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Publishcd in association with thc litcrary agencies William Ncill-Hall Ltd, of Cornwall, F.ngland, and Alivc*
Communications lnc., Colorado Springs, CO, USA
Tradução
Revisão
Paulo Pancote
Capa
Oliverartelucas
Publicado no Brasil com a devida autorização c com todos os direitos reservados na língua portuguesa por Editora
Textus
As citações bíblicas desta obra são da Bíblia Sagrada - Nova Versão Internacional © 1993. 2000 dc International Bible
Socicty
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem o consentimento prévio, por escrito, dos editores, exceto breves
citações em livros c resenhas.
P578o
Ondc o seu tesouro está / Eugene H. Peterson ; tradução Claudia Ziller Faria. -Niterói, RJ : Textus, 2005
CDU 243
Sumário
Apresentação à edição brasileira
Prefácio
Acabando com o domínio do ego
Feito por Deus
Centralizado em Deus
Governo de Deus
Ajudado por Deus
Afirmado Por Deus
Compaixão de Deus
Justificado por Deus
Servindo a Deus
Suficiência de Deus
Amar a Deus
Sumário
Apresentação à edição brasileira
Meu primeiro contato com a obra de Eugene H. Peterson se deu através do livro Um
pastor segundo o coração de Deus, presente que ganhei de um querido amigo, num
domingo, após um culto em nossa igreja. Hoje minha estante está entesourada com
vários livros de Peterson: não parei mais de lê-lo.
Nos últimos anos, tenho lido bastante sobre oração, assunto pelo qual nutro profundo
interesse. Onde o seu tesouro está é um presente para a alma e um prêmio para todos
os que têm buscado sabedoria através das Escrituras e vitória pelos caminhos da
oração.
São onze salmos escolhidos, onze lições para viver, um curso especial na escola de
oração. Onze mergulhos nas águas profundas e encantadoras do oceano do amor de
Deus.
Contudo, escrever sobre oração não é orar, assim como ler sobre ela também não é.
Orar é, bem - orar. Gostaria que fosse mais fácil. E também que houvesse uma fórmula
para atrair mais espectadores e levá-los a entrarem em ação. Embora não exista, sugiro
algumas providências:
2. As reuniões devem durar uma hora e meia. Comece orando o salmo em uníssono.
Passe os trinta ou quarenta minutos seguintes lendo e debatendo meu texto sobre o
salmo-oraçào. Em seguida, volte a orar em uníssono. Depois, fique em silêncio durante
quinze minutos, para que o salmo se aloje em seu íntimo. Nessa hora, o grupo será uma
companhia de crentes obedientes diante do Senhor. Encerre o silêncio orando o salmo
pela terceira vez.
3. Observe como Deus o leva a atos de obediência nos aspectos mais públicos de sua
vida. Não se apresse. Não pense que agirá apenas com seus parceiros de oração ou
com cristãos. Não suponha que precisa apresentar projetos. Esteja pronto para ser
levado a ações diferentes de suas rotinas normais. Espere para ver o que vai acontecer.
4. Encontre seus amigos uma última vez, um ano após a primeira reunião (marque esse
encontro durante a décima primeira reunião), para compartilhar o que tem acontecido.
Verifiquem se vocês têm percebido vitórias contra o domínio do ego. Procure em sua
vida novas conexões entre terra e altar. Identifique outras pessoas que participaram da
obra de conexão. Pergunte a si mesmo se Deus o está levando a continuar a “acabar
com o domínio do ego”. Busque em tudo isso o que pode ser atribuído à ação
fundamental da oração. O objetivo dessa reunião é compartilhar sua vida, e observar na
de seus amigos, a participação mais profunda na ação de Deus neste mundo.
Capítulo 1
Acabando com o domínio do ego
SALMO 2
repente,
MARTIN BUBER 1
Ao longo de toda a malha rodoviária que corta os
Estados Unidos, da Califórnia até à ilha de Nova
Iorque - a grande avenida principal da América -
as pessoas vivem completamente voltadas para si
mesmas. Cento e cinqüenta anos atrás Alexis de
Tocqueville, que morava na França, visitou o país e
escreveu: “Cada cidadão se dedica habitualmente à
contemplação de um objeto insignificante, ou seja,
ele mesmo”1 2. Um século já passou e a situação
ainda não melhorou. Mesmo com a realidade
rica, atraente, barulhenta e misteriosa em evidência
por toda parte, ninguém nem nada consegue afastar
as pessoas da preocupação obsessiva consigo mesmas
mais do que um instante.
E evidente a necessidade de acabar com o domínio do ego. Observadores preocupados
com a situação usaram psicologia, sociologia, economia e teologia para fazer
o diagnóstico e atribuíram ao ego a culpa da deterioração da vida pública na
desintegração da pessoal: há um problema nessa área, responsável por tudo mais que
está errado.
Também se volta contra o consumismo que deixa grande parte do mundo imerso em
fome e pobreza. Outros distribuem folhetos que conclamam ao arrependimento
e alertam para o perigo da condenação, no esforço de acordar as multidões fugidias
para a necessidade de cuidar da alma, além do ego. Insistem em chamar atenção para o
valor eterno da alma, apresentam palavras bíblicas cheias de autoridade que mostram
quem somos e com que propósito fomos criados. Fazem a pergunta mais importante:
“Você já foi salvo?”. Os dois grupos atraem atenção ocasional, mas nunca duradoura.
Embora ambos se preocupem com a situação, um não se importa com o outro. Nas
poucas vezes em que se falam, impera o desprezo mútuo. Um deseja salvar a sociedade,
outro, as almas, mas não conhecem terreno comum. De tempos em tempos, alguém
oferece uma solução: psicólogos propõem terapias, educadores criam currículos para
as escolas, economistas elaboram leis e sociólogos criam novos modelos de
comunidade. O pensamento enche o ar. Proliferam idéias. Algumas chegam a
ser experimentadas. Nada funciona por muito tempo.
de nosso bem mais precioso: a vida espiritual, que foi pisoteada por partidos
políticos no Leste e por partidos comerciais no Oeste". Estamos, bradou ele, em
uma “crise espiritual severa e em um impasse político. As celebradas façanhas
tecnológicas do progresso, incluindo a conquista do espaço, não redimem o século
XX da in-digência moral. Precisamos de “labareda espiritual”.3
Claro que a oração se relaciona a Deus. Ele é tanto iniciador quanto destinatário dessa
atividade ignorada mas intensamente cultivada. Mas a oração se relaciona a
muitos outros elementos: guerra, governo, pobreza, sentimenta-lismo, política,
economia, trabalho e casamento. Em suma, tudo. O consenso chocante no diagnóstico
dos especialistas modernos sobre a existência de um problema com o ego se compara
ao consenso igualmente chocante de nossos ancestrais quanto à estratégia de ação: a
oração é a única forma de se libertar do mundo restrito do ego e penetrar no imenso
mundo de Deus sem negar, suprimir ou mutilar o ego. Orar é também o único meio de
escapar do ego-tismo, que leva a pessoa a autodestruição e a destruição
A ação fundamental
Oração é ato político, energia social, bem público. Ela molda a vida da nação muito
mais do que a legislação. O fato de não termos sido ainda dominados pela
anarquia deve-se muito mais à oração do que à polícia. E um ato permanente e
intrincado de patriotismo no sentido mais amplo da palavra - muito mais preciso,
amoroso e protetor do que qualquer patriotismo declarado em slogans. A possibilidade
de viver na sociedade e o renascimento da esperança se devem à oração e não à
prosperidade empresarial ou ao florescimento das artes. O ato mais importante para
despertar toda saúde e força que há em nossa terra é a oração. E claro que este não é o
único meio, pois Deus usa todas as coisas para realizar Sua vontade soberana, e “todas
as coisas” inclui, com toda certeza, policiais, artistas, senadores, professores,
terapeutas e operários. De toda maneira, orar é a ação fundamental.
tence a todos. Quando nos lançamos a ela sem qualquer vontade ou consciência do que
é abrangente, inclusive a vida do reino que está “à mão”, no tempo e no espaço,
empobrecemos a realidade social que Deus está criando.
Assim como é impossível falar uma língua individual, também não se pode ter oração
privada. Não existe língua individual. Cada palavra carrega uma longa história de
desenvolvimento em comunidades complexas de experiência. Toda fala é relacionai,
estabelece uma comunidade de falantes e ouvintes. Isso também acontece com a oração,
a língua falada no vasto contexto da percepção de que Deus fala e ouve. Estamos
envolvidos, queiramos ou não, em uma comunidade da Palavra - falada e lida,
entendida e obedecida (ou mal compreendida e desobedecida). Isso pode acontecer na
solitude, mas não na privacidade, pois envolve o Outro e os outros.
A escola da oração
Ainda não surgiu escola de oração melhor do que os Salmos, que também envolvem
imersão na política. As
4. Baron Friedrich von Hiigel, Letters from Baron Friedrich von Hü-gel to a Niece, editado por Gwendolyn
Greene (Londres: J. M. Dent and Sons Ltd., 1958), pág. 25.
pessoas que nos ensinam a orar nos Salmos eram muito bem integradas nesses assuntos.
Ninguém mais avaliou e cultivou tão bem a percepção da pessoa. Ao mesmo tempo,
nenhum outro povo teve compreensão mais rica de si mesmo como nação pertencente a
Deus. O ato característico que dava forma à sociedade e alimentava a alma era a
oração. Eles oravam quando estavam reunidos e quando estavam sozinhos e a oração
era igual nos dois cenários. Essas orações, os Salmos, são profundamente pessoais e
ao mesmo tempo ardentemente políticas.
que afirmam que “religião e política não se misturam” por certo sabem o que estão
falando. A mistura gerou um número infindável de males - cruzadas, inquisições,
exploração e caça às bruxas. Ainda assim. Deus nos manda combinar as duas, mas
temos de tomar muito cuidado. O único caminho seguro é a oração. E irreal e
antibíblico separar a vida em atividades religiosas e políticas, ou entre esferas
sagradas e profanas.
Mas é difícil saber como reunir as duas sem colocar uma nas mãos inescrupulosas da
outra, política usando oração e vice-versa. A verdadeira mistura é política se tomando
religião e esta se tomando aquela. A oração é a único caminho adequado para o grande
feito de colocar essas polaridades em relação dinâmica. Os Salmos são o maior
documento da oração agindo.
O livro dos Salmos é uma obra editada. Cento e cinqüenta orações foram colecionadas
e arranjadas de modo a guiar e moldar nossa reação a Deus com precisão, profundidade
e abrangência. Essas preces declaram todos os sentimentos e experiências possíveis em
relação à palavra criadora e redentora de Deus em nós - João Calvino chamou os
Salmos de “análise minuciosa de todas as partes da alma”.4 Dois Salmos foram
colocados como introdução: o primeiro com o foco centrado na pessoa, o segundo
uma grande angular voltada para a política. Deus trata cada um individualmente, mas ao
mesmo tempo tem caminhos públicos que interceptam a vida de nações, soberanos, reis
e governantes. Os dois Salmos foram colocados juntos de propósito, uma introdução
bifocal à vida de oração, uma iniciação às respostas pessoais (Bem-aventurado o
homem,
O Salmo 1 apresenta a pessoa que sente prazer em meditar na lei de Deus; o 2 mostra o
governo que Deus usa para enfrentar as conspirações dos que se colocam contra Seu
domínio. Todos os Salmos posteriores se colocam entre esses dois extremos
introdutórios, evidência de que não pode existir, na vida de fé, divisão entre pessoal e
público, ego e sociedade. A sociedade contemporânea, contudo, demonstra grandes
abismos exatamente nessas junções, e pelo menos um dos motivos é que amamos o
Salmo 1 e ignoramos o 2. Cristãos em oração reúnem aquilo que todos sempre deixam
de lado, sem qualquer escrúpulo. Devido à negligência para com orações semelhantes
às do Salmo 2, pareceu-me de importância estratégica reapresentar muitas delas como
uma fonte para “acabar com o domínio do ego”. Esses Salmos são evidência material,
formas de oração que estiveram em eclipse parcial. Orando-as, ou seguindo suas
instruções, suplantaremos a barreira do ego e entraremos no reino que Cristo vem
estabelecendo.
O objetivo de Deus ao nos salvar não era nos levar a cultivar êxtases em solidão, nem
fazer reserva para nós em uma mansão celestial. Fomos feitos cidadãos de um reino, ou
seja, de uma sociedade. Através dos Salmos, Ele ensina a linguagem do reino, que
acabam se preocupando tanto com a política selvagem quanto com as águas tran-qüilas
da piedade. Assim, não se justifica nossa facilidade para imaginar Deus em Seu
cuidado com um pardal que cai, enquanto hesitamos em crer que Ele está presente
na confusão de salas cheias de fumaça de cigarro.
Reunido e disperso
Essa destruição do domínio do ego vem acontecendo por toda parte. Muitas pessoas se
reúnem para participar da obra. Quando acaba a reunião, prosseguem com o
que começaram em conjunto. São persistentes, determinadas, eficientes. Karl Jaspers
comentou:
Reunidos em atos de adoração, eles oram. Espalhados, eles se infiltram em lares, lojas,
indústrias, escritórios, academias de ginástica, prefeituras, tribunais, prisões, ruas,
play-grounds e shopping centers e continuam a orar. Grande parte da população,
profündamente ignorante quanto às forças que mantêm a vida em curso, nem sabe que
essa gente existe.
Essas pessoas que oram sabem o que a maioria desconhece ou prefere ignorar:
centralizar a vida nas exigências insaciáveis do ego é o caminho mais certo para a
condenação. Confirmam o julgamento de Wendell Berry:
Se quisermos corrigir os abusos que cometemos uns contra os outros e contra nossa
terra, se nossos esforços nesse sentido pretenderem ser mais do que um impulso
político passageiro, que no final será apenas outra forma de abuso,
então precisaremos ir muito além de protestos públicos e ações políticas. Teremos
de reconstruir a essência e a integridade de melhores mentes, amizades,
casamentos e comunidades”.8
Sabem que a vida restrita ao ego aprisiona, mata a alegria, produz neuroses e fomenta
doenças. Devido ao puro senso de sobrevivência se comprometem a um estilo de
vida voltado para os outros, tanto pessoalmente quanto em sua na-
7. Karl Jaspers, Man in the Modem Age (Garden City, N.Y.: Anchor Press/Doublcday, 1951), pág. 77.
8. Wendell Berry, A Continuous Harmony (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1972), pág. 79.
ção. Para usar as palavras de seu Mestre, são “luz” e “fermento”. A luz é silenciosa e o
fermento invisível. A presença é discreta, mas essas vidas são o modo que Deus usa
para iluminar e preservar a civilização. As orações se opõem às fortes forças de
desintegração que agem na sociedade.
Esses cidadãos têm desmascarado o engano do diabo, que convence que a oração é um
exercício devocional em que os piedosos cultivam um tipo de felicidade privada com o
Todo-Poderoso, ou em que os profanos são levados em circunstâncias desesperadas e
que para o, digamos assim, mundo real, as realizações precisam passar por comitês,
máquinas ou uma campanha de relações públicas. Eles reconheceram o caráter
profundo, abrangente, refonnador e revolucionário da oração: é a obra essencial para
moldar a sociedade e formar a alma. Envolve necessariamente o indivíduo, mas não
começa nem termina com ele. Nascemos e somos sustentados em comunidade. Nossos
atos e palavras, ser e tomar-se, a diminui ou a enriquece, e ela tem o mesmo efeito
sobre nós.
A oração age como o princípio do fulcro, o pequeno ponto de apoio onde toda força da
alavanca se concentra - percepção, intensificação, expansão e aprofundamento
na conjunção de Céu, Terra, Deus, o próximo, ego e sociedade. E o ato que integra os
aspectos internos e externos da vida, correlaciona pessoal e público e trata de
necessidades individuais e interesses nacionais. Nenhuma outra ação traz tantos
benefícios simultâneos à sociedade e à alma que ora.
Motivações pessoais e públicas, que envolvem Céu e Terra, movem os que oram. Eles
procuram a autopreser-vação, já que uma autoridade lhes disse que apenas quem perde
a vida conseguirá salvá-la. Além disso, realizam um ato de patriotismo, sabendo que a
vida é tão intrinsecamente ligada à dos outros que todo ato que polui, todo aborto
da justiça e toda crueldade - mesmo que ocorra do outro lado do planeta - degrada tanto
a pessoa que foi diretamente atingida quanto a que não foi. Essa percepção não se
limita aos cristãos. O pagão Marco Aurélio, por exemplo, en-
xergou esse fato com clareza: “Todas as coisas estão interligadas: o laço é sagrado e
nada, ou quase nada, é alheio às mínimas outras coisas”.7 Entretanto, a estratégia
pertence ao cristianismo.
A oração repara e cura as interligações. Avança até a fonte da divisão entre o que é
santo e o que é do mundo - o ego sem Deus - e busca a cura final, não se conformando
com nada menos do que o novo Céu e a nova Terra da promessa. “Somos cidadãos do
Céu”, afirmam os que oram, e buscam com fervor as benesses de sua
“terra”. Entretanto, essa paixão pelo invisível em nada prejudica o envolvimento nos
assuntos de todos os dias: trabalhar bem, jogar limpo, assinar petições, pagar impostos,
censurar perversos, encorajar justos, molhar-se na chuva e sentir o perfume das flores.
Possuem um conjunto tremendo, caleidoscópico, de fragmentos de realidade tocada,
cheirada, vista e provada, recebida e oferecida em atos de oração. Eles obedecem à
ordem do Senhor: “Dêem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”
Capítulo 2
1
Martin Bubcr, Meeúngs, editado por Maurice Friedman (LaSalle, 111.: Open Court
Publishing Co., 1973), pág. 59.
3
Alexander Solzhenitsyn, “World Split Aparf\ Vital Spee-ches, Io. de setembro de
1978.
5
G. K. Chesterton, The CollectedPoems (Nova Iorque: Dodd. Mead & Co., 19X0), págs. 136-137.
6
“Hoje, parte da patologia da vida cristã ocidental se deve à destruição da unidade essencial entre místico e
sócio-político, entre contemplativo e profético. Misticismo c política são vistos, na melhor das hipóteses,
como modos alternativos de discipulado e na pior como opostos ideológicos incompatíveis. Assim temos,
por um lado, formas de espiritualidade escapistas, pietistas e contra toda came e por outro, movimentos
políticos fanáticos, desumanos e contra a encarnação. Vemos, em ambos, o fracasso de levar a humanidade
a sério.” Kenneth Lecch, The Social God (Londres: Sheldon Press, 1981)
7
Citado por Berry, A Continuous Harmonw pág. 15.
Feito por Deus
SALMO 87
O Senhor edificou sua cidade sobre o monte santo; ele ama as portas de Sião mais
do que qualquer outro lugar de Jacó.
Aquele que já nasceu de novo não pode viver ansioso e preocupado com cada detalhe
de sua vida, embora viva nessa experiência. A vida tornou-se nova porque, sendo
orientado rumo à nova criação, ele vive na presença do Espírito e sob a influência
dEle, a “intensidade da glória
JÜRGEN MOLTMANN 1
1. Jürgen Moltmann, The Church in the Power of lhe Spirit (Nova Iorque: Harper
& Row, 1975), pág. 279.
A maravilha do nascimento
los de cópia e transmissão. Muito mais provável é que ele seja oração sincera,
desajeitada e espontânea em presença de excesso de significado e de realidade.
Nascimento. Como acontece? O que o provoca? Por mais comum que seja, sempre
chama a atenção, provoca admiração c suscita curiosidade. Queremos saber por que
existe alguma coisa no lugar do nada. Buscamos os motivos que fazem a vida de repente
se manifestar a partir das trevas, no meio da dor. Ansiamos por descobrir a razão da
alegria quando há tanto choro. Talvez fosse melhor lamentar, sabendo que a criança
nasceu para sofrer, tão certo quanto o rio corre para o mar. Diante da dor, rejeição e
tristeza que certamente esperam pelo recém-nascido, talvez fosse mais apropriado
torcer as mãos em aflição. E verdade que alguns impedem o nascimento. Há
abortos, mas a maioria não faz isso. Há, na raça humana, um instinto consensual e
arrebatador de que a vida é boa. Cada nascimento representa uma nova e pura invasão
de vida em nossa existência ameaçada pela morte. Apesar da dor do parto, do imenso
trabalho de criar um bebê até ele se tornar adulto, e da incerteza de doenças e
acidentes, o nascimento é sempre uma boa notícia.
Houve, nos primeiros anos do século XX, grande entusiasmo em tomo da eugenia,
programa que selecionava pais potenciais pelos mesmos princípios que haviam
aprimorado as crias de ovelhas e cabras. Nessa época, houve uma conversa muito
famosa entre o brilhante mas feio George Bemard Shaw e uma atriz londrina lindíssima
destituída de inteligência. Ela falou, com afetação:
- Ah, Sr. Shaw, o senhor não acha que nós dois deveriamos ter um filho? Seria um
prodígio, com minha aparência e seu cérebro!
Shaw replicou:
- Mas o que faríamos se ele viesse com minha aparência e seu cérebro?
Cada homem é único, por isso, outro primeiro homem chega ao mundo toda vez
que nasce uma criança. Estando vivos, todos tateando como crianças voltando
à origem de nosso próprio eu, podemos sentir o fato de que há uma origem, há uma
criação.1
O nascimento mais comum está muito acima de tudo que somos capazes de fazer,
mesmo com o maior esforço e tecnologia altamente sofisticada. Aqui há mistério,
mas de luz e não de sombras, repleto de bondade, transbordante de bênçãos. Todo
nascimento nos leva poderosamente de volta a essa fonte: nossa origem é em alguém
que não nós mesmos, alguém maior do que nós.
Parece estranho. São nomes de nações, não de pessoas. A imaginação se perde: parecia
que pensávamos em bebês risonhos e, na verdade, nos confrontamos com nações
violentas e amedrontadoras. Tratam-se de inimigos de Israel: Raabe (nome antigo para
Egito), nação que escravizou cruelmente o povo por mais de quatrocentos anos;
Babilônia,
que derrubou os muros de Jerusalém, saqueou o Templo e levou o povo para um exílio
devastador; Filistia, inimigo litorâneo implacável e destruidor, com reputação
merecida de insensibilidade às realidades morais e espirituais; Tiro, mercadores ricos
e profanos, os barões do roubo do mundo antigo, cuja luxúria levou à decadência;
Etiópia, soldados do Saara inferior, que se ofereciam como mercenários. O que esses
cinco inimigos foram fazer em uma reflexão sobre as maravilhas e mistérios do
nascimento? Só há uma resposta satisfatória, por mais incrível que pareça: foram parar
na oração por terem nascido de novo.
Por todo o mundo, as pessoas mais improváveis têm encontrado nova vida em Deus,
vida que só pode ser descrita adequadamente pela metáfora radical e cheia de vida do
nascimento. Esse fenômeno transnacional, transcultural e transracial foi um dos
resultados inesperados, mas feliz, da dispersão dos hebreus nas nações circunvizinhas
por causa da perseguição e do exílio. As pessoas que moravam nos lugares para onde
eles foram puderam observá-los, ver seu estilo de vida, olhar sobre os ombros deles
enquanto liam e copiavam as Escrituras, questionando sobre a fé e sobre Deus.
que ficasse ao lado do muro de Jerusalém assistindo a procissão poderia muito bem
dizer, combinando a reverência e a surpresa com que saudamos um recém-nascido à
curiosidade e ao prazer com que identificamos carros com placas de outros estados:
Nascidos de novo. Nascidos na fé que os atrai ao culto em Jerusalém, pregada nos dias
de festa. Depois essa pessoa que assiste a parada se volta e vê a reunião internacional
dentro dos portões da cidade e exclama:
Mãe Sião: Jerusalém importante não como capital política nem como Meca cultural,
mas como local de nascimento.3 O aperfeiçoamento pessoal começa aqui, no útero de
Sião. Uma família inesperada surgiu no mundo a partir dessa matriz: ninguém poderia
prever que Egito, Babilônia, Filistia, Tiro e Etiópia teriam um parentesco em comum. O
útero de Sião, local de revelação e culto e, por fim, de encarnação. Entramos na esfera
da transformação e partimos transformados.
Centenas de anos depois, Jesus extraiu do Salmo a frase que estabeleceu o foco de Sua
extraordinária conversa noturna com Nicodemos: “É necessário que vocês nasçam de
novo”. Tanto Jesus quanto Nicodemos oravam os Salmos, o livro de orações no qual
foram ensinados. Muitas vezes Nicodemos havia repetido ou cantado:
Mas, como acontece tantas vezes com o que é familiar, o Salmo era apenas exterior a
ele, um legado piedoso recebido do passado. Ele nunca estivera “em” oração. Agora,
conversando com Jesus, estava.
A cidade de Deus
ó cidade de Deus!
Precisamos pensar no amor de Deus pela cidade, pois houve uma grande separação na
consciência cristã
O recém-nascido entra na cidade, não parte para o campo, onde é possível viver por
conta própria e se entregar à fantasia de ter sido feito por ele mesmo. Lá, pelo menos,
não há necessidade de contato chegado com pessoas inadequadas, nem de depender do
serviço de gente que complica a vida alheia. Mas na cidade é diferente. Ela
nos envolve em assuntos urbanos, na política. Somos jogados, queiramos ou não, em
padrões de transporte, transações de negócios, funcionamento do sistema judicial e
muito mais.
A cidade de Deus, da qual “coisas gloriosas são ditas”, não é, claro, apenas a
Jerusalém disputada por políticos rivais e noticiada por jornalistas. Também não é
desmate-rializada. E a cidade em que Deus opera Seus propósitos e onde Sua glória
brilha, mas mesmo assim um lugar real, de igreja, cultura, culto e condições climáticas.
É citada no versículo 5 como uma pessoa, mãe que dá à luz uma descendência
internacional. Mas nos versículos 4 e 6 ela se apresenta como ponto geográfico - no 6,
ali. Fica sobre uma montanha rochosa, seus portões estão abertos. Ali.
O nascimento espiritual nos leva a uma cidade física. Nos descobrimos não apenas
irmãos e irmãs em uma família, mas também cidadãos em uma metrópole
(literalmente, “mãe-cidade”). Nossos nomes foram registrados, além do rol dos
nascimentos, no dos impostos, o que significa que temos responsabilidades com o bem
comum. Orar o Salmo 87 desenvolve nosso compromisso consciente com o
bem público e nos ajuda a ver o mundo da política como terreno bíblico, não estranho.
Mãe Sião
Então chegou o pôr-do-sol, o sinal do início do Sabá. Fiquei diante do Muro simples,
sem atrativos, sentindo-me profundamente comovido por causa da torrente de
recordações que me vinha. Eu estava no lugar onde Davi governou, onde Salomão
construiu, Isaías pregou e Jeremias chorou. Era o local em que Jesus ensinou, sofreu,
morreu e ressuscitou. Ouvi um cântico à distância, atrás de mim. Virei-me e vi cerca de
trezentos jovens (fiquei sabendo depois que eram alunos da Universidade Yeshiva).
Eles vinham com os braços nos ombros uns dos outros, cantando enquanto se
moviam no mesmo ritmo, em uma solenidade alegre cruzando a praça rumo ao Muro.
Chegaram no pátio onde eu estava, formaram um grande círculo e começaram a cantar e
dançar no local de oração.
Foi um dos momentos mais emocionantes de minha vida. Sentimentos profundos cuja
intensidade me surpreendeu moveram meu íntimo. O lugar santo (o Muro), o dia santo
(Sabá) e a cidade santa (Jerusalém). E as multidões de pessoas santas - todas as raças à
minha vista, enquanto eu ouvia muitas línguas diferentes. Tudo isso encontrou, para
mim, expressão física e vocal no canto e na dança dos jovens. Subitamente a última
frase do Salmo 87 surgiu em minha mente como um epigrama do momento:
Capítulo 3
1
Martin Buber, On the Bihle, editado por Nahum Glatzcr (Nova Iorque: Schocken Books, 1968), págs. 11-
12.
2
“Na Diáspora. a conversão foi um ato voluntário praticado por multidões de gentios que desejavam se
juntar ao povo de fé judeu.” The Jewish People in lhe First Century, 2 volumes, editado por S. Safrai e M.
3
A LXX cometeu um engano na tradução do versículo 5: "O, Mãe Sião". Isso foi resultado, provavelmente,
de um erro textual no grego, metí no lugar de meter. Contudo, esse engano capta o espírito do Salmo de
forma tão surpreendente que não se pode deixá-lo de lado. (James Joyce costumava manter os erros
cometidos pelos datilógrafos ao transcrever sua letra difícil de entender. Ele acreditava que haviam
aperfeiçoado sua obra.)
Interessante notar que nas cidades-estados gregas, a esfera pública costumava ser
vista como o lugar de liberdade, em contraste com a privada, o local das
necessidades. Nesta, a vida era cercada pelas necessidades de cônjuge, filhos,
roupa, alimento, abrigo. Na pública, a política, havia espaço para criar com
liberdade padrões de associação e responsabilidade que elevavam a vida acima dos
aspectos de sobrevivência. Jesus aprofundou imensamente esse discernimento com
a proclamação do reino, a esfera pública de Deus. E essencial reconquistar esse
terreno público que foi perdido por um secularis-mo agressivo instigado por
pietismo privado. A oração é o meio fundamental nesse trabalho de retomada. Veja
Elizabeth Young-Bruehl. Hannah Arendt: For Lave of lhe World (New Haven: Yale
Univcrsity Press, 1982), pág. 319.
O Senhor disse ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus
inimigos um estrado para os teus pés
e dominarás sobre os teus inimigos! Quando convocares as tuas tropas, o teu povo se
apresentará voluntariamente. Trajando vestes santas, desde o romper da alvorada os
teus jovens virão como o orvalho.
O Senhor está à tua direita; ele esmagará reis no dia da sua ira. Julgará as
nações, amontoando os mortos e esmagando governantes em toda a extensão da
terra.
No pensamento do mundo bíblico, não se espera que o homem esteja centrado em sua
própria personalidade, e sim em Deus. ... O interesse deles era o drama divino, não a
personalidade humana; os acontecimentos sobrenaturais, não o encanto de um
galileu.
DONALD BAILLIE 1
Poderemos fazer alguma coisa? A maioria das pessoas pensa que sim. Certo, há dias
em que parece que a disputa fica entre fanatismo e apatia, pessoas que acusam um
inimigo odioso por todos os ossos males e aquelas que sucumbiram por achar que não
podem fazer nada. Mas a verdade é que todos os dias se gasta muita energia para
solucionar problemas: cuidado com o meio-am-biente, compaixão pelos sofredores,
preocupação com os pobres, diligência no governo. Grandes batalhões de pessoas
ensinam, curam, legislam, orientam, consolam e reabilitam. Muitos combatem o mal,
tanto nas formas óbvias quanto nas sutis.
mos o que fazer. Se fizermos uma pesquisa entre os colegas, como alguém de vez em
quando faz, encontraríamos uma variedade imensa de respostas. No entanto,
poucas pessoas responderíam “orar”. Não estou afirmando que a pesquisa mostraria
que os cristãos não oram, mas sim que a maioria não considera a oração o ato central e
essencial para desfazer a confusão em que nos metemos. A maioria considera a oração
uma atividade privada, a ser realizada dentro de casa. Quando acontece no setor
público, faz parte de alguma cerimônia.
Esse entendimento e essa prática são tão generalizados e aceitos que ficamos chocados
ao descobrir que em outros tempos e lugares os cristãos tinham posição completamente
diversa. A diferença fica clara no que sabemos sobre a comunidade cristã do primeiro
século. Aquela época, ao contrário da nossa, era totalmente deficitária em termos de
pesquisas e análises estatísticas, de modo que nos falta o tipo de evidência a que
estamos acostumados. Mas temos o Novo Testamento e vemos que nele o Salmo
mais popular é o 110 - com sete citações e quinze alusões.3 Nenhum outro Salmo chega
nem perto disso. A comunidade de cristãos do século I ponderava, debatia, memorizava
e meditava no Salmo 110. Era o texto que os atraía e moldava a vida comum quando
abriam seu livro de orações. Mas a comunidade de nosso século tem ouvido muito
pouco desse Salmo.
Venho fazendo pesquisas informais há alguns anos e elas mostram que o favorito hoje é
o 23, que não foi citado nem uma vez no Novo Testamento. Não preten-
do ser hostil ao confrontar nossa preferência com a dos primeiros cristãos. O Salmo 23
merece sua popularidade. Ele trouxe, e continua trazendo, a palavra verdadeira de Deus
e desenvolve um relacionamento profundo e autêntico com Ele nos que o oram. Mas o
110 não merece ser esquecido: é extremamente importante, escrito com arte e vigor, e
nos dirige em uma oração que tira o ego do centro
- nos resgata do egocentrismo, voltando nosso foco para o ser e a ação de Deus. As
conseqüências de orá-lo são imensas para os que desejam agir diante do mal que assola
o mundo.
Equilíbrio perfeito
As duas sentenças mais importantes são oráculos de discurso direto de Deus: O Senhor
disse ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus inimigos um
estrado para os teus pés ” (v. 1) e O Senhor jurou e não se arrependerá: “Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque ” (v.4). Esses dois
versículos dominam o Salmo e o dividem em duas partes perfeita-mente equilibradas.
David Noel Freedman fez a observação surpreendente de que cada estrofe (em
hebraico) tem setenta e quatro sílabas - equilíbrio perfeito! 4
- por ela mesma já responde pela proeminência do texto no século 1. As pessoas que
conhecemos, através do Novo Testamento, se interessavam acima de tudo, em ouvir
o que Deus tinha a lhes dizer. A sede que sentiam por receber mais do que sabiam ser
as boas novas era insaciável. O apetite pela Palavra de Deus, incessante. Eles eram
como
Talvez seja exatamente essa base - “O Senhor disse... O Senhor jurou” - o motivo do
esquecimento na atualidade. As vozes religiosas que comandam as maiores
audiências em nossa sociedade fazem publicidade do ego - religioso, claro, mas mesmo
assim, ego. As distorções de raízes profundas, que levam a humanidade a pensar
primeiro em si, foram institucionalizadas na economia e sancionadas pela psicologia.
Agora arranjamos religiões no mesmo estilo, que aumentam nosso potencial e nos fazem
sentir bem a respeito de nós mesmos. Queremos orações que nos tragam benefícios
diários na forma de padrão de vida mais elevado, com milagres ocasionais para aliviar
o tédio. Nos aproximamos da Bíblia como consumidores, esquadrinhando os textos
para encontrar alguma pechincha. Vamos ao culto como epicuristas emocionais,
acreditando que o divino deve fornecer um suplemento agradável de pôr-do-sol
e sinfonias. Lemos “O Senhor é meu pastor, nada me faltará” e nosso coração vibra.
“Você não temerá o pavor da noite” e ficamos tranqüilos. “Não nos trata conforme os
nossos pecados” e começamos a pensar que talvez tenhamos sido rigorosos demais
conosco mesmos. Mas quando lemos “O Senhor disse ... O Senhor jurou” o interesse
diminui e pegamos o jornal para verificar como anda a bolsa de valores.
Provavelmente não somos piores que as pessoas do século I. Elas também agiam assim.
Notável, contudo, é
fala. Víramos editores intrometidos para os que nos cercam e estão aprendendo a contar
a história do amor salvífico de Deus em sua vida: apagamos virgulas, trocamos pontos
e vírgulas, ficamos irritados com a pieguice da história que contam em sintaxe afobada
e estranha. Então estamos prontos para um acerto no meio do caminho, à moda
do Salmo 110: “O Senhor jurou”!
E compreensível permitirmos, sem perceber, que as preocupações do ego usurpem a
adoração a Deus, mas não é inevitável. E comum, mas não necessário, que a admiração
diante da palavra centralizadora de Deus escoe pela peneira do dia-a-dia. Meus amigos
Larry e Ruth moram em uma fazenda, em um vale no estado de Montana. Alguns
quilômetros adiante, depois do vale, as Montanhas Rochosas iniciam sua subida e
chegam a mais de 2.000 m de altitude. Formam uma borda recortada no horizonte
que meus amigos enxergam, colorida em tons que variam de azul a verde à medida que
o sol avança pelo céu. Uma vez, eu estava na casa deles e comentei:
- Que lugar maravilhoso para trabalhar! Mas talvez vocês estejam tão acostumados que
nem notem mais a beleza.
Eles responderam:
-Ah, não! Paramos para contemplar várias vezes todos os dias. A beleza muda sempre:
cada vez que olhamos somos envolvidos por novas variações.
O Salmo 110 estabeleceu sua distinção na comunidade cristã primitiva fazendo o ego se
voltar para o Deus
que fala. Eles sabiam que viviam em um mundo arruinado e que precisavam tomar
alguma atitude. Sabiam também que as boas obras e grandes intenções eram tão falhas
que só conseguiam piorar a situação. Mas eles tinham consciência de que isso não os
desqualificava para o trabalho: haviam sido chamados para a obra de Deus em Cristo
para estabelecer Sua vontade “na Terra como no Céu”.
Para fazer isso, oravam o Salmo 110, que moldou o entendimento de quem eles eram e
do lugar que ocupavam no mundo através da declaração: quando Deus fala, as coisas
acontecem. Gênesis 1 lhes ensinara o que deveríam esperar. A palavra de Deus cria:
Disse Deus ... E assim foi. Em Gênesis 1, a palavra de Deus criou o mundo, no
Salmo 110 ela estabeleceu o Messias, o Cristo.
Jesus de Nazaré nasceu nesse mundo. Pobre, sem poder, obscuro, Ele era um messias
bem improvável. Então
Deus falou:
“Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus inimigos um estrado para os teus
pés”.
Um rei veio a existir, um que traz ordem, beleza, justiça e paz. Deus voltou a falar:
Um sacerdote que coloca as pessoas em relacionamento perfeito com Deus foi formado.
Deus falou e criou o Messias rei-sacerdote, exatamente como havia falado para criar o
mundo. Nascimento, ministério, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré se
reuniram e deram forma a toda verdade e revelação que estavam dispersas e as colocou
em um evento reconhecível, orgânico e pessoal - um ato assombroso de redenção.
Um segundo grupo de metáforas mostra Deus estabelecendo seu governo apesar de toda
oposição:
Os primeiros cristãos viam o Senhor Jesus nessa imagem: o rei-sacerdote entre nós, em
nosso nível, sedento em sua humanidade, ajoelhado à beira do riacho. Depois,
renovado, com a cabeça erguida, prossegue em seu caminho, governando e salvando. O
grandioso e o simples se integram, o pessoal e o político se unem nessa imagem.6
Essa versão do Messias era totalmente destituída de atrativos para os arrogantes deste
mundo. Eles queriam alguém que usasse o poder para colocar a vida de volta nos
trilhos. Por isso, desprezaram esse. A imagem não teve melhor sorte com os piedosos
tímidos. Um Messias com
sede e ajoelhado era vulnerável e comum demais para eles. Buscavam alguém que os
tirasse das limitações e humilhações de todos os dias. Mas, para os que estavam
aprendendo a orar e se envolviam na ação de Deus a respeito da postura de Jesus, a
imagem era exata.
Deus governou e salvou, e os dois atos foram a mesma coisa. Todas as partes do
universo e da história encontraram seu lugar e fizeram sentido. Todos os anseios e
apetites do espírito chegaram ao fim. A vida externa e a interna se mostraram uma só
coisa: a vida de Deus em Jesus Cristo, Senhor e Salvador.
Reunido
Então aconteceu outra coisa - se possível, ainda mais maravilhosa. Ao mesmo tempo
em que descobriam essa reunião e centralização de todas as coisas no
Messias, descobriram também que estavam centrados, ou seja, haviam abandonado o
domínio do ego, que, perturbado e en-sandecido, pela tentativa de agradar centenas de
deuses e evitar milhares de demônios, agora estava livre dessa tarefa impossível. A
busca desesperada de encontrar respostas e adquirir conhecimento, que estabelecería
uma segurança parecida com a de um deus, havia acabado. A moralidade obsessiva que
as pessoas acreditavam que as prepararia para irem ao Céu e que só conseguia fazê-las
mais infelizes fora abandonada. Todos os sistemas gnósticos, exercícios morais e
superstições foram jogados fora: “Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus
inimigos um estrado para os teus pés” - o governo foi estabelecido. “Tu és sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque" - a redenção está completa. O
mundo também foi reunido para que fizesse sentido. O Salmo 110 colocou as
verdades multifacetadas da Palavra de Deus, que cria o Messias em forma de oração,
que mantém a vida de fé atenta e pronta a responder à grande variedade de obras que
Deus realiza em cada pessoa e no mundo todo. Sabendo isso, ninguém se surpreende de
ver que era o Salmo predileto no século I.
Amitai Etzioni, sociólogo israelita que imigrou para os Estados Unidos, estabeleceu
com paixão urgente o que ele chama de “uma agenda nada modesta” para fazer
alguma coisa quanto ao rápido declínio da civilização na América.
Minha tese é que milhões de indivíduos, pilares de uma sociedade livre e de uma
economia vigorosa, afastaram-se uns dos outros e perderam a eficácia. ... A
necessidade de reconstruir a economia, a segurança nacional e a comunidade
requer filosofia social e orientação individual muito menos centradas no ego.7
Defende que a sociedade precisa ser reconstruída do zero por lideranças que mostrem
que o egoísmo e outras psicologias em moda na última década não funcionarão para
a longa jornada.
E mesmo uma agenda nada modesta, mas não chega nem perto da que Cristo estabeleceu
para Seus seguidores, que adquiriram a fama de colocar o mundo de pernas para o ar.
Eles descobriram bem no início que só a oração era pessoal, a ponto de acabar com o
domínio do ego, e abrangente a ponto de incluir todos os aspectos do mundo decaído na
ação pessoal e política do Messias. A freqüên-cia com que oravam o Salmo 110
constitui evidência dessa descoberta. Ao contrário de nossos profetas e
moralistas seculares, eles foram muito além da análise e do ímpeto - tinham uma
estratégia plausível que colocaram em ação com fidelidade em suas orações. De lá para
cá, não se pas-
sou um dia sequer sem que cristãos (às vezes poucos, às vezes muitos) orassem o
Salmo 110 e orações semelhantes a ele. Os recrutas continuam se juntando à tropa.
Deus deixou bem claro que não se contenta em resgatar umas poucas almas da
condenação. A redenção foi concebida em uma escala que excede muito nossa
capacidade de entender - envolve novo Céu e nova Terra. As pessoas que oram se
envolvem tanto com o rei que estabelece seu governo no cosmos quanto com o
sacerdote que trata as pessoas, diante de Deus. Na oração participamos da ação
oscilante pessoal/política de Deus, do centro para a periferia.
Capítulo 4
1
Donald Baillic, God Was in Christ (Londres: Faber & Faber Ltd., 1956), pág. 43-
44.
Thomas Hardy, The Complete Poems (Nova Iorque: Macmillan, 1982), pág. 572.
Ezra Pound. Seleaed Poems (Nova Iorque: New Dircctions. 1957), pág. 82.
7
Amitai Etzioni, An Immodext Agenda (Nova Iorque: New Press,
1983).
Governo de Deus
SALMO 93
Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais poderoso do que as
ondas do mar é o Senhor nas alturas.
A soberania que cruzou os mares rumo ao Novo Mundo era nova. Instalou a era da
soberania humana absoluta - o que significa era da presunção humana absoluta.
Há um soberano agindo no universo. Sua ganância é infinita e ele procura fazer
valer seus direitos.
WENDELL BERRY 1
história, incursões na democracia, mas nada tão abrangente nem tão bem sucedido.
Moldada em uma terra que exibia todas as qualidades da terra prometida, entre pessoas
que viviam a dignidade do povo escolhido, dificilmente seria surpresa descobrir que a
democracia era vista, pura e simplesmente, como bênção de Deus. A versão da história
que me ensinaram dizia que após vários séculos sob o peso abusivo do domínio papal e
um milênio sob a ameaça do fanatismo islâmico, a democracia americana era boa
demais para ser verdade • - e era verdadeira.
O cristão, com a memória histórica tão influenciada pela noção de promessa e bênção
divinas, dificilmente deixaria de concluir que o estilo de governo de Deus é conforme o
autogoverno. Mas essa conclusão fracassa na oração, onde descobrimos uma
realidade muito diferente daquela em que crescemos. O povo não é soberano - Deus é.
Orando, não penetramos em um mundo onde nossos desejos são bem representados e
O Senhor reina
nações, a Terra e o ano que iniciava.3 Esses Salmos ponderam e oram sobre o governo
de Deus com precisão e exuberância. A oração percebe como o governo de Deus se
espalha por toda parte. Além disso, altera e acaba substituindo os feudos insignificantes
onde tentamos controlar a vida com estardalhaço ou ficamos indolentes e permitimos
que os outros a dirijam. O Salmo 93 se destaca no grupo dos sete. Majestoso em sua
simplicidade destituída de arte, imponente na brevidade despretensiosa, memorável nos
ritmos fortes, ele atrai e convence. Uma das características da poesia hebraica é a
“rima” de significados e não de sons, o emparelhamento de sentidos semelhantes
ou contrastantes em linhas sucessivas. Podemos ver isso na estrofe de abertura,
separando as linhas em quatro pares de rimas de sentidos paralelos.
O Senhor reina!
Vestiu-se de majestade;
e armou-se de poder!
e não se abalará.
Estes quatro pares de linhas constroem um “bloco sólido”. A soberania de Deus é uma
fortaleza estrutural. Isso é fato histórico e teológico. Político e espiritual. Terreno e
celestial. O povo de fé aceita essa soberania e se regozija nela. Desfruta de seus
imensos benefícios. Celebra os grandes dias santificados. Admira e se lembra
dos líderes importantes. Busca respeitar a legislação do reino e promover seus
objetivos.
A coroação dos reis no lugar de culto, com o ritual, músicas e orações, levava a
imaginação do povo a considerar Deus, e apenas Ele, soberano. Nem sempre os reis
lembravam disso, e o povo também esquecia, mas pelo menos a base correta era
estabelecida. Atos de adoração os levavam continuamente de volta à convicção comum
de que o governo de Deus estava sendo exercido na política e na comunidade social em
que viviam. Orar impedia que eles viessem a supor que ter um rei era, de alguma forma,
mais importante do que ter Deus. Esse tipo de oração continuou sem alteração na época
do autogoverno. Uma geração após outra, de judeus e cristãos fazendo esse tipo de
oração, desenvolveu um sistema tão intrincado de envolvimento na política do domínio
de Deus, que nenhum governo está livre de desafios ou subversão da comunidade de fé.
Não é possível nem desejável que os fiéis se afastem das condições políticas de sua
época e vivam apenas em alegria “sob o poder de Deus”. Esporadicamente, há
uma tentativa de formar comunidades assim. Até hoje nenhuma deu certo, quer política
quer espiritual. A realidade inevitável é que, além de vivermos sob o domínio de Deus,
estamos sob a autoridade de rei, ditador, primeiro ministro, imperador, presidente,
general, que tem uma equipe de conselheiros, tribunais, senados, exércitos e
burocracias, que tratam da lei e da ordem, realizam o censo e ministram a justiça.
Alguns dirigentes alegam ter acesso direto à mente de Deus e ser imagem exata dEle no
governo. Outros reconhecem o domínio divino de modo geral, mas acreditam
serem eles os responsáveis pelo que acontece aqui, nesta nação. Alguns são tão
ousados que negam por completo a soberania de Deus e dão a palavra final em todos os
assuntos. O mais comum é mera indiferença para com o governo de Deus: acreditamos
nEle como Salvador e consolador, mas as questões
Enquanto isso, uma convicção secreta persiste, teimosa: “O Senhor reina”. Bem aqui.
O trono dEle é a Terra, essa coisa em que pisamos todos os dias. Além do mais, o
governo dEle não tolera oposição: “não se abalará”. Segue-se que qualquer líder
terreno obcecado com o exercício do poder sem interferência - seja para manter o
ego sem contrariedades, a família na linha, a cultura intacta ou o governo sob controle -
enfrentará uma série de problemas quando as pessoas se puserem a orar. Isso é
verdade. Os séculos forneceram evidência mais do que ampla do que acontece: na
oração, discernimos e acatamos um governo melhor. Quando esse governo melhor entra
em conflito com o da nação, sociedade, família ou ego, os que oram transferem sua
lealdade. Alguns chegam até a cruz - como Jesus, literalmente, ou Paulo, de forma
metafórica.
Mas os sacrifícios são tiros pela culatra. Em lugar de destruir o governo de Deus, eles
o estabelecem. Esse povo que ora tem uma longa história de sofrer incompreensão
familiar, prisão pelo governo, demissão pelos patrões, desprezo por parte da cultura.
Contudo, parece não ligar muito, pelo menos não a ponto de abandonar sua
lealdade. Seu soberano é melhor, mais sábio e bondoso e todos estão felizes sob o
domínio dEle.
Dilúvios de desgoverno
Está lá. Silenciosa. Sólida. Mas as águas levantam a voz, o rugido. As forças de
destruição e desintegração, as energias de dor e devastação, batem, forçam e gritam.
Andamos vários dias, e até anos, sobre a Terra sem dar a menor atenção à solidez
confiável e estóica, mas as tempestades não permitem essa falta de atenção. Podemos
passar o dia inteiro sem notar que estamos secos, mas se formos atingidos pela
tempestade teremos a consciência profunda de que ficamos molhados. Sendo a secura
nosso estado natu-
ral, nós a temos como certa. Ficar molhado é uma situação desconhecida e entramos em
pânico.
E impressionante a forma tremenda das inundações. Só os peixes que nadam nas águas e
os pássaros que voam acima delas escapam ao pavor. A água devasta a terra. Arranca
árvores enormes pela raiz. Revira rochas. A terra, tão sólida, fica cheia de sulcos, tem
seu contorno alterado, sofre com a erosão.
Além de ser iniciação à violência, inundação é metáfora para anarquia. As águas têm
sua contraparte na inundação de paixão, cuja característica notória é o descontrole. O
caos é inerente à luxúria e à cobiça. A agressividade humana remonta à Antiguidade e
requer intervenção. Por mais que nos desagrade alguém nos dizer o que devemos fazer,
tememos muito mais uma sociedade na qual cada um faz o que é certo a seus próprios
olhos (Juizes 21.25), decadência que aconteceu pelo menos uma vez na história dos
hebreus e não poucas na história mundial.
Mas sempre houve a retomada do governo. Caso contrário, não haveria história
humana. Todo governo é, de uma forma ou de outra, resposta à inundação. Se
não existissem inundações, não existiría governo. Ele se deve à anarquia. Se tudo e
todos convivessem em perfeita harmonia, o governo seria tão dispensável quando o
apêndice em nosso organismo.
13), e então, as águas do Dilúvio vieram sobre a terra (7.10). Mas isso não acontecerá
mais. A violência não será mais tratada com violência: nunca mais haverá
dilúvio para destruir a terra (9.11).
Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais poderoso do que as
ondas do mar é o Senhor nas alturas. (Salmo 93.4)*
As águas levantam a voz três vezes. O poder de Deus se mostra soberano também três
vezes. Esses pares de trios ressoam pela memória bíblica. Três palavras
soberanas confrontaram e derrotaram os três testes que o diabo fez para Jesus (Mateus
4.1-11). Três afirmações de amor contrabalançaram as três negações de Pedro (João
21.15-19).
(2 Coríntios 12.8-9) se coloca diante dos três protestos de Paulo contra seu “espinho”.
Lucas narra três vezes a conversão de Paulo, indo contra as três vezes que falou
sobre as atividades terroristas dele na igreja primitiva.5
Em todos esses eventos, a soberania de Deus não foi meramente afirmada, foi sentida.
O governo dEle não é um dogma que se deduz a partir de conceitos de Sua onipotência,
é testemunho que articula a experiência de gente sofrida e ferida que prosseguiu para
viver o governo dEle como “mais poderoso”.
Esse testemunho tem implicações imensas, pois se Deus não for soberano eu vivo, de
fato, no meio do caos. O acaso e a sorte permeiam o universo. Por outro lado, se Ele
governa, há uma ordem fundamental. Nenhum acidente é mero acaso. Nenhum caos é
definitivo. Nenhum conflito é essencial. Quaisquer que sejam as vontades, poderes e
influências sobre mim e à minha volta, há algo que é primeiro e último, inicial e final: o
Senhor é mais poderoso. A vida não é uma empreitada aleatória dirigida por um grupo
que se reúne a cada quinze dias, com cada membro sujeito a pressões intensas de
interesses especiais, inclinado a ter favoritos entre os amigos e os parentes. Há projeto
e ordem no mundo. Posso planejar, ter esperança e acreditar. A confusão e o conflito
que tumultuam a história estão limitados por clareza e paz mais amplas.
Como esse governo de Deus, mais poderoso do que as ondas do mar, se toma
realidade? Como entra em nossa história? Como acontece em nossa vida? Três
linhas descrevem:
Há urgência em fazer frente à violência mundial que desafia Deus nos próprios termos
dela - acabar com ela, enfrentá-la com poder puro e simples. “Senhor, queres que
façamos cair fogo do céu para destrui-los? ” (Lucas 9.54) Mas ninguém forçará Deus
a agir contra seu caráter.
A Palavra dEle governa: os decretos dele permanecem firmes. Só eles, nada mais. A
aparentemente frágil Pala-
O que quero dizer é que durante todos aqueles anos eu observei o repouso
completo de um objeto no qual acontecia um processo oculto, durante todos
aqueles anos.5
Não longe dali, a algumas centenas de metros, o Salmo 93 havia sido orado nas
celebrações do Dia de Ano Novo na entronização do Senhor, aquele cujos
“mandamentos permanecem firmes”. Forças poderosas agiam em “todos aqueles anos”.
E continuam.
E compreensível essa palavra ocorrer com tanta frequência nos diálogos que celebram
a intimidade do amor
humano, mas é surpresa encontrá-la no Salmo 93, que comemora o governo divino no
mundo descontrolado. Esperamos encontrar imagens de encanto e beleza em músicas de
amor, mas acreditamos que o governo requer um contexto mais frio, marcado por
severidade e eficiência.
Mas Deus não abandona Seu caráter essencial quando governa. Imutável em Seu amor e
Sua profunda santidade, Ele é Ele mesmo em Seu governo. Não deixa de lado as vestes
de amor santo quando exerce Seu domínio sobre a lama da história humana. Os meios
do governo de Deus são consistentes com Seus fins: santidade, a beleza gradual,
paciente e penetrante de Seu domínio em nosso mundo secularizado, violado e
profanado.
Senhor ... perpétuo. A terceira linha afirma o domínio no tempo. “À medida que os dias
se estendem pela história” capta o tom do termo hebraico “perpétuo”, 1’orek
yamim. Não se trata de um governo eterno no Céu, alheio à história humana. É o
governo de Deus surgindo no calendário. A oração não é a espera paciente do fim da
história, quando o governo se efetivará, mas é a participação paciente no governo atual.
O domínio de Deus não está sendo preservado para começar em uma data futura, após
séculos de governos humanos fazerem o melhor (ou o pior). Deus governa hoje. Ele não
depende de reconhecimento público.
Saibam ou não, homens e mulheres vivem sob o governo de Deus. Alguns em rebeldia,
por desafio ou ignorância. Outros em obediência relutante ou dedicada. Mas ninguém
escapa. O governo divino é a premissa de nossa existência. Não existem dias em que
Ele não opera. A semana não se divide em um dia do Senhor, quando reconhecemos
Seu governo, e seis dias humanos em que in-
Claro que nada disso é óbvio. Os mandamentos do governo são inaudíveis aos ouvidos
incrédulos, sua beleza, invisível aos olhos céticos e sua atualidade não está aparente
para mentes ansiosas e corpos feridos. Mas muitas realidades grandes e importantes
não são óbvias: a estrutura atômica da matéria, por exemplo, ou as propriedades da
luz e as complexidades da linguagem. Ainda assim, mesmo quando entendemos errado,
ou não entendemos, continuamos a segurar objetos, enxergar formas e falar palavras.
De modo semelhante, nem a ignorância nem a indiferença diminuem o governo de Deus.
Dia após dia “O Senhor reina”. Levando em conta paixões rebeldes, temperamentos
maliciosos e vontades preguiçosas de milhões de pessoas, junto com boas intenções,
desorientação desamparada e aventuras fora de hora de outros milhões - para não falar
do amor disciplinado, obediência purificada e serviço sacrificial de ainda outros
milhões - nosso Soberano usa para agir tudo que é material, pessoal e político. Usa
tudo para moldar a existência. Não parece ter pressa, mas a oração discerne
que lentidão não é sinônimo de indolência nem de negligência. No final a vontade do
soberano é feita.
Agora a simetria está completa: três linhas de violência anárquica contrabalançadas por
três linhas do governo mais poderoso do Senhor, exposto em três linhas da forma como
ele é administrado.
Egotismo escondido
Assim, a oração é uma atividade subversiva. Envolve um ato mais ou menos aberto de
desafio contra qualquer alegação de perfeição do regime corrente. “Egotismo
escondido”, afirma Herbert Butterfield, “talvez seja, em todo o planeta, a maior causa
de conflitos e problemas políticos.” 8 Professor de história moderna na Universidade
de Cam-bridge, Butterfield dedicou sua carreira a pesquisar o processo histórico que
levou a civilização à situação presente. Mas, para ele, o “egotismo escondido” é a
maior influência. Se ele está com a razão, o chamado para orar, ato que revela o
egotismo e começa a tomar providências contra ele, é um remédio excelente para os
problemas políticos.
família, governo, emprego, nem mesmo o ego tirano, pode se colocar contra o poder
silencioso e a influência criadora da soberania de Deus. Todo laço natural de família e
raça, todo compromisso de vontade com pessoas e nações se subordina, por fim, ao
governo de Deus.
Capítulo 5
1
Wendell Berry, The Unsettling of America (Nova Iorque: Avon Books, 1977), pág.
55.
2
Salmos 47. 93, 95-99.
4
Esse número inclui os reis do reino unificado e os do sul e do norte depois da divisão.
115.
6
Como nome em Cantares 1.10 e como verbo cm 1.5.2.14.4.3 e 6.4.
Ajudado por Deus
SALMO 46
Por isso não temeremos, ainda cpie a terra trema e os montes afundem no coração do
mar, ainda que estrondem as suas águas turbulentas e os montes sejam sacudidos
pela sua fúria.
O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.
Há um rio cujos canais alegram a cidade de Deus, o Santo Lugar onde habita o
Altíssimo.
Deus vem em seu auxílio desde o romper da manhã. Nações se agitam, reinos se
abalam; ele ergue a voz, e a terra se derrete.
O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.
“Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus! Serei exaltado entre as nações, serei
exaltado na terra. ”
O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.
Na vida Cristã, nada, absolutamente nada, pode ser comprado em lojas de artigos
jaça você mesmo.
HARRY BLAMIRES 1
- E mais seguro andar à noite nas ruas de Baltimore do que de dia nas montanhas de
Wyoming - a natureza intocada tem vinte maneiras diferentes de matar uma pessoa.
Acordamos todos os dias para um mundo violento. Há destruição por toda parte. As
pessoas gritam e se atacam mutuamente. E arriscado sair de casa à noite. Mas também é
perigoso percorrer trilhas nas montanhas durante o dia. O mundo vai mal: os recursos
são usados em orgias de glutonaria e a beleza tem sido devastada em uma escala sem
precedentes. As pessoas sofrem torturas, maldições e desprezo em uma epidemia de
desumanização. Estatísticas são compiladas e divulgadas a cada ano. Os números são
estarrecedores: assassinatos, estupros, assaltos, roubos, abuso infantil, abuso conjugal,
terrorismo político, guerra. As crueldades que as pessoas criam para infligir às
outras superam nossa capacidade de suportar. Vendo o que as pessoas fazem umas com
as outras e com a terra, sentimos vontade de ir morar nas montanhas. Mas, logo que
chegamos lá, descobrimos outro tipo de violência: um vulcão entra em erupção e
destrói a montanha, um rio transborda e inunda a fazenda, um terremoto abre uma fenda
na terra e vira de cabeça para baixo e engole tudo que havia na superfície.
Não se pode escapar da violência nem acabar com ela usando a mesma arma. Existe
algo que podemos fazer,
O Salmo 46 é uma dessas vozes, oração no meio da violência para agir diante dos
problemas. E a correção de que precisamos desesperadamente para abandonar a prática
indevida, embora generalizada, de usar a oração como fuga. Quando o mundo distribui
pancadas e humilhações com liberalidade demais, tentamos usar a prece como
um mundo isolado de consolo onde desfrutamos da compreensão divina. Comparado à
oração bíblica, e, em particular, ao Salmo 46, isso é visto como um sintoma de doença
do espírito.
A oração saudável não resulta em afastamento, mas também não leva ao confronto. Não
é tanto uma forma de lidar com o que está errado no mundo ou em mim mesmo. E um
caminho para lidar com Deus no mundo e em mim. O mal (sob a forma de violência, no
Salmo 46) é encarado de maneira indireta: absorvido nas formas e cerimônias
de oração. Orar liberta do ataque da brutalidade por nos colocar na energia da graça.
Nesse processo, a violência se transforma.
Por todos os séculos, em todos os cantos do mundo, sempre houve gente que ora e que
continua a causar um impacto incalculável. O fato de jornalistas não divulgarem isso
não diminui a força da pacificação persistente. Essa gente leva a violência a sério, mas
a mantém sob perspectiva. Deus requer que eu dê mais atenção a Ele do que
à violência. Pensando nEle, vejo a cidade tomando forma no meio da catástrofe.
O cenário por trás do Salmo 46 é violento. Orá-lo nos coloca em contato com mais
violência que o esperado. Aparecem três conjuntos de imagens. Primeiro, violência na
natureza: a terra abre suas mandíbulas em um terremoto,2 vulcões brotam no oceano,
inundações espalham destruição (v.l a 3). O conjunto de imagens a seguir se refere à
violência política: nações iradas, reinos que se desintegram, conquistas sólidas de
governos que se desfazem como figuras de cera sob o sol quente (v.6). O terceiro grupo
trata da violência militar: guerras, arcos, lanças, carruagens - arsenal assustador usado
para ferir e matar, conquistar fracos e escravizar pobres (v.9). E fácil identificar a
ligação com fatos contemporâneos: terremotos na Turquia, fome no sul do Saara,
enchentes no Mississippi, guerras no Oriente Médio. Estamos destruindo os recursos do
planeta. Abortando os fetos. Violência externa, violência interna. Mandamos para
a cadeia os que descarregam a hostilidade nos semelhantes e internamos em hospícios
os que se voltam contra eles mesmos. Quanto aos que se voltam contra outras
nações, colocamos medalhas no peito deles.3
Quem pensa que a oração é isenta de conflitos está mal informado. Quem acredita que a
imersão nos Salmos isolará das notícias corrosivas de cada dia está enganado.
Quem acha que olhar para Deus resulta em paz jamais perturbada, e alegria contínua, a
ponto de não haver mais espaço na vida para a percepção da barbaridade, está errado.
A natureza é violenta. As pessoas também. Ler os Salmos é uma experiência chocante.
Orá-los é ato de coragem.
Esse é o refrão da prece, as duas linhas que representam sístole e diástole do ritmo
interior. As duas linhas se repetem após cada uma das três partes de
composição simétrica - depois dos versículos 3, 6 e 10.4
O nome de Deus foi escolhido aqui com grande cuidado. Senhor dos Exércitos
apresenta uma imagem: imensos batalhões de anjos, ligeiros e valentes, obede-
cendo ao comando divino. Deus de Jacó traz à lembrança uma história: o ser persistente
à margem do rio Jaboque, que lutou com Jacó até ele entrar na intimidade da bênção.
Deus poderoso, “Senhor dos Exércitos”, e pessoal, “Deus de Jacó”. Contudo, há uma
inversão surpreendente na forma como esses nomes se conectam às nossas expectativas.
Induzimos que a metáfora militar se associará à defesa, “torre segura”, e que a pessoal
virá ligada à intimidade, “conosco”. Mas os termos foram trocados deli-beradamente,
de modo que encontramos intimidade com o guerreiro e defesa no amigo da família. O
Deus poderoso (Senhor dos Exércitos) trava amizade (está conosco) e o pessoal (Deus
de Jacó) protege (torre segura).
Há mais. A afirmação tripla, de um Deus poderoso e pessoal, está ligada a uma imagem
encorajadora da ora-
Agostinho usou essa imagem da cidade de Deus para desenvolver sua exposição sobre
a presença e a ação divinas no meio da presença e ação humanas, a história dos
caminhos de Deus permeando a dos nossos. Ele escreveu The City of God (A Cidade de
Deus) no turbilhão de uma das fases mais violentas da história, quando Alarico e os
bandos de bárbaros vinham do norte e devastavam a civilização romana. Não se trata
A cidade de Deus que Agostinho descreveu não se identifica com política, legislação e
judiciário que os jornalistas narram e os eruditos estudam. Mas seria um grande erro
concluir que ela é invisível, uma realidade “espiritual” no meio da materialidade. É
visível, histórica e real.5 É verdade que muitos não a enxergam, mas não por ela
ser invisível, mas apenas por não olharem na direção correta ou não terem os olhos
treinados para ver essas ações e essa presença. O conceito de Agostinho foi
sistematicamente ignorado durante séculos, mas não foi refutado, e é improvável que
venha a ser, já que foi desenvolvido a partir da oração sempre confirmada do Salmo
46.
“Há um rio” que corre pela cidade. No mundo antigo, as cidades importantes foram
edificadas às margens de grandes rios - Nilo, Tigre, Eufrates, Tibre. Do jardim do Éden
fluíam dois rios. E um outro cruzará a Nova Jerusalém. Rios significam bebida, limpeza
e transporte. “Há um rio” significa que a habitação de Deus neste mundo não é um
cortiço, nem um campo de refugiados arrumado às pressas com caixas e barris. É um
lugar bem suprido por um rio e, portanto, agradável.
A justaposição de rio e cidade requer que entendamos a habitação de Deus entre nós de
modo abrangente - tanto a que é criada pela palavra dEle quanto a que é
construída pelas ferramentas dos pedreiros. Não fica mais fácil perceber a presença e a
ação de Deus em nosso meio se banirmos
o barulho da cidade para que apenas a criação intocada (o rio) permaneça. Nem adianta
eliminar os elementos naturais da água e do vento para que restem apenas as ruas
e estruturas planejadas de revelação (a cidade). A habitação de Deus inclui tudo:
mistério, esclarecimento, natureza, história, simples, complexo, criação e reino.
A cidade de Deus é segura, não por ser espaço bem defendido e inviolável, mas porque
é a esfera da ação divina característica, seu auxílio. Essa palavra figura no versículo 1:
auxílio sempre presente. Dahood traduz como “auxílio desde tempos antigos”,
interpretando “sempre presente” como “que sempre esteve presente” - com registro
bem antigo de sua presença. Em outras palavras, esse socorro tem história longa, com
séculos de documentação. Deus não é um remédio inventado às pressas, mas sim
auxílio verdadeiro e testado, muito bem provado. O verbo volta a ser usado no
versículo 5: Deus vem em seu auxílio desde o romper da manhã. A Nova Tradução na
Linguagem
de Hoje traz uma expressão muito mais literal e viva: “de manhã bem cedo”. Não há
necessidade de nos arrastarmos por metade do dia, ou por metade da vida, antes que
Deus apareça, esfregando os olhos e perguntando se precisamos que Ele faça alguma
coisa por nós. Ele sabe como é o mundo em que vivemos e conhece nossa
vulnerabilidade, pois ele mesmo habitou aqui (João 1:14). Ele prevê
nossas necessidades e faz planos com antecedência. Está sempre pronto a ajudar “de
manhã bem cedo”.
Recebemos auxílio, não por cuidarmos de nós mesmos, mas porque alguém cuida de
nós; não por nos colocarmos por trás de muros de indiferença, mas por arriscarmos a
vida no mundo com a ajuda de Deus; não por reduzir nossa vida às dimensões triviais
de um projeto de auto-ajuda, mas por nos aventurarmos na vastidão desconhecida e
ainda não testada da graça. A grande afirmação, o maravilhoso discernimento da vida
de fé é que o auxílio é oferecido o tempo todo.
A reclamação “orei e clamei por auxílio, mas ninguém veio me ajudar” tem como
resposta “Você recebeu auxílio. Ele estava lá, bem à mão. Você talvez
estivesse procurando alguma coisa diferente, mas Deus trouxe o tipo de socorro que
traria cura à sua vida, a faria perfeita para a eternidade. E ele não transformaria apenas
sua vida, mas também nações, sociedade e cultura”. Em lugar de perguntar por que o
socorro não chegou, aquele que ora aprende a olhar com cuidado para o que se passa
em sua vida, nesta história, nos líderes, movimentos, povos, e pergunta: “Será esse o
auxílio que Deus está mandando? Nunca pensei nisso como ajuda, mas talvez seja”. A
oração nos confere outra maneira, muito mais precisa, de ler a realidade do
Duas ordens nos afastam do mundo estreito da auto-ajuda e nos levam para o mundo
amplo do auxílio de Deus. Primeiro, “Venham! Vejam as obras do Senhor”. Dê
uma longa olhada, analise o que Ele está fazendo. Isso requer atenção, paciência,
energia e concentração. Todo mundo faz mais barulho que Deus. As manchetes, os
luminosos e os sistemas de amplificação anunciam as obras humanas, mas ninguém trata
das dEle. Apesar de ignoradas, não há como escapar delas, basta olhar. Estão por toda
parte. São mara vilhosas, mas Deus não possui agência de relações públicas, não monta
campanhas publicitárias para chamar a atenção.Simplesmente convida a olhar. Oração
é olhar as obras do Senhor.
peregrina em oração, Annie Dillard, saiu de sua casa e contou o que viu:
Vemos também que Ele dá fim às guerras até os confins da terra; quebra o arco e
despedaça a lança; destrói os escudos com fogo. Deus se envolve no
desarmamento mundial. Todos os instrumentos que homens e mulheres usam na tentativa
de impor sua vontade à força sobre o próximo e os inimigos são jogados em um monte -
como lixo. A violência não funciona. Nunca funcionou e nunca funcionará. As armas
são inúteis.
tas ocasiões, somos incapazes de evitar a violência, mas, embora inevitável, ela nâo é
certa. Deus não a pratica.10
Análise firme e continuada das obras de Deus mostra que a construção frenética e tola
de armas (pessoais ou nacionais, psicológicas ou materiais) tem sido sujeita a
desarmamento sistemático e determinado. Ação violenta é a antítese da criação.
Quando deixamos de ter vontade ou paciência para criar, tentamos expressar nossa
vontade pela coerção. Preguiçosos e imaturos respondem pela maior parte da violência
do mundo. Mas, por mais generalizada que ela seja, a pessoa que ora percebe que não é
assim que o mundo da ação de Deus funciona. Mas é necessário energia e maturidade
para ver isso e sustentar a visão.
A segunda ordem é: Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus!. Parem. Chega de
pressa, detenha-se para notar que há mais na vida do que seus pequenos
empreendimentos pessoais. No meio de barulho e pressa somos incapazes de cultivar
intimidade - relacionamentos pessoais profundos e complexos. Deus é o centro vivo da
redenção, de modo que é essencial permanecermos em contato e res-ponsivos à Sua
vontade pessoal. Ele tem um plano para este mundo e, se quisermos participar, temos
de parar o suficiente para descobrir o que é (pois certamente não fi-
10. Não nego que existam situações históricas em que temos permissão, e até
recebemos ordem, de entrar em guerra. Entendo que as guerras de Israel foram
ordenadas nesse contexto - a melhor atitude possível naquelas circunstâncias, mas
não como justificativa para toda guerra. A questão da “guerra justa” vem pondo à
prova a inteligência e a consciência dos cristãos há muitos séculos. Em minha
opinião, a questão se toma menos complexa a cada dia: uma possível guerra
nuclear logo tornará todos pacifistas (mas não passivos).
caremos sabendo pelas notícias da televisão). O Barão von Hügel tinha uma palavra
sábia em quase todos os assuntos, e sempre sustentou que “nunca se fez nada no meio
do estouro da boiada”.11
Saibam. Nos escritos bíblicos, saber muitas vezes tem conotação sexual. Adão
conheceu Eva. José não conheceu Maria. Não se trata, como muitos supõem, de
eufemismos pudicos. São metáforas ousadas. O melhor conhecimento, completo e
pessoal, não se atinge através de informações, mas de intimidade compartilhada -
conhecer e ser conhecido que se torna um ato de criação. Uma analogia ao
relacionamento sexual, onde duas pessoas se encontram vulneráveis e abertas uma à
outra, tendo como consequência a criação de uma nova vida. Unamuno, filósofo
espanhol, elabora a idéia: “‘Conhecer’ significa, na verdade, produzir, e todo
conhecimento vital, nesse sentido, pressupõe penetração, fusão da parte mais íntima do
homem que sabe com o objeto do saber”.10 11 O resultado do conhecimento é um novo
ser, diferente de cada parceiro e mais do que cada um deles. Nenhum filho é réplica
dos pais, nem mera combinação dos dois. Possui características de ambos, mas a
nova vida é imprevisível, cheia de surpresas, autônoma.
Esse conhecimento sexual, que resulta em outra vida, é a experiência comum usada para
mostrar o que acontece na oração: afastamento da comoção, fechamento da porta para o
mundo exterior e insistência na privacidade sem pressa. Não se trata de ato anti-social,
nem de deleite egoísta, nem de negligência com a responsabilidade pública. Pelo
Parem e saibam. A civilização está assolada por problemas não resolvidos e impasses
desconcertantes. As mentes mais brilhantes já foram usadas até o limite máximo. Os
observadores mais aclamados encontram-se profundamente preocupados com a
situação atual. A contribuição mais relevante que os cristãos têm a dar é o ato da
oração - encontros firmes, repetidos e sem pressa com o Deus vivo e pessoal, onde
nova vida é concebida.
Capítulo 6
1
Falta o refrão após a primeira estrofe nos manuscritos mais antigos, de modo que a
maioria das traduções o omite também. Contudo, é opinião generalizada que a
ausência se deve a um erro de cópia, de modo que fiz a inclusão. Veja Arthur
Weiser. The Psalms (Philadelphia: Westminster, 1962), págs. 368-369.
5
Charles Norris Cochrane apresenta uma exposição brilhante sobre Agostinho
nessas questões em Christianity and Classical Culíure (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1957). especialmente o capítulo 12, “Di-vine Necessity and
Human History”, págs. 456 e seguintes.
Georges Bemanos, The Diarv ofa Country Priest (Garden City, N.Y.: Image
Books/Doubleday, 1954, pág. 164.
Annie Dillard, Pilgrim ot Tinker Creek (Nova Iorque: Harper’s Magazine Press.
1974). pág. 137.
10
Baron Friedrich von Hügel, Selected Letters 1896-1924, editado por Bemard
Holland (Nova Iorque: E. P. Dutton & co., 1933), pág. 147.
11
Somente ele é a rocha que me salva; ele é a minha torre segura! Jamais serei
abalado!
Até quando todos vocês atacarão um homem que está como um muro inclinado, como
uma cerca prestes a cair?
elevada;
Somente ele é a rocha que me salva; ele é a minha torre alta! Não serei abalado!
A minha salvação e a minha honra de Deus dependem; ele è a minha rocha firme, o
meu refúgio.
Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame diante dele o coração, pois ele é
o nosso refúgio.
coração.
Uma vez Deus falou, duas vezes eu ouvi, que o poder pertence a Deus.
WILLIAM BARRETT 1
Espera silenciosa
Uma repetição marca o tema central dessa oração. A repetição tem dois focos, porque
os versículos 1-2 e 5-6 são quase, mas não totalmente, idênticos. A sentença
controladora é somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa (RA).
Somente em Deus. Ele não é um entre muitos. Oração não é forma de se proteger, nem
caminho para conferir a última novidade da auto-ajuda. Compreensivelmente, queremos
explorar todas as opções: escrever cartas, dar telefonemas, visitar clientes em
potencial, conseguir entrevistas. Não sabemos quem poderá vir a ser útil. Claro que
cultivamos o relacionamento com Deus, mas não em oração. Tentamos, mas não
funciona. A oração é exclusiva, centralizadora. Descobrimos ser impossível orar com
um olho em uma grande oportunidade e outro em Deus. A oração treina a alma para um
único foco: somente em Deus.
Minha alma espera. Há outra vontade maior, mais sábia e mais inteligente que a minha.
Por isso, espero. Isso significa que confio em alguém de quem vou receber
alguma coisa. Minha vontade, por mais importante e essencial que seja, encontra outra
mais importante e mais essencial. Enquanto espero, descubro a existência de mais
realidade fora do que dentro de mim, e me coloco em posição de reagir a ela. Começo
a orar na tentativa de manipular a vontade de Deus; termino me preparando para ser
movido por ela. Há um tipo de espera que nada tem a ver com oração. E a espera
oportunista - afastamento disciplinado e predatório que aguarda tudo ficar pronto para
eu me apoderar do máximo que puder. E a postura do gato que espreita o pássaro, ou da
pessoa que aguarda com cautela a primeira investida, a palavra de comando. Isso não é
esperar em oração. Ao orar tenho consciência da ação de Deus e sei que quando as
circunstâncias estiverem preparadas, os outros no lugar certo e meu coração pronto, Ele
me convocará para entrar em ação. Esse tipo de espera envolve recusa constante a agir
antes que Ele o faça. Esperar é nossa participação no processo que resulta na
“plenitude do tempo”.
Silenciosa. Na oração, o silêncio não é a ausência de som que ocorre quando não há
mais nada a dizer, nem a situação embaraçosa que resulta da timidez. E atitude positiva
e fértil. Envolve mais interesse no que Deus tem a dizer do que em conseguir falar com
Ele. Significa preferir
ouvir a palavra dEle a pronunciar a minha. Raramente é a primeira coisa que acontece
na oração. Sempre tenho muito peso a retirar de meu peito. Tantas palavras
parecem urgentes, mas, depois de dizê-las, me afasto para conversar com meus amigos,
resolver meus assuntos e prosseguir com minha rotina. Na oração, falar é essencial,
mas também parcial. O silêncio também é essencial, mas ninguém imagina isso quando
ouve as preces dos que se recusam a ser guiados pelas Escrituras.
História e esperança
Duas razões, que se complementam, sustentam essa ação como tema. A primeira é dele
vem a minha salvação (v.l). A segunda, dele vem a minha esperança (v.5). A primei-
Outra base para essa reputação radical do evangelho da auto-afirmação, essa recusa a
afirmar o ego em respeito a Deus, que afirma ele mesmo, é uma condição
duplamente confirmada na experiência: Somente ele é a rocha que me salva; ele é a
minha torre segura! Jamais serei abalado (v.2). Os três elementos - rocha, torre
segura e salvação -criam o triângulo da afirmação de Deus, que atende a base do ego
(rocha), sua defesa (torre segura) e sua perfeição (salvação). O triângulo estabelece
Deus como o ambiente em que o ego se afirma e recebe as condições para a liberdade:
estabilidade, integridade e vigor.
ma palavra usada no Salmo 46 como atributo da cidade de Deus - que nunca será
derrubada, nem na catástrofe do Juízo Final (veja o capítulo 5). Não parece que o
ego que nega a si mesmo é anêmico nem debilitado. Acabar com o domínio do ego na
afitfnação não é religiosidade piegas. Há aqui sensação de solidez e força. Ao
contrário disso, a auto-afirmação acaba sendo apenas um impulso e, de forma nenhuma,
resulta em afirmação. O ego procura excitação, divertimento, gratificação, mimos,
elogios, recompensa, desafio e satisfação. Muita gente se dedica a manipular e vender
esses impulsos através de sedução e persuasão. A sociedade costuma preferir a
orientação dos pu blicitários à dos apóstolos. Na verdade, auto-afirmação não passa de
eufemismo para estilo de vida dominado por impulsos e pressões. A motivação do ego
oscila entre emoções
■\
Sóbrio e sagaz
A primeira reflexão discerne a motivação básica oculta por trás do encorajamento falso
dos que nos convidam a buscar a prosperidade no mundo.
Até quando todos vocês atacarão um homem que está como um muro inclinado,
como uma cerca prestes a cair?
Todo o propósito deles é derrubá-lo de sua posição elevada; eles se deliciam com
mentiras.
Essas pessoas repetem o tempo todo que precisamos desenvolver nosso potencial,
alcançar o melhor desempenho possível e aproveitar ao máximo as oportunidades. Na
verdade, estão mentindo. Usam essa isca para nos prender em seus esquemas. O
objetivo real é nos levar a gratificar a obsessão deles pelo poder, seu desejo de
dominar. Com a boca abençoam, mas no íntimo amaldiçoam, (v.4) As palavras deles
nos fazem sentir maravilhosos - como se o mundo inteiro estivesse aberto para nós.
Mas os atos nos prendem em ansiedade desumanizadora que nos reduz a meros
fantoches movidos pelas cordas da economia. Exercem pressão incansável sobre o ego
e não se satisfazem até conseguirem nos usar: Até quando todos vocês atacarão um
homem...? (v.3).
carteira repleta de dinheiro e o cofre cheio de ações. Mas uma surpresa acontece.
Contrariando toda expectativa, o prato em que ela está sobe. Ela não tem peso: “os de
origem importante não passam de mentira”. Ou então tome o indivíduo mais
desgraçado, que sofre todo tipo de discriminação e desprezo. Por certo esse, privado
de todas as recompensas e bens terrenos e depurado pelo sofrimento, será uma pessoa
real. A exploração cruel lhe conferiu sta-tus de autenticidade. Coloque na balança. Mas
vem outra surpresa! Os homens de origem humilde não passam de um sopro. Em
qualquer situação, a auto-afirmação é inútil. Ninguém se torna importante por alardear
seus sofrimentos nem por apresentar seus troféus. A tragédia não é prova de
importância, assim como as conquistas também não são. Exaltar as vítimas é tão
inadequado quanto bajular os vencedores. Só somos autênticos quando nos entregamos
ao relacionamento de confiança com Deus definido e ordenado em Sua Palavra,
participando de Seu poder: Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame
diante dele o coração (v.8).
O silêncio que torna possível ouvir Deus também nos permite ouvir as palavras do
mundo como elas realmente são - mentiras baratas e não convincentes. As bravatas e as
promessas da auto-afirmação não passam de soberba.
Abandonando o jogo
Todo ato de oração nos tira das engrenagens da auto-afirmação e joga areia nas
maquinações de loucura nacional. Ficam preparados o espaço e o silêncio em que a
perfeição pode germinar e se desenvolver.
Talvez a humildade (nome antigo para acabar com o domínio da auto-afirmação) seja a
virtude menos pro-
curada atualmente. Na melhor das hipóteses, é vista com condescendência, até aceitável
entre devotos medrosos que não possuem aptidão para os assuntos deste mundo. Mas
durante muito tempo a humildade foi a virtude mais admirada, se não a mais praticada.
Não é possível que tantas pessoas que o mundo considerou sábias estivessem erradas.
Newman prossegue:
humildade é uma das virtudes mais difíceis dc alcançar c verificar. Reside apenas
no coração, e as provas são extremamente sutis e delicadas. Há abundância de
imitação.2
Mas até mesmo a pretensão à humildade foi abandonada. Vivemos cercados por
seminários de treinamento para afirmação e administração voltada para objetivos. So-
mos bombardeados por técnicas que prometem causar impacto na sociedade. Quase
todas acabam sendo apelos sutis ou grosseiros ao orgulho.
Talvez seja falta de sabedoria partir para o ataque aberto, mas orando o Salmo 62
atacamos o inimigo pelos flancos e adotamos uma vida leve e alegre, sem arrastar a
imensa bagagem de enganos e bravatas com que a auto-afirmação busca disfarçar sua
fraqueza. Acabar com o domínio da necessidade de afirmar a si mesmo não tem nada a
ver com a auto-anulação servil que D. H. Lawrence repudiou com tanta veemência.3 E
uma atitude cheia de energia, confiança, atenção e tranqüilidade. A questão deixa de ser
a possibilidade das coisas serem feitas e passa a ser quem as faz: eu ou Deus.
Capítulo 7
1
2
John Henry Newman, The Idea of a University (Notre Dame, Ind.: University of Notre Dame Press. 1982),
pág. 156.
3
D. H. Lawrence propôs um remédio de alfaiataria: se todos vestirem calças vermelhas, ninguém parecerá
estar sujo e não ser importante!
Compaixão de Deus
SALMO 77
Quando estou angustiado, busco o Senhor; de noite estendo as mãos sem cessar; a
minha alma está inconsolável!
Não me permites fechar os olhos; tão inquieto estou que não consigo falar.
Fico a pensar nos dias que se foram, nos anos há muito passados; de noite recordo
minhas canções.
O meu coração medita, e o meu espírito pergunta: Irá o Senhor rejeitar-nos para
sempre? Jamais tornará a mostrar-nos o seu favor ? Desapareceu para sempre o
seu amor? Acabou-se a sua promessa? Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?
Então pensei: A razão da minha dor è que a mão direita do Altíssimo não age mais.
Que deus é tão grande como o nosso Deus? Tu és o Deus que realiza
milagres; mostras o teu poder entre os povos.
Com o teu braço forte resgataste o teu povo, os descendentes de Jacó e de José.
As nuvens despejaram chuvas, ressoou nos céus o trovão; as tuas flechas reluziam em
todas as direções. No redemoinho, estrondou o teu trovão, os teus relâmpagos
iluminaram o mundo; a terra tremeu e sacudiu-se.
A tua vereda passou pelo mar, o teu caminho pelas águas poderosas, e ninguém viu
as tuas pegadas. Guiaste o teu povo como a um rebanho pela mão de Moisés e de
Arão.
S. GREGÓRIO NAZIANZENO 1
ferida ampla matéria prima para elaborar melodramas lucrativos de autopiedade. Com
o estímulo de celebridades que levam a público a pena que sentem delas mesmas e a
sanção da cultura atolada nesse sentimento, fica fácil transformar a emoção em hábito.
O grande mal social da autopiedade é que ela toma energia que, em estado saudável,
move atos de cura, liberação, esclarecimento, e a derrama no solo vazio do ego. A
compaixão necessária para a cura da sociedade termina como nada mais do que uma
mancha deprimente e desfiguradora na alma.
Quase sempre, a autocompaixão lida com fatos precisos: o carro daquele homem é
melhor que o meu; o marido daquela mulher é mais atencioso que o meu; o sistema
digestivo de fulano funciona melhor que o meu; o colega menos competente recebeu
uma promoção muito melhor que a minha. Não há como negar fatos. As
comparações hostis secretaram seu veneno. Descubro uma verdade sobre mim mesmo e
a comparo com aquilo que sei sobre os outros. Esse conhecimento pode se tomar
estímulo para crescimento ou para abençoar os semelhantes. No entanto, o mais comum
é suscitar inveja. Identifico desigualdades e injustiças. Descubro que o outro é mais
rico, mais bonito, tem situação melhor e ganha mais. Sinto que fui passado para trás.
Peguei o vírus da autopiedade e agora estou infectado com uma das doenças mais
graves do ego. Autocompaixão é infelicidade virai. Estamos no meio de uma epidemia
e precisamos encontrar a cura.
Mesmo que não seja muito usado, o antídoto é bem conhecido. E, simplesmente, a
oração, ato sensível o suficiente para estar em contato quase constante com a au-
topiedade, mas forte suficiente para não ser absorvido por ela. Muitas vezes, o impulso
inicial de orar vem da auto-compaixão. Sentimos pena de nós mesmos e, como Deus é
muito conhecido pela compaixão (“Como um pai tem compaixão de seus filhos, assim o
Senhor tem compaixão dos que o temem”), acreditamos que Ele está com pena de nós.
Mas não é assim. Na oração, a autopiedade encontra-se com energia maior e mais
saudável e se transforma.
A tirania do ego
bal”2. Lembro-me de Deus (RA), mas não penso nEle por muito tempo, pois a
conseqüência é que “suspiro”. Deus é um pretexto religioso para eu sentir pena de
mim mesmo de uma forma piedosa e por isso, presume-se, justificada. ■*- #
A autopiedade acusa. O problema absorve tanto as forças que não há tempo nem para
dormir. Essa falta de sono é imediatamente atribuída a Deus: Não mepermites fechar
os olhos (v.4). A palavra traduzida como “olhos” só figura nesse versículo da Bíblia e
talvez signifique “atalaia” ou “vigília”. Nesse caso, a metáfora é ainda mais forte: “Tu
prendes a atenção de meus olhos”3. Pastores faziam vigília durante toda a noite para
cuidar do rebanho. Nenhum deles passava a noite inteira acordado - ou, quando isso
acontecia, era porque alguém os forçava a ficar de olhos abertos. Em outras palavras,
minha insônia é culpa de Deus. Esta é uma característica recorrente na autopiedade:
outra pessoa, muitas vezes Deus, é responsável por meus problemas.
A autocompaixão se dissolve em nostalgia: Fico a pensar nos dias que se foram, nos
anos há muito passados (v.5). A grama era mais verde há cinqüenta anos. As gerações
anteriores eram mais fortes, mais nobres, mais justas. Quase todo mundo pensa que tudo
corria melhor antes -mas não há duas pessoas que concordem sobre a data específica
em que tudo era melhor. Russell Baker revela nosso blefe: “Apesar do anseio universal
pelo passado, também é verdade que 99% das pessoas que preferem o que passou nem
pensariam em voltar a menos que pudessem levar
2. Harry Stack Sullivan, The Collected Works of Harry Stack Sulli-van, 2 volumes
(Nova Iorque: W. W. Norton, 1953), 1:202.
3. Dahood, The Psalms, 2:227.
Ela é marcada por introspecção mórbida: De noite indago o meu íntimo, e o meu
espírito perscruta (v.6, RA). Existem autoconsciência e auto-estudo saudáveis. Não
há virtude em ignorar o próprio ser e desprezar a vida interior. Contudo, para ser útil e
saudável, a introspecção requer disciplina e orientação. De outra forma, como aqui,
perde-se no pântano da comiseração por si mesmo. O ego que medita sobre ele está
preso em um cômodo sem ar, sem oxigênio. Se ficar lá por muito tempo, inspirando o
gás que ele mesmo expira, acabará doente.
Deus que rejeita, está cansado, é mesquinho, esquecido e está irado. Por mais elementar
que seja o conhecimento sobre Deus conforme revelado na Bíblia e vivenciado
Exaltação da graça
Então, quando parece que não dá mais para suportar, há uma mudança. De súbito,
passamos a um mundo totalmente diferente. Esse tipo de coisa acontece na oração, sem
transição aparente. Em um momento nos debatemos no lamaçal da autocompaixão. No
instante seguinte nos encontramos firmes sobre as montanhas, tontos diante da maravilha
da redenção. Tudo gira em torno das sentenças abaixo:
tram seu lugar no contexto da ação de Deus e podem ser interpretados e avaliados com
precisão. Annie Dillard, em uma meditação expansiva incomparável sobre “as tuas
obras”, Pilgrim aí Tinker Creek (Peregrino no Riacho Tinker), mostra o resultado:
Prossigo em meu caminho como Billy Bray. Meu pé esquerdo diz ‘Glória’ e o
direito, ‘Amém’: dentro e fora do riacho Sombrio, contra e a favor da correnteza,
exultante, entorpecido pela dança, ao som das trombetas de prata que
acompanham o louvor.5
Cantando a salvação
A tua vereda passou pelo mar, o teu caminho pelas águas poderosas, e ninguém viu
as tuas pegadas.
O ritmo da oração se altera nesse ponto. Até aqui, a poesia foi escrita, na maior parte,
em estrofes de duas linhas. Agora surgem grupamentos de três, arranjo majestoso e
épico. O diapasâo entra em cena. Semitons de Gênesis 1 se entrelaçam nas imagens
para fornecer dimensão cósmica à salvação. O caos tomado pelas águas, do qual Deus
tirou a boa criação, ressoa nas sentenças que cantam a salvação. Tanto o mundo em que
vivemos (criação) quanto o que vive em nós (salvação) foram moldados por Deus.
Minha autopiedade sem forma e lacrimosa não tem como escapar desse poder.
Todos sabem que isso aconteceu. A própria existência de Israel prova e documenta o
evento. Mesmo assim, ninguém sabe exatamente o que aconteceu: ninguém viu as tuas
pegadas (v. 19). Pegadas feitas em águas profundas não deixam marcas. Vivemos as
consequências da salvação, mas o que a fez acontecer é invisível. Não há prova
tangível de que tudo aconteceu - a não ser por minha existência e pela existência de
tudo que é grande, santo e maravilhoso.
Uma única palavra, repetida no início e no fim do Salmo, mostra a semelhança aparente
e a verdadeira diferença entre a piedade que sentimos por nós mesmos e a compaixão
de Deus pelo mundo, que O leva a agir para a salvação. A palavra é mão.
do as mãos sem cessar; a minha alma está inconsolável! (v.2). O texto hebraico é
mais direto do que a tradução: Minha mão corre para a noite. A conjunção de mão e
corre é cômica, forma uma imagem de desenho animado: uma mão correndo pela noite,
procurando alguém que a ajude. Mas há outra possibilidade. No hebraico, a palavra
mão é usada em muitas metáforas, e uma delas se encaixa no contexto. Como em Jó
23.2, pode significar “ferida”. Então a imagem passaria a ser uma chaga que corre. Uma
ferida infeccionada, cheia de pus, que isola e que ninguém deseja tratar, como a do
infeliz Filoctetes da mitologia grega. Só se pode dizer que a salvação aconteceu depois
que essa ferida - a autopiedade fétida - foi tratada.
O uso final da palavra é objetivo: Guiaste o teu povo como a um rebanho pela mão de
Moisés e de Arão (v.20). Não é bem isso que se espera. Uma mão foi estendida
no primeiro versículo, e esperamos que alguém a tenha agarrado ou segurado quando
chegarmos ao último. Ou, tendo iniciado com uma ferida que corre, prevemos que no
final encontraremos a cura. Mas não é isso que acontece: a autopiedade não exerce
pressão sobre o Todo-Poderoso nem arranca concessões dEle. Em lugar disso, é uma
ocasião que Deus usa para atuar sobre a infelicidade que criamos para nós mesmos e
fazer nascer algo que dê prazer a Ele. Descobriremos, surpresos, que isso é o que traz
prazer também a nós.
As mãos de Moisés e Arão respondem à que foi estendida em autocompaixão. Elas não
protegem dos problemas, mas ensinam a viver no meio deles. Moisés e Arão não ficam
segurando as mãos do povo, unindo-se ao lamento pela perda da casa e da segurança do
Egito. Eles
os pegam pelas mãos e os conduzem para o deserto cruel. A redenção já foi alcançada
pelo “braço” do Senhor (versículo 15). Agora é necessário aprender a seguir a vida de
fé, alimentar a compaixão. Isso só acontece em meio a dor e sofrimento, lugar em que a
sabedoria se torna inacessível à autopiedade. Deus não atende nosso clamor de
compaixão por nós mesmos, Ele nos ensina a acabar com o domínio dela. Entra em
nossa vida e nos fornece profeta e sacerdote para nos conduzir pelo deserto da
provação e da tentação. Só então aprenderemos os caminhos da providência e
descobriremos os meios de graça - quarenta anos longos, difíceis, marcados pela
misericórdia e guiados pela graça que representam a jornada dos que vivem pela fé.
Nesse caminho, aprendemos moralidade pessoal e responsabilidade social. A salvação
é colocada a serviço da edificação da comunidade, da prática da adoração e da
confrontação do mal.
O lugar certo
Por mais sem saída que seja a autocompaixão, a oração não a impede. Qualquer lugar é
bom para começar a orar, mas não podemos ter medo de ir parar em um
lugar totalmente diferente daquele em que começamos. O sal-mista começou sentindo
pena dele mesmo e fazendo perguntas insolentes. Terminou entoando um velho
cântico que proclama o poder e a graça.
relâmpagos que cortam o Céu, pela redenção que Deus opera em Seu povo, levando-o
como a um rebanho. Arrancados da introspecção mórbida, enxergamos nuvens
derramando água e colunas de fogo. Deus age em prol dos que precisam. Nossa
choradeira se reúne no trovão da ação divina e se transforma em meditação sobre o
poder de Deus, que renova o espírito em participação compassiva em Seu auxílio,
quando oferecemos a Ele nosso clamor e não quando suprimimos a autopiedade ou
abafamos o choro. O desagradável Lembro-me de ti, ó Deus, e suspiro transforma-se,
no decorrer da oração, na empolgaçâo de Meditarei em todas as tuas obras e
considerarei todos os teus feitos. Teus caminhos, ó Deus, são santos. Que deus é tão
grande como o nosso Deus?.
Capítulo 8
Justificado por Deus
SALMO 14
Diz o tolo em seu coração: “Deus não existe’’. Corromperam-se e cometeram atos
detestáveis; não há ninguém que faça o hem.
0 Senhor olha dos céus para os filhos dos homens, para ver se há alguém que tenha
entendimento, alguém que busque a Deus.
Será que nenhum dos malfeitores aprende? Eles devoram o meu povo como quem
come pão, e não clamam pelo Senhor!
Vocês, malfeitores, frustram os planos dos pobres, mas o refúgio deles é o Senhor.
Ah, se de Sião viesse a salvação para Israel! Quando o Senhor restaurar o seu povo,
C. S. LEWIS 1
Há outro tipo de ateu, que busca sinceridade intelectual. Esses partem de uma idéia
sobre Deus formada por migalhas de engano, fragmentos de fantasias
reunidas aleatoriamente em filmes, programas de televisão e conversas superficiais.
Um dia, olham para a imagem e decidem que Deus não tem barba. Sem barba não há
Deus. Isso acontece frequentemente com os adolescentes. Ao passo que o intelecto
amadurece, reexaminam as idéias adquiridas na infância e concluem que são
inadequadas. “Nenhum adulto inteligente pode acreditar nisso”, dizem, com muita
razão. Tornam-se ateístas instantâneos. Precisariam perguntar, ainda: “Há alguém de
mente desenvolvida e intelecto preparado que acredita em Deus? Se existe, em que
acredita?”.
Os pastores encontram esse tipo de ateísmo com bastante freqüência. Minha resposta é
continuar investigando.
Peço: “Fale um pouco mais sobre esse Deus em que você não acredita. Como ele é?”.
Depois de ouvir a resposta, em geral concordo: “Eu também não acredito nesse
Deus. Diante do que você falou, também sou ateu”.
“Dessa forma, você tem muitos companheiros cristãos em sua falta de fé cm um ou mais
deuses. Gostaria de ouvir um pouco sobre o único Deus em que os primeiros
cristãos acreditavam?”
Esses tipos de ateísmo precisam ser tratados com apreciação e respeito. O ateu que
protesta, sensível ao sofrimento, pode ser aceito como parceiro na luta moral e
espiritual contra o diabo. A companhia dele serve como defesa contra a presunção. O
que discrimina intelectualmente pode ser recebido como aliado na rejeição cética
de toda estupidez popular mal acabada a que se dá o nome de “deus”, tão abundante em
nossos dias. Esse tipo de ateu pode ser convidado a debates que investigam o que as
melhores mentes pensaram, e pensam, sobre Deus.
Mas há uma forma de ateísmo que não se pode tratar com tanta condescendência. O
Salmo 14 a ataca com energia. O mundo a tolera, mas deveria temer - são aqueles que
dizem, no coração: “Deus não existe”. É um ateísmo silencioso e discreto que nunca
chama atenção. Essas pessoas não declaram com a boca que Deus não existe.
Pelo contrário, afirmam o mesmo que todo mundo. Recitam o Credo Apostólico e a
Oração do Pai Nosso com todos os fiéis. Elaboram argumentos impressionantes sobre a
existência de Deus, denunciam os ímpios, exigem orações em público e estabelecem
uma religião oficial.
Contudo, no coração, dizem: “Deus não existe”. Nunca declaram o ateísmo e talvez nem
tenham consciência dele, mas o vivem - com uma vingança. Quando questionados sobre
sua fé, apresentam uma das tendências religiosas do momento ou declaram qualquer
coisa que sua igreja afirme sobre Deus. Alasdair Maclntyre formulou o credo dessas
pessoas: “Não existe Deus e é uma atitude sábia orar a Ele de vez em quando”.3
Há uma alegria incontestável em afirmar “em seu coração” que Deus não existe:
libertar-me de toda dependência, dominar a realidade, descobrir que sou capaz de fazer
as pessoas atenderem meus desejos, adquirir capacidade para
3. Alasdair Maclntyre, Against the Self-Images of the Age (Notre Dame. Ind.: University of Notre Dame
Press, 1978), pág. 26.
Se, de fato, “Deus não existe”, o ego é a realidade imediata e final e estamos
condenados a viver nela. Mas o ego, como o útero (ele mesmo um tipo de existência
oceânica), é um lugar de onde temos de sair para nos tornarmos uma pessoa.
Há mais em jogo aqui do que a sobrevivência do ego. A do mundo também corre risco,
pois esses ateus de coração, simpáticos e respeitáveis, colocam em perigo a saúde e a
sanidade. São como verrugas na mente do mundo, como vermes que devoram seu corpo.
A acusação violenta do salmista é: Eles comem o meu povo como quem come pão.
Canibais! Tratam as pessoas como bens de consumo.
Uma das maiores mentiras de nossa era é afirmar que minhas crenças só interessam a
mim mesmo, que o que se passa no secreto de meu coração não é da conta de
mais ninguém. Mas aquilo em que creio interessa a todos que me cercam, exatamente
porque o que acontece em meu coração logo influenciará meu comportamento na
sociedade. Se for ateu em meu coração e me colocar como soberano no lugar de Deus,
alterando tudo em função de meus desejos, necessidades e fantasias, acabarei me
tomando um pirata na sociedade. Não me canso de procurar meios de conseguir usar
para meu próprio benefício tudo que existe, sem me preocupar em observar as
condições de vida
G. K. Chesterton disse uma vez que se possuísse imóveis para alugar, pediria, se fosse
possível, informações sobre a fé de seus inquilinos, não sobre emprego ou renda.
Segundo Chesterton, é a fé que determina o grau de honestidade, o tipo de
relacionamento e sua fidelidade no cuidado com a propriedade. Ganhar bem não isenta
ninguém de ser desonesto. Um bom emprego não garante que a pessoa irá saber gastar
seus recursos. A fé não é uma resposta rápida a uma pesquisa de opinião, é o que há de
mais profundo em nós. Molda nosso comportamento e, portanto, é o que há de mais
prático em nós.
Na Bíblia, a palavra traduzida como justo nunca se refere ao que somos em nós mesmos
- por melhores, mais bem sucedidos e informados qíTe sejamos - mas sim ao
que somos em relação a Deus. Justo é um termo que trata de relacionamento, sendo o
mais importante o que mantemos com Deus.
O ateísmo destrói relações. Rebaixa Deus e faz dEle objeto que pode ser usado,
abandonado, negado ou ignorado, segundo minhas escolhas. Ao mesmo tempo em
que isso acontece, as pessoas também são rebaixadas e transformadas em objetos que
podem ser usados, abandonados, negados ou ignorados. Quando essa atitude se
generaliza, a sociedade se despersonaliza, deixa de ser sociedade e passa a ser uma
ponta de estoque onde podemos comprar indivíduos a preço acessível.
Ao criar a Igreja, reuniu a maioria dos participantes nas fileiras dos pobres (1
Coríntios 1.26-29).
Ronald Sider, em pesquisa ampla sobre as evidências bíblicas a respeito desse assunto,
comentou sobre a atenção “estarrecedora e ilimitada” concedida aos pobres.2
Sempre que vigor e saúde marcam a Igreja, ela dedica cuidado especial aos pobres.
Juliano, o apóstata, que odiava os cristãos e se esforçou ao máximo para jogar
descrédito sobre eles, chamou-os de “galileus ímpios”, mas foi forçado a
admitir que os supostos ateus “alimentam não só os pobres deles; tratam também dos
nossos”.3
Assim resta saber por que fariseus que conhecem bem a Bíblia acabam oprimindo os
pobres. Um motivo é que a pobreza se coloca como acusação contra a imensa tolice
de ser justo aos próprios olhos. Os pobres se apresentam como humanidade reduzida ao
que é estritamente essencial, sem supérfluos, e neles reconhecemos, mesmo assim,
nossos semelhantes. Não há neles valor que possa ser medido em moeda e ainda assim
o Deus sofredor e compassivo nos confronta através dos olhos deles. O pobre é a
pessoa que não me serve de nada, mas que exige alguma coisa de mim.
Mas, como soberano de minha vida (por definição, justo aos meus próprios olhos - ou
seja, justo sem relacionamentos), nego o relacionamento. E, para conseguir fugir de
tantas evidências, frustro “os planos dos pobres”, altero evidências e distorço dados.
Desprezo os pobres dizendo que são preguiçosos, denuncio a imoralidade deles ou
sou condescendente por achar que são ignorantes. Afinal, ninguém é pobre se não for
preguiçoso, mau ou burro.
Posso escolher, em vez de frustrar os planos dos pobres, desfrutar da companhia deles.4
Lendo a Bíblia com cuidado, verificamos que os pobres não são um problema a
solucionar, mas sim pessoas a quem devemos nos unir. Charles Williams, homem que
entendia bem os caminhos do Espírito Santo na história, observou que “a Igreja nunca
existiu muito tempo em um lugar sem criar a exigência
de uma Revolução. Cristo disse: ‘os pobres vocês sempre terão consigo’, e em todo
lugar em que essa tradição chegou acabamos tendo a percepção cortante da presença
deles”.8 Essa percepção dá origem à paixão pela justiça social.
Foi nesse ponto que Jesus começou a ensinar Seus seguidores a viverem pela fé. As
palavras dEle chegaram até nós em duas versões: “Bem-aventurados os pobres de
espírito ” (‘aniyyim - Mateus 5.3) e “Bem-aventurados vocês, os pobres” (‘anawin -
Lucas 6.20). Cada uma é análoga à outra - pobreza física é para o corpo o que a
espiritual é para a alma. Começamos na vida guiada por Deus doando a si mesmo e nos
abençoando através da ausência de bens.
9. Simon Tugwell, The Beatitudes: Soundings in Christian Tradition (Springfield, 111.: Templegate
Publishers, 1980), pág. 26.
O mais alarmante é que tudo isso é muito comum. O Senhor olha dos céus para os
filhos dos homens, para ver se há alguém que tenha entendimento, alguém que busque
a Deus. E não encontra ninguém. Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não
há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer.
Paulo cita isso em seu maravilhoso argumento na carta aos Romanos, quando expõe as
tentativas humanas de viver em busca de autojustificação (3.10-12). Judeus e gregos,
religiosos e sem religião, piedosos e pagãos - todos vivemos envoltos no ego e
tentamos prosseguir sem Deus ou usá-Lo para nossos propósitos. Em qualquer caso,
estamos diante do ateísmo: redução de Deus a status de não-divindade, para que eu,
como meu próprio deus, possa ignorá-lo ou determinar que Ele me ajude do jeito que
eu quero.
Pelo menos um dos motivos disso ser tão comum é que é muito fácil. O ateísmo do
coração, oposto ao da mente, não se preocupa em negar a existência de Deus com
argumentos lógicos. Isso requer muito esforço. Ademais, não é necessário. Basta tirar-
lhe a letra maiuscula, rebaixá-Lo de Deus para deus. Concordo com a condição de
deidade, mas restrinjo sua jurisdição a questões que não ameaçam minha soberania.
ção deles mesmos. O termo mais recente para esse ateísmo secreto do coração é
narcisismo, que tipifica a estrutura de caráter da sociedade que perdeu o interesse por
Deus.10
Essas pessoas são tolas. Na Bíblia, tolo é o termo que transmite mais desprezo. Trata
de quem não sabe o que se passa no cosmos, mas não é aquele ignorante que procura
aprender, nem o que está perdido e quer se encontrar. O tolo não sabe que não sabe. Na
verdade, pensa que sabe tudo, que entendeu todas as coisas, que possui
informações confidenciais e conhece todos os segredos. Falta-lhe a base que o manterá
firme. E incapaz de elaborar planos que tenham valor. Ao final, inevitavelmente, será
destruído. Usado como verbo, o termo tolo (nabal) significa “desmoronar” e, bem
ligada a essa palavra, vem a que significa “cadáver”.11 Quando o ar quente deixa o
balão colorido, resta apenas uma bexiga flácida. %
O oposto de tolo é sábio, aquele que sabe viver. O significado básico da palavra não é
saber todas as respostas, mas desenvolver as relações (relacionamentos) corretas com
as pessoas e com Deus. O sábio entende como o mundo funciona, conhece paciência,
amor, graça, adoração, beleza e sabe ouvir. Tem consciência de que as pessoas são
criaturas maravilhosas a quem deve respeitar e com quem deve travar amizade. Isso se
aplica de modo especial àqueles que não vão lhe dar nada. Ele sabe que
10. Christopher Lasch examinou esse fenômeno sob a perspectiva sociológica. Ele
defende que a causa não é perda de interesse em Deus, mas sim no futuro e no passado,
e isso pouco a pouco reduz a comunidade apenas ao que é imediato e, por fim, leva o
indivíduo a se importar apenas com seu ego imediato. Veja The Culture ofNarcissism (Nova
Iorque: W. W. Norton, 1968), pág. 211.
11. Johannes Pedersen, Israel, Its Life and Culture, volumes 1-2 (Londres: Oxford University
Press, 1946), págs. 429, 539.
O sábio conhece a única cura possível para o tolo. É a oração tão apaixonada pela
salvação dos outros quanto pela dele mesmo: Ah, se de Sião viesse a salvação para
Israel!. Oração convicta de que só haverá bem-estar quando todos forem restaurados ao
lugar da bênção: Quando o Senhor restaurar o seu povo. E oração que vê a comunidade
como lugar de celebração e não de aquisição: Jacó exultará! Israel se regozijará!
(versículo 7).
Capítulo 9
1
Gerhard von Rad, OU Testament Theology, 2 volumes (Nova Iorque: Harper &
Row, 1962), 1:400.
A palavra traduzida como “planos dos pobres” também pode ser “companhia dos
pobres”. Conselho é, também, concilio. Ver Dahood, The Psalmx, 1:82.
Servindo a Deus
SALMO 82
Mas vocês morrerão como simples homens; cairão como qualquer outro governante
Não é certo concordar com a noção de que a vida de um homem se divide entre o
tempo que ele passa em seu trabalho e o que ele dedica ao serviço de Deus. Ele tem
que ser capaz de servir a Deus em sua profissão, que deve ser aceita e respeitada
como meio da criação divina. ... Todo fabricante e todo trabalhador são chamados
para servir a Deus em sua profissão ou negócio — não fora disso.
DOROTHY L. SAYERS 1
1. Dorothy L. Sayers, Creed or Chãos? (Nova Iorque: Harcourt, Brace & Co., 1949), pags.
56-57. "r
2. Ireneit. Against Heresies, citado por Kenneth Leech, The Social God (Londres: Sheldon Press,
1981), pág. 27.
3. Atanásio. On the Incarnation, citado por Louis Bouyer, A History of Christian Spiriiuality, volume
1 (Nova Iorque: Seabury Press, 1982 ), pág. 418.
Monoteísmo pode nos parecer termo pesado, óbvio e intelectual, mas para os primeiros
crentes era como uma iluminação rápida e penetrante: Viva em um todo integrado, sem
conflitos nem fragmentos, em um mundo desarmado e unido. Vale pensar no que teria
levado os cristãos, que celebravam e defendiam essa verdade conquistada a duras
penas, a aceitarem qualquer coisa que apresentasse o menor traço de desafio.
Inimigos improváveis
Ario era um inimigo improvável. Pastor cristão no Egito, no século IV e, segundo todas
as informações, um homem respeitável. Charles Williams o descreveu
como “persuasivo, virtuoso e simples”.4 Os ensinamentos dele pareciam plausíveis e
livres de todo mal. Pelo menos à primeira vista. Ele simplesmente afirmava que a
verdadeira vida de Deus não podia ser compartilhada nem transmitida. O raciocínio é
lógico: Deus é tão completamente santo, tão absolutamente “outro” que não há como
essa santidade ser compartilhada com a humanidade sem ser comprometida ou
maculada e Deus, é claro, jamais será comprometido ou maculado. Como consequência,
Jesus não era expressão de Deus em forma direta ou pessoal. Era uma criatura moldada
com o propósito de nos ensinar sobre Deus. O Senhor teria necessariamente que manter
distância de nós para continuar sendo Deus.
4. Charles Williams, The Descent of the Dove (Nova Iorque: Living AgeBooks, 1956), pág.
51.
rumo à bondade ou, em outras versões, um pedante destituído de humor que adestra seus
pupilos nos fundamentos da moral. O Deus ariano era como o imperador
romano: sublime, remoto - um déspota.
Atanásio, pastor jovem que vivia na mesma cidade que Ario, percebeu que os
argumentos deste, por mais elogiosos que parecessem ser para Deus, aviltavam as
pessoas. Sentiu que havia alguma ligação profunda e íntima entre o que acreditamos
sobre Deus e a forma como agimos todos os dias, notou que internalizamos o que
entendemos como ação de Deus em nosso favor e expressamos isso em comportamento
social e político.
Se eu acreditar que Deus não compartilha dEle mesmo de forma pessoal e imediata, se
pensar que Ele age sempre de maneira impessoal e remota, adotarei a mesma postura.
Em meu papel de pai, passarei a dar ordens a meus filhos como se eles fossem meus
servos em lugar de conversar com eles como pessoas. Tratarei meu cônjuge
como alguém que deve atender minhas expectativas em lugar de me lançar à difícil arte
de dar e tomar da intimidade. Como trabalhador, darei mais importância à tarefa do que
à pessoa que a realiza. Cada vez que nego ou suprimo minha capacidade de manter
relacionamentos pessoais em favor de um status ou função impessoal, perco um pouco
da imagem de Deus em minha humanidade.
Minhas opiniões sobre Deus influenciam o que penso sobre mim mesmo e, assim, as
transformações que ocorrem em mim. O arianismo considera Deus criador, mas não
salvador; instrutor mas não ajudador; comandante mas não apaixonado. O resultado é
um Técnico onipotente em lugar de um Pai eterno. O Técnico cria, possui e usa como
um oleiro fabrica, possui e usa seus vasos. Mas potes de cerâmica não têm pai. Assim,
somos órgãos e o evangelho não existe.1
Por mais improvável que pareça, essa discussão entre dois pastores em Alexandria
acabou sendo o evento político mais importante do século IV. Prosseguiu por
décadas, provocou a realização de sínodos e concílios, deu início a perseguições
sangrentas e exigiu atenção completa, em-
bora relutante, de seis imperadores. É uma comprovação histórica marcante do
aforismo de Charles Péguy: “Tudo começa no misticismo e termina na política”.3 A
intensidade pessoal e interior de dar atenção a Deus se concentra em energia que se
expande para o exterior, na comunidade, no governo e na cultura. O momento nem
sempre é evidente, mas acontece o tempo todo.
Encarnação em público
Não há, nos Salmos, outra passagem que exija tanto conhecimento teológico do tradutor.
Nenhuma tradução literal fica correta, pois é: “Deus (‘elohim) se coloca na
congregação de Deus (W); entre deuses (‘elohim) ele julga”. A dificuldade é que a
mesma palavra para Deus, ‘elohim, é usa-
da duas vezes, mas com significado diferente. Na primeira ocorrência está claro que se
refere ao Deus de Israel, Criador e Juiz do universo. Mas a segunda é mais difícil.
Usando o contexto para interpretar, vemos que se refere aos juizes humanos de Israel, a
quem foi atribuída função elevada, semelhante à de Deus.4 Esses “deuses” são acusados
de julgar injustamente e recebem a ordem de partir e agir da forma correta (versículos
2-4). A “divindade” deles é reafirmada no versículo 6, junto com a mortalidade no 7.
Assim, estamos diante não de uma definição, mas de uma visão teológica, cenário de
pessoas trabalhando em serviços que Deus lhes atribuiu. O texto O apresenta como Juiz,
mas Ele não reserva o trabalho exclusivamente para Ele mesmo. Compartilha. Isso é
surpreendente, pois requer inteligência elevada e virtude inflexível. Além disso, se
o trabalho for mal feito, os resultados adversos chegarão ao próprio Juiz e provocarão
questionamento sério sobre a capacidade de quem está no controle: todos os
fundamentos da terra estão abalados (v.5).
Todos que receberam a incumbência de julgar são vistos reunidos em uma assembléia
em tomo de Deus, o Juiz. A visão é clara e limpa - sem enfeites nem narrativas. Deus e
deuses aparecem cinco vezes (versículos 1, 6 e 8). Juiz e justiça, cinco (versículos 2,3
e 8). O tema é claro: os que receberam uma tarefa de Deus são chamados a prestar
contas.
É função dos juizes distribuir a justiça, manter o direito, resgatar, libertar. Têm
responsabilidade especial com os fracos, órfãos, aflitos, destituídos e necessitados.
Mas esses juizes não estão cumprindo sua missão. Julgam segundo seus caprichos e
preconceitos. Ajudam os ricos e são influenciados pelos perversos. O resultado da
ação de um juiz sábio, honesto e justo é aparente na vida dos que se colocam diante
dele. E também quando ele é tolo, desonesto e tendencioso, o resultado é evidente na
vida dos que ele julga.
A evidência histórica acusa os juizes. Por quanto tempo continuarão sendo injustos?
São colocados no banco dos réus: juizes julgados. Não são soberanos em seu
trabalho, participam da obra de Deus. Essa tarefa, por derivar de Deus e ser delegada
por Ele, os transforma, funcionalmente, em deuses. Mas não os torna, eles mesmos,
deuses, pois vocês morrerão como simples homens (v.7).
Esses deuses não estão trabalhando como deuses: em seu serviço, traem seu chamado,
sem dar atenção à natureza e ao propósito de sua obra. ‘Eles nada sabem, nada
entendem. Vagueiam pelas trevas. ” (v.5) Mas o que deixam de saber, de entender e de
ver? Que são deuses em seu trabalho. Acreditam que por eles mesmos são deuses e que
por isso podem fazer o que quiserem, mas isso não é verdade. Se não fizerem seu
trabalho em obediência a Deus, acabarão se tornando nada: ‘ Vocês são deuses, todos
vocês são filhos do Altíssimo. Mas vocês morrerão como simples homens; cairão
como qualquer outro governante' (versículos 6-7). Se tomarmos o título de deus e não
fizermos o trabalho correspondente, só conseguiremos enganar a nós mesmos. A morte
revelará a ilusão.
Questionamento hostil
Jesus corroborou essa interpretação do Salmo 82. No inverno que antecedeu Sua
paixão, foi questionado com hostilidade: “Até quando nos deixará em suspense? Se
é você o Cristo, diga-nos abertamente”. Jesus disse: “Eu e o Pai somos um A pena
para esse desafio ao monoteís-mo era apedrejamento, e os judeus pegaram pedras para
a execução. Jesus perguntou: “Eu lhes mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por
qual delas vocês querem me apedrejar? Eles retorquiram: “Não vamos apedrejá-
lo por nenhuma boa obra, mas pela blasfêmia, porque você é um simples homem e se
apresenta como Deus Jesus conseguiu salvar sua vida com uma citação do Salmo
82: “Não está escrito na Lei de vocês: ‘Eu disse: Vocês são deuses ’? Se ele chamou
‘deuses ’ àqueles a quem veio a palavra de Deus (e a Escritura não pode ser
anulada), que dizer a respeito daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo?
Então, por que vocês me acusam de blasfêmia porque eu disse: Sou Filho de Deus?”
(João 10.24-36).
Jesus atribuiu essa palavra a Ele mesmo, mas não com exclusividade: “Se ele chamou
‘deuses’ a quem veio a palavra de Deus...”. Essa é uma sentença interpretativa. Por
Sua Palavra, Deus transforma homens e mulheres em “deuses”. Pela ordem dEle, os
juizes eram deuses, realizando seu trabalho. Aqui, como em Gênesis. “Ele falou, e tudo
se fez. ” (Salmo 33.9) O,caos virou cosmos. Humanos se tornaramjuizes
que participanTda irmijstjação diviní da justiçaj^om isso, passaram a ser deuses. j
Vocês são deuses” ] uma atribuição cho-cantedo divihõj^ToTrãbãlliõrealizado por
humanos. Soa como blasfêmia aos nossos ouvidos, assim como foi com os
Jesus usa o texto de forma consistente com o significado do Salmo: enfatiza o trabalho,
não o ser, não o que a pessoa é, mas o que ela faz. Ao fazer essa observação, não estou
desprezando a forte ênfase sobre o ser por todo o evangelho de João, onde Jesus é
apresentado como divino (a seqüência de afirmações com “eu sou” abrange toda
essa ênfase). Mas repare que o Salmo 82 foi usado para estabelecer o trabalho como
sinal de participação no divino: "As obras que eu realizo em nome de meu Pai falam
por mim ... Eu lhes mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por qual delas vocês
querem me apedrejar? ... Se eu não realizo as obras do meu Pai, não creiam em mim
... creiam nas obras ” (João 10.25, 32, 38, grifos meus).
Embora a obra importante do julgamento humano tenha sido uma que sabemos que Jesus
excluiu com muita deliberação de sua prática {"Homem, quem me designou juiz ou
árbitro entre vocês?" Lucas 12.14), Ele se incluiu no espaço da referência do Salmo.
A missão d Ele era ensinar, curar, pregar, visitar, orar e, muito provavelmente,
no início de Sua vida, praticar carpintaria. Mas Ele entendia que os juizes do Salmo
representavam todos os obreiros. Sua auto-inclusão expande a referência para além do
trabalho dos juizes, envolve todo tipo de obra: uma atribuição para participar da obra
divina. Não há trabalho secular. Nenhum serviço é apenas nosso. Ao trabalhar, nunca
estamos “por conta própria”.
Somos semelhantes a Deus no trabalho porque toda obra tem origem nEle e é Ele quem
determina o que devemos fazer. Há dupla intenção no trabalho: continuar o
Todo trabalho foi planejado para fluir da ação de Deus. Exatamente da mesma forma,
todas as obras podem se afastar dEle. Qualquer serviço é passível de separação do
alvo original e de explorar e rebaixar pessoas, coisas, sociedades e instituições. Em
sua execução, o trabalho pode usar pessoas, materiais e idéias em benefício próprio, e
com isso a intenção da criação é subvertida e os caminhos do pecado crescem.
Nenhuma obra está livre desse risco. O serviço ao ego acontece tanto na igreja quanto
nas fábricas. A exploração tem lugar com a mesma
O que foi visto na oração começa a ser absorvido. O teste do valor do trabalho não está
no lucro que gera nem no status que confere, mas nos efeitos que causa na criação.
Temos que verificar se as pessoas empobreceram, se a terra foi aviltada e a sociedade,
defraudada, se o mundo melhorou ou piorou por causa de minhas obras. Estamos tão
acostumados a avaliar em termos de produtividade que deixamos de perceber a
importância em termos de criatividade. Faz tanto tempo que nos dedicamos à eficiência
e ao lucro que nem nos ocorre questionar a virtude. Mas Adam Smith não faz parte do
Cânon e o Salmo 82 faz. Deus nos concede trabalho não para estimular a ambição nem
para encher nossos bolsos, mas para aprofundar a criação e santificar a
sociedade. Nenhuma obra pode ser reduzida apenas ao que fazemos para ganhar a vida.
Todo trabalho implica em participação na obra divina. Deus trabalha e por isso nós
também trabalhamos, e nisso somos deuses. Direcionamos energia, moldamos matéria e
participamos de relacionamentos, cultivamos e cuidamos de terra e altar.
ção da vida interior e leva para toda a abrangência da exterior em nosso trabalho e
vocação. Gregário de Nissa, um dos primeiros pais da Igreja, insistiu com maestria em
que orar a Deus é impossível se o ato estiver confinado à mente e ao coração: não há
nada na oração que possa ser destilado da vida e mantido santo em uma garrafa. Ele
dirigiu a atenção para a participação não no que Deus é, mas no que ele faz.
O homem que compartilha com o pobre compartilhará também com Aquele que se
tornou pobre por amor a nós. ... Precisamos imitar a compaixão divina de tal forma
que tenhamos a ousadia de dizer a Deus: “Imita teu servo, Senhor, teu pobre c
necessitado servo. Eu perdoei, perdoa tu agora”.9
Tornar-se Deus, então, é agir como Ele age - em amor, pobreza e compaixão - não
apenas em algumas noites por mês e nos finais de semana, mas no trabalho diário.
“Exter-nalizar” é ato de oração tanto quanto internalizar.
O Salmo 82 foi arranjado em forma de visão. Ao orá-lo, nos vemos chamados a prestar
contas diante de Deus. Não poderiamos jamais desperdiçar a vida de forma tão
trivial, servindo a nós mesmos e, com isso, infligindo tanta crueldade e devastação aos
outros. Percebemos que somos deuses, não em auto-afirmação orgulhosa, mas em
descoberta que provoca respeito: somos responsáveis por poupar vidas,
distribuir amor, exercer compaixão e oferecer misericórdia. Nos encontramos em
posição de fazer alguma coisa pelos outros, seja explorar ou ajudar, ferir ou curar.
Somos mais do que pessoas que fazem o melhor possível, tentam ficar fora do
caminho dos importantes e empurram para o lado os pequenos. Diante
9. Grcgório dc Nissa, From Glory to Glory (Nova Iorque: Charles Scribner‘s Sons.
1961). pág. 190.
de Deus, entendemos quanto nós mesmos e o mundo empobrecem quando o trabalho
comum é visto como alheio à vida de fé. A visão recupera o esplendor original e nos
testa com relação a Ele, em ato de julgamento. Nunca mais verei o trabalho como
aquilo que sou obrigado a fazer para prosseguir como ser humano. Através da visão,
que volta na oração e é muitas vezes revista, recupero minha inclusão na
declaração incrível: “Vocês são deuses”.
De ver a dizer
Mas isso não é a visão completa. Há, bem no final, uma transição de ver para dizer.
Surge um clamor:
“Levanta-te, ó Deus...” Quando oramos, pensamos que estamos fazendo Deus participar
de nossas operações. O que acontece é o contrário. Em lugar de atribuir a Ele uma
tarefa, descobrimos que serviço Ele designou para nós, vemos que não conseguimos
realizar e que precisamos da iniciativa dEle para que o serviço volte a acontecer
em nós e nos outros. Ao pedir a Deus que realize o trabalho dEle, que entendi ser meu
também, volto a participar, embora não saiba muito bem o que fazer, mas agora não
sirvo mais a mim mesmo.
E então: “terra ... nações”. A visão deixou claro que nosso propósito não é cuidar de
nós mesmos e sim da terra e das nações. A terra é assunto de oração tanto quanto
a alma. As nações, tanto quanto o próximo. A visão nos provoca e motiva a orar com
tanta veemência pela terra e as nações quanto oramos por nossa saúde e salvação. Não
se
Buckminster Fuller declarou que o propósito das pessoas neste mundo é ir contra a
maré de entropia descrita na Segunda Lei da Termodinâmica. Os elementos físicos
se desfazem em um ritmo terrível. As pessoas, por sua vez, tentam refazer. Constroem
pontes, cidades e estradas; escrevem músicas, romances e constituições; têm idéias.
Para isso vivem neste mundo. O universo precisa de alguém ou alguma coisa que
impeça sua destruição. Fuller não incluiu a oração em sua lista de providências, de
forma que eu complemento: a oração acaba com a destruição. 10
Visões que levam à oração mostram a santidade das tarefas humanas de todos os dias.
A intercessão restaura o trabalho desordenado e o recoloca em seu devido caminho. A
invocação interfere com a queda de culturas e sistemas e faz de ora et labora o lema
que molda nossa história.
!0. Devo essa referência a Annie Dillard, Living by Fiction (Nova Iorque: Harpcr&
Row. 1982), pág. 173.
Material com direitos autorais
Capítulo 10
1
“Em cada ponto temos clareza aparente, enquanto que tudo é vazio e formal,
entusiasmo infantil para brincar com cascas e conchas e satisfação de criança na
elaboração de silogismos vazios.” Adolf Hamack, History of Dogma, 7 volumes
(Nova Iorque: Dover Publications, 1961), 4:41-42. Co-chrane, em sua análise
irrefutável da controvérsia, escreveu: “O arianismo foi descrito como uma heresia
de bom-senso, e foi sugerido que o verdadeiro problema com o heresiarca era que
‘ele era incapaz de entender uma metáfora’”. Christianity and Classical Citltare,
pág. 233.
Charles Péguy, Basic Verities (Nova Iorque: Pantheon Books, 1943), pág. 109.
Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó saiu do meio de um povo de língua
estrangeira,
Por que vocês saltaram como carneiros, ó montes? E vocês, colinas, porque saltaram
como cordeiros?
Para me criar, e criar você, Deus tem que criar meio universo. O corpo e a mente de
um homem formam um foco em que um mundo se concentra e se delineia até
certo ponto.
AUSTIN FARRF.R 1
Essa acusação contra os cristãos encontra base na citação de textos bíblicos que
aconselham a exploração da Terra. Muitos afirmam que o texto de Gênesis: Encham
e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, so-
1. Austin Farrer, Finite andInfinite (Westminster: Dacre Press. 1959), pág. 94.
bre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra (Gênesis 1:28)
foi interpretado pelos cristãos como licença para fazer o que bem entendessem com a
terra, peixes, pássaros e tudo que se move. Subjugar significa “colocado em uso para
atender meus propósitos”. Dominar significa “eu estou no controle”. Posso derrubar as
florestas sem pensar nas conseqüências, matar baleias, garças e búfalos segundo minha
vontade, poluir os rios sem parar para pensar. A Terra e seus recursos são meus e
posso usá-los como quiser. Foi Deus quem disse isso.
A acusação cresce ainda mais diante de comparações com pessoas que não têm contato
com a Bíblia. Os povos primitivos mantêm relação muito diferente com a Terra:
reverência por ela e pelas forças da natureza - clima, estações, vegetação e vida
selvagem. Há grandes mistérios, além da compreensão. Esses povos vivem em temor e
reverência diante da montanha, do rio, do trovão. Os pagãos, de forma semelhante, têm
relação diferente com o planeta: eles o celebram, bem como as energias que se movem
por ele - o jorro de vida, o êxtase da procriação e a influência do sol e das estrelas.
Pagãos e povos primitivos sabem que há algo muito maior do que eles dentro, embaixo
e sobre a Terra. Aprendem rituais e histórias que os mantêm em harmonia com ela. Mas
os que seguem a Bíblia desprezam o planeta. Ele está “abaixo”. Gostam de usá-lo,
como um senhor gosta de um servo e o usa, com pouca atenção e até mesmo
percepção de que o servo tem dignidade e um destino que ultrapassa muito a tarefa
trivial de tomar a vida conveniente para o 1
Natureza em frangalhos
Mas a responsabilidade pela profanação não pode ser atribuída à mente bíblica. E
verdade que as Escrituras, fazendo contraste com religiões primitivas e pagãs, não
consideram a natureza divina e, como conseqüência, objeto de adoração. Ela é vista
como criação: trazida à existência pela palavra de Deus e, assim, revelação de bondade
e bênção. Humanos não são servos do mundo natural (visão dos pagãos e primitivos).
Em decorrência disso, não sentem terror nem êxtase diante dele. Mas também não estão,
de forma alguma, acima dele, para poderem olhá-lo de cima, sem cuidado ou em
postura de condescendência.
Desprezo pela Terra é postura moderna e secular, não antiga nem bíblica. Mais do que
qualquer outro fator, a revolução do pensamento e da ação humanos introduzida pela
idade que se costuma chamar de íluminismo responde por essa postura. Nesse
movimento intelectual e espiritual, os seres humanos assumiram o controle de todas as
coisas, do ego e do mundo. As posturas diante do mundo se tornaram secularizadas, de
tal forma que deixou de existir um Deus de amor e justiça a quem as pessoas prestavam
contas, só a humanidade de ambição e auto-interesse para dar ordens. “Glória ao
homem nas alturas e um alto padrão de vida para todos na Terra” foi o hino-tema. A
Terra está aqui para usarmos, não para cuidarmos. O desenvolvimento tecnológico
forneceu cada vez mais instrumentos poderosos para impor a vontade humana sobre o
ambiente, ao mesmo tempo em que o entendimento espiritual, que restringe o orgulho
e cultiva a humildade, diminuiu.
menos pessoas perguntam: “Qual o plano de Deus na criação?”. Elas querem saber:
“Como posso usar a criação para atingir meus objetivos?”. Os propósitos deixaram de
ser avaliados em comparação com os de Deus. Simplesmente paríe-se da convicção de
que o que é bom para os humanos é bom para tudo.
Antioração
O que mais chama atenção no Salmo 114 são as imagens: o mar fugindo, o Jordão
retrocedendo, montanhas e colinas saltando como carneiros e cordeiros, pedras e
rochas esguichando correntes de água. Eis a oração imersa na percepção da criação,
familiarizada com a Terra, sensível à vida nos aspectos não humanos do ambiente.
Olhando outra vez, vemos que a oração não trata da natureza, e sim da história: um
evento a saída do Egito - está presente nela. Examinando mais a fundo, descobrimos
que não há, na Bíblia, Salmos para a “natureza”, ou seja, sobre ou dirigidos a ela.
Há Salmos que tratam de nossa experiência e conhecimento sobre céu, mar, animais e
aves, usados como vocabulário de oração, mas sempre se ora sobre Deus, não sobre a
natureza. Os Salmistas louvam o ato divino da criação (S1.33); expressam reverência
diante de sua incrível condescendência ao incluir os humanos em posição de
responsabilidade (S1.8); justapõem as glórias gêmeas do céu e da lei na revelação do
plano de Deus (19); ficam maravilhados pelo esquema de providência elaborado de
forma impressionante nas relações intrincadas entre luz, vendo, nuvens, oceanos, fontes,
pássaros, peixes, cegonhas, coelhos, pessoas trabalhando e pessoas louvando (S1.104).
Entretanto, os Salmos nunca eram sobre a natureza, sempre sobre Deus.
O mundo que nos cerca é magnífico. Sempre que lhe damos atenção, surgem em nós
sentimentos e pensamentos que nos arrebatam, que se parecem muito com oração. São
tão espontâneos, sem elaboração, autênticos e despretensiosos, que poucos duvidam de
algum tipo de comunhão profunda com uma realidade acima de nós, com deuses - ou
Deus. Comparadas com a experiência em cultos com hora marcada, em lugar de oração
estabelecida, essas sempre parecem mais genuínas. Isso talvez responda pela
preferência tantas vezes declarada pelo pôr-do-sol na praia em lugar de hinos do século
XVI11 cantados em uma capela.
Mas, quando nos voltamos para os ambientes naturais para recuperar esses sentimentos,
o que costuma acontecer é que prestamos mais atenção ao que sentimos do que
em Deus. Cruzamos uma linha divisória. Não estamos orando, mas sim “usando” a
natureza para produzir sentimentos religiosos. Penetramos no ritmo misterioso das
estações, nos
entregamos aos êxtases do clima, nos abrimos à influência do sol e dos planetas.
Por si só, não há nada errado nessa prática, e muito está certo. Errado é desenvolver a
manipulação e exploração sistemáticas da natureza. No curso de submeter-se às
forças naturais e absorver as energias da natureza divina, chega um ponto em que a
pessoa passa a questionar se não seria capaz de inverter a influência para que as forças
que vinha recebendo no ego sejam redirecionadas de alguma forma para influenciar a
natureza. Parece plausível e ela se lança à experiência. Acabou de cruzar outra linha
divisória. Está usando a criação para alterar a criação, virando-a contra ela mesma.
A prática é tão comum que recebeu um nome de fantasia: homeopatia, ou seja, cultivar
sentimentos/ritmos/ações de natureza divina para que a natureza divina fique sob minha
influência. A religião da natureza opera com base no princípio de que há alguma coisa
divina em montanhas, rios, na lua, no sol, nas estrelas, estações e no clima.
“Penetrando” na natureza, a pessoa entra no divino, participa da fertilidade, alia-se ao
lado vitorioso, experimenta êxtases imortais. Há na criação forças divinas que podem
ser ofendidas ou apaziguadas. Praticando os rituais adequados e com um pouco de sorte
conseguiremos manipular a natureza em benefício próprio.
aro de poções, a elaboração de diagramas (tudo na esfera da natureza) para impor sua
vontade sobre a natureza. Nos dias dos salmistas essa religião se chamava baalismo.5
Hoje essa religião surge na forma de uma ou outra tecnologia faustiana (usar a natureza
para orquestrar a concupiscência pelos sentimentos, usar a natureza para satisfazer o
desejo de poder, e assim por diante).
O relato cômico de 1 Reis 18, em que os sacerdotes de Baal se cortavam com pedras
para derramar o sangue na tentativa de influenciar o céu para que viesse a chuva, é a
história mais famosa da Bíblia sobre homeopatia. Se eles conseguissem fazer o líquido
vital fluir em quantidade suficiente de seus corpos, por certo o líquido vital também
fluiría de Baal, o deus do céu. Elias, ao contrário, não fez nada. Quem ora não age. A
ação cabe a Deus. Na oração não desenvolvemos tecnologia que coloca em movimento
engrenagens e roldanas de um milagre. Participamos da obra de Deus: “não seja como
eu quero, mas sim como Tu queres”.
Os tecnólogos são os sucessores dos magos pagãos. Os meios mudaram, mas o espírito
continua o mesmo: máquinas de metal e métodos psicológicos substituíram
poções mágicas, mas a intenção continua sendo impor minha vontade ao ambiente, a
qualquer preço. Deus não participa, ou então age só até o ponto em que pode ser usado
para acomodar o ego soberano.
Enquanto isso, o Salmo 1T4 mantém o foco na oração e não na magia. Mostra como
Deus age, tendo como
5. Um relato claro da singularidade da vida de fé de Israel em relação com o ambiente religioso encontra-
se em G. E. Wright, The Old Testament againsl Its Environment (Chicago: Alec Allenson, Inc., 1955).
A mente bíblica que ora, sabe que um lugar é mais do que geologia, mapa e análise,
mais que economia e propriedade. O lugar é visto em termos da presença e da ação de
Deus no ambiente. Essa mente não separa Deus da natureza. Rochas, rios, baleias e
elefantes são elementos
que participam da salvação. Não entende Deus através da natureza, faz exatamente o
contrário. Não declara que ela é divina, de forma que ela não leva peso maior do que é
capaz de suportar, de modo que não nos curvamos diante dela presos por superstições
apavorantes, nem ficamos enamorados dela por ilusões encantadoras. Também não
reduzimos Deus à natureza para podermos “dirigi-Lo”, convencidos de que basta
aprender a técnica certa para conseguir usá-Lo para alcançar nossos propósitos.
A diferença entre sacramento c ídolo (ou amuleto, encantamento, rito ou estatueta) é que
o primeiro é aquilo que Deus usa para dar e o segundo é o que usamos para pegar. O
elemento material está envolvido nos dois casos, mas nos dispomos diante do
sacramento e somos obstinados diante do ídolo. Assim, os sacramentos são a
matéria de todos os dias (rios, cordeiros, água, pão, vinho), porque Deus usa o que
estiver disponível para compartilhar dEle mesmo conosco. Os ídolos, por sua vez, são
matéria excepcional - metal precioso esculpido em formas impressionantes, objetos
incomuns como meteoros que suplementam nossa vontade e acrescentam força às nossas
aspirações de domínio. Entretanto, quando pensamos em Deus segundo o sacramento,
Ele usa nossa consciência para jogar uma
luz abrangente sobre o ambiente, que mostra Egito e Palestina (e também nosso país)
como lugar material em que Ele age em redenção.
O cantinho da vitória
Em certo nível, isso nada mais é do que um relato vivo do êxodo: O mar olhou e fugiu.
Na linguagem mais sóbria da prosa, essa é a história de Israel. Fugindo dos egípcios e
bloqueados pelas águas do Mar Vermelho, os israelitas atravessaram por terra seca
depois que Moisés bateu com sua vara na água e o mar se abriu. Deus “providenciou
um caminho de escape”. O Jordão retrocedeu lembra quando o grande rio impediu a
entrada do povo na Terra Prometida depois da jornada de quarenta anos pelo deserto.
Então Josué bateu na água com a vara, o rio se abriu, o povo marchou por ele e iniciou
a conquista da terra. Deus providenciou um caminho para a vitória. O livro de Êxodo
narra em prosa que os montes saltaram como carneiros, as colinas, como cordeiros, a
história da longa espera do povo ao pé do Sinai, atemorizados pelo som do vulcão e o
terremoto que sacudia a montanha enquanto Moisés recebia a Lei.
Para dizer com clareza, a ação e a presença de Deus entre nós está tão além da
compreensão que a descrição séria e a definição precisa não servem mais. Os níveis de
realidade aqui vão tão além de nós que pedem extravagância na linguagem. Contudo,
não há exagero. Qualquer linguagem é inadequada e incapaz de transmitir as idéias.
Claro que as imagens do Mar Vermelho, fugindo como um chacal, do rio Jordão
abandonando seu posto como sentinela covarde, e da transformação do Sinai em
cordeiros e carneiros que brincam não são relato jornalístico dos acontecimentos, mas
também não são invenções de uma imaginação desenfreada. Trata-se de gente que ora e
testemunha a salvação. A transposição do que todos presumiam ser limitações reais (o
Mar Vermelho e o Rio Jordão) e o jorro inesperado de energia onde não havia nada
além de um afloramento imenso e morto de granito no deserto morto (Sinai)
determinaram novo uso para palavras antigas.
Há algo mais envolvido, ainda mais significativo. Na oração, adquirimos o que
Wallace Stevens chamou de “motivo para metáfora”. Vemos muito mais do que coisas
discretas, percebemos tudo em tensão dinâmica e em relação com tudo mais. A matéria
prima do mundo não é matéria, é energia. Para expressar essa vitalidade
interconectada usamos as metáforas.
A metáfora é uma palavra que carrega significado que vai além de sua função básica.
Em lugar de confundir, esse “além” estende e esclarece a compreensão. A linguagem da
ecologia demonstra a interligação de todas as coisas (ar, água, solo, pessoas, aves e
assim por diante). Exatamente da mesma maneira a da imaginação e a metáfora
demonstram a interligação de todas as palavras. O termo histórico (êxodo), o geológico
(montes) e o animal (carneiros) se relacionam com todas as outras palavras.
Wendell Berry disse bem: “A Terra não está morta, como o conceito de propriedade,
mas sim viva e com vigor, de forma intrincada como um homem, ou uma mulher e ... há
uma interdependência delicada entre a vida dela e a nossa”.6 Assim, a afirmação
imaginativa: os montes “saltaram como carneiros” é mais do que ilustração que
apresenta a exuberância de revelação do Sinai. É o entendimento penetrante de que a
Terra reage à revelação e participa dela. Paulo usa um pensamento diferente, embora
tão marcante quanto esse: Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como
em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos (Romanos 8.22-23). Metáfora e
símile não explicam, fazem com que deixemos de ser estranhos e nos tornam íntimos,
envolvidos em toda realidade criada pela Palavra de Deus.
A linguagem sofre depreciação, quando usa a metáfora como enfeite, para encobrir
pensamentos vazios e co-
“Robert Frost lembra que 'Metáfora é tomar uma coisa por outra’. Nesse sentido,
toda linguagem é metafórica, pois insiste em ligar uma coisa a outra. Uma palavra,
qualquer uma, envia perpetuamente tentáculos de conexão por toda parte.”7
Entendemos agora que oração e poesia são parentes próximas. Toda palavra nos leva
mais para perto do lugar de onde as palavras vêm: a palavra criadora que faz montes,
carneiros, colinas, cordeiros, Israel, Judá, Jacó, Cristo, eu e você. Na poesia afirmamos
isso, na oração nos tornamos o que afirmamos à medida que nos encontramos
com Aquele que dá origem a tudo o que é dito.
Estremeça, ó terra
Aqui, terra abrange muitos elementos: Egito, Israel, Judá, mar, Jordão, montanhas,
colinas. No nivel mais profundo, não impera a divisão entre “animal, vegetal
e mineral”. Estamos juntos na presença de Deus, que não é o trovão do Sinai, nem as
ondulações do Jordão, nem as carruagens egípcias. E aquilo diante de que estamos
em reverência.
Quem não conhece Deus acredita que estremecer seja ficar apavorado na presença
dEle. Isso não é verdade. A sensação parece mais com uma diversão, uma
brincadeira de fé. “Natureza” costuma ser vista como uma vasta estrutura matemática de
causa e efeito, céu e terra governados por cetro de ferro, e qualquer um que ousar
desafiá-las será quebrado “em pedaços como um vaso de barro”. Por exemplo, a força
da gravidade é irrevogável e quebra minha perna se eu cair de uma árvore. A regra
inflexível da termodinâmica queima meu dedo quando pego uma forquilha que estava no
fogo.
A oração não desafia nem despreza essas leis, mas sabe que há mais do que elas no
ambiente. Existe também a liberdade. A diversão nasce no momento em que entendemos
isso. A oração, que entra em relacionamento com terra e céu, mar e montanha, brinca.
Ela salta e dança. Nosso universo não está preso nas leis de causa e efeito. Há, na
presença do Deus de Jacó, vida imprevisível. Existe liberdade para mudar, para nos
tornarmos melhores do que éramos ao entrar na presença de Deus, que faz da rocha
um açude, do rochedo uma fonte.
Milagres não são interrupções das leis. Se assim fosse, teriam que ser negados por
intelectuais preocupados ou defendidos por crentes ansiosos. Antes, são expressão da
liberdade desfrutada pelos filhos de um Pai sábio e generoso. Para entender esses
assuntos, nada de exegese rigorosa de textos bíblicos nem de experiências controladas
em laboratórios. Oramos sobre eles e, com isso, entremos em dimensões de liberdade
pessoal no universo. Em determinado nível (provavelmente, embora não
necessariamente, fora da compreensão acadêmica; os artigos da
Ninguém inicia a vida por sua própria conta. Também não termina. A vida, em especial
quando experimentamos pela fé a interação complexa entre criação e salvação, há mais
do que a mistura de bagagem genética e cultural. Não é um objeto feito com as tábuas e
os pregos de nossos pensamentos, sonhos, sentimentos e fantasias. Ninguém é auto-
suficiente. Ao nascer, penetramos em um mundo criado por Deus, já tomado por uma
história rica, repleta de participantes dedicados - mundo de animais,
montanhas, política e religião, onde as pessoas constroem casas, criam filhos, onde
vulcões cospem lava e rios correm para o mar; mundo onde, por mais cuidado que
tenhamos ao observar, analisar e estudar, fatos surpreendentes sempre acontecem
(como rochas se transformando em açudes). Sempre ficamos surpresos porque estamos
lidando com elementos além de nossas forças, que está acima de nossas cabeças.
meros cenários para fornecer um pouco de beleza à periferia do ego idolatrado. Eles
são a imensa beleza em que encontramos nosso verdadeiro lar, espaço em que
vivemos a cruz e Cristo, de forma abrangente, de coração aberto em louvor.
Material com direitos autorais
Capítulo 11
1
Ian L. McHarg, De.sign with Nature (Gardcn City, N.Y.: The Natural History
Press, 1969).
Amar a Deus
SALMO 45
Es dos homens o mais notável; derramou-se graça em teus lábios, visto que Deus te
abençoou para sempre.
Tuas flechas afiadas atingem o coração dos inimigos do rei; debaixo dos teus pés
caem nações.
O teu trono, ó Deus, subsiste para todo o sempre; cetro de justiça é o cetro do teu
reino.
Amas a justiça e odeias a iniqii idade; por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te dentre
os teus companheiros ungindo-te com óleo de
alegria.
Todas as tuas vestes exalam aroma de mirra, aloés e cássia; nos palácios adornados
de marfim ressoam os instrumen-
Filhas de reis estão entre as mulheres da tua corte; à tua direita está a noiva real
enfeitada de ouro puro de
Ofir.
Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos: Esqueça o seu povo e a casa
paterna.
O rei foi cativado pela sua beleza; honre-o, pois ele é o seu senhor.
A cidade de Tiro trará seus presentes; seus moradores mais ricos buscarão o seu
favor.
presença.
Os teus filhos ocuparão o trono dos teus pais; por toda a terra os farás
príncipes. Perpetuarei a tua lembrança por todas as gerações; por isso as nações te
louvarão para todo o sempre.
ANTHONY BLOOM 1
I. Anthony Bloom, Begiming to Pray (Nova Iorque: Paulist Press, 1970), pág. XIV.
A situação em que isso fica mais aparente é o ato do amor. Estar apaixonado é a melhor
forma de viver como indivíduo e como cidadão. O amor leva o ego aos picos mais
elevados, e a sociedade à sua expressão mais madura. Amor é o ato em que público e
pessoal se unem de forma mais dramática, onde relacionamentos não vistos e bem além
de cálculos florescem e ficam à vista de maneira aconchegante e atraente. Nesse ato
interesses nacionais e individuais são buscados ao mesmo tempo.
Mas o amor é também o ato em que se manifesta o que temos de pior. Nesse campo
acontecem nossas conquistas mais extraordinárias, mas ele também é o palco das
quedas mais vergonhosas. O amor é o ato mais sublime de que os humanos são capazes,
mas também é a fonte das maiores desgraças. O êxtase surge do amor, mas a mesma
dinâmica muitas vezes se deteriora em violência. O lugar em que acontecem mais
assassinatos são os quartos dos casais.
E mesmo assim relutamos em acreditar que o amor seja um ato apropriado à política.
“Um casal que desfruta de um bom casamento”, escreveu Wendell Berry, “e cria filhos
saudáveis e moralmente competentes, prestam ao futuro do mundo serviço mais direto e
certo do que qualquer líder político, embora jamais pronunciem uma palavra pública
sequer.” 1 A cerimônia de casamento, estabelecida no limite entre pessoal e público,
continua a fornecer oportunidades para novos começos em amor que envolvem
indivíduos e sociedade. A relutância a explorar essas dimensões é fuga. Estamos
enrolados em amor a nós mesmos. Nos arriscamos em momentos rápidos de paixões
românticas em que tentamos incluir o outro, mas relutamos em ir além do cônjuge, do
filho ou do amigo. Vizinhos, chefes, grupos, causas, burocracia, nações, povos, raças -
todos são colocados sob outros rótulos como precedente, alfândega, protocolo,
interesse nacional, viabilidade econômica.
Do sagrado ao secular
O caráter público desse casamento é acentuado pela designação dos noivos como “rei”
e “noiva real” (versículos 1 e 9). Um casamento de Estado! Esse cântico
festivo celebra a união de um rei hebreu com uma rainha vinda de Tiro. As bodas reais
são eventos políticos, mas não deixam, por isso, de ser uniões românticas. Em nossa
sociedade democrática, onde os únicos casamentos reais que vemos são os transmitidos
da Grã-Bretanha, que ainda conserva traços de monarquia, o aspecto romântico das
uniões é o único aspecto a que damos atenção. Mas, na verdade, todo casamento
envolve o Estado, é autorizado e regulamentado pela legislação.
O amor, em sua forma madura, é tanto pessoal quanto público e a cerimônia demonstra
isso. Mas poucas vezes vemos o amor desenvolver em totalidade inclusiva. Após o
casamento, o afastamento do amor é mais comum do que as aventuras. A imaturidade
fica mais em evidência do que a perfeição, mas o amor que se afasta do público
e mergulha na privacidade é irresponsável para com a nação. Cultiva o prazer
individual e abandona a responsabilidade comunitária.
Contudo, esse retraimento pode seguir em outra direção: amor que se afasta do pessoal
e vai para o público é irresponsável para com a família e os amigos. Leon
Tolstoi prendeu a atenção mundial durante alguns anos, proclamando o princípio do
amor como política pública, a forma de levar as nações a viverem em paz e união. No
entanto, os filhos dele reclamavam: “Papai ama o mundo, mas chuta os filhos como se
fossem cães”.2
De todos os aspectos em que o ego pode dominar uma pessoa, o amor a si mesmo é o
mais destrutivo. Amor é nosso modo básico de nos relacionarmos, exatamente como
acontece com Deus, à imagem de quem fomos criados. Se o usarmos fora de
relacionamentos, ou seja, egoisticamente, toraa-se uma abominação que corrompe a
sociedade e arruina o ego.3 Entretanto, a capacidade
para destruir passa longos períodos sem ser identificada porque aparece sob o título
envolvente de “amor”. Lutero dizia que o pecado era a pessoa incurvatus in se, ou
seja, curvada em si mesma. Quando o pecado leva o amor a se curvar em si mesmo ele
produz sua obra mais grotesca. A área em que isso fica mais evidente é no
casamento. O Salmo, ao colocar o casamento romântico em cenário político, fornece
um palco mais amplo para direcionar o desenvolvimento maduro do amor e protegê-lo
do aviltamento.
Nenhuma declaração de amor, por mais pública e apaixonada, garante que não haverá
decadência para levar o amor ao ego. Esse poema transformado em oração, o Salmo
45, toma dois elementos básicos do amor e os direciona para proteger contra as
distorções do amor a si mesmo e os desenvolve em belezas do amor maduro.
O primeiro elemento, direcionado ao rei-noivo, é adoração. O segundo, dirigido à
rainha-noiva, é afastamento. Adoração e afastamento em oração constituem a melhor
cura para o amor a si mesmo. Além disso, são de grande importância na vida política.
O amor é cego?
És dos homens o mais notável; derramou-se graça em teus lábios, visto que Deus te
abençoou para sempre.
alegria.
Filhas de reis estão entre as mulheres da tua corte; à tua direita está a noiva real
enfeitada de ouro puro de Ofir.
Se eu, profundamente apaixonado por alguém, começar a descrever com paixão aquilo
que ninguém percebeu ou o que todos ignoraram durante muitos anos, alguns à minha
volta por certo irão comentar: “o amor é cego”. Isso quer dizer que o amor diminui a
capacidade de enxergar a realidade para que a fantasia, feita sob medida para se
encaixar em meus desejos, pode ser projetada sobre o outro e assim torná-lo mais
aceitável. A conseqüên-cia cínica é que se isso não acontecer, se eu o vir como
ele é de verdade, eu jamais me envolverei com ele, porque todo mundo é, de fato, bem
indigno de amor, seja isso visível ou não, e, em alguns casos particularmente
infelizes, as duas coisas. O amor não enxerga a verdade, ele cria ilusões que nos
incapacitam para lidar com as realidades duras da vida.
Mas o ditado popular, como acontece tantas vezes, está errado. Cego é o ódio. E
também o hábito, a condescendência e o cinismo. O amor abre os olhos, capacita-os a
verem o que sempre existiu mas foi omitido por pressa ou indiferença. O amor corrige
o astigma-tismo e o que havia sido distorcido em egoísmo agora é percebido com
precisão e apreciação. Também cura a miopia para que o borrão do outro distante
agora entre em foco preciso. Sara a hipermetropia para que oportunidades de
intimidade deixem de ser ameaças nebulosas e passem a ser convites abençoados. O
amor olha para aquele que “não tinha qualquer beleza ou majestade que nos atraísse,
nada havia em sua aparência para que o desejássemos” e enxerga aquele que é “dos
homens o mais notável” o que foi ungido entre seus companheiros com óleo de alegria.
Se víssemos o outro como ele, ou ela, realmente é, ninguém seria “o mais notável”,
exalando “aroma de mirra, aloés e cássia”. O amor penetra nas barreiras
construídas para defender contra rejeição, desprezo e depreciação, e vê a vida criada
por Deus para o amor. Quando nossos olhos estão doentes por causa do amor a nós
mesmos, não enxergamos beleza nem virtude. Tropeçamos em um mundo nebuloso, sem
foco e deformado e reclamamos que ele é feio, ameaçador ou entediante.
A oração, nada menos, é pessoal e poderosa suficiente para enfrentar esses estímulos
onipresentes que incitam à inveja, para redirecionar para a adoração e outros a
imensa energia do amor que se curva no ego. Seguindo a orientação de Hebreus 1.9, os
cristãos usam o Salmo 45 para desenvolver a adoração de Cristo, em quem
encontramos o humano e o divino ao mesmo tempo. Em tal oração recuperamos a
capacidade do “assombro radical” que Abraham Heschel defendeu ser essencial para
personalidade e sociedade sadias.5
Nada nem ninguém jamais recebeu a admiração merecida. Adoração é o ato em que nos
colocamos de livre
5. Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man (Nova Iorque: Farrar. Straus and Girou.x. 1955). pág.
46.
vontade em homenagem àquilo que é mais e melhor do que nós - que responde pela
maior parte do que existe. O mundo em que vivemos é fecundo em beleza e generoso
em bondade. Vivemos qptre gente que é “dos homens o mais notável” e “exalam aroma
de mirra, aloés e cássia”. Mas não nos damos conta disso, porque estamos
tão preocupados com a vaidade do amor a nós mesmos, espalhando cosméticos em
nosso rosto oprimido e emaciado, que não damos atenção à majestade e virilidade nas
pessoas, nas criaturas e em Deus. Fomos criados para adorar. Quando os instintos agem
espontaneamente, adoramos com fervor: “com o coração vibrando de boas palavras”.
O rei foi cativado pela sua beleza; honre-o, pois ele é o seu senhor.
Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos: Esqueça o seu povo e a casa
paterna. A princesa de Tiro,
trazida à presença do rei hebreu para se casar com ele, já sente saudade de casa. Está
em país estranho, não conhece o território, as pessoas falam com ela com sotaque
diferente, ela sente falta da segurança agradável de seus amigos e sua família. Está
tomada de desejo pelo que deixou para trás. Enquanto permanecer ligada à infância, à
família e aos costumes (ou seja, aquilo que lhe deu certeza da aceitação e de sua
importância), ela será incapaz de uma nova aventura em amor.
Se a primeira regra do amor é o reconhecimento maravilhado {Esta, sim, é osso dos
meus ossos e carne da minha carne! - Gênesis 2.23), a segunda é o homem deixará
pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne (2.24). Se não
“deixar”, não poderá se apegar.
O amor nos leva a território novo. Para explorá-lo, será necessário abandonar o velho.
Isso implica em abandonar níveis de conquistas e relacionamentos anteriores e cultivar
novos. Todo ato de amor acarreta risco para o ego. Não há garantias. Muita coisa pode
dar errado: podemos nos magoar, há possibilidade de rejeição e engano. Mas, sem
correr esses riscos, só haverá repetição de padrões antigos, a rotina do conforto
conhecido.
A pessoa não será ela mesma se não crescer e, para a criatura feita à imagem de Deus,
isso significa amar. Nenhum ser vivo pode permanecer estático. Não há como preservar
a pessoa em resina. Todo novo ato de amor requer afastamento do que já foi superado,
e que agora serve apenas para infantilizar o indivíduo. Karlfried Durckheim insistia:
“Você nunca mata o ego, apenas descobre que ele vive em uma casa maior do que você
imaginava”. Para amadurecer, o ego tem que encontrar uma casa maior onde
possa morar do que aquela onde todos o mimam e atendem seus menores caprichos. A
passagem entre a casa paterna e o casamento é o arquétipo da transição do ego
confortável, que recebe cuidados, para o ego vigoroso, que cuida dos outros.
ixou de ser bom para nós: “esqueça o seu povo e a casa paterna”. A casa de seu pai era
muito boa na sua infância. Não há nada errado com ela hoje, mas ela não comporta mais
você, se é que você quer aproveitar ao máximo sua vida. Hoje você é a noiva: “o rei
foi cativado pela sua beleza”. Antes seus amigos e seus pais a consideravam bela,
agora você será bonita em outra dimensão, para seu marido, seu rei.
Muitos não conseguem entrar no êxtase do presente eterno por causa de ligação
preguiçosa e sentimental com “Tiro”. Emily Dickinson falou da “Renúncia - a
virtude cortante!”.4 A separação dolorosa do passado bom nos liberta para o presente
melhor. A negação ascética que é parte tão importante da vida de fé de maneira
nenhuma nega o prazer. Ela nos prepara para ele. O casamento é o paradigma da vida
comum para esse abandono de tesouros imaturos, pré-requisito para se experimentar as
delícias da
intimidade madura.
**
Abrir e crescer
As linhas finais são uma promessa que se cumpre quando a adoração (versículo 1 a 9) e
o afastamento (1015) se integram.
Há uma alteração sutil nesses versículos, que passa sem identificação em nossas
traduções, a mudança do discurso da noiva para o noivo (o hebraico faz distinção entre
os pronomes “teus” e “tua” quando quem possui é do sexo feminino ou masculino”). O
destinatário agora é o noivo-rei. Ele, assim como a noiva, precisa se afastar quando
compartilha os resultados. Nada no amor é unilateral. Tanto na adoração quanto no
afastamento há necessidade de um parceiro. Não é possível separar as ações e designá-
las como masculinas ou femininas. Sempre que isso acontece, a diferença leva à
exploração e à subserviência. Essa é
uma das armadilhas mais antigas do amor a si mesmo, e é inaceitável. Acabar com o
domínio do ego no amor envolve a dignidade da mutualidade e pratica a união em
oração.
A oração cria o espaço que permite nos afastarmos do que considerávamos necessário
mas que, de fato, é apenas restritivo. Então estaremos livres para receber amor, já que
este só pode ser vivido como ato livre. A oração cria esse afastamento da necessidade
e abertura à liberdade. Na análise de Henri Nouwen,
A sabedoria deste mundo considera o amor maravilhoso para o quarto, mas inadequado
para o governo. Aceita juras de amor na praia, à luz da lua, mas as considera
embaraçosas na mesa de reuniões da sala do conselho de uma empresa. O problema é
que nada na Bíblia corrobora essa contenção. Deus não apenas ama cada pessoa para
a salvar, Ele também vai estabelecendo Seu reino. Além do mais, as Escrituras falam
que o mesmo Deus que governa o mundo salva a alma.
Ninguém tem dificuldade para acreditar que a característica principal de Deus é amor,
já que “Deus é amor” (1 João 4.16). Os textos deixam claro que Ele age em amor
aos indivíduos e ao público. “Sei que me quer bem, a Bíblia assim o diz”, não é citação
bíblica, mas é um resumo preciso
7. Henri Nouwen. Reaching Out (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1975), pág. 30.
do conteúdo, exatamente como Deus tanto amou o mundo (João 3.16). O mundo e o ego
são o foco duplo do amor de Deus. Ele não adota uma forma de agir com o mundo
e outra com os indivíduos. Não dedica à alma amor pessoal e às nações postura
impessoal. Não nutre amor redentor pelas pessoas para depois agir como policial na
história. Em todo tempo o que O move é o amor.
Espontaneidade no amor
Para impedir a troca, o povo de fé ora. Oração é a forma em que o amor pode ser
praticado na sociedade e no ego. Aqui também ela envolve adoração e afastamento. O
amor maduro se desenvolve no louvor generoso ao que existe e na recusa determinada a
se apossar das coisas. Nisso, outros recebem afirmação e são libertos. A
sociedade recebe espaço para desenvolver em amor, sem ser desmoralizada nem ter
seu crescimento obstruído pela cobiça. A oração desses egos louvados e libertos
infiltra a sociedade de formas que a libertam para a espontaneidade em amor, tanto nos
aspectos pessoais quanto nos públicos.
vida de amor. Esse ambiente requer a integração das áreas pessoal e pública. Todo
casamento une duas famílias não relacionadas em contato histórico de compromisso.
Toda sociedade possui tabus contra incesto e leis contra casamento dentro da família.
Existem razões genéticas para isso, mas também políticas. O crescimento para
dentro acarreta problemas biológicos e também sociais. Precisamos ser obrigados a
sair de nós mesmos para ter contato com outros e demonstrar com nossa vida que ele é
aliado e não inimigo. Através da prática da adoração e do afastamento, os estranhos se
tomam apaixonados. A rivalidade natural que se desenvolve entre pessoas diferentes é
revertida no ato do casamento, quando surgem alianças.
Isso era óbvio em nível internacional nos casamentos na Antigüidade e na Idade Média,
que eram combinados entre casas reais, como no Salmo 45. Apesar disso, continua
verdade em nosso bairro. Cada matrimônio cruza outro limite de genealogia. Histórias
diversas se unem de forma que o outro é apresentado para apreciação e louvor, não
para desprezo e rejeição. Todo casamento prova que o outro indivíduo não é inimigo,
rival, ameaça e sim amigo, aliado e, na melhor das opções, objeto de amor.
Arquétipo da liberdade
Todo casal parte para o matrimônio com essa expectativa, mas nem sempre isso
acontece. Separações acontecem, parceiros se tomam rivais, se enchem de ciúme,
sentem-se ameaçados, rejeitam e sofrem rejeição. As traições acontecem. Ainda assim,
o ato de amor recorrente mais significativo que acontece na sociedade é o
casamento. Ezra Pound era defensor radical: “Uma família bondosa é
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lança o fundamento para mudanças. Realiza um estudo bíblico profundo sobre a sexualidade humana e analisa o que
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Este livro foi impresso em Julho de 2005, pela Imprensa da Fé para Editora Textus.
‘‘Escrevi para cristãos", afirma Eugene Peterson, “que desejam agir para
muaar o que está errado na sociedade e querem ir direto ao centro do problema, e
não apenas fazer pequenos acertos em áreas de importância secundária. Escolhi 11
salmos que deram forma à política de Israel e podem, atualmente, moldar a nossa,
e os analisei com seriedade. São orações que moldam a vida nacional. Escrevi para
incentivar os cristãos a orarem esses salmos como filhos de Deus que têm a vida
eterna, e como cidadãos com responsabilidades diárias no cuidado de sua nação. ”
Eugene Peterson
2
Henri Troyat, Tolstoy (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1967), pág.
439.
3
(4) Lasch, The Culture of Narcissism, págs. 72-73.
4
Emily Dickinson, The Complete Poems (Boston: Little, Brown & Co., 1960).
5
Citado por Berry, A Continuous Harmony, pág. 41.