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Seminário
_______

Teológico George
Whitefield

Introdução a
Filosofia INTRODU
ÇÃO
A

FILOSÓFI
A

1
Período sistemático..................................32

Índice Temático Período helenístico...................................34

Prefácio................................. Capítulo 4. Principais períodos da história da


....................05
Filosofia...............................................35
Introdução...............................
..................06 A Patrística. Apresentação.......................37

Idéias comuns relativas à História da 0s problemas filosoficos essenciais que derivam


Filosofia................................
do encontro entre "fé" e “razão” Filon de
....................09
Alexandria e a Gnose..................38
A História da Filosofia como galeria de
opiniões.................................
....................09

A atitude
filosófica............................... O Grande prologo do evangelho de
.....................12
João...........................................................41
A atitude
crítica.................................. Um precursor. Filon de Alexandria........41
.....................13
A "filosofia Mosaica..................................42
Para que
Filosofia?............................... A criação do Mundo..................................43
....................13
Os apologistas gregos e a escola catequética de
A reflexão
filosófica............................... Alexandria. Os apologistas gregos do segundo
.....................15 século. Aristides, Justino,

Capítulo1 A origem da Filosofia..............15 Taciano........................................44

A Filosofia é grega...................................15 A escola catequética de Alexandria. Clemente e


Orígenes................................47
Capitulo 2 Filosofia Antiga.......................17
Agostinho de Hipona................................49
O surgimento da filosofia na Grécia
antiga........................................................17 Tomás de Aquino......................................57

Noções Fundamentais do Pensamento Clemente de Roma....................................64

Filosófico Cientifico..................................................21 Inácio de Antioquia...................................69

Capítulo 3. Campos de investigação da O Surgimento da escolástica....................73


Filosofia....................................................25
Boécio: o Último dos romanos e o primeiro dos
Os períodos da Filosofia grega.................26 escolásticos.......................................74

Filosofia puramente grega.......................26

Período socrático ou antropológico..........27

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mesma forma que nós. Por isso,
podemos imaginar que a filosofia
seja uma disciplina de estudo muito
efêmero, muito abstrato, sem
aplicação prática. Portanto,
concluímos, quem se interessa por
filosofia deve ser uma pessoa aérea,
sem muito vínculo com a realidade.
Mas, se refletirmos um pouco, de
onde veio a idéia de que “todos os
caminhos levam a Deus”? De onde
veio nosso conceito dualista da
realidade, ou seja, de que o mundo
é composto por duas realidades, uma
material e outra espiritual? Ou o
conceito popular de que Deus e o
diabo praticamente se equiparam em
termos de poder e força? Ou o
conceito de que duas afirmações
contraditórias (“mutuamente
excludentes”) não podem ser ambas
verdadeiras ao mesmo tempo? Será que
literalmente todo mundo pensa da
mesma forma que nós? Absolutamente,
não. Será que o estudo da filosofia
é totalmente inconsequente, sem
aplicação prática? Absolutamente,
não. Então, onde estão as raízes do

Prefácio
pensamento e da cultura ocidentais?
Enfim, por que pensamos da forma que
pensamos? Em Filosofia esboça de
maneira interessante e simples a
história do pensamento ocidental.
Se o amado leitor tiver algum
Muitas interesse em responder por que
vezes somos tentados a fazer pouco pensamos da forma que pensamos, deve
caso da filosofia, pois prestamos começar pela leitura desta
pouca atenção à origem das idéias apostila. Vamos começar com a parte
que, com grande freqüência, dos primeiros filósofos pré-
constituem conceitos que norteiam platônicos, depois passa por
nossa vida. Na realidade, tendemos Platão, Aristóteles. Depois vamos
a pensar que todo mundo pensa da deslumbrar com a patrística de

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Agostinho de Hipona, Tomás de Aquino basta observar como certos assuntos
e todo o colegiado dos pais da despertam polêmica, tais como o
Igreja até chegar a filosofia significado da política, da arte,
contemporânea. Uma ótima leitura e da ciência e da moral. Quem ainda
que Deus nos ajude. Chegando à era não se perguntou sobre a finitude
moderna, explica as filosofias de da vida? o sentido da existência?
Descartes, Locke, Hume, Kant, Marx, Quem não critica o governo? Quem não
Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, se angustiou ao tomar uma decisão.
Darwin e Freud. Ou seja, trabalha Questionando o certo e o errado?
com o realismo e com o idealismo, Alguma vez você já se perguntou se
sínteses cristãs dos primeiros o que seus sentidos percebem é a
filósofos e com o racionalismo, realidade mesma ou é o que você
empirismo e ceticismo hodiernos. pensa que ela seja? Bem, essas, e
Depois explica Kant, cuja filosofia muitas outras, são questões
é um divisor de águas, chegando filosóficas. E os pensadores
finalmente a tratar do marxismo, do através dos tempos, tem se dedicado
existencialismo e dos pensamentos a elas.
influentes (que não chegam a
Aprender a filosofar
constituir filosofias) de Darwin e
Freud. No final da apostila, somos Toda a aprendizagem supõe o encontro
confrontados com “a escolha de com o desconhecido. Nesse sentido,
Gilson”. Para que a nossa vida inicia-se em filosofia pode
tenha nexo, somos obrigados a optar significar o enfrentamento de
por alguma filosofia que as oriente. dificuldades que, no entanto, não
Por qual delas devemos optar? Leia são intransponíveis. Ao contrário,
e faça sua opção. você terá a alegria de descobertas
prazerosas. Vejamos alguns desses
Ao aluno
desafios:
Por que filosofia?
 Vocabulário.
Logo na introdução desta apostila,
Como em qualquer outro lugar setor
um capitulo com a mesma interrogação
de reflexão humana, a filosofia
dará as primeiras pistas para que
pressupõe um repertório conceitual
você compreenda essa maneira
especifico com o qual você deverá
diferente de olhar para o mundo e
se familiarizar aos poucos.
para si mesmo, representada pela
Percebendo que o rigor da linguagem
reflexão filosófica.
é indispensável. Verá, inclusive,
Então, você ficará sabendo que, ao que os conceitos adquirem sentidos
contrário de outros saberes em que diferentes no decorrer da história
as pessoas se especializavam, a da filosofia, de acordo com os
filosofia é um campo em que todos pensadores estudados.
nós vez ou outra nos aventuramos:

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Daí a importância de recorrer aos e não conversa de surdos, em que não
dicionários de língua portuguesa e se concede espaço para ouvir os
os de filosofia. outros e nem se respeita a opinião
alheia. Lembre-se de que o debate é
 Analise e interpretação de
a ocasião do exercício da cidadania,
textos.
porque a troca de ideias é o
Para se familiarizar-se com a fundamento da aceitação do
tradição filosofica, nada melhor do pluralismo.
que o contato com os pensadores
abordados nesta apostila. Além
disso, também há textos de outra
natureza, mas que deverão ser
 Produção de textos.
analisados de maneira filosofica.
Você deve consultar sem os Escrever claramente sobre o que
instrumentos do filosofar, no final pensamos nem sempre é fácil: a
desta apostila, onde encontrará habilidade de elaborar seu próprio
sugestões preciosas sobre como texto supõe um exercício que exige
fazer problematização e fichamento, esforço e atenção. Poe isso, observe
analise de interpretação. E lembre- os seguintes pontos:
se: mesmo que alguns dos textos nos a) Consulte o já referido os
cativem desde o início, outros podem instrumentos do filosofar,
não parecer atraentes à primeira para ver como toda dissertação
vista. Sabe por que? Assim como para deve cumprir certas etapas
apreciar a arte é preciso (introdução, desenvolvimento
desenvolver a sensibilidade, também e conclusão);
precisamos aprender a ouvir o que o b) A clareza é mais do que um
autor tem a dizer: o prazer de exercício formal do uso da
entender ideias as vezes é uma língua, porque exige o rigor
conquista final e prazerosa. dos conceitos, da exposição
 Debates das ideias e da boa
estruturação do pensamento;
É comum a expectativa de que a aula
c) Cuidado com os exemplos:
de filosofia seja conduzida somente
embora bem-vindos, são
por meio de debates e exposição de
complementares, porque é
opiniões pessoais. Apesar de ser em
preciso sempre usar
parte verdadeiro, lembramos que
argumentos que justifiquem
essas atividades devem ser
suas ideias, a fim de não
entremeadas pelo diálogo com os
ficar restrito a visão
autores, de modo a enriquecer a
concreta do mundo
discussão e ampliar o ponto de vista
d) Releia várias vezes o que
pessoal. Além disso, é preciso
escreveu, para não cair em
cuidar para que haja de fato debate
expressões vazias: por

5
exemplo: não adianta dizer que sentimento, as capacidades
um filosofo foi inovador, se racionais do leitor, como por
não explicitar em que ele exemplo, a de analisar o texto,
inovou. separa as suas partes, estabelecer
relações entre elas e outros textos,
 Avaliação. sintetizar as ideias do autor.

É saudável o esforço feito sob a Estabelecemos um dialogo com o texto


perspectiva de uma avaliação: neste fazendo perguntas que nos levam a
momento você fará a reorganização e compreender sua forma de construção
a sistematização do que aprendeu. e seus significados mais profundos.
Não caia na armadilha de pensar que Os textos em geral, não são
o professor não tem condições de construções transparentes, não nos
avaliar porque em filosofia cada um entregam totalmente os seus
pensa como quer: como toda significados logo numa primeira
disciplina, também em filosofia há leitura.
o que estudar e memorizar: mesmo
Voltemos, agora, a história com que
quando se abre espaço para a
iniciamos este apêndice. Façamos
expressão do seu ponto de vista, não
algumas perguntas sobre sua forma
importa as discordâncias, porque o
de construção; em que tempo verbal
seu professor irá avaliar se você
está escrita? Em que pessoa? Há um
entendeu o que foi pedido no
narrador? É uma descrição, uma
enunciado, se sua argumentação está
narração, um diálogo dramático? É
bem desenvolvida e se há coerência
prosa ou poesia?
na exposição, isto é, se seu texto
não é contraditório; ou seja, as A leitura critica comporta assim,
afirmações não valem por si, mas a uma subdivisão em níveis, que
fundamentação das ideias expostas constituem etapas de aprofundamento
faz parte do discurso filosófico. da interpretação: denotação,
interpretação, critica e
Os instrumentos do filosofar.
problematização. É como se
O que é ler? andássemos dentro de uma espiral e
fossemos dando voltas, cada vez mais
É a capacidade de poder dinamizar a
profundas.
visão e a mente ao descobrir por
caminhos diversos, a maravilhosa a. A denotação.
técnica de encontrar a razão do
É o primeiro nível de leitura
escrito.
critica de um texto. Visa a
A leitura Crítica. compreensão do sentido mais
literal, direto e superficial do
Esse tipo de leitura exige uma
texto e, no caso dos ensaios,
compreensão mais abrangente do
envolve as etapas a seguir.
texto e mobiliza, além do

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1- Levantar informações y, como é? Ao problematizar, estamos
adicionais, como: vocabulário indagando sobre outras
– grifar e procurar no possibilidades e exercitamos a
dicionário o significado das imaginação, a coerência, o
palavras desconhecidas ou raciocínio. Abrimos nossos olhos
cujo sentido não tenha ficado para novos significados, para novas
claro; leituras do mundo.
2- Dados sobre o autor, situação
Durante a problematização do texto
histórica e finalidade para o
vem a tona o local de onde o
qual foi escrito o texto. Qual
receptor/ leitor faz as perguntas:
o escrito? Carta? Jornal?
sua experiência pessoal, sua visão
Livro? Ou um artigo?
do mundo, seus valores, sua cultura,
3- Localização da ideia central
seus conhecimentos e suas crenças.
do texto, respondendo-se as
É o momento em que trazemos para a
perguntas: do que trata o
interpretação do texto nossa
texto? Qual é o assunto
situação existencial.
discutido?
4- Analise do desenvolvimento do Como se pode ver, a necessidade de
raciocínio do autor: como o aprender a ler é muito mais ampla e
autor trata a ideia central do profunda do que normalmente se
texto? É um ensaio sobre um coloca, pois, envolve a pratica de
determinado assunto? De que dar significados ao mundo que nos
ponto ele começa e quais as cerca e a nossa própria vida.
ideias, os argumentos e os É tarefa que pode ser conseguida por
fatos que usa para sustentar meio dos sentimentos e também da
seu raciocínio? A que razão. A leitura crítica, como
conclusão chega? vimos, apresenta uma serie de etapas
que correspondem ao aprofundamento
gradual dos significados presentes
no texto, o que pode nos levar, além
do próprio texto, aos valores
implícitos, escondidos, que
b. A problematização.
presidem a sua criação. Este é o
É o quarto e último nível da leitura caminho critico que nos permite
crítica. Nesse nível distanciamo- chegar a problematização da nossa
nos do texto e pensamos em assuntos realidade e que, dependendo do tipo
e problemas que, embora levantados de abordagem que fizermos, poderá
a partir de uma leitura cuidadosa, nos levar ao filosofar.
vão além dele. É quando nos
Aprendendo a fazer fichamento e
perguntamos: naquela época, ou
resumo de textos.
sociedade, era assim? E hoje como
é? Tal coisa é valida para x; e para

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Quando estamos estudando, seja para desenvolvidos. Devemos aproveitar
a escola, seja em virtude de essa primeira leitura para numerar
interesse pessoal por determinado os parágrafos, o que nos auxiliará
assunto, o complemento natural da muito no passo seguinte.
leitura analítica e escrita, a qual
2º Passo
vimos no item anterior, é a ficha
de leitura. Consiste na identificação das
partes principais do texto. Todo
Essa ficha pode conter a estrutura
texto ensaístico completo (isto não
do texto e o encadeamento lógico das
se aplica, e claro, a trechos
ideias nele apresentadas (de forma
retirados de um todo maior)
resumida) ou pode conter citações
apresenta, de forma mais ou menos
importantes sobre um determinado
clara, três partes distintas.
tópico.
a) Introdução: nela, o autor
O fichamento pode ser, portanto, de
coloca o problema ou a
dois tipos: fichamento de um texto
indagação que o levou a
e fichamento de tópicos
escrever o texto. A introdução
determinados, que serão
nos dá, então, a ideia do
aproveitados, mais tarde, para um
assunto a ser tratado, além
trabalho de síntese.
disso, o autor também
Fichamento de textos. esclarece o ponto de vista ou
Texto ensaístico o anglo sob o qual o assunto
será abordado e, às vezes, o
O ensaio é um texto literário não método, ou seja, o caminho por
ficcional, razoavelmente curto, que ele seguido (apresentação de
trata de um único assunto, a partir casos para chegar a uma
do ponto de vista escolhido pelo generalização, ou de um
autor. princípio geral a partir do
Vamos estudar, agora, o fichamento qual deduzirá as
de um texto ensaístico passo a consequências).
passo. b) Desenvolvimento. É o corpo do
texto, que apresenta os dados,
1º passo.
as ideias, os argumentos e as
Para facilitar o trabalho de afirmações com que o autor
fichamento de um texto ensaístico, constrói um edifício de
devemos fazer, em primeiro lugar, relações entre as partes, e
uma leitura corrente exploratória que constitui o seu pensamento
sem nos darmos nas dificuldades, original. A partir da
muitas delas se resolverão na indagação problema colocada
segunda leitura, quando já tivermos na introdução, o
uma ideia do texto todo, do conjunto desenvolvimento revela como o
de argumentos que foram autor conduziu a procura de

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soluções e explicações e quais ser resolvida com ouso de um serviço
os caminhos que escolheu em de busca eficiente.
detrimentos de outros.
4º Passo
c) Conclusão. Toda a construção
anterior desemboca em algumas Agora, estamos prontos para a quarta
afirmações, negações ou em etapa, ou seja, para examinar a
novas indagações decorrentes relação que as ideias mantêm entre
de como o texto foi organizado si e elaborar o plano do texto:
e desenvolvido. quais as ideias os fatos ou os
argumentos apresentados que estão
3º Passo.
no mesmo nível, isto é, que não
Na terceira etapa, vamos levantar a dependem uns dos outros, mas que se
estrutura, isto é, o plano logico a somam no desenvolvimento do texto?
partir do qual o texto foi escrito. Quais as ideias que dependem ou são
Para isso, resumimos em poucas subdivisões de outras?
palavras as ideias principais de
Conclusão.
cada parágrafo considerado mais
importante, para poder, a seguir, Depois de lermos tudo isso, a
agrupá-las sob títulos gerais. primeira pergunta que ocorre é: mas
Devemos perguntar: qual é a ideia para que essa toda essa trabalheira?
principal do parágrafo? Há uma Tanto a leitura bem-feita quanto o
palavra ou um título que condense o fichamento cuidadoso envolvem o
assunto que está sendo tratado tempo de trabalho bastante longo. E
naquele parágrafo? Depois que não há razão alguma para acharmos
tivermos adquirido alguma pratica, que o trabalho intelectual não exija
somos capazes de elaborar os títulos esforço e dispêndio de energia.
sem precisarmos fazermos o resumo
dos parágrafos. Geralmente, quando nos pedem para
fichar um fichar um texto, vamos
Podemos dividir o texto nas grifando tudo o que nos parece
seguintes partes: importante já na primeira leitura
a) Introdução b) desenvolvimento e, depois, limitando-nos a copiar
e c) conclusão. essas partes na ficha, como se
fossem pedaços de uma coluna de
Se resumirmos a introdução e
retalhos.
procurarmos os temas de cada
parágrafo, teremos o quadro abaixo: Passando algum tempo, revemos
Apresentando o texto de forma de aquelas anotações e não conseguimos
plano, temos: saber por que eram importantes
naquele momento. Isso ocorre porque
Introdução. A dificuldade de se
as nossas fichas não nos dão a
encontrar a informação desejada na
organização lógica do texto e,
internet em bilhões de paginas pode

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portanto, não podemos acompanhar o O tipo mais simples de seminário é
pensamento do autor. o que se limita a apresentação oral
das ideias principais de um texto.
Os procedimentos aqui discutidos
O professor, na impossibilidade de
proporcionam exatamente isso: ao
pedir que todos os alunos leiam um
entender e anotar a organização do
certo numero de textos para o seu
pensamento do autor, estamos
curso, distribui esses textos entre
tomando posse desse raciocínio. As
vários grupos de alunos, ou vários
ideias se tornam mais claras e
alunos, cada um se
passamos a saber como elas se
responsabilizando pela apresentação
relacionam umas com as outras.
par a classe do texto que lhe coube.
Os fichamentos nos permitem
O objetivo deste tipo de seminário
conhecer o percurso do pensamento
é que todos os alunos tenham contato
do autor e guarda-lo, para que
com as ideias apresentadas em textos
possamos voltar a ele no momento que
diferentes ou em vários capítulos
quisermos. Fichar é trabalhoso, mas
de um mesmo livro.
é um trabalho que está ali, pronto,
e ao que temos acesso sempre que Para fazer essa atividade, basta
necessário. seguir as indicações dadas
anteriormente sobre leitura,
analise de textos e fichamento.
Conhecida a estrutura lógica do
Aprendendo a fazer um seminário. texto, será fácil para o grupo
apresentar, com as suas próprias
Cada vez que um professor pede aos palavras, o encadeamento do
seus alunos que façam um seminário, pensamento do autor. O segundo tipo
a reação é sempre a mesma: eles de seminário consiste no
aceitam, escolhem o tema, formam os aprofundamento de um assunto por
grupos e, quando começam a pensar meio da síntese pessoal de uma
no trabalho, que não tem ideia de bibliografia variada.
como fazê-lo.
Nesse caso, dado um tema, o grupo
Em geral, o resultado é mais ou precisará ler o que diferentes
menos catastrófico, e tanto o aluno autores escreveram a respeito do
quanto o professor se sentem assunto em questão, para então
frustrados. Vejamos, então, o que chegar a uma opinião pessoal. Esse
pode ser um seminário e como fazê- tipo de seminário, mais complicado
lo. que o primeiro, envolve várias
O seminário, como nós o conhecemos etapas.
nas escolas brasileiras, abrange Como primeiro passo, precisamos
dois tipos diferentes de trabalho. fazer o levantamento de fontes de
informação sobre o assunto, isto é,

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saber quais artigos, livros, interpretar o seu significado; a ler
depoimentos, documentos, textos de e a analisar um texto; a ficha
lei, registro de cartório, cartas e textos e tópicos, como complemento
etc.) sites que tratam assunto. da leitura e preparação de trabalhos
Hoje, uma das principais fontes de posteriores; a fazer um seminário.
informações é, sem dúvida World Wide
Agora, resta discutir a redação de
Web, ou www, acessada por meio de
trabalhos dissertativos, isto é,
um computador conectada a internet.
aqueles em que apresentamos uma
Utilizando um dos sites de serviço série de informações, analisando-as
de busca como: (Yahoo ou o Google, e defendendo um ponto de vista por
por exemplo), podemos levantar uma meio da argumentação. Em geral, essa
infinidade de fontes sobre os mais etapa é a que mais nos dá medo.
variados temas. O único perigo com Expor nossas ideias por escrito, em
relação a internet é o de nos vez de oralmente como em um
perdermos no meio de tanta seminário, parece ser uma tarefa
informação. Nesse caso, é preciso mais comprometedora.
que se faça uma triagem, uma escolha
Além disso, temos muito mais pratica
das informações mais úteis, o
em falar e discutir do que em
professor poderá colaborar com seus
escrever. Precisamos encarar a
alunos nesse momento.
escrita apenas como uma anotação da
Sites de confiança geralmente nossa fala, que, como está, pode ser
pertencem a museus, universidades, criticada, respondida e modificada.
jornais e revistas, fundações de O texto escrito, apesar de mais
pesquisa, institutos culturais etc. ordenado do que a fala, simplesmente
traduz nossa maneira de pensar em
Uma boa biblioteca, com fichários
um momento determinado e pode mudar
manuais ou digitais, também é uma
em virtude da evolução do nosso
excelente fonte de informações. As
pensamento.
obras se encontram catalogadas por
autor e por assunto. Se não A escrita apresenta, ainda, uma
conhecermos os nomes de autores que vantagem sobre a fala; o fato de
escreveram sobre o tema que nos fixar nosso pensamento, de guarda-
interessa no momento, consultamos, lo, dá-nos a oportunidade de voltar
antes o catálogo de assuntos. a ele passados alguns dias e de
considera-lo mais criticamente, com
maior objetividade, permitindo as
Aprendendo a fazer uma dissertação mudanças que forem necessárias.
Até aqui, vimos algumas etapas Dito isso, passaremos a discutir os
igualmente importantes para o passos para a elaboração de um a
estudo. Aprendemos: a observar o dissertação feita com seriedade,
mundo que nos cerca, para obedecendo a padrões científicos.

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Escrever uma dissertação envolve numero da edição e data. Se for
etapas que podem ser resumidas artigo de revista ou jornal, ou
assim: 1. Escolha o tema; 2. capitulo de um livro, procede-se da
Levantamento das fontes de seguinte maneira: nome e sobrenome
informações; 3. Leitura e do autor, titulo do artigo, nome da
fichamento dos textos selecionados; revista ou jornal, local de edição,
4. Construção do plano lógico do editora, volume, data e páginas.
trabalho; 5. Redação.

Escolha do tema.
Fichas de documentação
Em primeiro lugar, o tema precisa
Esse tópico foi bastante
ser interessante para quem vai fazer
desenvolvido no item sobre
o trabalho. O tema deve, também,
fichamento. Aqui, basta lembrar
claramente delimitado. Se
que, para uma dissertação, usaremos
trabalhamos com temas muito amplos,
o fichamento de tópicos: uma ficha
acabamos nos perdendo em
para cada ideia, mesmo que pertença
generalidades que levam a lugar
ao mesmo tópico, não se esquecendo
nenhum.
de identificar o assunto (tópico e
Ao contrário, se soubermos subtopico) no canto direito da
delimitar claramente a área de nossa ficha. Lembrar também, que a fonte
pesquisa, trabalharemos com maior (autor, título do texto, livro,
profundidade e acabaremos editora e páginas) deve estar sempre
encontrando dados interessantes. indicada na ficha, mesmo que não
tenha sido copiado o texto. Exemplo:
Levantamento das fontes de
informações. Tópico: OGM

Já discutimos no item 3, como fazer Subtopico: Definição


o levantamento das fontes de
OGM: organismo cujo material
informação. Agora, vamos somente
genético (ADN/ARN) tenha sido
mostrar como fazer a documentação
modificado por qualquer técnica de
dessas fontes. As fontes
engenharia genética.
consultadas deverão constar no
final do trabalho, por ordem PRESIDENCIA DA REPUBLICA. Lei nº
alfabética de acordo com o sobrenome 8.974, de 5/1/95, parágrafo 3º,
do autor. artigo lV.

As normas utilizadas variam um pouco Construção do plano lógico do


nas diferentes áreas do trabalho
conhecimento. Aqui, usamos as É a elaboração do plano que norteará
seguintes formas: a redação da dissertação. Todas as
No caso de livros: nome e sobrenome etapas precedentes constituem
do autor, titulo do livro, editora, atividades preparatórias. Embora

12
nenhuma das etapas anteriores decorrentes da organização do
exclua a reflexão a crítica, o desenvolvimento.
momento da construção logica do
Na conclusão não se pode apresentar
trabalho é, por excelência, o
dados novos, que não apareceram no
momento reflexivo. Como desenvolver
desenvolvimento. Em outras
o raciocínio, como selecionar e
palavras, não se pode tirar mais
organizar a informação que temos, a
coelho do que tem na cartola. Ao
fim de solucionar o problema que deu
longo do trabalho, percorremos um
inicio ao nosso trabalho de
determinado caminho que nos leva a
pesquisa? Como apresentar tudo que
um ponto.
levantamos de forma logica,
coerente e ordenada, para que o Este é a conclusão, em que o autor
leitor entenda? Recapitulemos, manifesta seu ponto de vista em
então, o que já dissemos, no item relação aos resultados obtidos e ao
sobre leitura, a respeito da alcance desses resultados. A
estrutura formal de um texto conclusão deve ser breve, clara e
ensaístico. não ultrapassar os limites dos dados
apresentados no desenvolvimento.
Todo o trabalho ensaístico
Pode-se, no entanto, incluir
apresenta três partes essenciais: a
perguntas ou problematizar algum
introdução, o desenvolvimento e a
aspecto do trabalho que leve a outra
conclusão. Na introdução colocamos
pesquisa.
claramente o tema do trabalho, sua
importância e os objetivos, isto é,
o que esperamos alcançar com este Redação
estudo. Essa apresentação do
trabalho, embora resumida, deve Chegamos, enfim, a redação final
esclarecer o leitor acerca do ponto do trabalho, ao acabarmos de
de vista sob o qual o tema vai ser elaborar o plano logico, a redação
tratado e a natureza do raciocínio. se torna muito mais fácil, pois já
fizermos o raciocínio, já sabemos o
No desenvolvimento, que é a parte que vamos dizer, por onde começar e
mais longa do trabalho, as ideias como e como terminar.
são apresentadas em função de uma
exigência logica. Essa Só falta encontrar a forma literária
fundamentação logica do tema pode que expresse o mais claramente
ser feita por meio de explicações, possível todo o raciocínio
discussões e demonstrações. desenvolvido até então. E nessa fase
que as fichas de tópicos vão ser de
A conclusão se apresenta como uma grande valia. Devemos, primeiro,
síntese, como o desembocar de toda organizá-las de acordo com a
essa construção logica em algumas sequencia logica do plano de
afirmações ou em novas indagações trabalho. Depois, de ler todo o

13
material e, em seguida, começar a dias, as vezes até mais. Esse tempo
redação, de modo a incluir essas nos permite um distanciamento de
informações. tudo o que descobrimos durante o
processo de elaboração do trabalho.
Devemos lembrar que não é nenhuma
vergonha usar pequenos trechos de Só então poderemos voltar ao texto
textos de outros autores. Alguém já redigido e considera-lo com maior
disse o que temos a dizer, objetividade, para saber se
certamente podemos citá-los. O que realmente conseguimos expressar
não podemos nos esquecer é de todas as nossas ideias de uma forma
indicar que é uma citação e qual é clara para o leitor. Esse é o
a fonte da mesma. Sempre que momento de efetuar a revisão do
utilizamos, no nosso trabalho, conteúdo, buscando falhas logicas,
textos de outros autores, devemos de forma e de redação.
copia-los entre aspas,
Agora, só falta a elaboração das
literalmente, sem nenhuma
referências bibliográficas. A
alteração, e, logo após fechar as
partir do levantamento das fontes
aspas, colocar entre parênteses e
de informação feito na segunda etapa
com letras maiúsculas o sobrenome
do trabalho, iremos separar os
do autor.
livros, os artigos e documentos, os
As demais informações sobre a obra sites consultados e efetivamente
aparecerão nas referencias utilizados. Eles serão organizados
bibliográficas. Quando citamos por ordem alfabética a partir do
varias obras do mesmo autor, além sobrenome do autor e apresentados
do sobrenome, indicaremos o ano de segundo as normas já dadas no tópico
publicação, para que os sobre levantamento das fontes de
interessados possam consultar o informação.
texto original. A nota do rodapé
serve a outros objetivos: Introdução
esclarecimento de um ponto da A quem pretenda tratar a história
questão: colocações diferentes a da filosofia impõe-se imediatamente
respeito do assunto: comentários do uma observação preliminar: embora
autor que não caibam no corpo do ela ofereça sumo interesse quando o
trabalho. Para inseri-la no texto, seu objeto for considerado de modo
basta colocar um pequeno numero condigno com a sua dignidade, no
elevado no lugar adequado e o mesmo entanto nunca perde o interesse,
numero no pé da pagina (rodapé) em mesmo quando a sua finalidade seja
que faremos os esclarecimentos compreendida às avessas. Pode até
desejados. afigurar-se que este interesse
Concluída essa primeira redação do aumente em importância na medida em
trabalho ou rascunho, devemos que a concepção da filosofia se
deixa-la esquecida por alguns três torna mais errada, devido à

14
contribuição da história da distintivo ou, se quisermos, uma
filosofia, visto que da história da desvantagem: admite as mais
filosofia se tira a prova principal variadas concepções no que respeita
da nulidade desta ciência. Deve-se ao seu conteúdo e função.
admitir incontestavelmente que uma
E se este primeiro pressuposto, a
história, seja qual for o seu
concepção do argumento da história,
objeto, conte os fatos sem intenção
não ficar bem assente, todo o
de que prevaleça um interesse ou fim
edifício da história se ressentirá;
particular. Mas com a banalidade de
só alcançará estabilidade quando e
semelhante exigência pouco se
na medida em que pressupuser
adiantará, visto que a história dum
determinada concepção; mas, nesse
assunto está intimamente conexa com
caso, dificilmente escapará à nota
a concepção que dela se faça. Por
de unilateral, por não atender às
essa concepção se determina o que
concepções alheias ao próprio
se reputa importante e
argumento. A desvantagem apontada
correspondente ao fim, e a relação
refere-se apenas a uma consideração
entre os estados intermédios e o fim
exterior relativa à tratação
implica uma seleção dos fatos que
histórica; mas com ela prende-se
se devem mencionar, uma maneira de
outra desvantagem mais grave. Há
os compreender e o critério que os
conceitos diversos da ciência da
há de ajuizar. Assim, por exemplo,
filosofia; todavia, só o conceito
pode acontecer que um leitor, tendo
genuíno nos habilita a compreender
formado uma concepção acerca do que
as obras dos filósofos que
é verdadeiramente um estado, não
trabalharem sob a égide desse
consiga descortiná-la verificada na
conceito. Com efeito, no
história política dum país. Casos
pensamento, e especialmente no
idênticos dão-se, e em maior número,
pensamento especulativo, o
na história da filosofia; e podem
compreender significa algo diverso
citar-se exposições desta história,
de captar o mero sentido gramatical
nas quais se encontra tudo menos
das palavras e de acolher em si
aquilo que entendemos por
apenas a representação do mesmo.
filosofia. Nas restantes histórias
Podemos conhecer as asserções, as
é incontestável a concepção do
proposições ou, se se quiser, as
argumento das mesmas, ao menos nas
opiniões dos filósofos; podemos
suas linhas principais, quer seja
atarefar-nos excessivamente em
determinado país, quer um povo, ou
volta dos fundamentos e deduções
a humanidade em geral, ou então a
dessas opiniões — sem, no entanto,
ciência da matemática, da física, e
lobrigar o essencial, a saber, a
assim por diante, ou uma arte, a
compreensão das proposições.
pintura, etc. Mas a ciência da
filosofia, em confronto com as Não faltam volumosas e eruditas
demais ciências, apresenta um histórias da filosofia, que pecam

15
por falta de conhecimento da matéria acabamos de dizer acerca da própria
pela qual tanto se afadigam. Os filosofia.
autores dessas histórias
As considerações que nesta
assemelham-se a animais que
Introdução fizermos não constituem
tivessem ouvido todos os sons de uma
tanto um princípio que
música, mas que não tivessem
preventivamente se deva
percebido o mais importante, a
estabelecer, quanto um princípio
harmonia desses sons. A nenhuma das
que será justificado e provado pela
ciências mencionadas é tão
sequência da exposição. E este só
necessário, como à história da
motivo basta para não situar as
filosofia, antepor à exposição do
explicações preliminares na
assunto uma Introdução, em que,
categoria de pressupostos
primeiro que tudo, se defina bem o
arbitrários. A exposição preliminar
objeto cuja história se pretenda
de tais pressupostos, sejam eles
escrever. De fato, como iniciar o
muito embora essencialmente
estudo duma disciplina, sem
resultados, como se prova pela
conhecer a primor o seu significado?
ulterior justificação dos mesmos,
Procedendo deste modo, ao compor a
oferece ao menos o interesse que dá
história da filosofia, limitar-nos-
menção preambular do conteúdo geral
emos a investigar e a reunir tudo o
duma ciência pode advir: serve para
que em qualquer lugar e tempo tenha
desembaraçar o caminho de muitas
o nome de filosofia. Mas, pela
questões e perguntas que por comuns
simples determinação do conceito da
prejuízos se podem fazer a uma
filosofia, não de modo arbitrário,
história deste gênero. A primeira
senão científico, tal estudo
idéia que em nosso espírito surge
converte-se na própria ciência da
ao tratar a história da filosofia é
filosofia, pois está apresenta a
que o objeto desta contém já uma
característica de só aparentemente
interna contradição, visto que a
se iniciar o seu estudo pelo
filosofia se propõe compreender o
conceito; só o estudo, ou a
que é imutável, eterno, em si e por
tratação, por inteiro, desta
si:
ciência dá a explicação, e melhor
ainda, a descoberta do conceito O seu fim é a verdade. A história,
dela; e este conceito é pelo contrário, aspira a contar
essencialmente o resultado da aquilo que existiu um tempo, e
tratação. Nesta Introdução deve-se noutro tempo deixou de existir, por
focar, de entrada, o conceito da ter dado lugar a qualquer outra
ciência da filosofia e do objeto da coisa. Mas, se, por outro lado, tem
sua história. Lembramos, ao mesmo história, uma vez que esta história
tempo, que se aplica a esta não é mais do que a representação
Introdução, apenas respeitante à duma série sucessiva de formas
história da filosofia, tudo quanto passadas do conhecimento, a verdade

16
não pode encontrar-se nesta doutrina cristã, esta, embora não
sucessão histórica, porque a sendo privada de história,
verdade não é coisa que passa. necessariamente alcançou depressa o
Poder-se-ia dizer que este seu desenvolvimento e assumiu
argumento geral vale não só para expressão imutável. Esta vetusta
todas as demais ciências, mas de confissão de fé, válida para todos
modo análogo para a própria religião os tempos, deve permanecer
cristã, e poder-se-ia encontrar invariável também hoje como a
contraditório que exista uma verdade, ainda mesmo que tal valor
história da religião como das outras ficasse reduzido a coisa muito
ciências: mas é supérfluo diminuta e as suas palavras não
aprofundar demasiado semelhante exprimissem senão uma fórmula
raciocínio que tem a sua refutação vazia. A história desta doutrina
imediata no fato de existirem tais no seu âmbito mais largo compreende
histórias. dois elementos: por um lado, as
várias adjunções a esta verdade
Pelo que, para bem penetrar o
fixada como imutável, e os vários
sentido desta contradição, importa
desvios desta mesma verdade: por
distinguir a história das
outro lado, a luta contra estes
vicissitudes externas duma religião
abastardamentos, e as tentativas de
e duma ciência e a história do
a purificar das escórias pela volta
objeto da religião e da própria
à simplicidade originária. As
ciência. Além disso, não há
outras ciências, compreendendo a
necessidade de descurar a diferença
filosofia, possuem história
que contra distingue, pela natureza
exterior como a religião. A
especial do seu objeto, a história
filosofia tem uma história da sua
da filosofia dos restantes domínios
origem, da sua difusão, do seu ponto
do saber: é evidente que a
culminante, da sua decadência e do
contradição apontada não diz
seu renascimento; além disso, uma
respeito apenas àquela história
história dos seus mestres, dos seus
externa, mas sim à interna, isto é,
fautores e também dos seus
à história do próprio conteúdo. O
adversários; finalmente, uma
cristianismo tem uma história da sua
história das suas relações externas
difusão, da vida dos seus sequazes,
com a religião e, uma vez por outra,
etc.: isto, pelo fato de ter
com o Estado. Este aspecto da sua
concretizado a própria existência
história dá origem a interessantes
na Igreja, fez que está Igreja
problemas. Entre outros, poder-se-
constituísse determinada vida
ia perguntar por que motivo a
exterior sujeita a diferentes
filosofia, que é doutrina da verdade
variações temporais, a multiformes
absoluta, aparece limitada a um
vicissitudes, de maneira a possuir
número relativamente exíguo de
verdadeiramente uma história. Mas,
personalidades e só em determinados
no que concerne exclusivamente à

17
povos e em particulares períodos de contingente, e que por isso mesmo
tempo. são simplesmente históricos.

De modo análogo, com respeito ao As demais ciências, pelo contrário,


cristianismo, como verdade expressa possuem uma história, mesmo
numa forma mais geral do que a relativamente ao conteúdo de cada
filosófica, levantou-se a objeção uma delas: uma parte dessa história
se não será contraditório o fato de refere as variações deste conteúdo,
esta religião ter surgido tão tarde o abandono de certas teses que a
no tempo e ter permanecido durante princípio haviam sido consideradas
tantos séculos e até nossos dias de bom quilate.
confinada a povos especiais. Estas
Mas grande parte, talvez até a maior
questões afins são de natureza
parte do conteúdo conservou-se de
demasiado singular para poderem
sorte que este caso não constitui
depender da contradição geral
variação das conquistas anteriores,
apontada; só quando se nos tornar
mas antes um acréscimo ou aumento:
mais familiar a natureza específica
estas ciências progridem por
do conhecimento filosófico,
justaposição. É certo que algumas
estaremos habilitados para examinar
noções, graças ao progresso da
com maior profundidade as questões
mineralogia, da botânica, etc., se
que se relacionam com a existência
retificaram; a maior parte, porém,
e a história exterior da filosofia.
manteve-se e enriqueceu-se, sem
Quanto ao confronto entre história
mudar, com as novas conquistas. Para
da religião e história da filosofia
uma ciência como a matemática, a
no que respeita ao conteúdo interno
história, no que respeita ao
duma e doutra, note-se
conteúdo, não visa senão a registrar
imediatamente que não se atribui à
acréscimos, e a geometria
filosofia um conteúdo de verdade
elementar, tal como foi criada por
fixa e imutável desde o princípio,
Euclides e a partir dele, pode
e, portanto, subtraída à história,
considerar-se como ciência
como sucede com a religião. O
desprovida de história. Pelo
conteúdo do cristianismo, que é
contrário, a história da filosofia
verdade enquanto tal, permaneceu
não ostenta nem a persistência dum
invariado, e por esse motivo não tem
conteúdo simples e completo, nem o
história ou a sua história se reduz
processo dum pacífico aumento de
ao mínimo. Donde se segue que da
novos tesouros aos anteriormente
religião, à base da definição
conquistados. Por outro lado, a quem
fundamental pela qual é
ela parecesse oferecer o espetáculo
cristianismo, está ausente a
de mutações do conjunto que sempre
contradição indicada. Nem oferecem
se renovam, de maneira que no fim
dificuldade os desvios e acréscimos
nem sequer estivéssemos ligados
sucessivos dotados de caráter
pelo propósito de alcançar uma meta

18
comum: o próprio objeto abstrato, o ações contingentes. Repare-se que o
conhecimento racional, desvanecer- conteúdo da filosofia não é dado nem
se-ia, e o edifício da ciência por ações exteriores nem pelas
deveria pôr fim dividir com a casa ocorrências das paixões e da
deserta a pretensão e o nome fortuna, mas sim pelas idéias. Mas
doravante balofo da filosofia. as idéias contingentes não são mais
do que opiniões filosóficas, e
denominam-se precisamente opiniões
I. Idéias comuns relativas à filosóficas as que dizem respeito
História da Filosofia aos objetos próprios da filosofia,
Devemos agora mencionar e retificar quer dizer, Deus, a natureza, o
aquelas idéias superficiais comuns espírito. Neste ponto esbarramos
que são correntes em volta da imediatamente na tradicional
história da filosofia. A respeito concepção da filosofia como
de tais opiniões, certamente exposição dum número de opiniões
conhecidas dos ouvintes, visto filosóficas acompanhadas da
serem as primeiras que se oferecem investigação do modo como se
ao espírito, limitar-me-ei por ora formaram e do modo como se
a dizer em poucas palavras apenas desenvolveram no tempo.
aquilo que me ocorre; em seguida, Um material assim recolhido pode
as explicações, que teremos de dar chamar-se, se o quisermos
sobre a diversidade das filosofias, considerar benignamente, complexo
facultar-nos-ão o aprofundar melhor de opiniões; mas se, pelo contrário,
este argumento. o quisermos considerar mais
a) A História da Filosofia como profundamente, exposição de
galeria de opiniões loucuras, ou pelo menos de erros de
homens que se engolfaram no
À primeira vista, a história pensamento e nos conceitos puros.
compreende, na sua tarefa, a
narração de acontecimentos Tal opinião é expressa não somente
acidentais dos tempos, dos povos e por aqueles que admitem a sua
dos indivíduos, contingentes tanto ignorância em filosofia (entenda-se
no que se refere ao desenrolar dos que o admitir essa ignorância não
mesmos no tempo como também ao seu os impede de abertamente emitir
conteúdo. Da sua contingência, a juízos em matéria de filosofia,
respeito do tempo, falaremos mais visto como cada qual se julga capaz
tarde. de discutir sobre o valor e sobre a
essência da filosofia sem dela
O conceito, de que pretendemos perceber patavina), mas é também
ocupar-nos antes de mais nada, diz aceite por muitos que escrevem ou
respeito à contingência do escreveram a história da filosofia.
conteúdo, ou seja, o conceito das Uma história assim redigida, que não

19
passe de pura enumeração de histórias da filosofia que expõem e
opiniões, não constitui senão um tratam as idéias da filosofia como
objeto de inútil curiosidade ou, se fossem opiniões deixam
quando muito, de investigação imediatamente transparecer a sua
erudita, uma vez que a erudição aridez e incapacidade de suscitar o
consiste em saber quantidade de interesse. Uma opinião é uma
coisas inúteis desprovidas de representação subjetiva, um
interesse intrínseco, a não ser o pensamento qualquer, uma fantasia
interesse de serem conhecidas. que eu posso ter dum modo e outros
de outro modo; uma opinião é coisa
minha, nunca é uma idéia universal
Patavina significa do nada" ou
"coisa alguma. que exista em si e por si. Mas a
filosofia não contém nenhuma
opinião, porque não existem
Defendemos, por outro lado, que não opiniões filosóficas. Descobrimos
é destituído de toda utilidade o imediatamente a falta de cultura
aplicar-se a conhecer as opiniões e fundamental quando um escritor,
pensamentos alheios, na medida em ainda mesmo que se trate dum
que este exercício estimula a historiador da filosofia, se atreve
energia da mente, sugere alguma boa a falar de opiniões filosóficas. A
idéia, e do choque das várias filosofia é a ciência objetiva da
opiniões faz nascer uma nova verdade, é a ciência da sua
opinião: pois que a ciência necessidade: é conhecer por
consistiria precisamente neste conceitos, não é opinar nem deduzir
evoluir duma opinião para outra. Se uma opinião de outra. O ulterior
a história da filosofia mais não significado próprio de tal modo de
fosse do que uma galeria de opiniões ver leva a considerar a história da
sobre Deus e sobre a essência das filosofia somente como opiniões que
coisas naturais e espirituais, nela se referem, empenhando-se em
teríamos de a declarar ciência vincar bem o termo opinião. Ora, o
supérflua e fastidiosa, por maior oposto da opinião é precisamente a
que fosse a utilidade derivada do verdade, e diante da verdade
exercício do pensamento e da empalidece a opinião. A palavra
erudição. verdade é justamente o que assusta
aqueles que na história da filosofia
fastidiosa, monótono, buscam apenas opiniões ou estão
fatigante e tedioso. persuadidos de que nela nada mais
se pode encontrar além de opiniões.

Que coisa pode haver de mais inútil


do que aplicar-se a conhecer uma Ulterior, significa > Posterior;
sequência de opiniões já gastas? Que que está, se faz ou acontece

coisa mais indiferente? Todas as

20
depois; num momento ao mesmo tempo, está volta-se contra
seguinte
a razão e é inimiga da razão. Esta
assim chamada razão dá maior valor,
A filosofia encontra oposições de em contraste com a verdadeira, ao
dois lados: dum lado, o pietismo sentimento ou pressentimento
declara, como é sabido, que a razão interior, e desta maneira o
e o pensamento, enquanto não estão subjetivo torna-se a medida do
em condições de conhecer a verdade, valor, isto é, uma opinião
conduzem apenas para o abismo da individual como cada qual é capaz
dúvida; pelo que, para alcançar a de formar.
verdade, importa renunciar à Tal convicção individual não é,
autonomia do pensamento e opor a portanto, mais do que a opinião, a
razão à cega fé autoritária. Das qual assim se converte na mais alta
relações entre a religião e a finalidade para os homens. Para
filosofia e da sua história começar pelo que se impõe à nossa
falaremos mais abaixo. atenção, não podemos deixar de tomar
imediatamente em consideração
o pietismo é a afirmação da semelhante concepção na história da
superioridade da fé sobre a filosofia, o resultado da qual
razão. Autonomia é lei compenetrou toda a nossa cultura e
própria. forma, ao mesmo tempo, o preconceito
e o autêntico sinal da nossa época:
é este o princípio em que os homens
Do outro lado, é igualmente sabido
se compreendem e reconhecem
que a assim chamada razão tinha
reciprocamente, um pressuposto que
feito valer os seus direitos e
se não discute e sobre o qual se
rejeitado a fé baseada na
apoia qualquer outra atividade
autoridade, esforçando-se em tornar
científica. Na teologia não é tanto
racional o cristianismo, de modo que
o credo da Igreja que vale como
eu seja obrigado a reconhecer
doutrina do cristianismo, mas cada
somente aquilo que obtém o
qual mais ou menos forja para si uma
assentimento do meu intelecto e da
doutrina cristã própria segundo a
minha convicção. Mas, e é curioso
sua convicção. Outras vezes vemos a
dizê-lo, também esta afirmação do
teologia tratada historicamente,
direito da razão produziu efeito
assinando à ciência teológica a
contrário, isto é, o resultado que
tarefa de conhecer as várias
a razão não está em condições de
opiniões, um dos primeiros frutos
conhecer qualquer parcela de
de tal conhecimento deveria ser o
verdade.
reconhecimento e a estima de toda a
Esta assim chamada razão combate, convicção, considerando-a como
por um lado, a fé religiosa em nome qualquer coisa de exclusivamente
e por virtude da razão pensante; e, individual.

21
Mas também neste caso foi abandonado além: sabemos que se não pode falar
o escopo de reconhecer a verdade. de conhecimento da verdade; é ilusão
Indiscutivelmente, a convicção que já vencemos.
individual é o fato último e
absolutamente essencial que a razão
O que significa Epicurismo? é
e a sua filosofia, do ponto de vista um sistema filosófico, que
subjetivo, reclamam para o prega a procura dos prazeres
conhecimento. Existe, porém, moderados para atingir um
estado de tranquilidade e de
diferença entre a convicção baseada
libertação do medo, com a
em estados subjetivos — isto é, ausência de sofrimento
sentimentos, aspirações, intuições, corporal pelo conhecimento do
etc. — e a convicção que brota do funcionamento do mundo e da
limitação dos desejos. doutrina
pensamento e da compreensão do
do filósofo grego Epicuro (341-
conceito e da natureza do objeto. 270 a.C.)
No primeiro caso, a convicção não
passa de mera opinião. Esta oposição
entre opinião e verdade, que se Quem assim fala passou, de fato,
delineou claramente, encontramo-lo para além da verdade. Se olharmos a
já na cultura do período socrático- história da filosofia desde este
platônico (período de decadência da ponto de vista, toda a sua tarefa
vida grega), como o antagonismo se reduz à investigação das idéias
revelado por Platão entre opinião especiais de todos os autores,
(dóxa) e ciência (epistéme). diversas umas das outras. Estas
características individuais são
para mim algo de estranho e não põem
O que significa antagonismo? em livre atividade a minha razão
Oposição, ação em sentido
contrário.
pensante, que permanece ausente; é
matéria histórica, exterior, morta,
conglobada de coisas vãs; e o
Idêntica oposição topamos ao tempo contentar-se com coisas vãs não é
da decadência da vida pública e mais do que vaidade subjetiva. Para
política romana, no reinado de o homem franco a verdade permanecerá
Augusto e mais tarde quando sempre uma palavra de suma
campeavam triunfantes o epicurismo importância. No que respeita,
e a indiferença em matéria portanto, ao asserto de que a
filosófica. Neste sentido, quando verdade não se pode conhecer,
Cristo disse: Eu vim ao mundo para teremos ocasião de o discutir quando
dar testemunho da verdade, Pilatos se apresentar no curso de filosofia;
responde: Que é a verdade? A por ora, limitar-nos-emos a indicar
resposta é dada com ares de que, se se aceita este
superioridade e significa: sabemos
pressuposto, como faz por exemplo
bem o que é essa verdade: uma coisa
Tennemann, não se pode compreender
que conhecemos; mas fomos ainda

22
por que motivo o homem se ocupa existe verdade e por quê? Quando
ainda de filosofia, desde que toda existe ilusão e por quê? Se, em vez
opinião pretende falsamente possuir de falar na subjetividade dos
a verdade. Aqui, provisoriamente, namorados, inquirisse: O que é o
admito por verdadeiro o velho lugar- amor? O que é o desejo? O que são
comum que a verdade consiste no os sentimentos? Se, em lugar de
saber, mas que da verdade apenas se discorrer tranquilamente sobre
sabe aquilo sobre que se exerceu a “maior” e “menor” ou “claro”
reflexão, não por instinto natural; e “escuro”, resolvesse
que a verdade não pode ser investigar: O que é a quantidade? O
reconhecida por imediata intuição que é a qualidade?
ou visão, ainda mesmo que esta seja
exterior e sensível (visto que toda
O que é a objetividade? A
a visão como tal é sensível), mas objetividade é uma qualidade
unicamente por meio do trabalho do atribuída a algo ou a alguém
pensamento. que é direto em suas ações,
sem perder tempo com
b. A atitude filosófica especulações ou subterfúgios.

Imaginemos, agora, alguém que


tomasse uma decisão muito estranha E se, em vez de afirmar que gosta
e começasse a fazer perguntas de alguém porque possui as mesmas
inesperadas. Em vez de “que horas idéias, os mesmos gostos, as mesmas
são?” ou “que dia é hoje?”, preferências e os mesmos valores,
perguntasse: O que é o tempo? Em vez preferisse analisar: O que é um
de dizer “está sonhando” ou valor? O que é um valor moral? O que
“ficou maluca”, quisesse saber: O é um valor artístico? O que é a
que é o sonho? A loucura? A razão? moral? O que é a vontade? O que é a
Se essa pessoa fosse substituindo liberdade?
sucessivamente suas perguntas, suas
Alguém que tomasse essa decisão,
afirmações por outras: “Onde há
estaria tomando distância da vida
fumaça, há fogo”, ou “não saia na
cotidiana e de si mesmo, teria
chuva para não ficar resfriado”,
passado a indagar o que são as
por: O que é causa? O que é efeito?
crenças e os sentimentos que
“seja objetivo”, ou “eles são
alimentam, silenciosamente, nossa
muito subjetivos”, por: O que é a
existência.
objetividade? “Esta casa é mais
bonita do que a outra”, por: O que Ao tomar essa distância, estaria
é “mais”? O que é “menos”? O que interrogando a si mesmo, desejando
é o belo? Em vez de gritar conhecer por que cremos no que
“mentiroso!”, questionasse: O que cremos, por que sentimos o que
é a verdade? O que é o falso? O que sentimos e o que são nossas crenças
é o erro? O que é a mentira? Quando e nossos sentimentos.

23
Esse alguém estaria começando a A Filosofia começa dizendo não às
adotar o que chamamos de atitude crenças e aos preconceitos do senso
filosófica. Assim, uma primeira comum e, portanto, começa dizendo
resposta à pergunta “O que é que não sabemos o que imaginávamos
Filosofia?” poderia ser: A decisão saber; por isso, o patrono da
de não aceitar como óbvias e Filosofia, o Grego Sócrates,
evidentes as coisas, as idéias, os afirmava que a primeira e
fatos, as situações, os valores, os fundamental verdade filosófica é
comportamentos de nossa existência dizer: “Sei que nada sei”. Para o
cotidiana; jamais aceitá-los sem discípulo de Sócrates, o filósofo
antes havê-los investigado e grego Platão, a Filosofia começa
compreendido. Perguntaram, certa com a admiração; já o discípulo de
vez, a um filósofo: “Para que Platão, o filósofo Aristóteles,
Filosofia?”. E ele respondeu: acreditava que a Filosofia começa
“Para não darmos nossa aceitação com o espanto. Admiração e espanto
imediata às coisas, sem maiores significam: tomamos distância do
considerações”. nosso mundo costumeiro, através de
nosso pensamento, olhando-o como se
c. A atitude crítica
nunca o tivéssemos visto antes, como
A primeira característica da se não tivéssemos tido família,
atitude filosófica é negativa, isto amigos, professores, livros e
é, um dizer não ao senso comum, aos outros meios de comunicação que nos
pré-conceitos, aos pré-juízos, aos tivessem dito o que o mundo é; como
fatos e às idéias da experiência se estivéssemos acabando de nascer
cotidiana, ao que “todo mundo diz para o mundo e para nós mesmos e
e pensa”, ao estabelecido. A precisássemos perguntar o que é, por
segunda característica da atitude que é e como é o mundo, e
filosófica é positiva, isto é, uma precisássemos perguntar também o
interrogação sobre o que são as que somos, por que somos e como
coisas, as idéias, os fatos, as somos.
situações, os comportamentos, os
d. Para que Filosofia?
valores, nós mesmos. É também uma
interrogação sobre o porquê disso Ora, muitos fazem uma outra
tudo e de nós, e uma interrogação pergunta: afinal, para que
sobre como tudo isso é assim e não Filosofia? É uma pergunta
de outra maneira. O que é? interessante. Não vemos nem ouvimos
Por que é? Como é? Essas são as ninguém perguntar, por exemplo,
indagações fundamentais da atitude para que matemática ou física? Para
filosófica. A face negativa e a face que geografia ou geologia? Para que
positiva da atitude filosófica história ou sociologia? Para que
constituem o que chamamos de atitude biologia ou psicologia? Para que
crítica e pensamento crítico. astronomia ou química? Para que

24
pintura, literatura, música ou conhecimentos verdadeiros, obtidos
dança? Mas todo mundo acha muito graças a procedimentos rigorosos de
natural perguntar: pensamento; pretendem agir sobre a
realidade, através de instrumentos
Em geral, essa pergunta costuma
e objetos técnicos; pretendem fazer
receber uma resposta irônica,
progressos nos conhecimentos,
conhecida dos estudantes de
corrigindo-os e aumentando-os. Ora,
Filosofia: “A Filosofia é uma
todas essas pretensões das ciências
ciência com a qual e sem a qual o
pressupõem que elas acreditam na
mundo permanece tal e qual”, ou
existência da verdade, de
seja, a Filosofia não serve para
procedimentos corretos para bem
nada. Por isso, se costuma chamar
usar o pensamento, na tecnologia
de “filósofo” alguém sempre
como aplicação prática de teorias,
distraído, com a cabeça no mundo da
na racionalidade dos conhecimentos,
lua, pensando e dizendo coisas que
porque podem ser corrigidos e
ninguém entende e que são
aperfeiçoados. Verdade, pensamento,
perfeitamente inúteis. Essa
procedimentos especiais para
pergunta, “Para que Filosofia?”,
conhecer fatos, relação entre
tem a sua razão de ser. Em nossa
teoria e prática, correção e acúmulo
cultura e em nossa sociedade,
de saberes: tudo isso não é ciência,
costumamos considerar que alguma
são questões filosóficas. O
coisa só tem o direito de existir
cientista parte delas como questões
se tiver alguma finalidade prática,
já respondidas, mas é a Filosofia
muito visível e de utilidade
quem as formula e busca respostas
imediata. Por isso, ninguém
para elas. Assim, o trabalho das
pergunta para que as ciências, pois
ciências pressupõe, como condição,
todo mundo imagina ver a utilidade
o trabalho da Filosofia, mesmo que
das ciências nos produtos da
o cientista não seja filósofo.
técnica, isto é, na aplicação
científica à realidade. Todo mundo No entanto, como apenas os
também imagina ver a utilidade das cientistas e filósofos sabem disso,
artes, tanto por causa da compra e o senso comum continua afirmando que
venda das obras de arte, quanto a Filosofia não serve para nada.
porque nossa cultura vê os artistas Para dar alguma utilidade à
como gênios que merecem ser Filosofia, muitos consideram que,
valorizados para o elogio da de fato, a Filosofia não serviria
humanidade. Ninguém, todavia, para nada, se “servir” fosse
consegue ver para que serviria a entendido como a possibilidade de
Filosofia, donde dizer-se: não fazer usos técnicos dos produtos
serve para coisa alguma. Parece, filosóficos ou dar-lhes utilidade
porém, que o senso comum não enxerga econômica, obtendo lucros com eles;
algo que os cientistas sabem muito consideram também que a Filosofia
bem. As ciências pretendem ser nada teria a ver com a ciência e a

25
técnica. Para quem pensa dessa pois as perguntas filosóficas - o
forma, o principal para a Filosofia que, por que e como - permanecem.
não seriam os conhecimentos (que
ficam por conta da ciência), nem as
aplicações de teorias (que ficam por
conta da tecnologia), mas o E. A reflexão filosófica
ensinamento moral ou ético. A
Filosofia seria a arte do bem viver. Reflexão significa movimento de
volta sobre si mesmo ou movimento
Estudando as paixões e os vícios de retorno a si mesmo. A reflexão é
humanos, a liberdade e a vontade, o movimento pelo qual o pensamento
analisando a capacidade de nossa volta-se para si mesmo,
razão para impor limites aos nossos interrogando a si mesmo.
desejos e paixões, ensinando-nos a
viver de modo honesto e justo na A reflexão filosófica é radical
companhia dos outros seres humanos, porque é um movimento de volta do
a Filosofia teria como finalidade pensamento sobre si mesmo para
ensinar-nos a virtude, que é o conhecer-se a si mesmo, para indagar
princípio do bem-viver. Essa como é possível o próprio
definição da Filosofia, porém, não pensamento. Não somos, porém,
nos ajuda muito. De fato, mesmo para somente seres pensantes. Somos
ser uma arte moral ou ética, ou uma também seres que agem no mundo, que
arte do bem-viver, a Filosofia se relacionam com os outros seres
continua fazendo suas perguntas humanos, com os animais, as plantas,
desconcertantes e embaraçosas: O as coisas, os fatos e
que é o homem? O que é à vontade? O acontecimentos, e exprimimos essas
que é a paixão? O que é a razão? O relações tanto por meio da linguagem
que é o vício? O que é a virtude? O quanto por meio de gestos e ações.
que é a liberdade? Como nos tornamos A reflexão filosófica também se
livres, racionais e virtuosos? Por volta para essas relações que
que a liberdade e a virtude são mantemos com a realidade
valores para os seres humanos? O que circundante, para o que dizemos e
é um valor? Por que avaliamos os para as ações que realizamos nessas
sentimentos e as ações humanas? relações.
Assim, mesmo se disséssemos que o A reflexão filosófica organiza-se
objeto da Filosofia não é o em torno de três grandes conjuntos
conhecimento da realidade, nem o de perguntas ou questões:
conhecimento da nossa capacidade
1. Por que pensamos o que pensamos,
para conhecer, mesmo se disséssemos
dizemos o que dizemos e fazemos o
que o objeto da Filosofia é apenas
que fazemos? Isto é, quais os
a vida moral ou ética, ainda assim,
motivos, as razões e as causas para
o estilo filosófico e a atitude
pensarmos o que pensamos, dizermos
filosófica permaneceriam os mesmos,

26
o que dizemos, fazermos o que fraterno, respeito entre os iguais.
fazemos? Sophia quer dizer sabedoria e dela
vem a palavra sophos, sábio.
2. O que queremos pensar quando
Filosofia significa, portanto,
pensamos, o que queremos dizer
amizade pela sabedoria, amor e
quando falamos, o que queremos fazer
respeito pelo saber. Filósofo: o que
quando agimos? Isto é, qual é o
ama a sabedoria, tem amizade pelo
conteúdo ou o sentido do que
saber, deseja saber. Assim,
pensamos, dizemos ou fazemos?
filosofia indica um estado de
3. Para que pensamos o que pensamos, espírito, o da pessoa que ama, isto
dizemos o que dizemos, fazemos o que é, deseja o conhecimento, a estima,
fazemos? Isto é, qual é a intenção a procura e o respeita.
ou a finalidade do que pensamos,
Atribui-se ao filósofo grego
dizemos e fazemos? Essas três
Pitágoras de Samos (que viveu no
questões podem ser resumidas em: O
século V antes de Cristo) a invenção
que é pensar, falar e agir? E elas
da palavra filosofia. Pitágoras
pressupõem a seguinte pergunta:
teria afirmado que a sabedoria
Nossas crenças cotidianas são ou não
plena e completa pertence aos
um saber verdadeiro, um
deuses, mas que os homens podem
conhecimento? Como vimos, a atitude
desejá-la ou amá-la, tornando-se
filosófica inicia-se indagando:
filósofos. Dizia Pitágoras que três
O que é? Como é? Por que é? tipos de pessoas compareciam aos
dirigindo-se ao mundo que nos rodeia jogos olímpicos (a festa mais
e aos seres humanos que nele vivem importante da Grécia): as que iam
e com ele se relacionam. São para comerciar durante os jogos, ali
perguntas sobre a essência, a estando apenas para servir aos seus
significação ou a estrutura e a próprios interesses e sem
origem de todas as coisas. Já a preocupação com as disputas e os
reflexão filosófica indaga: Por torneios; as que iam para competir,
quê? O quê? Para quê? dirigindo-se isto é, os atletas e artistas (pois,
ao pensamento, aos seres humanos no durante os jogos também havia
ato da reflexão. São perguntas sobre competições artísticas: dança,
a capacidade e a finalidade humanas poesia, música, teatro);
para conhecer e agir.
E as que iam para contemplar os
Capítulo 1 jogos e torneios, para avaliar o
desempenho e julgar o valor dos que
A origem da Filosofia
ali se apresentavam. Esse terceiro
A palavra filosofia é grega. É tipo de pessoa, dizia Pitágoras, é
composta por duas outras: philo e como o filósofo. Com isso, Pitágoras
sophia. Philo deriva-se de philia, queria dizer que o filósofo não é
que significa amizade, amor movido por interesses comerciais -

27
não coloca o saber como propriedade características, apresenta certas
sua, como uma coisa para ser formas de pensar e de exprimir os
comprada e vendida no mercado; pensamentos, estabelece certas
também não é movido pelo desejo de concepções sobre o que sejam a
competir - não faz das idéias e dos realidade, o pensamento, a ação, as
conhecimentos uma habilidade para técnicas, que são completamente
vencer competidores ou “atletas diferentes das características
intelectuais”; mas é movido pelo desenvolvidas por outros povos e
desejo de observar, contemplar, outras culturas. Vejamos um
julgar e avaliar as coisas, as exemplo. Os chineses desenvolveram
ações, a vida: em resumo, pelo um pensamento muito profundo sobre
desejo de saber. A verdade não a existência de coisas, seres e
pertence a ninguém, ela é o que ações contrários ou opostos, que
buscamos e que está diante de nós formam a realidade. Deram às
para ser contemplada e vista, se oposições o nome de dois princípios:
tivermos olhos (do espírito) para Yin e Yang. Yin é o princípio
vê-la. feminino passivo na Natureza,
representado pela escuridão, o frio
A Filosofia é grega
e a umidade; Yang é o princípio
A Filosofia, entendida como masculino ativo na Natureza,
aspiração ao conhecimento racional, representado pela luz, o calor e o
lógico e sistemático da realidade seco. Os dois princípios se combinam
natural e humana, da origem e causas e formam todas as coisas, que, por
do mundo e de suas transformações, isso, são feitas de contrários ou
da origem e causas das ações humanas de oposições. O mundo, portanto, é
e do próprio pensamento, é um fato feito da atividade masculina e da
tipicamente grego. Evidentemente, passividade feminina. Tomemos agora
isso não quer dizer, de modo algum, um filósofo grego, por exemplo, o
que outros povos, tão antigos quanto próprio Pitágoras.
os gregos, como os chineses, os
Que diz ele? Que a Natureza é feita
hindus, os japoneses, os árabes, os
de um sistema de relações ou de
persas, os hebreus, os africanos ou
proporções matemáticas produzidas a
os índios da América não possuam
partir da unidade (o número 1 e o
sabedoria, pois possuíam e possuem.
ponto), da oposição entre os números
Também não quer dizer que todos pares e ímpares, e da combinação
esses povos não tivessem entre as superfícies e os volumes
desenvolvido o pensamento e formas (as figuras geométricas), de tal
de conhecimento da Natureza e dos modo que essas proporções e
seres humanos, pois desenvolveram e combinações aparecem para nossos
desenvolvem. Quando se diz que a órgãos dos sentidos sob a forma de
Filosofia é um fato grego, o que se qualidades contrárias: quente-frio,
quer dizer é que ela possui certas seco-úmido, áspero-liso, claro-

28
escuro, grande-pequeno, doce- modo de pensar e de se exprimir
amargo, duro-mole, etc. Para predominante da chamada cultura
Pitágoras, o pensamento alcança a europeia ocidental da qual, em
realidade em sua estrutura decorrência da colonização
matemática, enquanto nossos portuguesa do Brasil, nós também
sentidos ou nossa percepção participamos. Através da Filosofia,
alcançam o modo como a estrutura os gregos instituíram para o
matemática da Natureza aparece para Ocidente europeu as bases e os
nós, isto é, sob a forma de princípios fundamentais do que
qualidades opostas. Qual a chamamos razão, racionalidade,
diferença entre o pensamento chinês ciência, ética, política, técnica,
e o do filósofo grego? O pensamento arte.
chinês toma duas características
Aliás, basta observarmos que
(masculino e feminino) existentes
palavras como lógica, técnica,
em alguns seres (os animais e os
ética, política, monarquia,
humanos) e considera que o Universo
anarquia, democracia, física,
inteiro é feito da oposição entre
diálogo, biologia, cronologia,
qualidades atribuídas a dois sexos
gênese, genealogia, cirurgia,
diferentes, de sorte que o mundo é
ortopedia, pedagogia, farmácia,
organizado pelo princípio da
entre muitas outras, são palavras
sexualidade animal ou humana.
gregas, para percebermos a
O pensamento de Pitágoras apanha a influência decisiva e predominante
Natureza numa generalidade muito da Filosofia grega sobre a formação
mais ampla do que a sexualidade do pensamento e das instituições das
própria a alguns seres da Natureza, sociedades europeias ocidentais. É
e faz distinção entre as qualidades por isso que, em decorrência do
sensoriais que nos aparecem e a predomínio da economia capitalista
estrutura invisível da Natureza, criada pelo Ocidente e que impõe um
que, para ele, é de tipo matemático certo tipo de desenvolvimento das
e alcançada apenas pelo intelecto, ciências e das técnicas, falamos,
ou inteligência. São diferenças por exemplo, em “ocidentalização
desse tipo, além de muitas outras, dos chineses”, “ocidentalização
que nos levam a dizer que existe uma dos árabes”, etc.
sabedoria chinesa, uma sabedoria
Com isso queremos significar que
hindu, uma sabedoria dos índios, mas
modos de pensar e de agir, criados
não há filosofia chinesa, filosofia
no Ocidente pela Filosofia grega,
hindu ou filosofia indígena. Em
foram incorporados até mesmo por
outras palavras, Filosofia é um modo
culturas e sociedades muito
de pensar e exprimir os pensamentos
diferentes daquela onde nasceu a
que surgiu especificamente com os
Filosofia.
gregos e que, por razões históricas
e políticas, tornou-se, depois, o

29
É pelo mesmo motivo que falamos em Veremos em seguida em que sentido
“orientalismos” e podemos dizer isso, e o que nos leva
“orientalistas” para indicar a afirmar que a filosofia nasce em
pessoas que buscam no budismo, no um momento e um lugar tão definidos,
confucionismo, no Yin e no Yang, nos ou até mesmo o que nos permite
mantras, nas pirâmides, nas auras, considerar determinado pensador
nas pedras e cristais maneiras de como o “primeiro filósofo”. Não
pensar e de explicar a realidade, a teria havido pensamento antes de
Natureza, a vida e as ações humanas Tales e desse período de surgimento
que não são próprias ou específicas da filosofia? É claro que sim. Neste
do Ocidente, isto é, são diferentes caso, o que tornaria o tipo de
do padrão de pensamento e de pensamento que afirmamos ter
explicação que foram criados pelos surgido com Tales e seus discípulos
gregos a partir do século VII antes tão especial a ponto de ser
de Cristo, época em que nasce a considerado como inaugurando algo
Filosofia. de novo, a “filosofia”?
Procuraremos, portanto, explicitar
Capitulo 2
as razões pelas quais
Filosofia Antiga tradicionalmente se tem feito esta
caracterização do surgimento do
pensamento filosófico.
As Origens
Os diferentes povos da Antiguidade
1. O surgimento da filosofia na
– assírios e babilônios, chineses e
Grécia antiga.
indianos, egípcios, persas e
1.1. A passagem do pensamento mítico hebreus –, todos tiveram visões
para o filosófico-científico um dos próprias da natureza e maneiras
modos mais simples e menos polêmicos diversas de explicar os fenômenos e
de se caracterizar a filosofia é processos naturais. Só os gregos,
através de sua história: forma de entretanto, fizeram ciência, e é na
pensamento que nasce na Grécia cultura grega que podemos
antiga, por volta do séc. VI a.C. identificar o princípio deste tipo
De fato, podemos considerar tal de pensamento que podemos
caracterização praticamente como denominar, nesta sua fase inicial,
uma unanimidade, o que costuma ser de filosófico-científico. Se
raro entre os historiadores da afirmamos que o conhecimento
filosofia e os especialistas na científico, de cuja tradição somos
área. Aristóteles, no livro I da herdeiros, surge na Grécia por volta
Metafísica, talvez tenha sido o do séc. VI a.C., nosso primeiro
ponto de partida dessa concepção, passo deverá ser procurar entender
chegando mesmo a definir Tales de por que se considera que esse novo
Mileto como o primeiro filósofo. tipo de pensamento aparece aí pela
primeira vez e o que significa essa

30
“ciência” cujo surgimento cronológica é indeterminada, e sua
coincide com a emergência do forma de transmissão é basicamente
pensamento filosófico. Quando oral. O mito é, portanto,
dizemos que o pensamento essencialmente fruto de uma
filosófico-científico surge na tradição cultural e não da
Grécia no séc. VI a.C., elaboração de um determinado
caracterizando-o como uma forma indivíduo. Mesmo poetas como
específica de o homem tentar Homero, com a Ilíada e a Odisseia
entender o mundo que o cerca, isto (séc. IX a.C.), e Hesíodo (séc. VIII
não quer dizer que anteriormente não a.C.), com a Teogonia, que são as
houvesse também outras formas de se principais fontes de nosso
entender essa realidade. É conhecimento dos mitos gregos, na
precisamente a especificidade do verdade não são autores desses
pensamento filosófico-científico mitos, mas indivíduos – no caso de
que tentaremos explicitar aqui, Homero cuja existência é talvez
contrastando-o com o pensamento lendária – que registraram
mítico que lhe antecede na cultura poeticamente lendas recolhidas das
grega. Procuraremos destacar as tradições dos diversos povos que
características básicas de uma e de sucessivamente ocuparam a Grécia
outra forma de explicação do real. desde o período arcaico (c. 1500
a.C.).
O pensamento mítico consiste em uma
forma pela qual um povo explica Por ser parte de uma tradição
aspectos essenciais da realidade em cultural, o mito configura assim a
que vive: a origem do mundo, o própria visão de mundo dos
funcionamento da natureza e dos indivíduos, a sua maneira mesmo de
processos naturais e as origens vivenciar esta realidade. Nesse
deste povo, bem como seus valores sentido, o pensamento mítico
básicos. pressupõe a adesão, a aceitação dos
indivíduos, na medida em que
O mito caracteriza-se sobretudo
constitui as formas de sua
pelo modo como estas explicações são
experiência do real. O mito não se
dadas, ou seja, pelo tipo de
justifica, não se fundamenta,
discurso que constitui. O próprio
portanto, nem se presta ao
termo grego mythos (μυθoσ)
questionamento, à crítica ou à
significa um tipo bastante especial
correção. Não há discussão do mito
de discurso, o discurso ficcional
porque ele constitui a própria visão
ou imaginário, sendo por vezes até
de mundo dos indivíduos
mesmo sinônimo de “mentira”. As
pertencentes a uma determinada
lendas e narrativas míticas não são
sociedade, tendo, portanto, um
produto de um autor ou autores, mas
caráter global que exclui outras
parte da tradição cultural e
perspectivas a partir das quais ele
folclórica de um povo. Sua origem
poderia ser discutido.

31
Ou o indivíduo é parte dessa cultura Na Grécia pode-se dar como exemplo
e aceita o mito como visão de mundo, a religião do orfismo e os mistérios
ou não pertence a ela e, nesse caso, de Elêusis, cujas influências se
o mito não faz sentido para ele, não estendem à escola de Pitágoras e ao
lhe diz nada. A possibilidade de pitagorismo.
discussão do mito, de
É Aristóteles, como dissemos acima,
distanciamento em relação à visão
que afirma ser Tales de Mileto, no
de mundo que apresenta, supõe já uma
séc. VI a.C., o iniciador do
transformação da própria sociedade
pensamento filosófico-científico.
e, portanto, do mito como forma
Podemos considerar que este
reconhecida de se ver o mundo nessa
pensamento nasce basicamente de uma
sociedade. Voltaremos a este ponto
insatisfação com o tipo de
mais adiante.
explicação do real que encontramos
Um dos elementos centrais do no pensamento mítico. De fato, desse
pensamento mítico e de sua forma de ponto de vista, o pensamento mítico
explicar a realidade é o apelo ao tem uma característica até certo
sobrenatural, ao mistério, ao ponto paradoxal.
sagrado, à magia. As causas dos
Se, por um lado, pretende fornecer
fenômenos naturais, aquilo que
uma explicação da realidade, por
acontece aos homens, tudo é
outro lado, recorre nessa
governado por uma realidade
explicação ao mistério e ao
exterior ao mundo humano e natural,
sobrenatural, ou seja, exatamente
superior, misteriosa, divina, a
àquilo que não se pode explicar, que
qual só os sacerdotes, os magos, os
não se pode compreender por estar
iniciados, são capazes de
fora do plano da compreensão humana.
interpretar, ainda que apenas
A explicação dada pelo pensamento
parcialmente. São os deuses, os
mítico esbarra assim no
espíritos, o destino que governam a
inexplicável, na impossibilidade do
natureza, o homem, a própria
conhecimento. É nesse sentido que a
sociedade.
tentativa dos primeiros filósofos
Os sacerdotes, os rituais da escola jônica será buscar uma
religiosos, os oráculos servem como explicação do mundo natural (a
intermediários, pontes entre o physis, φυσιs, daí o nosso
mundo humano e o mundo divino. Os termo “física”) baseada
cultos e sacrifícios religiosos essencialmente em causas naturais,
encontrados nessas sociedades são, o que consistirá no assim chamado
assim, formas de se tentar alcançar naturalismo da escola. A chave da
os favores divinos, de se agradecer explicação do mundo de nossa
esses favores ou de se aplacar a ira experiência estaria então, para
dos deuses. esses pensadores, no próprio mundo,
e não fora dele, em alguma realidade

32
misteriosa e inacessível. O mundo filosófico-científico no séc. VI
se abre, assim, ao conhecimento, à a.C. Basicamente, isso corresponde
possibilidade total de explicação – ao período de decadência da
ao menos em princípio –, à ciência, civilização micênico-cretense na
portanto. O pensamento filosófico- Grécia, por volta do séc. XII a.C,
científico representa assim uma e de sua estrutura baseada em uma
ruptura bastante radical com o monarquia divina em que a classe
pensamento mítico, enquanto forma sacerdotal tinha grande influência
de explicar a realidade. e o poder político era hereditário,
Entretanto, se o pensamento e em uma aristocracia militar e em
filosófico-científico surge por uma economia agrária.
volta do séc.VI a.C., essa ruptura
A partir da invasão da Grécia pelas
com o pensamento mítico não se dá
tribos dóricas vindas provavelmente
de forma completa e imediata. Ou
da Ásia central em torno de 900 a
seja, o surgimento desse novo tipo
750 a.C., começam a surgir as
de explicação não significa o
cidades-estados, nas quais haverá
desaparecimento por completo do
uma participação política mais
mito, do qual aliás sobrevivem
ativa dos cidadãos, e uma
muitos elementos mesmo em nossa
progressiva secularização da
sociedade contemporânea, em nossas
sociedade. A religião vai tendo seu
crenças, superstições, fantasias
papel reduzido, paralelamente ao
etc., isto é, em nosso imaginário.
surgimento de uma nova ordem
O mito sobrevive ainda que vá econômica baseada agora em
progressivamente mudando de função, atividades comerciais e mercantis.
passando a ser antes parte da O pensamento mítico, com seu apelo
tradição cultural do povo grego do ao sobrenatural e aos mistérios, vai
que a forma básica de explicação da assim deixando de satisfazer às
realidade. Contudo, sua influência necessidades da nova organização
permanece, mesmo em escolas de social, mais preocupada com a
pensamento filosófico como o realidade concreta, com a atividade
pitagorismo e na obra de Platão. É política mais intensa e com as
nesse sentido que devemos entender trocas comerciais. É nesse contexto
a permanência da referência aos que o pensamento filosófico-
deuses nos filósofos gregos daquele científico encontrará as condições
período. É claro que essa mudança favoráveis para o seu nascimento. É
de papel do pensamento mítico, bem significativo, portanto, que Tales
como a perda de seu poder de Mileto seja considerado o
explicativo, resulta de um longo primeiro filósofo e que o pensamento
período de transição e de filosófico tenha surgido não nas
transformação da própria sociedade cidades do continente grego como
grega, que tornam possível o Atenas – que terá seu período áureo
surgimento do pensamento posteriormente –, Esparta, Tebas ou

33
Micenas, mas nas colônias gregas do aos interesses pragmáticos, as
Mediterrâneo oriental, no mar Egeu, tradições míticas e religiosas vão
no que é hoje a península da perdendo progressivamente sua
Anatólia na Turquia. importância. Esta é uma hipótese que
parece razoável, de um ponto de
Essas colônias, dentre as quais se
vista histórico e sociológico, e
destacaram Mileto e Éfeso, foram
mesmo geográfico e econômico, para
importantes portos e entrepostos
a explicação do surgimento do tipo
comerciais, ponto de encontro das
de pensamento inaugurado por Tales
caravanas provenientes do Oriente –
e pela chamada Escola de Mileto,
Mesopotâmia, Pérsia, talvez mesmo
naquele momento e naquele contexto.
Índia e China –, que para lá levavam
Passemos agora a examinar algumas
suas mercadorias que eram
das características centrais desse
embarcadas e transportadas para
tipo de pensamento, encontradas não
outros pontos do Mediterrâneo que
só na Escola de Mileto, mas
os gregos cruzavam com suas
praticamente, embora com
embarcações. Ora, por esse motivo
diferenças, em quase todos os
mesmo, nessas cidades conviviam
pensadores daquele período (sécs.
diferentes culturas, e de forma
VI-V a.C.), os assim chamados
harmoniosa, pois o interesse
filósofos pré-socráticos, por terem
comercial fazia com que os povos que
vivido antes de Sócrates.
aí se encontravam, sobretudo os
gregos fundadores das cidades, 1.2. Noções Fundamentais do
fossem bastante tolerantes. As Pensamento Filosófico Cientifico.
colônias gregas do mar Jônico eram
A principal contribuição desses
então cidades cosmopolitas onde
primeiros pensadores ao
reinava um certo pluralismo
desenvolvimento do pensamento
cultural, com a presença de diversas
filosófico, e podemos dizer também
línguas, tradições, cultos e mitos.
científico, encontra-se em um
É possível, assim, que a influência conjunto de noções que tentam
de diferentes tradições míticas explicar a realidade e que
tenha levado à relativização dos constituirão em grande parte, como
mitos. O caráter global, absoluto, veremos, alguns dos conceitos
da explicação mítica teria se básicos das teorias sobre a natureza
enfraquecido no confronto entre os que se desenvolverão a partir de
diferentes mitos e tradições, então.
revelando-se assim sua origem
Embora essas noções sejam ainda um
cultural: o fato de que cada povo
tanto imprecisas, já que se trata
tem sua forma de ver o mundo, suas
do momento mesmo de seu surgimento,
tradições e seus valores.
podemos dizer que a filosofia e a
Ao mesmo tempo, em uma sociedade ciência têm aí o seu início em nossa
dedicada às práticas comerciais e tradição cultural. Veremos como, de

34
certa forma, essas noções a forma básica da explicação
constituem o ponto de partida de uma científica e é, em grande parte, por
visão de mundo que, apesar das esse motivo que consideramos as
profundas transformações ocorridas, primeiras tentativas de elaboração
permanece parte de nossa maneira de de teorias sobre o real como o
compreender a realidade ainda hoje. início do pensamento científico.
Isso quer dizer que podemos Explicar é relacionar um efeito a
reconhecer nesses pensadores as uma causa que o antecede e o
raízes de conceitos constitutivos determina.
de nossa tradição filosófico-
Explicar é, portanto, reconstruir o
científica.
nexo causal existente entre os
a. A physis fenômenos da natureza, é tomar um
fenômeno como efeito de uma causa.
Aristóteles (Metafísica I, 2) chama
É a existência desse nexo que torna
os primeiros filósofos de
a realidade inteligível e nos
physiólogos, ou seja, estudiosos ou
permite considerá-la como tal.
teóricos da natureza (physis).
Assim, o objeto de investigação dos É importante, entretanto, que o
primeiros filósofos-cientistas é o nexo causal se dê entre fenômenos
mundo natural; sendo que suas naturais. Isto porque podemos
teorias buscam dar uma explicação considerar que o pensamento mítico
causal dos processos e dos fenômenos também estabelece explicações
naturais a partir de causas causais. Assim, na narrativa da
puramente naturais, isto é, guerra de Troia na Ilíada de Homero
encontráveis na natureza, no mundo vemos os deuses tomar o partido dos
natural, concreto, e não fora deste, gregos e dos troianos e influenciar
em um mundo sobrenatural, divino, os acontecimentos em favor destes
como nas explicações míticas. ou daqueles.
Segundo esse tipo de visão,
Portanto, fenômenos humanos e
portanto, a chave da compreensão da
naturais têm nesse caso causas
realidade natural encontra-se nesta
sobrenaturais. Trata-se de uma
própria realidade e não fora dela.
explicação causal, porém dada
b. A causalidade através da referência a causas
sobrenaturais. É por isso que o que
A característica central da
distingue a explicação filosófico-
explicação da natureza pelos
científica da mítica é a referência
primeiros filósofos é, portanto, o
apenas a causas naturais. A
apelo à noção de causalidade,
explicação causal possui,
interpretada em termos puramente
entretanto, um caráter regressivo.
naturais. O estabelecimento de uma
Ou seja, explicamos sempre uma coisa
conexão causal entre determinados
por outra e há assim a possibilidade
fenômenos naturais constitui assim
de se ir buscando uma causa

35
anterior, mais básica, até o diferente da água de nossa
infinito. Cada fenômeno poderia ser experiência comum, que bebemos ou
tomado como efeito de uma nova que encontramos em rios, mares e
causa, que por sua vez seria efeito lagos. Trata-se realmente de um
de uma causa anterior, e assim princípio, tomado aqui como
sucessivamente, em um processo sem simbolizando o elemento líquido ou
fim. fluido no real como o mais básico,
mais primordial; ou ainda a água
Isso, contudo, invalidaria o
como o elemento presente em todas
próprio sentido da explicação,
as coisas em maior ou menor grau.
pois, mais uma vez, a explicação
levaria ao inexplicável, a um Diferentes pensadores buscaram
mistério, portanto, tal como no eventualmente diferentes princípios
pensamento mítico. explicativos; assim, por exemplo,
os sucessores de Tales na Escola de
c. A arqué (elemento primordial)
Mileto, Anaxímenes e Anaximandro,
A fim de evitar a regressão ao adotaram respectivamente o ar e o
infinito da explicação causal, o que apeiron (um princípio abstrato
a tornaria insatisfatória, esses significando algo de ilimitado,
filósofos vão postular a existência indefinido, subjacente à própria
de um elemento primordial que natureza); Heráclito dizia ser o
serviria de ponto de partida para fogo o princípio explicativo,
todo o processo. O primeiro a Demócrito o átomo e assim
formular essa noção é exatamente sucessivamente.
Tales de Mileto, que afirma ser a
Empédocles, com sua doutrina dos
água (hydor) o elemento primordial.
quatro elementos, como que
Não sabemos por que Tales teria
sintetiza as diferentes posições,
escolhido a água: talvez por ser o
afirmando a existência de quatro
único elemento que se encontra na
elementos primordiais – terra,
natureza nos três estados, sólido,
água, ar e fogo –, tese retomada por
líquido e gasoso; talvez
Platão no Timeu e bastante difundida
influenciado por antigos mitos do
em toda a Antiguidade, chegando
Egito e da Mesopotâmia,
mesmo ao período moderno, presente
civilizações de regiões áridas e que
nas especulações da alquimia no
se desenvolveram em deltas de rios
Renascimento até o surgimento da
e onde por isso mesmo a água aparece
moderna química. Pode-se considerar
como fonte da vida. Porém, o
inclusive que, de certa forma, a
importante na contribuição de Tales
química ainda hoje supõe que certos
não é tanto a escolha da água, mas
elementos básicos, como o
a própria ideia de elemento
hidrogênio, estejam presentes em
primordial, que dá unidade à
todo o universo.
natureza. É claro que a água tomada
como primeiro princípio é muito

36
A importância da noção de arqué está exatamente a existência de
exatamente na tentativa por parte princípios e leis que regem,
desses filósofos de apresentar uma organizam essa realidade. É a
explicação da realidade em um racionalidade deste mundo que o
sentido mais profundo, torna compreensível, por sua vez,
estabelecendo um princípio básico ao entendimento humano. É porque há
que permeie toda a realidade, que na concepção grega o pressuposto de
de certa forma a unifique, e que ao uma correspondência entre a razão
mesmo tempo seja um elemento humana e a racionalidade do real –
natural. Tal princípio daria o cosmo – que este real pode ser
precisamente o caráter geral a esse compreendido, pudesse fazer
tipo de explicação, permitindo ciência, isto é, pode-se tentar
considerá-la como inaugurando a explicá-lo teoricamente. Daí se
ciência. origina o termo “cosmologia”,
como explicação dos processos e
d. O cosmo
fenômenos naturais e como teoria
O significado do termo kosmos geral sobre a natureza e o
(κoσμos) para os gregos desse funcionamento do universo.
período liga-se diretamente às
e. O logos
ideias de ordem, harmonia e mesmo
beleza (já que a beleza resulta da O termo grego logos (λoγos)
harmonia das formas; daí, aliás, o significa literalmente discurso, e
nosso termo “cosmético”). é com tal acepção que o encontramos
por exemplo em Heráclito de Éfeso.
O cosmo é assim o mundo natural, bem
O logos enquanto discurso,
como o espaço celeste, enquanto
entretanto, difere fundamentalmente
realidade ordenada de acordo com
do mythos, a narrativa de caráter
certos princípios racionais.
poético que recorre aos deuses e ao
A ideia básica de cosmo é, portanto, mistério na descrição do real. O
a de uma ordenação racional, uma logos é fundamentalmente uma
ordem hierárquica, em que certos explicação, em que razões são dadas.
elementos são mais básicos, e que É nesse sentido que o discurso dos
se constitui de forma determinada, primeiros filósofos, que explica o
tendo a causalidade como lei real por meio de causas naturais, é
principal. O cosmo, entendido assim um logos. Essas razões são fruto não
como ordem, opõe-se ao caos de uma inspiração ou de uma
(καos), que seria precisamente a revelação, mas simplesmente do
falta de ordem, o estado da matéria pensamento humano aplicado ao
anterior à sua organização. É entendimento da natureza.
importante notar que a ordem do
O logos é, portanto, o discurso
cosmo é uma ordem racional,
racional, argumentativo, em que as
“razão” significando aí
explicações são justificadas e

37
estão sujeitas à crítica e à postulando outros elementos,
discussão (ver tópico seguinte). respectivamente o ar e o apeiron,
Daí deriva, p.ex., o nosso termo como tendo esta função. Isso pode
“lógica”. Porém, o próprio ser tomado como sinal de que nessa
Heráclito caracteriza a realidade escola filosófica o debate, a
como tendo um logo, ou seja, uma divergência e a formulação de novas
racionalidade (ver o conceito de hipóteses eram estimulados. A única
cosmo acima) que seria captada pela exigência era que as propostas
razão humana. Portanto, um dos divergentes pudessem ser
pressupostos básicos da vida dos justificadas, explicadas e
primeiros filósofos. E a fundamentadas por seus autores, e
correspondência entre a razão que pudessem, por sua vez, ser
humana e a racionalidade do real, o submetidas à crítica. Segundo o
que tornaria possível um discurso importante filósofo da ciência
racional sobre o real. contemporâneo Karl Popper:

f. O caráter crítico O que é novo na filosofia grega, o


que é acrescentado de novo a tudo
Um dos aspectos mais fundamentais
isso, parece-me consistir não tanto
do saber que se constitui nessas
na substituição dos mitos por algo
primeiras escolas de pensamento,
de mais “científico”, mas sim em
sobretudo na escola jônica, é seu
uma nova atitude em relação aos
caráter crítico. Isto é, as teorias
mitos. Parece-me ser meramente uma
aí formuladas não o eram de forma
consequência dessa nova atitude o
dogmática, não eram apresentadas
fato de que seu caráter começa então
como verdades absolutas e
a mudar.
definitivas, mas como passíveis de
serem discutidas, de suscitarem A nova atitude que tenho em mente é
divergências e discordâncias, de a atitude crítica. Em lugar de uma
permitirem formulações e propostas transmissão dogmática da doutrina
alternativas. Como se trata de (na qual todo o interesse consiste
construções do pensamento humano, em preservar a tradição autêntica)
de ideias de um filósofo – e não de encontramos uma tradição crítica da
verdades reveladas, de caráter doutrina. Algumas pessoas começam a
divino ou sobrenatural –, estão fazer perguntas a respeito da
sempre abertas à discussão, à doutrina, duvidam de sua
reformulação, a correções. veracidade, de sua verdade.

O que pode ser ilustrado pelo fato A dúvida e a crítica existiram


de que, na escola de Mileto, os dois certamente antes disso. O que é
principais seguidores de Tales, novo, porém, é que a dúvida e a
Anaxímenes e Anaximandro, não crítica tornam-se agora, por sua
aceitaram a ideia do mestre de que vez, parte da tradição da escola.
a água seria o elemento primordial, Uma tradição de caráter superior

38
substitui a preservação tradicional Filosofia grega, pois tais períodos
do dogma. Em lugar da teoria definiram os campos da investigação
tradicional, do mito, encontramos a filosófica na Antiguidade. A
tradição das teorias que criticam, história da Grécia costuma ser
que, em si mesmas, de início, pouco dividida pelos historiadores em
mais são do que mitos. É apenas no quatro grandes fases ou épocas:
decorrer dessa discussão crítica
1. a da Grécia homérica,
que a observação é adotada como uma
correspondente aos 400 anos
testemunha.
narrados pelo poeta Homero, em seus
Não pode ser por mero acidente que dois grandes poemas, Ilíada e
Anaximandro, discípulo de Tales, Odisseia; 2. a da Grécia arcaica ou
desenvolveu uma teoria que diverge dos sete sábios, do século VII ao
explícita e conscientemente da de século V antes de Cristo, quando os
seu mestre, e que Anaxímenes, gregos criam cidades como Atenas,
discípulo de Anaximandro, tenha Esparta, Tebas, Megara, Samos,
divergido de modo igualmente etc., e predomina a economia urbana,
consciente da doutrina de seu baseada no artesanato e no comércio;
mestre. 3. a da Grécia clássica, nos séculos
V e IV antes de Cristo, quando a
A única explicação parece ser a de
democracia se desenvolve, a vida
que o próprio fundador da escola
intelectual e artística entra no
tenha desafiado seus discípulos a
apogeu e Atenas domina a Grécia com
criticarem sua teoria e que eles
seu império comercial e militar; 4.
tenham transformado esta nova
e, finalmente, a época helenística,
atitude crítica de seu mestre em uma
a partir do final do século IV antes
nova tradição.
de Cristo, quando a Grécia passa
Capítulo 3 para o poderio do império de
Alexandre da Macedônia, e, depois,
Campos de investigação da
para as mãos do Império Romano,
Filosofia
terminando a história de sua
Os períodos da Filosofia grega. existência independente. Os
períodos da Filosofia não
A Filosofia terá, no correr dos
correspondem exatamente a essas
séculos, um conjunto de
épocas, já que ela não existe na
preocupações, indagações e
Grécia homérica e só aparece nos
interesses que lhe vieram de seu
meados da Grécia arcaica.
nascimento na Grécia. Assim, antes
Entretanto, o apogeu da Filosofia
de vermos que campos são esses,
acontece durante o apogeu da cultura
examinemos brevemente os conteúdos
e da sociedade gregas; portanto,
que a Filosofia possuía na Grécia.
durante a Grécia clássica. Os
Para isso, devemos, primeiro, quatro grandes períodos da
conhecer os períodos principais da

39
Filosofia grega, nos quais seu Pode-se perceber que os dois
conteúdo muda e se enriquece, são: primeiros períodos da Filosofia
grega têm como referência o filósofo
1. Período pré-socrático ou
Sócrates de Atenas, donde a divisão
cosmológico, do final do século VII
em Filosofia pré-socrática e
ao final do século V a.C., quando a
socrática. Período pré-socrático ou
Filosofia se ocupa fundamentalmente
cosmológico os principais filósofos
com a origem do mundo e as causas
pré-socráticos foram? filósofos da
das transformações na Natureza.
Escola Jônica: Tales de Mileto,
2. Período socrático ou Anaxímenes de Mileto, Anaximandro
antropológico, do final do século V de Mileto e Heráclito de Éfeso.
e todo o século IV a.C., quando a filósofos da Escola Itálica:
Filosofia investiga as questões Pitágoras de Samos, Filolau de
humanas, isto é, a ética, a política Crotona e Árquitas de Tarento;
e as técnicas (em grego, ântropos filósofos da Escola Eleata:
quer dizer homem; por isso o período Parmênides de Eléia e Zenão de
recebeu o nome de antropológico). Eléia; filósofos da Escola da
3. Período sistemático, do final do Pluralidade: Empédocles de
século IV ao final do século III Agrigento, Anaxágoras de Clazômena,
a.C., quando a Filosofia busca Leucipo de Abdera e Demócrito de
reunir e sistematizar tudo quanto Abdera.
foi pensado sobre a cosmologia e a As principais características da
antropologia, interessando-se cosmologia são: É uma explicação
sobretudo em mostrar que tudo pode racional e sistemática sobre a
ser objeto do conhecimento origem, ordem e transformação da
filosófico, desde que as leis do Natureza, da qual os seres humanos
pensamento e de suas demonstrações fazem parte, de modo que, ao
estejam firmemente estabelecidas explicar a Natureza, a Filosofia
para oferecer os critérios da também explica a origem e as
verdade e da ciência. mudanças dos seres humanos. Afirma
4. Período helenístico ou greco- que não existe criação do mundo,
romano, do final do século III a.C. isto é, nega que o mundo tenha
até o século VI depois de Cristo. surgido do nada (como é o caso, por
Nesse longo período, que já alcança exemplo, na religião judaico-
Roma e o pensamento dos primeiros cristã, na qual Deus cria o mundo
Padres da Igreja, a Filosofia se do nada). Por isso diz: “Nada vem
ocupa sobretudo com as questões da do nada e nada volta ao nada”.
ética, do conhecimento humano e das Isto significa: a) que o mundo, ou
relações entre o homem e a Natureza a Natureza, é eterno; b) que no
e de ambos com Deus. mundo, ou na Natureza, tudo se
Filosofia puramente grega transforma em outra coisa sem jamais

40
desaparecer, embora a forma grande; o grande diminui e fica
particular que uma coisa possua pequeno; o longe fica perto se eu
desapareça com ela, mas não sua for até ele, ou se as coisas
matéria. O fundo eterno, perene, distantes chegarem até mim, um rio
imortal, de onde tudo nasce e para aumento de volume na cheia e diminui
onde tudo volta é invisível para os na seca, etc.).
olhos do corpo e visível somente
Portanto o mundo está em mudança
para o olho do espírito, isto é,
contínua, sem por isso perder sua
para o pensamento. O fundo eterno,
forma, sua ordem e sua estabilidade.
perene, imortal e imperecível de
A mudança - nascer, morrer, mudar
onde tudo brota e para onde tudo
de qualidade ou de quantidade -
retorna é o elemento primordial da
chama-se movimento e o mundo está
Natureza e chama-se physis (em
em movimento permanente.
grego, physis vem de um verbo que
significa fazer surgir, fazer O movimento do mundo chama-se devir
brotar, fazer nascer, produzir). A e o devir segue leis rigorosas que
physis é a Natureza eterna e em o pensamento conhece. Essas leis são
perene transformação. Afirma que, as que mostram que toda mudança é
embora a physis (o elemento passagem de um estado ao seu
primordial eterno) seja contrário: dia-noite, claro-escuro,
imperecível, ela dá origem a todos quente-frio, seco-úmido, novo-
os seres infinitamente variados e velho, pequeno-grande, bom-mau,
diferentes do mundo, seres que, ao cheio-vazio, um-muitos, etc., e
contrário do princípio gerador, são também no sentido inverso, noite-
perecíveis ou mortais. Afirma que dia, escuro-claro, frio-quente,
todos os seres, além de serem muitos-um, etc.
gerados e de serem mortais, são O devir é, portanto, a passagem
seres em contínua transformação, contínua de uma coisa ao seu estado
mudando de qualidade (por exemplo, contrário e essa passagem não é
o branco amarelece, acinzenta, caótica, mas obedece a leis
enegrece; o negro acinzenta, determinadas pela physis ou pelo
embranquece; o novo envelhece; o princípio fundamental do mundo. Os
quente esfria; o frio esquenta; o diferentes filósofos escolheram
seco fica úmido; o úmido seca; o dia diferentes physis, isto é, cada
se torna noite; a noite se torna filósofo encontrou motivos e razões
dia; a primavera cede lugar ao para dizer qual era o princípio
verão, que cede lugar ao outono, que eterno e imutável que está na origem
cede lugar ao inverno; o saudável da Natureza e de suas
adoece; o doente se cura; a criança transformações. Assim, Tales dizia
cresce; a árvore vem da semente e que o princípio era a água ou o
produz sementes, etc.) e mudando de úmido; Anaximandro considerava que
quantidade (o pequeno cresce e fica era o ilimitado sem qualidades

41
definidas; Anaxímenes, que era o ar assembleias, o cidadão precisava
ou o frio; Heráclito afirmou que era saber falar e ser capaz de
o fogo; Leucipo e Demócrito disseram persuadir. Com isso, uma mudança
que eram os átomos. E assim por profunda vai ocorrer na educação
diante. grega. Quando não havia democracia,
mas dominavam as famílias
Período socrático ou antropológico
aristocráticas, senhoras das
Com o desenvolvimento das cidades, terras, o poder lhes pertencia.
do comércio, do artesanato e das Essas famílias, valendo-se dos dois
artes militares, Atenas tornou-se o grandes poetas gregos, Homero e
centro da vida social, política e Hesíodo, criaram um padrão de
cultural da Grécia, vivendo seu educação, próprio dos aristocratas.
período de esplendor, conhecido
Esse padrão afirmava que o homem
como o Século de Péricles. É a época
ideal ou perfeito era o guerreiro
de maior florescimento da
belo e bom. Belo: seu corpo era
democracia. A democracia grega
formado pela ginástica, pela dança
possuía, entre outras, duas
e pelos jogos de guerra, imitando
características de grande
os heróis da guerra de Tróia
importância para o futuro da
(Aquiles, Heitor, Ajax, Ulisses).
Filosofia. Em primeiro lugar, a
democracia afirmava a igualdade de Bom: seu espírito era formado
todos os homens adultos perante as escutando Homero e Hesíodo,
leis e o direito de todos de aprendendo as virtudes admiradas
participar diretamente do governo pelos deuses e praticadas pelos
da cidade, da polis. Em segundo heróis, a principal delas sendo a
lugar, e como consequência, a coragem diante da morte, na guerra.
democracia, sendo direta e não por A virtude era a Arete (excelência e
eleição de representantes, garantia superioridade), própria dos
a todos a participação no governo, melhores, os aristoi. Quando,
e os que dele participavam tinham o porém, a democracia se instala e o
direito de exprimir, discutir e poder vai sendo retirado dos
defender em público suas opiniões aristocratas, esse ideal educativo
sobre as decisões que a cidade ou pedagógico também vai sendo
deveria tomar. Surgia, assim, a substituído por outro. O ideal da
figura política do cidadão. educação do Século de Péricles é a
formação do cidadão. A Arete é a
(Nota: Devemos observar que estavam
virtude cívica. Ora, qual é o
excluídos da cidadania o que os
momento em que o cidadão mais
gregos chamavam de dependentes:
aparece e mais exerce sua cidadania?
mulheres, escravos, crianças e
velhos. Também estavam excluídos os Quando opina, discute, delibera e
estrangeiros.) Ora, para conseguir vota nas assembléias. Assim, a nova
que a sua opinião fosse aceita nas educação estabelece como padrão

42
ideal a formação do bom orador, isto tempo, Sócrates concordava com os
é, aquele que saiba falar em público sofistas em um ponto:
e persuadir os outros na política.
Por um lado, a educação antiga do
Para dar aos jovens essa educação, guerreiro belo e bom já não atendia
substituindo a educação antiga dos às exigências da sociedade grega,
poetas, surgiram, na Grécia, os e, por outro lado, os filósofos
sofistas, que são os primeiros cosmologistas defendiam idéias tão
filósofos do período socrático. Os contrárias entre si que também não
sofistas mais importantes foram: eram uma fonte segura para o
Protágoras de Abdera, Górgias de conhecimento verdadeiro. (Nota:
Leontini e Isócrates de Atenas. Historicamente, há dificuldade para
conhecer o pensamento dos grandes
Que diziam e faziam os sofistas?
sofistas porque não possuímos seus
Diziam que os ensinamentos dos
textos. Restaram fragmentos apenas.
filósofos cosmologistas estavam
Por isso, nós os conhecemos pelo que
repletos de erros e contradições e
deles disseram seus adversários -
que não tinham utilidade para a vida
Platão, Xenofonte, Aristóteles - e
da polis. Apresentavam-se como
não temos como saber se estes foram
mestres de oratória ou de retórica,
justos com aqueles. Os
afirmando ser possível ensinar aos
historiadores mais recentes
jovens tal arte para que fossem bons
consideram os sofistas verdadeiros
cidadãos. Que arte era está? A arte
representantes do espírito
da persuasão.
democrático, isto é, da pluralidade
Os sofistas ensinavam técnicas de conflituosa de opiniões e
persuasão para os jovens, que interesses, enquanto seus
aprendiam a defender a posição ou adversários seriam partidários de
opinião A, depois a posição ou uma política aristocrática, na qual
opinião contrária, não- a, de modo somente algumas opiniões e
que, numa assembleia, soubessem ter interesses teriam o direito para
fortes argumentos a favor ou contra valer para o restante da sociedade.)
uma opinião e ganhassem a discussão.
Discordando dos antigos poetas, dos
O filósofo Sócrates, considerado o
antigos filósofos e dos sofistas, o
patrono da Filosofia, rebelou-se
que propunha Sócrates? Propunha
contra os sofistas, dizendo que não
que, antes de querer conhecer a
eram filósofos, pois não tinham amor
Natureza e antes de querer persuadir
pela sabedoria nem respeito pela
os outros, cada um deveria, primeiro
verdade, defendendo qualquer idéia,
e antes de tudo, conhecer-se a si
se isso fosse vantajoso. Corrompiam
mesmo. A expressão “conhece-te a
o espírito dos jovens, pois faziam
ti mesmo” que estava gravada no
o erro e a mentira valer tanto
pórtico do templo de Apolo, patrono
quanto a verdade. Como homem de seu
grego da sabedoria, tornou-se a

43
divisa de Sócrates. Por fazer do Suas perguntas deixavam os
autoconhecimento ou do conhecimento interlocutores embaraçados,
que os homens têm de si mesmos a irritados, curiosos, pois, quando
condição de todos os outros tentavam responder ao célebre “o
conhecimentos verdadeiros, é que se que é?”, descobriam, surpresos,
diz que o período socrático é que não sabiam responder e que nunca
antropológico, isto é, voltado para tinham pensado em suas crenças, seus
o conhecimento do homem, valores e suas idéias. Mas o pior
particularmente de seu espírito e não era isso.
de sua capacidade para conhecer a
O pior é que as pessoas esperavam
verdade. O retrato que a história
que Sócrates respondesse por elas
da Filosofia possui de Sócrates foi
ou para elas, que soubesse as
traçado por seu mais importante
respostas às perguntas, como os
aluno e discípulo, o filósofo
sofistas pareciam saber, mas
ateniense Platão. Que retrato
Sócrates, para desconcerto geral,
Platão nos deixa de seu mestre,
dizia: “Eu também não sei, por isso
Sócrates? O de um homem que andava
estou perguntando”.
pelas ruas e praças de Atenas, pelo
mercado e pela assembléia indagando Donde a famosa expressão atribuída
a cada um: “Você sabe o que é isso a ele: “Sei que nada sei”. A
que você está dizendo?”, “Você consciência da própria ignorância é
sabe o que é isso em que você o começo da Filosofia. O que
acredita?”, “Você acha que está procurava Sócrates? Procurava a
conhecendo realmente aquilo em que definição daquilo que uma coisa, uma
acredita, aquilo em que está idéia, um valor é verdadeiramente.
pensando, aquilo que está Procurava a essência verdadeira da
dizendo?”, “Você diz”, falava coisa, da idéia, do valor. Procurava
Sócrates, “que a coragem é o conceito e não a mera opinião que
importante, mas: o que é a coragem? temos de nós mesmos, das coisas, das
Você acredita que a justiça é idéias e dos valores. Qual a
importante, mas: o que é a justiça? diferença entre uma opinião e um
Você diz que ama as coisas e as conceito? A opinião varia de pessoa
pessoas belas, mas o que é a beleza? para pessoa, de lugar para lugar,
de época para época. É instável,
Você crê que seus amigos são a
mutável, depende de cada um, de seus
melhor coisa que você tem, mas: o
gostos e preferências. O conceito,
que é a amizade?” Sócrates fazia
ao contrário, é uma verdade
perguntas sobre as idéias, sobre os
intemporal, universal e necessária
valores nos quais os gregos
que o pensamento descobre,
acreditavam e que julgavam
mostrando que é a essência
conhecer.
universal, intemporal e necessária
de alguma coisa. Por isso, Sócrates

44
não perguntava se tal ou qual coisa juízes vão exigir de mim? Que eu
era bela - pois nossa opinião sobre pare de filosofar.
ela pode variar - e sim: O que é a
Mas eu prefiro a morte a ter que
beleza? Qual é a essência ou o
renunciar à Filosofia”. O
conceito do belo? Do justo? Do amor?
julgamento e a morte de Sócrates são
Da amizade? Sócrates perguntava:
narrados por Platão numa obra
Que razões rigorosas você possui
intitulada Apologia de Sócrates,
para dizer o que diz e para pensar
isto é, a defesa de Sócrates, feita
o que pensa? Qual é o fundamento
por seus discípulos, contra Atenas.
racional daquilo que você fala e
Sócrates nunca escreveu. O que
pensa? Ora, as perguntas de Sócrates
sabemos de seus pensamentos
se referiam a idéias, valores,
encontra-se nas obras de seus vários
práticas e comportamentos que os
discípulos, e Platão foi o mais
atenienses julgavam certos e
importante deles. Se reunirmos o que
verdadeiros em si mesmos e por si
esse filósofo escreveu sobre os
mesmos. Ao fazer suas perguntas e
sofistas e sobre Sócrates, além da
suscitar dúvidas, Sócrates os fazia
exposição de suas próprias idéias,
pensar não só sobre si mesmos, mas
poderemos apresentar como
também sobre a polis. Aquilo que
características gerais do período
parecia evidente acabava sendo
socrático:
percebido como duvidoso e incerto.
Sabemos que os poderosos têm medo A Filosofia se volta para as
do pensamento, pois o poder é mais questões humanas no plano da ação,
forte se ninguém pensar, se todo dos comportamentos, das idéias, das
mundo aceitar as coisas como elas crenças, dos valores e, portanto,
são, ou melhor, como nos dizem e nos se preocupa com as questões morais
fazem acreditar que elas são. e políticas. O ponto de partida da
Filosofia é a confiança no
Para os poderosos de Atenas,
pensamento ou no homem como um ser
Sócrates tornara-se um perigo, pois
racional, capaz de conhecer-se a si
fazia a juventude pensar. Por isso,
mesmo e, portanto, capaz de
eles o acusaram de desrespeitar os
reflexão. Reflexão é a volta que o
deuses, corromper os jovens e violar
pensamento faz sobre si mesmo para
as leis. Levado perante a
conhecer-se; é a consciência
assembléia, Sócrates não se
conhecendo-se a si mesma como
defendeu e foi condenado a tomar um
capacidade para conhecer as coisas,
veneno - a cicuta - e obrigado a
alcançando o conceito ou a essência
suicidar-se. Por que Sócrates não
delas. Como se trata de conhecer a
se defendeu? “Porque”, dizia ele,
capacidade de conhecimento do
“se eu me defender, estarei
homem, a preocupação se volta para
aceitando as acusações, e eu não as
estabelecer procedimentos que nos
aceito. Se eu me defender, o que os
garantam que encontramos a verdade,

45
isto é, o pensamento deve oferecer A reflexão e o trabalho do
a si mesmo caminhos próprios, pensamento são tomados como uma
critérios próprios e meios próprios purificação intelectual, que
para saber o que é o verdadeiro e permite ao espírito humano conhecer
como alcançá-lo em tudo o que a verdade invisível, imutável,
investiguemos. universal e necessária. A opinião,
as percepções e imagens sensoriais
A Filosofia está voltada para a
são consideradas falsas,
definição das virtudes morais e das
mentirosas, mutáveis,
virtudes políticas, tendo como
inconsistentes, contraditórias,
objeto central de suas
devendo ser abandonadas para que o
investigações a moral e a política,
pensamento siga seu caminho próprio
isto é, as idéias e práticas que
no conhecimento verdadeiro.
norteiam os comportamentos dos
seres humanos tanto como indivíduos A diferença entre os sofistas, de
quanto como cidadãos. Cabe à um lado, e Sócrates e Platão, de
Filosofia, portanto, encontrar a outro, é dada pelo fato de que os
definição, o conceito ou a essência sofistas aceitam a validade das
dessas virtudes, para além da opiniões e das percepções
variedade das opiniões, para além sensoriais e trabalham com elas para
da multiplicidade das opiniões produzir argumentos de persuasão,
contrárias e diferentes. As enquanto Sócrates e Platão
perguntas filosóficas se referem, consideram as opiniões e as
assim, a valores como a justiça, a percepções sensoriais, ou imagens
coragem, a amizade, a piedade, o das coisas, como fonte de erro,
amor, a beleza, a temperança, a mentira e falsidade, formas
prudência, etc., que constituem os imperfeitas do conhecimento que
ideais do sábio e do verdadeiro nunca alcançam a verdade plena da
cidadão. É feita, pela primeira vez, realidade. O mito da caverna
uma separação radical entre, de um imaginemos uma caverna subterrânea
lado a opinião e as imagens das onde, desde a infância, geração após
coisas, trazidas pelos nossos geração, seres humanos estão
órgãos dos sentidos, nossos aprisionados. Suas pernas e seus
hábitos, pelas tradições, pelos pescoços estão algemados de tal modo
interesses, e, de outro lado, as que são forçados a permanecer sempre
idéias. As idéias se referem à no mesmo lugar e a olhar apenas para
essência íntima, invisível, frente, não podendo girar a cabeça
verdadeira das coisas e só podem ser nem para trás nem para os lados.
alcançadas pelo pensamento puro,
A entrada da caverna permite que
que afasta os dados sensoriais, os
alguma luz exterior ali penetre, de
hábitos recebidos, os preconceitos,
modo que se possa, na semi-
as opiniões.
obscuridade, enxergar o que se passa

46
no interior. A luz que ali entra caverna e, deparando com o caminho
provém de uma imensa e alta fogueira ascendente, nele adentraria. Num
externa. primeiro momento, ficaria
completamente cego, pois a fogueira
Entre ela e os prisioneiros - no
na verdade é a luz do sol e ele
exterior, portanto - há um caminho
ficaria inteiramente ofuscado por
ascendente ao longo do qual foi
ela. Depois, acostumando-se com a
erguida uma mureta, como se fosse a
claridade, veria os homens que
parte fronteira de um palco de
transportam as estatuetas e,
marionetes. Ao longo dessa mureta-
prosseguindo no caminho, enxergaria
palco, homens transportam
as próprias coisas, descobrindo
estatuetas de todo tipo, com figuras
que, durante toda sua vida, não vira
de seres humanos, animais e todas
senão sombras de imagens (as sombras
as coisas.
das estatuetas projetadas no fundo
Por causa da luz da fogueira e da da caverna) e que somente agora está
posição ocupada por ela, os contemplando a própria realidade.
prisioneiros enxergam na parede do Libertado e conhecedor do mundo, o
fundo da caverna as sombras das prisioneiro regressaria à caverna,
estatuetas transportadas, mas sem ficaria desnorteado pela escuridão,
poderem ver as próprias estatuetas, contaria aos outros o que viu e
nem os homens que as transportam. tentaria libertá-los.
Como jamais viram outra coisa, os
Que lhe aconteceria nesse retorno?
prisioneiros imaginam que as
Os demais prisioneiros zombariam
sombras vistas são as próprias
dele, não acreditariam em suas
coisas. Ou seja, não podem saber que
palavras e, se não conseguissem
são sombras, nem podem saber que são
silenciá-lo com suas caçoadas,
imagens (estatuetas de coisas), nem
tentariam fazê-lo espancando-o e,
que há outros seres humanos reais
se mesmo assim, ele teimasse em
fora da caverna. Também não podem
afirmar o que viu e os convidasse a
saber que enxergam porque há a
sair da caverna, certamente
fogueira e a luz no exterior e
acabariam por matá-lo. Mas, quem
imaginam que toda luminosidade
sabe, alguns poderiam ouvi-lo e,
possível é a que reina na caverna.
contra a vontade dos demais, também
Que aconteceria, indaga Platão, se
decidissem sair da caverna rumo à
alguém libertasse os prisioneiros?
realidade. O que é a caverna? O
Que faria um prisioneiro libertado?
mundo em que vivemos. Que são as
Em primeiro lugar, olharia toda a
sombras das estatuetas? As coisas
caverna, veria os outros seres
materiais e sensoriais que
humanos, a mureta, as estatuetas e
percebemos.
a fogueira. Embora dolorido pelos
anos de imobilidade, começaria a Quem é o prisioneiro que se liberta
caminhar, dirigindo-se à entrada da e sai da caverna? O filósofo. O que

47
é a luz exterior do sol? A luz da classificação e distribuição dos
verdade. O que é o mundo exterior? conhecimentos fixou, para o
O mundo das idéias verdadeiras ou pensamento ocidental, os campos de
da verdadeira realidade. Qual o investigação da Filosofia como
instrumento que liberta o filósofo totalidade do saber humano. Cada
e com o qual ele deseja libertar os saber, no campo que lhe é próprio,
outros prisioneiros? A dialética. O possui seu objeto específico,
que é a visão do mundo real procedimentos específicos para sua
iluminado? A Filosofia. Por que os aquisição e exposição, formas
prisioneiros zombam, espancam e próprias de demonstração e prova.
matam o filósofo (Platão está se Cada campo do conhecimento é uma
referindo à condenação de Sócrates ciência (ciência, em grego, é
à morte pela assembléia ateniense) episteme). Aristóteles afirma que,
porque imaginam que o mundo sensível antes de um conhecimento constituir
é o mundo real e o único verdadeiro. seu objeto e seu campo próprios,
seus procedimentos próprios de
Período sistemático
aquisição e exposição, de
Este período tem como principal nome demonstração e de prova, deve,
o filósofo Aristóteles de Estagira, primeiro, conhecer as leis gerais
discípulo de Platão. Passados quase que governam o pensamento,
quatro séculos de Filosofia, independentemente do conteúdo que
Aristóteles apresenta, nesse possa vir a ter. O estudo das formas
período, uma verdadeira gerais do pensamento, sem
enciclopédia de todo o saber que foi preocupação com seu conteúdo,
produzido e acumulado pelos gregos chama-se lógica, e Aristóteles foi
em todos os ramos do pensamento e o criador da lógica como instrumento
da prática considerando essa do conhecimento em qualquer campo
totalidade de saberes como sendo a do saber. A lógica não é uma
Filosofia. Está, portanto, não é um ciência, mas o instrumento para a
saber específico sobre algum ciência e, por isso, na
assunto, mas uma forma de conhecer classificação das ciências feita
todas as coisas, possuindo por Aristóteles, a lógica não
procedimentos diferentes para cada aparece, embora ela seja
campo de coisas que conhece. Além indispensável para a Filosofia e,
de a Filosofia ser o conhecimento mais tarde, tenha se tornado um dos
da totalidade dos conhecimentos e ramos específicos dela. Os campos
práticas humanas, ela também do conhecimento filosófico vejamos,
estabelece uma diferença entre pois, a classificação aristotélica:
esses conhecimentos, distribuindo-
Ciências produtivas: ciências que
os numa escala que vai dos mais
estudam as práticas produtivas ou
simples e inferiores aos mais
as técnicas, isto é, as ações
complexos e superiores. Essa
humanas cuja finalidade está para

48
além da própria ação, pois a justa, a vida boa e bela, a vida
finalidade é a produção de um livre. Ciências teoréticas,
objeto, de uma obra. São elas: contemplativas ou teóricas: são
arquitetura (cujo fim é a edificação aquelas que estudam coisas que
de alguma coisa), economia (cujo fim existem independentemente dos
é a produção agrícola, o artesanato homens e de suas ações e que, não
e o comércio, isto é, produtos para tendo sido feitas pelos homens, só
a sobrevivência e para o acúmulo de podem ser contempladas por eles.
riquezas), medicina (cujo fim é Theoria, em grego, significa
produzir a saúde ou a cura), contemplação da verdade. O que são
pintura, escultura, poesia, teatro, as coisas que existem por si mesmas
oratória, arte da guerra, da caça, e em si mesmas, independentes de
da navegação, etc. Em suma, todas nossa ação fabricadora (técnica) e
as atividades humanas técnicas e de nossa ação moral e política? São
artísticas que resultam num produto as coisas da Natureza e as coisas
ou numa obra. divinas. Aristóteles, aqui,
classifica também por graus de
Ciências práticas: ciências que
superioridade as ciências teóricas,
estudam as práticas humanas
indo da mais inferior a superior:
enquanto ações que têm nelas mesmas
1. ciência das coisas naturais
seu próprio fim, isto é, a
submetidas à mudança ou ao devir:
finalidade da ação se realiza nela
física, biologia, meteorologia,
mesma, é o próprio ato realizado.
psicologia (pois a alma, que em
São elas: ética, em que a ação é
grego se diz psychê, é um ser
realizada pela vontade guiada pela
natural, existindo de formas
razão para alcançar o bem do
variadas em todos os seres vivos,
indivíduo, sendo este bem as
plantas, animais e homens); 2.
virtudes morais (coragem,
ciência das coisas naturais que não
generosidade, fidelidade, lealdade,
estão submetidas à mudança ou ao
clemência, prudência, amizade,
devir: as matemáticas e a astronomia
justiça, modéstia, honradez,
(os gregos julgavam que os astros
temperança, etc.); e política, em
eram eternos e imutáveis);
que a ação é realizada pela vontade
guiada pela razão para ter como fim 3. ciência da realidade pura, que
o bem da comunidade ou o bem comum. não é nem natural mutável, nem
natural imutável, nem resultado da
Para Aristóteles, como para todo
ação humana, nem resultado da
grego da época clássica, a política
fabricação humana. Trata-se daquilo
é superior à ética, pois a
que deve haver em toda e qualquer
verdadeira liberdade, sem a qual não
realidade, seja ela natural,
pode haver vida virtuosa, só é
matemática, ética, política ou
conseguida na polis. Por isso, a
técnica, para ser realidade. É o que
finalidade da política é a vida
Aristóteles chama de ser ou

49
substância de tudo o que existe. A as técnicas e as artes e seus
ciência teórica que estuda o puro valores (utilidade, beleza, etc.).
ser chama-se metafísica; 4. ciência
3º. O do conhecimento da capacidade
teórica das coisas divinas que são
humana de conhecer, isto é, o
a causa e a finalidade de tudo o que
conhecimento do próprio pensamento
existe na Natureza e no homem. Vimos
em exercício. Aqui, distinguem-se:
que as coisas divinas são chamadas
a lógica, que oferece as leis gerais
de theion e, por isso, esta última
do pensamento; a teoria do
ciência chama-se teologia.
conhecimento, que oferece os
A Filosofia, para Aristóteles, procedimentos pelos quais
encontra seu ponto mais alto na conhecemos; as ciências
metafísica e na teologia, de onde propriamente ditas e o conhecimento
derivam todos os outros do conhecimento científico, isto é,
conhecimentos. A partir da a epistemologia.
classificação aristotélica,
Ser ou realidade, prática ou ação
definiu-se, no correr dos séculos,
segundo valores, conhecimento do
o grande campo da investigação
pensamento em suas leis gerais e em
filosófica, campo que só seria
suas leis específicas em cada
desfeito no século XIX da nossa era,
ciência: eis os campos da atividade
quando as ciências particulares se
ou investigação filosófica.
foram separando do tronco geral da
Filosofia. Assim, podemos dizer que Período helenístico
os campos da investigação Trata-se do último período da
filosófica são três: Filosofia antiga, quando a polis
1º. O do conhecimento da realidade grega desapareceu como centro
última de todos os seres, ou da político, deixando de ser
essência de toda a realidade. Como, referência principal dos filósofos,
em grego, ser se diz on e os seres uma vez que a Grécia se encontra sob
se diz ta onta, este campo é chamado o poderio do Império Romano. Os
de ontologia (que, na linguagem de filósofos dizem, agora, que o mundo
Aristóteles, se formava com a é sua cidade e que são cidadãos do
metafísica e a teologia). mundo. Em grego, mundo se diz cosmos
e esse período é chamado o da
2º. O do conhecimento das ações
Filosofia cosmopolita.
humanas ou dos valores e das
finalidades da ação humana: das Essa época da Filosofia é
ações que têm em si mesmas sua constituída por grandes sistemas ou
finalidade, a ética e a política, doutrinas, isto é, explicações
ou a vida moral (valores morais) e totalizantes sobre a Natureza, o
a vida política (valores homem, as relações entre ambos e
políticos); e das ações que têm sua deles com a divindade (esta, em
finalidade num produto ou numa obra: geral, pensada como Providência

50
divina que instaura e conserva a respostas e, sobretudo, propondo
ordem universal). Predominam novas perguntas, num diálogo
preocupações com a ética - pois os permanente com a sociedade e a
filósofos já não podem ocupar-se cultura de seu tempo, do qual ela
diretamente com a política -, a faz parte.
física, a teologia e a religião.
Tem uma história: as respostas, as
Datam desse período quatro grandes
soluções e as novas perguntas que
sistemas cuja influência será
os filósofos de uma época oferecem
sentida pelo pensamento cristão,
tornam-se saberes adquiridos que
que começa a formar-se nessa época:
outros filósofos prosseguem ou,
estoicismo, epicurismo, ceticismo e
frequentemente, tornam-se novos
neoplatonismo.
problemas que outros filósofos
A amplidão do Império Romano, a tentam resolver, seja aproveitando
presença crescente de religiões o passado filosófico, seja
orientais no Império, os contatos criticando-o e refutando-o. Além
comerciais e culturais entre disso, as transformações nos modos
ocidente e oriente fizeram aumentar de conhecer podem ampliar os campos
os contatos dos filósofos de investigação da Filosofia,
helenistas com a sabedoria fazendo surgir novas disciplinas
oriental. Podemos falar numa filosóficas, como também podem
orientalização da Filosofia, diminuir esses campos, porque
sobretudo nos aspectos místicos e alguns de seus conhecimentos podem
religiosos. desligar-se dela e formar
disciplinas separadas.

Assim, por exemplo, a Filosofia teve


Capítulo 4
seu campo de atividade aumentado
Principais períodos da história da quando, no século XVIII, surge a
Filosofia filosofia da arte ou estética; no
A Filosofia na História século XIX, a filosofia da história;
no século XX, a filosofia das
Como todas as outras criações e ciências ou epistemologia, e a
instituições humanas, a Filosofia filosofia da linguagem. Por outro
está na História e tem uma história. lado, o campo da Filosofia diminuiu
Está na História: a Filosofia quando as ciências particulares que
manifesta e exprime os problemas e dela faziam parte foram-se
as questões que, em cada época de desligando para constituir suas
uma sociedade, os homens colocam próprias esferas de investigação.
para si mesmos, diante do que é novo
É o que acontece, por exemplo, no
e ainda não foi compreendido. A
século XVIII, quando se desligam da
Filosofia procura enfrentar essa
Filosofia a biologia, a física e a
novidade, oferecendo caminhos,
química; e, no século XX, as

51
chamadas ciências humanas morais que recebia dos antigos.
(psicologia, antropologia, Divide-se em patrística grega
história). Pelo fato de estar na (ligada à Igreja de Bizâncio) e
História e ter uma história, a patrística latina (ligada à Igreja
Filosofia costuma ser apresentada de Roma) e seus nomes mais
em grandes períodos que acompanham, importantes foram: Justino,
às vezes de maneira mais próxima, Tertuliano, Atenágoras, Orígenes,
às vezes de maneira mais distante, Clemente, Eusébio, Santo Ambrósio,
os períodos em que os historiadores São Gregório Nazianzo, São João
dividem a História da sociedade Crisóstomo, Isidoro de Sevilha,
ocidental. Santo Agostinho, Beda e Boécio. A
patrística foi obrigada a
Filosofia antiga (do século VI
introduzir idéias desconhecidas
a.C. ao século VI d.C.)
para os filósofos greco-romanos: a
Compreende os quatro grandes idéia de criação do mundo, de pecado
períodos da Filosofia greco- original, de Deus como trindade una,
romana, indo dos pré-socráticos de encarnação e morte de Deus, de
aos grandes sistemas do período juízo final ou de fim dos tempos e
helenístico, mencionados no ressurreição dos mortos, etc.
capítulo anterior. Precisou também explicar como o mal
Filosofia patrística (do século I pode existir no mundo, já que tudo
ao século VII) foi criado por Deus, que é pura
perfeição e bondade.
Inicia-se com as Epístolas de São
Paulo e o Evangelho de São João e Introduziu, sobretudo com Santo
termina no século VIII, quando teve Agostinho e Boécio, a idéia de
início a Filosofia medieval. A “homem interior”, isto é, da
patrística resultou do esforço consciência moral e do livre-
feito pelos dois apóstolos arbítrio, pelo qual o homem se torna
intelectuais (Paulo e João) e pelos responsável pela existência do mal
primeiros Padres da Igreja para no mundo.
conciliar a nova religião - o Para impor as idéias cristãs, os
Cristianismo - com o pensamento Padres da Igreja as transformaram
filosófico dos gregos e romanos, em verdades reveladas por Deus
pois somente com tal conciliação (através da Bíblia e dos santos)
seria possível convencer os pagãos que, por serem decretos divinos,
da nova verdade e convertê-los a seriam dogmas, isto é, irrefutáveis
ela. e inquestionáveis.
A Filosofia patrística liga-se, Com isso, surge uma distinção,
portanto, à tarefa religiosa da desconhecida pelos antigos, entre
evangelização e à defesa da religião verdades reveladas ou da fé e
cristã contra os ataques teóricos e verdades da razão ou humanas, isto

52
é, entre verdades sobrenaturais e de Lubac e Jean Daniélou, deu origem
verdades naturais, as primeiras à coleção “Sources Chrétiennes”,
introduzindo a noção de hoje com mais de 300 títulos, alguns
conhecimento recebido por uma graça dos quais com várias edições. Com o
divina, superior ao simples Concílio Vaticano II, ativou-se em
conhecimento racional. toda a Igreja o desejo e a
necessidade de renovação da
Dessa forma, o grande tema de toda
liturgia, da exegese, da
a Filosofia patrística é o da
espiritualidade e da teologia a
possibilidade de conciliar razão e
partir das fontes primitivas.
fé, e, a esse respeito, havia três
posições principais: Surgiu a necessidade de “voltar às
fontes” do cristianismo. Agora,
1. Os que julgavam fé e razão
preencher este vazio existente no
irreconciliáveis e a fé superior à
mundo. Nunca é tarde ou fora de
razão (diziam eles: “Creio porque
época para rever as fontes da fé
absurdo”).
cristã, os fundamentos da doutrina
2. Os que julgavam fé e razão da Igreja, especialmente no sentido
conciliáveis, mas subordinavam a de buscar nelas a inspiração
razão à fé (diziam eles: “Creio atuante, transformadora do
para compreender”). presente. Não se propõe uma volta
3. Os que julgavam razão e fé ao passado através da leitura e
irreconciliáveis, mas afirmavam que estudo dos textos primitivos como
cada uma delas tem seu campo próprio remédio ao saudosismo.
de conhecimento e não devem Ao contrário, procura-se oferecer
misturar-se (a razão se refere a aquilo que constitui as “fontes”
tudo o que concerne à vida temporal do cristianismo para que o leitor
dos homens no mundo; a fé, a tudo o as examine, as avalie e colha o
que se refere à salvação da alma e essencial, o espírito que as
à vida eterna futura). produziu. Cabe ao leitor, portanto,
a tarefa do discernimento.
A Patrística
Para não sobrecarregar o texto e
Apresentação
retardar a leitura, procurou-se
Surgiu, evitar anotações excessivas, as
pelos anos 40, na Europa, longas introduções estabelecendo
especialmente na França, um paralelismos de versões diferentes,
movimento de interesse voltado para com referências aos empréstimos da
os antigos escritores cristãos e literatura pagã, filosófica,
suas obras conhecidos, religiosa, jurídica, às infindas
tradicionalmente, como “Padres da controvérsias sobre determinados
Igreja”, ou “santos Padres”. textos e sua autenticidade.
Esse movimento, liderado por Henri Procurou-se fazer com que o

53
resultado desta pesquisa original fixação do cânon); 2) problemas de
se traduzisse numa edição coerência com o Antigo Testamento
despojada, porém, séria. Cada autor (como conciliar o Deus de justiça
e cada obra terão uma introdução do Antigo Testamento com o Deus de
breve com os dados biográficos amor do Novo);
essenciais do autor e um comentário
3) problemas teológicos (o problema
sucinto dos aspectos literários e
trinitário e a fixação do dogma da
do conteúdo da obra suficientes para
Trindade no Concilio de Niceia em
uma boa compreensão do texto. O que
325).
interessa é colocar o leitor
diretamente em contato com o texto. Sobre a base desses grandes
O leitor deverá ter em mente as problemas era claro o esforço de
enormes diferenças de gêneros definir a identidade do cristão, o
literários, de estilos em que estas que ocorreu em três momentos:
obras foram redigidas: cartas, 1) os dos Padres Apostólicos do sec.
sermões, comentários bíblicos, I (discípulos diretos dos
paráfrases, exortações, disputas apóstolos), que tiveram de modo
com os heréticos, tratados prevalente interesses morais e
teológicos vazados em esquemas e ascéticos);
categorias filosóficas de
tendências diversas, hinos 2) o dos Padres Apologistas do sec.
litúrgicos. Tudo isso inclui, II, que tentaram uma defesa do
necessariamente, uma disparidade de cristianismo, recorrendo também a
tratamento e de esforço de argumentos filosoficos (de resto, o
compreensão a um mesmo tema. As próprio prologo do evangelho de João
constantes, e por vezes longas, abria um caminho neste sentido);
citações bíblicas ou simples 3) por fim, o momento da Patrística
transcrições de textos (a partir do Ill d.C.), que usou de
escriturísticos, devem-se ao fato modo sistemático a filosofia
que os Padres escreviam suas (principalmente platônica) para dar
reflexões sempre com a Bíblia numa uma base teórica para a Revelação.
das mãos.
A Questão da autenticidade dos
0s problemas filosoficos essenciais textos bíblicos
que derivam do encontro entre "fé"
Cristo anunciou sua mensagem
e “razão” Filon de Alexandria e a
confiando-a a viva voz. Depois de
Gnose.
sua morte, essa palavra foi fixada
A mensagem evangélica em sua em alguns escritos, a partir da
complexidade suscitou uma serie de metade do século I. No curso do
problemas de grande porte: tempo, esses escritos se
1) problemas textuais (a seleção dos multiplicaram, mas somente alguns
textos inspirados, ou seja, a ofereciam as necessárias garantias

54
de credibilidade histórica. categórico sobre esse ponto: "Não
Portanto, a primeira tarefa urgente penseis que vim revogar a Lei e os
foi não apenas a de recolher esse Profetas. Não vim revoga-los, mas
material, mas também selecioná-lo. dar-lhes pleno cumprimento, porque
ou seja, distinguir os documentos em verdade vos digo que, até que
fidedignos dos falsos, os passem o céu e a terra, não será
autênticos dos inautêntico. Ao que omitido nem um só i, uma só virgula
parece, os primeiros documentos a da Lei, sem que tudo seja realizado.
serem coligidos foram as Cartas Aquele, portanto, que violar um só
endereçadas por Paulo pois varias destes menores mandamentos e
comunidades christis, as quais, ensinar os homens a fazerem o mesmo,
pouco a pouco, acrescentaram-se será chamado o menor no Reino dos
outros documentos. Céus". E o próprio Cristo citou
grande número de passagens do Antigo
Mas foi bastante complexa a história
Testamento como tendo valor de
que levou a formação do canôn
verdade e de autoridade
definitivo (cuja composição
indiscutível. Mas como interpretar
apresentamos), sendo necessários
as verdades expressas no Antigo
três séculos e notáveis esforços,
Testamento? Como conciliar as
porque alguns textos que, pouco a
diferenças existentes entre o Novo
pouco, com o amadurecimento da
e o Antigo Testamento? 0s gnósticos
consciência crítica dos cristãos,
(de que falaremos adiante) ainda
tiveram de ser excluídos do cânon,
complicaram as coisas, rejeitando o
já se haviam tornado familiares e
Antigo Testamento e chegando a
caros para muitos. 0 cânon do Novo
declará-lo até mesmo obra de um Deus
Testamento acabou sendo fixado em
diferente e inferior ao do Novo
367, mediante uma carta de Atanásio.
Testamento. Para alguns, o Deus de
Mas, mesmo depois de fixado o cânon,
justiça do primeiro pareceu
continuo a produção de textos
diferente do Deus de amor do
sacros. 0s escritos excluídos do
segundo. Para muitos, uma grave
cânon ou produzidos depois de sua
dificuldade era representada
determinação denominam-se apocrifos
sobretudo pela linguagem
do Novo Testamento (por analogia com
antropomórfica veterotestamentaria.
os apócrifos do Antigo
Testamento, ou seja, os escritos que Tudo isso gerou grandes debates,
não se encontram no cânon do Antigo favorecendo particularmente a
Testamento). grande difusão da interpretação
alegórica do Antigo Testamento
B. Questão da conciabilidade do
(difundida por Filon de Alexandria,
Antigo e do Nova Testamento.
de que falaremos adiante) e a
A segunda questão, ligada a essa, distinção de vários níveis de
diz respeito ao Antigo Testamento. compreensão do texto bíblico, que
0 crist5o deve aceita-lo. Cristo foi abririam amplos espaços para a

55
reflexão teológica, moral e especialmente platônico, desempenha
filosofica. papel bastante considerável.
"Padres da Igreja", portanto, são
C. A questão da identidade do
todos aqueles homens que
cristão.
contribuíram de modo determinante
Ademais, logo nasceria a urgente para construir o edifício
necessidade de se defender das doutrinário do cristianismo, que a
acusações de seus adversários Igreja acolheu e sancionou.
(particularmente dos hebreus, dos
D. Os grandes problemas teológicos.
pagãos e, depois, também dos
heréticos, sobretudo dos Como fica claro pelo que se disse,
gnósticos), que deformavam a o interesse desses homens, até dos
mensagem evangélica, bem como de mais cultos, e antes de mais nada
construir a identidade dos cristãos religioso e teológico. Sua
em todos os níveis. "filosofia" é sempre parte
integrante de sua fé'. 0s problemas
Nesse trabalho complexo, que levou
teológicos maiores que reclamaram o
alguns séculos, podemos distinguir
envolvimento de importantes
em três momentos fundamentais:
conceitos filosoficos (com as
a) o dos "Padres apostólicos" do respectivas discussões) foram:
Sec. I (assim chamados porque
a) o da Trindade;
ligados aos apóstolos e ao
seu espirito), que ainda não b) o da Encarnação;
enfrentam problemas filosoficos,
c) o das relações entre liberdade
limitando-se a temática moral e
e graça;
ascética (Clemente Romano, Inácio
de Antioquia, Policarpo de d) o das relaq6es entre fé e razão.
Esmirna); a) A formulação definitiva do dogma
b) o dos "Padres apologistas", da Trindade só ocorreu em 325, no
que, ao longo do Sec. ll, realizaram Concilio de Niceia, depois de longas
uma "defesa" sistemática do discussões e polemicas, quando
cristianismo, na qual os filósofos foram identificados e denunciados
aparecem frequentemente como os os perigos opostos do adocionismo
adversários a combater, mas quando (que consistia em não considerar
se começa também a usar as armas dos Cristo como filho "gerado", mas sim
filósofos para construir a própria "adotado" por Deus Pai), que
defesa; comprometia a divindade de Jesus, e
do modalismo (que consistia em
c) o momento da Patrística
considerar as pessoas da Trindade
propriamente dita, que vai do Sec.
como modos de ser e funções do único
lll. Ao início da Idade Média e no
Deus), bem como uma serie de
qual o elemento filosófico,

56
posições relacionadas a estas de metafísicos e antropológicos como
diversos modos. os de geração, criação, emanação,
processão, substância,
b) 0 problema cristológico também
consubstancia- lidade, hipóstase,
requereu séculos de trabalhosa
pessoa, livre-arbítrio, vontade e
elaboração e a superação de
semelhantes - acarretando assim
obstáculos de grande dificuldade,
grande densidade filosofica nas
sobretudo o perigo de cindir as duas
discussões e o seu progressivo
naturezas (a divina e a humana) de
crescimento em sentido ontol6gico e
Cristo, a ponto de perder sua
metafisico.
unidade intrínseca (como ocorreu
com a doutrina de Nestório e com o O Grande prologo do evangelho de
nestorianismo), ou então de João.
reduzir essas naturezas a uma só
0 texto básico para a mediação
(monofisismo).
racional e a sistematização da
0 Concilio de Éfeso (431) condenou doutrina e da filosofia cristã foi
o monofisismo, e o Concílio de o prólogo do Evangelho de Joio (além
Calcedônia (451) condenou o das Epistolas de Paulo), que fala
nestorianismo, estabelecendo a do "Verbo" ou "Logos" divino, e fala
formula "duas naturezas em uma só de Cristo precisamente em termos de
Pessoa. a de Jesus", ou seja, Logos: "No princípio era o Verbo
definindo que Jesus Como (Logos) e o Verbo estava com Deus e
"verdadeiro Deus" e "verdadeiro o Verbo era Deus. No princípio, ele
homem". 0s debates sobre esses estava com Deus. Tudo foi feito por
dogmas continuaram mesmo depois meio dele e sem ele nada foi feito
disso, mas já sobre bases essenciais de tudo o que existe.
consolidadas.
Nele estava a vida e a vida era a
C) Sobre o terceiro problema, luz dos homens e a luz briIha nas
trataremos ao falar de santo trevas, mas as trevas não a
Agostinho. L, d) Por fim, o problema apreenderam. (. . .) Ele estava no
das relações entre a fé e razão, mundo e o mundo foi feito por meio
expressamente levantado na escola dele, mas o mundo não o conheceu.
catequética de Alexandria e que já Veio para o que era seu e os seus
encontra uma primeira solução muito não o receberam.
clara em Agostinho, mas que se
Mas aos que o receberam deu o poder
tornaria problema central na
de se tornarem filhos de Deus: os
Escolástica. dando origem a "
que creem em seu nome, que não
diferentes tipos de soluções, ricas
nasceram do sangue, nem da vontade
em implicações e consequências.
da carne, nem da vontade do homem,
Todos esses problemas, como já
mas de Deus. E o Verbo se fez carne
observamos, envolveram a discussões
e habitou entre; e nos vimos a sua
de importantes conceitos

57
glória, como a gloria do Unigênito do Pentateuco (devemos recordar
do Pai, cheio de graça e de verdade. sobretudo A criação do mundo, as
(...) porque a lei foi dada por meio alegorias das leis, o herdeiro das
de Moisés; a graça e a verdade nos coisas divinas, A migração de Abraão
vieram por Jesus Cristo. Ninguém e a mutação dos nomes, que estão
jamais viu a Deus: o Filho entre os mais belos).
unigênito, que está voltado para o
0 Cristo histórico de Filon está em
seio do Pai, este o deu a conhecer
ter tentado pela primeira vez na
". Esse texto se apresentou como o
história uma fusão entre filosofia
mapa fundamental dos problemas
grega e teologia mosaica, criando
essenciais. E o conceito de Logos
assim uma "filosofia mosaica". 0
permitiu utilizar de modo fecundo
método com o qual Filon operou a
uma série de elementos do pensamento
mediação foi o da "alegorese". Ele
helênico, que culminara no conceito
sustenta que a Bíblia tem: a) um
de Logos, como gradualmente
significado literal, que, no
examina- remos.
entanto, não é o mais importante;
Um precursor b) um significado oculto, segundo o
qual as personagens e eventos
Filon de Alexandria bíblicos são símbolos de conceitos
Filon de Alexandria (ou Filon Judeu) e verdades morais, espirituais e
toma da Estoa conceito de Logos, e metafisicas. Essas verdades
de Platão a estrutura do mundo subjacentes (que se colocam em
suprassensível e o das Ideias, que diferentes níveis) requerem
reforma de modo profundo, particular disposição de espirito
considerando-o como objeto do (quando não, até mesmo, uma
pensamento de Deus e criação de verdadeira inspiração) para que se
Deus. Do Antigo Testamento toma possa captá-las.
grande parte dos traços éticos, A interpretação alegórica alcançará
antropológicos e teológicos que grande êxito, tornando-se um
interpreta e traduz a luz da verdadeiro método de leitura da
alegorização filosofica. Bíblia para a maioria dos Padres da
A "filosofia Mosaica. Igreja e transformando-se, assim,
por longo tempo, numa constante.
0 judeu Filon, que nasceu em
Alexandria entre 15 e 10 a.C., A filosofia mosaica de Filon
desenvolvendo suas atividades na representou a aquisição de uma série
primeira metade do século I d.C., de novos conceitos, desconhecidos
pode ser considerado um precursor para o pensamento grego, a começar
dos Padres, pelo menos em certa pelo conceito de "criação, do qual
medida. Entre suas obras numerosas, ele forneceu a primeira formulação
destaca- se a série de tratados que em termos sistemáticos: Deus cria a
constituem um Comentário alegórico matéria do nada e depois imprime a

58
forma sobre ela. Mas, para criar o dias, ou, em geral, no tempo.
mundo físico, Deus cria, antes dele, Por que? Porque se o tempo em
o cosmo inteligível como "modelo sua complexidade nasce da
ideal". E esse "cosmo inteligível sequência dos dias e das
outra coisa não é que o Logos de noites (cf. Gn 1 , l4), e isso
Deus no ato de formar o mundo" (as se realiza necessariamente
Ideias platônicas, por meio do movimento do sol
desse modo, tornam-se acima e sob a terra (e, por
definitivamente pensamentos de Deus outro lado, o sol e uma parte
presentes no Logos de Deus e do céu, de modo que é preciso
coincidentes com ele). convir que o tempo nasceu
depois do cosmo), então é
A criação do Mundo.
totalmente justo afirmar que o
1. "E o céu e a terra e todo o seu cosmo não foi criado no tempo,
mundo foram completados" (Gen. 2.1 mas que, ao contrário deste
). Se antes falara-se da gênese do último, subsiste em razão do
intelecto e da sensação, agora se cosmo. Com efeito, foi
fala do cumprimento de ambas. justamente o movimento do céu
Sagrada Escritura, porém, diz que que tornou manifesta a
não foram o intelecto individual e natureza do tempo.
a sensação particular que foram
Os apologistas gregos e a escola
levados ao cumprimento, mas as
catequética de Alexandria
Ideias correspondentes, a do
intelecto e a da sensação. Os apologistas gregos do segundo
Do ponto de vista alegórico, o século.
intelecto chamado de "céu", Aristides, Justino, Taciano
justamente porque as naturezas
Justino foi o primeiro platônico
inteligíveis estão no céu, e a
cristão e o mais importante dos
sensação de "terra", dado que está
apologistas. Retomou de Filon a
possui uma constituição corpórea e
doutrina do Logos, que identificou
mais semelhante a terra. 0 "mundo"
com Cristo: nos homens estão
do intelecto, portanto, o conjunto
presentes "sementes" do Logos,
das realidades incorpore-as e
graças as quais cada homem pode
inteligíveis; o da sensação, o
conhecer parte da verdade. Concebeu
conjunto dos seres corpóreos e das
a alma humana como mortal por
sensíveis em geral.
natureza, porque tudo o que vem de
2. "E no sexto dia Deus Levou a pois de Deus, enquanto gerado, e
termo suas obras, as que havia corruptível. Outros apologistas do
criado" (Gn 2,2). Sem dúvida sec. II foram: - Taciano, discípulo
seria tolice crer que o cosmo de Justino, valente adversário da
tenha sido gerado em seis filosofia grega;

59
- Atenágoras, que forneceu a intrépidos diante da morte e diante
primeira prova racional da daquilo que os homens mais temem,
unicidade de Deus e se empenhou compreendi que era impossível que
sobre o problema trinitário; eles vivessem no mal". A seguinte
passagem da segunda Apologia resume
-Teófilo de Antioquia, que retoma a
perfeitamente sua posição de
doutrina do Logos de Justino para
cristão em relação a filosofia: "Eu
explicar a Trindade;
sou cristão, glorio-me disso e,
- O autor da Carta a Diogneto, confesso, desejo fazer-me
pequena joia da literatura crista reconhecer como tal. A doutrina de
antiga. Platão não é incompatível com a de
Marciano Aristides Cristo, mas não se casa
perfeitamente com ela, não mais do
A primeira Apologia do cristianismo que a dos outros, dos estoicos, dos
que chegou até nós (descoberta poetas e dos escritores. Cada um
somente no século passado) é da destes viu, do Verbo divino que
autoria de Marciano Aristides, na estava disseminado pelo mundo,
época do imperador Antonino Pio, aquilo que estava em relação com a
aproximadamente de meados do século sua natureza, chegando desse modo a
ll. Ele sustenta que só os cristãos expressar uma verdade parcial.
possuem a verdadeira filosofia,
porque encontraram mais do que todos Mas, à medida que se contradizem nos
os outros a verdade acerca de Deus pontos fundamentais, mostram que
e, em sua pureza de vida, não estão de posse de uma ciência
testemunham adequadamente a verdade infalível e de um conhecimento
em que creem. irrefutável. Tudo aquilo que
ensinaram com veracidade pertence a
Justino Mártir. (O primeiro nos, cristãos.
platônico cristão).
Com efeito, depois de Deus nos
A figura de maior destaque foi adoramos e amamos o Logos nascido
Justino Mártir, que nasceu em Flavia de Deus, eterno e inefável, porque
Neapolis, na Palestina, sendo autor ele se fez homem por nós, para
de duas Apologias e de um Dialogo curar-nos dos nossos males,
com Trifão. A fervorosa busca da tomando-os sobre si. 0s escritores
verdade levou-o de Platão a Cristo. puderam ver a verdade de modo
Para sua conversão, porém, revelou- obscuro, graças a semente do Logos
se determinante o testemunho dos que neles foi depositada. Mas uma
mártires. coisa é possuir uma semente e uma
Eis suas próprias palavras: "Quando semelhança proporcional as próprias
ainda era discípulo de Platão, eu faculdades e outra é o próprio
ouvia as acusações dirigidas contra Logos, cuja participação e imitação
os cristãos. Mas, vendo-os deriva da graça que dele provém".

60
A doutrina da alma. discípulo de Justino, por quem foi
convertido. Em seu Discurso aos
Entre suas doutrinas particulares,
gregos, ele manifesta acentuada
destaca-se a doutrina sobre as
aversão a filosofia e a cultura
relações entre o Logos-Filho e Deus-
grega, ao contrário de seu mestre.
Pai, interpretada através de uma
vangloriando-se polemicamente de
inteligente utilização do conceito
ser "bárbaro" e de ter encontrado a
estoico de "Logos proferido", que
verdade e a salvação em escritos
Filon já havia utilizado, e de
"bárbaros" (a Bíblia). Ele destaca
outros conceitos destinados a ter
que todas as coisas criadas,
grande eco posteriormente: "Como
incluindo a alma, não são eternas.
princípio, antes de todas as
A alma não é imortal por sua
criaturas, Deus gerou de si mesmo
natureza. Ela e ressuscitada por
certa potência racional (loghike),
Deus juntamente com o corpo.
que o Espirito Santo chama ora
'Gloria do Senhor', ora Interessante é a retomada da
'Sabedoria', ora 'Anjo', 'Deus', tripartição, que está presente
'Senhor' e Logos (= Verbo, Palavra) tanto em Paulo como em Filon, do
(...) e porta todos os nomes, porque homem em: 1) corpo; 2) alma; 3)
cumpre a vontade do Pai e nasceu da espirito. Aquilo que, em nós, é
vontade do Pai. E, assim, vemos que "imagem e semelhança" de Deus é o
algumas coisas acontecem entre nós: espirito, bem superior A alma.
proferindo uma palavra (= logos,
E o espirito - e apenas ele - que
verbum), nós geramos uma palavra
torna o homem (que, por sua
(logos), mas, no entanto, não ocorre
natureza, C mortal) imortal.
uma divisão e uma diminuição do
logos (= palavra, pensamento) que A carta de Diogneto.
está dentro de nós. E assim vemos A Carta Diogneto, transmitido com o
também que, de um fogo, acende-se nome de Justino, é considerado pelos
outro fogo sem que o fogo que acende estudiosos como não autentico,
seja diminuído: este permanece todavia, é uma pequena joia da
igual e o novo fogo que se acendeu Literatura cristã, tanto pela
subsiste sem diminuir aquele do qual profundidade espiritual do
se acendeu". conteúdo, como pela beleza
Taciano. estilística e retórica da forma, mas
tambem pela modernidade e pela
Outros apologistas do século ll, que
atualidade de muitos temos
tiveram certa importância, foram:
discutidos em particular pela
Taciano o Assírio, Atenágoras
dimensão política da vida cristã.
de Atenas, Teófilo de Antioquia e o
autor anônimo da Carta a Diogneto, A identidade dos cristãos: vivem
um documento bastante neste mundo, cidadãos de um outro.
significativo. Taciano foi

61
0s cristãos, com efeito, não se mesmo tempo se dá testemunho de sua
diferenciam dos outros homens nem justiça.
pelo território nem pela língua ou
São ultrajados e bendizem; são
costumes. Não habitam em cidades
insultados e, ao contrário, honram.
próprias nem falam uma linguagem
Embora reduzem o bem, são punidos
~inusitada; a vida que levam nada
como malfeitores; embora punidos,
tem de estranho. Sua doutrina não é
se alegram, como se
fruto de considerações e
recebessem a vida. são combatidos
elucubrações de pessoas curiosas,
pelos judeus como estrangeiros e são
nem se apresentam como promotores,
perseguidos pelos gregos, mas quem
como alguns, de alguma teoria
os odeia não sabe explicar o motivo
humana. Habitando nas cidades
da própria aversão em relação a
gregas barbaras, como coube a cada
eles.
um, e conformando-se com os costumes
locais no que se refere ao vestuário Enfim, para dizer brevemente, os
e alimentação, e ao resto da vida cristãos desenvolvem no mundo a
cotidiana, demonstram o caráter mesma função da alma no corpo. A
admirável e extraordinário, no alma está espalhada em todos os
dizer de todos, de seu sistema de membros do corpo; também os cristãos
vida. Habitam na própria pátria, mas estão espalhados pelas cidades do
como estrangeiros, participam de mundo. A alma habita no corpo, mas
tudo como cidadãos, e tudo suportam não pertence ao corpo; também os
como forasteiros, qualquer terra cristãos habitam no mundo, mas não
estrangeira é a sua pátria, e pertencem ao mundo. A alma invisível
qualquer pátria é terra está aprisionada no corpo visível;
estrangeira. Casam-se como todos, os cristãos estando no mundo, são
geram filhos, mas não expõem os visíveis, mas o culto que dirigem a
recém-nascidos. Tem em comum a mesa, Deus permanece invisível.
mas não o leito. Estão na carne, mas A carne odeia a alma e a combate,
não vivem segundo a carne. Moram embora sem receber nenhuma
sobre a terra, mas são cidadãos do injustiça, porque a impede de
céu. Obedecem às leis abandonar-se aos prazeres; também
estabelecidas, e com sua vida os cristãos são odiados pelo mundo,
superam as leis. Amam a todos e são embora não lhe façam nenhum mal,
perseguidos por todos. Não são porque se opõem aos prazeres. A alma
conhecidos, e assim mesmo são ama a carne e os membros que a
condenados; são mortos, e, todavia, odeiam, assim como os cristãos amam
são vivificados. São pobres e quem os odeia. A alma, que também
enriquecem a muitos; são carentes sustenta o corpo, está presa neste;
de tudo e tem abundância de tudo. também os cristãos, embora sejam o
são desprezados, mas no desprezo apoio do mundo, são aprisionados
adquirem gloria; são xingados e ao nestes como em um cárcere. A alma

62
imortal habita em uma morada mortal; enquanto o Pai e unidade absoluta,
também os cristãos vivem corno o Filho explica múltiplas
estrangeiros entre aquilo que é atividades
corruptível, enquanto esperam a
Clemente e a verdadeira gnose
incorruptibilidade celeste. Com as
mortificações no comer e no beber, Por volta de 180, em Alexandria,
a alma se torna melhor; os cristãos, Panteno, um estoico que se converteu
embora perseguidos, a cada dia se ao cristianismo, fundou urna
tornam mais numerosos. Deus lhes escola catequética que estava
reservou um lugar tão sublime, e a destinada a encontrar seu máximo
eles não é licito abandoná-lo. esplendor com Clemente e Orígenes.
Clemente, chamado "Alexandrino"
A escola catequética de para distingui-lo do homônimo
Alexandria.
"Romano" (morto em 97), nasceu em
Clemente e Orígenes torno de 150 (em Atenas ou
Alexandria). Seu encontro com
Clemente, harmonia e que existe no
Panteno foi decisivo: tornou-se seu
entre a fé a razão.
aluno, colaborador e, por fim,
Clemente (nascido por volta de 150) também sucessor. Dele nos ficaram o
se propõe demonstrar perfeita Protreptico aos gregos, o Pedagogo,
harmonia e que existe no entre a fé os Estromatas, uma Homilia e
a razão que existe no cristianismo. diversos fragmentos. Quasten, um
A filosofia não torna a verdade mais dos maiores estudiosos modernos de
forte, mas defende a fé dos ataques patrologia, assim caracteriza nosso
dos inimigos da verdade. autor: "A obra de Clemente de
Alexandria marca toda uma época. Não
Orígenes.
seria exagero louvar nele o fundador
Deus, para Orígenes (185-253), e uma da teologia especulativa. (. . .)
realidade incorpórea, e sua Clemente foi o iniciador arguto e
natureza transcendente o torna feliz de uma escola que se propunha
incompreensível a mente humana. a defender e aprofundar a fé' com o
Jesus, unigênito filho de Deus, e auxílio da filosofia ".
"a sabedoria de Deus Clemente não se limita a combater a
substancialmente subsistente", na falsa gnose, nem se detinha numa
qua1 existem desde sempre as ideias atitude puramente negativa.
de todos os entes existentes. Embora
Com efeito, ele "opõe a falsa gnose
o Filho seja da mesma natureza do
uma gnose autenticamente cristã,
Pai, Orígenes, talvez influenciado
propondo-se a dispor a serviço da
pela estrutura hipostática do
fé' o tesouro de verdade que se
pensamento médio-
encerra nos diversos sistemas
platônico/neoplatônico, considera-o
filosoficos. 0s partidários da
subordinado ao Pai: com efeito,
gnose herética ensinavam a

63
impossibilidade de uma Figura e os fundamentos do
reconciliação entre a ciência e a pensamento de Orígenes
fé, nas quais viam dois elementos
De outra robustez e o pensamento de
contraditórios. Clemente, porém,
Origenes, que representa a primeira
procura demonstrar sua harmonia.
e grandiosa tentativa de
E a concordância da fé (pistis) com síntese entre filosofia e fé cristã;
o conhecimento (gnoses) que faz o nele, as doutrinas dos gregos
perfeito cristão e o verdadeiro (particularmente dos platônicos,
gnóstico. A fé e o princípio e o mas também de outros filósofos,
fundamento da filosofia. como, por exemplo, os estoicos) são
utilizadas como instrumentos
Acrescida a fé, a filosofia não
conceituais aptos para expressar e
torna a verdade mais forte em si
interpretar racionalmente as
mesma, mas torna impotentes os
verdades reveladas na Escritura.
ataques dos inimigos da verdade,
Origenes nasceu por volta de 185,
constituindo, portanto, um válido
em Alexandria. Seu Pai Leônidas
baluarte de defesa. Contudo, para
morreu mártir, testemunhando a fé
Clemente, a fé permanece como
de Cristo. 0 patrimônio da família
critério da ciência. E a ciência
foi confiscado e Origenes passou a
constitui um auxílio de caráter como
ganhar a vida ensinando. Ainda
que auxiliar para a fé.
jovem, a partir de 203, assumiu a
0 conceito que constitui o eixo direção da escola catequética,
básico das reflexões de Clemente é tornando-se verdadeiro modelo pela
o conceito de "Logos", entendido em doutrina e pelas virtudes. Em 231,
triplo sentido: a) principio forçado a abandonar Alexandria pela
criador do mundo; aversão que lhe devotava o bispo
b) princípio de toda forma de Demétrio, Origenes prosseguiu sua
sabedoria, que inspirou os profetas atividade em Cesaréia, na
e os filósofos; Palestina, com grande sucesso.
Atingido pela perseguição aos
c) princípio de salvação (Logos cristãos ordenada por Deo Clécio,
encarnado). 0 Logos C foi preso e torturado. Morreu em 253
verdadeiramente o princípio devido as consequências dessas
e o fim, o alfa e o ômega, aquilo torturas.
de que tudo provim, e para onde tudo
retorna; o Logos é mestre e Agostinho de Hipona.
salvador. E, no novo sentido do O doutor da graça
Logos, a "justa medida", que era a
marca da antiga sabedoria e da Se a civilização ocidental foi
virtude grega, se integra no “salva” da desintegração na
ensinamento de Cristo. barbárie por Sócrates, Platão e
Aristóteles, pode-se dizer que a

64
chegada do cristianismo e a tempo com especulações ou
filosofia cristã tiveram um efeito subterfúgios universais produz
salutar semelhante. A época dos anos sementes ou “faíscas”, os logoi
dourados da Grécia começou a spermatikoi, em todas as coisas, de
declinar após a morte de modo que cada pessoa tem em si uma
Aristóteles, e não demorou a se faísca do divino. A preocupação
deteriorar com os movimentos central do estoicismo foi a
filosóficos posteriores. filosofia moral. A virtude é
encontrada na reação da pessoa ao
Assim como o impasse metafísico
determinismo, materialista. O ser
entre Heráclito e Parmênides gerou
humano não pode determinar seu
uma era de críticas e sofismas, o
próprio destino.
impasse entre Platão e Aristóteles
levou a uma nova onda de ceticismo Ele não tem controle sobre o que
filosófico. As únicas duas escolas lhe acontece. Sua liberdade é
filosóficas mencionadas pelo nome restrita à sua reação ou atitude
no Novo Testamento são a dos interior ao que lhe sobrevêm. O
estóicos e a dos epicureus, que o objetivo da vida virtuosa é a
apóstolo Paulo encontrou no ataraxia filosófica, objetivo esse
areópago em Atenas (At 17.18). Eram que os estóicos compartilhavam com
duas escolas rivais fundadas mais os epicureus. O que é ataraxia? A
ou menos na mesma época, por volta palavra é raramente ouvida em
de 3Õ0 a. C. português, a não ser talvez como
nome de tranquilizante. A palavra
O estoicismo foi fundado por Zenão
grega pode ser traduzida mais ou
de Cítio e o epicurismo por Epicuro.
menos como “paz interior” ou,
Apesar de as duas escolas tentarem
“tranquilidade da alma”. Tanto
fugir do crescente ceticismo que
estóicos quanto epicureus buscavam
seguiu o rastro de Aristóteles, elas
a ataraxia, mas eles divergiam
claramente se distanciaram, em
radicalmente sobre a forma de
termos de enfoque e ênfase, da busca
alcançá-la. Os estóicos buscavam a
metafísica da realidade
ataraxia pela prática da
fundamental.
“imperturbabilidade”, a aceitação
Os estóicos. do destino pessoal com serenidade e
Os estoicos desenvolveram uma coragem. Sua música-tema poderia
cosmologia de materialismo. Deram ter sido: “Que será, será”.
ênfase à idéia de Heráclito do fogo A pessoa sábia encontra virtude na
seminal que determina todas as força de vontade. O segredo de uma
coisas, o logos spermatikos. Esse vida boa e feliz é saber o que está
logo A objetividade é uma qualidade sob o nosso controle e o que não
atribuída a algo ou a alguém que é está. Sócrates era um modelo heroico
direto em suas ações, sem perder para os estóicos, em virtude da

65
serenidade com que enfrentou sua provocar o vômito com um dedo na
execução. Mais tarde, Epicteto garganta e empanturrar-se de novo.
disse: “Hão posso escapar à morte, Os cireneus saciavam-se com comida,
mas será que não posso escapar ao bebida e sexo, buscando atender a
medo dela?” As idéias "dos antigos todos os desejos e satisfazer a
estóicos constituem o que hoje qualquer apetite físico. Diferente
descrevemos como uma atitude dos cireneus, os epicureus buscavam
estóica em relação à vida, a um gozo refinado e sofisticado do
filosofia da “cabeça erguida”, prazer, portando-se com moderação.
pela qual nada jamais nos abala ou
Não seguiam a fórmula simplista
nos faz perder as esperanças.
“comamos e bebamos, pois amanhã
Naquele que aperfeiçoou a prática
morreremos”. Eles entendiam que há
da imperturbabilidade, a alma
diferentes tipos de prazer: há os
permanece em estado de felicidade
prazeres da mente, além dos prazeres
tranqüila.
do corpo. Alguns prazeres são
Os epicureus. intensos, mas de curta duração. A
preocupação com o prazer intenso e
Os epicureus, por sua vez,
apenas físico leva inevitavelmente
rejeitavam o determinismo
a duas coisas que se quer evitar:
materialista e afirmavam um âmbito
infelicidade e sofrimento. O
muito mais amplo da liberdade
objetivo dos epicureus não era a
humana. Eles eram hostis à religião,
embriaguez que leva inevitavelmente
porque acreditavam que ela gera um
a uma ressaca, mas a ausência de
temor supersticioso e debilitante.
dores no corpo e a presença de paz
Entendiam que a filosofia liberta
1 interior, a ataraxia. Os epicureus
de um modo humano as pessoas da sua
procuravam escapar do “paradoxo
escravidão à religião.
hedonista”: a busca do prazer acaba
Os epicureus buscavam a ataraxia apenas em frustração (quando o
pelo que eu chamo de “hedonismo objetivo não é alcançado) ou em
refinado”, em contraste com formas tédio (quando se atinge o objetivo).
rudes ou grosseiras de hedonismo. O Tanto. frustração quanto tédio são
hedonismo refinado define o bem como tipos de sofrimento que são a
obtenção de prazer e ausência de antítese do prazer. Por isso, os
sofrimento. Os antigos cireneus epicureus buscavam não o prazer
eram um exemplo de hedonismo máximo, mas o prazer ótimo. Eles
grosseiro. Eles eram glutões, concluíram que a dieta de pão e água
buscando o prazer físico no grau de um sábio tem mais chances de lhe
máximo, A idéia cirenaica foi trazer felicidade do que a comida
mostrada por filmes de Hollywood que excelente de um glutão.
retrataram antigas orgias e festas
Os céticos.
em que as pessoas se enchiam de
comida e bebida, para depois

66
O reavivamento do ceticismo depois influenciou a busca da verdade
de Aristóteles pode ser vinculado a empreendida por Agostinho, porém
Pirro e Arcesilau, que fundaram duas houve duas outras forças
escolas, o pirronismo e o ceticismo importantes que alteraram o
acadêmico respectivamente. " Os ambiente intelectual dos séculos
céticos lançaram dúvidas sobre a que o precederam. A primeira, é
obra tanto de Platão como de claro, foi a chegada do
Aristóteles. Arcesilau, que se cristianismo. A igreja antiga virou
tornou o diretor da Academia de o mundo de pernas para o ar, e num
Platão no terceiro século a.C., período de tempo
rejeitou a filosofia metafísica de impressionantemente curto o
Platão. Ele negou que a verdade cristianismo suplantou a filosofia
possa ser descoberta com certeza e grega como a cosmovisão dominante.
criou em lugar disso a filosofia da Os gregos, todavia, não se renderam
probabilidade. O ceticismo foi sem luta. O neoplatonismo, a segunda
codificado por Sexto Empírico por força importante, tomou forma e
volta de 200 a.C, Ele afirmou que, representou um enorme desafio ao
para cada proposição filosófica, cristianismo.
uma proposição-contrária de igual
Os neoplatônicos
peso e força pode ser levantada
(antecipando até certo ponto as Plotino (204-270 d.C.) era do Egito,
“antinomias” de Immanuel Kant na onde conheceu as teorias dos antigos
época moderna). Os céticos não gregos, bem como ao judaísmo
abandonaram a busca da verdade. Na helenista e ao cristianismo. Ele
verdade, perseguiam-na com empenho. mudou-se para Roma aos quarenta anos
Sua tendência, no entanto, era de idade e procurou conscientemente
abster-se de qualquer conclusão. desenvolver uma filosofia que
Eles refletiam a descrição bíblica servisse de alternativa ao
dos que estão sempre buscando a cristianismo. Sua intenção era
verdade sem jamais alcançá-la (2Tm reavivar o platonismo, mas
3.7). Preferiam não chegar a modificando-o para tratar da
conclusões firmes, na convicção de principal questão levantada pelo
que a busca da verdade não pode ir pensamento cristão: a salvação. Sua
tão longe. Tomavam o cuidado filosofia foi eclética e
especial de não tirar conclusões das sincrética, emprestando elementos
percepções dos sentidos, porque de vários filósofos. Ele rejeitou o
estes são facilmente enganados. materialismo dos estóicos e dos
Igualmente lançavam dúvidas sobre epicureus, o esquema de forma e
axiomas morais, preferindo matéria de Aristóteles e a doutrina
suspender o julgamento de questões judeu-cristã da criação. Deus está
éticas. O dogma era o inimigo deles. no centro do neoplatonismo, que
O ceticismo inicialmente Plotino chamou de “o Uno”.

67
Em última análise, diz Plotino, toda
realidade flui ou emana do Uno. O
Uno, porém, não cria, porque isso o
ligaria a um ato de mudança. Em vez
disso, o mundo emana
necessariamente do Uno, de modo
análogo aos raios do sol que emanam
do seu núcleo.

A realidade é estruturada em camadas


ou modos que emanam do Uno. Quanto
mais longe a realidade fica do cerne
do Uno, mais material ela se torna. Esse método de negação funciona até
Plotino é muitas vezes considerado certo ponto na teologia cristã.
um tipo de panteísta, já que /crê Apesar de o cristianismo também ter
que toda realidade, no fundo, é um um “meio de afirmação”, ele
modo do Uno. Mas ele insiste em emprega a via da negação quando
certa forma de transcendência do descreve Deus como infinito (não
Uno, que é mais elevado como ser finito), imutável (não mutável),
puro do que os modos de ser que lhe in- criado (não criado), e assim por
são subordinados, O primeiro nível diante.
de emanação é o nível da nous ou
mente, que é eterna e fora do tempo. O doutor da graça.
Aí está o mundo das idéias de Traçamos um rápido panorama dos
Platão. Da nous origina-se o mundo movimentos mais importantes da
da alma, e desta deriva o da filosofia entre a época de
matéria, o mais baixo de todos. O Aristóteles e a de Agostinho, a fim
Uno em si é inefável. Ele não pode compreender melhor as questões de
ser captado pela razão nem percebido peso com que Agostinho teve de
pelos sentidos. E conhecido somente lidar. Agostinho nasceu em 354 d.C.
pela intuição ou percepção mística.
na cidade de Tagaste, na Numídia
Nenhum atributo positivo lhe pode
(atual Argélia). Seu pai era pagão,
ser creditado; ele pode ser descrito
e sua mãe, Mônica, uma cristã
apenas “por meio da negação”, ou
devota. Agostinho morreu em 430
pela via negationes. Ou seja,
d.CL, depois de distinguir-se como
podemos dizer sobre Deus somente o
o supremo “doutor da graça”. Ele
que ele não é.
foi o maior filósofo-teólogo
cristão do primeiro milênio e talvez
de toda a era, cristã.

Agostinho quando jovem manifestou


um anseio extraordinário por
conhecimento. Depois de ter lido

68
Cícero com a idade de dezenove anos, provável, mas eterna, imutável e
Agostinho consagrou sua vida à busca independente.
da verdade. Passou por diferentes
Ele tinha noção das limitações do
períodos de crescimento e revolta.
conhecimento sensorial e da
A princípio rejeitou o cristianismo
propensão sentidos de nos iludir,
e adotou a filosofia dualista “do
que ele ilustrou pelo exemplo do
maniqueísmo.
remo: da perspectiva do olho, um
Mais tarde abraçou o ceticismo e remo na água está quebrado, quando
depois passou por um período de na verdade continua reto. Agostinho
neoplatonismo. Em 386 experimentou procurou áreas de certeza e
a conversão ao cristianismo. Dez descobriu-as no campo do racional e
anos depois da sua conversão já era do matemático, bem como na
bispo, função que manteve até a sua autoconsciência. No ato de
morte. Sua obra foi volumosa, e nela autoconsciência, a realidade
destacam-se as Confissões e a cidade objetiva da mente é conhecida
de Deus. imediatamente com certeza. Muito
antes de René Descartes ter
Ele defendeu a ortodoxia cristã em
formulado sua famosa máxima:
embates teológicos terríveis com
Cogito, ergo sum (“Penso, logo
hereges, nas controvérsias
existo”), Agostinho já formulara o
donatista e pelagiana.
argumento. Ele combateu o medo de
I diz que Agostinho conseguiu fazer errar dos céticos acadêmicos-e seu
uma síntese filosófica entre probabilismo dizendo: “Erro, logo
platonismo e cristianismo, porém existo.” Ele dizia que uma pessoa
sua obra não evidencia um sistema que não existe não pode errar.
como tal. Suas reflexões sobre as
Por isso, se alguém erra, não pode
áreas fundamentais) da
fazê-lo sem antes existir. Assim,
epistemologia, da criação, do
até os erros servem de evidência da
problema do mal e da natureza do
existência. Agostinho também
livre-arbítrio são de importância
afirmou que a lei da não-contradição
permanente. Ele influenciou o
não pode ser questionada, pois tem
desenvolvimento da doutrina da
de ser considerada e usada em cada
igreja, da doutrina da Trindade e
esforço de negá-la.
da doutrina da graça na salvação.
Agostinho combateu todas as formas Portanto, negar a lei da não-
antigas de ceticismo, procurando contradição ou “contradizê-la” é,
estabelecer um fundamento para a de fato, o mesmo que afirmá-la.
verdade. Ele buscou a verdade na Agostinho via a matemática como
mente ou na alma, tornando-se o pai fonte de verdade objetiva e
da introspecção psicológica. Buscou indubitável. Como a lógica, a
uma verdade que não fosse apenas matemática não depende de dados

69
sensoriais para estabelecer sua É por isso que Agostinho
verdade. incentivava os alunos a aprender o
máximo que pudessem sobre o maior
Dois mais três não apenas são cinco,
número de temas possível. Para ele,
mas também dois mais três serão
toda verdade é verdade de Deus, e
sempre cinco, em qualquer condição.
quando alguém encontra ã verdade,
Verdade e revelação. encontra Deus, de quem ela é.
A noção da revelação divina era Agostinho faz uma ligação com o
central na epistemologia, ou teoria evangelho quando diz: “e
do conhecimento, de Agostinho. Ele conheceres a verdade, e a verdade
entendia que a revelação é a vos libertará” João 8.32.
condição necessária para todo Mesmo no ato de auto percepção ou
conhecimento. Assim como Platão consciência, cada pessoa está
argumentara que, para escapar das imediatamente ciente de Deus.
sombras no muro da caverna, o Quando tomo ciência de mim mesmo,
prisioneiro precisa ver as coisas à fico ao mesmo tempo ciente da minha
luz do dia, Agostinho argumentava finitude e de Deus que me fez. Para
que a luz da revelação divina é Agostinho, o conhecimento de si
necessária ao conhecimento. mesmo e o conhecimento de Deus são
A metáfora da luz é esclarecedora. os objetivos gêmeos da filosofia.
Em nosso presente estado terreno Como João Calvino, discípulo de
estamos dotados da capacidade de Agostinho, observou mais tarde, há
ver. Temos olhos, nervos óticos, uma relação de dependência mútua,
etc. — todo o equipamento necessário simbiótica, entre o conhecimento de
para ver. Mas o homem com a visão Deus e o conhecimento de si mesmo.
mais arguta do mundo não poderá ver Não posso conhecer a Deus sem antes
nada se estiver trancado em um estar ciente de mim mesmo no
quarto totalmente escuro. Assim, do pensamento, porém não posso me
mesmo modo como uma fonte externa conhecer realmente a não ser no
de luz é necessária para ver a relacionamento com Deus. Agostinho
revelação externa de Deus é formulou também a premissa que
necessária para conhecer. Quando Calvino mais tarde chamaria de
Agostinho fala de revelação, não sensus divinitatis, o conhecimento
está falando apenas da revelação- imediato de Deus inato à alma
bíblica. mas também está preocupado humana. Todas as pessoas sabem que
com a revelação “geral” Deus existe, apesar de nem todas as
natural”. Além de todas as verdades pessoas acederem que o conhecem. Seu
encontradas na Bíblia dependerem da pecado primordial é a recusa em
revelação de Deus, toda a verdade, honrar a Deus como Deus, recusando-
incluindo a verdade científica, se a reconhecer o que sabem ser
depende da revelação divina. verdade. O desprezo das pessoas em

70
relação à existência de Deus é da gravidade ou do movimento, mas
intencional e por isso pecaminoso. não é absurdo crer que gravidade e
movimento são reais. Do mesmo modo,
Conhecimento e fé.
posso não ter uma compreensão
A fé, segundo Agostinho, é um abrangente do mistério da Trindade,
ingrediente essencial do mas o conceito da Trindade não é
conhecimento. Agostinho não contraditório nem irracional. Creio
restringe sua noção de fé ao que nós na verdade da Trindade porque estou
tipicamente identificamos como fé convicto de que ela foi revelada por
religiosa. Deus, com o que eu, em bases sadias
A fé também abrange uma convicção e sóbrias, concordo com fé implícita
provisória das coisas antes de (fides implicitum). Se, por
podermos validá-las pela exemplo, eu sei que Deus existe, é
demonstração. Ele adotou o famoso onisciente e totalmente justo,
lema: Credo ut intelligam (“Creio seria tolo duvidar do que ele revela
a fim de entender) Nesse sentido, a claramente. Para Agostinho, a fé não
fé antecede a razão. Todo é cega nem arbitrária, como a
conhecimento começa na fé. Quando 'credulidade. Ser crédulo significa
crianças, aceitamos pela fé o que crer no absurdo e irracional — crer
nos é ensinado. Cremos em nossos sem boas razões. A fé correta, para
pais e professores até podermos Agostinho, é sempre fé razoável. A
verificar por nós mesmos o que eles revelação transmite informações que
dizem. não se podem obter pela razão, sem
ajuda, mas jamais informações
Podemos duvidar da advertência dos opostas às leis da razão.
nossos pais de que o fogão é quente,
mas é só tocá-lo para comprovar sua Criação.
veracidade. Começamos aprendendo Em contraste com a filosofia grega,
por meio de confiança ou fé Agostinho defendeu com firmeza o
provisória. Nesse ponto Agostinho conceito bíblico de criação. Disse
toma o cuidado de observar a ele que Deus criou de modo
diferença entre fé e credulidade. voluntário e proposital. A criação
Apesar de a fé anteceder a razão num não é uma necessidade (como no
sentido, em outro dá-se o inverso. pensamento grego), e o mundo
Não posso crer em algo material não são eterno. O universo
manifestamente irracional. teve um começo. Houve um “tempo”
O conhecimento, para ser aceito, em que o universo não existia. Pus
tem 'de ser inteligível. Isso não tempo entre aspas porque ele é um
exclui o campo do mistério, mas há corolário de espaço e matéria.
uma grande diferença entre mistério Quando alguns céticos lhe
e contradição. Posso não conseguir perguntaram o que Deus estava
sondar as profundezas do mistério fazendo antes de ter criado o mundo,

71
Agostinho respondeu: “Estava mau. O mal é definido em sua relação
criando o inferno para as almas com o conceito anterior do bem. 0
curiosas”! Conforme Agostinho, mal depende do bem para sua
Deus criou todas as coisas ex definição.
nihilo, “do nada”. Agostinho não
Falamos do mal em termos de justiça,
estava violando a máxima Ex nihilo,
imoralidade e ilegalidade. O
(“Nada vem do nada”). Ele não
Anticristo depende de Cristo até
argumentou que antes não havia nada
para a sua identidade. Assim como
e de repente havia algo. Essa noção
um parasita depende do seu
de autocriação é irracional, e
hospedeiro para existir' a
apenas os incrédulos a afirmam.
existência do mal depende do bem?
Para algo criar a si mesmo, tem de tudo o que participa do ser,
existir antes de ter existido, o que enquanto existe, é bom. Não ser é
é uma violação evidente da lei da mau. Se algo fosse pura ou
não-contradição, já que a coisa tem totalmente mau, não poderia
de ser e não ser ao mesmo tempo e existir. O mal não é uma substância
na mesma relação. Antes de criar o ou coisa. E falta ou privação do
mundo, o Deus eterno existia, bem. ' Nesse nível Agostinho parece
portanto, criação ex nihilo não estar definindo o mal em termos
quer dizer criação por meio de nada. puramente ontológicos. Se fosse
Usando a idéia de causalidade de mesmo esse o caso, Agostinho teria
Aristóteles, podemos dizer que o de dizer que o mal é uma
universo tinha uma causa formal, consequência necessária da
final e eficiente, mas não uma causa finitude. Deus não pode criar uma
material. Como Deus é bom, tudo o coisa ontologicamente “perfeita”.
que ele originalmente criou era bom.
Com isso, estaria criando outro
O que é material não é, como no Deus. Nem Deus pode criar outro
platonismo, inerentemente mau. Deus, porque o segundo Deus seria,
Todavia, apesar de o universo, por definição, uma criatura. Para
incluindo o ser humano, ter sido evitar a necessidade ontológica do
criado por Deus, ele não foi feito mal, Agostinho se voltou para o
imutavelmente bom. O mundo presente livre-arbítrio. Deus criou o ser
é caído. humano com uma vontade livre
(liberum arbitrium), na qual ele
O problema do mal.
também tinha liberdade (libertas)
Ao lidar com o problema do mal, perfeita.
Agostinho procurou definir o mal em
O ser humano tinha a capacidade de
termos puramente de negação. O mal
escolher o que quisesse. Tinha a
é falta, privação (privatio) ou
possibilidade de pecar (posse
negação (negatio) do bem. Só o que
peccare) e de não pecar (posse non
primeiramente foi bom pode se tornar
peccare). Ele escolheu livremente

72
pecar, atendendo à sua O auge da honra de um intelectual é
concupiscência (a inclinação que atingido quando ele se torna
pende para o pecado, mas não é conhecido apenas pelo seu segundo
pecado). Como resultado do primeiro nome. Títulos como doutor ou
pecado, o ser humano perdeu sua professor são desprezados, e
liberdade, mas não seu livre- geralmente o primeiro nome é deixado
arbítrio. de lado. Não precisamos saber que o
prenome de Descartes era René ou que
A título de punição divina, ele foi
o de Hume era David. No caso de
lançado em um estado corrompido
Tomás de Aquino, porém, tudo isso
conhecido como pecado original,
muda. No círculo da filosofia, para
perdendo a capacidade de buscar por
referir-se a esse estudioso
si mesmo as coisas de Deus. Isso
extraordinário, basta citar seu
resultou na dependência absoluta do
primeiro nome, Tomás. Até seu
ser humano de uma obra de graça
pensamento é muitas vezes chamado
divina em sua alma, para poder
simplesmente tomismo. A Igreja
caminhar em direção a Deus. O ser
Católica não apenas canonizou
humano caído está escravizado ao
Tomás, mas também lhe conferiu o
pecado. Ele ainda tem a capacidade
título honorífico de “doutor
de escolher, uma vontade livre de
angelical”. O doutor angelical foi
coerção, mas agora está livre apenas
um gigante no mundo intelectual, e
para pecar, porque seus desejos se
sua obra continua sendo estudada em
inclinam para o pecado e o desviam
todas as universidades, sacras e
de Deus. Agora, posse non peccare,
seculares. Os grandes teólogos da
“a capacidade de não pecar”, se
história têm estilos e dons
perdeu, e em seu lugar está non
diferentes.
posse non peccare, “a capacidade
de não pecar”. Com essa definição Contudo, considerando o seu peso
Agostinho combateu o herege intelectual, duvido de que alguém
Pelágio, que negava o pecado tenha chegado ao nível de Tomás de
original. Pelágio afirmava que o Aquino, exceto talvez o teólogo
pecado de Adão afetara apenas Adão, puritano Jonathan Edwards. Tomás de
e que todas as pessoas têm a Aquino nasceu em 1225 perto de
possibilidade de viver de modo Nápoles, na Itália. Seu pai, conde
perfeito. Agostinho é até hoje um de Aquino, era um aristocrata. Com
santo da Igreja Católica Romana, mas a idade de cinco anos Tomás
os líderes da doutrina protestante, ingressou na abadia do monte
Martinho Lutero e João Calvino, Cassino, onde estudou até
também o consideravam seu principal matricular-se na universidade de
mentor teológico. Nápoles, ao catorze.

Tomás de Aquino Enquanto esteve ali, entrou para a


ordem dominicana, formada por um

73
grupo de monges que se dedicava ao escolásticos nos parecem secos,
ensino. De Nápoles, Tomás mudou-se áridos. Parece que lhes falta
para a universidade de Paris, quando criatividade, e desfazemos do seu
tinha dezoito anos. Na época, o raciocínio abstrato como um debate
teólogo mais aplaudido do mundo era incoerente sobre quantos anjos
Alberto, o Grande (Alberto Magno). conseguem dançar sobre a cabeça de
Alberto era conhecido como “o um alfinete.
professor universal”. Assim como
(Um fundamentalista não se
Platão teve o seu Sócrates, e
preocuparia com questões como essa,
Aristóteles, o seu Platão, Tomás
porque tem certeza absoluta de que
desfrutou o benefício de ter Alberto
anjos não dançam!) A filosofia
por tutor. Durante o tempo que
escolástica procurou criar um
estudou com Alberto, Tomás foi
sistema de pensamento coerente e
ridicularizado e provocado por seus
abrangente. Os escolásticos se
colegas. Chamavam-no de “o boi
tornaram especialistas no
parvo de Aquino”, levando Alberto
pensamento sistêmico.
a dizer que um dia esse boi parvo
deixaria o mundo perplexo. Não estavam muito preocupados com
vinhetas de pensamento ou com novas
Certa ocasião, um colega olhou para
idéias. Antes, procuravam codificar
fora da janela e exclamou: “Olhe,
o pensamento tradicional num
Tomás, uma vaca voando!” Tomás
sistema coerente (o sentimento
levantou-se da cadeira e foi até a
“anti-sistema” encontrado na
janela para ver. Seus colegas caíram
moderna filosofia existencial fez
na gargalhada diante de tanta
com que muita gente tivesse
ingenuidade. Tomás se voltou e
preconceitos sobre essa maneira de
disse: “Prefiro crer que vacas
estudar a verdade). Os filósofos
podem voar a pensar que um dos meus
escolásticos firmaram-se com
irmãos mentiria para mim”. O boi
firmeza sobre uma lógica rigorosa,
parvo de Aquino desenvolveu-se até
enfatizando a arte do raciocínio
se tornar a maior força da filosofia
dedutivo. Para expressar suas
e da teologia escolástica. Samuel
idéias, preferiam o método da
Stumpf se refere ao período
disputa. Qualquer pessoa que tenha
escolástico como o auge da filosofia
lido a fundo as obras de Tomás de
medieval. Nos tempos modernos,
Aquino fica impressionado com a
escolástica tornou-se um termo
ausência quase absoluta de notas de
pejorativo. Vivemos numa época que
rodapé e a força impressionante na
talvez seja a mais anti-intelectual
defesa de uma tese apenas com
da história cristã. Dizemos que
argumentos vigorosos.
somos a favor da tecnologia e da
educação, mas diminuímos o papel da Nessa tradição, Tomás emergiu como
mente ou intelecto, especialmente o mestre sem rivais. Talvez nenhum
no âmbito religioso. Os pensadores outro pensador católico tenha sido

74
mais difamado, mal interpretado e a idéia de separá-las que Tomás se
mal compreendido por críticos opôs tanto. Ele estava bem ciente
protestantes, em especial os da ameaça cada vez maior que o
evangélicos, do que Tomás de Aquino. islamismo representava para o
É amplamente aceito que o erro mais cristianismo. Os filósofos
destacado de Tomás foi separar muçulmanos já haviam experimentado
natureza e graça. Essa acusação é sua renascença com a redescoberta
uma bobagem completa; nada poderia do pensamento grego clássico. Os
estar mais longe da verdade. Quem principais pensadores, como
acusa Tomás de separar a natureza Averróis, já haviam sintetizado a
da graça não entendeu o principal teologia muçulmana e a filosofia de
de toda a sua filosofia, Aristóteles. Sua obra era conhecida
particularmente com respeito à sua como “aristotelismo integral”,
monumental defesa da fé cristã. por terem integrado Aristóteles com
o islamismo. Esses filósofos
Natureza e graça
muçulmanos elaboraram a teoria da
É claro que Tomás de Aquino faz “dupla verdade”, argumentando que
uma forte distinção entre natureza aquilo que é verdadeiro na fé pode
e graça. O que precisa ser dito a ser falso na razão, o que é
esta altura, porém, é que uma das verdadeiro na filosofia pode ser
distinções filosóficas mais falso na teologia, o que é
importantes é a que existe entre verdadeiro na religião pode ser
distinção e separação. Por exemplo, falso na ciência, e vice-versa. Essa
na teologia fazemos distinção entre esquizofrenia intelectual separa
as naturezas humana e divina de radicalmente natureza de graça.
Cristo, ao mesmo tempo em que
Seria o equivalente de um cristão
constatamos que as duas naturezas
moderno que diz que, da perspectiva
existem em unidade perfeita e que
da fé (graça), o ser humano foi
separá-las equivale a cometer a
criado por Deus à sua imagem e com
heresia nestoriana.
um propósito, um ser com dignidade,
Talvez ilustrando melhor esse porque está lhe foi conferida por
ponto, digo que não lhe causo nenhum Deus; mas que, da perspectiva da
mal se faço distinção entre o seu razão (natureza), o ser humano é um
corpo e sua alma. Se, porém, eu acidente cósmico, um germe adulto
separar seu corpo da sua alma, terei que saiu do limo primevo e tem por
cometido assassinato. destino a aniquilação, um ser sem
A distinção que Tomás fez entre dignidade alguma. Esse crente
natureza e graça não tinha o confuso afirma a macro evolução de
propósito de separá-las, mas de segunda a sábado, mas no domingo
demonstrar sua unidade e relação adora o Deus da criação. Tomás de
fundamental. Foi exatamente contra Aquino recebe o crédito de ter
conseguido a “síntese clássica”

75
entre filosofia e teologia. distinção entre natureza e graça.
Recordamos a idéia de que, na No seu estudo de natureza e graça
universidade medieval, a teologia na Summa theologica, Tomás
era a rainha das ciências, e a fundamenta seu pensamento na idéia
filosofia, sua criada. Considera-se do apóstolo Paulo sobre a revelação
que Tomás produziu uma síntese da de Deus na natureza, expressa na sua
filosofia aristotélica e da Epístola aos Romanos. Nessa mesma
teologia cristã, de maneira parte, Tomás trabalha o ponto de que
semelhante à síntese da filosofia todo conhecimento, na natureza e na
platônica e da teologia cristã feita graça, depende da revelação de Deus.
por Agostinho. Essa idéia sobre Ele cita a analogia de Agostinho
Tomás pode facilmente ser sobre nossa dependência da luz para
exagerada, porque ele fazia ver. Isso devia desfazer a idéia de
críticas severas a muitos elementos que Tomás de Aquino considerava a
da filosofia aristotélica teologia natural uma função da razão
(principalmente os que eram humana, sem precisar de ajuda. Todo
incorporados ao aristotelismo conhecimento se apoia e depende da
integral). A diferença entre revelação de Deus. Essa revelação,
Agostinho e Tomás de Aquino também todavia, não é encontrada
é muitas vezes exagerada. Uma exclusivamente na Bíblia, mas
leitura superficial da Summa brilha também pelo cosmos, Tomás
theologica de Tomás já revela que, afirmou que algumas verdades podem
em muitos aspectos, Tomás estava se ser conhecidas apenas pelas
apoiando em Agostinho. Tomás Escrituras, que são o campo da
acreditava que a filosofia e a teologia por excelência. Não se
teologia tinham papéis aprende o plano de Deus para a
complementares na busca da verdade. salvação estudando astronomia ou
A graça não destrói a natureza, mas astrologia. Outras verdades, porém,
a completa. Tomás via fronteiras são encontradas na natureza sem
claras entre as duas disciplinas, serem desvendadas nas Escrituras.
mas considerou ambas necessárias Por exemplo, o sistema circulatório
para a compreensão global da do corpo e os padrões de conduta dos
realidade. Tomás cria na primazia fótons podem ser descobertos
da revelação divina. Ele não achava, somente estudando a natureza (Tomás
como muitos têm dito, que a natureza não discutiria que essas
funciona independentemente da descobertas são um atestado da graça
revelação. Ele baseou sua chamada de Deus, sem cuja providência
“teologia natural” na revelação benevolente elas não seriam
natural. Assim como os teólogos conhecidas).
protestantes distinguem entre
Assim, filosofia (e ciência) e
revelação geral (ou natural) e
teologia abarcam duas esferas
especial (bíblica), Tomás fez
distintas de conhecimento. As duas

76
dependem da revelação e são (apesar de Zenão). Apoiando-se
complementares, não antitéticas. fortemente em Aristóteles, Tomás
Para Tomás, toda verdade vem de argumenta que o que se move é movido
Deus, e toda verdade vem do alto. por outra coisa (baseado no que
chamamos de lei da inércia). Ele
O conceito de teologia natural de
define movimento como a redução de
Tomás encontra sua maior oposição
algo da potencialidade à
por parte dos fideístas (que afirmam
atualidade. Um objeto em repouso
que Deus pode ser conhecido tão-
pode ter potencial de movimento, mas
somente pela fé) em sua idéia dos
não se move enquanto até que esse
“artigos mistos” (articulus
potencial seja atualizado. No
mixtus). Essas são verdades que
entanto, afirma ele, nada pode ser
podem ser aprendidas a partir da
reduzido da potencialidade à
natureza ou da graça — da filosofia
atualidade exceta por algo que já
e da ciência ou da Bíblia. Esse
está no estado de atualidade. Por
grupo de artigos mistos abrange o
exemplo: o fogo pode tornar um
conhecimento da existência de Deus.
pedaço de madeira, que é apenas
Isso significa que a filosofia, fora
potencialmente quente, realmente
da Bíblia, pode demonstrar
quente. Nada pode ser ao mesmo tempo
racionalmente a existência de Deus.
real e potencial. O que é realmente
É claro que a Bíblia proporciona um
quente pode ser ao mesmo tempo
conhecimento muito mais amplo e
potencialmente frio, mas não pode
profundo do caráter de Deus, diz
ser potencialmente quente enquanto
Tomás, mas sua existência real pode
está atualmente quente.
ser demonstrada sem o uso da Bíblia.
Com respeito ao conhecimento de Ele seria potencialmente mais
Deus, filosofia e teologia podem quente do que realmente é, mas para
trabalhar lado a lado como ficar mais quente tem de ser movido
parceiras. para esse estado. E tudo o que é
movido tem de sê-lo por uma
As provas da existência de Deus
atualidade anterior. Só que essa
Afastando-se da prova mudança não pode remeter ao
ontológica da existência de Deus infinito, porque nesse caso o
formulada anteriormente por movimento jamais começaria. Por
Anselmo, que passa da idéia da isso, Tomás conclui, tem de haver
existência de Deus para sua um primeiro motor, e todo mundo
existência real, Tomás trabalha entende que esse motor é Deus. A
mais dentro de um cenário segunda prova de Tomás de Aquino é
cosmológico, raciocinando a partir a da causa eficiente. A lei da
do cosmos de volta para Deus. A causalidade afirma que todo efeito
primeira prova que Tomás apresenta precisa ter uma causa antecedente.
é a do movimento. Ele começa com as
evidências de movimento no mundo

77
Isso não é a mesma coisa que dizer existência de Deus de Tomás de
que cada coisa precisa ter uma causa Aquino é a do ser necessário (ens
(como afirmam John Stuart Mill e necessarium). Essa prova via de
Bertrand Russell). Se cada coisa regra é considerada parte do
precisa ter uma causa, isso exigiria argumento cosmológico, mas é mais
que o próprio Deus tivesse uma correto chamá-lo de “ontológica”,
causa. A lei da causalidade se pois é um argumento a partir do ser,
refere apenas a efeitos e é uma na natureza encontramos coisas
extensão da lei da não- contradição. contingentes, que podem ser ou não
A lei é formalmente verdadeira, ser (uma possibilidade que Hamlet
porque é verdadeira por definição. compreendeu plenamente a respeito
de si mesmo). Essas coisas ou
Um efeito é definido como aquilo que
“seres” não existem sempre. Elas
é produzido por uma causa. Um efeito
também passam pelas mudanças
não pode ser um efeito se não tiver
inerentes a geração e decadência.
uma causa. Do mesmo modo, uma causa
Houve um tempo em que elas não eram.
(no sentido do termo) é, por
Dizer que é possível que algo não
definição, aquilo que produz um
exista pode significar que em algum
efeito. Uma causa não pode ser causa
momento do passado isso não existiu,
se não causar ou produzir algo. Um
que pode deixar de existir no futuro
ser não causado (auto existente) não
(pelo menos como entidade
viola nenhuma regra da razão; um
individual), ou ambos.
efeito não causado, porém, é
irracional e absurdo. O ser possível, portanto, é uma
referência a um ser que pode não
No esquema de Aristóteles, é a causa
ser. Nenhum ser que é apenas
eficiente que produz o efeito. No
possível é auto existente; ele não
caso da estátua, é o escultor. Sem
tem o poder de ser em si mesmo. Se
o escultor não haverá estátua,
todas as coisas da realidade fossem
porque não há nada para causá-la.
apenas possíveis, então em algum
Nenhum evento pode ser sua própria
momento não teria havido nada
causa. Todo evento exige uma causa
existindo.
anterior. Toda mudança em alguma
coisa é um evento. Toda causa Se houve uma época em que nada
anterior precisa ter sua própria existia, então nada jamais poderia
causa (se o evento anterior é em si começar a existir e nada existiria
um efeito). Em algum lugar essa agora. Mas se algo existe agora, é
sequência tem de terminar. E necessário que algo sempre tenha
impossível regredir ao infinito, já existido; precisa existir algo que
que a idéia de um regresso infinito tenha existência necessária — sua
envolve a noção de um efeito sem existência não é apenas possível,
causa, um absurdo de composição mas necessária. Ele não pode não
infinita. A terceira prova da ser. Não recebe sua existência de

78
outra coisa. Nunca houve um tempo Agostinho, tenha definido o mal em
em que ele não era. Em outras termos de privação e negação.
palavras, se algo existe agora,
O padrão fundamental pelo qual temos
então algo tem de ter o poder de ser
de julgar o mal não é o mal máximo,
em si mesmo, ou seja, algo precisa
mas a perfeição máxima, A quinta e
ter existência necessária. Esse
última prova da existência de Deus
ser, cuja existência é necessária
para Tomás de Aquino resulta da
tanto lógica como ontologicamente,
evidência de ordem no universo. Essa
é Deus. A quarta prova de Tomás é a
é uma forma do chamado argumento
prova dos graus de perfeição, em que
teleológico. O termo teleológico
ele se baseia muito em Agostinho.
vem do grego telos, que significa
Esse é um argumento extraído da
“fim, propósito, objetivo”. Na
comparação. Estamos cientes de que
natureza observamos coisas que não
há graus no que é bom, verdadeiro e
têm inteligência, mas funcionam de
nobre. Todavia, algo pode ser
maneira ordenada e com propósito.
considerado bom ou verdadeiro
Elas agem de maneiras previsíveis
somente em relação a uma norma ou
para atingir certos fins ou funções.
padrão máximo. Os relativistas
As sementes de um dente-de-leão,
modernos pressupõem que não há
lançadas ao vento, destinam-se à
nenhuma verdade na verdade, nenhum
reprodução da planta. Essas coisas
bem no bem, nenhuma virtude na
parecem agir com um propósito. Não
virtude e nenhum propósito no
se pode ter propósito por acaso, nem
propósito. Contudo, nós não podemos
intencionalidade não intencional.
ter algo relativo a qualquer coisa
Em sua forma mais simples, o
a não ser que o que é relativo seja
argumento teleológico baseia-se na
medido por um absoluto. Tomás
evidência de um plano no universo.
argumenta que o máximo em qualquer
Um plano requer um projetista, idéia
gênero é a causa de tudo naquele
que impressionou profundamente
gênero.
filósofos como Immanuel Kant e David
Por exemplo: o fogo, que é o máximo Hume, apesar do seu ceticismo. Tomás
do calor, é a causa de todas as de Aquino argumenta que coisas que
coisas quentes. Do mesmo modo não têm inteligência (veja que a
precisa haver algo que seja, em raiz da palavra “inteligência” é
todos os seres, a causa do seu ser, telos) não podem agir de forma
da sua bondade e de qualquer outra planejada se não forem antes
virtude, e a isso chamamos Deus. dirigidas por algo que tem
Pode ser contra argumentado que, se inteligência. Uma flecha não se
isso é verdade, Deus também teria dirige para o alvo se não tiver sido
de ser máxima ou perfeitamente mau voltada nessa direção pelo
— para explicar os graus relativos arqueiro. “Bombas inteligentes”
de maldade no mundo. Por isso foi não são nada inteligentes se não
fundamental que Tomás, seguindo forem programadas por alguém

79
inteligente (mesmo assim, às vezes vendo uma ação que ocorre a
elas não são inteligentes!). Tomás quilômetros de distância, onde não
de Aquino conclui que tem de haver estou presente imediatamente. Na
um ser inteligente que dirige todas verdade, estou olhando para um
as coisas naturais para o seu fim. retrato do jogo transmitido
Esse ser ele chama de Deus. Deve ser eletronicamente. Estou assistindo
acrescentado que as coisas não podem ao jogo por meio da televisão. (A
se dirigir para o seu objetivo por mídia ou os meios de comunicação têm
acaso. O acaso não pode dirigir esse nome porque estão entre nós e
nada, porque o acaso não pode fazer os eventos reais que relatam.).
nada.
Tomás de Aquino diz que a teologia
O acaso não pode fazer nada porque natural é “mediata” porque a
o acaso não é nada. Acaso é um termo revelação de Deus vem até nós pelo
perfeitamente adequado para meio da criação. Os céus declaram a
descrever possibilidades glória de Deus no sentido de que
matemáticas, mas a palavra se torna Deus revela a sua glória por
um fantasma furtivo quando usada intermédio dos céus. Nesse sentido
para descrever algo que tem o poder é que o apóstolo Paulo declarou em
de influenciar tudo. O acaso não tem Romanos que Deus é conhecido “por
de ser, e o que não tem de ser não meio das coisas que foram criadas”
tem poder para fazer nada. Ao (Rm 1.20). Quando Tomás de Aquino
desenvolver a sua teologia natural, diz que a teologia natural é
Tomás usa termos qualificadores análoga, está falando de uma função
para descrever o conhecimento de da linguagem.
Deus que podemos derivar da
Ele discerne três maneiras em que a
natureza. Ele diz que nosso
linguagem funciona: unívoca,
conhecimento de Deus a partir da
equívoca e analógica. Na linguagem
natureza é verdadeiro, mas é
unívoca, uma palavra significa
mediato, análogo e incompleto.
basicamente a mesma coisa quando
Quando Tomás fala de conhecimento
aplicada a coisas distintas. Na
mediato, ele o distingue do
linguagem equívoca o sentido de um
conhecimento imediato. Quando se
termo muda radicalmente quando
diz que algo é conhecido de modo
aplicado a coisas diferentes. Veja,
“imediato” nesse sentido, isso
por exemplo, a palavra “careca”.
não quer dizer que é conhecido
Quando se diz que alguém é careca,
instantânea ou rapidamente (apesar
é porque lhe falta cabelo no alto
de isso ser possível).
da cabeça. Porém, quando digo que
Quer dizer que é conhecido estou “careca de saber”, não é
diretamente e não por intermédio de porque me falta cabelo, mas porque
algum meio. Quando assisto a um jogo estou muito bem informado sobre
de basquete pela televisão, estou determinado assunto. Na linguagem

80
analógica, o sentido de um termo revelou um tiro pela culatra com o
muda na proporção da descrição das movimento da “morte de Deus”.
diferentes coisas. Por exemplo, Tomás entendia que, se Deus fosse
quando digo que tenho um cachorro “totalmente outro” ou totalmente
bom, não estou querendo dizer que dessemelhante de nós (como afirmou
ele procura ser virtuoso e tem uma Karl Barth), não haveria nenhuma
consciência sensível. Estou dizendo maneira de falar sobre Deus.
que ele vem quando o chamo, é
O fato de nosso conhecimento de Deus
caseiro, e não morde a perna do
a partir da teologia natural ser
carteiro. Quando, no entanto, digo
incompleto não torna esse
que uma pessoa é boa, não estou
conhecimento sem valor.
pensando em que ela vem quando a
chamo, é caseira e não morde a perna Os críticos da teologia natural
do carteiro. A capacidade de uma tomista sempre se queixam de que o
pessoa de ser boa excede em muito a Deus conhecido a partir da natureza
de um cachorro, de modo que o termo é, na melhor das hipóteses, um motor
bom é usado de modo proporcional ou não movido e não o Deus da Bíblia.
analógico ao ser humano. Quando Entretanto, a revelação bíblica de
Tomás de Aquino diz que nosso Deus também não é nem exaustiva nem
conhecimento de Deus é análogo, ele abrangente. Dizer que Deus não é
quer dizer que nossa maneira de conhecido de modo completo ou até
falar de Deus não consegue descrevê- redentor pela teologia natural não
lo com precisão. Deus é infinito e significa dizer que ele não pode ser
nós somos finitos. Somos diferentes conhecido nem um pouco. Aquino
de Deus, mas não tão diferentes que argumenta que, apesar de a teologia
nossa maneira de falar sobre ele natural ser mediata, análoga e
seja sem sentido ou apenas equívoca. incompleta, ela não deixa de ser
Ela faz sentido porque é analógica. verdadeira até onde chega. Há um
E possível falar de maneira grande valor para a teologia e
analógica de Deus porque há certo principalmente para a apologética
sentido nas coisas em que o ser em demonstrar que Deus existe por
humano é semelhante a Deus. Isso é si mesmo e é eterno.
o que Tomás de Aquino chama de Por exemplo: apesar de Deus ser mais
analogia entis, a “analogia do do que auto existente, ele de modo
ser”, entre o ser humano e Deus. algum é menos do que auto existente.
Essa analogia do ser tem suas Também é crucial ver que a maior
raízes no fato de o ser humano ter parte do debate sobre o teísmo em
sido criado à imagem de Deus. Os nossos dias se concentra na questão
teólogos modernos como Karl Barth da criação, doutrina que é muito bem
fizeram um ataque cerrado contra o defendida pela prova de que Deus
conceito da analogia do ser de Tomás existe por si mesmo e é um ser
de Aquino, ataque esse que se necessário.

81
CLEMENTE DE ROMA pôs a serviço da Igreja. Outros o
identificam com o colaborador de
INTRODUÇÃO Paulo: “Rogo também a ti, Sízigo,
1. Quem era Clemente Romano? fiel companheiro, que lhes prestes
auxílio, porque me ajudaram na luta
Não se trata de uma pergunta
pelo evangelho, em companhia de
retórica. Membro da família
Clemente e dos demais auxiliadores
imperial? Colaborador do apóstolo
meus (…)” (Fl 4,3). Orígenes tenha
Paulo? Ex-escravo sagrado bispo
sido, talvez, o primeiro a afirmar
pelas mãos de Pedro? Autor da carta
que Clemente Romano é o mesmo da
aos Hebreus? Todas essas hipóteses
lista dos colaboradores de Paulo de
já foram propostas. Desse modo, as
Fl 4,3 (cf. In Ioan. 6,36; A
informações que temos sobre
antiguidade aceitou está
Clemente Romano vão desde as
identificação, especialmente,
lendárias até testemunhas
porque se apoiava no testemunho de
fidedignas.
Orígenes e de Eusébio de Cesaréia:
Segundo um romance siríaco, datado, “(...) Anacleto, tinha sido bispo
provavelmente, dos começos do da Igreja dos romanos durante doze
século III, Clemente teria anos, foi substituído por Clemente
empreendido uma longa viagem, que o Apóstolo, em sua carta aos
percorrendo o mundo em busca da Filipenses, declara ter sido seu
verdade. Ao longo dos caminhos, colaborador (…)” (HE, III,15).
perdeu-se e, juntamente, os traços, Jerônimo, sempre nas pegadas de
as referências de todos os seus Eusébio, repete:
parentes, restando só. Foi então que
“A estes (isto é, às virgens de
encontrou são Pedro e se tornou seu
ambos os sexos) escreve uma carta
discípulo. Sucessivamente,
Clemente, sucessor de Pedro
reencontrou todos os seus parentes
Apóstolo, e de quem Paulo faz menção
perdidos, donde o título da obra que
em quase todo seu discurso o
teria escrito Recognitiones =
entreteceu sobre a pureza da
Reconhecimentos.
virgindade”. Irineu de Lião, por
Segundo as Pseudo-clementinas, sua vez, recolhe uma informação de
Clemente era membro da família que Clemente teria sido o 3º
imperial dos Flávios. Menos fé sucessor de Pedro, no episcopado de
merece a opinião de Dion Cássio de Roma, e conhecera pessoalmente
que Clemente era o próprio cônsul Pedro. Tertuliano acredita que
Tito Flávio Clemente, sobrinho do Clemente teria sido consagrado pelo
imperador Domiciano, executado em próprio Pedro, mas teria renunciado
95-96, por professar a fé cristã. em favor de Lino e só assumiu o
Conjectura-se, ainda, que Clemente episcopado depois da morte de
teria sido escravo da família Anacleto. Contudo, os críticos
Flávia. Liberto, converteu-se e se

82
modernos não veem razões para se dar materna. Sua carta foi traduzida
crédito a estas afirmações. pelo evangelista Lucas segundo uns,
e, segundo outros, por Clemente. Das
2. Autor da carta aos Hebreus?
duas hipóteses, está pareceria bem
Tentando responder quem seria autor mais verdadeira.
da carta aos Hebreus, se Paulo,
De uma parte, a epístola de Clemente
Lucas ou Clemente, Orígenes diz:
e a epístola aos Hebreus conservam
“Se tivesse que dar minha opinião,
a mesma característica de estilo e,
diria que o fundo ou os pensamentos
de outra parte, os pensamentos nos
são, certamente, do Apóstolo;
dois escritos têm um parentesco
porém, o estilo e a composição, de
próximo” (ibidem, 38,1-3). Se, de
alguém que consignava as
um lado, nada pode ser afirmado com
recordações apostólicas e que
segurança, o parentesco pode, por
apostilara, por assim dizer, o dito
outro lado, ser observado em textos
pelo mestre. Pois bem, (…) a
como este, por exemplo:
história que chegou até nós é dupla.
“Caríssimos, este é o caminho no
Uns dizem que a escreveu Clemente, qual encontramos a nossa salvação:
e que foi bispo dos romanos, outros, Jesus Cristo, o sumo sacerdote de
que Lucas, o autor do Evangelho e nossas ofertas, o protetor e o
dos Atos” a Enumerando todos os auxílio da nossa fraqueza. Por meio
seguidores dos apóstolos na tarefa dele, fixamos nosso olhar nas
de evangelizar, Eusébio retém alturas dos céus; por meio dele,
apenas dois nomes que se avantajavam contemplamos, como em espelho, sua
entre tantos ilustres: “Entre os face imaculada e incomparável; por
que brilhavam naquele tempo (…) um meio dele, abriram-se os olhos do
número elevado de discípulos (…) nosso coração; mediante ele, nossa
É-nos impossível enumerar (e citar) mente obtusa e obscura refloresce
por seus nomes todos os que, então, para a luz; mediante ele, o Senhor
desde a primeira sucessão dos quis fazer-nos experimentar o
apóstolos, tornaram-se pastores ou conhecimento imortal”. “De fato,
evangelistas (…). Tais são, sem ele, sendo o resplendor de sua
dúvida, Inácio nas cartas que majestade, é tanto superior aos
indicamos, e Clemente, na carta anjos quanto o nome que herdou é
recebida por todos, que endereçou mais excelente”.
em nome da Igreja dos romanos, à
Assim está escrito: “Ele fez dos
Igreja dos coríntios. Nesta carta,
ventos os seus mensageiros e da
expõe muitas idéias (tiradas) da
chama de fogo os seus servidores”
carta aos Hebreus e emprega com
Por causa desse parentesco e porque
fórmulas próprias que dela toma (HE,
sua Carta revela, pelo conteúdo e
III, 37-38,1). Na sequência,
pela forma um conhecimento amplo do
Eusébio afirma: “Paulo, diz-se,
Antigo Testamento, julgou-se que
dirigiu-se aos hebreus na sua língua

83
Clemente seria de origem judaica. principais argumentos contra sua
Provas? As abundantes citações, origem judaica.
algumas longas, transcrevendo
3. Autor da Carta aos coríntios
passagens dos Salmos, de Isaías, de
Jó, dos sapienciais denotam um bom Conforme testemunhas mais
domínio das Escrituras fidedignas, Clemente de Roma é mesmo
veterotestamentárias. Frases, o autor da Carta aos coríntios.
paralelismos, hebraísmos, Todos os manuscritos e versões da
empregados com freqüência, Carta trazem como título: Carta de
pleiteiam esta hipótese. Os Clemente aos coríntios. Por sua vez.
apócrifos judaicos também são Eusébio narra duas testemunhas
citados (Assunção de Moisés, antigas de peso em favor desta
apócrifo de Ezequiel). Por isso diz autoria: a de Hegesipo,
Lebreton: “A contemplação habitual provavelmente de origem judaica,
da obra criadora, a paternidade que passando por Corinto, chegou a
divina concebida como a relação que Roma durante o pontificado de
religa o Demiurgo às suas criaturas Aniceto (155-166). Em suas
melhor que como o laço íntimo Memórias, Hegesipo fala da Carta de
nascido da adoção divina: era este Clemente aos coríntios (cf. EH, IV,
o quadro tradicional do pensamento 22,1). Outra testemunha fornece o
religioso dos judeus, Clemente o próprio bispo de Corinto, Dionísio,
recebe e o respeita”. numa carta dirigida ao papa Soter
no ano 170.
Percebe como sua formação
fundamental está vazada no AT. Para Nela, Dionísio menciona a Carta de
advertir aos coríntios das Clemente aos coríntios e revela que,
consequências de sua “sedição”, desde muito tempo, segundo um antigo
faz desfilar ante seus olhos figuras costume, era lida nas assembléias
e personagens do AT. Invoca os dos fiéis: “Hoje, diz ele ao papa
exemplos do AT e os vai desfilando Soter, celebramos o santo dia do
em passagens mais importantes, Senhor, durante o qual lemos vossa
próprias para reconduzi-los à paz, carta. Continuaremos a lê-la sempre
à concórdia, à humildade e à como advertência, como fazemos, de
obediência. De fato, Clemente resto, com a que anteriormente nos
parece depender estreitamente do enviou Clemente” (HE, IV,23,11).
judaísmo helenístico. Destacam-se, No livro III,16, de sua HE, Eusébio
ainda, em sua Carta, empréstimos ou ainda se refere a uma carta de
citações de Eurípedes, de Sófocles Clemente (como autêntica), longa e
(poetas trágicos gregos). Por outro admirável, que ele “redigiu da
lado, a ausência de toda alusão aos parte da Igreja dos romanos para a
problemas judaicos, nenhuma Igreja dos coríntios, a propósito
discussão sobre o legalismo judaico de uma sedição que então se
(sábado, circuncisão), são os levantara em Corinto. Soubemos que

84
em muitas Igrejas se fazia, outrora, a comunidade de Corinto não parece
a leitura pública desta carta, e dar mostras de muita melhora.
ainda hoje é lida, nas assembléias. Planejando uma viagem, pretende
E que tal sedição se produzira, passar por Corinto, mas está
Hegesipo é um testemunho digno de apreensivo: “Com efeito, receio
fé”. que, quando aí chegar, não vos
encontre tais como vos quero
Embora o nome de Clemente não
encontrar (…). Tenho receio que
apareça em nenhum lugar da carta,
haja entre vós discórdias, inveja,
há elementos suficientes que o
animosidade, rivalidade,
indicam como autor. Ela aparece,
maledicências, falsas acusações,
assim, como um escrito autêntico.
arrogância, desordens. (…) e eu
Segundo opinião de L. Lemarchand,
tenha de prantear muitos daqueles
“o que parece mais perto da verdade
que pecaram anteriormente e não se
é que a carta atual resulta da fusão
terão convertido da impureza, da
de textos de caráter homilético ou
fornicação e das dissoluções que
litúrgico com o texto da carta. A
cometeram” (2Cor 12,20-21).
carta de Clemente se compõe, para o
presente, da carta primitiva Quarenta anos mais tarde, Clemente
dirigida à comunidade de Corinto e de Roma é informado sobre o tumulto
de extratos de homilias provindas que toma conta da comunidade.
do mesmo autor, que logo cedo foram Clemente pretende, embora com algum
intercaladas. O capítulo 64, atraso, escrever para apaziguar e
inserido entre duas menções de restabelecer a ordem na comunidade.
mensageiros, constituiria um fim de O conflito parece realmente grave
homilia muito conveniente”. se dermos crédito aos caps. 46,5 e
47,4, onde Clemente destaca o estado
4. Motivo da carta
de ânimo em que se encontra a
A comunidade de Corinto parece ter comunidade: “Por que haver brigas,
vivido em constante conflito. Já em ódios, disputas, divisões e guerras
55, quatro anos após sua fundação, entre vós? (…) por que
encontrava-se agitada por divisões esquartejamos e rasgamos os membros
e escândalos a ponto de ser de Cristo? Por que nos revoltamos
advertida por Paulo, nestes termos: contra o nosso próprio corpo,
“Eu vos exorto, irmãos (…), chegando a tal ponto de loucura?
guardai a concórdia uns com os Esquecemo-nos de que somos membros
outros, de sorte que não haja uns dos outros? (…) vossa divisão
divisões entre vós; (…) Com efeito, perverteu a muitos, desencorajou a
meus irmãos, pessoas da casa de Cloé muitos, fez com que muitos
me informaram de que existem rixas duvidassem, e nos entristeceu a
entre vós” (1Cor 1,10-12). todos. E vossas dissensões
Contudo, a julgar por aquilo que continuam!”. E, recordando o que
Paulo escreve dois anos mais tarde, já acontecera no passado, a

85
advertência de Paulo, continua: 5. Conteúdo da carta
“Dessa forma, com vossa
Trata-se de uma carta longa, com 65
insensatez, fazeis blasfemar o nome
capítulos. Abre-se com um prólogo
do Senhor e acarretais para vós
breve, seguido de duas partes
mesmos graves perigos” (44,4,6;
longas. A primeira parte é genérica
51,1,3). O conflito consiste,
(caps. 4-36). Aborda considerações,
substancialmente, numa revolta de
admoestações morais com o objetivo
alguns membros contra os
de restabelecer a paz e a concórdia
presbíteros: “Caríssimos, é
na comunidade de Corinto.
vergonhoso, muito vergonhoso e
indigno de conduta cristã ouvir-se Dá instruções de caráter geral,
dizer que a firme e antiga Igreja adverte os fiéis de Corinto sobre a
de Corinto, (…) está em revolta inveja e como bani-la, e fazer
contra os seus presbíteros” penitência, recomenda a obediência,
(47,6). Este ato vergonhoso é a fé, a piedade, a hospitalidade e
resultado da ação de uns poucos, humildade a exemplo de Cristo. A
talvez, jovens, como se pode deduzir ordem do universo é modelo de
de 3,3, no sentido de depor os concórdia e paz. Além do exemplo de
ministros da comunidade: “E nós Cristo, Clemente invoca
vemos que, apesar da ótima conduta constantemente os exemplos das
deles, removestes alguns das virtudes do Antigo Testamento.
funções que exerciam de modo A segunda parte, caps. 37-61,
irrepreensível e honrado”. Como se insiste sobre a hierarquia
deu o fato e qual seu conteúdo eclesiástica e a necessidade da
específico, Clemente não o diz em submissão às legítimas autoridades.
lugar nenhum de sua carta. Como Para isso, mostra como formamos um
romano, Clemente lê os corpo em Cristo e como neste corpo
acontecimentos na ótica da paz e da deve reinar a unidade e não a
harmonia. Tudo o que vem desarranjar desordem, pois Deus quis e quer a
está “paz e harmonia” é julgado ordem nas alianças. Se na primeira
como execrável ou “revolta parte, Clemente se revela um
abominável e ímpia” (1,1). Para conhecedor profundo do judaísmo,
ele, este ato é extremamente nesta segunda parte, revela-se um
negativo, caracterizado em 1,1 e romano assumido. Mostra-se um
46,7 de “loucura”. Assim, para amante da ordem, da disciplina,
solucionar o conflito, isto é, para defensor da hierarquia, aferrado ao
que sejam restabelecidas a paz e a cumprimento do dever, da contínua
harmonia, Clemente recomenda como chamada à ordem e à disciplina, uma
remédio eficaz, a conversão e o característica do espírito romano.
exílio voluntário: que os Não só admira a disciplina militar,
revoltosos se sacrifiquem ao bem mas a propõe como exemplo a ser
comum (caps. 51-58). seguido no interior da comunidade.

86
Vejamos esta passagem com a qual antiga da Igreja”. Ela se torna
abre a segunda parte: importante também para a jurisdição
eclesiástica, sucessão apostólica,
“Irmãos, militemos com toda a nossa
hierarquização dos membros da
prontidão sob as ordens
comunidade, mostrando como os fiéis
irrepreensíveis dele. Consideremos
são inferiores aos presbíteros e
os soldados que servem sob as ordens
para a liturgia. A Igreja aparece
de nossos governantes: com que
fundada sobre a autoridade imediata
disciplina, docilidade e submissão
dos apóstolos. É una, apostólica,
eles executam as funções que lhes
corpo de Cristo. Os ministros não
são designadas! Nem todos são
podem ser depostos.
comandantes, nem chefes de mil, nem
chefes de cem, nem chefes de b) Do ponto de vista cristológico,
cinquenta, e assim por diante. revela fé na divindade de Cristo,
na ressurreição dos mortos; fé nas
Cada um, porém, no seu próprio
três pessoas divinas, na mediação
posto, executa aquilo que lhe é
de Cristo que está no centro de sua
prescrito pelo rei e pelos
teologia, na redenção pelo sangue.
governantes” (37,1-3). Por isso,
Ele é o sumo sacerdote das ofertas,
elevará ele mesmo e pedirá à
o protetor e o socorro da nossa
comunidade orações por “nossos
fraqueza. Um é o Cristo como um é o
príncipes”, “por nossos
Deus e um é o Espírito (46,6).
governantes e príncipes”. Mas é o
Cristo é o esplendor da majestade
mundo inteiro que lhe aparece como
de Deus (36,2). Por meio dele,
um exército absolutamente regulado,
podemos fixar nosso olhar no alto
no curso dos astros, na sucessão das
dos céus e contemplar a sublime
estações, germinação dos frutos da
semelhança de Deus (36,1-2).
terra, na alternância dos dias e da
noite. “Daí que, na ordem humana, No Filho, Deus Pai quis nos escolher
sobretudo no serviço divino e na como seu povo. O Espírito Santo
Igreja, tudo deve se fazer em boa inspirou as Escrituras (45,2), a
ordem, ocupando cada um o seu lugar, pregação da penitência, por meio dos
do modo, na hora e no lugar por Deus profetas, outrora, pelos apóstolos,
determinado. Seja, pois, por agora (62,2). Ele plenifica os fiéis
origem, seja por formação e de seus dons e piedade, de paz (2,2)
assimilação do ambiente, podemos e realiza a unidade (46,5-6). O Pai,
qualificar Clemente, em sentido o Filho e o Espírito Santo compõem
pleno e profundo, de “Romano”. três atividades distintas sobre o
plano da economia divina.
Pontos importantes que poderiam ser
sublinhados, nesta carta, além dos INÁCIO DE ANTIOQUIA
já mencionados: a) Do ponto de vista
da História da Igreja, Harnack vê INÁCIO AOS EFÉSIOS
aí “a melhor introdução à História Saudação

87
Inácio, também chamado Teóforo, à 4 A Burro meu companheiro de serviço
Igreja que foi grandemente e vosso diácono segundo Deus,
abençoada com a plenitude de Deus abençoado em todas as coisas, eu
Pai, predestinada antes dos séculos desejo que ele permaneça para vossa
para existir sempre, para uma glória honra e a do vosso bispo. Quanto a
que não passa, inabalavelmente Croco, digno de Deus e de vós, que
unida, escolhida na paixão recebi como um exemplo do vosso
verdadeira, pela vontade do Pai e amor, ele foi para mim conforto em
de Jesus Cristo, nosso Deus. À todas as coisas; que o Pai de Jesus
Igreja digna de ser chamada feliz, Cristo também o conforte com
que está em Éfeso na Ásia, as Onésimo, Burro, Euplo e Frontão.
melhores saudações em Jesus Cristo Neles eu vi a todos vós segundo o
e numa alegria irrepreensível. amor. Possa eu encontrar sempre a
minha alegria em vós, caso eu seja
Amor dos efésios
digno disso.
1. Acolhi em Deus vosso amadíssimo
É preciso glorificar de todos os
nome, que adquiristes por justo
modos a Jesus Cristo, que vos
título natural, segundo a fé e o
glorificou, a fim de que, reunidos
amor em Cristo Jesus, nosso
na mesma obediência, submetidos ao
Salvador. Imitadores que sois de
bispo e ao presbítero, sejais
Deus, reanimados pelo sangue de
santificados em todas as coisas.
Deus, realizastes até o fim a obra
que convém à vossa natureza. Exortação à unidade

2 Ao saber que eu vinha da Síria, 1 Não vos dou ordens como se fosse
acorrentado por causa do Nome e da uma pessoa qualquer. Embora eu
esperança, que são comuns a nós, esteja acorrentado por causa do
confiante na vossa oração para Nome, ainda não atingi a perfeição
sustentar em Roma a luta com as em Jesus Cristo. Com efeito, agora
feras, para poder desse modo ser estou começando a aprender, e vos
discípulo, vós vos apressastes a vir dirijo a palavra como a
ao meu encontro. condiscípulos meus. Sou eu quem
teria necessidade de ser ungido por
3 Em nome de Deus, recebi a vossa
vós com a fé, a exortação, a
comunidade na pessoa de Onésimo,
perseverança e a paciência.
homem de indizível amor, vosso bispo
segundo a carne. Eu vos peço que o 2 Todavia, o amor não me permite
ameis em Jesus Cristo, e que vos calar a respeito de vós. É por isso
torneis semelhantes a ele. Seja que desejo vos exortar a caminhar
bendito aquele que vos concedeu a de acordo com o pensamento de Deus.
graça e vos considerou dignos de De fato, Jesus Cristo, nossa vida
merecer tal bispo. inseparável, é o pensamento do Pai,
assim como os bispos, estabelecidos

88
até os confins da terra, estão no bispo, a fim de estarmos submetidos
pensamento de Jesus Cristo. a Deus.

3 Convém caminhar de acordo com o Quanto mais alguém vê que o bispo


pensamento de vosso bispo, como já se cala, tanto mais o deve
o fazeis. Vosso presbitério, de boa respeitar. De fato, a todo aquele
reputação e digno de Deus, está que o dono da casa envia para
unido ao bispo, assim como as cordas administrá-la, é preciso que o
à cítara. Por isso, no acordo de recebamos como se fosse aquele que
vossos sentimentos e na harmonia de o envio. Está claro, portanto, que
vosso amor, vós podeis cantar a devemos olhar o bispo como ao
Jesus Cristo. A partir de cada um, próprio Senhor. Por outro lado, o
que vos torneis um só coro, a fim próprio Onésimo louva em alta voz
de que, na harmonia de vosso acordo, vossa boa ordem em Deus, dizendo que
tomando na unidade o tom de Deus, vós todos viveis segundo a verdade,
canteis a uma só voz, por meio de que nenhuma heresia se aninha entre
Jesus Cristo, um hino ao Pai, para vós e que não dais ouvido a ninguém
que ele vos escute e vos reconheça que vos fale de qualquer coisa, a
por vossas boas obras, como membros não ser de Jesus Cristo na verdade.
do seu Filho. É proveitoso,
Fugir da heresia
portanto, que estejais em unidade
inseparável, a fim de sempre 1 De fato, existem algumas pessoas
participar de Deus. que dolosamente costumam levar o
Nome, mas agem de modo diferente e
De fato, se em pouco tempo contraís
indigno de Deus; é preciso que
com vosso bispo tanta familiaridade
eviteis essas pessoas como se fossem
que não é humana, mas espiritual,
feras selvagens. Com efeito, são
tanto mais eu vos felicito por
cães raivosos que mordem
estardes unidos a ele, assim como a
sorrateiramente. Atentos a eles,
Igreja está unida com Jesus Cristo,
pois suas mordidas são difíceis de
e Jesus Cristo com o Pai, a fim de
curar.
que todas as coisas estejam de
acordo na unidade. Que ninguém se 2 Existe apenas um médico, carnal e
engane: quem não está junto do altar espiritual, gerado e não gerado,
está privado do pão de Deus. Se a Deus feito carne, Filho de Maria e
oração de duas pessoas juntas tem Filho de Deus, vida verdadeira na
tal força, quanto mais a do bispo e morte, vida primeiro passível e
de toda a Igreja! Aquele que não agora impassível, Jesus Cristo
participa da reunião é orgulhoso e nosso Senhor. Que ninguém,
já está por si mesmo julgado, pois portanto, vos engane, assim como
está escrito: “Deus resiste aos também não vos deixeis enganar,
orgulhosos.” Tenhamos cuidado, sendo todos de Deus. Se não há
portanto, para não resistirmos ao nenhuma discórdia entre vós que

89
possa atormentar-vos, então 1 Rezai sem cessar pelos outros
verdadeiramente estais vivendo homens, pois neles há esperança de
segundo Deus. Sou vossa vítima conversão, a fim de que alcancem a
expiatória, e me ofereço em Deus. Deixai que, ao menos por
sacrifício por vós, efésios, Igreja vossas obras, eles se tornem vossos
famosa pelos séculos. discípulos.

3 Os carnais não podem realizar Quando eles tiverem seus acessos de


coisas espirituais, nem as ira, sede mansos; diante de suas
espirituais coisas carnais, da manias de grandeza, sede humildes;
mesma forma que a fé não pode frente às suas blasfêmias, oponde
realizar as coisas da infidelidade, vossas orações; diante de seus
nem a infidelidade as coisas da fé. erros, sede firmes na fé; diante de
Até mesmo as coisas que realizais sua ferocidade, sede pacíficos, sem
na carne são espirituais. Fazei tudo procurar imitá-los. Sejamos irmãos
em Jesus Cristo. Eu soube que por deles pela bondade, e procuremos ser
aí passaram alguns, levando mau imitadores do Senhor. Quem sofreu
ensinamento. Vós, porém, não os mais a injustiça? Quem teve mais
deixastes semear em vosso meio, privações? Quem foi mais
tapando os ouvidos para não receber desprezado? Não se encontre entre
o que eles semeiam, porque sois as vós nenhuma erva do diabo, mas, com
pedras do templo do Pai, preparadas toda a castidade e temperança,
para a construção de Deus Pai, permanecei em Jesus Cristo com a
levantadas até o alto pela alavanca carne e o espírito.
de Jesus Cristo, que é a cruz,
usando a corda, que é o Espírito
Santo. Vossa fé é o vosso guindaste,
a fé é o caminho que eleva até Deus. Procurar Cristo, fonte de vida e
Sois todos companheiros de viagem, unidade
portadores de Deus e do templo, 1São os últimos tempos.
portadores de Cristo e do Espírito Envergonhemo-nos e temamos que a
Santo, portadores dos objetos paciência de Deus se transforme em
sagrados, ornados em tudo com os condenação para nós. Das duas uma:
mandamentos de Jesus Cristo. ou tememos a ira futura, ou amamos
Estou alegre convosco, porque fui a graça presente. Só uma coisa
julgado digno de conversar convosco importa: que nos encontremos em
por meio desta carta, e de Jesus Cristo para entrar na vida
congratular-me pelo fato de que, verdadeira. Fora dele, nada tenha
vivendo a vida nova, não amais valor para vós. Eu carrego as
nenhuma outra coisa além de Deus. correntes por causa dele. São as
pérolas espirituais com as quais eu
Dar exemplo de virtudes
gostaria que me fosse dado

90
ressuscitar, graças à vossa oração. seguem. Quem professa a fé não peca,
Deste desejo sempre participar para e quem possui o amor não odeia.
me encontrar na herança dos cristãos Pelos frutos conhecemos a árvore.
de Éfeso, que estão sempre unidos
Da mesma forma, os que professam
aos apóstolos pela força de Jesus
pertencer a Cristo são reconhecidos
Cristo.
por suas obras. Agora a obra que nos
Sei quem sou e a quem escrevo: eu é pedida não é a profissão da fé,
sou um condenado, e vós obtivestes mas que cada um se mantenha na força
misericórdia; eu estou em perigo, e da fé até o fim.
vós na segurança. Vós sois o caminho
Não se deixar seduzir pela heresia
para aqueles que, pela morte, são
elevados até Deus, iniciados nos 1 É melhor calar e ser, do que falar
mistérios com Paulo, que foi e não ser. É bom ensinar, se aquele
santificado, recebeu o testemunho e que fala, faz. De fato, há um único
é digno de ser chamado bem- mestre, aquele que disse e era. E o
aventurado. Possa eu estar sobre as que ele fez, calando, são coisas
pegadas dele, quando alcançar a dignas do Pai.
Deus. Em todas as suas cartas, ele 2 Aquele que possui verdadeiramente
se lembra de vós em Cristo Jesus. a palavra de Jesus pode escutar
Esforçai-vos para vos reunir mais também seu silêncio, a fim de ser
frequentemente, para agradecer e perfeito, para realizar o que diz
louvar a Deus. Quando vos reunis com ou para ser conhecido pelo seu
freqüência, as forças de satanás são silêncio. Nada está escondido para
abatidas e sua obra de ruína é o Senhor, mas até nossos segredos
dissolvida pela concórdia de vossa estão junto dele.
fé. Não há nada mais precioso do que 3 Portanto, façamos tudo como se ele
a paz, que põe abaixo toda a guerra morasse dentro de nós, para sermos
das potências aéreas e terrestres. templos dele e ele próprio ser o
nosso Deus dentro de nós, como o é
de fato e como aparecerá diante de
nossa face, se o amarmos justamente.
Fé e caridade: critério do Meus irmãos, não vos enganeis.
verdadeiro discípulo Aqueles que corrompem uma família
não herdarão o Reino de Deus.
1Nada disso ficará escondido para
vós, se tiverdes, em Jesus Cristo, Com efeito, se morrem aqueles que
fé e amor totais, que são o começo fazem isso segundo a carne, quanto
e o fim da vida: o começo é a fé, e mais aquele que, por sua má
o fim é o amor. Os dois juntos são doutrina, corrompesse a fé em Deus,
de Deus, e tudo o mais, que se pela qual Jesus Cristo foi
refere à perfeição e santidade, os crucificado! Essa pessoa, tornada

91
impura, irá para o fogo astros, juntamente com o sol e a
inextinguível, juntamente com lua, formaram coro em torno do
aquele que a escuta. Por isso, o astro, e ele projetou sua luz mais
Senhor recebeu unguento sobre a do que todos.
cabeça, a fim de exalar a
Houve admiração. Donde vinha a
incorruptibilidade para a sua
novidade tão estranha a eles? Então,
Igreja. Portanto, não vos deixeis
toda magia foi destruída, e todo
ungir com o mau odor do príncipe
laço de maldade abolido, toda
deste mundo, para que não os leves
ignorância dissipada e todo reino
prisioneiros, longe da vida que vos
foi arruinado, quando Deus apareceu
espera.
em forma de homem, para uma novidade
Por que não nos tornamos todos de vida eterna. Aquilo que havia
sábios, recebendo o conhecimento de sido decidido por Deus começava a
Deus, que é Jesus Cristo? Por que se realizar.
perecermos loucamente,
Tudo ficou perturbado no momento em
desconhecendo o dom que o Senhor
que se preparava a destruição da
verdadeiramente nos enviou?
morte. Se Jesus Cristo me tornar
O homem novo digno, graças às vossas orações, e
se for da vontade de Deus, eu vos
1 Meu espírito é vítima da cruz, que
explicarei, em segundo livrinho que
é escândalo para os que não crêem,
devo escrever-vos, a economia da
mas salvação e vida eterna para nós.
qual comecei a vos falar, a respeito
Onde está o sábio? Onde está o
do homem novo, Jesus Cristo. Ela
inquisidor? Onde está a vaidade
consiste na fé nele e no amor por
daqueles que se dizem sábios?
ele, no seu sofrimento e
2 De fato, o nosso Deus Jesus ressurreição.
Cristo, segundo a economia de Deus,
Sobretudo se o Senhor me revelar que
foi levado no seio de Maria, da
cada um e todos em conjunto, na
descendência de Davi e do Espírito
graça que provém do seu nome, vos
Santo. Ele nasceu e foi batizado,
reunireis na mesma fé em Jesus
para purificar a água na sua paixão.
Cristo da descendência de Davi
3 Ao príncipe deste mundo ficou segundo a carne, filho de homem e
escondida a virgindade de Maria, seu filho de Deus, para obedecer ao
parto, e igualmente a morte do bispo e ao presbitério, em concórdia
Senhor. Três mistérios retumbantes, estável, partindo o mesmo pão, que
que foram realizados no silêncio de é remédio de imortalidade, antídoto
Deus. Como, então, foram para não morrer, mas para viver em
manifestados ao mundo? Um astro Jesus Cristo para sempre.
brilhou no céu mais que todos os
Saudações finais
astros, sua luz era indizível e sua
novidade causou admiração. Todos os

92
1 Eu sou vosso resgate, para vós e O método escolástico consistia em
para os que, em honra a Deus, haveis leitura crítica de obras
enviado a Esmirna, de onde vos selecionadas, aprendendo a apreciar
escrevi, dando graças ao Senhor, as teorias do autor, por meio do
amando a Policarpo como vos amo estudo minucioso de seu pensamento
também. Lembrai-vos de mim, como e das consequências deste. Neste
Jesus se lembra de vós. processo, como complemento, eram
explorados outros documentos ou
2 Orai pela Igreja que está na
obras relacionadas com a obra em
Síria, de onde sou conduzido em
questão. A partir da comparação
cadeias a Roma, porque sendo o
entre o texto da obra e os
último dos fiéis de lá, fui julgado
documentos a ela relacionados,
digno de servir à honra de Deus.
especialmente documentos da igreja
Tende bom comportamento em Deus Pai
e análises de estudiosos
e em Jesus Cristo, nossa esperança
anteriores, se produzia as
comum.
setentiae, curtas sentenças nas
O Surgimento da escolástica quais eram listadas as
discordâncias entre fontes
O que foi a escolástica?
diversas, acerca dos temas tratados
Seguindo-se ao período da escola na obra em estudo. As setentiae
patrística, a filosofia praticada podiam incluir também recortes dos
no seio do cristianismo passou a ser textos originais, para comparação e
ensinada em escolas, a partir do comentário. As setentiae serviriam
século IX. O período conhecido como para formular os dois lados da
escolástica perdurou até o fim da argumentação, buscando um acordo,
idade média e tem seu nome derivado livre de contradições, acerca do
da palavra latina "scholasticus", pensamento do autor ou do tema por
que significa "aquele que pertence ele discutido. Para tanto valiam-se
a uma escola". Utilizou-se da base da análise filológica e da lógica
proposta pela patrística, mas com formal. Na análise filológica
maior dedicação a atividade procurava-se por palavras que
especulativa, deixando de lado, em pudessem ter múltiplos
parte, a teologia e dedicando-se a significados, ou que o autor pudesse
formulação da filosofia cristã. O ter utilizado com um significado
filósofo de maior destaque deste diferente do usual, o que poderiam
período, que promoveu a transição resolver questões de discordância
real do platonismo para uma forma imediatamente. Uma vez
mais sofisticada de filosofia, é compreendido, o melhor possível, o
Tomás de Aquino. Destacam-se ainda, que o autor disse e aquilo que ele
neste período, Occam, Scoto e significou, procedia-se a análise
Erígena. pela lógica formal, explorando a
argumentação em busca das conexões

93
e conclusões, verificando a aristotélicas, especialmente sua
consistência dos argumentos. Neste metafísica e epistemologia.
processo, contradições poderiam ser Dedicou-se particularmente a
entendidas como subjetivas do apontar o que considerou erros de
indivíduo que lê o texto, mas não interpretação do comentador
presentes no texto em si. Por outro Averróis, importante pensador
lado, se reconhecida a contradição islâmico, permitindo a incorporação
de fato, a posição seria rejeitada. da filosofia de Aristóteles. Após o
período dominado pela filosofia de
O primeiro período, permanece
Tomás de Aquino, a escolástica entra
ligado à filosofia de Agostinho e
em declínio como instituição, mas
ao platonismo, neste período
permanece como campo de estudo,
destaca-se a ausência de distinção
sendo explorada por pensadores
entre natural e sobrenatural, a
contemporâneos como David Oderberg,
forte prevalência da fé sobre a
Giovanni Ventimiglia e Peter King.
razão, bem como uma separação ainda
não muito clara entre filosofia e 1. Boécio: o Último dos romanos
teologia, embora esta última já e o primeiro dos escolásticos.
comece a se distinguir como
Anísio Mânlio Severino Boécio
disciplina independente no período
nasceu em Roma por volta de 480.
patrístico.Com o advento de Tomás
Muito jovem ainda, casou com
de Aquino, Albertus Magnus e outros
Rusticiana, filha de Simaco. Foi
pensadores mais ligados a filosofia
nomeado cônsul em 510. Em 522, seus
de Aristóteles, a escolástica entra
dois jovens filhos foram elevados
em uma nova fase. Nesta fase, por
dignidade do cargo consular,
volta do século XIII, o uso da razão
ocasião em que ele pronunciou o
é enfatizado e amplia-se o uso das
panegirico de Teodorico. Ainda por
novas fontes aristotélicas, uma
volta de 522-523 exerceu o cargo de
recuperação das transcrições e
magister officiorum (direção geral
traduções dos trabalhos de
dos serviços da corte e do Estado,
Aristóteles. Uma síntese da
algumas funções de política
doutrina cristã e da teoria
externa, comando dos guardas adidos
aristotélica é proposta, vindo a
ao palácio real). Atacado e acusado
definir o que seria a filosofia da
pelos referendários Cipriano,
Igreja Católica nos séculos
expoente do partido filogotico, foi
seguintes.
preso e julgado sem ao menos ser
Para Aquino, razão e argumentação ouvido. Foi justiçado no inverno de
eram a base da filosofia, afastando- 524 no Ager Calventianus, ao norte
se do platonismo e agostinianismo de Pavia. As principais acusações
que dominavam os primeiros anos da foram a de ter impedido o trabalho
escolástica, na mesma medida em que dos delatores em relação ao Senado
se aproximava das posições e de ter tramado a restauração da

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autoridade do Imperador em prejuízo elementar, em dois livros, e outro,
de Teodorico. mais articulado e vasto, em seis
livros. Comentou os Tópicos, de
0s estudiosos definiram Boécio como
Cicero. Ainda do Organon de
"o último dos romanos e o primeiro
Aristóteles, traduziu os Analíticos
dos escolásticos" e, portanto, como
primeiros e segundos, os Elencos
um dos fundadores da Idade Média.
sofísticos e os Tópicos. Foi através
Na realidade, a ele remontam as
desses textos que a Idade Média
linhas essenciais que a cultura da
conheceu Aristóteles até o século
Idade Média seguira. Em uma carta a
XII.
Simaco, Boécio expressa a intenção
de levar em conta todas as ciências 0 problema do ma1 e a questão da
que conduzem a filosofia: liberdade.
aritmética, musica, geometria e
Estamos diante de teses de natureza
astronomia. E a consideração dessas
neoplatônica, que Boécio explicita
ciências deveria estar em função da
ainda melhor no fim do terceiro
filosofia. Com tal proposito,
livro, quando afirma que o mundo, o
Boécio projetou a tradução para o
Bem e Deus são a mesma coisa.
latim, com comentários, de todas as
Entretanto, se "o mundo é governado
obras de Logica, moral e física de
por Deus", uma questão emerge como
Aristóteles, bem como a tradução e
ineludivel: como então existe o ma1
o comentário de todas as obras de
e por que os maus permanecem
Platão, para depois mostrar a
impunes? Esse é o problema que
concordância substancial entre os
Boécio enfrenta no quarto livro. A
dois filósofos. Devido também a
Filosofia observa que todos os que
morte prematura, Boécio não
se afastam da honestidade são
conseguiu levar a termo o seu vasto
pessoas condenadas, embrutecidas,
e ambicioso projeto. De todo modo,
infelizes. Este, portanto, é o
escreveu um comentário ao lsagoge
resultado para quem abandona a
de Porfirio, tomando por base a
honestidade: deixa de ser homem e
tradução de Mario Vitorino.
se transforma em animal. Será que a
Entretanto, insatisfeito com tal
felicidade está nisso? Ora, apesar
tradução, realizou pessoalmente
disso, Boécio se surpreende com o
outra, mais correta e literal,
fato de que "as coisas andem ao
desenvolvendo então um comentário
contrário: os bons sofrem as penas
muito mais vasto. Traduziu e
devidas ao delito, ao passo que os
comentou as Categorias, de
maus se apropriam da recompensa que
Aristóteles.
cabe a virtude". Qual é, portanto,
Aprontou a versão do De "a razão de tão injusta confusão de
interpretatione, também de valores"? A Filosofia, no entanto,
Aristóteles, escrevendo dois lembra a Boécio que ele não deve se
comentários sobre essa obra: um, surpreender com tais coisas, desde

95
que compreenda os princípios que assim, se é a providência que
regulam a atividade daquelas coisas governa o mundo, como é que esse
que, aparentemente, acontecem por fato se concilia com a liberdade do
acaso. E esse princípio é a homem? Pois bem, a resposta que
providência: "A origem de todo o encontramos no quinto livro do De
criado, toda evolução das naturezas consolatione para tal interrogação
mutáveis e de tudo aquilo que se é que o conhecimento divino é
move, de alguma forma derivam as conhecimento simultâneo de todos os
suas causas, a sua ordem, as suas acontecimentos, tanto dos passados
formas distintivas da imutabilidade como dos futuros. Assim, "se tu
da mente divina". E a realização quisesses avaliar exatamente a
efetiva dos acontecimentos no tempo provisão com que ele reconhece todas
e no espaço é aquilo "que foi as coisas, deverias justamente
chamado destino pelos antigos". A considerar que não se trata de
providência, portanto, é "a própria presciência de coisas projetadas no
razão divina, que repousa futuro, mas de conhecimento de um
estavelmente no supremo ser, senhor presente que nunca passa. Daí não
de todas as coisas, que a todas se chamar previdência, mas
governa; e o destino é a disposição providência (. . .). Por que, então,
inerente as coisas mutáveis, pela pretendes que se tornem necessárias
qual a providência mantém cada coisa as coisas que são investidas pelo
estreitamente ligada a sua ordem". lume divino quando nem mesmo os
E a Filosofia prossegue: os homens, homens tornam necessárias as coisas
porém, são incapazes de se dar conta que tem? será que, na realidade, o
de tal ordem, de modo que "tudo teu olhar acrescenta alguma
parece confuso e subvertido", necessidade as coisas que veem como
quando, na realidade, "todas as presentes?". Em suma: em Deus, estão
coisas estio ordenadamente presentes os acontecimentos futuros
dispostas segundo uma norma a elas e estão presentes no modo como
apropriada, que as orienta para o acontecem, razão pela qual aqueles
bem. Com efeito, não há nada que que dependem do livre-arbítrio
seja feito visando ao mal, nem mesmo estão presentes em sua
por parte dos próprios maus; na contingência.
realidade, estes (. . .) procuram o
BIBLIOGRAFIA
bem, mas dele são desviados por um
despercebido erro de avaliação". ALTANER, B., STUIBER, A.,
Ademais, admitindo-se que alguém Patrologia, S. Paulo, Paulus, 1988,
esteja em condições de distinguir 55-57. BARDY, G., Expressions
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