Este exemplo acima vem nos mostrar que nós que
somos cidadãos do reino de Deus no meio das ca­
lamidades econômicas e sociais do Terceiro Mundo
intercessor cair em profunda agonia de alma caso Deus não respon­
da logo.
Esse sentimento de se sentir um intercessor mal-sucedido já levou
muitos homens e mulheres de Deus no passado a perguntar a Deus
qual era o propósito que ele tinha em mente quando revelava a tre­
menda contradição existente entre o seu caráter santo e a pecamino-
sidade da sociedade (Hc 1.3-4). Isso porque a revelação de Deus al­
gumas vezes parece não corresponder à intervenção de Deus na bis-

36
podemos, apesar disso, levar à frente uma missão.
O mesmo exemplo nos ensina também que mesmo
em nossa fraqueza temos ainda todos os recursos pa­
ra todo testemunho; e que os nossos maiores emba­
raços não são os financeiros. E mais ainda: a gran­
de tensão em nossa vida não está entre o ter e o
não ter, mas entre o ser e o não ser. O que a Palavra
de Deus de maneira tão singela nos induz a concluir
é que através de agentes e instrumentos fracos dis­
postos a entregar suas primícias a Deus, a sua obra
pode ter tudo quanto for necessário neste tempo de
fraqueza e de crise.
O problema está em saber se estamos ou não dis­
postos a assumir seriamente o compromisso com as pri­
mícias de Deus. Preciso dizer que no tempo da crise fi­
nanceira geralmente a primeira coisa que cortamos é nos­
sa contribuição para a obra de Deus. Mas isso é justa­
mente aquilo que sob hipótese alguma deveriamos fazer.
Tais compromissos tinham de ser incortáveis, inarran-
cáveis, pois significam nosso compromisso com as pri­
mícias: “primeiro faze...para m im um bolo pequeno...; de­
pois farás pauta ti mesma...”
Estou seguro de que Deus tem posto nas mãos
do seu povo os recursos para toda a tarefa que nos
confiou. Estou certo de que na multidão dos simples
e fracos do seu povo estão as riquezas necessárias para
se fazer toda a obra que ele por sua graça nos enco­
mendou para realizar. O que nos falta é a segurança
de Elias para afirmar à viúva que depois não lhe fal­
tará o necessário para a vida, e fé da viúva para dar
com obediência-esperançosa. Se assim fosse, veriamos
as riquezas imensas de Deus sendo liberadas a favor
do seu povo nestes dias de crise e escassez.
tória concreta. Em outras palavras: a nossa tentação é muitas vezes
dizer que há m uita palavra de Deus e pouca ação de Deus na histó­
ria. Muitas vezes queremos um Deus que “revele” menos e “atue" mais.
D a í a atual ênfase dos evangélicos progressistas no fato de que preci­
samos de uma teologia mais horizontal, mais concreta, mais prática
em seus resultados.
Essa í uma das maiores tentações á fé. A tentação de se ter uma
teo-LOGlA. Uma teologia com menos teo e mais LOGIA. Uma teolo-

37
Aprendendo a Orar Pelo Impossível
Também as pessoas para esta hora são aquelas que
aprendem a orar pelo impossível. E interessante ob­
servar que na seqüência de dependência de Deus,
a última lição que o. Senhor dá a Elias é a de acredi­
tar apesar de tudo. E a lição da dízima periódica da
esperança — a de colocar uma pitada a mais onde já
não há chance de se crer em coisa alguma; acrescen­
tar um “será possível?” onde a vida declara ser im­
possível. Observe que o filho da viúva de Sarepta
morre, e ao invés de Elias tomar de uma pá e abrir
um buraco, toma o menino nos braços, leva-o ao
quarto, e chora sobre ele até a vida voltar. Isso é tre­
mendo! Essa capacidade de crer e orar pelo impos­
sível é algo que Deus só pode nos ensinar quando
o meio-ambiente é esse meio-ambiente de luto, de
desesperança, de falência, como é o nosso hoje.
Temos então apenas duas opções: ou tomamos
a pá da história e abrimos um buraco e sepultamos
as nossas esperanças, ou apanhamos esse defunto e
nos debruçamos sobre ele em oração, na certeza de
que Deus foi, é, e sempre será o Deus da ressur­
reição.

Sendo Instrumento do Deus que Usa os Fracos


Que vamos então, diante disso, decidir assumir
agora para a nossa vida? Estou convencido de que
se Deus quisesse fazer a sua obra por outros meios
e outros modos não teria chamado Abraão, mas Fa­
raó; não teria começado com um povo insignificante,
mas com um povo que sabia construir pirâmides. A

gia TERRO-LÓG1CA. Uma teologia que faça de nós “sujeitos de nossa


própria história” Gosto dessa frase, mas quase sempre ela nos colo­
ca numa situação na qual nem os opressores (o que é ótimo), nem
Deus (o que é trágico), têm qualquer poder sobre nossa vida.
A tentação à qual estamos submetidos è de agir em nome de Deus
na certeza de que quando Deus não fala é a vez do homem falar, e
quando Deus não age ê a vez do homem agir.
Mas isso parece bastante diferente da afirmação de Moisés, quan-

38
história do povo de Deus é a história daqueles que
não têm história na História da civilização. Ela só
é história para nós, povo de Deus. Vá até a Síria e
veja se lá há alguma coisa escrita sobre os profetas
de Israel. Você sofrerá uma grande decepção. Faça
o mesmo no Egito, na Assíria, e em todo o mundo
antigo. Faça isso em relação àquele que rachou a His­
tória no meio 0esus) e você verá que as poucas re­
ferências históricas à sua pessoa (extrabíblicas) são
razoavelmente insignificantes. Neste ponto estamos
diante do fato de que o povo de Deus só tem histó­
ria no curso futuro da História, nunca na sua con-
temporaneidade. O que se deu com os profetas dá-
se também com o povo de Deus. Para ambos, a His­
tória só os reconhece quando já foram. Sendo as­
sim, eles não sabem nunca que fizeram a História.
Por isso saúdam as promessas de longe, e morrem
em esperança, e fé.
N a realidade é necessário que se diga que sem­
pre que o povo de Deus se torna historicamente mui­
to influente enquanto os protagonistas de tal histó­
ria estão vivos é porque o poder constituído coop-
tou o povo de Deus. A atitude histórica dos que vi­
vem atrelados à história oficial em relação às coisas
do povo de Deus é sempre aquela de Naamã, o siro:
“ não são porventura Abana e Farfar, rios de Damasco,
melhores do que todas as águas de Israel?” Ele tinha ra­
zão. O Jordão é ridículo. Qualquer igarapezinho do Ama­
zonas é mais interessante do que ele. Mas foi lá que
as águas se abriram para que os sacerdotes passas­
sem; foi lá que Elias amontoou as águas com um sim­
ples toque de sua capa, e Eliseu fez o mesmo quan­
do invocou: “ Onde está o Senhor Deus de Elias?”
do disse que se Deus não fosse com ele e com o povo, ele preferia não
sair do lugar. Moisés valorizava mais a presença de Deus do que ações
em nome de Deus. Moisés sabia que não há ações de Deus que sejam
sempre as mesmas. Dessa form a, a presença de Deus é que é indis­
pensável a fim de evidenciar ao povo de Deus se este conta ou não
com a parceria divina na caminhada. Enquanto Deus não fala é melhor
continuar comendo daquilo que os corvos nos trazem e bebendo da
água que o ribeiro nos oferece.

39
O Abana e o Farfar eram apenas rios. O Jordão era
um símbolo. Por isso o Jordão é, na Bíblia, maior
que o rio Amazonas. Os símbolos são inexauríveis.
A propósito dessa relação entre a histór.a do po­
vo de Deus e a história reconhecida, lembro o se­
guinte episódio. Encontrava-me certa ocasião com
um grupo de irmãos no Egito. Esses irmãos ficaram
transtornados porque em todas as aulas de egipto-
logia ali recebidas não encontraram qualquer alusão
histórica à passagem de Israel pelo Egito. O proble­
ma deles era que quando liam a Bíblia ficavam com
a impressão de que o mundo inteiro estava absolu­
tamente chocado com o que acontecera no Êxodo.
N o entanto, olhando a História, contada por histo­
riadores alheios à realidade do povo de Deus, con­
cluíram que os grandes eventos que nos quebrantam
a alma não têm o menor significado do ponto de vis­
ta de uma interpretação do mundo que não seja
judaico-cristã. A história que nos orienta como po­
vo de Deus — conquanto seja legitimamente históri­
ca e conquanto nos dê a sensação de que em fun­
ção dela o mundo tenha outro centro — não é o cen­
tro da “ História secular”, nem é o ponto pelo qual
os historiadores seculares fazem qualquer interpre­
tação da História. A História secular não é a historia
da fé, da esperança e da perseverança. Ao contrário,
é a história do poder econômico, político e militar.
Não é a história dos fracos e oprimidos. É a história
dos poderosos e dominadores. Os fracos e oprimi­
dos só têm história nos registros do povo de Deus
e de sua caminhada de fé. O curioso, no entanto,
é que esses que não são “ vistos” enquanto vivos, são
muitas vezes aqueles que mexem os “cordões” que
movem e mudam o mundo. César não soube de Je­
sus, o que morreu como ilustre desconhecido para
a secularidade de seus dias. Mas quem plantou no
chão do mundo as sementes que nos mantêm vivos
foi aquele desconhecido cidadão da inexpressiva N a­
zaré.
A história do povo de Deus foi, é, e sempre será

40
a história dos sem-história, que fazem história sus­
tentados por agentes às vezes estranhos à história,
mas agentes de Deus, o que possibilita a ação de Deus
na nossa fraqueza, para que ele seja abundantemen­
te glorificado pela provisão que fornece aos fracos.
Se você quiser interpretar o que eu disse como
dirigido à sua vida, seus negócios, suas relações de
modo o mais individual possível, eu lhe dou permis­
são. N o entanto o que gostaria mesmo é que você
aplicasse estas reflexões num contexto mais geral.
Apreciaria muito que nossos deputados evangélicos
lessem essas páginas; bem como muitos de nossos
empresários evangélicos, e todos aqueles que por­
ventura estejam dispostos a usar quaisquer meios pa­
ra atingir “ santos” fins. A história do povo de Deus
só é legitimamente escrita se seus instrumentos são
pessoas que viveram em fé, sendo mantidas pelo sus­
tento que Deus envia através de seus simplíssimos
instrumentos. E por tudo isso que precisamos apren­
der que a sua obra pede e exige que não seja feita,
se a quisermos fazer pelos meios errados. Pois a obra
de Deus prefere não ser feita declaradamente como
obra de Deus, a ser obra feita em nome de Deus, po­
rém corrompida pelas mãos de pessoas que prefe­
rem fazer coisas em nome de Deus, a fazê-las genui­
namente mesmo que não seja em seu nome. Deus
prefere não ter seu nome mencionado quando a jus­
tiça é feita (“Sempre que o fizeste a um desses pe­
queninos a m im o fizeste”), a tê-lo mencionado
quando obras de injustiça são feitas sob o piedoso
disfarce de terem sido feitas em nome de Deus (“Se­
nhor.; Senhor, em teu nome fizemos... Mas ele lhes
dirá: eu nunca, vos conhecí”).

41
3

Elias,
Um Homem que Aprendeu
a Lidar com o Poder
É olhando para a vida de Elias que vamos tentar
discernir como o profeta lidou com os poderes po­
líticos e espirituais durante seu ministério. Aqui va­
le outra vez lembrar que há similaridades imensas
entre o mundo de Elias e o nosso mundo. Tendo isso
em mente é essencial que tentemos nos identificar
com ele, na intenção de discernirmos os elementos
contra os quais lutamos, e que são os mesmos que
ele enfrentou, e, assim, aprendermos lições práticas
e estratégicas quanto ao enfrentamento de tais con­
flitos.

A Tentação do Poder
Primeiramente devemos admitir que um dos
maiores problemas com os quais nos confrontamos
como povo de Deus é o da tentação do poder.
Lidar com o poder é sempre perigoso. Seja ele
visível ou invisível, ou de qualquer outra natureza;
seja perceptível aos nossos sentidos físicos ou aos
sentidos espirituais apenas. Seja como for, ele é sem­
pre ambíguo e perigoso. Isso porque, em qualquer
dimensão, poder é sempre aquilo que nos habilita
a sermos mais do que nãturalmente somos, ou sería­
mos. E tudo aquilo que proporciona tal possibilida­
de certamente tem seu lado perigoso. Quando se está

42
lidando com o poder — seja ele de que natureza for
— deve-se saber que não há qualquer possibilidade
de conforto e naturalidade de nossa parte com o po­
der em si. Para um homem de Deus será sempre um
tanto desconfortável a relação com ele. Mesmo com
as suas formas mais santificadas. Isso deve nos de­
safiar a entender que vinculações podemos, deve­
mos ou não devemos ter com todas as perspectivas
do poder.

O Poder Político
Antes de mais nada, faço referência ao poder
constituído, visível e político, que se pode tocar e
perceber. A igreja em nosso país tem a tendência de
desenvolver uma relação ambígua com o poder po­
lítico. O poder constituído não sabe existir como tal
ao lado de qualquer outra entidade ou realidade que,
crescendo, possa constituir para ele ameaça. Quan­
do isso acontece, o Estado luta contra ela, ou então
a absorve. N o nosso caso, aqui no Brasil, infelizmente
o poder constituído não tentou nos enfrentar. Tal en-
frentamento é sempre muito saudável porque puri­
fica a igreja $ a deixa livre da tentação de ser pode­
rosa por vias humanas. O que o poder político fez
foi assimilar-nos, absorver-nos; e nós, num certo sen­
tido, permitimos que isso acontecesse. Quando eles
sentiram que tínhamos uma teologia que nos ensi­
nara uma atitude de quieta subserviência a qualquer
tipo de poder constituído, uma compreensão do
mundo que nos fazia viver em guetos fechados e re­
lativamente bem organizados, e que éramos em quan­
tidade suficiente para fazermos diferença em plei­
tos políticos, e que, ao manipular-nos, poderíam al­
terar as coisas; então, em lugar de nos rejeitarem,
eles nos assimilaram.
Hoje a grandeza numérica da igreja evangélica
brasileira tornou-se um de seus maiores inimigos. Es­
sa é uma grandeza terrível, pois é alienada, sem ca­
beça, sem etica, e que favorece toda e qualquer pers­

43
pectiva de manipulação. Vivemos então um momen­
to em que muitos de nós nos sentimos deslumbra­
dos com as oportunidades, os privilégios, os acenos,
as portas abertas, as coisas que para a igreja evangé­
lica são franqueadas. E isso nos tem corrompido.
A tal ponto que eu, que durante muito tempo vinha
insistindo com a necessidade de a igreja descobrir
seu papel na sociedade, fico muitas vezes me per­
guntando se essa nossa entrada ingênua, afoita e des­
comprometida com o reino, ou ideologicamente ex­
cessivamente apaixonada, no mundo político, não
estará hoje sendo pior que nossa alienação no pas­
sado. Espero que não. Todavia, não hesitarei em di­
zer que sim, caso continuemos a ser representados
politicamente pelas mesmas atitudes que observamos
terem norteado os evangélicos nos últimos cinco
anos. E o que digo tem sua aplicação também para
o grupo evangélico chamado “consciente”. Isso por­
que essa ala dos conscientes também corre o risco
de ser cooptada pelo poder político não-oficial. Tal
poder político não-oficial tem em si mesmo o po­
der da fascinação messiânica, de promover um des­
lumbre que chega às raias da experiência “religio­
sa”, e da cativação apaixonada, tomando, tantas ve­
zes, o lugar do reino de Deus no coração humano.
Não estou aqui sugerindo que devemos alienar-nos
outra vez ou assumirmos o maniqueísmo que diz: “ Se
não é isto, é aquilo!” Estou apenas dizendo que a nossa
falta de maturidade nos levou a passar de uma pro­
funda alienação política a uma participação política
inescrupulosa e aética de um lado, e excessivamente
apaixonada, do outro. E por isso que neste livro vo­
cê está sendo convidado a viver nessa tensão perma­
nente com os poderes constituídos deste mundo, sejam
eles oficiais ou não; sejam eles de direita ou de es­
querda; sejam eles progressistas ou conservadores.
Refletindo a esse respeito Jacques Elull, escritor
e pensador cristão dos mais preparados que conhe­
ço, diz que a tendência do cristianismo como insti­
tuição tem sido a do adesismo ideológico. E mais:

44
Elull diz que os teólogos sempre foram capazes de
encontrar suficiente base “ bíblica” para justificar tais
atrelamentos. Por exemplo, quando sob monarquias
enfatiza-se a unidade de Deus e o Cristo-Rei. Sob re­
públicas se evoca o argumento do povo eleito de
Deus. Quando na democracia se evoca o fato de que
Deus associa a si mesmo à vontade e às aspirações
do povo; debaixo de regimes totalitários de direita
ou esquerda, lembra-se o fato de que o Estado é mi­
nistro de Deus para o bem.(5)
Por mais duro que seja o comentário de Elull,
quem pode contestar sua veracidade? A situação é
tal, que Elull segue adiante dizendo que no sexto sé­
culo havia inclusive a idéia de que os atos de Deus
na história eram todos mediatizados pelos Francos
(a gesta Dei per Francos). Foi também dessa forma
que a igreja se tornou Nacional Socialista (Cristã Ale­
mã) quando Píitler tomou o poder. Tornou-se comu­
nista em países comunistas. Tornou-se Libertacionista
quando a moda intelectual ditou esse padrão na
América Latina. Em cada uma dessas vezes a igreja
desenvolveu algum tipo de teologia que justificasse
tal adesão. Uma vez que a igreja se vê pronta para
se associar cò’m o poder instituído, ela se sente pron­
ta para se associar também com todas as formas de
Estado e desenvolver teologias que possam legitimar
tais Estados. O escândalo é que cada vez mais ela bus­
ca legitimar tanto sua adaptação quanto a existên­
cia do Estado. E enquanto age assim é também ins­
trum ento de propaganda.!6)
Exemplos recentes mostram que o mesmo poten­
cial “abençoador” de Estados e ideologias políticas
está presente na igreja evangélica brasileira. Tanto faz
se o grupo é de direita ou esquerda, o mesmo po­
tencial para ser “apoio” leal ao Estado ou ao parti­
do está evidente. Mudam-se apenas os termos, mas
o resultado é o mesmo. Um simples exemplo disso
pode ser verificado através da leitura dos folhetos
de promoção elaborados por algumas comissões
evangélicas de apoio a Collor ou Lula nas eleições

45
presidências de 1989. Nos folhetos que ambos os
grupos divulgaram abundavam expressões messiâ­
nicas do tipo: “ele tem cara de homem de Deus...”
(dito sobre Collor); “...tem que ser sustentado pelas
orações do povo de Deus, como Moisés...” (dito so­
bre Lula); “... é sábio e justo como Daniel e José...”
(dito sobre Collor); “...todo verdadeiro cristão tem
que votar nas propostas de mudança de...” (dito so­
bre Lula).
Também aqui neste capítulo quero perguntar a
você: Quem são as pessoas para viverem esta hora
de confrontação com tais poderes?

Falando aos Poderes Constituídos


Observando a vida de Elias, descobrimos que são
aqueles que discernem que o povo de Deus tem que ter
algo a dizer aos poderes constituídos.
Se queremos ter relevância e participação histó­
rica efetiva, a primeira coisa que precisamos ter em
mente é que essa participação implica que sejamos
uma comunidade ou um povo que tem algo a di­
zer; e, além disso, com coragem de dizer as coisas que
precisam ser ditas.
Gosto do modo como Elias aparece na história
do poder constituído. I Reis 17 nos dá conta de tu­
do quanto estava acontecendo no país. O v. 1 subi­
tamente nos informa: “Então Elias, o tesbita, dos
moradores de Gileade, disse a Acabe.” E o que ele
disse foi que o juízo de Deus estava vindo sobre a
nação e por isso a crise de energia se intensificaria,
visto se encontrar o país, bem como as autoridades
constituídas, em grave e profundo pecado contra o
Senhor.
Quando lemos I Reis 18.1, outra vez a mesma afir­
mação aparece: “Muito tempo depois, veio a pala­
vra do Senhor a Elias no terceiro ano, dizendo; Vai,
apresenta-te a Acabe, porque darei chuva sobre a
terra”. E Elias foi e disse: “Ajunte o povo, pois há
uma palavra do Senhor para ele.” Ao lermos I Reis

46
21.17, também fica claro como o homem, a mulher
ou o povo de Deus na sua totalidade tem que ter al­
guma coisa a dizer diante da iniqüidade pessoal e
particular do rei. Parece-me tremendo o que a Pala­
vra de Deus nos informa neste texto: "Então veio
a palavra de Deus a Elias, o tesbita, dizendo (...)”
Mas dizendo o quê? Que os caprichos de Acabe que
usara a religião e manipulara o poder religioso para
fins particulares, a fim de eliminar a vida do inocente,
não ficariam impunes.
Ainda que a instituição religiosa estivesse de
mãos dadas com o Estado, havia ali alguém indepen­
dente, com coragem de levantar a voz e dizer: “As­
sim diz o Senhor (...)” Esta é a primeira afirmação,
que na leitura da história da vida de Elias nos apare­
ce clara. Elias vivia um evidente tensionamento de
relação com o Estado. Todavia, não era um homem
que desejava falar em nome de Deus. Ao contrário,
é fácil observar que ele vivia a obsessão de querer
ser apenas instrumento da Palavra de Deus. Ele não
estava interessado em falar em nome de Deus. Ele
queria que Deus falasse através dele. Isso faz toda
a diferença.
Uma olhada simples no cenário evangélico que
nos circunda me leva a afirmar que muito do nosso
ativismo profético-político não tem quase nada de
preocupação relacionada ao fato de se estar falando
em nome de Deus, ou de Deus mesmo estar falando
através de nós. Também não há a preocupação de
se Deus está junto ou não na ação feita por nós em
seu nome. Neste particular eu diria que nem os mais
esclarecidos e ilustrados cristãos estão livres do ter­
rível equívoco de pensar que tudo que eles falam em
nome de Deus, tem a sua chancela. Esse era também
o equívoco dos falsos profetas. Eles falavam em no­
me de Deus e por isso pensavam que aquela teolo­
gia que tinham “produzido” era a própria Palavra
de Deus. Mas Deus não fala sempre que falamos em
nome dele. Nem se revela sempre que produzimos
teo-LOGIAS. E não há nenhuma causa que seja sem­

47
pre a causa de Deus. Nunca tenho a garantia de que
estou falando em nome de Deus apenas porque a
causa que estou defendendo hoje foi um dia uma
causa que ele defendeu.
Elias queria ser apenas instrumento de Deus, por­
que ele sabia que não há meios humanos de falar em
nome de Deus com a certeza de que Deus está real­
mente comprometido com o que dizemos em seu
nome. Isso acontece porque Deus nem sempre de­
fende as mesmas causas. Ora, isso nos põe na situa­
ção de que, ou andamos com ele, ou não há meios
de realmente dizer: “Assim diz o Senhor”, apenas em
função de se ter feito um curso de teologia. Somen­
te para ilustrar o que estou dizendo, no Egito Deus
estava interessado em libertar um povo: Israel. Mas
na campanha militar de Josué em Canaã não há dú­
vida de que Deus estava agindo na perspectiva de
eliminar alguns povos: os jebuseus, os herzeus, etc.
Assim, no Egito ele estava libertando, mas em Ca­
naã estava eliminando. Ora, ambos, libertados (os is­
raelitas) e eliminados (os povos cananeus), eram po­
vos para os quais as teologias da libertação poderíam
ser aplicadas em “ nome do Senhor”. Pois de acor­
do com tal teologia Deus sempre está tencionando
libertar os povos oprimidos. Neste caso, Israel esta­
ria agindo em Canaã contra a vontade de Deus, pois
não há dúvida de que a campanha de Josué foi “ex-
pansionista e opressora”, se a avaliarmos do ponto
de vista da teologia da libertação. Todavia, qualquer
leitura despreconceituosa da Bíblia nos põe cara a
cara com essa terrível e repugnante verdade: Deus
nem sempre defende as mesmas causas.
Nunca vemos Deus a priori comprometido com
uma causa. Deus nem sempre é visto fazendo justi­
ça de acordo com nossos padrões de direito. Ele é
sempre visto realizando justiça de acordo com sua
santidade. E isso é totalmente estranho ao nosso sen­
so de justiça na modernidade, porque nosso senso
de justiça não tem no caráter do Deus santo seu re­
ferencial, mas fundamenta-se na declaração dos di­

48
reitos humanos. Para nós, hoje, a coisa mais precio­
sa na existência é a vida humana. Já a leitura ao De-
cálogo nos mostra que o referencial do julgamento
divino tem duas dimensões: horizontal e vertical. N a
perspectiva vertical se diz que Deus requer ser visto
como o Único Deus, o que implica que a idolatria
não é admitida, e que Deus tem de ser o único ob­
jeto do nosso culto (esta é a idéia implícita no man­
damento do sábado). N a perspectiva horizontal,
Deus estabelece o respeito pelos direitos do homem,
também como expressão do seu mais profundo de­
sejo para a vida: honrar pai e mãe, não matar, não
adulterar, não roubar, não dar falso testemunho, não
cobiçar o que é do próximo. E por causa dessa du­
pla dimensão (vertical e horizontal) da justiça de
Deus que temos que entender que a vida humana
não é um fim em si mesma. O ser humano foi feito
para algo. Foi criado para Deus e para ser o reflexo
da santidade e da graça do Criador. Assim, a finali­
dade do ser humano não é a liberdade nem a liber­
tação. A finalidade humana é ser em e para Deus
à medida que vive também em amor e respeito para
com seu próximo.
Ora, tudo o que estamos dizendo tem ainda rela­
ção com minha afirmação de que Deus nem sem­
pre defende as mesmas causas na história. E como
não estou certo de ter sido compreendido, vou ten­
tar mais um exemplo. Quando Jeremias disse aos pro­
fetas nacionalistas de Israel que não profetizassem
libertação para o povo (conceito esse am plam ente
defendido pelos profetas em outras ocasiões)
— ele entendia que o opressor poderia ser instru­
mento de Deus para trazer juízo —, os falsos profe­
tas consideraram-no um traidor do povo, vendido
ao opressor e inimigo do sonho de libertação de Is­
rael. Mas Jeremias sabia que, conquanto Israel esti­
vesse sendo oprimido pelos babilônios, Deus não es­
tava apenas preocupado com a realidade de Israel
como povo oprimido. Ele também estava preocupa­
do com a realidade de Israel como povo idólatra.

49
E parece, a julgar pela história, que Deus estava mais
interessado em curar Israel do estado de idolatria no
uai sempre vivera, do que poupá-lo de ser oprimi-
3 o. Foi o exílio que curou a doença idolátrica de Is­
rael.
Tudo isso serve para mostrar que nós vivemos
num mundo ainda mais ambíguo do que imagina­
mos. Isso porque, além das naturais ambigüidades
da vida, ainda há aquelas relacionadas à vontade de
Deus. Deus tem planos e projetos que extrapolam
todas as nossas certezas políticas, e que muitas ve­
zes transcendem nosso bom-senso e normas de con­
duta. Apenas para tornar o que estou dizendo um
pouco mais claro, pense o seguinte: se fôssemos jul­
gar a situação de Jeremias hoje, sem sabermos que
Jeremias era Jeremias e os falsos profetas, profetas
falsos, quem seriam, em sua opinião, os que estariam
falando a Palavra de Deus? Obviamente que a julgar­
mos por nossa tendência sempre nacionalista e pe­
la ótica de certas perspectivas libertacionistas que
se tornaram sagradamente inquestionáveis em nos­
so meio, Jeremias seria julgado como traidor e os fal­
sos profetas seriam os homens de Deus comprome­
tidos com as causas populares daqueles dias. Esse
exemplo, entre inúmeros outros nas Escrituras, serve
para nos mostrar que não há regras ou fórmulas teo­
lógicas para serem aplicadas ao silêncio de Deus.
Quando Deus não me falou, o melhor que faço
é estar calado. O u então ter coragem de falar ape­
nas em meu próprio nome.
N o silêncio de Deus é melhor falar como ateu
sensato do que como profeta devoto que põe na bo­
ca de Deus lindas palavras que ele não disse.
N o silêncio de Deus o homem tem total direito
à palavra. Mas tal direito deve ser exercido em no­
me do homem, correndo ele o risco de ser julgado
pela História como homem. O problema é quando
no silêncio de Deus falamos em nome dele, ainda
que digamos o que há de melhor em nossas sistema-
tizações teológicas. Nossas generalidades de sabedo­

50
ria teológica não podem ser aplicadas em nome de
Deus, da Bíblia, da igreja ou da fé à especificidade
de situações totalmente novas. Em tais casos, o me­
lhor a fazer é falar apenas como homem que sonha
e ousa ter opinião, deixando de lado todos os pos­
síveis elementos de vinculação entre aquilo que se
diz e Deus. Mesmo as nossas melhores exegeses da
Bíblia não nos ajudam quando nos defrontamos com
tais situações. Como discernir, por exemplo, em no­
me de Deus e da Bíblia, em quem votar nas eleições
presidenciais? Eu realmente não sei. Sei como fazer
isso em nome do homem, mas tenho muita dificul­
dade de sugerir qualquer coisa em nome de Deus,
da igreja ou da fé neste particular. A Palavra de Deus
é tão dinâmica como são as mudanças reais na so­
ciedade em volta de nós. O que Deus disse a um pro­
feta ontem pode não ser o que Deus diria a mim ho­
je, apesar de as circunstâncias parecerem idênticas.
Isso porque nada é mais falso do que o idêntico. O
idêntico é sempre perigoso porque desvia nossa aten­
ção do interior para o exterior. E por isso que toda
ação política em „pome de Deus — seja de direita,
esquerda ou centro — corre sempre o risco de ser
o resultado de ações proféticas sem a Palavra de
Deus, apenas o resultado do bom senso humano, jul­
gando situações idênticas: as do passado, onde Deus
agiu de uma certa maneira, e as do presente, onde
supostamente Deus agirá da mesma maneira, por­
que as circunstâncias são “ idênticas”.
Tudo que disse acima tem apenas a finalidade de
mostrar a você que conquanto a igreja tenha que ter
algo a dizer aos poderes constituídos, todavia esse
algo não é qualquer coisa, tem que ser a Palavra de
Deus. E dizer a Palavra de Deus ao rei é mais do que
ler a Bíblia para ele. E mais do que aplicar certos pos­
tulados teológicos aprovados pelo consenso da igreja
ou dos teólogos da moda. Dizer a Palavra de Deus
tem a ver com dizer o que Deus está dizendo naquela
situação. E isso exige uma sintonia entre as Escritu­
ras Sagradas e o momento de Deus para a ocasião.

51
Tal conciliação só é possível se tivermos nossos olhos
na Bíblia e no jornal, e nossos ouvidos atentos ao sus­
surro de Deus mediante a oração. Sem vida com
Deus não há profetismo legítimo. H á apenas ação po­
lítica feita em seu nome. E não nos esqueçamos: es­
se era o pecado dos falsos profetas.

A ndando com Deus D iante dos Reis da Terra


Se queremos ser pessoas, e também uma comu­
nidade relevante na sociedade, temos que aprender
a andar com Deus na presença dos poderes consti­
tuídos.
Carrol Stuhlmueller diz que os profetas da Bíblia
foram aqueles que chamaram sacerdotes e reis à res­
ponsabilidade. Isso porque é justamente disto que
os poderes constituídos necessitam a fim de gover­
narem melhor. Eles têm que se sentir um pouco in­
seguros, a fim de não abusarem do poder.
Outro aspecto interessante sobre os profetas é que
eles eram gente sem nenhuma investidura religiosa
oficial. Assim, era na informalidade da vida que Deus
estava falando aos poderes constituídos. A Palavra
de Deus estava sendo trazida por gente simples. O
julgamento dessa Palavra de Deus aos líderes cons­
tituídos da nação não vinha através da classe sacer­
dotal, muito bem organizada e profundamente com­
prometida com o rei. A Palavra de Deus quase
sempre foi leiga n a H istória. Deus nunca falou
oficialmente. Ele sempre falou como Deus. Por isso
ele sempre usou os leigos para se fazer ouvir. Ele usa
pessoas leigas, porém intrépidas. A intrepidez dos
profetas vinha do fato de que eles eram pessoas pro­
fundamente vinculadas à realidade do pacto de Deus
com seu povo. Eles conheciam Deus e conheciam
o povo de Deus. A comunhão com Deus e o conhe­
cimento do povo de Deus eram os elementos atuali-
zadores da mensagem dos profetas. O fato de que
as agonias do pobre, dos oprimidos, aflitos e neces­
sitados estavam sendo ouvidas pelos profetas com uma

52
dor contemporânea é que dava a eles a possibilida­
de de pregarem sempre algo novo. Por isso é que
pregavam com a paixão de quem pregava uma men­
sagem de primeira mão, pela primeira vezST)
Os genuínos profetas não ocupavam um escri­
tório de profeta, apenas apareciam na cena da vi­
da quando necessário. E quase sempre ninguém sa­
bia de onde vinham. E mais: os grandes e relevantes
profetas de Israel não eram fruto das chamadas es­
colas de profetas da época. As escolas de profetas
já eram um meio caminho para a institucionalização
do ministério profético, o que, sem dúvida, veio a
ser um grande mal em Israel. Ninguém aprende a ser
profeta. E os que o foram ou o são, quase sempre
gostariam de ser outra coisa, menos profeta.
Por isso devo dizer que viver o ministério pro­
fético na atualidade significará, possivelmente, ter
algo a dizer aos poderes oficiais e não-oficiais cons­
tituídos na sociedade secular à qual pertencemos,
bem como à igreja como instituição que muitas ve­
zes, à semelhança de Israel no passado, se afasta do
Senhor e o trai, quando abençoa de maneira mes-
sianicamente apaixonada ou quando se relaciona de
maneira oportunista com tais poderes.
N a vida de Jesus vemo-lo confrontando tanto a
“ igreja” (no sentido de que Israel era também assem­
bléia do povo de Deus), como o Estado.
O ministério profético de Jesus para com a “ Igre­
ja” aparece também no seu enfrentamento da insti­
tuição religiosa em si mesma. Mas aqui chegamos
precisamente àquele ponto de difícil aceitação. Isso
porque nós, evangélicos, aceitamos o juízo como po­
dendo vir com força sobre a igreja católica. Mas so­
bre nós, nossos membros, nossos pastores, nossos
mestres, nossos teólogos, nossas instituições, julga­
mos uma heresia tal pensamento.
A igreja protestante — e especialmente a difusa
igreja evangélica — está exatamente no ponto de pe-
trificação ao processo religioso no qual Jesus encon­
trou o judaísmo dos seus dias. Mas não somos capa­

53
zes de ver isso. Dessa forma devemos dizer que muito
daquilo que Jesus disse aos religiosos dos seus dias
deveria ser ouvido por nós hoje com temor e tre­
m or. Jesus proferiu discursos contra os religiosos hi­
pócritas, desalmados, mentirosos, cínicos, legalistas
e superficiais do seu tempo. A nossa questão deve­
ria ser: será que isso não tem nada que ver conosco?
Esquecemo-nos de como Jesus abominou a teo­
logia correta que não gerava correção das deforma­
ções religiosas (Mt 23.1-3), o legalismo que achata­
va a psique humana (Mt 23.4), a espiritualidade es­
tereotipada e encenada no palco da fé (Mt 23.5-7),
os títu lo s eclesiásticos enfatuados e autorei-
vindicados (Mt 23.8-12), as teologias de estreita­
mento da graça (Mt 23.13), as preces usadas como
chantagem emocional para tirar dinheiro dos pobres
(Mt 23.14), o proselitismo separatista e desalmado
(Mt 23.15), os jeitinhos teológicos dados para esva­
ziar o conteúdo de causas e pessoas a fim de se dar
valor às coisas da religião (Mt 23.16-22). Esquecemo-
nos de como Jesus detestava a inversão de valores
na hierarquia dos mandamentos e sua importância
(Mt 23.23,24); de como odiava as aparências falsas
e sem correspondência no interior do ser (Mt
23.25-28); de como enxergava com desprezo o bus­
to dos profetas em praça pública, pelo fato de que
eles só eram honrados porque já não estavam mais
vivos para incomodar os líderes religiosos (Mt
23.29-35). Esquecemos sobretudo que para Jesus,
sempre que tais coisas acontecem, fosse no judaís­
mo, seja na igreja, o juízo divino não pode falhar:

“Em verdade vos digo que todas essas coi­


sas hão de vir sobre a presente geração” (Mt
23.36).
N o Apocalipse, Jesus diz:
“Eu sou aquele que sonda mente e coração
e vos darei a cada um segundo as suas obras”
(Ap 2.23).

54
As cartas às igrejas da Ásia Menor nos falam da
necessidade de que a igreja se arrependa de sua in­
diferença e arrogância (Ap 2.4,5), do sincretismo e
da impureza (Ap 2.14,15), dos adultérios praticados
com naturalidade no âmbito da comunidade por lí­
deres da igreja (Ap 2.20,21), e da soberba autoglo-
rificante resultante de um sentimento de autonomia
(Ap 3-15-19). E isso foi escrito enquanto havia dis­
cípulos da primeira geração ainda vivos, e enquan­
to o próprio apóstolo João estava vivo. E hoje? Não
há mais tal possibilidade de desvio? Somente os in­
gênuos pensam que não.
O Estado, Jesus confrontava em duas perspecti­
vas: a primeira era aquela na qual confrontar o po­
der religioso constituído em Israel significava tam­
bém confrontar o Estado (as denominações religio­
sas dos dias de Jesus eram também partidos políti­
cos de tendências que variavam da extrema direita
à extrema esquerda); a segunda era aquela confron­
tação do representante legal do poder romano. Isso
aconteceu, por exemplo, quando ele profeticamen­
te respondeu ao rei Herodes. E o que ele disse não
foi “ Ide dizer a S. Ex?” Foi interessante a forma co­
mo Jesus se referiu a “ Sua Excelência” : "Ide dizer
a essa raposa (...)” que o reino de Deus segue adian­
te, apesar das suas naturais conflitividades históri­
cas, e apesar de Sua Excelência e do Estado... (Lc
13.32). N o entanto, vale observar que tal declaração
de Jesus não foi nem gratuita, nem desproporcional.
Ao contrário, Herodes queria matá-lo. Portanto,
quando Jesus o chamou de raposa não se tratava da
declaração de um profetinha malcriado com o rei,
em função de divergências políticas. Ele estava cha­
mando um assassino de raposa. Penso que se não le­
varmos tais contextos históricos em consideração,
corremos o risco da desproporção mal-educada no
trato da autoridade. Nesse caso, apanhamos duríssi­
mas expressões proféticas, pronunciadas em trági­
cos e fortíssimos contextos históricos, e os aplica­
mos a qualquer autoridade, bastando para isso que

55
não concordemos politicamente com tal pessoa.

Profetas de Deus, Sim!


M al-Humorados Políticos, Não!
A consciência de que deve haver alguma tensão
entre nós e os poderes constituídos é sempre neces­
sária. Sem tal percepção jamais teremos condição de
viver com relevância profética na nossa sociedade, so­
bretudo numa sociedade como a nossa, cheia de ines-
crupulosidade, injustiças e manipulações criminosas.
N o entanto, quando observamos Elias vemos que
ele não era profeta de uma única mensagem; também
não era um profeta mal-humorado. Encontramo-lo
eventualmente tratando Acabe com uma certa gene­
rosidade. E vale lembrar que Acabe era muitas vezes
pior como indivíduo e governante do que qualquer
presidente da república que o Brasil já teve. Assim
mesmo, eventualmente, Elias admite uma trégua com
o rei. Diz ele ao rei Acabe: “...come e bebe; porque
já se ouve ruído de abundante chuva” (18.41). Seu
hum or profético variava segundo o comportamento
do rei. Penso às vezes que muito da nossa falta de
equilíbrio vem do fato de não discernirmos entre o
nosso mal-humor e o que seja realmente palavra pro­
fética dita ao rei. Deus não se compraz no esmaga-
mento, mas na justiça. Ser profeta não é ser a priori
contra o rei ou contra qualquer forma de governo.
Ser profeta é ser contra a injustiça. Ser profeta é ser
intrépido na hora certa. Ser profeta não é ser um mal-
educado que fala em nome de Deus. O verdadeiro
profeta é aquele que, mesmo quando é absolutamen­
te compenetrado e grave naquilo que diz, ainda as­
sim o diz com ternura apaixonada.

Profetismo sem Receita, Apenas


com Princípios
Talvez você pergunte como é possível enfrentar
de modo prático o poder organizado na sua inten­

56
ção de seduzir-nos. A verdade é que normalmente
fujo a essas receitas. Receio pensar com categorias
maiores do que as da sua vivência pessoal e parti­
cular, na sociedade menor em que você está inserido.
Por isso estou preferindo trabalhar com princí­
pios, estimulando-o a tomá-los e a dialogar com a
sua realidade e o seu mundo imediato, perguntando
como nesse contexto e nessa situação tais princípios
podem ser aplicados.

Uma Necessária Intraqüilidade


Para lidarmos com estes poderes, precisamos ser
pessoas que internalizaram a consciência de que hou­
ve, há e haverá sempre uma certa intranqüilidade
profunda entre a genuína vivência humana em Cristo
e o poder constituído.
E mais: temos que lembrar que tal tensão não é
apenas com relação aos poderes oficialmente cons­
tituídos; ela também deve existir em relação a qual­
quer sistema ideológico e político, inclusive aque­
les que não estão, oficialmente no poder.
A quem se paga o quê — se a César ou a Deus
— é uma questão eterna. Jesus nos dá conta, à me­
dida que nos ministra o seu ensino, de que o cristão
é um ser que está freqüentemente na fronteira de op­
ções profundas e radicais. E escolha entre o reino
de Deus e os outros senhorios. E não nos esqueça­
mos de que qualquer sistema ideológico (seja de di­
reita ou esquerda) nos oferece a mesma opção. Ou
seja, qualquer sistema político tem em si o germe
da religião. Em outras palavras: todos eles querem
nossa lealdade numa perspectiva religiosa. Todos eles
querem se tornar os senhores de nossa mente, ações
e esperanças.
N a vida de Elias podemos ver como essa intran­
qüilidade com o poder constituído se manifestou.
N o cap. 18 encontramos o poder constituído man­
dando vasculhar o país a fim de prender o profeta.
E então, no v. 16, vemos quão nítida é a diferença de

57
perspectiva de poder que há entre o homem de Deus
e os poderes constituídos.
Parece-me interessante que aí se inverta o curso das
coisas. Em qualquer outra relação é o servo cjue se apre­
senta ao rei. N o entanto, naquela passagem, e o rei Aca­
be que se apresenta ao servo Elias. Ha, pois, uma ten­
são clara. E se nós não entendermos que existe essa
tensão, que estamos vivendo na contramão em rela­
ção ao poder constituído, vamos ter que assumir sem­
pre nossa condição de fiéis e mansos subordinados.
Talvez uma das maiores ilustrações seja a que se
encontra em II Reis 1.9-16, onde se diz que Acazias
cai das grades de um quarto alto, e adoece. Achan­
do que vai morrer, manda chamar um dos conselhei­
ros e instrui-o a consultar Baal, a fim de saber se fi­
caria bom. Era como se um presidente da república
evangélico mandasse consultar Exu Caveira a seu fa­
vor. Mas o anjo do Senhor disse a Elias: “Dispõe-te,
e sobe para te encontrares com os mensageiros do rei de
Samaria, e dize-lhes: Porventura não há Deus em Israel,
para irdes consultar a Baal?” Os mensageiros voltam e
dizem ao rei que não tinham podido consultar Baal
porque um homem os impedira de fazer isso. “E co­
mo era ele?” perguntou o rei. Eles lhe descrevem co­
mo ele era, e o rei logo conclui: “E Elias, o tesbita.
Vão lá e digam-lhe que venha até aqui.” Mas nova­
mente a santa impertinência do profeta se manifes­
ta. Ele se assenta numa montanha, e ao invés de fi­
car honrado quando chegou a comitiva, o oposto
é que se dá. E olhe que a comitiva não chega de for­
ma mal-educada, mas dizendo-lhe: “Homem de Deus!
(...)” E que o Estado é suficientemente esperto para
não chegar dizendo, por exemplo: “Ei, servo do ca-
piroto!”
Depois da primeira abordagem, a comitiva acres­
centa: “Desce!” E Elias diz: “Vai descer, mas é fo-
gol” E caiu fogo sobre a comitiva do rei. O rei en­
tão manda uma segunda comitiva: “Homem de
Deus, assim diz o rei: Desce depressa\” E Elias co­
mo que responde: “Como queiram.” Fogo! Até que,

58
trêmulos, chegam os membros da terceira comitiva,
que dizem: “Homem de Deus, seja, peço-te, preciosa
aos teus olhos a minha vida, e a vida destes cin-
qüenta, teus servos; pois fogo desceu do céu, e con­
sumiu aqueles dois primeiros capitães de cinquenta
com os seus cinquenta: porém agora seja preciosa aos
teus olhos a minha vida”. Veio então a palavra de
Deus a Elias, a qual disse: “Desce com este, não te­
mas.”
Um homem de Deus deve ser sempre assim: de-
simpressionado com a honra real, não se deixando
comover p or comitivas, e assumindo a tensão exis­
tente entre as diferentes perspectivas do poder.

Mais que Intranqüilidade, Confrontação


O texto nos apresenta ainda o fato de que essa
intranqüilidade e tensão existem porque existe con­
frontação ao poder constituído. Veja o que diz o capí­
tulo 18, do v. 16 ao 18 de I Reis: “Então foi Ohadias
encontrar-se com Acabe, e Iho anunciou; e foi Acabe
ter com Elias. Vendo-o, disse-lhe: Es tu, ó pertur­
bador de Israel? Respondeu Elias: Eu não tenho
perturbado a Israel, mas tu e a casa de teu pai,
porque deixastes os mandamentos do Senhor, e se­
guistes os Baalins.”
Gosto desta pergunta “Es tu, ó perturbador?”
Acredito não haver para um homem de Deus título
mais honroso do que este, quando na boca de um
rei crápula! Observe ainda como Elias em momento
algum se deixou impressionar diante de Acabe. N o
episódio de Nabote, quando Elias encontra Acabe,
o que Acabe diz é tremendo: “Perguntou Acabe a
Elias: Já me achaste, inimigo meu? A resposta de
Elias é mais impressionante ainda: “Achei-te, por­
quanto já te vendeste para fazeres o que é mau pe­
rante o Senhor. Eis que trarei o mal sobre ti, arran­
carei a tua posteridade e exterminarei de Acabe a todo do
sexo masculino (...) (21.20-21)”
A relação do profeta Elias com o rei Acabe nos

59
põe diante da nossa relação com as formas de po­
der que encontramos na América Latina e no Brasil.
Em qualquer lugar do mundo o poder é perigoso.
Mas no Brasil vemos que esse poder — especialmente
nas suas manifestações políticas — é quase sempre
extremamente ambíguo, e freqüentemente_ se mani­
festa perverso, corrompido e corruptor. E por isso
que temos que ter a consciência de que, para que
vivamos com coerência perante Deus e sua Palavra,
deve haver sempre uma tensão, uma intranqüilida-
de nas nossas relações com o Estado e uma perma­
nente atitude de vigilância com relação a qualquer
forma de comprometimento ideológico. O meu te­
m or é o de verificar que há setores da igreja, hoje,
que experimentam prazer em assentar-se a mesa do
rei. Temos inclusive “textos bíblicos” que vêm muito
a calhar para justificar isso. Evocamos Daniel, por
exemplo, que estava lá, com as comidas do rei à dis­
posição. Só que o que ele jamais fazia era assentar-
se “ regularmente” à sua mesa. Diz o livro de Daniel
que sua dieta era diferente; e sua presença era uma
presença autêntica, autenticada por sua ausência
nos processos de corrupção e politicagem. Era uma
presença lúcida, porém desapaixonada. Só poderia
ser presença justamente por ser uma presença cheia
de ausência em relação a ser o que o rei e o poder
constituído eram.

Profetismo sem Ideologismo


A dieta de Daniel nos fala muito mais do que de
uma simples dieta; fala de um programa político di­
ferente, de atitudes opostas àquelas que caracteriza­
vam os políticos da Babilônia, de valores morais es­
tranhos aos seus contemporâneos, de uma outra ma­
neira de viver e se alimentar na e da existência. Da­
niel foi um político comprometido com o reino de
Deus e com o povo de Deus. Sua postura não era
ideológica. A prova disso é que ele passou de gover­
nos para governos diferentes. O que caracterizava

60
o posicionamento político de Daniel era a sua ati­
tude de justiça, verdade e eqüidade. Mas hoje, se fôs­
semos julgar Daniel com os critérios com os quais
julgamos politicamente a vida, teríamos que dizer
que ele fora um profeta colaboracionista. Isso por­
que, não há como negar que trabalhava para os go­
vernos dos quais seu povo era escravo. Tal exem­
plo apenas nos mostra que o excesso de ideologis-
mo em nossas perspectivas de julgamento da vida
tornam a existência insuportável e o convívio hu­
mano impossível, visto que, por tais perspectivas, to­
da diferença de postura política é interpretada co­
mo traição, não havendo, em tais casos, exceção nem
para Daniel.

Que Venha a Perseguição


Fico pensando se uma das melhores coisas que
nos poderíam acontecer hoje no Brasil não seria uma
perseguição religiosa. Acabar-se-ia logo com essa des­
pudorada falta de caráter que parece nos possuir, em
função de -utilizarmos a igreja e nos valermos da fé
para fins particulares, sejam econômicos, sejam po­
líticos. E com isso nos corrompemos a nós mesmos
e a igreja, como um todo. Se quisermos ser hones­
tos neste país temos que ter a coragem de, além de
o evangelizarmos, evangelizarmos também a igreja
toda e admitirmos que nós mesmos — pastores, evan­
gelistas, mestres, e líderes da igreja em geral — temos
que nos converter de novo (se é que algum dia o fi­
zemos) ao evangelho do reino de Deus.
No congresso VINDE VII, cujo tema foi “Uma
Igreja Buscando Integridade, Integralidade e Integra­
ção”, onde estas mensagens sobre Elias foram pro­
feridas, um amigo meu. comentou comigo que ob­
servando o que se passava à volta, vendo tudo lá de
seu canto, tinha chegado à conclusão de que alguns
pastores presentes à conferência nunca tinham, de
fato, se convertido. Ele é uma pessoa cuja vida co­
nheço por muitos anos, razão por que considerei

61
muito séria a sua observação. É possível que isso soe
duro, mas só é duro porque talvez seja verdade.
A questão fundamental é perguntar se muito des­
sa nossa relação tranqüila com situações nitidamente
pecaminosas, nossa entrega sem objeções às facili­
dades oferecidas, às seduções que diante de nós são
colocadas, não são sintomas da nossa falta de pai­
xão profunda pelos valores do reino de Deus, e sin­
toma da nossa ausência de compromisso com um
existir que aconteça apenas nas fronteiras do reino.

Uma Outra Orientação Existencial


Para enfrentarmos a questão do poder constituí­
do precisamos conscientizar-nos de que existe uma
orientação existencial radicalmente diferente entre
o homem de Deus e o rei. I Reis 18.41 e 42 diz: “En­
tão disse Elias a Acabe: Sobe, come e bebe, porque
já se ouve ruído de abundante chuva. Subiu Aca­
be a comer e a beber; Elias, porém, subiu ao cume
do Carmelo e, encurvado para a terra, meteu o ros­
to entre os joelhos.”
Fico me questionando: Será que, se eu fosse Elias,
não pediria antes de mais nada uma carona? Esse
texto me desafia profundamente a me perguntar se
o meu programa existencial me empurra para a agen­
da do rei ou para a agenda de Deus; se me incita a
comemorar a alegria da história de Deus na mesa do
rei ou na presença de Deus, com “o rosto entre os
joelhos”. Elias sabia que o banquete final dos profe­
tas será com Abraão, Isaque e Jacó e muitos publi-
canos, pecadores e meretrizes no reino de Deus (Lc
13.21,22). Ele tinha a certeza de que havia muito a
ser feito ainda, e de que toda sensação de contenta­
mento radical implicaria falta completa de percep­
ção desse fato.
A pergunta que surge é se a nossa orientação
existencial tem sido diferenciada das orientações
existenciais daqueles que manipulam o poder e vi­
vem em função de um programa existencial que

62
vai do prato a boca. É hora de nos conscientizar­
mos de que precisa haver uma diferença entre quem
anda e quem não anda com Deus. Isto não tem na­
da que ver com legalismos, extremismos, usos e cos­
tumes ou ideologia, e, sim, com postura e atitude exis­
tencial diferentes. Se tal diferença não acontece, en­
tão é justo questionar se realmente a nossa percep­
ção de Deus significa mesmo percepção de Deus.

C onfrontando o Poder Espiritual


Elias nos mostra que na vivência de uma reali­
dade histórica como a nossa não só temos que vi­
ver tensionados em relação ao poder constituído, vi­
sível, como temos que enfrentar também o poder es­
piritual invisível, e que permeia todas as coisas.
E a questão é como esse enfrentamento se dá; ou
seja, quais são os elementos necessários para que efeti­
vamente venhamos a lidar com essa realidade — se­
ja ela visível ou invisível — na intenção e com a real
possibilidade de sobre ela prevalecermos.
Olhando a^vida de Elias tenho a impressão de que
alguns discernimentos são fundamentais para que
prevaleçamos em tal enfrentamento. Isto porque a
nossa conflitividade essencial neste mundo não é
contra carne e sangue; contra instituições e pode­
res constituídos. Nossa luta é sobretudo contra prin­
cipados e potestades espirituais, contra forças escu­
ras, tenebrosas, nas regiões celestes.

Confrontação Inteligente
Pensando acerca dos profundos valores de cati-
vação que esses poderes espirituais possuem, seria
útil observar o enfrentamento de Elias com os pro-
Ictas de Baal. Nesse confronto fica claro que Elias
cra um profeta apaixonado por Deus, porém
inteligente no seu enfrentam ento do mal espi­
ritual. Decididamente não estamos diante de alguém
que dá socos no ar e declara guerra a não-sei-o-quê.

63
Ao contrário, ele era alguém que conhecia profun­
damente o âmago, o cerne, o coração e a natureza
do seu adversário espiritual. Não é à toa que sendo
Baal o deus da fertilidade, sendo ele alimentado co­
mo divindade pela própria necessidade que o povo
tinha de viver da terra, do ciclo agrícola da fertili­
dade, a melhor e mais desestruturadora maldição que
podería cair sobre seu reinado seria uma seca. Uma
seca mostraria a radical impotência de Baal. Isso por
que ele era entendido como deus necessário à agri­
cultura, sendo a chuva uma evidência da manifesta­
ção da bênção de Baal, trazendo flor e fruto à terra.
E não foi à toa que estando Elias lutando contra
Baal, pediu a Deus que o nervo do ídolo fosse ex­
posto, seu calcanhar de Aquiles afetado. O profeta
suplica então a Deus que faça parar de chover, pois
cessando a chuva toda a utilidade cotidiana de Baal
seria radicalmente questionada na base mais práti­
ca de sua divina função histórica. Alguma coisa ex­
tremamente errada estaria acontecendo com o deus
da fertilidade.
Para agirmos como Elias — com o mesmo dis­
cernimento, a mesma compreensão da essência de
nosso inimigo, de como ele age, como é entendido
na história do nosso povo — implica: primeiro,
ten tar entender o sistema teológico do adver­
sário; segundo, atingir de fato o coração do
seu sistema . Observemos, por exemplo, Paulo em
seu enfrentamento das cidades a serem evangeliza-
das. Freqüentemente Deus lhe dava a graça de tocar
no cerne da conflitividade de uma sociedade, ou de
uma cidade. Em Filipos, ao expulsar um demônio
que possuía a mente de uma jovem, a cidade, por
assim dizer, derrama diante dele uma imensa hosti­
lidade. Mas tal hostilidade acabou se tornar.do o pró­
prio adubo da bênção e da prevalecência do seu mi­
nistério naquele lugar. A mesma coisa se pode dizer
de Efeso, quando — ensinando a Palavra, expulsando
demônios, tocando na questão mais profunda da ca-
tivação espiritual daquele povo — o apóstolo pro-

64
vocou todo um conflito econômico radical, porque
as indústrias de produção da idolatria do lugar, de
fabricação de imagens e esculturas, se mobilizaram
na perspectiva de tentar barrar sua pregação desins-
taladora — pregação essa que tocava o nervo espiri­
tual daquela sociedade, mas tinha conseqüências
profundas e até visíveis, na economia e nos elemen­
tos de visibilidade social daqueles principados e po-
testades malignos.
Isso me faz lembrar como João Wesley, o pai do
metodismo, olhava para o problema da escravidão
dos seus dias como uma manifestação do poder do
diabo, presente na sociedade, e que tocar naquele
nervo era o mesmo que tocar no próprio poder do
maligno, escondido atrás daquela realidade históri­
ca visível. Também me traz à mente a figura de Mar­
tin Luther King, quando disse que por mais ortodo­
xo que alguém seja, e por mais espirituais que seja­
mos, enquanto estivermos apenas dando golpes no ar
contra um adversário abstrato, não identificando as
sutilezas do diabo na nossa sociedade, não fomos
ainda pessoas ^capazes de confrontar o poder das tre­
vas em nosso meio. Por isso, na opinião de King o
enfrentamento da questão do racismo nos Estados
Unidos era uma maneira de fazer exorcismo, porque
aquela era uma manifestação profundamente diabó­
lica na sociedade americana.
O profeta Elias nos ensina a ter esta capaci­
dade de averiguação, de percepção de quais são os
valores de cativação que os poderes espirituais es­
tão usando na sociedade hoje, aqui e agora. Ora, is­
so deveria nos conduzir a tentar discernir em pro­
fundidade quais são as teologias que estão por trás
dos deuses da umbanda, da quimbanda, da macum­
ba, etc., a fim de, em sabendo, podermos agir com a
inteligência de Elias, que atacou a reputação de Baal
justamente na área de sua maior exaltação como
deus.
Já tenho experimentado, em situações as mais di-
lerentes, que tal possibilidade é real. A própria Bí­

65
blia está cheia de exemplos de que Deus age assim.
Cada uma das pragas do Egito tinha como objetivo
atingir uma das divindades dos egípcios, a fim de
anulá-las em suas áreas de fascínio sobre o povo. Foi
o mesmo com Dagom dos filisteus, com Moloque,
com Baal, e outros.
O agir espiritual inteligente nos levaria a amar­
rar, com oração, em nome do Senhor, tais forças es­
pirituais nas áreas de suas atuações. Ora, isso me
lembra um fato que ilustra o que estou dizendo.
Recordo-me de que um dia eu estava orando com
um grupo de amigos, no ano de 1973, num sítio de
uma irmã de nossa igreja em Manaus. Oramos a noite
toda. Pela manhã vimos que um grupo de uns ses­
senta macumbeiros chegara e se acampara ao nosso
lado. Somente uns trinta metros nos separavam de­
les. Aí então eles começaram a imolar bodes e gali­
nhas e a preparar flores e bebidas para os seus sacri­
fícios aos deuses. Tratava-se de uma cena agressiva
e repugnante. Meu coração se revoltou profundamen­
te contra aquilo. Então propus ao grupo que orásse­
mos de novo. Nós orávamos e eles sacrificavam seus
animais. De repente percebi que parte da vergonha
espiritual à qual aquele grupo precisava ser subme­
tido tinha relação com a chuva. O dia estava lindo.
Não havia nuvens no céu. Não iria chover. Então pedi
em voz bem alta: “Senhor, manda chuva, para que
fique claro aqui quem é o Senhor.” Cinco minutos
não tinham ainda passado quando o céu fechou, os
trovões começaram a rebumbar e os relâmpagos a
cortar o céu soberanamente. Caiu uma chuva torren-
cialíssima. As árvores da floresta rangiam diante da
força impetuosa dos ventos. Eles uivavam de raiva
e nós louvamos ao Senhor cantando: “ Não há Deus
tão grande como Tu”. Naquele dia saí dali conven­
cido acerca desse princípio espiritual: Baal tem que
ser atingido no seu nervo, no seu pretenso ponto de
poder, no elemento caracterizador de sua função co­
mo deus.

66
Discernindo a Convergência dos M undos

Elias também nos ensina que esses poderes so­


ciais e espirituais se entrelaçam profundamente com
os poderes da história. E interessante como I Reis
18.19 nos coloca toda essa instituição religiosa que
representava este poder espiritual maligno, sentada
exatamente à mesa da rainha Jezabel. Eles eram os
quatrocentos e cinqüenta profetas de Baal, e os
quatrocentos profetas do poste-ídolo, que comiam
à mesa de Jezabel.
Isso é apenas um sintoma de como essas coisas
andam juntas; de como os mundos não estão sepa­
rados, mas se alimentam e retro-alimentam; e de co­
mo a nossa pertinência no mundo espiritual, na lu­
ta invisível, precisa também implicar nossa relevân­
cia na luta espiritual concreta, que a nós se manifes­
ta com faces e fisionomias históricas diferentes.
A associação de Baal com Jezabel ou com o Es­
tado era teologicamente interessante. Preste atenção
a isto: poucas ^coisas seriam mais interessantes a um
Estado perverso do que um a religião que entendesse
a H istória como cíclica e fechada no seu m ovimento.
A teologia de Baal era a teologia da história cíclica; não
havia nada caminhando linearmente para a frente, que
implicasse evolução, progresso. Tal teologia ensinava que
.t História fazia sempre a volta, retornando sempre ao
mesmo ponto — um sistema fechado, repetitivo.
Que Estado perverso desejaria ter religião melhor
do que essa, para dizer: “ Deixa tudo como está?”
Não adiantava mexer em nada; era a primeira parte
da lei de Lavoisier trazida da natureza para a socie­
dade: “ Nada se cria, nada se perde(...)” Lavoisier te-
lia acrescentado, porém: “ tudo se' transforma”. La­
voisier imaginava que o sistema não era totalmente
lechado. Havia dentro dele espaço para o novo. Mas
na teologia de Baal nada se transformava. Tudo era
sempre o mesmo. Inclusive a sociedade. Quais os ele­
mentos da nossa realidade espiritual no Brasil que

67
têm os mesmos conceitos filosóficos da cosmovisâo
de Baal? Isso deveria levar-nos a perguntar, por exem­
plo, o que a d outrina espírita da reencarnação,
politicamente falando, ajuda e favorece num país
perverso como o nosso? Favorece demais! Ajuda-nos
a pensar que as crianças podem morrer na esquina,
nos becos, nas favelas — elas vão nascer de novo...
Não há pressa. O ser humano pode ser morto igual
a um besouro — ele vai aparecer novamente, vai sur­
gir mais à frente... É verdade que os espíritas, ainda
que possuam uma má compreensão da Palavra de
Deus, têm uma bonita tradição de compromisso com
as boas obras. Não estou dizendo que todo esjpírita
entende assim a vida. O que estou dizendo e que
aquela sadia aflição existencial resultante do conceito
de que a vida é uma só na face da terra — conceito
esse que tem um poder de criação, mobilização,
transformação e urgências incomparáveis — é ex­
tirpada do psiquismo daqueles que subconscienti-
zaram a noção espírita da reencarnação.
A doutrina espírita da reencarnação, se introje-
tada e se transformada em instrumento hermenêu­
tico pelo qual se faça interpretação da realidade co­
mo um todo, ajuda extremamente a ver a vida co­
mo cíclica, o que nos levaria a afirmar que se não
houver tempo para a pessoa fazer coisa alguma ho­
je, aquilo que ela perde hoje irá voltar ao centro da
sua história amannã. Isso também deveria levar-nos
a perguntar, por exemplo, em que a teologia da m a­
cum ba e da um banda pode ajudar na formação de
uma consciência política, ou social. Os deuses da
umbanda são ambíguos; poder implica cinza. Não
há nada preto, nem branco; não há o que é e o que
não é; o que há é o talvez, o quem sabe... Pois na
complexidade do mundo espiritual da umbanda, os
deuses são ambíguos, bem e mal andam juntos, são
sócios e parceiros indispensáveis na colagem da His­
tória.
Se se lê a História com essa cosmovisâo espiri­
tual, então aceita-se corrupção, maldade, perversida­

68
de e tudo o mais como parte da própria essência dos
poderes constituídos na vida. Então as concorrên­
cias das obras do governo podem ser loteadas entre
os amigos do ministro antes mesmo das concorrên­
cias públicas serem declaradas; as concorrências po­
dem ser ganhas antes do tempo próprio e oficialmen­
te marcado, dependendo do hum or do ministro, do
mesmo modo como no mundo espiritual as covas
dependem do hum or do exu. O que se diz é isto:
Deixa ficar como está, pois isso é parte do jogo e
da dinâmica do poder.
O u então pense um pouquinho sobre a nossa
presença evangélica no país, e em que pode ela
ajudar a abençoar os poderes constituídos. Durante
muito tempo fomos uma religião de subserviência
ao Estado. Romanos 13 sempre foi nosso tema e tex­
to social máximo. Em nome de uma má leitura do
texto, abençoaríamos até o diabo, se virasse presi­
dente da República! Pois a autoridade constituída po­
dia ser o diabo encarnado, e muitos de nós diriamos:
“ Deus te abençoe. V.Ex.a é Ministro de Deus para
o bem ...” ^
Não seria essa nossa capacidade de abençoar in­
clusive o mal, resultado de uma compreensão espi­
ritual maligna, profundamente entrelaçada às mais
sutis expressões do poder do mal, e que desgraça-
damente está nos possuindo do mesmo modo co­
mo Baal se imiscuiu entre o povo e acabou possuin­
do Israel?
A pergunta também é se nós, afinal, não fazemos
parte das forças do mal espiritual no país — ajudan­
do a formar e a dar uma interpretação da vida que
é maligna e promotora das mesmices que deixam a
desgraça reinar soberana na nação.
Poderiamos multiplicar esses exemplos, apenas
para dizer que as nossas teologias ajudam a formar
nossas sociedades. Para afirmar também que é mui­
to possível encontrar pastores, sacerdotes e repre­
sentantes das religiões populares assentados à mesa
da rainha, representando a dimensão espiritual, so-

69
ciai e política, andando juntos na produção de uma
sociedade que não reflete a santidade e a beleza da
bondade de Deus, e, sim, as ambigüidades de Baal.

O Perigo é Para Todos


Tal tentação não sofrem apenas aqueles que são
os chamados evangélicos conservadores e adesistas
do poder constituído, mas também os chamados
evangélicos progressistas. N o primeiro caso, a tenta­
ção é a de abençoar o sistema dominante; no segun­
do, de ungir ideologias “ progressistas”, dando a elas
o status de legítimos representantes do projeto de
justiça do reino de Deus na terra. Ambas as tenta­
ções significam idolatria. Assim, o adesismo interes-
seiro dos conservadores e a militância excessivamen­
te apaixonada, intransigente e radical dos progres­
sistas fazem parte do mesmo fato em si: a vitória do
poder político — seja ele oficial ou não — sobre o
povo de Deus.
Apenas para concluir, devo dizer que nossa con­
frontação espiritual das forças invisíveis que agem
em todas as dimensões da vida, implica nosso dis­
cernimento de que todas as coisas têm sua própria
significação espiritual. Por exemplo, temos que en­
tender a política como sendo uma esfera de comba­
te espiritual mais que político. Temos que partici­
par, porém com essa consciência. Nada anda mais
>erto do fenômeno religioso na história do que o
Íenômeno político. A prova disso foi o comunismo
neste século. Tal expressão ideológico-política tinha
uma confissão de fé (o manifesto comunista), um
livro santo (Das Kapital), um profeta (Marx), um
povo santo (o proletariado), um a esperança mes­
siânica (a sociedade socialista), um a redenção (a
revolução), um a idéia de conversão (da burgue­
sia para o comunismo), um a dimensão de peca­
do (o capitalismo), agentes explícitos da palavra
(os membros engajados do partido), elementos ido-
látricos contra os quais lu tar (o dinheiro e seus do­

70
nos — os empresários capitalistas), etc. Para alguns que
jamais leram os livros de Marx e Engel (maioria dos
que professam o marxismo no Brasil, incluindo al­
guns dos mais eminentes intelectuais), tais declara­
ções podem parecer simplistas. Mas como eu tenho
lido a grande maioria dos textos comunistas clássi­
cos e originais, para mim a afirmação que faço pro­
cede e é verdadeira. Todavia, não quero que ninguém
pense que se trata de uma atitude simples de atirar
pedra em cachorro morto. Não! Não estou isolando
esse poder religioso apenas dentro do comunismo.
Ele está presente em todas as outras expressões po­
líticas. Por isso nossa relação com os poderes polí­
ticos tem que levar em consideração o fato de que
estamos penetrando uma região espiritual semelhan­
te a todas as outras regiões espirituais de conflito.
O diabo está lá. Por isso temos que estar também.
Contudo, não apenas com armas ideológicas. E es­
sencial que nossas armas não sejam carnais, mas po­
derosas em Deus.
O mundo espiritual é um só invisível. E não há
qualquer dimeasão da vida que fuja à sua invasão
espiritual.

71
4

Elias,
Um Homem de
Palavras e Obras
Neste ponto do nosso estudo da vida de Elias vale
retomar a história acerca do que estava acontecen­
do em Israel naqueles dias. Durante muitos anos o
culto ao Deus vivo e verdadeiro vinha sendo mina­
do pela rivalidade do culto cananeu a Baal. Durante
o reinado de Acabe (874-852 A.C.), o culto a Baal ga­
nhou uma sanção oficial (I Rs 16.30-33). Elias foi
o primeiro profeta a desafiar esta presença maligna
instaurada em Israel. Cem anos depois dele o baa-
lismo iria ganhar poder outra vez, vindo quase a
eclipsar o culto ao Deus de Israel. A segunda vigo­
rosa confrontação contra o culto a Baal foi feita por
Oséias (743 A.C.), e por Amós (760 A.C.).
O baalismo, em essência, sobrevive em pratica­
mente todas as expressões espirituais das religiões
ainda hoje existentes. Quando ponderamos a respei­
to da cosmovisão da maioria das religiões afroame-
ríndias no Brasil, fica fácil perceber como todas elas
estão impregnadas da teologia de Baal.
Ora, se é assim, devemos concluir — como aliás
já fizemos no capítulo anterior — que para enfren­
tar esse mundo espiritual precisamos dos mesmos
instrumentos com os quais Elias enfrentou tais po­
deres. Necessitamos ter o discernimento de que a Pa­
lavra que liberta a sociedade de sua servidão moral
e espiritual é também aquela que opera coisas con­
cretas. Se não, vejamos.

72
P a la v r a s D e c is iv a s

Elias manda reunir o povo no monte Carmelo.


Sem dúvida podemos dizer que ele foi reunido por
convocação oficial, porque foi o Estado que promo­
veu o comício (I Rs 18.20).
Elias sobe à plataforma e começa com a teoria
de seu discurso profético. I Reis 18.21 diz: “En­
tão Elias se chegou a todo o povo, e disse: A té quan­
do coxeareis entre dois pensamentos? Se o Senhor
é Deus, segui-o; se ê Baal, segui-o. Porém o povo
nada lhe respondeu.”
Fico pensando que muito da nossa abordagem
profético-evangelística está apenas nessa primeira
parte. Muito de nossa falta de resposta por parte do
povo é também resultado da nossa falta de propos­
tas mais claras e mais objetivas. O povo estava bem
a par do fato de que Baal se tornara também impo­
tente no seus dias. Além disso, eles sabiam que ha­
via alguma coisa essencialmente contrária entre Ja-
vé (o Deus de Israel) e Baal. Portanto, a nível de teo­
ria do problema, Elias não trouxe nenhuma nova per­
cepção àquilo que o povo já sabia.
Em seguida Elias vai adiante, sai desse ar-
razoado apenas verbal, e m ergulha num a pro­
posta um pouco mais prática, mais visível na
história.
I Reis 18.23-24 diz que Elias propõe: “Deem-
se-nos, pois, dois novilhos; escolham eles para si
um dos novilhos e, dividindo-o em pedaços, o po­
nham sobre a lenha, porém não lhe metam fogo;
eu prepararei o outro novilho e o porei sobre a le­
nha, e não lhe meterei fogo. Então invoquem o no­
me de vosso deus, e eu invocarei o nome do Senhor;
e há de ser que o deus que responder por fogo esse
é que é Deus. E todo o povo respondeu, e disseram:
E boa esta palavra”.
Interessante; no início ninguém disse nada a Elias.
Contudo, quando a coisa começou a se tornar um
pouco mais concreta eles disseram: “E boa esta pa-

73
lavra." Em tempo de crise, o povo fica cansado de
palavras e de propostas verbais. O povo fica queren­
do ver as coisas acontecerem. Talvez seja por isso
que os grupos religiosos — sejam cristãos ou não —
que mais crescem no tempo da crise são aqueles que
têm propostas práticas de intervenção da divinda­
de na vida humana.
Essa é uma lição que todas as chamadas igrejas
históricas deveriam aprender: se elas não se abrirem
para a realidade do sobrenatural no mundo vão per­
der o impacto que poderíam ter na evangelização e,
conseqüentemente, a própria história. Especialmente
num país como o nosso — no qual até os “cientis­
tas” têm certa crença no mundo espiritual — não
se pode pretender fazer um ministério eficiente sem
que se esteja aberto a tais realidades. E mais que is­
so: sem que se exerçam as mesmas na prática minis­
terial.
Sei que muitos dos que estão lendo estas pági­
nas estão pensando que há uma incompatibilidade
essencial entre a respeitabilidade do ministério e o
exercício de práticas espirituais mais “carismáticas”
(embora eu não goste de usar o termo nesta pers­
pectiva). N o entanto, é bom que se diga que o que
choca as pessoas de fora da igreja (mesmo as mais
intelectualizadas) não é o exercício de uma perspec­
tiva ministerial aberta ao sobrenatural. Você pode
orar por doentes, expulsar demônios, tratar o espi­
ritismo e a macumba com a tensão que eles mere­
cem, e ainda assim não ser visto como um curan­
deiro medieval, grosseiro e alienado.
N o entanto, tudo isso só pode ser feito e vivido
para o bem do testemunho do evangelho quando
nossa vida existe na perspectiva da ternura, da so­
briedade e do bom senso ensinados nas Escrituras.
Além do mais, em certa medida, há aspectos do nos­
so exercício ministerial que serão mesmo sempre mal
entendidos. Até Jesus foi chamado de endemoninha-
do e samaritano possesso. N o entanto, não foram os
de fora que o chamaram assim, mas os de dentro,

74
os inflexíveis teólogos e patrões espirituais da reli­
gião ortodoxa. Gente engessada por uma ortodoxia
sem vida e sem paixão.

Chega de O ferta sem Ação


A grande lição que a Igreja Universal do Reino
de Deus está-nos dando hoje — apesar de todas as suas
esquisitices e expressões de uma fé abusiva e mal-
educada — é que o povo está cansado de palavras
bonitas e de teologias bem arrumadinhas. O povo
quer algo que seja desafiante e que aceite desafios.
O povo quer uma fé que tenha o poder de confron­
tar as trevas mais escuras.
E foi isso o que Elias estabeleceu em seu terceiro
passo nessa perspectiva de enfrentar o mundo espi­
ritual. Ele adquiriu crédito através do descré­
dito dos outros, através de um a fé ousada. E diz
a Palavra de Deus que os profetas de Baal começa­
ram a invocar seu deus, e o fogo não vinha; clama­
ram em altas vozes, retalharam-se com facas e lan­
ças, porém nãp houve nem sinal nem resposta ne­
nhuma. Elias então pôs-se a insuflá-los: “ Clamai por
ele; pode ser que esteja meditando, ou atendendo
a necessidades, ou de viagem, ou dormindo, e
despertará
Refletindo sobre a nossa situação no Brasil a per­
gunta é: Quem é que hoje na nossa sociedade brasi­
leira está tirando crédito do descrédito de quem?
Nossa resposta a esta pergunta é um importante ele­
mento neste processo de encurralamento das forças
do mal. Vamos olhar para alguns aspectos das nossas
aparições evangélicas nos veículos de comunicação
de massa dos últimos anos. Pense nos programas de
TV, nas reportagens semanais de jornal, nos freqüen-
tes escândalos divulgados pela mídia em geral, rela­
cionados aos evangélicos. São histórias de alguns
pastores que tratam seus ministérios publicamente
com menos respeito do que os bicheiros tratam seus
negócios. São alguns políticos evangélicos que fa­

75
zem parte, em nome da igreja (ingenuamente ou não,
só Deus o sabe), de tramóias como nem os macum-
beiros do Congresso Federal fazem igual. São alguns
líderes religiosos impressionados com a possibilida­
de de se tornarem populares e que para tanto dei­
xam de lado toda e qualquer consciência ética, co­
mo foi o caso do “ pastor” que ungiu Silvio Santos
nas vésperas das eleições de 1989. Ou como a Con­
federação Evangélica, que se reorganizou sob inte­
resses não muito claros e gerou escândalos, tendo
deixado irrespondidas um sem número de seriíssimas
questões relacionadas ao uso do dinheiro público em
nome dos evangélicos. E a Igreja Universal do Rei­
no de Deus — que se de um lado nos ensina pela
maneira prática como leva a sério a cosmovisão es­
piritual do brasileiro, o que a tem feito crescer no
meio do povo mais simples e carente — com seu mo­
do agressivo de evangelizar e seu modo insensato de
manipular publicamente o dinheiro arrecadado tem
feito os evangélicos, quase como um todo, verem-
se corados de vergonha diante do justo julgamento
público ao qual todos nós estamos agora submeti­
dos. Enfim, essa lista infelizmente é imensa.
Pense em todo esse IBOPE maligno que forne­
cemos à sociedade e pergunte: Quem é que está ti­
rando crédito do descrédito de quem? Elias soube
tirar crédito do descrédito dos profetas de Baal. Em
nosso meio parece que muitas vezes está-se dando
o contrário.

Quando Palavras e Obras Geram


Genuínas Conversões
De maneira convincente, Elias nos ensina que a
verdadeira conversão aparece como resultado da Pa­
lavra e das obras de Deus, que sempre devem andar
juntas. Note que não há apenas a obra de Deus, ou
apenas a verbalização da Palavra de Deus. Se o fo­
go (obra) houvesse caído sem que Elias houvesse de
início estabelecido as distinções teológicas — o que

76
implica verbalização, teologia, discurso — entre deus
e Deus, ninguém sabería sequer de quem era o fogo
que caíra. Por outro lado, estabelecer apenas distin­
ções verbais, sem que as pessoas percebam de mo­
do prático quem é quem, não faz nenhum sentido.
Palavras e obras andam juntas. Reflexão e ação an­
dam juntas. Pregação e manifestação do poder de
Deus precisam andar juntas. O Deus da Palavra é tam­
bém o Deus que intervém.
E o fogo caiu do céu. E o povo caiu de joelhos.
Então o povo disse: “ O Senhor é Deus! O Senhor é
D e u sr
Penso que este é o momento de uma das maio­
res carências que nós, os evangélicos históricos, vi­
vemos. Temos o discurso. Temos uma boa teologia.
Temos métodos. Temos preocupações imensas com
a necessidade de contextualizar a mensagem que pre­
gamos de modo a que ela seja pregada com clareza
e dentro da cultura. Todavia, se o fogo não cai, tu­
do isso é correr atrás do vento. E a prova disso é que
alguns com toda a santa-ingenuidade conseguem re­
sultados que nós com nossa fantástica sabedoria não
atingimos, apesar de as conversões que acontecem
no outro grupo nem sempre serem profundas.
Se Palavra e obras não andam juntas, tudo
o que temos são conversões deformadas. Pala­
vras sem obras geram apenas crentes teóricos;
obras sem palavra geram apenas crentes sem
discernimento.
Uma das razões de sermos um povo tão dividi­
do e tão ambíguo é que temos entre nós a “ igreja da
Palavra” e também a “igreja das obras”. U m dos apelos
fortíssimos no enfrentamento do mundo espiritual,
que tem expressão concreta na História, é a aceita­
ção do desafio de que Palavra e obras precisam an­
dar juntas na nossa prática aqui e agora. Não pode­
mos separar evangelização e ação social, reflexão teo­
lógica e oração por doentes, hermenêutica técnica
de textos e profecia carismática, enfrentamento das
forças sociais e políticas da maldade e enfrentamento

77
individual de demônios que habitam corações hu­
manos. Nào podemos nos esquecer de que Jesus “an­
dou por toda a parte fazendo o bem e libertando
os oprimidos do diabo” (At 10.38). Essa é a receita
que deve nortear toda ação prática: fazer o bem (pa­
lavra relacionada ao bem social) e libertar oprimi­
dos (palavra com conotação carismática, pelo me­
nos no texto). Dessa forma somos ensinados a en­
tender que as obras a serem feitas têm duas dimen­
sões: social e espiritual.
O que muitas vezes me abisma é o fato de que
essa nossa separação entre Palavra e sinais não tem
realmente qualquer possível ou imaginável base bí­
blica. Observando simplesmente o livro de Atos, ve­
mos que “ muitos sinais e maravilhas eram feitos atra­
vés dos apóstolos” (At 2.43), e “o Senhor acrescen­
tava à igreja dia a dia os que iam sendo salvos” (At
2.47). Então se diz que Pedro e João curaram um ho­
mem coxo na porta do templo e por isso o número
dos crentes aumentou a ponto de serem definidos
como “a multidão dos que creram” (At 4.32). Pe­
dro e João também oraram a Deus pedindo que en­
quanto eles pregavam a Palavra, sinais e maravilhas
acontecessem (At 4.30). N o mesmo contexto se diz
ainda que os apóstolos davam testemunho de Jesus
com grande poder (At 4.33).
O poder que estava presente entre eles é o que
tem faltado entre nós — o mesmo poder suficiente­
mente eficaz para eliminar a hipocrisia e a mentira
de Ananias e Safira do meio da comunidade (At
5.11), enquanto se diz que cresceu o número daque­
les que se agregavam ao Senhor ao verem os mila­
gres realizados pelas mãos dos apóstolos (5.12-14).
O livro de Atos também nos conta a história de Es­
têvão, “ o qual era cheio de fé e poder e fazia gran­
des sinais no meio do povo” (At 6.8). Aí então so­
mos apresentados ao ministério de Filipe, o qual pre­
gava a Palavra e fazia sinais que deixavam as multi­
dões atônitas (At 6.8). Para não falar em Enéias,
aquele a quem Pedro curou (At 9.33-34), ou Dor-

78
cas, a quem ressuscitou (At 9.36-41). N a visão do
apóstolo Pedro o próprio ministério de Jesus devia
ser basicamente definido como sendo direcionado
para a libertação espiritual dos oprimidos do diabo.
Os Atos dos apóstolos então nos apresentam a Pau­
lo, cuja conversão foi milagrosa (cap. 9), e cujo mi­
nistério foi repleto de milagres: milagres eram fei­
tos (14.3), coxos curados (14.9,10), prisões foram
abertas sobrenaturalmente (16.26), endemoninhados
eram libertos (16.16-18; 19.12), e enfermidades eram
curadas (28.7-10). Acerca de Paulo e Barnabé, Lucas
diz: "...demoraram-se ali muito tempo, falando ou-
sadamente no Senhor, o qual confirmava a pala­
vra da graça, concedendo que por meio deles se f i ­
zessem sinais e prodígios” (At 14.3). Mas é o pró­
prio apóstolo Paulo quem diz que o evangelho que
ele pregava não era só de palavras, mas também de
poder no Espírito Santo (I Ts 1.5; I Co 4.20). Ele
afirma aos gaiatas que o evangelho que ele pregava,
se crido, geraria milagres (G1 3.5). Finalmente Pau­
lo diz que a eficácia de seu testemunho podería ser
atribuída à integração da Palavra às obras milagro­
sas no seu ministério (Rm 15.18,19).
Diante disso tudo eu diría que Elias não é um ca­
so isolado na Bíblia. Sua estratégia ministerial tem
amplo suporte nas Escrituras.

A Autenticidade dos Instrumentos


que Deus Usa
Por último, Elias nos ensina que para enfrentar
esse poder espiritual precisamos ter o discernimen­
to de que a realidade de Deus na História é muitas
vezes autenticada pela vida daqueles que o servem.
Se isso é aceito acaba-se então com o hábito de di­
zer: “ Olhe apenas para o Senhor.” Não há como
olhar apenas para o Senhor! Quem não conhece a
Deus não tem como olhar para o Senhor. Tais pes­
soas não têm nem como olhar para a Palavra.
Quem não tem a Deus no mundo, só “ vê” Deus

79
no mundo se você, que o tem, o reflete na sua vida.
Nós não o refletimos completamente, em plenitude.
N o entanto, algo de seu caráter e da sua bondade pre­
cisam estar encharcando a nossa vida. A propósito
disso, veja o que Elias diz quando pede a Deus, em
sua oração, que sua manifestação seja também uma
vindicação de autenticidade da própria vida e auto­
ridade do profeta: “ O Senhor, Deus de Abraão, de
Isaque e de Israel, fique hoje sabido que tu és Deus
em Israel, e que eu sou teu servo, e que segundo
a tua palavra fiz todas estas coisas” (I Rs 18.36).
Nosso enfrentamento da sociedade implica que
ela veja alguma coisa de Deus em nós. Sem que isso
aconteça — sem que algo dele seja discernido em nós,
em nosso serviço, em nosso caráter — tudo que há
é um anúncio de um Deus que a sociedade não irá
perceber como Deus. O discernimento de Deus na
sociedade se dá também através de nossa vivência
— ainda que relativa, porém autêntica — da Palavra
e do caráter de Deus.
Minha questão é se estamos dispostos a admitir
que Deus é um Deus que tem algo a dizer aos pode­
res constituídos; se entendemos que há uma tensão
e uma intranqüilidade nessa relação; que há uma di­
reção existencial radicalmente diferente no andar
com Deus em relação aos poderes instituídos neste
mundo. Minha questão é se estamos dispostos a en­
frentar este mundo espiritual com o necessário dis­
cernimento — primeiro, de quais são os valores de ca-
tivação que tais poderes possuem na história; segun­
do, de que esses poderes se entrelaçam na vida; ter­
ceiro, de que a Palavra que os enfrenta se faz acom­
panhar de obras concretas e perceptíveis. E por úl­
timo, de que a prevalecência final se dá quando a
nossa própria vida autentica o fato de que a nossa
caminhada com o Senhor não é alguma coisa esoté­
rica e abstrata, mas reflete o caráter de Deus na His­
tória.

80
5

Elias,
Um Homem que Aprendeu
Sobre a Própria Fraqueza
Neste capítulo vou enfocar mais um a caracterís­
tica essencial a todo homem e mulher de Deus para
esta hora. Tal característica é a do autoconhecimen-
to. Não basta depender de Deus em meio à crise; não
basta desenvolver rigidez de princípios e de caráter
para não se deixar corromper, ou saber que as ofer­
tas do poder constituído se tornam ainda muito mais
veementes no Jempo de crise — o que aduba a nossa
carência com a força da necessidade, transforman­
do tais ofertas em realidades cheias de um tremen­
do poder de sedução. Não basta que entendamos o
drama espiritual no qual estamos imersos, e discir­
namos as forças que nos desafiam nessa conflitivi-
dade espiritual. Temos que ser pessoas que também
aprendam a respeito de sua própria fraqueza.
Já disse — e aqui repito — que Deus é um Deus que
age soberanamente em fraqueza. O Salmo 77.17 diz
que conquanto ele tenha aberto o mar de maneira
sobrenatural, ele estava contudo fazendo agentes his­
toricamente detectáveis, pois usou o ‘'vento forte que
soprava”, mas também agiu de maneira sobrenatu­
ral — pois fez as águas tornarem-se como paredes,
criando um vácuo entre ambos os lados a fim de que
o povo passasse, o que sem dúvida está muito além
da possibilidade de ser explicado pela presença do
vento forte no episódio. Em razão disso, o ato sobe­

81
rano de Deus ainda dava lugar a dúvida. Porque “pe­
lo mar fo i o seu caminho”, diz o salmo, “ mas não
se descobrem os (seus) vestígios”. Ou seja, Deus é
um Deus sobrenaturalmente sutil, a ponto de mui­
tas vezes as pessoas nào lhe perceberem os movimen­
tos. Soberano suficiente para enfrentar a realidade
através de instrumentos os menos adequados, os
mais fracos possíveis.
Ao falarmos do enfrentamento da realidade que
nos cerca é importantíssimo saber que não temos ilu­
sões a respeito de quem sejam os instrumentos de
Deus para este tempo. Aprecio muito a descrição que
Tiago faz de Elias, quando o aproxima de mim e de
você, e quando diz que ele foi um homem para aque­
la hora, apesar de ser homem semelhante a nós, su­
jeito e exposto às mesmas tentações, aos mesmos
sentimentos, fraquezas, emoções e seduções, exposto
e minável pelos mesmos agentes de tentação. Esta
identificação me faz muito bem, na medida em que
me permite ver a possibilidade de que gente tão des­
qualificada como eu possa ainda assim ser instru­
mento de Deus.

Os Vales Vêm Logo Depois das M ontanhas


As pessoas para esta hora são aquelas que apren­
dem a respeito de sua própria fraqueza; e que de­
vem aprender que quase sempre, após grandes vi­
tórias espirituais sobrevêm grandes m om entos
de debilidade. Isto não é lei; nem fatalismo; mas
acontece amiúde, embora nem sempre.
Após Elias haver pregado no monte Carmelo, e
ter visto fogo descer, e haver presenciado uma res­
posta compulsiva do povo, dizendo “ O Senhor é
Deus”, e depois de haver liquidado os profetas de
Baal, fazendo uma espécie de purificação institucio­
nal em Israel, nós o encontramos numa escuridão
indescritível de alma, apanhado na própria fraqueza.
Olhe o texto e observe como esta inversão na vi­
da de Elias acontece. Primeiramente porque a sua

82
coragem dá lugar ao medo. I Reis 18 nos mostra es­
ta primeira situação; no entanto, em I Reis 19.2,3
nós o encontramos extremamente temeroso pela
ameaça de Jezabel, ao ponto de fugir para salvar a
vida. Era uma situação ambígua, a dele. Pessoalmente
não estou convencido de que Jezabel estivesse mes­
mo disposta a matar Elias, conforme prometera. Acre­
dito que se a intenção dela fosse realmente essa, não
lhe teria enviado um mensageiro; tê-lo-ia matado lo­
go. Chego mesmo a questionar se àquela altura ela
tinha ainda de fato esse poder que proclamara. A ver­
dade é que entre os dois capítulos (18 e 19) há dois
personagens bem diferentes. O Elias que deixamos
no cap. 18 está no início do 19 desvigorado, apavo­
rado, trêmulo, vulnerável em extremo.
Também lhe percebemos a fraqueza pelo fato de
que a alegria em que estivera deu lugar a um
profundo desânimo existencial. Em I Reis 18.41
nós o vemos incitando o rei a uma celebração, en­
quanto em I Reis 19.4 encontramo-lo no deserto,
assentado debaixo de um zimbro, pedindo para si
a morte. H á uma diferença gritante entre a atitude
existencial de um dia e a postura existencial do outro.
E mais ainda: ele troca o excitamento da sua
existência anterior por um sono mórbido e profun­
do. I Reis 18.46 nos faz ver que Elias corre do mon­
te Carmelo até a entrada de Jezreel, à frente do car­
ro do rei, cheio do Espírito Santo. Foi uma corrida
que somente corredores vigorosos alcançam fazer —•
mais de 20 quilômetros. Sob a chuva que caía, ele
saltava como um cabrito adiante de Acabe, celebran­
do a vitória de Deus, numa excitação indescritível.
N o entanto os vv. 5 e 6 do capítulo seguinte, logo a se­
guir, no-lo mostram dormindo debaixo da árvore, sen­
do duas vezes tocado por um anjo, que lhe diz:
“Levanta-te, e come”\ Mas nem o ato de comer lhe
era agora apetecível, um gesto espontâneo.
Essas manifestações na vida de Elias mostram co­
mo somos sujeitos a uma vulnerabilidade total. Mos­
tram-nos que não são iguais todos os dias de nossa

83
existência. Mas demonstram também que a ação de
Deus se manifesta através de gente assim — como
Elias, você e eu — gente que oscila, claudica, ora es­
tá lá em cima, ora cá embaixo, ora nas nuvens, ora
em abismos existenciais, profundos buracos negros.
Enfim, gente que experimenta seu próprio estado
psicológico com variações. Aliás, chego mesmo a
crer que para que Deus nos use é preciso que seja­
mos capazes de experimentar depressão, tristeza, e
imensa fraqueza. Em outras palavras: é necessário
que sejamos humanos. Isso porque a graça só se aper­
feiçoa quando encontra nossa real humanidade
(II Co 12.6-9).
Quando observo alguns dos exemplos mais for­
tes do que Deus fez na história, vejo presente osci­
lação existencial. Em Gênesis 12, encontramos
Abraão sendo chamado por Deus para ser bênção
para as nações. Diz o texto que no primeiro encon­
tro seu com as nações ele é tudo, menos bênção. Ele
vai ao Egito, e ao invés de levar bênção leva praga;
ao invés de levar bênção, leva maldição; ao invés de
ser testemunha da verdade é testemunha da menti­
ra! Após um dos momentos mais altos de Deus na
História, no chamado de Abraão, o que se vê logo
a seguir é um homem em fraqueza, decadência e in­
felicidade.
Olhamos para a vida e o ministério de Jesus e o
encontramos cheio do Espírito Santo, sendo porém
guiado pelo próprio Espírito ao deserto, a fim de ser
tentado. Vemo-lo transfigurado, e logo a seguir des­
cendo do monte da transfiguração para encontrar o
diabo na pessoa do endemoninhado.
Este ciclo, estas variações do brilho da glória de
Deus para o enfrentamento escuro do diabo me pa­
recem extremamente significativos. Encontramos es­
te fato presente na vida de Paulo, que diz que a gran­
deza das revelações foi o que lhe trouxe o “espinho
na carne”.
O que Deus, então, tem a fazer é isto: usar gente
que reconheça a própria fraqueza e entenda que o

84
que ele fará em nossa vida não fará por razões espe­
ciais, mas em razão da nossa vulnerabilidade, o que
nos vincula radicalmente à sua graça, e faz com que,
apesar de sermos o que somos, haja espaço em nos­
sa vida para que ele seja o que é.

O Perigo da Essencialidade
Deus vai usar nesta hora aqueles que sabem que
uma das piores coisas que podem acontecer a um
homem de Deus é ver-se como essencial.
Parece-me tremenda e estranha a reação de Elias
ao fugir de Jezabel. Depois de defrontar-se com um
país em desordem, enfrentar o rei, os profetas de
Baal, a participação ostensiva e diabólica dos sacer­
dotes, no dia seguinte quer fugir para salvar a vida.
H á nisso uma enorme incoerência, que só posso ad­
m itir à luz do fato de que possivelmente na mente
de Elias havia entrado uma percepção nova com res­
peito a si mesmo, após tudo quanto lhe acontecera
no monte Carmelo. Essa percepção seria a de ser ele
um ser impretgrível, indispensável ao processo de
Deus na História.
Para mim estas coisas vão ficando claras quan­
do confrontamos este sentimento que ele vinha des­
cobrindo gradualmente a respeito de si próprio, com
o fato de que ele era um tanto único ali. N o v. 22
do capítulo 18, e o v. 10 do capítulo 19, ele repete
a mesma expressão: “Só eu fiquei”. Ou seja: o Se­
nhor não podia contar com mais ninguém, senão ele.
Com o se Deus estivesse encurralado nele. E este sen­
so de importância e imprescindibilidade aparece ou­
tra vez no v. 4 do cap. 19, onde ele projeta diante
de Deus o que tinha no coração, quando diz: “Bas­
ta; toma agora, ó Senhor, a minha alma, pois não
sou melhor do que meus pais." Ninguém lhe disse
ser ele melhor que ninguém; era ele que o dizia a
si mesmo.
Ele próprio devia ter desenvolvido essa idéia de
sua singularidade. N o entanto, o que precisamos sa­

85
ber é que todo sentim ento de essencialidade
acaba se transform ando em sentim ento de au-
topreservação. Pois a pessoa perde a coragem de
se expor, já que expor-se significa correr riscos, e
isto pode equivaler à eliminação, o que poderia ser
letal. O que é extremamente depressivo, na medida
em que aumenta a nossa área de risco, de perigo e
de pânico na vida. Quando nós não nos entendemos
como essenciais, a nossa caminhada é livre, já que
não percebemos os perigos à volta. Pois o perigo que
vem é diretamente proporcional ao valor que atri­
buímos a nós mesmos. Mas quando a percepção au-
tovalorizadora nos acomete, qualquer coisa pode
significar um risco — seja para a nossa reputação, se­
ja para o ministério, seja para os nossos relaciona­
mentos, etc. Riscos os mais variados aparecem, e o
sentimento de autopreservação surge, fazendo com
que tudo quanto signifique risco e perigo nos mer­
gulhe numa atitude profunda de autodefesa, que aca­
ba se transformando num sentimento extremamen­
te depressivo.
E mais: isso nos deprime esmagadoramente, por­
que quando assumimos a atitude de autopreserva­
ção — se temos um pouco de consciência de nosso
chamado a sermos pessoas expostas a Deus e à vida
com coragem — descobrimos que tal atitude nos faz
sentir extrema vergonha de estarmos vivendo um
projeto de vida oposto à nossa vocação inicial.
Meu desejo é que aprendamos esta lição de Elias:
a de que uma das piores coisas que pode acontecer
a um líder, no meio do povo de Deus, é este senti­
mento de essencialidade. Ele nos afasta da vida, nos
desencoraja, pelo fato de pensarmos que sem nós
o próprio Deus fica um tanto solitário e órfão.

Usando a Depressão Como Fertilizante


Serão usados nesta hora aqueles que aprenderem
que em tempo de depressão e desânimo espiritual
Deus se manifesta com a intenção de nos renovar

86
a vida, de nos ampliar os horizontes do conhecimen­
to dele e da história que ele está querendo fazer en­
tre nós!
Veja isso através de cinco lições tremendas que
Deus deu a Elias.
N o auge da depressividade, da falta de coragem
para viver, do sono da morte, Deus mesmo orienta
a caminhada de Elias para o monte Horebe. O anjo
lhe traz comida, acorda-o duas vezes, incita-o a se­
guir adiante. E toda uma conspiração divina para
levá-lo onde ele chegou. E ele não chegou lá por
acaso, mas pela intenção de Deus lhe ensinar algu­
mas coisas fundamentais à interpretação de sua vida.
1. Quando estamos na situação de depres­
são e desânimo espiritual, a primeira coisa que
Deus parece querer fazer é nos mostrar o fa­
to de que nós somos apenas um item na gran­
de história da salvação que ele está reali­
zando.
Não é à toa que Elias é levado para o monte H o­
rebe; nem é à toa que esse monte é um lugar absolu­
tamente especial, no que diz respeito à afirmação do
pacto de Deus com seu povo na perspectiva da sal­
vação, da escolha, da eleição.
A mim me parece sintomática a relação de Elias
com a geografia, que falava abundantemente da his­
tória da própria salvação. Veja no cap. 19, v. 5 a 8,
como ele é levado e induzido pela orientação dos
agentes de Deus a chegar aonde chegou.
Quando nos encontramos nessa depressão, em
razão de nossa auto-essencialidade, Deus nos leva a
considerar o seu trabalho antes de existirmos; ele nos
faz olhar para o que ele tem feito sempre. Ele nos
faz observar que nos momentos mais escuros da his­
tória ele sempre terá aqueles que em meio à sua fra­
queza serão instrumentos da condução de seu pro­
jeto na vida.
Parece-me interessante o fato de que Deus tenta
trazer Elias às raízes da fé, fazê-lo olhar atrás. Isso
me conforta extremamente, pois às vezes olhamos

87
à volta, e vemos tudo tão pintado de cinza, com chei­
ro de morte, como se não restasse esperança. Mas
quando temos a condição de olhar para trás e per­
ceber que estamos na história, que hoje nã > é o pri­
meiro dia; que Deus não está começando nada ago­
ra, que não estamos inaugurando coisa alguma, e que
se hoje temos condições de interpretar a história do
ponto de vista de Deus é porque ele a fez chegar até
nós — nosso coração, não obstante tudo, é extrema­
mente confortado.
A prevalecência de Deus na história, apesar de­
la, é o que nos faz hoje ter o privilégio de sofrer na
história. É um sofrimento que nos fala mais de vitó­
ria do que de qualquer outra coisa, pois nos fala que
mesmo com a história passada, a fé chegou a você,
a mim e a milhares de pessoas.
Quando olhamos à volta e vemos a negridão de
algumas expressões destes dias, sabendo muitas ve­
zes que Deus está também trabalhando e realizando
coisas, parece-nos que as outras — as malignas —
são em número tão maior que ficamos chocados, de­
sanimados. E nessa hora que é bom olhar para trás,
lembrar que a fé cristã passou pela subversão cons-
tantiniana, que tentou corrompê-la; atravessou a lú-
gubre escuridão da idade das trevas, onde não pare­
cia haver luz nem vislumbre de nada bom no hori­
zonte; enfrentou todas as tentações das ideologias
e dos sistemas políticos, e não obstante tudo isso de
algum modo chegou até nós! É em razão disso que
não é hora de nos encaramujarmos, enrolarmos em
nós mesmos, interpretando a História com depres-
sividade. Porque se há uma história para ser vista
com depressividade hoje, há também uma história
a ser encarada com esperança. Pois eu só estou de­
primido em relação à História porque sei que ela po­
dería ser outra coisa, e eu só sei que ela podería ser
outra coisa porque há uma clara evidência de que
ela é mutável. Além do que, tal percepção de que
as coisas estão más é em si mesmo um bom sinal.
É sinal de vida. É sinal de que nossa consciência não

88
morreu ainda. É sinal de que apesar de tudo nós es­
tamos ainda andando para a frente.
2. Também Deus faz com que em meio à de-
pressividade aprendam os a diferença entre a
experiência do seu poder e a experiência de
Deus mesmo.
Deus dá a Elias esta lição: ele próprio patrocina­
ra aquela falta de motivação para ensinar a ele uma
realidade mais profunda sobre a fonte da sua sobre­
vivência espiritual, a fonte do seu alimento espiri­
tual e de sua esperança na vida. E como Deus faz?
Veja como uma das expressões que Elias mais usa,
enquanto caminha e confronta reis, estimula viúvas
e encoraja pessoas é esta: “Estou falando isto diante
de Deus, em cuja presença eu vivo.” Ele diz isso qua­
tro vezes — quase que em cada grande encontro seu.
N o entanto, quando lemos o cap. 19 temos a impres­
são de que Deus lhe está tentando mostrar que ele
ainda sabia muito pouco do que significava de fato
a sua presença.
Vemos que Elias conhecia a Palavra de Deus.
N a arena da cojaflitividade social ele sempre apare­
cia dizendo “Assim me diz o Senhor”, e era sempre
algo pertinente, relevante. Diz-se também que ele co­
nhecia o poder de Deus, poder esse que trazia fo­
go do céu, multiplicava alimentos, ressuscitava mor­
tos. Contudo o texto parece nos ensinar que não obs­
tante Elias conhecesse não só a Palavra de Deus co­
mo o poder de Deus, muito pouco conhecia da sua
presença como realidade que traz sentido à al­
m a e significado à H istória.
Aprecio muito o que dizem os w . 9 a 10 do capí­
tulo 19. Elias vai para Horebe, entra numa caverna,
passa ali a noite e eis que lhe vem a palavra do Se­
nhor, ao que ele responde: “Tenho sido zeloso pelo Se­
nhor, Deus dos Exércitos, porque os filhos de Israel dei­
xaram a tua aliança, derribaram os teus altares,
e mataram os teus profetas a espada; e eu fiquei
só, e procuram tirar-me a vida. Disse-lhe Deus: Sai,
e põe-te neste monte perante o Senhor (...)”

89
É interessante como Elias conhece a Palavra de
Deus; no entanto ele parece não lhe conhecer a pro­
fundidade. Veio-lhe a Palavra mas o Senhor da Pala­
vra lhe diz que se ponha na sua presença. E essa pre­
sença parece contrariar uma série de símbolos que
Elias tinha até então identificado com ela. Primei­
ramente se diz que passava um vento forte, que fen­
dia os montes e ia adiante do Senhor, mas o Senhor
não estava nele; depois do vento um terremoto, e
então um fogo, mas o Senhor não estava no fogo-,
e depois do fogo um cicio tranqüilo e suave.
Ouvindo-o Elias, envolveu o rosto no seu manto.
Então Elias discerne que conhecer Deus é mais do
que conhecer poderes; é mais do que conhecer for­
ças (isso serve de advertência aos pentecostais ex-
periencialistas); é mais do que conhecer a própria
Palavra de Deus (isso serve de advertência aos teó­
logos profissionais). Conhecer Deus tem a ver com
a percepção mais profunda da ação de Deus na sua
íntima cumplicidade com a nossa vida, enchendo-
nos a alma do que está além daquilo que é explicá­
vel. Walter Brueggemann, comentando este texto, diz
que a experiência com “ o cicio tranqüilo e suave”
foi mais do que uma profunda experiência de hiper-
sensibilização da consciência. Ele diz que essa foi
sem dúvida a primeira experiência de Elias com o
tem or reverenciai.(s)
Fico me perguntando se o nosso movimento pen-
tecostal não sofre das mesmas dificuldades, e se não
experimenta as mesmas realidades que Elias experi­
mentou. Isso porque me parece que muito do nos­
so pentecostalismo é ainda apenas um pentecosta-
lismo do poder de Deus e não de Deus mesmo. É
ainda, na maioria das vezes, um pentecostalismo de
fogo, terremoto, vento forte e muito barulho, mas
que ainda não conheceu o silêncio da indescritível
e revigoradora presença de Deus, a qual, quando
vem, renova nosso mundo psicológico e torna a nos­
sa vida interior bonita e saudável. Há horas para o
fogo, o terremoto, o vento forte e o barulho, mas es­

90
sas coisas só são sadias quando Deus é também co­
nhecido como puro e simples silêncio essencial em
nossa alma.
Além disso, às vezes me parece que muito do nos­
so pentecostalismo sofre ainda de uma espécie de
complexo de Elias, o mesmo complexo que aco­
meteu também o apóstolo João e tantos outros na
história: “Senhor.; queres que façamos descer fogo
do céu para os consumir?” (Lc 9.54) Isso acontece
quando o “ poder” é exercido sem piedade.
Também me ponho a pensar na situação do pro­
testantismo histórico. Isso porque a pior situação de
Elias parece ainda melhor que a dele. O protestan­
tismo não conseguiu integrar até hoje a Palavra ao
poder de Deus. Isso nos lembra Marcos 6.6, que nos
fala dos dias em que Jesus não pôde fazer milagres
em sua cidade (Nazaré); e que ele “admirou-se da
incredulidade deles”, porque não pôde curar senão
uns poucos enfermos, impondo-lhes as mãos. N o en­
tanto o texto prossegue: “ contudo ensinava-lhes a
Palavra”. A impressão é de que o protestantismo está
nessa mesma sityação existencial: incapaz de mila­
gres, sem sonho e sem santa magia. Frio. Absoluta­
mente gelado. Possuído por uma maligna familiari­
dade com o sagrado: “Não é este o filho de José? não
vivem entre nós seus irmãos e irmãs?” E em tal am-
biência, o que sobrou para Jesus foi apenas o espa­
ço da pregação da Palavra. Ainda temos algum ensi­
no em nosso meio. N o entanto, o “contudo” de Mar­
cos nos dá conta de que Jesus quer fazer muito mais,
quer que as partes estejam integradas, quer que a Pa­
lavra e os sinais andem juntos.
Elias conhecia a Palavra e conhecia o Poder. No
nosso meio — seja do protestantismo histórico ou do
pentecostalismo clássico — freqüentemente o que
parece é que aqueles que conhecem a Palavra nun­
ca provaram o poder; ou os que conhecem o poder
não sabem muito sobre a Palavra. Por isso Jesus nos
diz outra vez: “Errais, não conhecendo as Escritu­
ras nem o poder de Deus” (Mt 22.29).

91
Em certos movimentos pentecostais percebemos
muito pouco da Palavra e uma ênfase enorme no fo­
go do Espírito. Neste aspecto eles estão positivamen­
te ligados a Elias, quando no monte Carmelo clamou
por fogo do céu. Mas Deus parece ter ensinado a
Elias que a experiência com ele vai muito além do
fogo. O fogo não é a última bênção, nem a mais es­
pecial. A experiência mais radical e final da vida hu­
mana tem que ser Deus mesmo, um mergulho infin­
dável nele mesmo, no silencioso mistério de seu de­
licioso Ser.
A igreja evangélica muitas vezes parece ainda hoje
não haver atingido nem mesmo o ponto de crise no
qual Elias se encontrava, porque ele pelo menos co­
nhecia Palavra e Poder. Nós ainda sequer integramos
estes dois elementos. Mas como disse há pouco, Deus
revela que mesmo essa integração ainda não era tu­
do. Parece que o que daqui podemos depreender é
que o que Deus quer de nós é mais do que integra­
ção, mais do que juntar coisas; mais do que conci­
liação. O que ele quer é que ambos os fatores acon­
teçam na presença dele. Não creia que o convite à
teologia integral seja tudo. O que é tudo é fazer e
ser tudo isso na presença de Deus — não apenas em
função de uma reflexão teológica ou bíblica que seja
chamada de integral. Pois a convocação de Deus é
mais profunda; é a de entregarmos isso tudo em sua
presença. E por favor, não me peça que explique co­
mo isso acontece, pois não vejo na Bíblia nenhum
esclarecimento a respeito. Deus apenas diz: “Põe-te
na minha presença”.
A chamada teologia da missão integral não tem
ainda alcançado tal realidade. Na maioria das vezes,
nós, adeptos da teologia da missão integral, somos
apenas pessoas que não têm problema filosófico a
respeito de todas as dimensões do conselho de Deus
deverem e poderem ser integradas. Mas na prática,
a maioria de nós nega tal “admissão filosófica” atra­
vés de uma vida que opta apenas por uma ou duas
dimensões do nosso agrado. E mais: muitos de nós

92
não temos vivido nem mesmo a parte que aprecia­
mos dessa teologia numa perspectiva de colocação
da vida “ na presença de Deus”, onde em lugar de
mera teologia o que temos é a voz de Deus.

Abra os Olhos, H á U m a H istória a Ser Feita


Outra lição relacionada à depressão de Elias é a
seguinte: quando Deus nos encontra nesta situação
de desânimo espiritual ele muitas vezes usa isso pa­
ra nos ensinar a ver a história que há à nossa volta.
Veja como no capítulo 19, w . 15 e 16, após toda
a lamúria de Elias, em momento algum Deus trata
com ele do ponto de vista psicológico clássico. Isto
me parece intrigante. Minha primeira tentação, se eu
fosse o Deus de Elias, teria sido a de levantar-lhe o
moral, dizendo: “Não fique assim não, filho. Você está
só, mas eu estou com você. Obrigado, você tem sido
essencial...” E trabalharia a questão um pouco a nível
psicológico. N o entanto Deus entra em cena com um
furor histórico tremendo, para quebrar todo o fluxo
existencial de autogiedade que dominava Elias. E o que
faz é contundente: ele mostra a história a ser feita. Em
lugar de trabalhar com categorias psicanalíticas ele
trabalha com categorias históricas, e diz: “ Sai de ti
mesmo”!
Deus não tenta de modo nenhum adubar a auto-
piedade de Elias. Ele apenas procura tirá-lo de si mes­
mo, da caverna onde se encontra e o devolve à vi­
da. Parece-me assaz importante o que está dito nos
vv. 15,16: “ Vai, volta ao teu caminho para o deserto
de Damasco e, em chegando lá, unge a Hazael rei
sobre a Síria. A Jeú (...) ungirás rei sobre Israel,
e também Eliseu (...) ungirás profeta em teu lugar”.
Parece que a cura para a autopiedade, a vida que
se esconde, não é um tratamento que busca encon­
trar a vida no seu intimismo; muito ao contrário, é
uma convocação para que a pessoa saia de si e veja
o que há para ser feito, ser construído.
Gosto demais do fato de que a história que aqui

93
nos é apresentada não é a secular nem a religiosa,
é a História. Veja que Deus mostra a Elias que ele
tinha ascendência espiritual sobre a secularidade:
“ Vai, unge Hazael rei sobre a Síria." Esse era um
ato profético subversivo, porque significava imiscuir-
se nos negócios de outro país, conspirar. H á um da­
do conspirativo neste seu papel profético. Ele tam­
bém unge a Jeú — diz mais o texto. Todavia, tratava-
se de uma conspiração do Reino com implicações
políticas, e não um ato político-ideológico de sub­
versão pela subversão.
Note que a história que Deus mostra a Elias aqui
não é nem a religiosa nem a chamada secular, mas
a única que existe, aquela na qual ele está inserido
e agindo. E ele o impele a ser cidadão da História,
fabricante da História, comprometido com ela, an-
tecipador dela.

Abra os Olhos, Há Muita Gente Santa com Você


Deus encontra Elias nessa depressividade e usa
isso a fim de lhe abrir os olhos para que ele veja os
fiéis que ninguém via.
A seguir é como se Deus dissesse: Não só estou
querendo que me conheças mais profundamente, co­
mo desejo que saias daqui e olhes a História, posto
que és um ser da História, e não das grutas, e não
do intimismo acovardado. Quero também que sai­
bas que não estás sozinho na vida; que a tua sensa­
ção de essencialidade é falsa. Pois eu tenho sete mil
que não dobraram em hipótese alguma os joelhos
a Baal.
Quando lemos o texto de Reis uma coisa fica cla­
ra: que o único nome que aqui aparece como expres­
são do povo de Deus — com exceção do de Elias —
é o de Micaías, e nos capítulos relacionados a Eli-
seu. Contudo há uma série de outras pessoas igual­
mente comprometidas com Deus, que aparecem sem
nome no texto. Há pelo menos quatro outros profe­
tas que as Escrituras comentam que tiveram participa­

94
ção importante naquele momento histórico, mas cu­
jos nomes não aparecem. Apenas se diz: “E veio
um profeta de Deus e disse ao rei...” (I Rs
20.13,22,28,35,37,38). Os profetas estavam lá! Não
eram identificados, conhecidos, mas estavam lá. E
esses profetas anônimos revelam o fato de que no
meio do anonimato da História há milhares de pes­
soas de Deus que jamais curvam os joelhos à cor­
rupção da vida. Nem todos são chamados a ser co­
mo Elias, mas todos são chamados a ser fiéis.
Parece que a intenção de Deus, quando tudo à
volta fica escuro e lúgubre, é tentar abrir os nossos
olhos para que — mesmo através de penumbra — veja­
mos a fidelidade daqueles que permanecem de pé,
e não dobram os joelhos a Baal e a nenhuma outra
entidade ou estrutura da vida. Será que Deus não
deseja também abrir os nossos olhos para que mes­
mo através da névoa descubramos um remanescen­
te fiel, guardado e preservado por, e que sempre es­
tará presente em todo momento da história?

Abra os Olho», H á um Amigo à Sua Espera


Deus usa esta situação de depressividade a fim
de ajudar Elias a enxergar o valor de um companhei­
ro de caminhada.
Aprecio muito o que está registrado em I Reis
19.16 a 19, quando se afirma que uma das dádivas
históricas de Deus para o ministério de Elias é um
companheiro: “ Unge Eliseu profeta em teu lugar.”
Ungir Eliseu profeta em seu lugar era mais ou me­
nos como dizer: “Unge um companheiro que será a
expressão histórica de teu futuro, continuidade da
tua vida, afirmação profunda de que o que come­
çaste terá continuidade histórica.”
Muito da angústia que nos destrói ocorre pelo
fato de que poucos dentre nós, têm tido companhei­
ros de caminhada. Os líderes são freqüentemente
pessoas extremamente solitárias. E o líder religioso
— no nosso caso, cristão — mais ainda. Isso por­

95
que boa parte das coisas que oprimem os líderes em
geral são justamente aquelas que muitas vezes o lí­
der cristão não pode compartilhar, sob pena de as
estar compartilhando com a pessoa errada. Coisas
relacionadas com a alma e as tentações.
Secularmente falando, as “ fraquezas” do líder são
geralmente aquelas que o enobrecem: se deve ou não
sair com a secretária, se deve ou não ceder aos ape­
los do poder, etc. Mas entre os cristãos a situação é
diferente. E por isso que a solidão de muitos de nós
tem significado nossa própria tragédia e derrota.
A minha oração é no sentido de que Deus nos
favoreça a aproximação com alguns que se tornem
companheiros de jornada e fabricadores de história
conosco. Aliás, Jesus ensina a importância de se te­
rem amigos nas tentações. Ouço-o dizer com extre­
ma gratidão o que está registrado em Lucas 12.28:
“Vós sois os que tendes permanecido comigo nas
minhas tentações.” Em II Timóteo 4 conforta-me
demais ver a fraqueza de Paulo, quando confessa pre­
cisar com urgência da presença de Timóteo.
“Quando vieres — lhe diz ele —, traze a capa
que deixei em Trôade (...) hem como os livros (...)”
Aí então ele se refere aos males causados por Ale­
xandre, o latoeiro, a deserção de Demas, fato este que
tanto o perturbara; ao frio da prisão, ao tédio do lu­
gar. Por isso ele pede a Timóteo que venha cedo, pois
só Lucas estava com ele (13-16).
Sem dúvida, uma das grandes manifestações da
graça de Deus na vida é a sua graça no rosto de ir­
mãos e irmãs que andam na História conosco.
Muitas das desgraças que nos acometem tantas
vezes como Igreja vêm do fato de que somos pes­
soas solitárias, sem relação pessoal adulta, que nos
ajude em nossos momentos de depressividade.
Minha oração é que Deus nos faça entender que
os seus instrumentos não são especiais; são pessoas
fracas, capazes de oscilação emocional; pessoas que
depois de grandes vitórias podem experimentar tre­
mendas e inexplicáveis fraquezas; pessoas que cor-

96
rem o risco de se verem como essenciais e que ten­
tam se autopreservar fugindo da vida e da arena do
combate; pessoas que no meio dessa depressivida-
de podem aprender mais profundamente sobre Deus
e sobre a História — aprender sobre a continuidade
histórica da salvação; aprender a fazer diferença en­
tre o que sabemos sobre a Palavra de Deus, o poder
de Deus e Deus mesmo. Pessoas que aprendem que
não têm o direito de se esconder em si próprias, pois
há uma história a ser feita em volta delas. E pessoas
que discernem que a caminhada de um homem ou
de uma mulher de Deus não é a caminhada de um
solitário, mas de alguém que precisa encontrar a
Deus no convívio dos irmãos.
Se esse tipo de ministério for vivido por nós, po­
demos dizer que ele é precisamente aquele que dei­
xa marcas na História.
Jamais será um ministério oficial, mas será un­
gido; jamais será palaciano, mas será um ministério
na presença de Deus. Jamais será um ministério tran-
qüilo, mas ouvirá o suave cicio da presença de Deus.
Jamais será um mipistério poderoso, mas provará o
inefável sustento de Deus. Jamais será um ministé­
rio que caminha no conforto do “trem da alegria”
do governo, mas experimentará a glória de ser leva­
do à vista dos outros nas carruagens de fogo do Deus
eterno.
“Indo eles, [Elias e Eliseu] andando e falan­
do, eis que um cano de fogo, com cavalos
de fogo, os separou um do outro; e Elias
subiu ao céu num redemoinho”(I Rs 2.11).
A minha oração é que Deus levante entre nós ho­
mens e mulheres dispostos a viver essa fraqueza na
graça de Deus, fazendo essa história na qual ele é
cúmplice e parceiro revolucionário. Enfim, uma ge­
ração de Eliseus.
O que vendo Eliseu, clamou: Meu pai, meu pai,
carros de Israel, e seus cavaleiros! E nunca mais o
viu; e, tomando as suas vestes, rasgou-as em duas

97
partes. Então levantou o manto que Elias lhe dei­
xara cair e, voltando-se, pôs-se ã horda do Jordão.
Tomou o manto que Elias lhe deixara a cair, feriu
as águas, e disse: Onde está o Senhor, Deus de Elias?
Quando feriu ele as águas, elas se dividiram para
uma e outra banda, e Eliseu passou” (II Rs
2.11-14).
Talvez a última coisa a ser dita é que tal projeto
de vida é realmente duro de ser vivido: “Dura coisa
pediste” (II Rs 2.19). Eu, você, enfim, todos nós, es­
tamos ainda muito longe de tudo isso. N o entanto,
conquanto esse próprio texto acentua minha profun­
da distância desse referencial de vida para ser vivi­
da em tempo de crise, há toda uma consistente base
bíblica a encorajar-me a viver de tal modo. Após pre­
gar cada uma dessas mensagens (agora transforma­
das em livro), fui para o meu quarto com sentimen­
tos mistos na alma. De um lado, uma profunda con­
vicção de que tais coisas, por mais duras que sejam,
precisam ser faladas. De outro lado, um sentimento
de angústia e dor profunda na alma. Tal desconfor­
to interior vem do fato de que eu temia e ainda te­
mo ser mal interpretado. Nunca estive e nem sei se
um dia estarei totalmente livre de tais temores. Re­
ceio que alguém pense que estou-me arrogando um
papel profético que ninguém me entregou, ou di­
zendo coisas que eu mesmo tenho que provar para
todo o mundo — em mais algumas décadas de vida
íntegra — serem também reais na minha vida.

98
Apêndice

A Busca de
um Compromisso Pessoal

Vou terminar este livro com uma questão práti­


ca, e que tem tudo a ver comigo e com você. A ques­
tão é a seguinte: que tipo de liderança Deus deseja
levantar para esta hora? A pergunta acerca de líde­
res não é irrelevante. Deus trabalha na História le­
vantando pessoas que ouvem a sua voz, e a ele res­
pondem com paixão. O que Deus quer fazer, com
toda a certeza, tem á ver comigo e com você; com
gente de carne e osso — gente fraca e gente adoeci­
da; gente esperançosa e gente oprimida; pessoas ca­
pazes de reagir à História como eu e você, mas an­
tes de tudo e para além de tudo, gente cheia do Es­
pírito Santo.

Mais que Organizações, Gente Apaixonada


N a maioria das vezes os desafios que Deus nos
faz têm a ver com a coletividade como um todo, mas
precisam ser aceitos por pessoas concretas como nós.
Deus — disto não há dúvida — levanta pessoas concre­
tas na História. Abraão não era uma instituição; Moi­
sés não era um escritório de ação social e política;
Josué não era um centro de planejamento estratégi­
co; Davi não era uma organização que lutava em fa­
vor das minorias oprimidas; os profetas não eram
uma associação que refletia e ponderava sobre as in­

99
justiças da sociedade; Paulo não era um escritório
de reflexão sobre evangelização, contextualização e
missões transculturais. Quando Deus quis salvar o
mundo ele não criou um programa missionário, nem
uma instituição: ele enviou um Homem ao mundo
(Jo 3.16). U m Homem capaz de sofrer, chorar, m or­
rer, solidarizar-se com as pessoas; capaz da fraque­
za, da coragem, da aflição e da depressão profunda
— como a do Getsêmani — mas também capaz de
gargalhar de alegria, por contemplar o que Deus es­
tava realizando, de exultar com a salvação dos hu­
mildes e dos simples da terra.
Tudo o que eu disse nos traz à reflexão a ques­
tão das instituições e de como elas existem. Olhan­
do para trás fica claro que as instituições muitas ve­
zes funcionam apenas como meros instrumentos de
ilusão no que diz respeito a nos darem a idéia de que
o que foi ainda é, não obstante não o seja mais. Mui­
tas vezes as instituições não passam de museus de
idéias. Não estou querendo dizer que as desprezo.
Eu sozinho não organizaria um congresso anual pa­
ra mil e quinhentas pessoas, cruzadas de evangeli­
zação que alcançam milhares, um curso bíblico pa­
ra mais de quatro mil alunos, um programa semanal
na TV, uma editora, etc. Há toda uma estrutura por
trás das coisas que faço. E eu seria um grande incoe­
rente se não admitisse a tremenda utilidade de tudo
isso. N ão é a instituição-em-si que estou criticando.
O que estou confrontando é aquela perspectiva pe­
la qual muitas vezes se olha para a instituição, co­
mo se a existência dela substituísse a necessidade de
assumirmos nosso próprio compromisso pessoal,
particular e imprescindível com Deus na História. Es­
tou combatendo a idéia de que Deus lida com a im­
pessoalidade das organizações, e que pretendem
substituir em si mesmas o amor apaixonado pela frie­
za descomprometida dos seus integrantes indivi­
duais, para isto bastando haver belos textos de soli­
dariedade humana escritos na sua confissão de fé.
Isso, quase sempre, dá ao grupo que compõe tal ins­

100
tituição um senso de “trabalho cumprido”, de algo
feito. Pessoalmente estou convencido de que a maio­
ria das nossas organizações cristãs só fazem integral­
mente aquilo com que afirmam estar comprometi­
das, enquanto não escrevem no papel o “compro­
misso”. Uma vez isto feito, na maioria das vezes tem-
se a sensação de que a coisa daí em diante está feita
para sempre. Aí então se deixa de fazer. Muitas ve­
zes penso que isso é bem ilustrado pela nossa fobia
evangélica de escrever pactos, compromissos e alian­
ças. Freqüentemente brigamos muito, até que tais
pactos tenham uma redação final nas nossas reuniões
denominacionais ou nos nossos Congressos Inter­
nacionais supradenominacionais. Aí então deixamos
o Congresso ou a Conferência com a sensação de
que fizemos um “ real avanço” na história da igreja,
não importando se ela ficou sabendo ou não daqui­
lo que produzimos em seu nome; ou ainda: se nós,
os que escrevemos tais documentos, encarnavamos
já anteriormente aquilo que escrevemos, ou se, pe­
lo menos, estamos dispostos a encarná-lo daí em
diante.

O C am inho E ntre o Sonho e a Idéia


Feita Instituição
H á uma psicologia nas nossas instituições! Tal psi­
cologia é a seguinte: Antes de existirem instituições,
xistem pessoas. Pessoas que se movem na História
e que fazem as coisas acontecerem. Mas quando a
instituição é criada, o que se tem daí em diante são
siglas, projetos, programas e filosofia. E aqueles que
nela trabalham ficam quase sempre com a idéia de
que, se aquilo que está escrito na confissão de pro­
pósitos da organização está sendo feito, é porque
“ela”, existe. O grande problema da instituição, po­
rém, é que ela existe — com seus programas pré-
estabelecidos, sua linda filosofia de ministério, seu
discurso apaixonado, suas belas heranças históricas
— às vezes apenas para continuar pagando a conta

101
do escritório, que segue com sua “ publicação” da
instituição — muitas vezes prova de que o trabalho
feito não é tão público assim, embora haja casos que
o trabalho eficaz não exija sua ampla e pública per­
cepção, não sendo então necessária nenhuma publi­
cação. Geralmente uma instituição — seja ela uma
missão, uma denominação ou uma igreja local — tem
um período de significativa produtividade, vivendo
daí em diante apenas para cultivar a memória, o pas­
sado venturoso, os tempos de histórica eficácia, não
fazendo nada mais que se possa afirmar como novo
e relevante. Como um amigo meu tem posto, adver­
tindo para os quatro “M” mais perigosos na existên­
cia de qualquer avivamento: “N o princípio é mover
de Deus, que vira um movimento humano, que se
transforma num monumento histórico e termina co­
mo um mausoléu”.
E em razão dessa verdade que precisamos tomar
muito cuidado. Como já disse antes, não estou me
referindo apenas às instituições chamadas paraecle-
siásticas. Tal processo pode atingir sua denomina­
ção, sua igreja local ou seu ministério pessoal. Mes­
mo os mais poderosos avivamentos da história da
igreja terminaram assim.
A simples existência de escritórios institucionais,
em lugar de significarem progresso significam fre-
qüentemente desleixo, desmantelo e descompromis-
so perante a vida e a História, dando a idéia de es­
tarmos substituindo o ministério por sua mera re­
presentação. Podem significar também nossa falên­
cia existencial. Não raro acontece de nos ausentar­
mos da vida, olhando por exemplo para um templo
erguido na esquina, e dizendo: “ Eu já não estou fa­
zendo nada, mas deixei uma igreja.” Não! Deixamos
apenas um templo. E prédio por prédio, quem dei­
xou o maior foi Quéops, no Egito.
Sobrevivem a tal tentação apenas aquelas pessoas
cheias do Espírito Santo; gente comprometida com
Deus e com a História. Gente que tenha a coragem
de se expor e de perder, se necessário for, o melhor

102
conseguido, em razão de sua fidelidade a Deus e a
seu Reino. Tais pessoas são aquelas que estão sem­
pre mais cheias de sonhos que de saudosas e parali-
santes recordações; pessoas que estão orientadas pa­
ra o futuro, não para o passado apenas.

O Chamado à Igreja e aos Indivíduos


Devo esclarecer o fato de que quando afirmo que
Deus convoca indivíduos para realizarem seus pro­
pósitos, não anulo a realidade de que ele trabalha
também com seu povo, como corpo. A verdade de
que ele o usa não é desconhecida. Deus vem traba­
lhando com seu povo desde o início dos tempos, ten­
do feito com ele alianças.
Pensa-se, às vezes, que o advento da igreja trouxe
uma novidade em relação a essa organização e co-
letivização dos instrumentos dos quais Deus se vale
na História, o que não é verdade. E em razão de tal
equívoco que muitos dizem: “N o passado Deus usava
indivíduos. Hoje, porém, ele só usa o seu Corpo, nu­
ma perspectiva coletiva de ação.” Ora, Deus sempre
desejou agir através de seu povo. Todavia, a fim de
assim fazer, ele teve de levantar indivíduos.
Ao lermos o Velho Testamento vemos que Deus
chama um povo (embora o tenha feito em um ho­
mem, Abraão — “ em ti serão benditas todas as famí­
lias da terra”). E a igreja é hoje a continuação his­
tórica dessa perspectiva comunitária da salvação. En­
tretanto, mesmo admitindo que ele trabalha na pers­
pectiva de espalhar luz às nações através de seu po­
vo como comunidade, devemos no entanto enten­
der que ele levanta também pessoas com vozes pro­
féticas, evangelísticas, apostólicas e didáticas, com
dons especiais para chamar o seu povo ao compro­
misso, à vivência e ao envolvimento de sua missão
no mundo. E mais: muitas vezes tais pessoas, histo­
ricamente e aos olhos do povo de Deus, existem con­
tra esse povo. Esses são aqueles que para serem po­
vo de Deus têm que ser contra as más ações desse

103
povo na História. Portanto, meu pensamento não é
de maneira nenhuma individualizante; pelo contrá­
rio, acredito na ação do Corpo de Cristo, do povo
de Deus. Entretanto, acredito que esse povo de Deus
não existe como ente autoconsciente. Ao contrário,
ele é formado de pessoas concretas que precisam rea­
gir à sua Palavra.
Afirmar que a “ igreja” é a comunidade que Deus
usa soa muito bonito, mas pode ser extremamente
irresponsável, porque dá a impressão de que existe
algo autônomo, autoconsciente, dotado de um psi-
quismo livre, capaz de existir independentemente
das pessoas; de que a igreja possui certa dotação es­
piritual, que acontece na perspectiva de que o ter­
mo imaginário “ igreja” existe por si só, carismati-
camente falando. Como se ela pudesse ser algo à par­
te, independente dos “seres vivos” que a formam.
Eu diria que, neste sentido, a teologia dos últi­
mos anos parece ter sucumbido à tentação do psi-
copanteísmo que^ atingiu muitas noções do pensa­
mento universal. E fácil observar como hoje freqüen-
temente se atribui, por exemplo à natureza uma cer­
ta condição de psiquismo particular. Isso acontece
pela própria atribuição de psiquismo pessoal auto-
determinado que a ela se empresta. Se não, vejamos.
Diz-se comumente que a Natureza (com N maiuscu­
lo) escolheu um certo caminho, tomou uma certa di­
reção, decidiu um determinado mecanismo na evo­
lução. Então, quando usamos esses termos eminen­
temente pessoais e ligados ao poder individual de
escolha, estamos atribuindo ao impessoal da N atu­
reza um poder psíquico pessoal.
A mesma coisa acontece, às vezes, em relação ao
Social (também com S maiusculo). Ouvimos amiú-
de referências a ele como se acontecesse aleatoria­
mente aos indivíduos que o compõem. Sendo assim,
age-se como se o que existisse fosse algo pessoal,
separado dos indivíduos que o formam. Dessa for­
ma cria-se pelo poder da palavra um ente chamado
“ Social” — um ente solitário, autônomo, dotado de

104
psiquismo e com suas próprias idiossincrasias; um
ente independente daqueles que o integram e o ha­
bitam. Com base nisso eu diria que boa parte das no­
ções eclesiológicas mais recentes, talvez influencia­
das por esse psicopanteísmo ao qual fiz referência,
assumiram a posição que atribui uma espécie de per­
sonalidade autônoma à igreja, à comunidade. Pensa-
se, por exemplo, que a comunidade é cheia de ca­
risma desde que os seus cultos sejam adornados pe­
la coreografia e o gestual carismático ensaiado do
domingo à noite. Parece que se crê que o ajuntamen­
to dos indivíduos forma um terceiro termo, autôno­
mo, que é o psiquismo da comunidade que pode ser
carismático e santo, ainda que as pessoas nela inse­
ridas vivam no dia-a-dia uma existência seca e vazia
de qualquer perspectiva do carisma. O que se vê
amiudadamente por aí são pessoas cuja vida está
completamente oca da perspectiva do carisma que
lhes energize a personalidade, mas pelo fato de fre­
quentarem uma igreja de liturgia carismática consi­
deram-se carismáticas. Como se a simples razão de
entrarem naquele lugar onde existe uma certa placa
de declaração pentecostal, onde há um certo gestual
litúrgico “avivado”, fizesse daquela igreja uma igre­
ja da graça, independente de serem os seus membros
membros da desgraça.
Isso nos preocupa muito, visto que nos anos pas­
sados a relação dos carismas exacerbava-se na dire­
ção dos indivíduos. Era o tempo em que qualquer
perspectiva de unção e de carisma era concentrada
de maneira fetichizadora num líder especical. Eu me
convertí nesse contexto. Antes se exagerava a idéia
de que certas pessoas eram especialmente ungidas,
fazendo assim surgir o pensamento de que a igreja
sobrevivia graças a determinadas personalidades ex­
tremamente carismáticas.
Atualmente, em muitos grupos dá-se o oposto.
Em certos grupos cristãos é quase pecado a idéia de
que alguém possa ter uma dotação espiritual espe­
cial. Você quase tem que pedir desculpa por ter dons

105
especiais e por viver a bênção de Deus com exube­
rância. É o outro lado da moeda. Nesse caso é con­
siderado pejorativo o conceito de carisma que não
seja comunitário.
Em muitos grupos prega-se hoje uma espécie de
igualitarismo carismático, uma versão carismática do
exército vermelho. Todo o mundo “ uniformizado”,
andando do mesmo jeito — aquela coisa arrumada,
numa socialização igualitária de todos os carismas
e de suas expressões. Qualquer um que sobressaia,
que tenha uma personalidade um pouco diferente
da do resto do grupo, é logo visto como alguém com
tendências personalistas. Isso acontece com muita
freqüência entre aqueles que são de teologia Refor­
mada e que tiveram algumas fortes experiências co­
munitárias. Ou com aqueles que possuem persona­
lidade pouco atraente e em razão disso adotam a
idéia de que Deus só usa pessoas na perspectiva cor­
porativa. Em tais casos, muitos daqueles que foram
homens de Deus com intensos carismas e grande pre­
sença individual na história seriam interpretados um
tanto estranhamente por tais irmãos.
E por tudo isso que é imprescindível redescobrir
a perspectiva bíblica do equilíbrio entre a persona­
lidade e a comunidade em relação ao exercício da­
quelas perspectivas de liderança nas quais certos in­
divíduos aparecem mais que outros sem serem nem
por isso essenciais à obra de Deus.
Para concluir, vejamos apenas um exemplo de tal
equilíbrio, conforme ensinado no N.T. Observe isso
primeiro em relação ao indivíduo. Jesus disse a Pau­
lo: “Eu te envio, para lhes abrires os olhos e
convertê-los das trevas para a luz, e da potestade
de Satanás para Deus” (At 26.16-18). E isso o que
se diz ao homem Paulo, uma pessoa. Observe agora
como a mesma missão entregue a Paulo é também
entregue a toda a igreja, numa perspectiva corpora­
tiva, de acordo com I Pedro 2.8,9: “Vós, porém, sois
raça eleita, sacerdócio real, nação santa, povo de
propriedade exclusiva de Deus, a fim de procla­

106
mardes as virtudes daquele que vos chamou das
trevas para a sua maravilhosa luz.”
Com que finalidade a igreja é feita raça eleita, sa­
cerdócio real, nação santa, povo de propriedade ex­
clusiva de Deus — conforme o que está dito no tex­
to de Pedro? A resposta é: para realizar a mesma
coisa que se diz que o hom em Paulo foi desti­
nado a realizar: “...a fim de proclamardes (...)
luz”. Assim, indivíduo e comunidade estão inves­
tidos da mesma perspectiva de missão. E aí que re­
side o equilíbrio de qualquer perspectiva de missão.
E também aí que reside o equilíbrio de qualquer pers­
pectiva carismática que queira levar em considera­
ção uma personalidade energizada pela graça de
Deus, e uma comunidade que vivência essa graça.
Sem que Deus levantasse indivíduos de modo espe­
cial, a igreja seria uma comunidade de iguais. Mes­
mo a diversidade de dons não garantiría a sua hete-
rogeneidade. Para que ela seja diversa ela precisa não
apenas de diversidade nos dons, mas também de in-
tensidades diferentes no seu exercício. Daí haver na
igreja indivíduos corrj dons mais intensos. N o entan­
to, para que tais dons não sejam exercidos de modo
autônomo eles precisam ser vivenciados dentro do
Corpo de Cristo na perspectiva da submissão e da
obediência.

Servindo a Deus por N ada


Minha oração por você, companheiro de jorna­
da no reino de Deus no Brasil, é no sentido de que
você seja animado pelo Espírito Santo a fazer parte
de uma geração que vai dar tudo de si e a si mesma,
a fim de que nos anos por vir o nosso país veja o
fogo de Deus cair em praça pública, e em assim sen­
do, a nação possa dizer: “ Só o Senhor é Deus; esses
que aí estão são os seus servos.” Ora, tudo isso nos
leva a desejar a vivência de uma fé comprometida e
prática. Uma fé que conte com a possibilidade freqüen-
te da intervenção de Deus. Eu creio que a Bíblia nos

107
autoriza a crer nisto. N o entanto, temos que viver e
desejar isso sem cair num outro extremo, que é o
de servirmos a Deus por alguma coisa, mesmo que
seja por um avivamento. Temos que servir a Deus
apenas por Deus. É minha particular convicção que
só estão aptos para o enfrentamento da realidade de
dor que rodeia a vida aqueles que mesmo desejan­
do blasfemar se vêem surpreendidos pela resposta
da alma que no caminho da queixa-blasfêmia faz da
queixa uma prece e da blasfêmia uma declaração de
fé ao Deus que ouve e ao qual o crente serve por
nada.
Desse ponto em diante aprende-se que Deus não
existe para o ser humano. E o ser humano que exis­
te para Deus. E sendo assim, Deus reserva para si o
direito de ser Deus, cabendo a nós o direito de crer
nele. Nossa fé em Deus é fé para nada, é apenas fé
para viver. Não é fé para conseguir. E fé para ser. A
fé adulta e que nos faz viver não é aquela que se ba­
seia em argumentos muito bem fundamentados so­
bre quem é Deus, mas é a fé daqueles que conhe­
cem a Deus e estão dispostos a servi-lo em troca de
nada. É a fé daqueles cuja recompensa na vida está
em que lhes foi dado crer.
Essa fé não ajudou Abraão a entender quais eram
as razões de Deus quando lhe ordenou que imolas­
se seu filho Isaque sobre o altar. Mas foi essa fé que
o levou a levantar-se de madrugada, a pegar o meni­
no, o cutelo, a lenha e o fogo e partir para Moriá.
Tal fé serve a Deus por nada. Serve a Deus apenas
por Deus. E é essa fé que se constitui na maior res­
posta quando o nosso mundo está como o mundo
de Habacuque: caótico e louco. Essa fé faz o justo.
Essa fé justifica o justo. Essa fé cria vida. Essa fé crê
apesar do apesar mais pesaroso.
Essa fé nos liberta do cipoal de perplexidades no
qual muitas vezes nos enrolamos na vida. E mais:
conquanto a fé tenha um poder libertário em si mes­
ma, ela deve ser fé para além da própria finalidade
histórico-libertacionista. Ela tem que ser fé que mes­

108
mo quando opera mudanças na História está fazen­
do isso por nada, pelo simples fato de que a fé bí­
blica não é nunca um fato histórico. Ela está sempre
fixa em algo além. Ela sempre se relaciona com o
invisível ou com o futuro (Hb 11.1). E por isso que
a verdadeira fé sempre serve a Deus por nada. Nem
no futuro da História o homem de fé encontrará sua
recompensa. O futuro da fé nunca chega porque fé
é sempre futuro. A fé que moveu Elias é portanto a
fé que esperamos nos mova nesta geração confusa,
perdida, oprimida e carente. Uma fé eficaz nos seus
resultados mas que não serve a Deus em razão dis­
so.

Bibliografia

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