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Wltere Your Treasure fs

Copyright © 1993 by Eugene H. Peterson. (c/ o Alivc Comunications, Inc.,

7680 Gaddard Street, Suite 200, Colorado Springs, CO 80920, USA)

Publishcd in association with thc litcrary agencies William Ncill-Hall Ltd, of Cornwall, F.ngland, and Alivc*
Communications lnc., Colorado Springs, CO, USA

© 2005 Editora Textus

Supervisão Editorial Alzcli Simas

Tradução

Cláudia Ziller Faria

Revisão

Paulo Pancote

Di agram ação Pedro Simas

Capa

Oliverartelucas

Primeira edição cm português - Julho de 2005

Publicado no Brasil com a devida autorização c com todos os direitos reservados na língua portuguesa por Editora
Textus

Caixa Postal 107.006- Niterói - RJ - 24360-970 textus^editoratextus.com.hr - www.cdiioratextus.com.br

As citações bíblicas desta obra são da Bíblia Sagrada - Nova Versão Internacional © 1993. 2000 dc International Bible
Socicty

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida sem o consentimento prévio, por escrito, dos editores, exceto breves
citações em livros c resenhas.

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

P578o

Peterson, Eugene H., 1932-

Ondc o seu tesouro está / Eugene H. Peterson ; tradução Claudia Ziller Faria. -Niterói, RJ : Textus, 2005

Tradução de: Where your treasure is Inclui bibliografia ISBN 85-


l. Bíblia. A. T. Salmos - Uso devocional. 2. Cristianismo e política. 3- Estados Unidos - História - Aspectos religiosos -
Cristianismo. I. Título,

05-2032. CDD 242.5

CDU 243

24.06.05 29.06.05 010709

Sumário
Apresentação à edição brasileira
Prefácio
Acabando com o domínio do ego
Feito por Deus
Centralizado em Deus
Governo de Deus
Ajudado por Deus
Afirmado Por Deus
Compaixão de Deus
Justificado por Deus
Servindo a Deus
Suficiência de Deus
Amar a Deus
Sumário
Apresentação à edição brasileira

Fiquei muito lisonjeado com o convite para escrever


a apresentação da edição brasileira de Onde o seu tesouro está.
Que privilégio!

Meu primeiro contato com a obra de Eugene H. Peterson se deu através do livro Um
pastor segundo o coração de Deus, presente que ganhei de um querido amigo, num
domingo, após um culto em nossa igreja. Hoje minha estante está entesourada com
vários livros de Peterson: não parei mais de lê-lo.

Nos últimos anos, tenho lido bastante sobre oração, assunto pelo qual nutro profundo
interesse. Onde o seu tesouro está é um presente para a alma e um prêmio para todos
os que têm buscado sabedoria através das Escrituras e vitória pelos caminhos da
oração.

São onze salmos escolhidos, onze lições para viver, um curso especial na escola de
oração. Onze mergulhos nas águas profundas e encantadoras do oceano do amor de
Deus.

Seja muito abençoado.

Josué Rodrigues Pastor da Igreja Presbiteriana Betânia em Niterói


Prefácio

Este livro visa transformar por completo a vida nos


Estados Unidos. A mudança já começou. Muitos já se
envolveram e espero ver muitos outros se alistarem.
A ação fundamental é a oração.
Escrevi para cristãos que desejam agir para mudar o que está errado na sociedade e
querem ir direto ao centro do problema, não apenas fazer pequenos acertos em áreas de
importância secundária. Escolhi onze salmos que deram forma à política de Israel e
podem moldar a nossa hoje, e os analisei com seriedade, como foi planejado que
fossem considerados - orações que moldam a vida nacional. Escrevi para incentivar os
cristãos a orarem esses salmos tanto como filhos de Deus que têm destino eterno
quanto como cidadãos com responsabilidades diárias no cuidado de sua nação.

Contudo, escrever sobre oração não é orar, assim como ler sobre ela também não é.
Orar é, bem - orar. Gostaria que fosse mais fácil. E também que houvesse uma fórmula
para atrair mais espectadores e levá-los a entrarem em ação. Embora não exista, sugiro
algumas providências:

1. Reúna um grupo de amigos que se comprometa a encontrar-se onze vezes para


“acabar com o domínio do ego”.

2. As reuniões devem durar uma hora e meia. Comece orando o salmo em uníssono.
Passe os trinta ou quarenta minutos seguintes lendo e debatendo meu texto sobre o
salmo-oraçào. Em seguida, volte a orar em uníssono. Depois, fique em silêncio durante
quinze minutos, para que o salmo se aloje em seu íntimo. Nessa hora, o grupo será uma
companhia de crentes obedientes diante do Senhor. Encerre o silêncio orando o salmo
pela terceira vez.

3. Observe como Deus o leva a atos de obediência nos aspectos mais públicos de sua
vida. Não se apresse. Não pense que agirá apenas com seus parceiros de oração ou
com cristãos. Não suponha que precisa apresentar projetos. Esteja pronto para ser
levado a ações diferentes de suas rotinas normais. Espere para ver o que vai acontecer.

4. Encontre seus amigos uma última vez, um ano após a primeira reunião (marque esse
encontro durante a décima primeira reunião), para compartilhar o que tem acontecido.
Verifiquem se vocês têm percebido vitórias contra o domínio do ego. Procure em sua
vida novas conexões entre terra e altar. Identifique outras pessoas que participaram da
obra de conexão. Pergunte a si mesmo se Deus o está levando a continuar a “acabar
com o domínio do ego”. Busque em tudo isso o que pode ser atribuído à ação
fundamental da oração. O objetivo dessa reunião é compartilhar sua vida, e observar na
de seus amigos, a participação mais profunda na ação de Deus neste mundo.

Capítulo 1
Acabando com o domínio do ego
SALMO 2

Por que se amotinam as nações e os povos tramam em vão?

Os reis da terra tomam posição e os governantes conspiram unidos contra o Senhor


e contra o seu ungido, e dizem: ‘‘Façamos em pedaços as suas correntes,lancemos de
nós as suas algemas! ”

Do seu trono nos céus o Senhor põe-se a rir e caçoa deles.

Em sua ira os repreende e em seu furor os aterroriza, dizendo:

“Eu mesmo estabelecí o meu rei em Sião, no meu santo monte

Proclamarei o decreto do Senhor:

Ele me disse: “Tu és meu filho; eu hoje te gerei.

Pede-me, e te darei as nações como herança e os confins da terra como tua


propriedade.

Tu as quebrarás com vara de ferro e as despedaçarás como a um vaso de barro ”.

Por isso, ó reis, sejam prudentes; aceitem a advertência, autoridades da


terra. Adorem o Senhor com temor; exultem com tremor. Beijem o filho, para que ele
não se ire e vocês não sejam destruídos de

repente,

pois num instante acende-se a sua ira.

Como são felizes todos os que nele se refugiam!

Minha experiência e minhas observações me ensinaram a reconhecer o inimigo da


humanidade nesta dege-neração que leva a ver só o ego, crescendo sempre em força
durante toda a história, mas especialmente em nosso tempo. Nada mais é do que o
próprio espírito que, deserdado, comete pecado contra o Espírito Santo.

MARTIN BUBER 1
Ao longo de toda a malha rodoviária que corta os
Estados Unidos, da Califórnia até à ilha de Nova
Iorque - a grande avenida principal da América -
as pessoas vivem completamente voltadas para si
mesmas. Cento e cinqüenta anos atrás Alexis de
Tocqueville, que morava na França, visitou o país e
escreveu: “Cada cidadão se dedica habitualmente à
contemplação de um objeto insignificante, ou seja,
ele mesmo”1 2. Um século já passou e a situação
ainda não melhorou. Mesmo com a realidade
rica, atraente, barulhenta e misteriosa em evidência
por toda parte, ninguém nem nada consegue afastar
as pessoas da preocupação obsessiva consigo mesmas
mais do que um instante.
E evidente a necessidade de acabar com o domínio do ego. Observadores preocupados
com a situação usaram psicologia, sociologia, economia e teologia para fazer
o diagnóstico e atribuíram ao ego a culpa da deterioração da vida pública na
desintegração da pessoal: há um problema nessa área, responsável por tudo mais que
está errado.

Alguns se levantam em protestos pela paz, na tentativa de despertar as massas para o


perigo em que nos encontramos devido a um século de egoísmo e inconseqüência.

Essa gente tenta desesperadamente evitar a destruição da Terra, protestando contra as


insanidades do militarismo, da cobiça e das práticas negligentes que devastam rios,
florestas e a atmosfera.

Também se volta contra o consumismo que deixa grande parte do mundo imerso em
fome e pobreza. Outros distribuem folhetos que conclamam ao arrependimento
e alertam para o perigo da condenação, no esforço de acordar as multidões fugidias
para a necessidade de cuidar da alma, além do ego. Insistem em chamar atenção para o
valor eterno da alma, apresentam palavras bíblicas cheias de autoridade que mostram
quem somos e com que propósito fomos criados. Fazem a pergunta mais importante:
“Você já foi salvo?”. Os dois grupos atraem atenção ocasional, mas nunca duradoura.
Embora ambos se preocupem com a situação, um não se importa com o outro. Nas
poucas vezes em que se falam, impera o desprezo mútuo. Um deseja salvar a sociedade,
outro, as almas, mas não conhecem terreno comum. De tempos em tempos, alguém
oferece uma solução: psicólogos propõem terapias, educadores criam currículos para
as escolas, economistas elaboram leis e sociólogos criam novos modelos de
comunidade. O pensamento enche o ar. Proliferam idéias. Algumas chegam a
ser experimentadas. Nada funciona por muito tempo.

Alexander Solzhenitsyn disse, em um sermão muito comentado e hoje famoso, na


Universidade de Harvard, em 1978:

Colocamos tanta esperança na política e nas reformas

sociais só para descobrir que estamos sendo privados

de nosso bem mais precioso: a vida espiritual, que foi pisoteada por partidos
políticos no Leste e por partidos comerciais no Oeste". Estamos, bradou ele, em
uma “crise espiritual severa e em um impasse político. As celebradas façanhas
tecnológicas do progresso, incluindo a conquista do espaço, não redimem o século
XX da in-digência moral. Precisamos de “labareda espiritual”.3

O que os jornalistas não relataram - nem um único erudito se deu ao trabalho de


mencionar - é que há um número significativo de pessoas tomando providências quanto
à preocupação de Solzhenitsyn. Trabalho com algumas delas, encorajando e algumas
vezes orientando. Milhares de pastores, padres e leigos estão engajados em obra
semelhante. Fazem muito mais pela sociedade e pela alma, avivando e alimentando a
“labareda espiritual”, agem muito mais do que os jornais relatam. O trabalho deles é
orar.

Claro que a oração se relaciona a Deus. Ele é tanto iniciador quanto destinatário dessa
atividade ignorada mas intensamente cultivada. Mas a oração se relaciona a
muitos outros elementos: guerra, governo, pobreza, sentimenta-lismo, política,
economia, trabalho e casamento. Em suma, tudo. O consenso chocante no diagnóstico
dos especialistas modernos sobre a existência de um problema com o ego se compara
ao consenso igualmente chocante de nossos ancestrais quanto à estratégia de ação: a
oração é a única forma de se libertar do mundo restrito do ego e penetrar no imenso
mundo de Deus sem negar, suprimir ou mutilar o ego. Orar é também o único meio de
escapar do ego-tismo, que leva a pessoa a autodestruição e a destruição

da sociedade em que vive. Começamos, então, através da oração, a fazer diferença na


comunidade em que vivemos. Só em oração seremos capazes de abandonar as
distorções e restrições do ego e penetrar na verdade e grandeza de Deus. Encontramos
nela, para nossa surpresa, ego e sociedade curados e abençoados. E a velha história de
perder a vida para salvá-la; e a vida salva não é apenas a do próprio indivíduo, mas a
de todo mundo também.

A ação fundamental

Oração é ato político, energia social, bem público. Ela molda a vida da nação muito
mais do que a legislação. O fato de não termos sido ainda dominados pela
anarquia deve-se muito mais à oração do que à polícia. E um ato permanente e
intrincado de patriotismo no sentido mais amplo da palavra - muito mais preciso,
amoroso e protetor do que qualquer patriotismo declarado em slogans. A possibilidade
de viver na sociedade e o renascimento da esperança se devem à oração e não à
prosperidade empresarial ou ao florescimento das artes. O ato mais importante para
despertar toda saúde e força que há em nossa terra é a oração. E claro que este não é o
único meio, pois Deus usa todas as coisas para realizar Sua vontade soberana, e “todas
as coisas” inclui, com toda certeza, policiais, artistas, senadores, professores,
terapeutas e operários. De toda maneira, orar é a ação fundamental.

O erro mais comum quanto ao entendimento da oração é considerá-la ato privado.


Falando de modo estrito, segundo a Bíblia, isso não existe. Em sua raiz, privada
se refere a roubo. E furto. Quando privatizamos a oração, nos apropriamos
indevidamente da moeda comum, que per-

tence a todos. Quando nos lançamos a ela sem qualquer vontade ou consciência do que
é abrangente, inclusive a vida do reino que está “à mão”, no tempo e no espaço,
empobrecemos a realidade social que Deus está criando.

Solitude em oração não é o mesmo que privacidade. Há diferenças profundas entre os


dois. Privacidade é a tentativa de se afastar da interferência alheia. Na solitude,
a pessoa deixa um pouco a companhia dos outros para melhor compreendê-los, através
de uma reflexão mais profunda. E então, toma consciência deles, e passa a servi-los.
Privacidade é ir para longe dos outros para não ser incomodado. Solitude é afastar-se
da multidão para receber instruções do “cicio tranqüilo e suave” de Deus. A Bíblia diz
que Deus está entronizado nos louvores das multidões. Orações privadas são egoístas e
ineficazes; as feitas em solitude reúnem uma comunidade de muitas vozes que, pelos
séculos dos séculos, cantam, junto com anjos e arcanjos e todas as milícias dos Céus -
“Santo, santo, santo, Deus Onipotente”.

Assim como é impossível falar uma língua individual, também não se pode ter oração
privada. Não existe língua individual. Cada palavra carrega uma longa história de
desenvolvimento em comunidades complexas de experiência. Toda fala é relacionai,
estabelece uma comunidade de falantes e ouvintes. Isso também acontece com a oração,
a língua falada no vasto contexto da percepção de que Deus fala e ouve. Estamos
envolvidos, queiramos ou não, em uma comunidade da Palavra - falada e lida,
entendida e obedecida (ou mal compreendida e desobedecida). Isso pode acontecer na
solitude, mas não na privacidade, pois envolve o Outro e os outros.

O ego só existe saudável e inteiro quando se coloca em relacionamento, sempre duplo,


com Deus e os outros seres humanos. Relacionamento implica em reciprocidade, dar e
receber, ouvir e responder. O Barão Friedrich von Hü-gel escreveu à sua sobrinha, que
estava aprendendo a orar:

Gostaria de saber se você entende um fato profundo e maravilhoso. As almas -


todas as almas humanas - são profundamente interligadas. Não podemos apenas
orar uns pelos outros, nós sofremos uns pelos outros. Nada é mais real do que essa
inter-relação - esse poder gracioso colocado por Deus bem no âmago de nossas
enfermidades".4

Se o ego explora os outros, seja Deus ou o próximo, e os subordina às suas compulsões,


toma-se atormentado e pervertido. Se abdica da criatividade e da interação com
os outros, seja Deus ou o próximo, toma-se débil e inchado. Assim, cada pessoa só
existe em relacionamento, não por assumir nem por deixar que os outros assumam o
controle. Como desenvolver isso? Como suplantar a ganância que nos leva a saquear
por um lado e a preguiça que nos toma parasitas por outro? Como nos desenvolver não
apenas como cristãos, mas também como cidadãos? A única resposta é a oração.
Muitas coisas - idéias, pessoas, projetos, planos, livros, comitês - ajudam e amparam,
mas só há “uma coisa necessária” - oração.

A escola da oração

Ainda não surgiu escola de oração melhor do que os Salmos, que também envolvem
imersão na política. As
4. Baron Friedrich von Hiigel, Letters from Baron Friedrich von Hü-gel to a Niece, editado por Gwendolyn
Greene (Londres: J. M. Dent and Sons Ltd., 1958), pág. 25.
pessoas que nos ensinam a orar nos Salmos eram muito bem integradas nesses assuntos.
Ninguém mais avaliou e cultivou tão bem a percepção da pessoa. Ao mesmo tempo,
nenhum outro povo teve compreensão mais rica de si mesmo como nação pertencente a
Deus. O ato característico que dava forma à sociedade e alimentava a alma era a
oração. Eles oravam quando estavam reunidos e quando estavam sozinhos e a oração
era igual nos dois cenários. Essas orações, os Salmos, são profundamente pessoais e
ao mesmo tempo ardentemente políticas.

Na linguagem comum, política é entendida como “aquilo que os políticos fazem” em


questões públicas e governamentais. Costuma sugerir desagrado e desaprovação, pois o
campo oferece ampla oportunidade para uso do poder e muitas vezes há abuso. Assim,
política se liga a descrições negativas: implacável, corrupto, ambicioso, sedento de
poder, sem escrúpulos. Mas não se pode abandonar a palavra apenas porque seu
sentido foi depreciado. Ela deriva do termo grego polis (cidade). Representa tudo que
as pessoas fazem quando vivem em comunidade com alguma intenção, trabalham por
um objetivo comum e cumprem suas responsabilidades para que a sociedade se
desenvolva. De acordo com a Bíblia, é o ambiente em que a obra de Deus em tudo e em
todos se completará (Apocalipse 21). Ele começou com um casal em um jardim e
terminará com grandes multidões em uma cidade.

Para os cristãos, “política” carrega amplas associações e dimensões bíblicas. Assim,


em lugar de procurar outra palavra que não tenha sido maculada pelo mal e pela
corrupção, é importante usá-la como ela é, para aprendermos a ver Deus em lugares
que parecem inacessíveis à graça dEle. Aqueles

que afirmam que “religião e política não se misturam” por certo sabem o que estão
falando. A mistura gerou um número infindável de males - cruzadas, inquisições,
exploração e caça às bruxas. Ainda assim. Deus nos manda combinar as duas, mas
temos de tomar muito cuidado. O único caminho seguro é a oração. E irreal e
antibíblico separar a vida em atividades religiosas e políticas, ou entre esferas
sagradas e profanas.

Mas é difícil saber como reunir as duas sem colocar uma nas mãos inescrupulosas da
outra, política usando oração e vice-versa. A verdadeira mistura é política se tomando
religião e esta se tomando aquela. A oração é a único caminho adequado para o grande
feito de colocar essas polaridades em relação dinâmica. Os Salmos são o maior
documento da oração agindo.

O livro dos Salmos é uma obra editada. Cento e cinqüenta orações foram colecionadas
e arranjadas de modo a guiar e moldar nossa reação a Deus com precisão, profundidade
e abrangência. Essas preces declaram todos os sentimentos e experiências possíveis em
relação à palavra criadora e redentora de Deus em nós - João Calvino chamou os
Salmos de “análise minuciosa de todas as partes da alma”.4 Dois Salmos foram
colocados como introdução: o primeiro com o foco centrado na pessoa, o segundo
uma grande angular voltada para a política. Deus trata cada um individualmente, mas ao
mesmo tempo tem caminhos públicos que interceptam a vida de nações, soberanos, reis
e governantes. Os dois Salmos foram colocados juntos de propósito, uma introdução
bifocal à vida de oração, uma iniciação às respostas pessoais (Bem-aventurado o
homem,

1.1, RA) e políticas (Bem-aventurados todos, 2.12, RA) à Palavra de Deus.

O Salmo 1 apresenta a pessoa que sente prazer em meditar na lei de Deus; o 2 mostra o
governo que Deus usa para enfrentar as conspirações dos que se colocam contra Seu
domínio. Todos os Salmos posteriores se colocam entre esses dois extremos
introdutórios, evidência de que não pode existir, na vida de fé, divisão entre pessoal e
público, ego e sociedade. A sociedade contemporânea, contudo, demonstra grandes
abismos exatamente nessas junções, e pelo menos um dos motivos é que amamos o
Salmo 1 e ignoramos o 2. Cristãos em oração reúnem aquilo que todos sempre deixam
de lado, sem qualquer escrúpulo. Devido à negligência para com orações semelhantes
às do Salmo 2, pareceu-me de importância estratégica reapresentar muitas delas como
uma fonte para “acabar com o domínio do ego”. Esses Salmos são evidência material,
formas de oração que estiveram em eclipse parcial. Orando-as, ou seguindo suas
instruções, suplantaremos a barreira do ego e entraremos no reino que Cristo vem
estabelecendo.

Costumamos supor, de forma errada, que os Salmos são composições privadas,


repetidos por pastores, viajantes e fugitivos. Estudos detalhados mostram que
eram corporativos: orados pela comunidade reunida. Mesmo que tenham sido
compostos em solitude, eram orados na congregação. Quando tinham origem na
congregação, encontravam continuidade na solitude. Entretanto, não existiam dois tipos
de oração, pública e privada. Vai contra todo o espírito dos Salmos tomar esses
lamentos comunitários, louvores congregacionais, intercessões corpora-

tivas e usá-los como fórmulas agradáveis para consolo individual.

O objetivo de Deus ao nos salvar não era nos levar a cultivar êxtases em solidão, nem
fazer reserva para nós em uma mansão celestial. Fomos feitos cidadãos de um reino, ou
seja, de uma sociedade. Através dos Salmos, Ele ensina a linguagem do reino, que
acabam se preocupando tanto com a política selvagem quanto com as águas tran-qüilas
da piedade. Assim, não se justifica nossa facilidade para imaginar Deus em Seu
cuidado com um pardal que cai, enquanto hesitamos em crer que Ele está presente
na confusão de salas cheias de fumaça de cigarro.

Hoje nossa percepção de nação e comunidade está distorcida, muitos cristãos


reduziram a oração a um ato privado e muitos outros a usam como slogan político.
Diante disso, é essencial recuperarmos as dimensões da oração no reino. Para muitos, a
recuperação começa na participação na obra antiga e generalizada de acabar com o
domínio do ego, evidente nos Salmos. Isso ganhará impulso quando novas orações
forem oferecidas ao “Deus da terra e altar”, que G. K. Chesterton invocou com tanta
paixão no início do século XX.5

Reunido e disperso

Essa destruição do domínio do ego vem acontecendo por toda parte. Muitas pessoas se
reúnem para participar da obra. Quando acaba a reunião, prosseguem com o
que começaram em conjunto. São persistentes, determinadas, eficientes. Karl Jaspers
comentou:

A verdadeira realidade passa quase despercebida e é, para início de conversa,


solitária e dispersa.... Nossos jovens que, daqui a trinta anos, farão o que é
importante, estão agora, com toda probabilidade, esperando em silêncio o momento
certo para agir. Ainda assim, mesmo sem ser vistos, já se encontram estabelecendo
sua existência através de disciplina espiritual irrestrita”.7

Reunidos em atos de adoração, eles oram. Espalhados, eles se infiltram em lares, lojas,
indústrias, escritórios, academias de ginástica, prefeituras, tribunais, prisões, ruas,
play-grounds e shopping centers e continuam a orar. Grande parte da população,
profündamente ignorante quanto às forças que mantêm a vida em curso, nem sabe que
essa gente existe.

Essas pessoas que oram sabem o que a maioria desconhece ou prefere ignorar:
centralizar a vida nas exigências insaciáveis do ego é o caminho mais certo para a
condenação. Confirmam o julgamento de Wendell Berry:

Se quisermos corrigir os abusos que cometemos uns contra os outros e contra nossa
terra, se nossos esforços nesse sentido pretenderem ser mais do que um impulso
político passageiro, que no final será apenas outra forma de abuso,
então precisaremos ir muito além de protestos públicos e ações políticas. Teremos
de reconstruir a essência e a integridade de melhores mentes, amizades,
casamentos e comunidades”.8
Sabem que a vida restrita ao ego aprisiona, mata a alegria, produz neuroses e fomenta
doenças. Devido ao puro senso de sobrevivência se comprometem a um estilo de
vida voltado para os outros, tanto pessoalmente quanto em sua na-
7. Karl Jaspers, Man in the Modem Age (Garden City, N.Y.: Anchor Press/Doublcday, 1951), pág. 77.

8. Wendell Berry, A Continuous Harmony (Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1972), pág. 79.

ção. Para usar as palavras de seu Mestre, são “luz” e “fermento”. A luz é silenciosa e o
fermento invisível. A presença é discreta, mas essas vidas são o modo que Deus usa
para iluminar e preservar a civilização. As orações se opõem às fortes forças de
desintegração que agem na sociedade.

Ninguém precisa de mais um movimento que vise salvar a sociedade. O antigo


prossegue, fazendo bem seu trabalho. Afirmar que tempos extraordinários
requerem medidas extremas não é verdade e é um conselho destrutivo. Não precisamos
de nova campanha, conscientização, programa, legislação, política ou reforma. As
pessoas que se reúnem em adoração e se oferecem em atos de oração estão fazendo o
que é necessário. E aceitam que mais gente se una a elas. Os atos de oração não se
restringem ao que elas fazem quando se colocam de joelhos ou participam de um culto.
As orações, assim como avançam até a sociedade, também nos levam a participar dela.
Não há como saber exatamente o alcance: algumas pessoas são muito visíveis em
movimentos políticos enquanto outras trabalham em discrição, sem ser notadas, em
lugares bem inesperados.6 Aprendemos a obedecer ao que o Espírito está. realizando
em nós e a não invejar nem criticar aqueles cuja obediência os leva por caminhos
diferentes.

Esses cidadãos têm desmascarado o engano do diabo, que convence que a oração é um
exercício devocional em que os piedosos cultivam um tipo de felicidade privada com o
Todo-Poderoso, ou em que os profanos são levados em circunstâncias desesperadas e
que para o, digamos assim, mundo real, as realizações precisam passar por comitês,
máquinas ou uma campanha de relações públicas. Eles reconheceram o caráter
profundo, abrangente, refonnador e revolucionário da oração: é a obra essencial para
moldar a sociedade e formar a alma. Envolve necessariamente o indivíduo, mas não
começa nem termina com ele. Nascemos e somos sustentados em comunidade. Nossos
atos e palavras, ser e tomar-se, a diminui ou a enriquece, e ela tem o mesmo efeito
sobre nós.

A oração age como o princípio do fulcro, o pequeno ponto de apoio onde toda força da
alavanca se concentra - percepção, intensificação, expansão e aprofundamento
na conjunção de Céu, Terra, Deus, o próximo, ego e sociedade. E o ato que integra os
aspectos internos e externos da vida, correlaciona pessoal e público e trata de
necessidades individuais e interesses nacionais. Nenhuma outra ação traz tantos
benefícios simultâneos à sociedade e à alma que ora.

Motivações pessoais e públicas, que envolvem Céu e Terra, movem os que oram. Eles
procuram a autopreser-vação, já que uma autoridade lhes disse que apenas quem perde
a vida conseguirá salvá-la. Além disso, realizam um ato de patriotismo, sabendo que a
vida é tão intrinsecamente ligada à dos outros que todo ato que polui, todo aborto
da justiça e toda crueldade - mesmo que ocorra do outro lado do planeta - degrada tanto
a pessoa que foi diretamente atingida quanto a que não foi. Essa percepção não se
limita aos cristãos. O pagão Marco Aurélio, por exemplo, en-

xergou esse fato com clareza: “Todas as coisas estão interligadas: o laço é sagrado e
nada, ou quase nada, é alheio às mínimas outras coisas”.7 Entretanto, a estratégia
pertence ao cristianismo.

A oração repara e cura as interligações. Avança até a fonte da divisão entre o que é
santo e o que é do mundo - o ego sem Deus - e busca a cura final, não se conformando
com nada menos do que o novo Céu e a nova Terra da promessa. “Somos cidadãos do
Céu”, afirmam os que oram, e buscam com fervor as benesses de sua
“terra”. Entretanto, essa paixão pelo invisível em nada prejudica o envolvimento nos
assuntos de todos os dias: trabalhar bem, jogar limpo, assinar petições, pagar impostos,
censurar perversos, encorajar justos, molhar-se na chuva e sentir o perfume das flores.
Possuem um conjunto tremendo, caleidoscópico, de fragmentos de realidade tocada,
cheirada, vista e provada, recebida e oferecida em atos de oração. Eles obedecem à
ordem do Senhor: “Dêem a César o que é de César e a Deus o que é de Deus”

Capítulo 2
1

Martin Bubcr, Meeúngs, editado por Maurice Friedman (LaSalle, 111.: Open Court
Publishing Co., 1973), pág. 59.

Alexis de Tocqueville, Democracy in America. 2 volumes (Nova Iorque: Schocken


Books, 1974), 2:93.

3
Alexander Solzhenitsyn, “World Split Aparf\ Vital Spee-ches, Io. de setembro de
1978.

João Calvino, Commentary on the Book of Psalms, vol. 1 (Grand Rapids:


Eerdmans, 1949), pág. XXXVII.

5
G. K. Chesterton, The CollectedPoems (Nova Iorque: Dodd. Mead & Co., 19X0), págs. 136-137.

6
“Hoje, parte da patologia da vida cristã ocidental se deve à destruição da unidade essencial entre místico e
sócio-político, entre contemplativo e profético. Misticismo c política são vistos, na melhor das hipóteses,
como modos alternativos de discipulado e na pior como opostos ideológicos incompatíveis. Assim temos,
por um lado, formas de espiritualidade escapistas, pietistas e contra toda came e por outro, movimentos
políticos fanáticos, desumanos e contra a encarnação. Vemos, em ambos, o fracasso de levar a humanidade
a sério.” Kenneth Lecch, The Social God (Londres: Sheldon Press, 1981)

7
Citado por Berry, A Continuous Harmonw pág. 15.
Feito por Deus
SALMO 87

O Senhor edificou sua cidade sobre o monte santo; ele ama as portas de Sião mais
do que qualquer outro lugar de Jacó.

Coisas gloriosas são ditas de ti, ó cidade de Deus!

Entre os que me reconhecem incluirei Raabe e Babilônia, além da Filistia, de Tiro, e


também da Etiópia, como se tivessem nascidos em Sião.

De fato, acerca de Sião se dirá:

“Todos estes nasceram em Sião, e o próprio Altíssimo a estabelecerá

O Senhor escreverá no registro dos povos:

“Este nasceu ali

Com danças e cânticos, dirão:

"Em Sião estão as nossas origens!"


Material com direitos autorais

Aquele que já nasceu de novo não pode viver ansioso e preocupado com cada detalhe
de sua vida, embora viva nessa experiência. A vida tornou-se nova porque, sendo
orientado rumo à nova criação, ele vive na presença do Espírito e sob a influência
dEle, a “intensidade da glória

JÜRGEN MOLTMANN 1

Assim que pegamos a estrada para voltar para casa,


em Maryland, ouvimos a pergunta: “O que é
‘cruzar’?”. O ponto alto das férias na casa de
amigos em Chicago havia sido o nascimento de uma
ninhada de gatinhos. Nossa filha, de sete anos, ficou
empolgada com o milagre confuso e maravilhoso do
nascimento. Observou. Gritou. Fez perguntas. As
crianças mais velhas implicaram com ela, dando
meias-respostas. Ela pressionou em busca de mais
informações e eles disseram, em tom de
condescendência, que era melhor perguntar aos pais.
“O que é ‘cruzar’?” Eu e minha esposa sabíamos que em algum momento essa pergunta
seria colocada diante de nós e havíamos conversado sobre a melhor forma
de responder. Nosso plano era transformar a curiosidade infantil sobre sexo em
apreciação, admiração e respeito pela vida. Mas não esperávamos que fosse tão cedo,
de modo que ainda não havíamos pensado na resposta específica. O tráfego de Chicago
requer atenção redobrada do motorista, de forma que tive que deixar minha esposa
tratar de uma questão que havíamos decidido abordar juntos. Sempre queremos estar
bem preparados para ocasiões como essa, com tudo ensaiado e anotações à mão. Isso
nunca acontece. Eles nos pegam desprevenidos.

1. Jürgen Moltmann, The Church in the Power of lhe Spirit (Nova Iorque: Harper
& Row, 1975), pág. 279.

É impossível evitar a redução da resposta a poucos fatos estranhos ou a uma névoa de


eufemismos. Não há palavras adequadas para transmitir a glória. Ainda assim, alguma
coisa tem que ser dita, em palavras que dirijam a criança não apenas aos fatos, mas
também à verdade. A conversa seguiu incerta, fez voltas indevidas e entrou por desvios
estranhos. Nas horas seguintes, o processo intrincado e longo da educação sexual
abandonou o nível não verbal e penetrou no verbal. Foi um momento inesquecível:
vibrante de curiosidade, intenso de carinho. Houve desdobramentos surpreendentes, de
falta de jeito a eloqüência, epifanias de discernimento e períodos de silêncio
embaraçado.

A maravilha do nascimento

O Salmo 87 é uma reação, surpreendente, gaguejante e entusiasmada diante do


nascimento, anunciado três vezes: como se tivessem nascidos em Sião (v. 4); Todos
estes nasceram em Sião (v. 5) e Este nasceu ali (v. 6). Nascimento. Nascimento.
Nascimento.
Eruditos que apreciam sentenças claras e em ordem alegam que esse é o texto mais
mutilado e desorganizado dos Salmos.2 As sentenças são incompletas, faltam conec-
tivos. As transições são abruptas, as imagens, distorcidas. No entanto, os poetas (e os
pais) sabem que não há como evitar ambiguidade nas grandes questões, nas grandes
passagens. Não apenas toleram, na verdade, cultivam a am-bigüidade. Sabem que
esclarecer e ordenar as coisas acima do que estão sendo vivenciadas significa
desinformar. Segundo minha opinião, a confusão no texto do Salmo 87 não se deve a
perda e descolamento de sentenças durante sécu-
2. Mitchell Dahood. The Psalms, 3 volumes. (Gardcn City. N.Y.: Doubleday. 1975). 2:298.

los de cópia e transmissão. Muito mais provável é que ele seja oração sincera,
desajeitada e espontânea em presença de excesso de significado e de realidade.

Nascimento. Como acontece? O que o provoca? Por mais comum que seja, sempre
chama a atenção, provoca admiração c suscita curiosidade. Queremos saber por que
existe alguma coisa no lugar do nada. Buscamos os motivos que fazem a vida de repente
se manifestar a partir das trevas, no meio da dor. Ansiamos por descobrir a razão da
alegria quando há tanto choro. Talvez fosse melhor lamentar, sabendo que a criança
nasceu para sofrer, tão certo quanto o rio corre para o mar. Diante da dor, rejeição e
tristeza que certamente esperam pelo recém-nascido, talvez fosse mais apropriado
torcer as mãos em aflição. E verdade que alguns impedem o nascimento. Há
abortos, mas a maioria não faz isso. Há, na raça humana, um instinto consensual e
arrebatador de que a vida é boa. Cada nascimento representa uma nova e pura invasão
de vida em nossa existência ameaçada pela morte. Apesar da dor do parto, do imenso
trabalho de criar um bebê até ele se tornar adulto, e da incerteza de doenças e
acidentes, o nascimento é sempre uma boa notícia.

Mesmo assim, apesar da frcqüéncia de nascimentos e da alegria irreprimível nessa


hora. costumamos nos afastar logo do significado do evento. O pavor da morte
certa turva a exuberância pela maravilha da vida. Ficamos arrebatados de surpresa pelo
vigor da vida, mas não passa muito tempo e os sinais de destruição nos cercam.
Então, diante de um outro nascimento, ficamos presos no mistério. Reagimos com
reverência. Por quê? Somos capazes de explicar o processo do nascimento.
Conhecemos todos

os detalhes genéticos e fisiológicos, mas nenhuma dessas explicações responde pela


reverência.

Os pais não examinam identificações cromossômicas para planejar um bebê e escolher


a cor do cabelo, a textura da pele e o tipo corporal. Seria absurdo pretender
programar uma estatura específica, determinar o QI e a vocação para equipar a criança
para seguir a profissão de salários mais elevados daqui a vinte e cinco anos. Quando
entramos no processo reprodutivo, não calculamos probabilidades estatísticas em
distanciamento frio. Não fazemos exame meticuloso do conjunto estonteante de detalhes
fisiológicos que se unem na concepção e no nascimento. Somos levados a um mistério
muito maior do que nós. As intenções desempenham um papel, mas de forma nenhuma
é o papel principal.

Houve, nos primeiros anos do século XX, grande entusiasmo em tomo da eugenia,
programa que selecionava pais potenciais pelos mesmos princípios que haviam
aprimorado as crias de ovelhas e cabras. Nessa época, houve uma conversa muito
famosa entre o brilhante mas feio George Bemard Shaw e uma atriz londrina lindíssima
destituída de inteligência. Ela falou, com afetação:

- Ah, Sr. Shaw, o senhor não acha que nós dois deveriamos ter um filho? Seria um
prodígio, com minha aparência e seu cérebro!

Shaw replicou:

- Mas o que faríamos se ele viesse com minha aparência e seu cérebro?

Nada disso. Diante do nascimento, não raciocinamos. Nós nos maravilhamos.


Exclamamos: “Como se tivessem nascidos... todos estes nasceram... este nasceu”. Na
presença do nascimento, estamos na fonte da vida. Por um instante, as

preocupações com a sobrevivência e os prognósticos de morte diminuem. A


espontaneidade vence. Pelo menos por alguns momentos saímos de nós mesmos. Martin
Buber escreveu:

Cada homem é único, por isso, outro primeiro homem chega ao mundo toda vez
que nasce uma criança. Estando vivos, todos tateando como crianças voltando
à origem de nosso próprio eu, podemos sentir o fato de que há uma origem, há uma
criação.1

O nascimento mais comum está muito acima de tudo que somos capazes de fazer,
mesmo com o maior esforço e tecnologia altamente sofisticada. Aqui há mistério,
mas de luz e não de sombras, repleto de bondade, transbordante de bênçãos. Todo
nascimento nos leva poderosamente de volta a essa fonte: nossa origem é em alguém
que não nós mesmos, alguém maior do que nós.

Nações, não bebês


O Salmo menciona cinco nascimentos:

“Entre os que me reconhecem incluirei Raabe e Babilônia. além da Filístia, de Tiro,


e também da Etiópia, como se tivessem nascido em Siâo.”

Parece estranho. São nomes de nações, não de pessoas. A imaginação se perde: parecia
que pensávamos em bebês risonhos e, na verdade, nos confrontamos com nações
violentas e amedrontadoras. Tratam-se de inimigos de Israel: Raabe (nome antigo para
Egito), nação que escravizou cruelmente o povo por mais de quatrocentos anos;
Babilônia,

que derrubou os muros de Jerusalém, saqueou o Templo e levou o povo para um exílio
devastador; Filistia, inimigo litorâneo implacável e destruidor, com reputação
merecida de insensibilidade às realidades morais e espirituais; Tiro, mercadores ricos
e profanos, os barões do roubo do mundo antigo, cuja luxúria levou à decadência;
Etiópia, soldados do Saara inferior, que se ofereciam como mercenários. O que esses
cinco inimigos foram fazer em uma reflexão sobre as maravilhas e mistérios do
nascimento? Só há uma resposta satisfatória, por mais incrível que pareça: foram parar
na oração por terem nascido de novo.

Por todo o mundo, as pessoas mais improváveis têm encontrado nova vida em Deus,
vida que só pode ser descrita adequadamente pela metáfora radical e cheia de vida do
nascimento. Esse fenômeno transnacional, transcultural e transracial foi um dos
resultados inesperados, mas feliz, da dispersão dos hebreus nas nações circunvizinhas
por causa da perseguição e do exílio. As pessoas que moravam nos lugares para onde
eles foram puderam observá-los, ver seu estilo de vida, olhar sobre os ombros deles
enquanto liam e copiavam as Escrituras, questionando sobre a fé e sobre Deus.

Os hebreus não praticavam o proselitismo, mas eram profundamente sérios - quanto ao


sentido da vida, à aliança com Deus. Não faziam campanhas para converter os
outros, mas sua fé era contagiante. Os povos que travavam contato com eles se sentiam
atraídos pela intensidade estonteante da adoração e pela peregrinação rumo ao
amadurecimento em santidade.2 Com isso, abandonavam superstições, jogos

com espíritos e divindades, preocupações tolas com o ego. Descobriam, através do


testemunho dos judeus, a realidade do Deus que criou, participou do mundo sofredor e
abriu um caminho de redenção. Com isso, creram. Tomaram-se judeus também. Era uma
vida maravilhosamente atrativa: separação dos caminhos do mundo e concentração nos
de Deus. Nunca foi um movimento de massa, mas nada se compara em intensidade,
criatividade e influência.
Todo ano, judeus conseguiam voltar a Jerusalém para celebrar os grandes momentos da
fé: Páscoa, Pentecostes, Tabemáculos. Estrangeiros começaram a aparecer em
bandos de peregrinos, pessoas com outro tom de pele, nariz de formato diferente.
Ninguém que conhecesse a experiência dos hebreus teria previsto isso. Eles eram os
estranhos no mundo da cultura, estrangeiros e forasteiros. A fé de Israel nunca tinha
sido popular, nem no próprio Israel, onde era constantemente superada pelo baalismo,
que satisfazia o apetite das multidões. A religião hebraica não apelava ao que a
maioria das pessoas pensava querer de uma religião. Os judeus foram sempre minoria,
muitas vezes perseguida e em sofrimento.

O apelo era por autenticidade: um Deus vivo e um povo apaixonado. Em todas as


nações onde os judeus viviam, pessoas que buscavam algo mais perceberam
nas palavras, músicas e orações deles a revelação do Deus santo e a evidência da
humanidade saudável. Muitos foram atraídos, uniram-se a eles, entraram na família da
fé. Logo começaram a fazer peregrinações a Jerusalém também. Com o passar de
décadas e séculos, as pessoas que cruzavam as estradas do Oriente Médio foram se
parecendo cada vez menos com as tribos judaicas e cada vez mais com uma reunião da
Organização das Nações Unidas. Uma pessoa

que ficasse ao lado do muro de Jerusalém assistindo a procissão poderia muito bem
dizer, combinando a reverência e a surpresa com que saudamos um recém-nascido à
curiosidade e ao prazer com que identificamos carros com placas de outros estados:

'‘Entre os que me reconhecem incluirei Raabe e Babilônia, além da Filistia, de Tiro,


e também da Etiópia, como se tivessem nascido em Sião.”

Nascidos de novo. Nascidos na fé que os atrai ao culto em Jerusalém, pregada nos dias
de festa. Depois essa pessoa que assiste a parada se volta e vê a reunião internacional
dentro dos portões da cidade e exclama:

De fato, acerca de Sião se dirá:

“Todos estes nasceram em Sião”

Mãe Sião: Jerusalém importante não como capital política nem como Meca cultural,
mas como local de nascimento.3 O aperfeiçoamento pessoal começa aqui, no útero de
Sião. Uma família inesperada surgiu no mundo a partir dessa matriz: ninguém poderia
prever que Egito, Babilônia, Filistia, Tiro e Etiópia teriam um parentesco em comum. O
útero de Sião, local de revelação e culto e, por fim, de encarnação. Entramos na esfera
da transformação e partimos transformados.
Centenas de anos depois, Jesus extraiu do Salmo a frase que estabeleceu o foco de Sua
extraordinária conversa noturna com Nicodemos: “É necessário que vocês nasçam de
novo”. Tanto Jesus quanto Nicodemos oravam os Salmos, o livro de orações no qual
foram ensinados. Muitas vezes Nicodemos havia repetido ou cantado:

O Senhor escreverá no registro dos povos:

“Este nasceu a!i'\

Mas, como acontece tantas vezes com o que é familiar, o Salmo era apenas exterior a
ele, um legado piedoso recebido do passado. Ele nunca estivera “em” oração. Agora,
conversando com Jesus, estava.

O nascimento físico é uma maravilha, o espiritual, outra, ambos quase igualmente


inacreditáveis. Contemplando qualquer um, ou os dois, chegamos à nossa fonte:
descobrimos que não fomos feitos por nós mesmos, e sim por Deus.

A cidade de Deus

Significativamente, a cidade é o local dessas exclamações de nascimento.

O Senhor edificou sua cidade sobre o monte santo;

ele ama as portas de Sião

mais do que qualquer outro lugar de Jacó.

Coisas gloriosas são ditas de ti,

ó cidade de Deus!

Precisamos pensar no amor de Deus pela cidade, pois houve uma grande separação na
consciência cristã

entre a identidade pessoal como pessoas de fé e a responsabilidade política como


cidadãos de uma nação. Ficamos maravilhados com o novo nascimento, mas exaustos
com a vida adulta. Nossos melhores instintos sobem à superfície quando abraçamos
com carinho um recém-nascido. Não sentimos a menor atração pelo bêbado fedido que
assenta ao nosso lado no ônibus lotado, mesmo sendo a inconveniência que ele
representa muito menor do que a que o bebê nos traz. Recebemos muito bem os
convertidos, mas reclamamos com veemência do governo, tanto nacional quanto
eclesiástico. Há vastas áreas da comunidade cristã em que todo senso de cidadania se
perdeu e só ficou a identidade do novo nascimento. Contudo, não há o menor traço
dessa separação na experiência bíblica.

Os recém-nascidos do Salmo 87 não fogem da cidade para buscar a Deus em


isolamento. Entram nela e participam do governo. Como ato de oração, a esfera
pessoal (o nascimento) se combina com a pública (a cidade). Os bebês crescem e se
tomam cidadãos. A vida celebrada no nascimento se desenvolve e se transforma em
responsabilidade exercida pelo adulto.

O recém-nascido entra na cidade, não parte para o campo, onde é possível viver por
conta própria e se entregar à fantasia de ter sido feito por ele mesmo. Lá, pelo menos,
não há necessidade de contato chegado com pessoas inadequadas, nem de depender do
serviço de gente que complica a vida alheia. Mas na cidade é diferente. Ela
nos envolve em assuntos urbanos, na política. Somos jogados, queiramos ou não, em
padrões de transporte, transações de negócios, funcionamento do sistema judicial e
muito mais.

Acima de tudo, somos confrontados com a responsabilidade de agir no meio de tudo


isso.4

A cidade de Deus, da qual “coisas gloriosas são ditas”, não é, claro, apenas a
Jerusalém disputada por políticos rivais e noticiada por jornalistas. Também não é
desmate-rializada. E a cidade em que Deus opera Seus propósitos e onde Sua glória
brilha, mas mesmo assim um lugar real, de igreja, cultura, culto e condições climáticas.
É citada no versículo 5 como uma pessoa, mãe que dá à luz uma descendência
internacional. Mas nos versículos 4 e 6 ela se apresenta como ponto geográfico - no 6,
ali. Fica sobre uma montanha rochosa, seus portões estão abertos. Ali.

O nascimento espiritual nos leva a uma cidade física. Nos descobrimos não apenas
irmãos e irmãs em uma família, mas também cidadãos em uma metrópole
(literalmente, “mãe-cidade”). Nossos nomes foram registrados, além do rol dos
nascimentos, no dos impostos, o que significa que temos responsabilidades com o bem
comum. Orar o Salmo 87 desenvolve nosso compromisso consciente com o
bem público e nos ajuda a ver o mundo da política como terreno bíblico, não estranho.

Mãe Sião

Cheguei a Jerusalém no final da tarde, em minha primeira visita. Queria ir ao Muro


Ocidental ao pôr-do-sol para o começo do Sabá. Estava tarde, eu não sabia o caminho.
Apressei-me pelas ruas estreitas e apinhadas, pedindo informações. Depois de errar
algumas vezes e já sem fôlego, consegui chegar. O Muro. Do grande complexo do
templo bíblico, só resta uma pequena parte de pedra na porção inferior do Muro. Há um
pátio em frente, onde as pessoas se reúnem para orar. Para os judeus, é o lugar mais
santo do planeta.

Em geral, os lugares santos são esplendores da arquitetura: catedrais góticas, templos


hindus, santuários budistas, mesquitas muçulmanas. Não há nada de esplêndido no
Muro. Quem chega lá se depara com uma parede de pedra sem qualquer formato
especial. Os que oram ficam ao ar livre. Não há beleza. Nem drama. Mas não se pode
exigir beleza nem entretenimento de uma mãe. Simplesmente desejamos estar na fonte.
Mãe Sião. O local do nascimento. Isso, e apenas isso, responde pelas “coisas
gloriosas” ditas sobre ela. O fato simples, embora imenso, da maternidade supera todas
as outras considerações.

Então chegou o pôr-do-sol, o sinal do início do Sabá. Fiquei diante do Muro simples,
sem atrativos, sentindo-me profundamente comovido por causa da torrente de
recordações que me vinha. Eu estava no lugar onde Davi governou, onde Salomão
construiu, Isaías pregou e Jeremias chorou. Era o local em que Jesus ensinou, sofreu,
morreu e ressuscitou. Ouvi um cântico à distância, atrás de mim. Virei-me e vi cerca de
trezentos jovens (fiquei sabendo depois que eram alunos da Universidade Yeshiva).
Eles vinham com os braços nos ombros uns dos outros, cantando enquanto se

moviam no mesmo ritmo, em uma solenidade alegre cruzando a praça rumo ao Muro.
Chegaram no pátio onde eu estava, formaram um grande círculo e começaram a cantar e
dançar no local de oração.

Foi um dos momentos mais emocionantes de minha vida. Sentimentos profundos cuja
intensidade me surpreendeu moveram meu íntimo. O lugar santo (o Muro), o dia santo
(Sabá) e a cidade santa (Jerusalém). E as multidões de pessoas santas - todas as raças à
minha vista, enquanto eu ouvia muitas línguas diferentes. Tudo isso encontrou, para
mim, expressão física e vocal no canto e na dança dos jovens. Subitamente a última
frase do Salmo 87 surgiu em minha mente como um epigrama do momento:

Com cânticos e danças, dirão:

“Em Sião estão as nossas origens!”

Cânticos e danças resultam de excesso de energia. Em estado normal falamos, na hora


da morte sussurramos, mas quando não conseguimos nos conter, cantamos.
Os saudáveis andam, os decrépitos se arrastam, mas os que estão cheios de vitalidade
dançam.
Onde conseguir a energia que leva a viver além de nós mesmos, feitos por Deus,
cantando e dançando? Em Sião - lugar de adoração, de pregação, de oração, de
política. O lugar que Deus estabeleceu para revelação e domínio, que afirma o invisível
em nossa visibilidade, tempo e lugar separados para dar atenção ao que acontece à
nossa volta, abaixo de nós - e, agora, dentro de nós. Em Sião - onde tudo começa, o
manancial, a fonte profunda e impossível de deter de nova vida jorrando através de
camadas de

pecado, indiferença e estupidez e explodindo em fontes de cântico e dança. Saltos de


louvor. Cambalhotas de obediência. “Pulo corda em graça acompanhando uma música a
Cristo.'’5

Capítulo 3
1
Martin Buber, On the Bihle, editado por Nahum Glatzcr (Nova Iorque: Schocken Books, 1968), págs. 11-
12.

2
“Na Diáspora. a conversão foi um ato voluntário praticado por multidões de gentios que desejavam se
juntar ao povo de fé judeu.” The Jewish People in lhe First Century, 2 volumes, editado por S. Safrai e M.

Stern (Philadelphia: Fortress Press, 1976), 2:622.

3
A LXX cometeu um engano na tradução do versículo 5: "O, Mãe Sião". Isso foi resultado, provavelmente,
de um erro textual no grego, metí no lugar de meter. Contudo, esse engano capta o espírito do Salmo de
forma tão surpreendente que não se pode deixá-lo de lado. (James Joyce costumava manter os erros
cometidos pelos datilógrafos ao transcrever sua letra difícil de entender. Ele acreditava que haviam
aperfeiçoado sua obra.)

Interessante notar que nas cidades-estados gregas, a esfera pública costumava ser
vista como o lugar de liberdade, em contraste com a privada, o local das
necessidades. Nesta, a vida era cercada pelas necessidades de cônjuge, filhos,
roupa, alimento, abrigo. Na pública, a política, havia espaço para criar com
liberdade padrões de associação e responsabilidade que elevavam a vida acima dos
aspectos de sobrevivência. Jesus aprofundou imensamente esse discernimento com
a proclamação do reino, a esfera pública de Deus. E essencial reconquistar esse
terreno público que foi perdido por um secularis-mo agressivo instigado por
pietismo privado. A oração é o meio fundamental nesse trabalho de retomada. Veja
Elizabeth Young-Bruehl. Hannah Arendt: For Lave of lhe World (New Haven: Yale
Univcrsity Press, 1982), pág. 319.

Eugene H. Peterson, "Festival”, em A Widentng Light, editora Luci Shaw


(Wheaton, III.: Harold Shaw, 1984), pág. 119.
Centralizado em Deus
SALMO 110

O Senhor disse ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus
inimigos um estrado para os teus pés

O Senhor estenderá o cetro de teu poder desde Sião,

e dominarás sobre os teus inimigos! Quando convocares as tuas tropas, o teu povo se
apresentará voluntariamente. Trajando vestes santas, desde o romper da alvorada os
teus jovens virão como o orvalho.

O Senhor jurou e não se arrependerá:

“Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Me/quisedeque

O Senhor está à tua direita; ele esmagará reis no dia da sua ira. Julgará as
nações, amontoando os mortos e esmagando governantes em toda a extensão da
terra.

No caminho beberá de um ribeiro, e então erguerá a cabeça.


Material com direitos autorais

No pensamento do mundo bíblico, não se espera que o homem esteja centrado em sua
própria personalidade, e sim em Deus. ... O interesse deles era o drama divino, não a
personalidade humana; os acontecimentos sobrenaturais, não o encanto de um
galileu.

DONALD BAILLIE 1

As coisas não vão muito bem atualmente. Na


verdade, nunca foram. É muito estranho. Vivemos
cercados por beleza estonteante. A terra sob nossos
pés e o céu acima de nossa cabeça são repletos de
formas, sons e cores de tirar o fôlego. Nós mesmos
somos uma obra de proporções magníficas: não há
limite para a exuberância de poemas, fotografias,
histórias, paisagens, retratos, concertos, máquinas,
ferramentas, edifícios, jardins, pontes,
motores, represas, músicas, sonetos, mosaicos,
esculturas, cerâmicas e tecidos que os seres humanos
fazem. Muitos acreditam que o governo dos Estados
Unidos seja a combinação mais bem sucedida de
liberdade política e responsabilidade que o mundo já
viu. Diante da beleza estonteante e da terra
maravilhosa que temos, da grande inteligência e
sensibilidade de homens e mulheres e do evidente
sucesso da experiência política na democracia, por
que o país enfrenta tantos problemas? Por que a
situação não é melhor? Após tantos séculos de palestras, sermões, sinfonias,
legislação, revoluções e ferrovias, todos deveriam ser eruditos santos. Thomas Hardy
escreveu um epitáfio breve e cínico: “Após dois mil anos de
liturgia cristã/Progredimos e chegamos ao gás venenoso”.1 2

Poderemos fazer alguma coisa? A maioria das pessoas pensa que sim. Certo, há dias
em que parece que a disputa fica entre fanatismo e apatia, pessoas que acusam um
inimigo odioso por todos os ossos males e aquelas que sucumbiram por achar que não
podem fazer nada. Mas a verdade é que todos os dias se gasta muita energia para
solucionar problemas: cuidado com o meio-am-biente, compaixão pelos sofredores,
preocupação com os pobres, diligência no governo. Grandes batalhões de pessoas
ensinam, curam, legislam, orientam, consolam e reabilitam. Muitos combatem o mal,
tanto nas formas óbvias quanto nas sutis.

Entretanto, o imenso número de pessoas comprometidas em agir diante do que está


errado no mundo nem sempre incentiva a esperança. Muitas vezes a observação da vida
dos que tentam agir e a análise fria dos resultados de seus esforços não resultam em
estímulo. Por exemplo: por que pessoas que fazem tanto bem costumam agir tão
mal? Fazer o bem suscita o pior em algumas pessoas. Por que se tornam tão mal-
humoradas, duras e hipócritas? Por que tantos se lançam a empreitadas impressionantes
e logo depois perdem a empolgação? Por que tantas causas morais vigorosas têm vida
tão curta? Por que tanto fervor bem intencionado e justo se deteriora e vira
sentimentalismo? Nem sempre mergulhar de cabeça na batalha traz os
resultados esperados. Algumas vezes nosso esforço piora a situação. Algumas vezes o
que piora somos nós mesmos.

Recolocando a oração no centro

Os cristãos acordam todas as manhãs no meio dessa confusão e levantam da cama


dispostos a agir. Não sabe-

mos o que fazer. Se fizermos uma pesquisa entre os colegas, como alguém de vez em
quando faz, encontraríamos uma variedade imensa de respostas. No entanto,
poucas pessoas responderíam “orar”. Não estou afirmando que a pesquisa mostraria
que os cristãos não oram, mas sim que a maioria não considera a oração o ato central e
essencial para desfazer a confusão em que nos metemos. A maioria considera a oração
uma atividade privada, a ser realizada dentro de casa. Quando acontece no setor
público, faz parte de alguma cerimônia.

Esse entendimento e essa prática são tão generalizados e aceitos que ficamos chocados
ao descobrir que em outros tempos e lugares os cristãos tinham posição completamente
diversa. A diferença fica clara no que sabemos sobre a comunidade cristã do primeiro
século. Aquela época, ao contrário da nossa, era totalmente deficitária em termos de
pesquisas e análises estatísticas, de modo que nos falta o tipo de evidência a que
estamos acostumados. Mas temos o Novo Testamento e vemos que nele o Salmo
mais popular é o 110 - com sete citações e quinze alusões.3 Nenhum outro Salmo chega
nem perto disso. A comunidade de cristãos do século I ponderava, debatia, memorizava
e meditava no Salmo 110. Era o texto que os atraía e moldava a vida comum quando
abriam seu livro de orações. Mas a comunidade de nosso século tem ouvido muito
pouco desse Salmo.

Venho fazendo pesquisas informais há alguns anos e elas mostram que o favorito hoje é
o 23, que não foi citado nem uma vez no Novo Testamento. Não preten-

do ser hostil ao confrontar nossa preferência com a dos primeiros cristãos. O Salmo 23
merece sua popularidade. Ele trouxe, e continua trazendo, a palavra verdadeira de Deus
e desenvolve um relacionamento profundo e autêntico com Ele nos que o oram. Mas o
110 não merece ser esquecido: é extremamente importante, escrito com arte e vigor, e
nos dirige em uma oração que tira o ego do centro

- nos resgata do egocentrismo, voltando nosso foco para o ser e a ação de Deus. As
conseqüências de orá-lo são imensas para os que desejam agir diante do mal que assola
o mundo.

Equilíbrio perfeito

As duas sentenças mais importantes são oráculos de discurso direto de Deus: O Senhor
disse ao meu Senhor: “Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus inimigos um
estrado para os teus pés ” (v. 1) e O Senhor jurou e não se arrependerá: “Tu és
sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque ” (v.4). Esses dois
versículos dominam o Salmo e o dividem em duas partes perfeita-mente equilibradas.
David Noel Freedman fez a observação surpreendente de que cada estrofe (em
hebraico) tem setenta e quatro sílabas - equilíbrio perfeito! 4

A estrutura - “O Senhor disse ... O Senhor jurou”

- por ela mesma já responde pela proeminência do texto no século 1. As pessoas que
conhecemos, através do Novo Testamento, se interessavam acima de tudo, em ouvir
o que Deus tinha a lhes dizer. A sede que sentiam por receber mais do que sabiam ser
as boas novas era insaciável. O apetite pela Palavra de Deus, incessante. Eles eram
como

Ezra Pound em Homage to Sextus Propertins: “Conta-me, conta-me, conta-me tudo,


ávido espero, com ouvidos bem abertos!”.5

Talvez seja exatamente essa base - “O Senhor disse... O Senhor jurou” - o motivo do
esquecimento na atualidade. As vozes religiosas que comandam as maiores
audiências em nossa sociedade fazem publicidade do ego - religioso, claro, mas mesmo
assim, ego. As distorções de raízes profundas, que levam a humanidade a pensar
primeiro em si, foram institucionalizadas na economia e sancionadas pela psicologia.
Agora arranjamos religiões no mesmo estilo, que aumentam nosso potencial e nos fazem
sentir bem a respeito de nós mesmos. Queremos orações que nos tragam benefícios
diários na forma de padrão de vida mais elevado, com milagres ocasionais para aliviar
o tédio. Nos aproximamos da Bíblia como consumidores, esquadrinhando os textos
para encontrar alguma pechincha. Vamos ao culto como epicuristas emocionais,
acreditando que o divino deve fornecer um suplemento agradável de pôr-do-sol
e sinfonias. Lemos “O Senhor é meu pastor, nada me faltará” e nosso coração vibra.
“Você não temerá o pavor da noite” e ficamos tranqüilos. “Não nos trata conforme os
nossos pecados” e começamos a pensar que talvez tenhamos sido rigorosos demais
conosco mesmos. Mas quando lemos “O Senhor disse ... O Senhor jurou” o interesse
diminui e pegamos o jornal para verificar como anda a bolsa de valores.

Provavelmente não somos piores que as pessoas do século I. Elas também agiam assim.
Notável, contudo, é

que, no meio da sensualidade e oportunismo religiosos, um grupo de pessoas conseguiu


desenvolver o prazer de ouvir o que Deus tinha a dizer nos termos dEle, tanto que
tomaram como oração favorita a que centralizava a vida nas palavras dEle: “O Senhor
disse ... O Senhor jurou”. Orar o Salmo 110 enfocou a atenção deles na palavra de
Deus e envolveu a vida deles na obra de Deus.

Acertos no meio do caminho

A repetição “O Senhor disse ... O Senhor jurou” enfatiza Deus no centro,


estabelecendo o centro. A repetição é funcional: depois de chamar, prende a atenção.
Muito comum na vida do Espírito é começar certo e terminar errado. Somos lançados
ao caminho da fé pela palavra de Deus (“O Senhor disse”), mas depois nos desviamos.
Acertos (“O Senhor jurou”) são necessários para manter o enfoque no centro correto.

O ego é persistente. Em silêncio, de forma sutil e com engenhosidade, consegue voltar


ao centro. Temos profissão a desenvolver, responsabilidades institucionais a
manter, família a alimentar e jardins a cuidar. Há causas em que investimos grande
porção de nossa identidade. A certa altura encontramos o centro em “O Senhor disse”,
mas uma preocupação urgente nos distraiu, ou um novo assunto absorveu nossa atenção.
Claro que continuamos religiosos, mas a religião foi se tomando um cenário confortável
e seguro para o ego, que ocupa a posição central. Sem perceber, nos transformamos em
escriturários esforçados na casa da criação, preocupados com a clareza dos livros de
controle, mas alheios às trocas fantásticas e extravagantes de graça e misericórdia que
acontecem em todo lugar quando Deus

fala. Víramos editores intrometidos para os que nos cercam e estão aprendendo a contar
a história do amor salvífico de Deus em sua vida: apagamos virgulas, trocamos pontos
e vírgulas, ficamos irritados com a pieguice da história que contam em sintaxe afobada
e estranha. Então estamos prontos para um acerto no meio do caminho, à moda
do Salmo 110: “O Senhor jurou”!
E compreensível permitirmos, sem perceber, que as preocupações do ego usurpem a
adoração a Deus, mas não é inevitável. E comum, mas não necessário, que a admiração
diante da palavra centralizadora de Deus escoe pela peneira do dia-a-dia. Meus amigos
Larry e Ruth moram em uma fazenda, em um vale no estado de Montana. Alguns
quilômetros adiante, depois do vale, as Montanhas Rochosas iniciam sua subida e
chegam a mais de 2.000 m de altitude. Formam uma borda recortada no horizonte
que meus amigos enxergam, colorida em tons que variam de azul a verde à medida que
o sol avança pelo céu. Uma vez, eu estava na casa deles e comentei:

- Que lugar maravilhoso para trabalhar! Mas talvez vocês estejam tão acostumados que
nem notem mais a beleza.

Eles responderam:

-Ah, não! Paramos para contemplar várias vezes todos os dias. A beleza muda sempre:
cada vez que olhamos somos envolvidos por novas variações.

Nem sempre a familiaridade gera desprezo, mas os lembretes são necessários: “O


Senhor disse ... O Senhor jurou”.

O Salmo 110 estabeleceu sua distinção na comunidade cristã primitiva fazendo o ego se
voltar para o Deus

que fala. Eles sabiam que viviam em um mundo arruinado e que precisavam tomar
alguma atitude. Sabiam também que as boas obras e grandes intenções eram tão falhas
que só conseguiam piorar a situação. Mas eles tinham consciência de que isso não os
desqualificava para o trabalho: haviam sido chamados para a obra de Deus em Cristo
para estabelecer Sua vontade “na Terra como no Céu”.

Para fazer isso, oravam o Salmo 110, que moldou o entendimento de quem eles eram e
do lugar que ocupavam no mundo através da declaração: quando Deus fala, as coisas
acontecem. Gênesis 1 lhes ensinara o que deveríam esperar. A palavra de Deus cria:
Disse Deus ... E assim foi. Em Gênesis 1, a palavra de Deus criou o mundo, no
Salmo 110 ela estabeleceu o Messias, o Cristo.

O messianismo estava na moda no século I. Por toda parte pululavam salvadores,


vendedores de milagres e messias de todo tipo, com projetos para a salvação
do mundo. Todos se envolviam com isso, de uma forma ou de outra. A vida fervia de
agitação, mas também havia muita confusão. Parecia que ninguém seria capaz de
entender o que estava acontecendo, ninguém conseguiría separar a verdade da mentira.
As magníficas pedras fundamentais da revelação bíblica da experiência hebraica
estavam dispersas como entulho, contaminadas pelos germes vindos da Grécia, Roma,
Pérsia e Egito. Aparentemente, era impossível discernir uma verdade coerente no meio
do caos. A religião estava “sem forma e vazia; trevas cobriam a face do abismo”.

Jesus de Nazaré nasceu nesse mundo. Pobre, sem poder, obscuro, Ele era um messias
bem improvável. Então

Deus falou:

O Senhor disse ao meu Senhor:

“Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus inimigos um estrado para os teus
pés”.

Um rei veio a existir, um que traz ordem, beleza, justiça e paz. Deus voltou a falar:

O Senhor jurou e não se arrependerá:

“Tu és sacerdote para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque”.

Um sacerdote que coloca as pessoas em relacionamento perfeito com Deus foi formado.
Deus falou e criou o Messias rei-sacerdote, exatamente como havia falado para criar o
mundo. Nascimento, ministério, sofrimento, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré se
reuniram e deram forma a toda verdade e revelação que estavam dispersas e as colocou
em um evento reconhecível, orgânico e pessoal - um ato assombroso de redenção.

Com os dois oráculos (versículos 1 e 4) como âncoras, o Salmo elabora metáforas e


não argumentos para mostrar o Messias atraindo, sem coerção, exércitos cheios de
esperança para se colocarem sob sua liderança:

Quando convocares as tuas tropas, o teu povo se apresentará voluntariamente.

Trajando vestes santas,

desde o romper da alvorada

os teus jovens virão como o orv alho.

Um segundo grupo de metáforas mostra Deus estabelecendo seu governo apesar de toda
oposição:

O Senhor está à tua direita;


ele esmagará reis no dia da sua ira.

Julgará as nações, amontoando os mortos e esmagando governantes em toda a


extensão da terra.

A sentença final é inesquecível:

No caminho beberá de um ribeiro, c então erguerá a cabeça.

Os primeiros cristãos viam o Senhor Jesus nessa imagem: o rei-sacerdote entre nós, em
nosso nível, sedento em sua humanidade, ajoelhado à beira do riacho. Depois,
renovado, com a cabeça erguida, prossegue em seu caminho, governando e salvando. O
grandioso e o simples se integram, o pessoal e o político se unem nessa imagem.6

Essa versão do Messias era totalmente destituída de atrativos para os arrogantes deste
mundo. Eles queriam alguém que usasse o poder para colocar a vida de volta nos
trilhos. Por isso, desprezaram esse. A imagem não teve melhor sorte com os piedosos
tímidos. Um Messias com

sede e ajoelhado era vulnerável e comum demais para eles. Buscavam alguém que os
tirasse das limitações e humilhações de todos os dias. Mas, para os que estavam
aprendendo a orar e se envolviam na ação de Deus a respeito da postura de Jesus, a
imagem era exata.

O Messias é reunido em funções fragmentadas de governo e salvação, reinado e


sacerdócio. Na antiguidade (na pessoa de Melquisedeque), os ofícios de rei e sacerdote
eram uma única função orgânica. Mas eles se separaram e, em lugar de se
complementarem, com a maior freqüência entravam em conflito e competição ao invés
de serem partes coordenadas de um todo. O rei representava o poder de Deus para
governar, moldar e orientar a vida. O sacerdote mostrava o poder de renovar, perdoar e
revigorar. O primeiro, associado ao palácio, operava no mundo externo da política. O
outro, ligado ao templo, agia no mundo interior do espírito. O rei era especializado em
relacionamentos horizontais, humanos. O sacerdote, em verticais, espirituais. Dar
estrutura à vida era responsabilidade do primeiro, dar vida à estrutura, do outro.
Obviamente, foram feitos um para o outro, mas não agiam assim. Então, diante dos
olhos de alguns palestinos, tudo se uniu na vida de Jesus. O Salmo 110 descreve como
isso aconteceu na formação do Messias.

Deus governou e salvou, e os dois atos foram a mesma coisa. Todas as partes do
universo e da história encontraram seu lugar e fizeram sentido. Todos os anseios e
apetites do espírito chegaram ao fim. A vida externa e a interna se mostraram uma só
coisa: a vida de Deus em Jesus Cristo, Senhor e Salvador.

Reunido

Então aconteceu outra coisa - se possível, ainda mais maravilhosa. Ao mesmo tempo
em que descobriam essa reunião e centralização de todas as coisas no
Messias, descobriram também que estavam centrados, ou seja, haviam abandonado o
domínio do ego, que, perturbado e en-sandecido, pela tentativa de agradar centenas de
deuses e evitar milhares de demônios, agora estava livre dessa tarefa impossível. A
busca desesperada de encontrar respostas e adquirir conhecimento, que estabelecería
uma segurança parecida com a de um deus, havia acabado. A moralidade obsessiva que
as pessoas acreditavam que as prepararia para irem ao Céu e que só conseguia fazê-las
mais infelizes fora abandonada. Todos os sistemas gnósticos, exercícios morais e
superstições foram jogados fora: “Senta-te à minha direita até que eu faça dos teus
inimigos um estrado para os teus pés” - o governo foi estabelecido. “Tu és sacerdote
para sempre, segundo a ordem de Melquisedeque" - a redenção está completa. O
mundo também foi reunido para que fizesse sentido. O Salmo 110 colocou as
verdades multifacetadas da Palavra de Deus, que cria o Messias em forma de oração,
que mantém a vida de fé atenta e pronta a responder à grande variedade de obras que
Deus realiza em cada pessoa e no mundo todo. Sabendo isso, ninguém se surpreende de
ver que era o Salmo predileto no século I.

Uma agenda nada modesta

Amitai Etzioni, sociólogo israelita que imigrou para os Estados Unidos, estabeleceu
com paixão urgente o que ele chama de “uma agenda nada modesta” para fazer
alguma coisa quanto ao rápido declínio da civilização na América.

Ele abandonou a fria objetividade acadêmica e faz apelos fervorosos por um


compromisso com o bem comum na sociedade e na nação. Está convicto de que esse
compromisso precisa vir não de um novo plano social ou programa legislativo, mas de
uma ação generalizada no sentido de acabar com o domínio do ego. Escreveu:

Minha tese é que milhões de indivíduos, pilares de uma sociedade livre e de uma
economia vigorosa, afastaram-se uns dos outros e perderam a eficácia. ... A
necessidade de reconstruir a economia, a segurança nacional e a comunidade
requer filosofia social e orientação individual muito menos centradas no ego.7

Defende que a sociedade precisa ser reconstruída do zero por lideranças que mostrem
que o egoísmo e outras psicologias em moda na última década não funcionarão para
a longa jornada.

E mesmo uma agenda nada modesta, mas não chega nem perto da que Cristo estabeleceu
para Seus seguidores, que adquiriram a fama de colocar o mundo de pernas para o ar.
Eles descobriram bem no início que só a oração era pessoal, a ponto de acabar com o
domínio do ego, e abrangente a ponto de incluir todos os aspectos do mundo decaído na
ação pessoal e política do Messias. A freqüên-cia com que oravam o Salmo 110
constitui evidência dessa descoberta. Ao contrário de nossos profetas e
moralistas seculares, eles foram muito além da análise e do ímpeto - tinham uma
estratégia plausível que colocaram em ação com fidelidade em suas orações. De lá para
cá, não se pas-

sou um dia sequer sem que cristãos (às vezes poucos, às vezes muitos) orassem o
Salmo 110 e orações semelhantes a ele. Os recrutas continuam se juntando à tropa.

Deus deixou bem claro que não se contenta em resgatar umas poucas almas da
condenação. A redenção foi concebida em uma escala que excede muito nossa
capacidade de entender - envolve novo Céu e nova Terra. As pessoas que oram se
envolvem tanto com o rei que estabelece seu governo no cosmos quanto com o
sacerdote que trata as pessoas, diante de Deus. Na oração participamos da ação
oscilante pessoal/política de Deus, do centro para a periferia.

Capítulo 4
1

Donald Baillic, God Was in Christ (Londres: Faber & Faber Ltd., 1956), pág. 43-
44.

Thomas Hardy, The Complete Poems (Nova Iorque: Macmillan, 1982), pág. 572.

A. F. Kirkpatrick. Commentary on lhe Psalms (Londres: Cam-bridgc University


Press, 1947), pág. 1947.

Citado por Dahood, The Psatms, 3:113.


5

Ezra Pound. Seleaed Poems (Nova Iorque: New Dircctions. 1957), pág. 82.

Os eruditos modernos reconstroem imagem semelhante, mas em termos de uma


antiga cerimônia de entronização em que o rei era levado ao sopé da colina de
Jerusalém, ao manancial de Giom. Ali, bebia a água em ato sacramental e era
ungido pelo sacerdote. Depois, com a cabeça erguida, voltava ao templo cercado
por júbilo e alegria, acompanhado pelos gritos de “Longa vida ao rei!”. (1 Reis
1.32-40). Hans-Joachim Kraus, Psalms 60-150 (Minneapolis: Augsburg. 1989),
págs. 76 e seguintes.

7
Amitai Etzioni, An Immodext Agenda (Nova Iorque: New Press,

1983).
Governo de Deus
SALMO 93

O Senhor reina! Vestiu-se de majestade; de majestade vestiu-se o Senhor e armou-se


de poder! O mundo está firme e não se abalará.

O teu trono está firme desde a antiguidade; tu existes desde a eternidade.

As águas se levantaram, Senhor, as águas levantaram a voz; as águas levantaram


seu bramido.

Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais poderoso do que as
ondas do mar é o Senhor nas alturas.

Os teus mandamentos permanecem firmes e fiéis; a santidade, Senhor, é o


ornamento perpétuo da tua casa.
Material com direitos autorais

A soberania que cruzou os mares rumo ao Novo Mundo era nova. Instalou a era da
soberania humana absoluta - o que significa era da presunção humana absoluta.
Há um soberano agindo no universo. Sua ganância é infinita e ele procura fazer
valer seus direitos.

WENDELL BERRY 1

Presumo que as crianças gregas cresçam convencidas


de que a Grécia é o melhor país do mundo.
Provavelmente as chinesas pensam o mesmo sobre a
terra delas. As da Tanzânia também. De qualquer
forma, sei que cresci com a firme convicção de que os
Estados Unidos são o melhor país, terra dos livres e
lar dos corajosos. Adquiri, ainda, a opinião vaga e
sólida de que vivia em uma nação cristã. Acreditava
que as montanhas e planícies de beleza
extraordinária, as imensas florestas e os rios
caudalosos eram recompensas de Deus à nossa
fidelidade. Os livros infantis e escolares me fizeram
sentir que minha terra tinha uma história cristã. O rei
George III da Inglaterra se encaixava muito bem na
figura do Faraó. Meus ancestrais sobreviveram a
perseguições cruéis e a travessia do Atlântico foi
como a do Mar Vermelho. Havia até mesmo tribos de
bárbaros hostis como os cana-neus, que ajudaram a
estabelecer paralelos convincentes entre os peregrinos da América e os filhos de
Israel. A América como Terra Prometida e os americanos como o povo escolhido de
Deus.

Esse povo desenvolveu a democracia como seu governo - autogoverno. Houve, em


outros momentos da

história, incursões na democracia, mas nada tão abrangente nem tão bem sucedido.
Moldada em uma terra que exibia todas as qualidades da terra prometida, entre pessoas
que viviam a dignidade do povo escolhido, dificilmente seria surpresa descobrir que a
democracia era vista, pura e simplesmente, como bênção de Deus. A versão da história
que me ensinaram dizia que após vários séculos sob o peso abusivo do domínio papal e
um milênio sob a ameaça do fanatismo islâmico, a democracia americana era boa
demais para ser verdade • - e era verdadeira.

Sob todos os aspectos, a democracia americana é um tremendo sucesso. Se há críticas


ao sistema político - e existem, algumas até muito penetrantes - em geral não se opõem
ao conceito de autogovemo, mas apenas a falhas na execução ou hipocrisia nas
instituições. Devemos admitir que há grandes defeitos em algumas de
nossas pretensões. Para muita gente as promessas ainda não se concretizaram. Ainda
assim, os críticos não parecem estar na fila de imigração para Cuba ou China. Após
séculos de governo de caciques, ditadores militares, reis, rainhas, conselhos e grupos
de revolucionários fervorosos, chegamos à democracia. Autogoverno é o clímax da
ciência política.

O cristão, com a memória histórica tão influenciada pela noção de promessa e bênção
divinas, dificilmente deixaria de concluir que o estilo de governo de Deus é conforme o
autogoverno. Mas essa conclusão fracassa na oração, onde descobrimos uma
realidade muito diferente daquela em que crescemos. O povo não é soberano - Deus é.
Orando, não penetramos em um mundo onde nossos desejos são bem representados e

depois colocados em leis que equilibram o máximo de liberdade com o mínimo de


interferência. A revelação bíblica apresenta o Deus a quem oramos como
inequivocamente soberano. Além disso, deixa claro que Ele pretende exercer Sua
soberania de forma total e arrebatadora. Tudo e todos se sujeitam a Ele. Não há divisão
entre realidade espiritual e material, como muitos supõem, com Deus responsável pelo
controle da primeira e os políticos da segunda. O domínio dEle é inclusivo e absoluto.

Assim, o ato da oração nos envolve em correntes poderosas que se cruzam: a


pressuposição rápida, barulhenta e flamejante do autogoverno e a crença
tranqüila, quieta e crescente na soberania de Deus. Apresentamos preces de submissão
a Deus como rei em uma atmosfera em que insistimos em votar para decidir todos os
assuntos. Creio que o orgulho pelo autogoverno inconscientemente subverte o
compromisso com a soberania de Deus em grau muito mais elevado do que costumamos
notar. Mas a subversão também opera em outra direção. A insistência entusiasmada na
autonomia leva à obediência grata ao controle de Deus. A maré que sobe absorve a
torrente que desce a montanha. Claro que isso acarreta conseqüências pessoais e
políticas.

O Senhor reina

Sete Salmos proclamam e celebram esse domínio.2 Provavelmente, tiveram origem em


uma festa de adoração do Dia de Ano Novo em Israel, quando era celebrada a
entronização soberana de Deus sobre o povo, as

nações, a Terra e o ano que iniciava.3 Esses Salmos ponderam e oram sobre o governo
de Deus com precisão e exuberância. A oração percebe como o governo de Deus se
espalha por toda parte. Além disso, altera e acaba substituindo os feudos insignificantes
onde tentamos controlar a vida com estardalhaço ou ficamos indolentes e permitimos
que os outros a dirijam. O Salmo 93 se destaca no grupo dos sete. Majestoso em sua
simplicidade destituída de arte, imponente na brevidade despretensiosa, memorável nos
ritmos fortes, ele atrai e convence. Uma das características da poesia hebraica é a
“rima” de significados e não de sons, o emparelhamento de sentidos semelhantes
ou contrastantes em linhas sucessivas. Podemos ver isso na estrofe de abertura,
separando as linhas em quatro pares de rimas de sentidos paralelos.

O Senhor reina!

Vestiu-se de majestade;

de majestade vestiu-se o Senhor

e armou-se de poder!

O inundo está firme

e não se abalará.

O teu trono está firme desde a antigüidade;

tu existes desde a eternidade.

Estes quatro pares de linhas constroem um “bloco sólido”. A soberania de Deus é uma
fortaleza estrutural. Isso é fato histórico e teológico. Político e espiritual. Terreno e
celestial. O povo de fé aceita essa soberania e se regozija nela. Desfruta de seus
imensos benefícios. Celebra os grandes dias santificados. Admira e se lembra
dos líderes importantes. Busca respeitar a legislação do reino e promover seus
objetivos.

Contudo, ao mesmo tempo vivemos sob outros governos. A entronização de Deus,


orada no Salmo 93, era repetida pelos hebreus nos muitos séculos em que eles
entronizavam seus próprios reis. Durante cerca de quinhentos anos o regime de governo
foi a monarquia. No decorrer dessa metade de milênio eles coroaram quarenta e dois
reis.4 Alguns foram magníficos, outros terríveis. Muitos foram simplesmente comuns.
Entretanto, cada um deles foi coroado em subordinação ao governo de Deus. Nenhum
tinha pennissão para pensar de si mesmo mais do que um ser humano com uma tarefa a
realizar. Nenhum cidadão tinha permissão para pensar nada diferente disso.

A coroação dos reis no lugar de culto, com o ritual, músicas e orações, levava a
imaginação do povo a considerar Deus, e apenas Ele, soberano. Nem sempre os reis

lembravam disso, e o povo também esquecia, mas pelo menos a base correta era
estabelecida. Atos de adoração os levavam continuamente de volta à convicção comum
de que o governo de Deus estava sendo exercido na política e na comunidade social em
que viviam. Orar impedia que eles viessem a supor que ter um rei era, de alguma forma,
mais importante do que ter Deus. Esse tipo de oração continuou sem alteração na época
do autogoverno. Uma geração após outra, de judeus e cristãos fazendo esse tipo de
oração, desenvolveu um sistema tão intrincado de envolvimento na política do domínio
de Deus, que nenhum governo está livre de desafios ou subversão da comunidade de fé.

Não é possível nem desejável que os fiéis se afastem das condições políticas de sua
época e vivam apenas em alegria “sob o poder de Deus”. Esporadicamente, há
uma tentativa de formar comunidades assim. Até hoje nenhuma deu certo, quer política
quer espiritual. A realidade inevitável é que, além de vivermos sob o domínio de Deus,
estamos sob a autoridade de rei, ditador, primeiro ministro, imperador, presidente,
general, que tem uma equipe de conselheiros, tribunais, senados, exércitos e
burocracias, que tratam da lei e da ordem, realizam o censo e ministram a justiça.

Alguns dirigentes alegam ter acesso direto à mente de Deus e ser imagem exata dEle no
governo. Outros reconhecem o domínio divino de modo geral, mas acreditam
serem eles os responsáveis pelo que acontece aqui, nesta nação. Alguns são tão
ousados que negam por completo a soberania de Deus e dão a palavra final em todos os
assuntos. O mais comum é mera indiferença para com o governo de Deus: acreditamos
nEle como Salvador e consolador, mas as questões

de governo - ir à guerra, recolher impostos, controlar os negócios e assinar tratados -


devem estar muito distantes da mente dEle, que já tem trabalho suficiente regendo o
coral de anjos e fazendo os registros no livro da vida.

Enquanto isso, uma convicção secreta persiste, teimosa: “O Senhor reina”. Bem aqui.
O trono dEle é a Terra, essa coisa em que pisamos todos os dias. Além do mais, o
governo dEle não tolera oposição: “não se abalará”. Segue-se que qualquer líder
terreno obcecado com o exercício do poder sem interferência - seja para manter o
ego sem contrariedades, a família na linha, a cultura intacta ou o governo sob controle -
enfrentará uma série de problemas quando as pessoas se puserem a orar. Isso é
verdade. Os séculos forneceram evidência mais do que ampla do que acontece: na
oração, discernimos e acatamos um governo melhor. Quando esse governo melhor entra
em conflito com o da nação, sociedade, família ou ego, os que oram transferem sua
lealdade. Alguns chegam até a cruz - como Jesus, literalmente, ou Paulo, de forma
metafórica.

Mas os sacrifícios são tiros pela culatra. Em lugar de destruir o governo de Deus, eles
o estabelecem. Esse povo que ora tem uma longa história de sofrer incompreensão
familiar, prisão pelo governo, demissão pelos patrões, desprezo por parte da cultura.
Contudo, parece não ligar muito, pelo menos não a ponto de abandonar sua
lealdade. Seu soberano é melhor, mais sábio e bondoso e todos estão felizes sob o
domínio dEle.

Dilúvios de desgoverno

Precisamos descobrir como eles chegam a tais convicções e lealdades e como as


mantêm. Longos períodos da

história parecem carecer de qualquer sinal do governo divino. Há passagens de nossa


experiência pessoal que parecem apenas confusão e desordem. Se quisermos afirmar e
obedecer ao domínio de Deus, temos que orar inclusive nas experiências freqüentes e
devastadoras de “desgoverno”.

As águas se levantaram, Sünhor, as águas levantaram a voz; as águas levantaram


seu bramido.

De nada adianta a terra estabelecida se as águas correm desenfreadas pela superfície


firme. De nada vale o trono de Deus seguro se águas violentas e implacáveis levam
tudo que está solto, deixando a terra limpa, mas nua. Não me traz consolo saber que o
solo sob meus pés é sólido se não consigo ficar em pé por causa das ondas que se
abatem sobre mim. Quando a tempestade chega, a Terra continua sólida como sempre
foi, mas o resto todo se abala. O firmamento também continua em ordem e digno de
confiança, mas tudo que existe entre céu e Terra é levado, sem qualquer cerimônia, para
a catástrofe.

Na história humana, as tempestades sempre chegam às manchetes. A Terra firme não


precisa de confirmação.

Está lá. Silenciosa. Sólida. Mas as águas levantam a voz, o rugido. As forças de
destruição e desintegração, as energias de dor e devastação, batem, forçam e gritam.
Andamos vários dias, e até anos, sobre a Terra sem dar a menor atenção à solidez
confiável e estóica, mas as tempestades não permitem essa falta de atenção. Podemos
passar o dia inteiro sem notar que estamos secos, mas se formos atingidos pela
tempestade teremos a consciência profunda de que ficamos molhados. Sendo a secura
nosso estado natu-

ral, nós a temos como certa. Ficar molhado é uma situação desconhecida e entramos em
pânico.

E impressionante a forma tremenda das inundações. Só os peixes que nadam nas águas e
os pássaros que voam acima delas escapam ao pavor. A água devasta a terra. Arranca
árvores enormes pela raiz. Revira rochas. A terra, tão sólida, fica cheia de sulcos, tem
seu contorno alterado, sofre com a erosão.

Além de ser iniciação à violência, inundação é metáfora para anarquia. As águas têm
sua contraparte na inundação de paixão, cuja característica notória é o descontrole. O
caos é inerente à luxúria e à cobiça. A agressividade humana remonta à Antiguidade e
requer intervenção. Por mais que nos desagrade alguém nos dizer o que devemos fazer,
tememos muito mais uma sociedade na qual cada um faz o que é certo a seus próprios
olhos (Juizes 21.25), decadência que aconteceu pelo menos uma vez na história dos
hebreus e não poucas na história mundial.

Mas sempre houve a retomada do governo. Caso contrário, não haveria história
humana. Todo governo é, de uma forma ou de outra, resposta à inundação. Se
não existissem inundações, não existiría governo. Ele se deve à anarquia. Se tudo e
todos convivessem em perfeita harmonia, o governo seria tão dispensável quando o
apêndice em nosso organismo.

Inundações encontram analogia em mercados, campos de batalha, famílias e


playgrounds: as regras foram estabelecidas, todos agem como esperado, estão se
divertindo e, de repente, alguém se enche de fúria e a busca pacífica se desintegra em
escaramuça de socos, gritos e pilhagem. Queremos saber se existe garantia contra isso,
se há uma

forma de acabar com as inundações destrutivas. Na Terra, construímos represas e


diques, na sociedade, formamos governos, equipamos a polícia e promulgamos leis. O
grau de sucesso varia. No tempo de Noé, o dilúvio foi a resposta na mesma moeda à
inundação de violência que assolava a Terra: A terra estava ... cheia de violência
(Gênesis 6.11,

13), e então, as águas do Dilúvio vieram sobre a terra (7.10). Mas isso não acontecerá
mais. A violência não será mais tratada com violência: nunca mais haverá
dilúvio para destruir a terra (9.11).

Mais poderoso do que o estrondo das águas impetuosas, mais poderoso do que as
ondas do mar é o Senhor nas alturas. (Salmo 93.4)*

A soberania de Deus faz frente ao dilúvio anárquico.

As águas levantam a voz três vezes. O poder de Deus se mostra soberano também três
vezes. Esses pares de trios ressoam pela memória bíblica. Três palavras
soberanas confrontaram e derrotaram os três testes que o diabo fez para Jesus (Mateus
4.1-11). Três afirmações de amor contrabalançaram as três negações de Pedro (João
21.15-19).

A tríplice confirmação de que “minha graça é suficiente”

(2 Coríntios 12.8-9) se coloca diante dos três protestos de Paulo contra seu “espinho”.
Lucas narra três vezes a conversão de Paulo, indo contra as três vezes que falou
sobre as atividades terroristas dele na igreja primitiva.5

*. A tradução cm língua inglesa desse versículo é. literalmente: “Mais poderoso do


que o estrondo de muitas águas, mais poderoso do que as ondas

do mar, o SENHOR nas alturas c poderoso!”. A palavra “poderoso” aparece três


vezes, e a partir disso o autor estabelece seu raciocínio. Esse fato deve estar na
mente do leitor para entender o trecho que se segue. (N. da T.)

5. Atos 8.1,3; 9.1; compare com 9.1-19; 22.4-16; 26.9-18.

Em todos esses eventos, a soberania de Deus não foi meramente afirmada, foi sentida.
O governo dEle não é um dogma que se deduz a partir de conceitos de Sua onipotência,
é testemunho que articula a experiência de gente sofrida e ferida que prosseguiu para
viver o governo dEle como “mais poderoso”.

Esse testemunho tem implicações imensas, pois se Deus não for soberano eu vivo, de
fato, no meio do caos. O acaso e a sorte permeiam o universo. Por outro lado, se Ele
governa, há uma ordem fundamental. Nenhum acidente é mero acaso. Nenhum caos é
definitivo. Nenhum conflito é essencial. Quaisquer que sejam as vontades, poderes e
influências sobre mim e à minha volta, há algo que é primeiro e último, inicial e final: o
Senhor é mais poderoso. A vida não é uma empreitada aleatória dirigida por um grupo
que se reúne a cada quinze dias, com cada membro sujeito a pressões intensas de
interesses especiais, inclinado a ter favoritos entre os amigos e os parentes. Há projeto
e ordem no mundo. Posso planejar, ter esperança e acreditar. A confusão e o conflito
que tumultuam a história estão limitados por clareza e paz mais amplas.

As reverberações dessa oração alcançam o batismo de Jesus. Os primeiros cristãos


identificavam continuidade entre as águas de julgamento, de onde Noé foi salvo e
abençoado com novo começo, e as do batismo, de onde Jesus emergiu para nossa
salvação e para estabelecer nova aliança. A descida do Espírito Santo em forma de
pomba quando ele saiu da água era associada com a evidência trazida pela pomba do
surgimento de vida após o Dilúvio. A bênção de Deus a Noé, que incluiu ampla
delegação de autoridade, encontra paralelo na voz celestial dirigida a
Jesus: Este é o meu Filho amado (Mateus 3.17). A frase é citação do Salmo 2, e,
assim, não é expressão de afeto, mas declaração de autoridade: o Messias emerge do
abismo de morte e governa sobre o caos. “Mais poderoso do que as ondas do mar é o
Senhor nas alturas.”

Força não é atributo de Deus

Como esse governo de Deus, mais poderoso do que as ondas do mar, se toma
realidade? Como entra em nossa história? Como acontece em nossa vida? Três
linhas descrevem:

Os teus mandamentos permanecem firmes e fiéis; a santidade, Senhor, é o


ornamento perpétuo da tua casa.

Teus mandamentos permanecem firmes e fiéis. Dominam as ondas. A violência do mar


não é enfrentada com violência dos céus. “A força não é atributo de Deus”, disse Inácio
de Antioquia. Afirmação espantosa, mas totalmente bíblica. Deus governa neste mundo
por palavras e não músculos, por decretos e não exércitos, fala de criação e não de
coerção. Esses decretos, que podem ser tão ignorados e distorcidos, são repetidos era
após era por profetas, sacerdotes, reis, sábios, apóstolos e discípulos. O governo se
mantém através dos decretos.

Há urgência em fazer frente à violência mundial que desafia Deus nos próprios termos
dela - acabar com ela, enfrentá-la com poder puro e simples. “Senhor, queres que
façamos cair fogo do céu para destrui-los? ” (Lucas 9.54) Mas ninguém forçará Deus
a agir contra seu caráter.

A Palavra dEle governa: os decretos dele permanecem firmes. Só eles, nada mais. A
aparentemente frágil Pala-

vra de Deus se coloca contra as ações arrogantes e in-timidadoras do mundo. Violência


e arrogância diminuem e se desgastam, a palavra permanece firme como sempre. Firme
(ne’emnu) foi traduzida, em vários contextos, como “fiel”, “imutável”, “fundamental”.
Outra forma da Palavra conclui e confirma as orações: amém, sim, firme e confirmado,
muito certo.

“Teus mandamentos” coloca para funcionar a energia - da providência e da redenção -


que finalmente vence, superando os espasmos de violência que chegam às manchetes.
Poucas vezes os jornalistas e historiadores reparam nesses mandamentos, mas há
sempre uns poucos observadores, pessoas contemplativas que permanecem atentas. Na
mesma Jerusalém em que o Salmo 93 foi orado em devoção e desafio por
tantos séculos, Amos Oz, um novelista moderno de Israel, cria a personagem Hanna,
para testemunhar a energia soberana que até hoje opera na cidade, sem que a violência
internacional e o secularismo banal reparem ou comentem. Um dia, ela está na janela da
cozinha, olhando para fora:

Havia, pendurado no ramo de uma figueira que crescia em nosso jardim, um


caldeirão enferrujado. Fazia anos que estava lá. Talvez um vizinho, morto há muito
tempo, o tenha jogado pela janela do apartamento superior e ele tenha se agarrado
nos galhos. Já estava lá, coberto de ferrugem, perto da janela de nossa cozinha,
quando nos mudamos. Quatro, cinco anos. Nem os fortes ventos do inverno haviam
conseguido derrubá-lo. No entanto, no Dia de Ano Novo, eu estava na pia da
cozinha quando vi, com meus próprios olhos, o momento em que ele caiu. Nenhuma
brisa moveu o ar, nenhum gato. nenhum pássaro tocou nos galhos. Mas forças
poderosas entraram

cm ação naquele instante. O metal enferrujado se desintegrou e o caldeirão caiu no


chão, fazendo muito barulho.

O que quero dizer é que durante todos aqueles anos eu observei o repouso
completo de um objeto no qual acontecia um processo oculto, durante todos
aqueles anos.5

Não longe dali, a algumas centenas de metros, o Salmo 93 havia sido orado nas
celebrações do Dia de Ano Novo na entronização do Senhor, aquele cujos
“mandamentos permanecem firmes”. Forças poderosas agiam em “todos aqueles anos”.
E continuam.

Uma segunda linha descreve como se entende o governo de Deus: a santidade... é o


ornamento... da tua casa. “E o ornamento”éumatraduçãofracaparana’wah, palavra em
que há uma qualidade pulsante em som e sentido: “tornar adorável, adornar de forma
vistosa”. Na’wah é quieto e forte como o pulso. O livro bíblico que mais utiliza o
termo é Cantares de Salomão,6 no contexto do diálogo de apaixonados. No amor
erótico, duas vontades poderosas e soberanas se tocam e reagem. Se uma força a outra,
surge o horror do estupro. Se uma se submete à outra, nasce o enfado da aquiescência
servil. Só quando as duas vontades são desenvolvidas e expressas por completo, em
relacionamento responsivo, nós celebramos a beleza.

E compreensível essa palavra ocorrer com tanta frequência nos diálogos que celebram
a intimidade do amor

humano, mas é surpresa encontrá-la no Salmo 93, que comemora o governo divino no
mundo descontrolado. Esperamos encontrar imagens de encanto e beleza em músicas de
amor, mas acreditamos que o governo requer um contexto mais frio, marcado por
severidade e eficiência.

Mas Deus não abandona Seu caráter essencial quando governa. Imutável em Seu amor e
Sua profunda santidade, Ele é Ele mesmo em Seu governo. Não deixa de lado as vestes
de amor santo quando exerce Seu domínio sobre a lama da história humana. Os meios
do governo de Deus são consistentes com Seus fins: santidade, a beleza gradual,
paciente e penetrante de Seu domínio em nosso mundo secularizado, violado e
profanado.

Senhor ... perpétuo. A terceira linha afirma o domínio no tempo. “À medida que os dias
se estendem pela história” capta o tom do termo hebraico “perpétuo”, 1’orek
yamim. Não se trata de um governo eterno no Céu, alheio à história humana. É o
governo de Deus surgindo no calendário. A oração não é a espera paciente do fim da
história, quando o governo se efetivará, mas é a participação paciente no governo atual.
O domínio de Deus não está sendo preservado para começar em uma data futura, após
séculos de governos humanos fazerem o melhor (ou o pior). Deus governa hoje. Ele não
depende de reconhecimento público.

Saibam ou não, homens e mulheres vivem sob o governo de Deus. Alguns em rebeldia,
por desafio ou ignorância. Outros em obediência relutante ou dedicada. Mas ninguém
escapa. O governo divino é a premissa de nossa existência. Não existem dias em que
Ele não opera. A semana não se divide em um dia do Senhor, quando reconhecemos
Seu governo, e seis dias humanos em que in-

dústrias, bolsas de valores, legislaturas, personalidades da mídia e juntas militares


assumem o controle e governam com mentiras, armas e dinheiro. O governo também
não se restringe a intervenções ocasionais que mais tarde são lembradas como grandes
eventos históricos - êxodo, exílio, Natal e Páscoa.

Claro que nada disso é óbvio. Os mandamentos do governo são inaudíveis aos ouvidos
incrédulos, sua beleza, invisível aos olhos céticos e sua atualidade não está aparente
para mentes ansiosas e corpos feridos. Mas muitas realidades grandes e importantes
não são óbvias: a estrutura atômica da matéria, por exemplo, ou as propriedades da
luz e as complexidades da linguagem. Ainda assim, mesmo quando entendemos errado,
ou não entendemos, continuamos a segurar objetos, enxergar formas e falar palavras.
De modo semelhante, nem a ignorância nem a indiferença diminuem o governo de Deus.
Dia após dia “O Senhor reina”. Levando em conta paixões rebeldes, temperamentos
maliciosos e vontades preguiçosas de milhões de pessoas, junto com boas intenções,
desorientação desamparada e aventuras fora de hora de outros milhões - para não falar
do amor disciplinado, obediência purificada e serviço sacrificial de ainda outros
milhões - nosso Soberano usa para agir tudo que é material, pessoal e político. Usa
tudo para moldar a existência. Não parece ter pressa, mas a oração discerne
que lentidão não é sinônimo de indolência nem de negligência. No final a vontade do
soberano é feita.

Agora a simetria está completa: três linhas de violência anárquica contrabalançadas por
três linhas do governo mais poderoso do Senhor, exposto em três linhas da forma como
ele é administrado.

Egotismo escondido

Assim, a oração é uma atividade subversiva. Envolve um ato mais ou menos aberto de
desafio contra qualquer alegação de perfeição do regime corrente. “Egotismo
escondido”, afirma Herbert Butterfield, “talvez seja, em todo o planeta, a maior causa
de conflitos e problemas políticos.” 8 Professor de história moderna na Universidade
de Cam-bridge, Butterfield dedicou sua carreira a pesquisar o processo histórico que
levou a civilização à situação presente. Mas, para ele, o “egotismo escondido” é a
maior influência. Se ele está com a razão, o chamado para orar, ato que revela o
egotismo e começa a tomar providências contra ele, é um remédio excelente para os
problemas políticos.

Deus governa. A oração desenvolve em nós a percepção disso: intenções, caminhos,


estratégias e mandamentos dEle. A afirmação clara de Jesus - “Quem ama seu pai
ou sua mãe mais do que a mim não é digno de mim ” (Mateus 10.37) - toma relativas
todas as outras autoridades: familiar, jurídica, cultural ou governamental. Ao fazer
essa oração, mudança interessante acontece em nós. Ao passo que a lealdade deixa
nação, clube, raça ou qualquer outra filiação, a verdadeira capacidade de estabelecer a
comunidade cresce. Muitas vezes o patriotismo não passa de egotismo insuflado. A
oração reduz a estridência dos protestos políticos mas aumenta nossa habilidade como
cidadãos - compromisso, envolvimento, valores, paixão pela justiça social. Ao orar,
tomamos consciência da grande soberania de Deus. Descobrimos ainda inclinação cada
vez maior à obediência. Devagar, mas com certeza, nenhuma cultura,

8. Herbert Butterfield, Writings on Christianity and History■ (Nova Iorque:


Oxford University Press, 1979), pág. 57.

família, governo, emprego, nem mesmo o ego tirano, pode se colocar contra o poder
silencioso e a influência criadora da soberania de Deus. Todo laço natural de família e
raça, todo compromisso de vontade com pessoas e nações se subordina, por fim, ao
governo de Deus.

Capítulo 5
1

Wendell Berry, The Unsettling of America (Nova Iorque: Avon Books, 1977), pág.
55.

2
Salmos 47. 93, 95-99.

Esses Salmos, com a expressão característica “o SENHOR reina”, são uma


apologia contra todas as pretensões de domínio de outros deuses, e reis que
intentam ser deuses. Sigmund Mowinckel, grande estudioso dos Salmos, nascido na
Noruega, afirmou que eles eram cantados em um ritual do Dia de Ano Novo, em um
ato de adoração, que saudava Deus como rei, que renovava seu domínio recriando
o mundo. “Há, nessa proclamação, uma confissão contra as grandes monarquias
orientais e sua religião. Nem Mar-duque, nem Assíria, só Jeová reinou, continua
reinando e ainda será rei depois que todos os outros poderes desvanecerem. É
necessário traduzir Yah-weh malak: Jeová tomou-se rei (na primeira criação),
toma-se rei (hoje, na entronização no Dia de Ano Novo, o dia em que o mundo é
renovado por Ele) e se tomará rei (no dia da ‘segunda’ criação escatológica).”
Johannes Hemple, Inlerpreters Dictionary of the Bible, 3:949. Veja também H.
H. Rowley, The Old Testament and Modern Studv (Londres: Oxford
University Press, 1952), págs. 190-192.

4
Esse número inclui os reis do reino unificado e os do sul e do norte depois da divisão.

Amos Oz, Mv Michael (Nova Iorque: Alfred A. Knopf, 1972), pág.

115.

6
Como nome em Cantares 1.10 e como verbo cm 1.5.2.14.4.3 e 6.4.
Ajudado por Deus
SALMO 46

Deus é o nosso refúgio e a nossa fortaleza, auxílio sempre presente na adversidade.

Por isso não temeremos, ainda cpie a terra trema e os montes afundem no coração do
mar, ainda que estrondem as suas águas turbulentas e os montes sejam sacudidos
pela sua fúria.

O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Há um rio cujos canais alegram a cidade de Deus, o Santo Lugar onde habita o
Altíssimo.

Deus nela está! Não será abalada!

Deus vem em seu auxílio desde o romper da manhã. Nações se agitam, reinos se
abalam; ele ergue a voz, e a terra se derrete.

O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Venham! Vejam as obras do Senhor, seus feitos estarrecedores na terra.

Ele dá fim às guerras até os confins da terra; quebra o arco e despedaça a


lança; destrói os escudos com fogo.

“Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus! Serei exaltado entre as nações, serei
exaltado na terra. ”

O Senhor dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Na vida Cristã, nada, absolutamente nada, pode ser comprado em lojas de artigos
jaça você mesmo.

HARRY BLAMIRES 1

Tenho um amigo, pastor de uma igreja em Balti-


more, que foi assaltado numa noite de verão,
enquanto estava passeando com o cachorro. O ladrão
pegou o relógio e a carteira dele e então, só para
mostrar quem estava no comando, jogou meu amigo
no chão e deu vários chutes nas costelas dele.
Encontrei-o alguns dias depois. Estava ferido, sentido
dor e emocionalmente abalado pela violência que
sofrerá. Disse-me que estava animado com uma
viagem que faria na semana seguinte, para o
estado do Wyoming. Ia passar um mês no Parque
Nacional Grand Teton, bem longe da cidade
dominada pelo crime.
Voltei a me encontrar com ele seis semanas depois. Estava com o braço na tipóia.
Perguntei o que havia acontecido e ele contou que estava andando à cavalo
nas Montanhas Rochosas em Wyoming. A região, de altitude elevada, é imaculada e
maravilhosa. E impossível abrigar pensamentos negativos num local tão maravilhoso.
Mais impossível ainda é agir com perversidade. O criminoso mais próximo se encontra
a pelo menos cem quilômetros de distância. De repente, o cavalo empinou, assustado
por uma sombra, e meu amigo caiu, contorcendo-se de dor pelo braço quebrado. Ele
comentou:

- E mais seguro andar à noite nas ruas de Baltimore do que de dia nas montanhas de
Wyoming - a natureza intocada tem vinte maneiras diferentes de matar uma pessoa.

Acordamos todos os dias para um mundo violento. Há destruição por toda parte. As
pessoas gritam e se atacam mutuamente. E arriscado sair de casa à noite. Mas também é
perigoso percorrer trilhas nas montanhas durante o dia. O mundo vai mal: os recursos
são usados em orgias de glutonaria e a beleza tem sido devastada em uma escala sem
precedentes. As pessoas sofrem torturas, maldições e desprezo em uma epidemia de
desumanização. Estatísticas são compiladas e divulgadas a cada ano. Os números são
estarrecedores: assassinatos, estupros, assaltos, roubos, abuso infantil, abuso conjugal,
terrorismo político, guerra. As crueldades que as pessoas criam para infligir às
outras superam nossa capacidade de suportar. Vendo o que as pessoas fazem umas com
as outras e com a terra, sentimos vontade de ir morar nas montanhas. Mas, logo que
chegamos lá, descobrimos outro tipo de violência: um vulcão entra em erupção e
destrói a montanha, um rio transborda e inunda a fazenda, um terremoto abre uma fenda
na terra e vira de cabeça para baixo e engole tudo que havia na superfície.

A Terra é um local violento. Tanto na cidade quanto no campo. Quando as pessoas se


reúnem e quando ficam isoladas. Queremos vida segura e confortável. Tudo
sob controle. Desejamos excluir o mal, o perigo e o desastre. Colocamos cadeado na
porta e cerca em volta do terreno. Chamamos policiais para vigiar a rua. Construímos
arsenais de armas e os distribuímos por todo o mundo. E, com todo esse esforço, a
violência não diminui em nada.

Orando no meio da violência

Não se pode escapar da violência nem acabar com ela usando a mesma arma. Existe
algo que podemos fazer,

além de contê-la o melhor que pudermos, e suportá-la es-toicamente? Sim, podemos


orar. Vozes respeitadas e sábias de todos os tempos dizem que a oração é o único ato
que faz diferença.

O Salmo 46 é uma dessas vozes, oração no meio da violência para agir diante dos
problemas. E a correção de que precisamos desesperadamente para abandonar a prática
indevida, embora generalizada, de usar a oração como fuga. Quando o mundo distribui
pancadas e humilhações com liberalidade demais, tentamos usar a prece como
um mundo isolado de consolo onde desfrutamos da compreensão divina. Comparado à
oração bíblica, e, em particular, ao Salmo 46, isso é visto como um sintoma de doença
do espírito.

A oração saudável não resulta em afastamento, mas também não leva ao confronto. Não
é tanto uma forma de lidar com o que está errado no mundo ou em mim mesmo. E um
caminho para lidar com Deus no mundo e em mim. O mal (sob a forma de violência, no
Salmo 46) é encarado de maneira indireta: absorvido nas formas e cerimônias
de oração. Orar liberta do ataque da brutalidade por nos colocar na energia da graça.
Nesse processo, a violência se transforma.

Por todos os séculos, em todos os cantos do mundo, sempre houve gente que ora e que
continua a causar um impacto incalculável. O fato de jornalistas não divulgarem isso
não diminui a força da pacificação persistente. Essa gente leva a violência a sério, mas
a mantém sob perspectiva. Deus requer que eu dê mais atenção a Ele do que
à violência. Pensando nEle, vejo a cidade tomando forma no meio da catástrofe.

Violência externa e interna

O cenário por trás do Salmo 46 é violento. Orá-lo nos coloca em contato com mais
violência que o esperado. Aparecem três conjuntos de imagens. Primeiro, violência na
natureza: a terra abre suas mandíbulas em um terremoto,2 vulcões brotam no oceano,
inundações espalham destruição (v.l a 3). O conjunto de imagens a seguir se refere à
violência política: nações iradas, reinos que se desintegram, conquistas sólidas de
governos que se desfazem como figuras de cera sob o sol quente (v.6). O terceiro grupo
trata da violência militar: guerras, arcos, lanças, carruagens - arsenal assustador usado
para ferir e matar, conquistar fracos e escravizar pobres (v.9). E fácil identificar a
ligação com fatos contemporâneos: terremotos na Turquia, fome no sul do Saara,
enchentes no Mississippi, guerras no Oriente Médio. Estamos destruindo os recursos do
planeta. Abortando os fetos. Violência externa, violência interna. Mandamos para
a cadeia os que descarregam a hostilidade nos semelhantes e internamos em hospícios
os que se voltam contra eles mesmos. Quanto aos que se voltam contra outras
nações, colocamos medalhas no peito deles.3

Quem pensa que a oração é isenta de conflitos está mal informado. Quem acredita que a
imersão nos Salmos isolará das notícias corrosivas de cada dia está enganado.

Quem acha que olhar para Deus resulta em paz jamais perturbada, e alegria contínua, a
ponto de não haver mais espaço na vida para a percepção da barbaridade, está errado.
A natureza é violenta. As pessoas também. Ler os Salmos é uma experiência chocante.
Orá-los é ato de coragem.

Mas, embora as imagens do Salmo 46 sejam violentas, a violência não é o assunto


principal. Deus é o ponto central. Não importa as circunstâncias que cercam a oração,
ela se relaciona a Deus. Por mais desafio e desolação que exista no ambiente em que
vivemos, a oração encontra seu caminho até o Senhor, como se houvesse um
radar embutido nela. Nada pode ser mais real do que Deus, e a oração é a ação
fundamental, na qual cultivamos a consciência dessa realidade, esquecida no meio de
tanto som e tanta luz.

O Senhor dos Exércitos está conosco;

o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

Esse é o refrão da prece, as duas linhas que representam sístole e diástole do ritmo
interior. As duas linhas se repetem após cada uma das três partes de
composição simétrica - depois dos versículos 3, 6 e 10.4

O nome de Deus foi escolhido aqui com grande cuidado. Senhor dos Exércitos
apresenta uma imagem: imensos batalhões de anjos, ligeiros e valentes, obede-

cendo ao comando divino. Deus de Jacó traz à lembrança uma história: o ser persistente
à margem do rio Jaboque, que lutou com Jacó até ele entrar na intimidade da bênção.
Deus poderoso, “Senhor dos Exércitos”, e pessoal, “Deus de Jacó”. Contudo, há uma
inversão surpreendente na forma como esses nomes se conectam às nossas expectativas.
Induzimos que a metáfora militar se associará à defesa, “torre segura”, e que a pessoal
virá ligada à intimidade, “conosco”. Mas os termos foram trocados deli-beradamente,
de modo que encontramos intimidade com o guerreiro e defesa no amigo da família. O
Deus poderoso (Senhor dos Exércitos) trava amizade (está conosco) e o pessoal (Deus
de Jacó) protege (torre segura).

Em qualquer caso, Deus é só um. A mudança dos termos impede expectativas


estereotipadas sobre o que Ele será e fará. O clichê é um grande inimigo da oração.
Através da repetição religiosa, as particularidades da fé se deterioram em
generalidades. Mas agora nossas percepções e, portanto, nossas expectativas, voltaram
a ser afiadas. Mesmo em uma sociedade destrutiva, somos tratados com dignidade (não
somos violados). Na sociedade despersonalizada, encontramos relacionamento (não
estamos isolados). Não somos objetos usados e ignorados. Somos valorizados,
protegidos, respeitados, amados, ouvidos e alguém fala conosco. Desfrutamos
de segurança e intimidade. E o que recebemos podemos oferecer a outros. O Senhor
dos Exércitos está conosco; o Deus de Jacó é a nossa torre segura.

A civilização que conhecemos

Há mais. A afirmação tripla, de um Deus poderoso e pessoal, está ligada a uma imagem
encorajadora da ora-

ção, que compreende o significado desta afirmação em um mundo desintegrado pela


violência. O versículo 4 apresenta a imagem:

Há um rio cujos canais alegram a cidade de Deus,

o Santo Lugar onde habita o Altíssimo.

Deus nela está! Não será abalada!


Deus vem em seu auxílio desde o romper da manhã.

Em contraste com a violência difundida na atmosfera em que oramos, a cidade de Deus


é apresentada como fato. Cidade é um lugar civilizado, onde há cortesia e confiança.
Sabemos que não é sempre assim, mas é o que esperamos (o que chega às notícias são
as exceções). A cidade de Deus não é projeto para o futuro, nem aspiração, nem
promessa que conseguiremos realizar se promulgarmos as leis adequadas. Ela existe.
Agora. Deus habita nela, neste inundo. Ele não é um turista que de vez em quando visita
nossas praias. Estabeleceu Sua morada aqui, não como pessoa que vem acampar, mas
como cidadão do lugar: há uma cidade de Deus. Ela se localiza no mesmo mundo em
que há violência, o que significa que não precisamos sair à procura de Deus em um vale
tranqüilo e longínquo.

Agostinho usou essa imagem da cidade de Deus para desenvolver sua exposição sobre
a presença e a ação divinas no meio da presença e ação humanas, a história dos
caminhos de Deus permeando a dos nossos. Ele escreveu The City of God (A Cidade de
Deus) no turbilhão de uma das fases mais violentas da história, quando Alarico e os
bandos de bárbaros vinham do norte e devastavam a civilização romana. Não se trata

de teologia de escapismo, mas de algo mais semelhante a jornalismo de oração.

A cidade de Deus que Agostinho descreveu não se identifica com política, legislação e
judiciário que os jornalistas narram e os eruditos estudam. Mas seria um grande erro
concluir que ela é invisível, uma realidade “espiritual” no meio da materialidade. É
visível, histórica e real.5 É verdade que muitos não a enxergam, mas não por ela
ser invisível, mas apenas por não olharem na direção correta ou não terem os olhos
treinados para ver essas ações e essa presença. O conceito de Agostinho foi
sistematicamente ignorado durante séculos, mas não foi refutado, e é improvável que
venha a ser, já que foi desenvolvido a partir da oração sempre confirmada do Salmo
46.

“Há um rio” que corre pela cidade. No mundo antigo, as cidades importantes foram
edificadas às margens de grandes rios - Nilo, Tigre, Eufrates, Tibre. Do jardim do Éden
fluíam dois rios. E um outro cruzará a Nova Jerusalém. Rios significam bebida, limpeza
e transporte. “Há um rio” significa que a habitação de Deus neste mundo não é um
cortiço, nem um campo de refugiados arrumado às pressas com caixas e barris. É um
lugar bem suprido por um rio e, portanto, agradável.

A justaposição de rio e cidade requer que entendamos a habitação de Deus entre nós de
modo abrangente - tanto a que é criada pela palavra dEle quanto a que é
construída pelas ferramentas dos pedreiros. Não fica mais fácil perceber a presença e a
ação de Deus em nosso meio se banirmos

o barulho da cidade para que apenas a criação intocada (o rio) permaneça. Nem adianta
eliminar os elementos naturais da água e do vento para que restem apenas as ruas
e estruturas planejadas de revelação (a cidade). A habitação de Deus inclui tudo:
mistério, esclarecimento, natureza, história, simples, complexo, criação e reino.

No contexto da violência aterrorizante e inexorável na natureza e nas nações, surge uma


afirmação espantosa sobre essa cidade-rio: “não será abalada”. O verbo foi usado
antes, no versículo 2: os montes afundem no coração do mar. Voltará a aparecer no
versículo 6: reinos se abalam. Aqui, foi aplicado à cidade que não será abalada (v.5).
A palavra vem de vocabulário relacionado a catástrofes.6 Foi usada na literatura antiga
de Ugarit em um sentido apocalíptico, indicando a destruição total no dia do Juízo
Final. Montanhas desabam, reinos chegam ao fim, mas a cidade permanece. A criação
não é segura, nem a civilização, mas Deus é.

A cidade de Deus é segura, não por ser espaço bem defendido e inviolável, mas porque
é a esfera da ação divina característica, seu auxílio. Essa palavra figura no versículo 1:
auxílio sempre presente. Dahood traduz como “auxílio desde tempos antigos”,
interpretando “sempre presente” como “que sempre esteve presente” - com registro
bem antigo de sua presença. Em outras palavras, esse socorro tem história longa, com
séculos de documentação. Deus não é um remédio inventado às pressas, mas sim
auxílio verdadeiro e testado, muito bem provado. O verbo volta a ser usado no
versículo 5: Deus vem em seu auxílio desde o romper da manhã. A Nova Tradução na
Linguagem

de Hoje traz uma expressão muito mais literal e viva: “de manhã bem cedo”. Não há
necessidade de nos arrastarmos por metade do dia, ou por metade da vida, antes que
Deus apareça, esfregando os olhos e perguntando se precisamos que Ele faça alguma
coisa por nós. Ele sabe como é o mundo em que vivemos e conhece nossa
vulnerabilidade, pois ele mesmo habitou aqui (João 1:14). Ele prevê
nossas necessidades e faz planos com antecedência. Está sempre pronto a ajudar “de
manhã bem cedo”.

Recebemos auxílio, não por cuidarmos de nós mesmos, mas porque alguém cuida de
nós; não por nos colocarmos por trás de muros de indiferença, mas por arriscarmos a
vida no mundo com a ajuda de Deus; não por reduzir nossa vida às dimensões triviais
de um projeto de auto-ajuda, mas por nos aventurarmos na vastidão desconhecida e
ainda não testada da graça. A grande afirmação, o maravilhoso discernimento da vida
de fé é que o auxílio é oferecido o tempo todo.
A reclamação “orei e clamei por auxílio, mas ninguém veio me ajudar” tem como
resposta “Você recebeu auxílio. Ele estava lá, bem à mão. Você talvez
estivesse procurando alguma coisa diferente, mas Deus trouxe o tipo de socorro que
traria cura à sua vida, a faria perfeita para a eternidade. E ele não transformaria apenas
sua vida, mas também nações, sociedade e cultura”. Em lugar de perguntar por que o
socorro não chegou, aquele que ora aprende a olhar com cuidado para o que se passa
em sua vida, nesta história, nos líderes, movimentos, povos, e pergunta: “Será esse o
auxílio que Deus está mandando? Nunca pensei nisso como ajuda, mas talvez seja”. A
oração nos confere outra maneira, muito mais precisa, de ler a realidade do

que os jornais. “Pense bem!”, exclama o pároco da aldeia na obra de Bemano, “a


Palavra se fez Carne e nem um dos jornalistas da época tinha a menor idéia de que isso
estava acontecendo!” 7

Vejam as obras do Senhor

Duas ordens nos afastam do mundo estreito da auto-ajuda e nos levam para o mundo
amplo do auxílio de Deus. Primeiro, “Venham! Vejam as obras do Senhor”. Dê
uma longa olhada, analise o que Ele está fazendo. Isso requer atenção, paciência,
energia e concentração. Todo mundo faz mais barulho que Deus. As manchetes, os
luminosos e os sistemas de amplificação anunciam as obras humanas, mas ninguém trata
das dEle. Apesar de ignoradas, não há como escapar delas, basta olhar. Estão por toda
parte. São mara vilhosas, mas Deus não possui agência de relações públicas, não monta
campanhas publicitárias para chamar a atenção.Simplesmente convida a olhar. Oração
é olhar as obras do Senhor.

Olhamos. E vemos que “ele forjou a fertilidade na terra”.8 A proliferação da vida é


formidável. Dando atenção apenas aos placares brilhantes e aos desastres mais
sangrentos, despertamos e olhamos em tomo. Sem orar, lemos apenas as letras grandes,
reparamos somente nas mega-tendências e observamos apenas a destruição
gigante. Orando, vemos o curso de dados vindos de toda parte. Uma

peregrina em oração, Annie Dillard, saiu de sua casa e contou o que viu:

O criador parte em uma tangente fantástica e específica após a outra, ou em


milhões simultaneamente, com uma exuberância que seria injustificada e energia
livre que jorra de fonte infinita. O que está acontecendo aqui? O ponto do salto
tremendo da libélula. a barata d’água gigante, o canto do pássaro, ou a beleza
fascinante dos reflexos da luz do sol nos peixinhos, não é que tudo se encaixa com
precisão - mas que tudo flui com tanta liberdade, como o riacho, que tudo se lança
em um emaranhado livre na orla. A liberdade é a água e o clima do mundo, sua
alimentação concedida de graça, seu solo e sua seiva: e o criador ama o ímpeto.9

Vemos também que Ele dá fim às guerras até os confins da terra; quebra o arco e
despedaça a lança; destrói os escudos com fogo. Deus se envolve no
desarmamento mundial. Todos os instrumentos que homens e mulheres usam na tentativa
de impor sua vontade à força sobre o próximo e os inimigos são jogados em um monte -
como lixo. A violência não funciona. Nunca funcionou e nunca funcionará. As armas
são inúteis.

A história da violência é um relato de fracassos. Nunca houve guerra vencida nem


batalha vitoriosa. O uso da força destrói a realidade que busca beneficiar, seja honra,
verdade ou justiça. Vivendo neste mundo e sendo pecadores, em cer-

tas ocasiões, somos incapazes de evitar a violência, mas, embora inevitável, ela nâo é
certa. Deus não a pratica.10

Análise firme e continuada das obras de Deus mostra que a construção frenética e tola
de armas (pessoais ou nacionais, psicológicas ou materiais) tem sido sujeita a
desarmamento sistemático e determinado. Ação violenta é a antítese da criação.
Quando deixamos de ter vontade ou paciência para criar, tentamos expressar nossa
vontade pela coerção. Preguiçosos e imaturos respondem pela maior parte da violência
do mundo. Mas, por mais generalizada que ela seja, a pessoa que ora percebe que não é
assim que o mundo da ação de Deus funciona. Mas é necessário energia e maturidade
para ver isso e sustentar a visão.

Parem de lutar e saibam

A segunda ordem é: Parem de lutar! Saibam que eu sou Deus!. Parem. Chega de
pressa, detenha-se para notar que há mais na vida do que seus pequenos
empreendimentos pessoais. No meio de barulho e pressa somos incapazes de cultivar
intimidade - relacionamentos pessoais profundos e complexos. Deus é o centro vivo da
redenção, de modo que é essencial permanecermos em contato e res-ponsivos à Sua
vontade pessoal. Ele tem um plano para este mundo e, se quisermos participar, temos
de parar o suficiente para descobrir o que é (pois certamente não fi-

10. Não nego que existam situações históricas em que temos permissão, e até
recebemos ordem, de entrar em guerra. Entendo que as guerras de Israel foram
ordenadas nesse contexto - a melhor atitude possível naquelas circunstâncias, mas
não como justificativa para toda guerra. A questão da “guerra justa” vem pondo à
prova a inteligência e a consciência dos cristãos há muitos séculos. Em minha
opinião, a questão se toma menos complexa a cada dia: uma possível guerra
nuclear logo tornará todos pacifistas (mas não passivos).

caremos sabendo pelas notícias da televisão). O Barão von Hügel tinha uma palavra
sábia em quase todos os assuntos, e sempre sustentou que “nunca se fez nada no meio
do estouro da boiada”.11

Saibam. Nos escritos bíblicos, saber muitas vezes tem conotação sexual. Adão
conheceu Eva. José não conheceu Maria. Não se trata, como muitos supõem, de
eufemismos pudicos. São metáforas ousadas. O melhor conhecimento, completo e
pessoal, não se atinge através de informações, mas de intimidade compartilhada -
conhecer e ser conhecido que se torna um ato de criação. Uma analogia ao
relacionamento sexual, onde duas pessoas se encontram vulneráveis e abertas uma à
outra, tendo como consequência a criação de uma nova vida. Unamuno, filósofo
espanhol, elabora a idéia: “‘Conhecer’ significa, na verdade, produzir, e todo
conhecimento vital, nesse sentido, pressupõe penetração, fusão da parte mais íntima do
homem que sabe com o objeto do saber”.10 11 O resultado do conhecimento é um novo
ser, diferente de cada parceiro e mais do que cada um deles. Nenhum filho é réplica
dos pais, nem mera combinação dos dois. Possui características de ambos, mas a
nova vida é imprevisível, cheia de surpresas, autônoma.

Esse conhecimento sexual, que resulta em outra vida, é a experiência comum usada para
mostrar o que acontece na oração: afastamento da comoção, fechamento da porta para o
mundo exterior e insistência na privacidade sem pressa. Não se trata de ato anti-social,
nem de deleite egoísta, nem de negligência com a responsabilidade pública. Pelo

contrário, é o cumprimento da responsabilidade pública, contribuição para o


aperfeiçoamento da civilização. É precisamente criativo: não há como fazer amor no
meio do trânsito. Com toda sua criatividade maravilhosa, Michelan-gelo jamais
conseguiu pintar, desenhar nem esculpir nada que se compare a um recém-nascido.
Apesar da imensa inventividade demonstrada na Renascença, Leonardo da Vinci nunca
conseguiu nem se aproximar daquilo que qualquer casal de camponeses cria pelo
simples fato de se deitar em uma cama. As pessoas que oram se entregam ao processo
criativo nesse mesmo lugar de surpresa e prazer elementar, que enriquece o mundo e
transcende o ego.

Parem e saibam. A civilização está assolada por problemas não resolvidos e impasses
desconcertantes. As mentes mais brilhantes já foram usadas até o limite máximo. Os
observadores mais aclamados encontram-se profundamente preocupados com a
situação atual. A contribuição mais relevante que os cristãos têm a dar é o ato da
oração - encontros firmes, repetidos e sem pressa com o Deus vivo e pessoal, onde
nova vida é concebida.

Não nos limitamos a orar. Atitudes e comportamentos se desenvolvem a partir da


oração. Prosseguindo com a analogia com a família, ainda há necessidade de educar os
filhos, cuidar do jardim e ganhar o sustento. E preciso exercitar a inteligência, moldar o
comportamento, tomar decisões morais e agir em coragem responsável. Mas se não
nascerem os bebês, a civilização chegará ao fim. E o nascimento não acontecerá se as
pessoas de fé não ansiarem pelo amor de Deus e não forem suficientemente
disciplinadas para abandonar as distrações do mundo e dedicar tempo a “parar e
saber”.
Material com direitos autorais

Capítulo 6
1

Harry Blamires, Tyranny ofTime (Nova Iorque: Morehouse-Bar-low Co., 1965),


pág. 98.

Dahood traduziu assim o versículo 3: "não temeremos as mandibu-las do mundo


inferior”. The P.salms, 1:278.

Estou simplificando demais. Há muitos em prisões, hospícios e exércitos que não


chegaram lá por motivos violentos, e há cristãos honrados que oram em todos esses
lugares. Mas de toda forma, cadeias, asilos e exércitos representam as locações
visíveis da violência organizada em nosso tempo.

Falta o refrão após a primeira estrofe nos manuscritos mais antigos, de modo que a
maioria das traduções o omite também. Contudo, é opinião generalizada que a
ausência se deve a um erro de cópia, de modo que fiz a inclusão. Veja Arthur
Weiser. The Psalms (Philadelphia: Westminster, 1962), págs. 368-369.

5
Charles Norris Cochrane apresenta uma exposição brilhante sobre Agostinho
nessas questões em Christianity and Classical Culíure (Nova Iorque: Oxford
University Press, 1957). especialmente o capítulo 12, “Di-vine Necessity and
Human History”, págs. 456 e seguintes.

Dahood, The Psalms, 1:279, 281.

Georges Bemanos, The Diarv ofa Country Priest (Garden City, N.Y.: Image
Books/Doubleday, 1954, pág. 164.

Dahood, com base em paralelos ugaríticos, convence, acredito, que desolação é


antônimo de guerras e, por isso, deve ser traduzido como fertilidade. The Psalms,
1:281.

Annie Dillard, Pilgrim ot Tinker Creek (Nova Iorque: Harper’s Magazine Press.
1974). pág. 137.

10

Baron Friedrich von Hügel, Selected Letters 1896-1924, editado por Bemard
Holland (Nova Iorque: E. P. Dutton & co., 1933), pág. 147.

11

Miguel de Unamuno. The Agony of Christianity (Nova Iorque: Fredcrick Ungar


Publishing Co., 1960), pág. 51.
Afirmado Por Deus
SALMO 62

A minha alma descansa somente em Deus; dele vem a minha salvação.

Somente ele é a rocha que me salva; ele é a minha torre segura! Jamais serei
abalado!

Até quando todos vocês atacarão um homem que está como um muro inclinado, como
uma cerca prestes a cair?

Todo o propósito deles é derrubá-lo de sua posição

elevada;

eles se deliciam com mentiras.

Com a boca abençoam, mas no íntimo amaldiçoam.

Descanse somente em Deus, ó minha alma; dele vem a minha esperança.

Somente ele é a rocha que me salva; ele é a minha torre alta! Não serei abalado!

A minha salvação e a minha honra de Deus dependem; ele è a minha rocha firme, o
meu refúgio.

Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame diante dele o coração, pois ele é
o nosso refúgio.

Os homens de origem humilde não passam de um sopro, os de origem importante não


passam de mentira; pesados na balança, juntos não chegam ao peso de um sopro.

Não confiem na extorsão, nem ponham a esperança em bens roubados; se as suas


riquezas aumentam, não ponham nelas o

coração.

Uma vez Deus falou, duas vezes eu ouvi, que o poder pertence a Deus.

Contigo também, Senhor, está a fidelidade.


E certo que retribuirás a cada um conforme o seu procedimento.

Talvez a vontade, em seu aspecto mais profundo, não denote auto-afirmação e


autocontrole, mas sim amor e aquiescência, não vontade de poder, mas vontade
de orar.

WILLIAM BARRETT 1

Existem vastas porções de vida atrofiada na maioria


das pessoas. Somos capazes de criar, amar e realizar
muitas conquistas, mas grande parte disso fica
dormente. Estamos adormecidos nos relacionamentos
pessoais e acabamos levados de um lugar para
outro, sem perceber o que está acontecendo. Somos
tímidos no trabalho e, por isso, perdemos promoções.
No casamento, somos intimidados e acabamos sendo
usados. Nos sentimos inúteis na comunidade, fadados
a receber serviços inferiores do governo e de
empresas.
Então, de tempos em tempos, alguém se levanta e anuncia como é maravilhosa a
simples condição humana. Documentação científica séria prova que até o menor de nós
possui um cérebro incrível, emoções ricas e corpo altamente desenvolvido. Pensar em
criaturas assim imóveis e retraídas é ridículo. Nenhum ser humano jamais poderia
ser capacho dos outros, nem ser considerado um lixo. Somos confrontados com a
exigência de nos colocar de pé e pegar em nossas mãos aquilo a que temos direito. Os
apelos são ferventes e envolvem reavivamento. As escrituras sagradas de psicologia,
economia e ciência política fornecem um sem-fim de textos para sermões sobre auto-
afirmação. Contudo, muitas décadas desse tipo de pregação trouxeram resultados
inesperados: sociedade inchada e entediada.

1. William Barrett, The Illusion ofTedmique (Garden City, N.Y.: An-chor


Press/Doubleday, 1978). pág. 232.
Precisamos descobrir como necessidade tão óbvia ligada a solução tão razoável
acabou em resultado tão desastroso.

Postura positiva - ação confiante, iniciativa agradável

- é componente básico para viver bem. Mas auto-afirmação distorce o bem


fundamental e o toma inadequado para o desenvolvimento humano e a comunidade
saudável. O Salmo 62 trata de afirmação, mas de Deus e não do ego. Apresenta a
transição entre a afirmação do ego e a participação na afirmação de Deus.

Na oração, nos tomamos conscientes da afirmação de Deus e respondemos a ela.


Descobrimos que Deus está agindo: Ele não é gás inerte, massa de idéias amorfa,
virtude abstrata, nem explicação distante para o cosmos. Ele afirma Sua vontade neste
mundo de assuntos humanos

- governo, criação, oceanos, cozinhas, almas e sociedade. Muitos temem abandonar o


evangelho da auto-afirmação, pensando que cairão no medo da dúvida. Na verdade,
experimentam algo bem diferente.

Espera silenciosa

Uma repetição marca o tema central dessa oração. A repetição tem dois focos, porque
os versículos 1-2 e 5-6 são quase, mas não totalmente, idênticos. A sentença
controladora é somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa (RA).

Somente em Deus. Ele não é um entre muitos. Oração não é forma de se proteger, nem
caminho para conferir a última novidade da auto-ajuda. Compreensivelmente, queremos
explorar todas as opções: escrever cartas, dar telefonemas, visitar clientes em
potencial, conseguir entrevistas. Não sabemos quem poderá vir a ser útil. Claro que

cultivamos o relacionamento com Deus, mas não em oração. Tentamos, mas não
funciona. A oração é exclusiva, centralizadora. Descobrimos ser impossível orar com
um olho em uma grande oportunidade e outro em Deus. A oração treina a alma para um
único foco: somente em Deus.

Minha alma espera. Há outra vontade maior, mais sábia e mais inteligente que a minha.
Por isso, espero. Isso significa que confio em alguém de quem vou receber
alguma coisa. Minha vontade, por mais importante e essencial que seja, encontra outra
mais importante e mais essencial. Enquanto espero, descubro a existência de mais
realidade fora do que dentro de mim, e me coloco em posição de reagir a ela. Começo
a orar na tentativa de manipular a vontade de Deus; termino me preparando para ser
movido por ela. Há um tipo de espera que nada tem a ver com oração. E a espera
oportunista - afastamento disciplinado e predatório que aguarda tudo ficar pronto para
eu me apoderar do máximo que puder. E a postura do gato que espreita o pássaro, ou da
pessoa que aguarda com cautela a primeira investida, a palavra de comando. Isso não é
esperar em oração. Ao orar tenho consciência da ação de Deus e sei que quando as
circunstâncias estiverem preparadas, os outros no lugar certo e meu coração pronto, Ele
me convocará para entrar em ação. Esse tipo de espera envolve recusa constante a agir
antes que Ele o faça. Esperar é nossa participação no processo que resulta na
“plenitude do tempo”.

Silenciosa. Na oração, o silêncio não é a ausência de som que ocorre quando não há
mais nada a dizer, nem a situação embaraçosa que resulta da timidez. E atitude positiva
e fértil. Envolve mais interesse no que Deus tem a dizer do que em conseguir falar com
Ele. Significa preferir

ouvir a palavra dEle a pronunciar a minha. Raramente é a primeira coisa que acontece
na oração. Sempre tenho muito peso a retirar de meu peito. Tantas palavras
parecem urgentes, mas, depois de dizê-las, me afasto para conversar com meus amigos,
resolver meus assuntos e prosseguir com minha rotina. Na oração, falar é essencial,
mas também parcial. O silêncio também é essencial, mas ninguém imagina isso quando
ouve as preces dos que se recusam a ser guiados pelas Escrituras.

Há barulho demais neste mundo. Conversamos demais. Apesar de vivermos na


sociedade que mais gasta com estudo em toda a história da civilização, somos cercados
por torrentes de lixo verbal. E continuamos suportando isso. Nunca desligamos a
gritaria do rádio e da televisão para aproveitar o silêncio. Isso acontece porque não
queremos de coração ouvir a palavra que revela a futilidade da auto-afirmação e nos
transforma, que nos manda abandonar as fantasias confortáveis e partir em uma
arriscada aventura de fé.

Silêncio é pré-requisito para ouvir. Se o rejeitamos, as palavras se reduzem a elogios


vazios ao nosso próprio ego doentio. Quando falamos o tempo todo, ou permitimos que
outros o façam, nossos ouvidos e bocas se enchem de clichês, trivialidades, conversas
tolas e palavreado pretensioso. A linguagem se renova no silêncio. Na ausência de som
humano torna-se possível ouvir o logos, a Palavra de Deus que confere forma e sentido
às nossas.

História e esperança

Duas razões, que se complementam, sustentam essa ação como tema. A primeira é dele
vem a minha salvação (v.l). A segunda, dele vem a minha esperança (v.5). A primei-

ra entende que o passado (salvação) dá conteúdo ao presente. A outra está convencida


de que o futuro (esperança) molda o presente. A auto-afirmação se equilibra
precariamente na linha tênue do momento atual. A oração alarga essa linha no tempo e
no espaço e desenvolve familiaridade com o passado e amizade com o futuro. Nem
pessoas - nem nações saudáveis - vivem absortas em novidades definidas pela
publicidade. Precisamos da história da salvação e da esperança de um reino, de um
passado e um futuro, que se coloquem no presente e lhe confiram dimensões - altura,
largura e profundidade. A oração desenvolve essas dimensões. Sem ela, o passado se
torna nostalgia e o futuro, fantasia. A auto-afirmação rouba o passado para atender
caprichos e, com isso, destrói seu caráter único. Ou então, com ganância, hipoteca
o futuro para se deleitar no presente apesar das conseqüências que virão sobre as
futuras gerações.

Não serei abalado

Outra base para essa reputação radical do evangelho da auto-afirmação, essa recusa a
afirmar o ego em respeito a Deus, que afirma ele mesmo, é uma condição
duplamente confirmada na experiência: Somente ele é a rocha que me salva; ele é a
minha torre segura! Jamais serei abalado (v.2). Os três elementos - rocha, torre
segura e salvação -criam o triângulo da afirmação de Deus, que atende a base do ego
(rocha), sua defesa (torre segura) e sua perfeição (salvação). O triângulo estabelece
Deus como o ambiente em que o ego se afirma e recebe as condições para a liberdade:
estabilidade, integridade e vigor.

A consequência de viver nessas condições é a percepção do próprio ser: “Jamais serei


abalado”. E a mes-

ma palavra usada no Salmo 46 como atributo da cidade de Deus - que nunca será
derrubada, nem na catástrofe do Juízo Final (veja o capítulo 5). Não parece que o
ego que nega a si mesmo é anêmico nem debilitado. Acabar com o domínio do ego na
afitfnação não é religiosidade piegas. Há aqui sensação de solidez e força. Ao
contrário disso, a auto-afirmação acaba sendo apenas um impulso e, de forma nenhuma,
resulta em afirmação. O ego procura excitação, divertimento, gratificação, mimos,
elogios, recompensa, desafio e satisfação. Muita gente se dedica a manipular e vender
esses impulsos através de sedução e persuasão. A sociedade costuma preferir a
orientação dos pu blicitários à dos apóstolos. Na verdade, auto-afirmação não passa de
eufemismo para estilo de vida dominado por impulsos e pressões. A motivação do ego
oscila entre emoções
■\

e hormônios e modas e tendências. A medida que nos acostumamos a orar, deixamos de


ser levados por tais bagatelas.

Sóbrio e sagaz

Ligadas a essas atitudes, para acabar com a necessidade de auto-afirmação, colocam-se


reflexões sobre as condições no mundo da auto-afirmação. Pensamentos sóbrios e
sagazes, que mantêm a oração em contato com a sociedade predatória, que jião ora e
age com ímpeto, pois a oração não se restringe à forma como alimentamos
nosso relacionamento com Deus. Ela é também o caminho para termos a visão clara,
sem ilusões do mundo que está sempre tentando nos encaixar em seus moldes.

A primeira reflexão discerne a motivação básica oculta por trás do encorajamento falso
dos que nos convidam a buscar a prosperidade no mundo.

Até quando todos vocês atacarão um homem que está como um muro inclinado,
como uma cerca prestes a cair?

Todo o propósito deles é derrubá-lo de sua posição elevada; eles se deliciam com
mentiras.

Com a boca abençoam, mas no íntimo amaldiçoam.

Essas pessoas repetem o tempo todo que precisamos desenvolver nosso potencial,
alcançar o melhor desempenho possível e aproveitar ao máximo as oportunidades. Na
verdade, estão mentindo. Usam essa isca para nos prender em seus esquemas. O
objetivo real é nos levar a gratificar a obsessão deles pelo poder, seu desejo de
dominar. Com a boca abençoam, mas no íntimo amaldiçoam, (v.4) As palavras deles
nos fazem sentir maravilhosos - como se o mundo inteiro estivesse aberto para nós.
Mas os atos nos prendem em ansiedade desumanizadora que nos reduz a meros
fantoches movidos pelas cordas da economia. Exercem pressão incansável sobre o ego
e não se satisfazem até conseguirem nos usar: Até quando todos vocês atacarão um
homem...? (v.3).

A segunda reflexão (versículos 9 e 10) adverte contra a divisão cínica da sociedade em


categorias de pessoas ruins que vencem e boas que perdem - assaltantes e assaltados.

Os homens de origem humilde nâo passam de um sopro, os de origem importante


não passam de mentira; pesados na balança, juntos não chegam ao peso de
um sopro.

Não confiem na extorsão, nem ponham a esperança em bens roubados; se as suas


riquezas aumentam, não ponham nelas o coração.

Competição e conflito são inevitáveis no mundo marcado pela auto-afirmação. As


pessoas se dividem em vencedoras e perdedoras. Alguns enriquecem, outros
empobrecem. Uns recebem todos os prêmios e outros ficam com todas as obrigações.
Se permitirmos que essa imagem interprete a vida, ficaremos entre duas opções:
sentiremos inveja dos ricos ou pena dos pobres. Há quem faça os dois. A inveja nos
enche de descontentamento e nos rebaixa a consumidores. A pena nos reduz a um
coração que sangra. Por fim, acabamos nos identificando com um dos dois grupos,
apresentando esse status, seja sorte ou azar, como prova de nossa importância. Mas
essa interpretação da humanidade é tanto simplista quanto irreal: Os homens de origem
humilde não passam de um sopro, os de origem importante não passam de mentira;
pesados na balança, juntos não chegam ao peso de um sopro.

As balanças computadorizadas não fornecem a imagem adequada. É necessário


reconstruir na imaginação as usadas no mundo antigo. Dois pratos se penduravam nas
duas pontas de uma haste horizontal equilibrada em uma vertical. Para pesar um quilo
de arroz, a pessoa colocava um peso que ela sabia ter um quilo em um dos pratos, que
descia até tocar o solo. No entanto, à medida que adicionava arroz ao outro prato, o que
tinha o peso ia subindo até que os dois ficavam em altura igual, equilibrados. Pode-se
pesar qualquer coisa com esse método. Só são necessários os pesos para fazer a
comparação com os produtos: meio quilo, um quilo, cinco quilos etc. Agora podemos
nos dedicar à imagem do salmista: em um prato, um peso escrito “ser humano, perfeito,
imagem de Deus”. No outro, a pessoa mais rica do mundo, com a

carteira repleta de dinheiro e o cofre cheio de ações. Mas uma surpresa acontece.
Contrariando toda expectativa, o prato em que ela está sobe. Ela não tem peso: “os de
origem importante não passam de mentira”. Ou então tome o indivíduo mais
desgraçado, que sofre todo tipo de discriminação e desprezo. Por certo esse, privado
de todas as recompensas e bens terrenos e depurado pelo sofrimento, será uma pessoa
real. A exploração cruel lhe conferiu sta-tus de autenticidade. Coloque na balança. Mas
vem outra surpresa! Os homens de origem humilde não passam de um sopro. Em
qualquer situação, a auto-afirmação é inútil. Ninguém se torna importante por alardear
seus sofrimentos nem por apresentar seus troféus. A tragédia não é prova de
importância, assim como as conquistas também não são. Exaltar as vítimas é tão
inadequado quanto bajular os vencedores. Só somos autênticos quando nos entregamos
ao relacionamento de confiança com Deus definido e ordenado em Sua Palavra,
participando de Seu poder: Confie nele em todos os momentos, ó povo; derrame
diante dele o coração (v.8).

O silêncio que torna possível ouvir Deus também nos permite ouvir as palavras do
mundo como elas realmente são - mentiras baratas e não convincentes. As bravatas e as
promessas da auto-afirmação não passam de soberba.

Abandonando o jogo

A auto-afirmação transforma a sociedade em jogo entre a ganância corporativa e a


indulgência privada. Diretrizes políticas e econômicas restringem comportamentos
extremos e asseguram certos limites, mas o jogo é alvo da mesma

reverência destituída de críticas que os esportes da preferência nacional. Mas um


número significativo e influente de pessoas abandonou o jogo. Deixaram de jogar para
orar, porque

Uma vez Deus falouf

duas vezes eu ouvi,

que o poder pertence a Deus.

Contigo também, Senhor, está a fidelidade.

É certo que retribuirás a cada um conforme o seu procedimento.

“O poder pertence a Deus!” Isso confunde e frustra os competidores. É uma visão


destituída de patriotismo. A falta de participação atrapalha o ritmo do jogo. Pe-ter
Berger demonstrou as vastas implicações sociais do que acontece quando as pessoas se
recusam a cooperar com a história: “Se é impossível transformar ou sabotar a
sociedade, sempre é possível afastar-se dela no íntimo. A separação tem sido usada
como método de resistência aos controles sociais pelo menos desde Lao-Tsé e
foi transformada em teoria de resistência pelos estóicos. ... A engenhosidade dos seres
humanos para tirar vantagem, e subverter até o sistema de controle mais sofisticado, é
um antídoto renovador para a depressão sociológica”.1

Todo ato de oração nos tira das engrenagens da auto-afirmação e joga areia nas
maquinações de loucura nacional. Ficam preparados o espaço e o silêncio em que a
perfeição pode germinar e se desenvolver.
Talvez a humildade (nome antigo para acabar com o domínio da auto-afirmação) seja a
virtude menos pro-

curada atualmente. Na melhor das hipóteses, é vista com condescendência, até aceitável
entre devotos medrosos que não possuem aptidão para os assuntos deste mundo. Mas
durante muito tempo a humildade foi a virtude mais admirada, se não a mais praticada.
Não é possível que tantas pessoas que o mundo considerou sábias estivessem erradas.

Nossos antepassados acreditavam que a humildade era o espírito humano moderado,


resistente e forte. Eles conheciam a dificuldade e sabiam que mesmo os que admiravam
a virtude e a professavam eram inclinados a subvertê-la na prática. John Henry
Newman comentou de forma cortante:

O que geralmente vemos é “o ato de inclinar-se sem o menor esforço de


abandonar, nem por um segundo, a poltrona em que nos estabelecemos com muita
firmeza. É o ato do superior, que faz uma queixa a si mesmo, enquanto assume que
continua superior, e que sua postura nada mais é do que um ato de graça para com
aqueles em cujo nível, teoricamente, está se colocando”.

Newman prossegue:

humildade é uma das virtudes mais difíceis dc alcançar c verificar. Reside apenas
no coração, e as provas são extremamente sutis e delicadas. Há abundância de
imitação.2

Mas até mesmo a pretensão à humildade foi abandonada. Vivemos cercados por
seminários de treinamento para afirmação e administração voltada para objetivos. So-

mos bombardeados por técnicas que prometem causar impacto na sociedade. Quase
todas acabam sendo apelos sutis ou grosseiros ao orgulho.

Talvez seja falta de sabedoria partir para o ataque aberto, mas orando o Salmo 62
atacamos o inimigo pelos flancos e adotamos uma vida leve e alegre, sem arrastar a
imensa bagagem de enganos e bravatas com que a auto-afirmação busca disfarçar sua
fraqueza. Acabar com o domínio da necessidade de afirmar a si mesmo não tem nada a
ver com a auto-anulação servil que D. H. Lawrence repudiou com tanta veemência.3 E
uma atitude cheia de energia, confiança, atenção e tranqüilidade. A questão deixa de ser
a possibilidade das coisas serem feitas e passa a ser quem as faz: eu ou Deus.

Temos de escolher o que consideramos melhor: incentivar milhões de cidadãos a


afirmarem a si mesmos (que, na prática, significa estimular a cobiça e a ambição), ou
crer que Deus já está realizando uma vontade muito melhor de infinitas maneiras
visíveis e invisíveis, em uma obra complexa para realizar a salvação em todos os
níveis da economia, sociedade e cultura. Preciso me colocar à disposição dessa
vontade, porque “o poder pertence a Deus”. Oração é o ato que constrói uma
ponte sobre o abismo que separa auto-afirmação da vida de humildade. Isso implica em
maior interesse e empolgação quanto ao que Deus está fazendo do que em
descobrir como posso me expressar ou melhorar o mundo. Esses atos são as principais,
embora discretas, contribuições que podemos dar ao bem-estar público.

Capítulo 7
1

Peter Berger, Invitation to Sociology (Garden City, N. Y.: Anchor


Press/Doubleday, 1963), págs. 132-34.

2
John Henry Newman, The Idea of a University (Notre Dame, Ind.: University of Notre Dame Press. 1982),
pág. 156.

3
D. H. Lawrence propôs um remédio de alfaiataria: se todos vestirem calças vermelhas, ninguém parecerá
estar sujo e não ser importante!
Compaixão de Deus
SALMO 77

Clamo a Deus por socorro; clamo a Deus que me escute.

Quando estou angustiado, busco o Senhor; de noite estendo as mãos sem cessar; a
minha alma está inconsolável!

Lembro-me de ti, ó Deus, e suspiro; começo a meditar, e o meu espírito desfalece.

Não me permites fechar os olhos; tão inquieto estou que não consigo falar.

Fico a pensar nos dias que se foram, nos anos há muito passados; de noite recordo
minhas canções.

O meu coração medita, e o meu espírito pergunta: Irá o Senhor rejeitar-nos para
sempre? Jamais tornará a mostrar-nos o seu favor ? Desapareceu para sempre o
seu amor? Acabou-se a sua promessa? Esqueceu-se Deus de ser misericordioso?

Em sua ira refreou sua compaixão?

Então pensei: A razão da minha dor è que a mão direita do Altíssimo não age mais.

Recordarei os feitos do Senhor; recordarei os teus antigos milagres.

Meditarei em todas as tuas obras e considerarei todos os teus feitos.

Teus caminhos, ó Deus, são santos.

Que deus é tão grande como o nosso Deus? Tu és o Deus que realiza
milagres; mostras o teu poder entre os povos.

Com o teu braço forte resgataste o teu povo, os descendentes de Jacó e de José.

As águas te viram, ó Deus, as águas te viram e se contorceram; até os abismos


estremeceram.

As nuvens despejaram chuvas, ressoou nos céus o trovão; as tuas flechas reluziam em
todas as direções. No redemoinho, estrondou o teu trovão, os teus relâmpagos
iluminaram o mundo; a terra tremeu e sacudiu-se.
A tua vereda passou pelo mar, o teu caminho pelas águas poderosas, e ninguém viu
as tuas pegadas. Guiaste o teu povo como a um rebanho pela mão de Moisés e de
Arão.

Não celebramos a doença, celebramos a cura.

S. GREGÓRIO NAZIANZENO 1

Piedade é uma das emoções mais nobres em um ser


humano. Autopiedade talvez seja a mais desprezível.
Compaixão é a capacidade de penetrar na dor alheia
para ajudar de alguma forma. Autocompaixão é
enfermidade emocional incapacitante que enfraquece
e distorce totalmente a percepção da realidade. A
piedade identifica a necessidade dos outros por amor,
cura e dá forma a palavras e atos que trazem força. A
autopiedade reduz o universo a uma ferida pessoal
que se apresenta como prova de importância.
Compaixão é adrenalina que leva a atos
de misericórdia. A autocompaixão é um narcótico
que deixa os usuários cansados e perdidos.
Os contrastes são óbvios, podem ser identificados em qualquer casa, empresa,
indústria, escola ou parque. Não há como negar a beleza de uma e a feiura da outra.
Contudo, em nossa sociedade, a autocompaixão aparece muito mais do que a
compaixão. Na literatura, a autobiografia de celebridades, gênero excessivamente
popular, nos sufoca em autopiedade subjetiva e evidencia que talvez sejamos
a população mais afogada nesse tipo de sentimento de toda a história humana. Sentir
pena de si mesmo transformou-se em um tipo de arte. Os lamentos e queixumes que
gerações mais sábias ridicularizavam com sátiras hoje alcançaram status de best-
seller.
A vida de qualquer pessoa contém injustiça, decepção, deslealdade e mágoa suficientes
para fornecer à imaginação
1. S. Grcgório Nazianzcno, Oratio 38, citado por Thomas Merton, Seasons of Celebralion (Nova Iorque:
Farrar, Straus and Giroux, 1978), pág. 13.

ferida ampla matéria prima para elaborar melodramas lucrativos de autopiedade. Com
o estímulo de celebridades que levam a público a pena que sentem delas mesmas e a
sanção da cultura atolada nesse sentimento, fica fácil transformar a emoção em hábito.

O grande mal social da autopiedade é que ela toma energia que, em estado saudável,
move atos de cura, liberação, esclarecimento, e a derrama no solo vazio do ego. A
compaixão necessária para a cura da sociedade termina como nada mais do que uma
mancha deprimente e desfiguradora na alma.

Quase sempre, a autocompaixão lida com fatos precisos: o carro daquele homem é
melhor que o meu; o marido daquela mulher é mais atencioso que o meu; o sistema
digestivo de fulano funciona melhor que o meu; o colega menos competente recebeu
uma promoção muito melhor que a minha. Não há como negar fatos. As
comparações hostis secretaram seu veneno. Descubro uma verdade sobre mim mesmo e
a comparo com aquilo que sei sobre os outros. Esse conhecimento pode se tomar
estímulo para crescimento ou para abençoar os semelhantes. No entanto, o mais comum
é suscitar inveja. Identifico desigualdades e injustiças. Descubro que o outro é mais
rico, mais bonito, tem situação melhor e ganha mais. Sinto que fui passado para trás.
Peguei o vírus da autopiedade e agora estou infectado com uma das doenças mais
graves do ego. Autocompaixão é infelicidade virai. Estamos no meio de uma epidemia
e precisamos encontrar a cura.

Mesmo que não seja muito usado, o antídoto é bem conhecido. E, simplesmente, a
oração, ato sensível o suficiente para estar em contato quase constante com a au-

topiedade, mas forte suficiente para não ser absorvido por ela. Muitas vezes, o impulso
inicial de orar vem da auto-compaixão. Sentimos pena de nós mesmos e, como Deus é
muito conhecido pela compaixão (“Como um pai tem compaixão de seus filhos, assim o
Senhor tem compaixão dos que o temem”), acreditamos que Ele está com pena de nós.
Mas não é assim. Na oração, a autopiedade encontra-se com energia maior e mais
saudável e se transforma.

O Salmo 77 é uma oração em que a autocompaixão sentimental perde importância. O


texto apresenta duas partes quase iguais, embora contrastantes, os versículos 1-10 e 11-
20. A segunda parte é compaixão forte e bondosa. E piedade, mas totalmente alheia ao
ego.

A tirania do ego

A primeira metade do Salmo apresenta todos os elementos desagradáveis que


caracterizam a autocompaixão. Por exemplo, os exageros. As linhas de abertura
apontam para a histeria do lamento: Clamo a Deus por socorro; clamo a Deus que me
escute. A repetição da palavra clamo no início de cada frase dirige o
enfoque diretamente para o problema. A minha alma recusa consolar-se (RA). A recusa
em aceitar o consolo revela a motivação escusa do lamento: usar a tristeza para
assegurar a tirania do ego. Todos devem reparar em mim, porque estou sofrendo.
Minhas dificuldades, proclamadas em voz alta e com dramaticidade, exigem que
todos prestem atenção em mim. O psiquiatra Harry Stack Sul-livan brincou ao comentar
que a principal característica dessas pessoas é que “nenhuma flor é bela o
suficiente. Há sempre necessidade de um pouco mais de tinta ver-

bal”2. Lembro-me de Deus (RA), mas não penso nEle por muito tempo, pois a
conseqüência é que “suspiro”. Deus é um pretexto religioso para eu sentir pena de
mim mesmo de uma forma piedosa e por isso, presume-se, justificada. ■*- #

A autopiedade acusa. O problema absorve tanto as forças que não há tempo nem para
dormir. Essa falta de sono é imediatamente atribuída a Deus: Não mepermites fechar
os olhos (v.4). A palavra traduzida como “olhos” só figura nesse versículo da Bíblia e
talvez signifique “atalaia” ou “vigília”. Nesse caso, a metáfora é ainda mais forte: “Tu
prendes a atenção de meus olhos”3. Pastores faziam vigília durante toda a noite para
cuidar do rebanho. Nenhum deles passava a noite inteira acordado - ou, quando isso
acontecia, era porque alguém os forçava a ficar de olhos abertos. Em outras palavras,
minha insônia é culpa de Deus. Esta é uma característica recorrente na autopiedade:
outra pessoa, muitas vezes Deus, é responsável por meus problemas.

A autocompaixão se dissolve em nostalgia: Fico a pensar nos dias que se foram, nos
anos há muito passados (v.5). A grama era mais verde há cinqüenta anos. As gerações
anteriores eram mais fortes, mais nobres, mais justas. Quase todo mundo pensa que tudo
corria melhor antes -mas não há duas pessoas que concordem sobre a data específica
em que tudo era melhor. Russell Baker revela nosso blefe: “Apesar do anseio universal
pelo passado, também é verdade que 99% das pessoas que preferem o que passou nem
pensariam em voltar a menos que pudessem levar

2. Harry Stack Sullivan, The Collected Works of Harry Stack Sulli-van, 2 volumes
(Nova Iorque: W. W. Norton, 1953), 1:202.
3. Dahood, The Psalms, 2:227.

seu carro”4. A autopiedade, historiadora sofrível, avalia e recorda apenas para


alimentar a injustiça presente e para evitar agir no sentido de resolver os problemas.

Ela é marcada por introspecção mórbida: De noite indago o meu íntimo, e o meu
espírito perscruta (v.6, RA). Existem autoconsciência e auto-estudo saudáveis. Não
há virtude em ignorar o próprio ser e desprezar a vida interior. Contudo, para ser útil e
saudável, a introspecção requer disciplina e orientação. De outra forma, como aqui,
perde-se no pântano da comiseração por si mesmo. O ego que medita sobre ele está
preso em um cômodo sem ar, sem oxigênio. Se ficar lá por muito tempo, inspirando o
gás que ele mesmo expira, acabará doente.

A autopiedade é teologicamente ignorante: Irá o Senhor rejeitar-nos para sempre?


Jamais tornará a mostrar-nos o seu favor? (v.7). Essas perguntas dão início a uma
série de outras - cinco questões que conduzem ao clímax. Embora envolvam Deus, não
são dirigidas a Ele. São perguntas retóricas jogadas ao ar na esperança de que
alguém confirme verdades que se acredita evidentes. Perguntas retóricas presumem
concordância. O assunto é tão evidente que ninguém que use o raciocínio poderá
discordar. Transformando as questões em afirmações, temos: (1)0 Senhor vai nos
rejeitar para sempre e jamais voltará a estar a nosso favor; (2) a fidelidade dEle
acabou para sempre; (3) Suas promessas chegaram ao fim; (4) Deus esqueceu de ser
misericordioso; e (5) a ira dEle refreou sua compaixão.

Deus que rejeita, está cansado, é mesquinho, esquecido e está irado. Por mais elementar
que seja o conhecimento sobre Deus conforme revelado na Bíblia e vivenciado

4. “The World According to Russell Baker”, Johns Hopkins Magazine 24 (1983):


8.

em séculos de história da salvação, ninguém poderá aceitar essas afirmações. Nada


disso se baseia em revelação ou observação, tudo derivou da autocompaixão. Ninguém
se importa comigo. Nasci tarde demais para participar das promessas. Fui deixado de
lado. Ninguém sente meu sofrimento. Depois, esses detalhes se expandem e chegam
a uma proclamação cósmica: Deus me rejeitou.

As perguntas, contaminadas pela autocompaixão, levam a uma conclusão em que a


ignorância só compete com a pieguice: A razão de minha dor é que a mão direita do
Altíssimo não age mais (v. 10). Ninguém pode afirmar que Deus é amoroso,
compassivo e bondoso. Se um dia foi, deixou de ser. Eu sou a prova. Minha condição,
como todos podem ver, mostra que Deus não é tudo aquilo que as pessoas pensavam.
Se fosse, eu não estaria em situação tão deplorável. Meu lamento possui base teológica:
Deus não me ama.

Exaltação da graça

Então, quando parece que não dá mais para suportar, há uma mudança. De súbito,
passamos a um mundo totalmente diferente. Esse tipo de coisa acontece na oração, sem
transição aparente. Em um momento nos debatemos no lamaçal da autocompaixão. No
instante seguinte nos encontramos firmes sobre as montanhas, tontos diante da maravilha
da redenção. Tudo gira em torno das sentenças abaixo:

Recordarei os feitos do Senhor;

recordarei os teus antigos milagres.

Meditarei em todas as tuas obras

e considerarei todos os teus feitos.

Quatro ocorrências verbais expressam atenção: recordar (duas vezes), meditar e


considerar. Outro conjunto, agora de expressões, indica o objeto da atenção: feitos
do Senhor, antigos milagres, Tuas obras e Teus feitos. Digno de nota que os verbos já
haviam sido usados na primeira parte do Salmo (pensar, meditar, recordar, lembrar),
mas as expressões não. A transformação não ocorre quando aprendemos a meditar, mas
sim quando descobrimos em quem pensar. O problema não foi falta de meditação.
Houve relutância em dirigir mente e espírito para dentro, para baixo da superfície da
vida. A primeira metade do Salmo é meditativa, mas sem foco (meditação sem objeto,
versículo 3), tomada por nostalgia (versículo 5) ou por auto-indulgên-cia (versículo 6).
Isso é meditação no ego ferido. Mas no momento em que a mente passa do “meu
problema” para “Tuas obras”, ocorre uma mudança radical.

Na oração a percepção se desenvolve: há muito mais fatos em andamento no mundo do


que tenho consciência quando estou decepcionado, ferido, frustrado ou amargurado.
Meus sentimentos, em determinado instante, embora importantes e verdadeiros, não
podem ser interpretados com precisão fora do contexto da ação de Deus. A meditação
intensifica a consciência e a percepção. Quando seu enfoque é limitado por sentimentos
de autopiedade, o ego isolado, o resultado é a intensificação da tristeza. Mas se o foco
se volta para Deus, tanto no ego quanto na história e na criação, o resultado é a
exaltação da graça: Teus caminhos, óDeus, sãosaãtosiy. 13). Milagres, manifestações
de poder e a redenção do povo (versículos 14 e 15) assomam no horizonte. O mundo
em que vivo é dominado pela criação, a revelação e a redenção. Meus sentimentos
encon-

tram seu lugar no contexto da ação de Deus e podem ser interpretados e avaliados com
precisão. Annie Dillard, em uma meditação expansiva incomparável sobre “as tuas
obras”, Pilgrim aí Tinker Creek (Peregrino no Riacho Tinker), mostra o resultado:

Prossigo em meu caminho como Billy Bray. Meu pé esquerdo diz ‘Glória’ e o
direito, ‘Amém’: dentro e fora do riacho Sombrio, contra e a favor da correnteza,
exultante, entorpecido pela dança, ao som das trombetas de prata que
acompanham o louvor.5

Cantando a salvação

Dentro do panorama amplo da história, um evento foi escolhido para consideração: a


saída do Egito (versículos 16-19). Foi uma época em que natural e sobrenatural, Terra
e Céus, pessoal e nacional foram orquestrados para dar origem a um único ato de
redenção. O acontecimento é relembrado de forma audiovisual e também dinâmica:
sons tremendos e clarões de luz tomam ritmo que nos leva a louvor e reverência. Somos
sacudidos para sair do redemoinho de autopiedade que nos puxa para baixo e levados
para a marcha de louvor, o caminho da salvação de Deus.

As águas te viram, ó Deus, as águas te viram e se contorceram; até os abismos


estremeceram.

As nuvens despejaram chuvas,

ressoou nos céus o trovão;

as tuas flechas reluziam em todas as direções.

No redemoinho, estrondou o teu trovão, os teus relâmpagos iluminaram o mundo; a


terra tremeu e sacudiu-se.
5. Dillard, Pilgrim ai Tinker Creek, pág. 271.

A tua vereda passou pelo mar, o teu caminho pelas águas poderosas, e ninguém viu
as tuas pegadas.

O ritmo da oração se altera nesse ponto. Até aqui, a poesia foi escrita, na maior parte,
em estrofes de duas linhas. Agora surgem grupamentos de três, arranjo majestoso e
épico. O diapasâo entra em cena. Semitons de Gênesis 1 se entrelaçam nas imagens
para fornecer dimensão cósmica à salvação. O caos tomado pelas águas, do qual Deus
tirou a boa criação, ressoa nas sentenças que cantam a salvação. Tanto o mundo em que
vivemos (criação) quanto o que vive em nós (salvação) foram moldados por Deus.
Minha autopiedade sem forma e lacrimosa não tem como escapar desse poder.

Todos sabem que isso aconteceu. A própria existência de Israel prova e documenta o
evento. Mesmo assim, ninguém sabe exatamente o que aconteceu: ninguém viu as tuas
pegadas (v. 19). Pegadas feitas em águas profundas não deixam marcas. Vivemos as
consequências da salvação, mas o que a fez acontecer é invisível. Não há prova
tangível de que tudo aconteceu - a não ser por minha existência e pela existência de
tudo que é grande, santo e maravilhoso.

Uma imagem à disposição

Uma única palavra, repetida no início e no fim do Salmo, mostra a semelhança aparente
e a verdadeira diferença entre a piedade que sentimos por nós mesmos e a compaixão
de Deus pelo mundo, que O leva a agir para a salvação. A palavra é mão.

A primeira ocorrência é subjetiva, fala de sentimento: Quando estou angustiado, busco


o Senhor; de noite esten-

do as mãos sem cessar; a minha alma está inconsolável! (v.2). O texto hebraico é
mais direto do que a tradução: Minha mão corre para a noite. A conjunção de mão e
corre é cômica, forma uma imagem de desenho animado: uma mão correndo pela noite,
procurando alguém que a ajude. Mas há outra possibilidade. No hebraico, a palavra
mão é usada em muitas metáforas, e uma delas se encaixa no contexto. Como em Jó
23.2, pode significar “ferida”. Então a imagem passaria a ser uma chaga que corre. Uma
ferida infeccionada, cheia de pus, que isola e que ninguém deseja tratar, como a do
infeliz Filoctetes da mitologia grega. Só se pode dizer que a salvação aconteceu depois
que essa ferida - a autopiedade fétida - foi tratada.

O uso final da palavra é objetivo: Guiaste o teu povo como a um rebanho pela mão de
Moisés e de Arão (v.20). Não é bem isso que se espera. Uma mão foi estendida
no primeiro versículo, e esperamos que alguém a tenha agarrado ou segurado quando
chegarmos ao último. Ou, tendo iniciado com uma ferida que corre, prevemos que no
final encontraremos a cura. Mas não é isso que acontece: a autopiedade não exerce
pressão sobre o Todo-Poderoso nem arranca concessões dEle. Em lugar disso, é uma
ocasião que Deus usa para atuar sobre a infelicidade que criamos para nós mesmos e
fazer nascer algo que dê prazer a Ele. Descobriremos, surpresos, que isso é o que traz
prazer também a nós.

As mãos de Moisés e Arão respondem à que foi estendida em autocompaixão. Elas não
protegem dos problemas, mas ensinam a viver no meio deles. Moisés e Arão não ficam
segurando as mãos do povo, unindo-se ao lamento pela perda da casa e da segurança do
Egito. Eles

os pegam pelas mãos e os conduzem para o deserto cruel. A redenção já foi alcançada
pelo “braço” do Senhor (versículo 15). Agora é necessário aprender a seguir a vida de
fé, alimentar a compaixão. Isso só acontece em meio a dor e sofrimento, lugar em que a
sabedoria se torna inacessível à autopiedade. Deus não atende nosso clamor de
compaixão por nós mesmos, Ele nos ensina a acabar com o domínio dela. Entra em
nossa vida e nos fornece profeta e sacerdote para nos conduzir pelo deserto da
provação e da tentação. Só então aprenderemos os caminhos da providência e
descobriremos os meios de graça - quarenta anos longos, difíceis, marcados pela
misericórdia e guiados pela graça que representam a jornada dos que vivem pela fé.
Nesse caminho, aprendemos moralidade pessoal e responsabilidade social. A salvação
é colocada a serviço da edificação da comunidade, da prática da adoração e da
confrontação do mal.

O lugar certo

Por mais sem saída que seja a autocompaixão, a oração não a impede. Qualquer lugar é
bom para começar a orar, mas não podemos ter medo de ir parar em um
lugar totalmente diferente daquele em que começamos. O sal-mista começou sentindo
pena dele mesmo e fazendo perguntas insolentes. Terminou entoando um velho
cântico que proclama o poder e a graça.

Meditamos em nossa humanidade ferida e introduzimos o nome de Deus nos


pensamentos de forma casual: logo nossa imaginação é despertada pelas águas
temerosas, profundas e tremulantes, pela passagem de Deus através do trovão que
ressoa, pesando na Terra abalada e iluminada por

relâmpagos que cortam o Céu, pela redenção que Deus opera em Seu povo, levando-o
como a um rebanho. Arrancados da introspecção mórbida, enxergamos nuvens
derramando água e colunas de fogo. Deus age em prol dos que precisam. Nossa
choradeira se reúne no trovão da ação divina e se transforma em meditação sobre o
poder de Deus, que renova o espírito em participação compassiva em Seu auxílio,
quando oferecemos a Ele nosso clamor e não quando suprimimos a autopiedade ou
abafamos o choro. O desagradável Lembro-me de ti, ó Deus, e suspiro transforma-se,
no decorrer da oração, na empolgaçâo de Meditarei em todas as tuas obras e
considerarei todos os teus feitos. Teus caminhos, ó Deus, são santos. Que deus é tão
grande como o nosso Deus?.

Capítulo 8
Justificado por Deus
SALMO 14

Diz o tolo em seu coração: “Deus não existe’’. Corromperam-se e cometeram atos
detestáveis; não há ninguém que faça o hem.

0 Senhor olha dos céus para os filhos dos homens, para ver se há alguém que tenha
entendimento, alguém que busque a Deus.

Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não há ninguém que faça o


bem, não há nem um sequer.

Será que nenhum dos malfeitores aprende? Eles devoram o meu povo como quem
come pão, e não clamam pelo Senhor!

Olhem! Estão tomados de pavor!

Pois Deus está presente no meio dos justos.

Vocês, malfeitores, frustram os planos dos pobres, mas o refúgio deles é o Senhor.

Ah, se de Sião viesse a salvação para Israel! Quando o Senhor restaurar o seu povo,

Jacó exultará! Israel se regozijará!


Material com direitos autorais

O pomo dourado do egoísmo, lançado entre deuses falsos, tornou-se o pomo da


discórdia, porque lutaram por ele. Não conheciam a primeira regra do jogo santo,
que determina que cada jogador tem que tocar a bola e passá-la adiante
imediatamente. Ser pego com ela nas mãos é falta, agairá-la leva à morte. Mas,
quando ela voa de um jogador para outro, tão rápida que o olho não consegue
captar, e o próprio Mestre lidera a folia, entregando-se eternamente às Suas
criaturas na criação e tomando-as para Ele mesmo no sacrifício da Palavra, então a
dança eterna “deixa o Céu tonto com a harmonia

C. S. LEWIS 1

Nem sempre o ateu c um inimigo. Muitos são


grandes amigos dos cristãos. Por exemplo, há alguns
cuja convicção deriva de protesto: enfurecidos
diante do que está errado no mundo, são tomados por
rebeldia fervorosa. Não conseguem simplesmente
aceitar paradoxos estranhos: o Deus bondoso permite
que nasçam crianças aleijadas, o Deus de amor não
impede estupro e tortura e o Deus soberano fica
parado enquanto regimes cruéis como os de Gêngis
Khan e Adolf Hitler se levantam. Assim, eliminam
Deus. Isso não reduz o sofrimento, mas acaba com o
paradoxo. Esse ateísmo não deriva de
pensamento lógico (ou ilógico). E simplesmente
protesto. Raiva diante do sofrimento e da injustiça se
torna raiva contra o Deus que permite que isso
aconteça. A negação expressa o protesto. Essas
pessoas costumam ser cheias de compaixão. Sofrem e
se revoltam. São profundamente espirituais,
em contato com a condição humana e os valores
eternos.
1. C. S. Lcwis, The Problem ofPciin (Nova Iorque: Macmillan, 1953), pág. 141.

Ivan Karamazov é a representação literária mais famosa do ateísmo de protesto. Tinha


um caderno onde anotava todo caso de sofrimento de inocentes de que ouvia falar.
Havia fatos horríveis: acidentes, torturas, crueldade, agonia, maldade e desespero. Ele
se especializou em sofrimento infantil. Os relatos serviam como acusação indefensável
contra Deus: sendo o mundo assim, não pode existir um Deus.2 Mas Ivan falava o tempo
todo no Deus em quem não acreditava. O Cristo que ele havia rejeitado O perseguia.
Até seu ateísmo era uma luta com o santo, o amor, o significado. Possuía muito mais
profundidade espiritual do que pietistas convencionais que queimam incenso
para disfarçar o mau cheiro do sofrimento do mundo enquanto cantam músicas alegres
sobre o brilho de Deus.

Há outro tipo de ateu, que busca sinceridade intelectual. Esses partem de uma idéia
sobre Deus formada por migalhas de engano, fragmentos de fantasias
reunidas aleatoriamente em filmes, programas de televisão e conversas superficiais.
Um dia, olham para a imagem e decidem que Deus não tem barba. Sem barba não há
Deus. Isso acontece frequentemente com os adolescentes. Ao passo que o intelecto
amadurece, reexaminam as idéias adquiridas na infância e concluem que são
inadequadas. “Nenhum adulto inteligente pode acreditar nisso”, dizem, com muita
razão. Tornam-se ateístas instantâneos. Precisariam perguntar, ainda: “Há alguém de
mente desenvolvida e intelecto preparado que acredita em Deus? Se existe, em que
acredita?”.

Os pastores encontram esse tipo de ateísmo com bastante freqüência. Minha resposta é
continuar investigando.

2. Fyodor Dostoevsky. The Brothers Karamazov (Nova Iorque: Heri-tage Press.


1949), págs. 179-186.

Peço: “Fale um pouco mais sobre esse Deus em que você não acredita. Como ele é?”.
Depois de ouvir a resposta, em geral concordo: “Eu também não acredito nesse
Deus. Diante do que você falou, também sou ateu”.

Normalmente, a essa altura da conversa, meu interlocutor está interessado e me permite


prosseguir. “Você sabia que uma das acusações contra os cristãos do século I era de
ateísmo? Havia centenas de deuses na cultura e os cristãos não acreditavam neles.
Declaravam com veemência que os consideravam ridículos e que ninguém
deveria levá-los a sério”.

“Compreensivelmente, os pagãos se ofendiam quando as superstições que lhes davam


consolo e suas histórias interessantes eram tratadas com desprezo. Além disso, temiam
que o crescimento da fé cristã pervertesse a ordem social e política. Por isso,
perseguiam os cristãos, jogavam-nos nas prisões e chegavam a matá-los sob a acusação
de ateísmo. Dificilmente o fato de acreditarem em um Deus seria considerado religião
numa cultura em que todos acreditavam em pelo menos algumas centenas de divindades.
Além disso, era difícil para gregos e romanos levar a sério como deus um
desconhecido semita sem estátuas nem templos para representar sua presença e validar
sua importância.”

“Dessa forma, você tem muitos companheiros cristãos em sua falta de fé cm um ou mais
deuses. Gostaria de ouvir um pouco sobre o único Deus em que os primeiros
cristãos acreditavam?”

Esses tipos de ateísmo precisam ser tratados com apreciação e respeito. O ateu que
protesta, sensível ao sofrimento, pode ser aceito como parceiro na luta moral e

espiritual contra o diabo. A companhia dele serve como defesa contra a presunção. O
que discrimina intelectualmente pode ser recebido como aliado na rejeição cética
de toda estupidez popular mal acabada a que se dá o nome de “deus”, tão abundante em
nossos dias. Esse tipo de ateu pode ser convidado a debates que investigam o que as
melhores mentes pensaram, e pensam, sobre Deus.

Mas há uma forma de ateísmo que não se pode tratar com tanta condescendência. O
Salmo 14 a ataca com energia. O mundo a tolera, mas deveria temer - são aqueles que
dizem, no coração: “Deus não existe”. É um ateísmo silencioso e discreto que nunca
chama atenção. Essas pessoas não declaram com a boca que Deus não existe.
Pelo contrário, afirmam o mesmo que todo mundo. Recitam o Credo Apostólico e a
Oração do Pai Nosso com todos os fiéis. Elaboram argumentos impressionantes sobre a
existência de Deus, denunciam os ímpios, exigem orações em público e estabelecem
uma religião oficial.

Contudo, no coração, dizem: “Deus não existe”. Nunca declaram o ateísmo e talvez nem
tenham consciência dele, mas o vivem - com uma vingança. Quando questionados sobre
sua fé, apresentam uma das tendências religiosas do momento ou declaram qualquer
coisa que sua igreja afirme sobre Deus. Alasdair Maclntyre formulou o credo dessas
pessoas: “Não existe Deus e é uma atitude sábia orar a Ele de vez em quando”.3

Há uma alegria incontestável em afirmar “em seu coração” que Deus não existe:
libertar-me de toda dependência, dominar a realidade, descobrir que sou capaz de fazer
as pessoas atenderem meus desejos, adquirir capacidade para
3. Alasdair Maclntyre, Against the Self-Images of the Age (Notre Dame. Ind.: University of Notre Dame
Press, 1978), pág. 26.

controlar as situações. É como a alegria de deixar a realidade áspera e persistente da


terra e nadar pelo oceano - uma existência sem esforço, flutuante. As correntes
marítimas banham e massageiam meu ego. Só tenho que me preocupar comigo mesmo.

Mas, mesmo com todas as promessas de imensidão, com o horizonte infinito se


estendendo diante de mim, com a profundidade infindável sob mim, acabo vendo que o
mundo é bem pequeno. Na verdade, não há muito a fazer. Só comemos com dificuldade,
só conseguimos conversar em fragmentos, não há como ir a outro lugar. Parece não
haver relacionamento possível com coisas nem com pessoas. Um pouco depois chega o
cansaço e é necessário partir. O ego não é o contexto em que se pode viver em sentido
completo e humano.

Precisamos dnDeus sob nossosqaás^ dentro de nossos pulmões. Dependemos do


Criador, das criaturas e da comunidade. Ele é o grande continente de realidade em que
vivemos. Se O negamos na prática, tentando viver no oceano do ego, logo nos cansamos
e precisamos de todo tipo de ajuda artificial para nos manter à superfície - pedaços de
madeira flutuante e coletes salva-vidas. O oceano não é nosso ambiente natural. Toda
hora ficamos com os pulmões cheios de água e precisamos ser resgatados para receber
respiração artificial. Depois partimos e recomeçamos tudo. Deveriamos
simplesmente deixar o oceano do ego e firmar os dois pés na terra seca do reino de
Deus.

Se, de fato, “Deus não existe”, o ego é a realidade imediata e final e estamos
condenados a viver nela. Mas o ego, como o útero (ele mesmo um tipo de existência

oceânica), é um lugar de onde temos de sair para nos tornarmos uma pessoa.

Pessoas como bens de consumo

Há mais em jogo aqui do que a sobrevivência do ego. A do mundo também corre risco,
pois esses ateus de coração, simpáticos e respeitáveis, colocam em perigo a saúde e a
sanidade. São como verrugas na mente do mundo, como vermes que devoram seu corpo.
A acusação violenta do salmista é: Eles comem o meu povo como quem come pão.
Canibais! Tratam as pessoas como bens de consumo.

Ateísmo do coração se transforma em opressão social. O ego estabelece suas próprias


regras para satisfazer suas compulsões, de modo que o resultado social é que
as pessoas que me cercam se transformam em alimento - material que posso usar para
satisfazer minhas necessidades. Eu as vejo como aquilo que posso usar para tomar a
vida satisfatória, não mais como pessoas.

Uma das maiores mentiras de nossa era é afirmar que minhas crenças só interessam a
mim mesmo, que o que se passa no secreto de meu coração não é da conta de
mais ninguém. Mas aquilo em que creio interessa a todos que me cercam, exatamente
porque o que acontece em meu coração logo influenciará meu comportamento na
sociedade. Se for ateu em meu coração e me colocar como soberano no lugar de Deus,
alterando tudo em função de meus desejos, necessidades e fantasias, acabarei me
tomando um pirata na sociedade. Não me canso de procurar meios de conseguir usar
para meu próprio benefício tudo que existe, sem me preocupar em observar as
condições de vida

dos outros. O ateu de coração logo se toma um câncer no âmago da comunidade.

G. K. Chesterton disse uma vez que se possuísse imóveis para alugar, pediria, se fosse
possível, informações sobre a fé de seus inquilinos, não sobre emprego ou renda.
Segundo Chesterton, é a fé que determina o grau de honestidade, o tipo de
relacionamento e sua fidelidade no cuidado com a propriedade. Ganhar bem não isenta
ninguém de ser desonesto. Um bom emprego não garante que a pessoa irá saber gastar
seus recursos. A fé não é uma resposta rápida a uma pesquisa de opinião, é o que há de
mais profundo em nós. Molda nosso comportamento e, portanto, é o que há de mais
prático em nós.

Uma palavra de relacionamento

O ateísmo do coração, que se traduz em farisaísmo, é não apenas maligno, é burrice:


Será que nenhum dos malfeitores aprende? (v.4). Acreditamos saber muito
quando voltamos as costas ao mistério de Deus e adquirimos uma quantidade enorme de
informações sobre como fazer o mundo agir em nosso favor. Contudo, aquisição de
informações não é o mesmo que conhecimento. Este se relaciona a Deus, a seu mundo e
a seu povo. Deus está presente no meio dos justos (v.5) - não com os fariseus, mas
com o que mantém o relacionamento correto com a realidade.

Na Bíblia, a palavra traduzida como justo nunca se refere ao que somos em nós mesmos
- por melhores, mais bem sucedidos e informados qíTe sejamos - mas sim ao
que somos em relação a Deus. Justo é um termo que trata de relacionamento, sendo o
mais importante o que mantemos com Deus.

O ateísmo destrói relações. Rebaixa Deus e faz dEle objeto que pode ser usado,
abandonado, negado ou ignorado, segundo minhas escolhas. Ao mesmo tempo em
que isso acontece, as pessoas também são rebaixadas e transformadas em objetos que
podem ser usados, abandonados, negados ou ignorados. Quando essa atitude se
generaliza, a sociedade se despersonaliza, deixa de ser sociedade e passa a ser uma
ponta de estoque onde podemos comprar indivíduos a preço acessível.

A acusação prossegue: Vocês, malfeitores, frustram os planos dos pobres (v.6). Os


pobres, por toda a Bíblia, são escolhidos para tratamento bondoso. Há uma convicção
profunda, declarada com ênfase nos dois Testamentos, de que pobres e indigentes são
objeto de interesse especial de Deus. 1 Na hora de escolher um povo para ser a
comunidade pioneira da salvação na história, Deus tomou escravos pobres do Egito. Ao
se tornar homem, foi concebido no útero de Maria, na pobreza dela (“humildade”,
Lucas 1.48) e viveu como pobre (2 Coríntios 8.9).

Ao criar a Igreja, reuniu a maioria dos participantes nas fileiras dos pobres (1
Coríntios 1.26-29).

Ronald Sider, em pesquisa ampla sobre as evidências bíblicas a respeito desse assunto,
comentou sobre a atenção “estarrecedora e ilimitada” concedida aos pobres.2
Sempre que vigor e saúde marcam a Igreja, ela dedica cuidado especial aos pobres.
Juliano, o apóstata, que odiava os cristãos e se esforçou ao máximo para jogar
descrédito sobre eles, chamou-os de “galileus ímpios”, mas foi forçado a

admitir que os supostos ateus “alimentam não só os pobres deles; tratam também dos
nossos”.3

Assim resta saber por que fariseus que conhecem bem a Bíblia acabam oprimindo os
pobres. Um motivo é que a pobreza se coloca como acusação contra a imensa tolice
de ser justo aos próprios olhos. Os pobres se apresentam como humanidade reduzida ao
que é estritamente essencial, sem supérfluos, e neles reconhecemos, mesmo assim,
nossos semelhantes. Não há neles valor que possa ser medido em moeda e ainda assim
o Deus sofredor e compassivo nos confronta através dos olhos deles. O pobre é a
pessoa que não me serve de nada, mas que exige alguma coisa de mim.

Mas, como soberano de minha vida (por definição, justo aos meus próprios olhos - ou
seja, justo sem relacionamentos), nego o relacionamento. E, para conseguir fugir de
tantas evidências, frustro “os planos dos pobres”, altero evidências e distorço dados.
Desprezo os pobres dizendo que são preguiçosos, denuncio a imoralidade deles ou
sou condescendente por achar que são ignorantes. Afinal, ninguém é pobre se não for
preguiçoso, mau ou burro.

Posso escolher, em vez de frustrar os planos dos pobres, desfrutar da companhia deles.4
Lendo a Bíblia com cuidado, verificamos que os pobres não são um problema a
solucionar, mas sim pessoas a quem devemos nos unir. Charles Williams, homem que
entendia bem os caminhos do Espírito Santo na história, observou que “a Igreja nunca
existiu muito tempo em um lugar sem criar a exigência

de uma Revolução. Cristo disse: ‘os pobres vocês sempre terão consigo’, e em todo
lugar em que essa tradição chegou acabamos tendo a percepção cortante da presença
deles”.8 Essa percepção dá origem à paixão pela justiça social.

Em hebraico, Há relação e&reita entre as palavras pobre (‘aniyyim) e humilde


(‘anawin). A primeira designa uma situação socioeconômica. A outra, condição moral
e espiritual. As duas têm em comum a ausência de posses. Devido às circunstâncias ou
por escolha própria, não estão no controle. Não podem, ou se recusam a segurar as
rédeas de seu destino. Por isso, estão aptos a receber os dons da generosidade soberana
de Deus e responder a eles.

Foi nesse ponto que Jesus começou a ensinar Seus seguidores a viverem pela fé. As
palavras dEle chegaram até nós em duas versões: “Bem-aventurados os pobres de
espírito ” (‘aniyyim - Mateus 5.3) e “Bem-aventurados vocês, os pobres” (‘anawin -
Lucas 6.20). Cada uma é análoga à outra - pobreza física é para o corpo o que a
espiritual é para a alma. Começamos na vida guiada por Deus doando a si mesmo e nos
abençoando através da ausência de bens.

Para que sejamos verdadeiramente abençoados, devemos esquecer todo ímpeto de


buscar posses. Temos que abrir mão de nós mesmos e do impulso de cuidar de
nossos interesses. E o caminho para isso é expor-se a situações de privação mental,
emocional e espiritual.9

Ninguém se surpreende ao descobrir que o ateu de coração se sente ameaçado pelo


pobre: na presença da jus-
8. Charles Williams, He Came Down from Heaven (Londres: Faber & Faber, 1956), pág. 63.

9. Simon Tugwell, The Beatitudes: Soundings in Christian Tradition (Springfield, 111.: Templegate
Publishers, 1980), pág. 26.

tificação de Deus, o farisaísmo se revela como realmente é, ou seja, ateísmo não


declarado mas praticado com fervor. Enquanto for possível evitar os pobres ou encará-
los como inferiores, a condição de não ter, na qual entendemos que tudo que é essencial
à existência vem do Outro, será ignorada. O ateísmo não declarado passa sem ser
detectado e, por isso, não é contestado.

lima aflição comum

O mais alarmante é que tudo isso é muito comum. O Senhor olha dos céus para os
filhos dos homens, para ver se há alguém que tenha entendimento, alguém que busque
a Deus. E não encontra ninguém. Todos se desviaram, igualmente se corromperam; não
há ninguém que faça o bem, não há nem um sequer.

Paulo cita isso em seu maravilhoso argumento na carta aos Romanos, quando expõe as
tentativas humanas de viver em busca de autojustificação (3.10-12). Judeus e gregos,
religiosos e sem religião, piedosos e pagãos - todos vivemos envoltos no ego e
tentamos prosseguir sem Deus ou usá-Lo para nossos propósitos. Em qualquer caso,
estamos diante do ateísmo: redução de Deus a status de não-divindade, para que eu,
como meu próprio deus, possa ignorá-lo ou determinar que Ele me ajude do jeito que
eu quero.

Pelo menos um dos motivos disso ser tão comum é que é muito fácil. O ateísmo do
coração, oposto ao da mente, não se preocupa em negar a existência de Deus com
argumentos lógicos. Isso requer muito esforço. Ademais, não é necessário. Basta tirar-
lhe a letra maiuscula, rebaixá-Lo de Deus para deus. Concordo com a condição de
deidade, mas restrinjo sua jurisdição a questões que não ameaçam minha soberania.

Ao contrário do ateísmo moral, o do coração não protesta contra a existência de Deus


em discursos inflamados. Isso requer muito esforço e é desnecessário. Basta ignorar o
sofrimento inocente que questiona a presença divina. Enquanto eu lido com termos
econômicos e não morais, burocráticos e não éticos, psicológicos e não espirituais,
não preciso pensar em Deus.

O ateísmo do coração é o sistema de fé (ou de falta de fé) do farisaísmo. Estabelece o


ego no centro e coloca em volta dele coisas, pessoas, eventos e Deus, de tal forma que,
apesar do que aconteça, o ego sempre estará certo. Vox mei vox dei (“minha voz é a voz
de Deus”). Tudo é visto e interpretado em relação ao ego soberano. Com
frequência, isso é administrado com grau extraordinário de sucesso. Há sempre muita
gente que age com maldade ou burrice e pode ser acusada pelo que está errado no
mundo. Assim, o ego soberano jamais será questionado.

Sem interesses por Deus

O ateísmo, tentativa de ser o senhor do próprio destino e de todos os outros que se


encontram por perto, não é empreitada espalhafatosa de uma lenda, e sim assunto
sério. Esses ateus são rígidos, pretensiosos, pessoas rebaixadas em seu potencial.
Agindo com desprezo ou condescendência para com Deus, a quem confessam em
público (a verdadeira atitude para com os pobres revela a atitude interior para com o
Senhor), dependem de bens de consumo, status ou da opinião dos amigos sempre
alguma coisa impessoal ou abstrata - para conferir-lhes senso de valor. Na ausência de
vida interior, precisam de parafernália exterior, coisas personalizadas ou pessoas
despersonalizadas, para adquirir a percep-

ção deles mesmos. O termo mais recente para esse ateísmo secreto do coração é
narcisismo, que tipifica a estrutura de caráter da sociedade que perdeu o interesse por
Deus.10

Essas pessoas são tolas. Na Bíblia, tolo é o termo que transmite mais desprezo. Trata
de quem não sabe o que se passa no cosmos, mas não é aquele ignorante que procura
aprender, nem o que está perdido e quer se encontrar. O tolo não sabe que não sabe. Na
verdade, pensa que sabe tudo, que entendeu todas as coisas, que possui
informações confidenciais e conhece todos os segredos. Falta-lhe a base que o manterá
firme. E incapaz de elaborar planos que tenham valor. Ao final, inevitavelmente, será
destruído. Usado como verbo, o termo tolo (nabal) significa “desmoronar” e, bem
ligada a essa palavra, vem a que significa “cadáver”.11 Quando o ar quente deixa o
balão colorido, resta apenas uma bexiga flácida. %

O oposto de tolo é sábio, aquele que sabe viver. O significado básico da palavra não é
saber todas as respostas, mas desenvolver as relações (relacionamentos) corretas com
as pessoas e com Deus. O sábio entende como o mundo funciona, conhece paciência,
amor, graça, adoração, beleza e sabe ouvir. Tem consciência de que as pessoas são
criaturas maravilhosas a quem deve respeitar e com quem deve travar amizade. Isso se
aplica de modo especial àqueles que não vão lhe dar nada. Ele sabe que

10. Christopher Lasch examinou esse fenômeno sob a perspectiva sociológica. Ele
defende que a causa não é perda de interesse em Deus, mas sim no futuro e no passado,
e isso pouco a pouco reduz a comunidade apenas ao que é imediato e, por fim, leva o
indivíduo a se importar apenas com seu ego imediato. Veja The Culture ofNarcissism (Nova
Iorque: W. W. Norton, 1968), pág. 211.

11. Johannes Pedersen, Israel, Its Life and Culture, volumes 1-2 (Londres: Oxford University
Press, 1946), págs. 429, 539.

a Terra é um dom admiravelmente intrincado do qual devemos desfrutar, mas que


também precisa de cuidados. Sabe que Deus está sempre no centro, é a realidade
imutável cujo amor envolve todos. Tem consciência, ainda, de que todo ser vivo tenfà
em alegria^esponder a Deus e alcançá-Lo, assim como à nação/reino/comunidade em
que Ele nos colocou.

O sábio conhece a única cura possível para o tolo. É a oração tão apaixonada pela
salvação dos outros quanto pela dele mesmo: Ah, se de Sião viesse a salvação para
Israel!. Oração convicta de que só haverá bem-estar quando todos forem restaurados ao
lugar da bênção: Quando o Senhor restaurar o seu povo. E oração que vê a comunidade
como lugar de celebração e não de aquisição: Jacó exultará! Israel se regozijará!
(versículo 7).

Capítulo 9
1

Gerhard von Rad, OU Testament Theology, 2 volumes (Nova Iorque: Harper &
Row, 1962), 1:400.

Ronald J. Sider, Rich Christians in an Age ofHunger (Downer’s Grove, UI.:


InterVarsity Press, 1978), pág. 85.

Martin Hengel, Property andRiches in the Earlv Chnrch (Philadel-phia: Fortress,


1974), pág. 45.

A palavra traduzida como “planos dos pobres” também pode ser “companhia dos
pobres”. Conselho é, também, concilio. Ver Dahood, The Psalmx, 1:82.
Servindo a Deus
SALMO 82

E Deus quem preside à assembléia divina;

no meio dos deuses, ele é o juiz.

“Até quando vocês vão absolver os culpados e favorecer os ímpios?

Garantam justiça para os fracos e para os órfãos; mantenham os direitos dos


necessitados e dos oprimidos. Livrem os fracos e os pobres; libertem-nos das mãos
dos ímpios.

Eles nada sabem, nada entendem.

Vagueiam pelas trevas;

todos os fundamentos da terra estão abalados.

Eudisse: “Vocês são deuses, todos vocês são filhos do Altíssimo.

Mas vocês morrerão como simples homens; cairão como qualquer outro governante

Levanta-te, ó Deus, julga a terra, pois todas as nações te pertencem


Material com direitos autorais

Não é certo concordar com a noção de que a vida de um homem se divide entre o
tempo que ele passa em seu trabalho e o que ele dedica ao serviço de Deus. Ele tem
que ser capaz de servir a Deus em sua profissão, que deve ser aceita e respeitada
como meio da criação divina. ... Todo fabricante e todo trabalhador são chamados
para servir a Deus em sua profissão ou negócio — não fora disso.

DOROTHY L. SAYERS 1

Uma das afirmativas mais no Láyeis-e-o usadas da


comunidade cristã foi feita poHreneij/, no início do
século II. Nunca foi repudiada nem abandonada.
Ele disse que Deus “tornou-se o que somos para poder nos transformar, no
final, no que Ele-é”.z Duzentos anos depois ÁtãnasIõTem uma polêmica violenta contra
um inimigo que ele acreditava estar atacando a jugular da humanidade, afirmou com
mais ousadia ainda: “Ele~se tomou homem para que pudéssemos nos tomar Deus”.3

A alegação é notável porque esses cristãos aceitavam a origem hebraica, viviam de


acordo com ela e não abriam mão do monoteísmo: “Deus é Deus e não há outro”. No
meio da confusão de deidades no mundo antigo, Israel conquistou o culto apaixonado
direcionado ao único Deus. Não havia exceções: O Senhor, o seu Deus, é Deus zeloso.

O entendimento de que Deus é um desenvolveu uma esperança internacional visionária:


como nações e raças

1. Dorothy L. Sayers, Creed or Chãos? (Nova Iorque: Harcourt, Brace & Co., 1949), pags.
56-57. "r

2. Ireneit. Against Heresies, citado por Kenneth Leech, The Social God (Londres: Sheldon Press,
1981), pág. 27.

3. Atanásio. On the Incarnation, citado por Louis Bouyer, A History of Christian Spiriiuality, volume
1 (Nova Iorque: Seabury Press, 1982 ), pág. 418.

estavam sob o poder de um único soberano e não de dei-dades rivais em disputa, a


comunidade e a paz mundial eram possíveis (Isaías 2.1-5). Essa convicção
forneceu ainda a base para a integração do ego. Impediu a multiplicação de deuses
correspondentes ao número de desejos, acabou com o “deus” como mera alavanca para
remover todas as exigências da vida que não consigo afastar com minha própria força.

Monoteísmo pode nos parecer termo pesado, óbvio e intelectual, mas para os primeiros
crentes era como uma iluminação rápida e penetrante: Viva em um todo integrado, sem
conflitos nem fragmentos, em um mundo desarmado e unido. Vale pensar no que teria
levado os cristãos, que celebravam e defendiam essa verdade conquistada a duras
penas, a aceitarem qualquer coisa que apresentasse o menor traço de desafio.

Afirmar que há um traço potencialmente divino em nós é audácia, porque o desejo


humano de ser deus, em geral descrito como orgulho, leva à ruína. A primeira tentação
narrada na Bíblia é ser “como Deus” (Gênesis 3.5). Quem se toma como Deus não
precisa ser Deus, e pode perfeitamente funcionar como Ele por suas próprias
forças. Qualquer pessoa com o mínimo de experiência na condição humana concorda
que essa é a primeira das tentações, que se insinua em nossa vida de forma evidente e
também dissimulada.

Conhecedores da propensão a querer ser Deus, da incansável engenhosidade do auto-


engano e da auto-afirmação, para fingir ser semelhante ao Pai, Ireneu e Atanásio,
pastores sábios e respeitados, não deveríam ter ousado abrir nem uma fresta da porta
que permite a entrada dessa ten-

tação. No entanto, abriram, e muito conscientes do perigo. Nenhum deles negaria o


grande risco contido em suas declarações. Eles se arriscaram porque viam um perigo
muito maior do que o politeísmo e o orgulho, ou seja, aquilo que veio a se chamar, mais
tarde, de arianismo.

Inimigos improváveis

Ario era um inimigo improvável. Pastor cristão no Egito, no século IV e, segundo todas
as informações, um homem respeitável. Charles Williams o descreveu
como “persuasivo, virtuoso e simples”.4 Os ensinamentos dele pareciam plausíveis e
livres de todo mal. Pelo menos à primeira vista. Ele simplesmente afirmava que a
verdadeira vida de Deus não podia ser compartilhada nem transmitida. O raciocínio é
lógico: Deus é tão completamente santo, tão absolutamente “outro” que não há como
essa santidade ser compartilhada com a humanidade sem ser comprometida ou
maculada e Deus, é claro, jamais será comprometido ou maculado. Como consequência,
Jesus não era expressão de Deus em forma direta ou pessoal. Era uma criatura moldada
com o propósito de nos ensinar sobre Deus. O Senhor teria necessariamente que manter
distância de nós para continuar sendo Deus.

A relação entre Deus, homens e mulheres é, então, um relacionamento de ensino:


didático e moral. Recebemos instruções, mandamentos e ordens, mas não há
compartilhamento da experiência de vida, nem amor, nem comunhão. No mundo de /?no
havia sejíaração completa entre Deus e humanos. Ele não se derramava em amor
salvífico. Era visto como um tirano benigno que empurra as pessoas

4. Charles Williams, The Descent of the Dove (Nova Iorque: Living AgeBooks, 1956), pág.
51.

rumo à bondade ou, em outras versões, um pedante destituído de humor que adestra seus
pupilos nos fundamentos da moral. O Deus ariano era como o imperador
romano: sublime, remoto - um déspota.

Atanásio, pastor jovem que vivia na mesma cidade que Ario, percebeu que os
argumentos deste, por mais elogiosos que parecessem ser para Deus, aviltavam as
pessoas. Sentiu que havia alguma ligação profunda e íntima entre o que acreditamos
sobre Deus e a forma como agimos todos os dias, notou que internalizamos o que
entendemos como ação de Deus em nosso favor e expressamos isso em comportamento
social e político.

Se eu acreditar que Deus não compartilha dEle mesmo de forma pessoal e imediata, se
pensar que Ele age sempre de maneira impessoal e remota, adotarei a mesma postura.
Em meu papel de pai, passarei a dar ordens a meus filhos como se eles fossem meus
servos em lugar de conversar com eles como pessoas. Tratarei meu cônjuge
como alguém que deve atender minhas expectativas em lugar de me lançar à difícil arte
de dar e tomar da intimidade. Como trabalhador, darei mais importância à tarefa do que
à pessoa que a realiza. Cada vez que nego ou suprimo minha capacidade de manter
relacionamentos pessoais em favor de um status ou função impessoal, perco um pouco
da imagem de Deus em minha humanidade.

Minhas opiniões sobre Deus influenciam o que penso sobre mim mesmo e, assim, as
transformações que ocorrem em mim. O arianismo considera Deus criador, mas não
salvador; instrutor mas não ajudador; comandante mas não apaixonado. O resultado é
um Técnico onipotente em lugar de um Pai eterno. O Técnico cria, possui e usa como

um oleiro fabrica, possui e usa seus vasos. Mas potes de cerâmica não têm pai. Assim,
somos órgãos e o evangelho não existe.1

Esse tipo de pensamento sobre Deus destrói radicalmente o relacionamento, e os


grandes atos de encontro, amor e oração, desaparecem pouco a pouco. Apesar de todo
vigor intelectual e aparência de bom-senso, o arianismo é abomi-nação para as
Escrituras e a humanidade: uma religião sem amor e sem oração.2 E impossível ser
humano em sentido completo sem amor e oração, sem intimidade com o outro e com
Deus. Atanásio insistia que também era impossível ser Deus de acordo com as
Escrituras sem amor e oração. Jesus, que amou e orou entre nós, não estava mostrando
alguma coisa sobre Deus, mas estava na verdade sendo Deus conosco, compartilhando
a salvação em intimidade e eternidade que estavam além da lógica grega e do senso-
comum egípcio. Ele estando conosco e dentro de nós, uma grande transformação teve
início: “Ele se tomou homem para que pudéssemos nos tomar Deus”.

Por mais improvável que pareça, essa discussão entre dois pastores em Alexandria
acabou sendo o evento político mais importante do século IV. Prosseguiu por
décadas, provocou a realização de sínodos e concílios, deu início a perseguições
sangrentas e exigiu atenção completa, em-
bora relutante, de seis imperadores. É uma comprovação histórica marcante do
aforismo de Charles Péguy: “Tudo começa no misticismo e termina na política”.3 A
intensidade pessoal e interior de dar atenção a Deus se concentra em energia que se
expande para o exterior, na comunidade, no governo e na cultura. O momento nem
sempre é evidente, mas acontece o tempo todo.

Encarnação em público

Uma oração contribui para a alegação notável e ousada de compartilhar da própria


natureza de Deus. Participar da obra dEle lança cristãos e suas comunidades
repetidas vezes no centro da história mundial. E o Salmo 82. Ele coloca em risco o
monoteísmo para nos atrair a percepções e reações que praticam a encarnação em
público.

A linha de abertura estabelece o precedente para Ire-neu e Atanásio. Na companhia de


toda sua parentela esquecida e não mencionada, eles se aventuraram a deixar a
segurança dos santuários - não sem certo temor - e foram para as ruas como “pequenos
Cristos” (o significado original de cristão).

E Deus quem preside à assembléia divina;

no meio dos deuses, ele é o juiz.

Não há, nos Salmos, outra passagem que exija tanto conhecimento teológico do tradutor.
Nenhuma tradução literal fica correta, pois é: “Deus (‘elohim) se coloca na
congregação de Deus (W); entre deuses (‘elohim) ele julga”. A dificuldade é que a
mesma palavra para Deus, ‘elohim, é usa-

da duas vezes, mas com significado diferente. Na primeira ocorrência está claro que se
refere ao Deus de Israel, Criador e Juiz do universo. Mas a segunda é mais difícil.
Usando o contexto para interpretar, vemos que se refere aos juizes humanos de Israel, a
quem foi atribuída função elevada, semelhante à de Deus.4 Esses “deuses” são acusados
de julgar injustamente e recebem a ordem de partir e agir da forma correta (versículos
2-4). A “divindade” deles é reafirmada no versículo 6, junto com a mortalidade no 7.

Assim, estamos diante não de uma definição, mas de uma visão teológica, cenário de
pessoas trabalhando em serviços que Deus lhes atribuiu. O texto O apresenta como Juiz,
mas Ele não reserva o trabalho exclusivamente para Ele mesmo. Compartilha. Isso é
surpreendente, pois requer inteligência elevada e virtude inflexível. Além disso, se
o trabalho for mal feito, os resultados adversos chegarão ao próprio Juiz e provocarão
questionamento sério sobre a capacidade de quem está no controle: todos os
fundamentos da terra estão abalados (v.5).

Todos que receberam a incumbência de julgar são vistos reunidos em uma assembléia
em tomo de Deus, o Juiz. A visão é clara e limpa - sem enfeites nem narrativas. Deus e
deuses aparecem cinco vezes (versículos 1, 6 e 8). Juiz e justiça, cinco (versículos 2,3
e 8). O tema é claro: os que receberam uma tarefa de Deus são chamados a prestar
contas.

É função dos juizes distribuir a justiça, manter o direito, resgatar, libertar. Têm
responsabilidade especial com os fracos, órfãos, aflitos, destituídos e necessitados.
Mas esses juizes não estão cumprindo sua missão. Julgam segundo seus caprichos e
preconceitos. Ajudam os ricos e são influenciados pelos perversos. O resultado da
ação de um juiz sábio, honesto e justo é aparente na vida dos que se colocam diante
dele. E também quando ele é tolo, desonesto e tendencioso, o resultado é evidente na
vida dos que ele julga.

A evidência histórica acusa os juizes. Por quanto tempo continuarão sendo injustos?
São colocados no banco dos réus: juizes julgados. Não são soberanos em seu
trabalho, participam da obra de Deus. Essa tarefa, por derivar de Deus e ser delegada
por Ele, os transforma, funcionalmente, em deuses. Mas não os torna, eles mesmos,
deuses, pois vocês morrerão como simples homens (v.7).

Esses deuses não estão trabalhando como deuses: em seu serviço, traem seu chamado,
sem dar atenção à natureza e ao propósito de sua obra. ‘Eles nada sabem, nada
entendem. Vagueiam pelas trevas. ” (v.5) Mas o que deixam de saber, de entender e de
ver? Que são deuses em seu trabalho. Acreditam que por eles mesmos são deuses e que
por isso podem fazer o que quiserem, mas isso não é verdade. Se não fizerem seu
trabalho em obediência a Deus, acabarão se tornando nada: ‘ Vocês são deuses, todos
vocês são filhos do Altíssimo. Mas vocês morrerão como simples homens; cairão
como qualquer outro governante' (versículos 6-7). Se tomarmos o título de deus e não
fizermos o trabalho correspondente, só conseguiremos enganar a nós mesmos. A morte
revelará a ilusão.

Questionamento hostil

Jesus corroborou essa interpretação do Salmo 82. No inverno que antecedeu Sua
paixão, foi questionado com hostilidade: “Até quando nos deixará em suspense? Se
é você o Cristo, diga-nos abertamente”. Jesus disse: “Eu e o Pai somos um A pena
para esse desafio ao monoteís-mo era apedrejamento, e os judeus pegaram pedras para
a execução. Jesus perguntou: “Eu lhes mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por
qual delas vocês querem me apedrejar? Eles retorquiram: “Não vamos apedrejá-
lo por nenhuma boa obra, mas pela blasfêmia, porque você é um simples homem e se
apresenta como Deus Jesus conseguiu salvar sua vida com uma citação do Salmo
82: “Não está escrito na Lei de vocês: ‘Eu disse: Vocês são deuses ’? Se ele chamou
‘deuses ’ àqueles a quem veio a palavra de Deus (e a Escritura não pode ser
anulada), que dizer a respeito daquele a quem o Pai santificou e enviou ao mundo?
Então, por que vocês me acusam de blasfêmia porque eu disse: Sou Filho de Deus?”
(João 10.24-36).

Jesus atribuiu essa palavra a Ele mesmo, mas não com exclusividade: “Se ele chamou
‘deuses’ a quem veio a palavra de Deus...”. Essa é uma sentença interpretativa. Por
Sua Palavra, Deus transforma homens e mulheres em “deuses”. Pela ordem dEle, os
juizes eram deuses, realizando seu trabalho. Aqui, como em Gênesis. “Ele falou, e tudo
se fez. ” (Salmo 33.9) O,caos virou cosmos. Humanos se tornaramjuizes
que participanTda irmijstjação diviní da justiçaj^om isso, passaram a ser deuses. j
Vocês são deuses” ] uma atribuição cho-cantedo divihõj^ToTrãbãlliõrealizado por
humanos. Soa como blasfêmia aos nossos ouvidos, assim como foi com os

judeus que desafiaram Jesus. Mas não é blasfêmia, é encarnação.

Jesus usa o texto de forma consistente com o significado do Salmo: enfatiza o trabalho,
não o ser, não o que a pessoa é, mas o que ela faz. Ao fazer essa observação, não estou
desprezando a forte ênfase sobre o ser por todo o evangelho de João, onde Jesus é
apresentado como divino (a seqüência de afirmações com “eu sou” abrange toda
essa ênfase). Mas repare que o Salmo 82 foi usado para estabelecer o trabalho como
sinal de participação no divino: "As obras que eu realizo em nome de meu Pai falam
por mim ... Eu lhes mostrei muitas boas obras da parte do Pai. Por qual delas vocês
querem me apedrejar? ... Se eu não realizo as obras do meu Pai, não creiam em mim
... creiam nas obras ” (João 10.25, 32, 38, grifos meus).

Embora a obra importante do julgamento humano tenha sido uma que sabemos que Jesus
excluiu com muita deliberação de sua prática {"Homem, quem me designou juiz ou
árbitro entre vocês?" Lucas 12.14), Ele se incluiu no espaço da referência do Salmo.
A missão d Ele era ensinar, curar, pregar, visitar, orar e, muito provavelmente,
no início de Sua vida, praticar carpintaria. Mas Ele entendia que os juizes do Salmo
representavam todos os obreiros. Sua auto-inclusão expande a referência para além do
trabalho dos juizes, envolve todo tipo de obra: uma atribuição para participar da obra
divina. Não há trabalho secular. Nenhum serviço é apenas nosso. Ao trabalhar, nunca
estamos “por conta própria”.
Somos semelhantes a Deus no trabalho porque toda obra tem origem nEle e é Ele quem
determina o que devemos fazer. Há dupla intenção no trabalho: continuar o

processo da criação (Gênesis 2.15) e enfrentar as consequências do pecado (Gênesis


3.17-19, 23). A obra original de cuidar do jardim não foi revogada pela Queda, mas
por certo ficou mais complicada com a presença de espinhos e pragas.

A reunião visionária de juizes no Salmo 82 gera outras visões: reuniões de motoristas,


médicos, construtores, advogados, comerciantes, professores, mineiros, guardas
florestais, fazendeiros, marinheiros, pastores, soldados, pescadores, assistentes sociais,
jornalistas, artistas, estivadores - o catálogo de visões mais variadas que conseguirmos
imaginar. Visão não é doutrina. Seu propósito não é estabelecer linhas claras de
definições, mas sim abrir os horizontes da imaginação para o mundo extenso da ação de
Deus. As visões não são cautelosas e cuidadosas, mas de extravagância
descuidada. Percebemos lampejos da maravilha de nosso serviço, de sua santidade e
significado. Em sua origem e intenção, o trabalho almeja aumentar as bênçãos da
criação e anular os efeitos da perversidade. Reunidos assim pela visão, eu e meus
colegas ouvimos a pergunta: “Suas obras têm dado origem a vítimas ou a gente que
celebra?”.

Todo trabalho foi planejado para fluir da ação de Deus. Exatamente da mesma forma,
todas as obras podem se afastar dEle. Qualquer serviço é passível de separação do
alvo original e de explorar e rebaixar pessoas, coisas, sociedades e instituições. Em
sua execução, o trabalho pode usar pessoas, materiais e idéias em benefício próprio, e
com isso a intenção da criação é subvertida e os caminhos do pecado crescem.
Nenhuma obra está livre desse risco. O serviço ao ego acontece tanto na igreja quanto
nas fábricas. A exploração tem lugar com a mesma

facilidade no púlpito e no hospital. Juizes se corrompem. Presidentes defraudam.


Cientistas são desonestos. Robert Louis Stevenson deparou-se com um homem
espancando um cachorro em uma rua de Edimburgo. Partiu para a ação - agarrou o
homem pelo colarinho, empurrou-o para uma parede e censurou-o. O homem
choramingou: “O cachorro é meu e posso fazer com ele o que eu bem
quiser”. Stevenson respondeu: “O cachorro não é seu. É de Deus, e estou aqui para
protegê-lo”.

O que foi visto na oração começa a ser absorvido. O teste do valor do trabalho não está
no lucro que gera nem no status que confere, mas nos efeitos que causa na criação.
Temos que verificar se as pessoas empobreceram, se a terra foi aviltada e a sociedade,
defraudada, se o mundo melhorou ou piorou por causa de minhas obras. Estamos tão
acostumados a avaliar em termos de produtividade que deixamos de perceber a
importância em termos de criatividade. Faz tanto tempo que nos dedicamos à eficiência
e ao lucro que nem nos ocorre questionar a virtude. Mas Adam Smith não faz parte do
Cânon e o Salmo 82 faz. Deus nos concede trabalho não para estimular a ambição nem
para encher nossos bolsos, mas para aprofundar a criação e santificar a
sociedade. Nenhuma obra pode ser reduzida apenas ao que fazemos para ganhar a vida.
Todo trabalho implica em participação na obra divina. Deus trabalha e por isso nós
também trabalhamos, e nisso somos deuses. Direcionamos energia, moldamos matéria e
participamos de relacionamentos, cultivamos e cuidamos de terra e altar.

O Salmo 82 se coloca como marco de alerta contra a oração como afastamento


religioso do mundo externo para cultivo de experiências interiores. A visão afasta
nossa aten-

ção da vida interior e leva para toda a abrangência da exterior em nosso trabalho e
vocação. Gregário de Nissa, um dos primeiros pais da Igreja, insistiu com maestria em
que orar a Deus é impossível se o ato estiver confinado à mente e ao coração: não há
nada na oração que possa ser destilado da vida e mantido santo em uma garrafa. Ele
dirigiu a atenção para a participação não no que Deus é, mas no que ele faz.

O homem que compartilha com o pobre compartilhará também com Aquele que se
tornou pobre por amor a nós. ... Precisamos imitar a compaixão divina de tal forma
que tenhamos a ousadia de dizer a Deus: “Imita teu servo, Senhor, teu pobre c
necessitado servo. Eu perdoei, perdoa tu agora”.9

Tornar-se Deus, então, é agir como Ele age - em amor, pobreza e compaixão - não
apenas em algumas noites por mês e nos finais de semana, mas no trabalho diário.
“Exter-nalizar” é ato de oração tanto quanto internalizar.

O Salmo 82 foi arranjado em forma de visão. Ao orá-lo, nos vemos chamados a prestar
contas diante de Deus. Não poderiamos jamais desperdiçar a vida de forma tão
trivial, servindo a nós mesmos e, com isso, infligindo tanta crueldade e devastação aos
outros. Percebemos que somos deuses, não em auto-afirmação orgulhosa, mas em
descoberta que provoca respeito: somos responsáveis por poupar vidas,
distribuir amor, exercer compaixão e oferecer misericórdia. Nos encontramos em
posição de fazer alguma coisa pelos outros, seja explorar ou ajudar, ferir ou curar.
Somos mais do que pessoas que fazem o melhor possível, tentam ficar fora do
caminho dos importantes e empurram para o lado os pequenos. Diante

9. Grcgório dc Nissa, From Glory to Glory (Nova Iorque: Charles Scribner‘s Sons.
1961). pág. 190.
de Deus, entendemos quanto nós mesmos e o mundo empobrecem quando o trabalho
comum é visto como alheio à vida de fé. A visão recupera o esplendor original e nos
testa com relação a Ele, em ato de julgamento. Nunca mais verei o trabalho como
aquilo que sou obrigado a fazer para prosseguir como ser humano. Através da visão,
que volta na oração e é muitas vezes revista, recupero minha inclusão na
declaração incrível: “Vocês são deuses”.

De ver a dizer

Mas isso não é a visão completa. Há, bem no final, uma transição de ver para dizer.
Surge um clamor:

Levanta-te, ó Deus, julga a terra,

pois todas as nações te pertencem

“Levanta-te, ó Deus...” Quando oramos, pensamos que estamos fazendo Deus participar
de nossas operações. O que acontece é o contrário. Em lugar de atribuir a Ele uma
tarefa, descobrimos que serviço Ele designou para nós, vemos que não conseguimos
realizar e que precisamos da iniciativa dEle para que o serviço volte a acontecer
em nós e nos outros. Ao pedir a Deus que realize o trabalho dEle, que entendi ser meu
também, volto a participar, embora não saiba muito bem o que fazer, mas agora não
sirvo mais a mim mesmo.

E então: “terra ... nações”. A visão deixou claro que nosso propósito não é cuidar de
nós mesmos e sim da terra e das nações. A terra é assunto de oração tanto quanto
a alma. As nações, tanto quanto o próximo. A visão nos provoca e motiva a orar com
tanta veemência pela terra e as nações quanto oramos por nossa saúde e salvação. Não
se

trata de reduzir os assuntos pessoais e se concentrar nos políticos. A oração expande


nossa capacidade de forma que mantemos tudo em nosso campo de oração e, assim, na
intercessão.

Buckminster Fuller declarou que o propósito das pessoas neste mundo é ir contra a
maré de entropia descrita na Segunda Lei da Termodinâmica. Os elementos físicos
se desfazem em um ritmo terrível. As pessoas, por sua vez, tentam refazer. Constroem
pontes, cidades e estradas; escrevem músicas, romances e constituições; têm idéias.
Para isso vivem neste mundo. O universo precisa de alguém ou alguma coisa que
impeça sua destruição. Fuller não incluiu a oração em sua lista de providências, de
forma que eu complemento: a oração acaba com a destruição. 10

Visões que levam à oração mostram a santidade das tarefas humanas de todos os dias.
A intercessão restaura o trabalho desordenado e o recoloca em seu devido caminho. A
invocação interfere com a queda de culturas e sistemas e faz de ora et labora o lema
que molda nossa história.

!0. Devo essa referência a Annie Dillard, Living by Fiction (Nova Iorque: Harpcr&
Row. 1982), pág. 173.
Material com direitos autorais

Capítulo 10
1

Leech. The Social God, pág. 34.

“Em cada ponto temos clareza aparente, enquanto que tudo é vazio e formal,
entusiasmo infantil para brincar com cascas e conchas e satisfação de criança na
elaboração de silogismos vazios.” Adolf Hamack, History of Dogma, 7 volumes
(Nova Iorque: Dover Publications, 1961), 4:41-42. Co-chrane, em sua análise
irrefutável da controvérsia, escreveu: “O arianismo foi descrito como uma heresia
de bom-senso, e foi sugerido que o verdadeiro problema com o heresiarca era que
‘ele era incapaz de entender uma metáfora’”. Christianity and Classical Citltare,
pág. 233.

Charles Péguy, Basic Verities (Nova Iorque: Pantheon Books, 1943), pág. 109.

A interpretação mais comum é que a visão descreve deidades pagãs reunidas


diante de um tribunal celeste, onde Deus as julga por seu ernbo-tamento moral,
responsável pela desordem cósmica e social. Ver Dahood. The Psalms, 2:268. Não
tenho objeção à possibilidade das imagens da visão virem de algum tipo de
mitologia, mas, em seu contexto canônico, parece-me muito mais provável que o
Salmo tenha sido orado a partir de material da experiência real. pessoal e histórica.
Suficiência de Deus
SALMO 114

Quando Israel saiu do Egito, e a casa de Jacó saiu do meio de um povo de língua
estrangeira,

Judá tornou-se o santuário de Deus,

Israel o seu domínio.

O mar olhou e fugiu, o Jordão retrocedeu; os montes saltaram como carneiros, as


colinas, como cordeiros.

Por que fugir, ó mar?

E você, Jordão, por que retroceder?

Por que vocês saltaram como carneiros, ó montes? E vocês, colinas, porque saltaram
como cordeiros?

Estremeça na presença do Soberano, ó terra, na presença do Deus de Jacó!

Ele fez da rocha um açude, do rochedo uma fonte.


Material com direitos autorais

Para me criar, e criar você, Deus tem que criar meio universo. O corpo e a mente de
um homem formam um foco em que um mundo se concentra e se delineia até
certo ponto.

AUSTIN FARRF.R 1

Eopinião corrente na atualidade que a culpa pela


desordem ecológica ocorrida no século XX cabe aos
cristãos. Para sustentar a acusação, surge a
constatação de que os cristãos costumam se preparar
mais para a vida eterna do que para a temporal e que,
em seu sistema de valores, o Céu é muito mais
importante do que a Terra: “Sou forasteiro aqui, em
terra estranha estou”. Tendo como alvo fundamental
viver etemamente nos Céus, possuem apenas sobras
de energia para cuidar deste planeta e perder tempo
com ele.
Acompanha essa preferência pelo Céu a convicção de que a Terra se destina à
destruição iminente. Diante de sina tão trágica, fica difícil reunir entusiasmo para
limpar rios e preservar florestas que logo se desfarão em cinzas no incêndio terrível do
Dia do Juízo. Com a Terra já em estado avançado de decadência e corrupção, uma mina
de superfície aqui e um aterro de lixo radioativo um pouco mais adiante farão muito
pouca diferença. Uma forma muito melhor de aproveitar o tempo é tratar dos assuntos
da alma, que a deixarão pronta para habitar na “nova Terra” que descerá do Céu
quando acabar o julgamento da que existe agora.

Essa acusação contra os cristãos encontra base na citação de textos bíblicos que
aconselham a exploração da Terra. Muitos afirmam que o texto de Gênesis: Encham
e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, so-

1. Austin Farrer, Finite andInfinite (Westminster: Dacre Press. 1959), pág. 94.

bre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra (Gênesis 1:28)
foi interpretado pelos cristãos como licença para fazer o que bem entendessem com a
terra, peixes, pássaros e tudo que se move. Subjugar significa “colocado em uso para
atender meus propósitos”. Dominar significa “eu estou no controle”. Posso derrubar as
florestas sem pensar nas conseqüências, matar baleias, garças e búfalos segundo minha
vontade, poluir os rios sem parar para pensar. A Terra e seus recursos são meus e
posso usá-los como quiser. Foi Deus quem disse isso.

A acusação cresce ainda mais diante de comparações com pessoas que não têm contato
com a Bíblia. Os povos primitivos mantêm relação muito diferente com a Terra:
reverência por ela e pelas forças da natureza - clima, estações, vegetação e vida
selvagem. Há grandes mistérios, além da compreensão. Esses povos vivem em temor e
reverência diante da montanha, do rio, do trovão. Os pagãos, de forma semelhante, têm
relação diferente com o planeta: eles o celebram, bem como as energias que se movem
por ele - o jorro de vida, o êxtase da procriação e a influência do sol e das estrelas.

Pagãos e povos primitivos sabem que há algo muito maior do que eles dentro, embaixo
e sobre a Terra. Aprendem rituais e histórias que os mantêm em harmonia com ela. Mas
os que seguem a Bíblia desprezam o planeta. Ele está “abaixo”. Gostam de usá-lo,
como um senhor gosta de um servo e o usa, com pouca atenção e até mesmo
percepção de que o servo tem dignidade e um destino que ultrapassa muito a tarefa
trivial de tomar a vida conveniente para o 1

senhor. Essa atitude possibilitou a devastação generalizada e impensada de terra, mar e


ar. A postura primitiva diante da natureza jamais resultaria nisso. A postura pagã não
teria permitido que tudo isso acontecesse. O pensamento bíblico forneceu atitudes e
racionalizações que tomaram tudo possível. 1

Natureza em frangalhos

Essa é a acusação. Será verdade?

Dificilmente. Ela teve início em ignorância vergonhosa e indesculpável sobre a mente


bíblica e a história moderna. F fato que homens e mulheres violaram a Terra. Nunca
houve, em toda a história humana, um período em que a destruição fosse tão severa
quanto agora. O filósofo francês Maurice Merleau-Ponty resumiu o resultado
da obstinação moderna com brevidade sombria: “A natureza está em frangalhos”.3

Mas a responsabilidade pela profanação não pode ser atribuída à mente bíblica. E
verdade que as Escrituras, fazendo contraste com religiões primitivas e pagãs, não
consideram a natureza divina e, como conseqüência, objeto de adoração. Ela é vista
como criação: trazida à existência pela palavra de Deus e, assim, revelação de bondade
e bênção. Humanos não são servos do mundo natural (visão dos pagãos e primitivos).
Em decorrência disso, não sentem terror nem êxtase diante dele. Mas também não estão,
de forma alguma, acima dele, para poderem olhá-lo de cima, sem cuidado ou em
postura de condescendência.

Sendo as criaturas mais desenvolvidas, “à imagem de Deus”, podemos, por vontade


própria, participar dos planos dEle. Temos para com o jardim a imensa responsabili-

3. Citado por Barrett, The lllusion ofTechnique, pág. 335.

dade de “cuidar dele e cultivá-lo” (Gênesis 2.15) e somos “encarregados dos


mistérios” (1 Coríntios 4.1). A criação não é um estranho a ser tratado com hostilidade,
superstição ou indiferença. Foi feita pelo mesmo Criador que fez homem e mulher que
são, assim, da ímesma parentela de todos os elementos da criação. As atitudes que os
textos bíblicos produzem são apreciação, responsabilidade, gratidão e mutualismo.

Desprezo pela Terra é postura moderna e secular, não antiga nem bíblica. Mais do que
qualquer outro fator, a revolução do pensamento e da ação humanos introduzida pela
idade que se costuma chamar de íluminismo responde por essa postura. Nesse
movimento intelectual e espiritual, os seres humanos assumiram o controle de todas as
coisas, do ego e do mundo. As posturas diante do mundo se tornaram secularizadas, de
tal forma que deixou de existir um Deus de amor e justiça a quem as pessoas prestavam
contas, só a humanidade de ambição e auto-interesse para dar ordens. “Glória ao
homem nas alturas e um alto padrão de vida para todos na Terra” foi o hino-tema. A
Terra está aqui para usarmos, não para cuidarmos. O desenvolvimento tecnológico
forneceu cada vez mais instrumentos poderosos para impor a vontade humana sobre o
ambiente, ao mesmo tempo em que o entendimento espiritual, que restringe o orgulho
e cultiva a humildade, diminuiu.

Adotando “imagem de Deus” como a metáfora controladora, o entendimento de nosso


lugar no universo se desfaz, substituído pelo mito da auto-suficiência. Cada vez

4. Encontra-se apresentação excelente da história das atitudes e da situação corrente em


Earthkeeping, editado por Loren Wilkinson (Grand Rapids: Eerdmans, 1980), pág. 19.

menos pessoas perguntam: “Qual o plano de Deus na criação?”. Elas querem saber:
“Como posso usar a criação para atingir meus objetivos?”. Os propósitos deixaram de
ser avaliados em comparação com os de Deus. Simplesmente paríe-se da convicção de
que o que é bom para os humanos é bom para tudo.

Afastado do contexto da criação que atende os propósitos divinos, o livre-arbítrio


humano toma suas próprias decisões sem submetê-las à instância superior (coisa que
a maioria das pessoas desconhece). Acabaram-se os passeios de meditação na
tranqüilidade arrebatadora das florestas, as orações em gratidão ao Criador. As matas
fofám invadidas por técnicos que calculam quantas máquinas serão necessárias para
limpar a terra para um novo condomínio. A passividade sábia de criaturas à vontade
umas com as outras foi trocada pelo aperto nervoso dos tecgólogos nos controles de
uma máquina.4 Claro que isso não aconteceu sempre, nem foi a atitude de todas as
pessoas. Ainda há gente sensível aos valores humanos e à realidade moral, que usa a
tecnologia com cuidado para a glória de Deus. Mas esses compõem o remanescente.

Como conseqüência da devastação aparente em todos os aspectos dessa deificação da


vontade voraz, ávida, com sede de poder, presunçosa e impulsiva e à luz da
acusação que pesa sobre a mente bíblica, pessoas preocupadas com a devastação
buscam inspiração e direção nos modelos primitivos ou pagãos. Muitos cristãos foram
levados na mesma onda. Seria muito melhor se nos dedicássemos ao que fazemos
melhor: orar. Temos tradição de muitos séculos de reunir elementos do ambiente em
atos de oração, o que nos coloca tanto em sintonia com a criação quanto com o serviço
do Criador para que o serviço ininterrupto dEle se torne nosso também. Orar seguindo
determinados Salmos nos coloca em posição de interceder, que desenvolve atos que
acabam com o domínio do ego com relação à Terra. O Salmo 11^ é um ponto*le
partida.

Antioração

O que mais chama atenção no Salmo 114 são as imagens: o mar fugindo, o Jordão
retrocedendo, montanhas e colinas saltando como carneiros e cordeiros, pedras e
rochas esguichando correntes de água. Eis a oração imersa na percepção da criação,
familiarizada com a Terra, sensível à vida nos aspectos não humanos do ambiente.

Olhando outra vez, vemos que a oração não trata da natureza, e sim da história: um
evento a saída do Egito - está presente nela. Examinando mais a fundo, descobrimos
que não há, na Bíblia, Salmos para a “natureza”, ou seja, sobre ou dirigidos a ela.

Há Salmos que tratam de nossa experiência e conhecimento sobre céu, mar, animais e
aves, usados como vocabulário de oração, mas sempre se ora sobre Deus, não sobre a
natureza. Os Salmistas louvam o ato divino da criação (S1.33); expressam reverência
diante de sua incrível condescendência ao incluir os humanos em posição de
responsabilidade (S1.8); justapõem as glórias gêmeas do céu e da lei na revelação do
plano de Deus (19); ficam maravilhados pelo esquema de providência elaborado de
forma impressionante nas relações intrincadas entre luz, vendo, nuvens, oceanos, fontes,
pássaros, peixes, cegonhas, coelhos, pessoas trabalhando e pessoas louvando (S1.104).
Entretanto, os Salmos nunca eram sobre a natureza, sempre sobre Deus.

Os poetas bíblicos não se dedicavam à contemplação da natureza. Na verdade,


opunham-se veementemente a isso. Era uma oposição deliberada, já que os hebreus
viviam cercados por povos que cultuavam a natureza. Os aspectos mais notórios nela
são fecundidade e destruição: por um lado, os processos ocultos de nascimento na terra
e no útero e, por outro, as forças terríveis de vulcões, terremotos e tempestades
impossíveis de prever e controlar. Os cananeus (e o mesmo acontecia em todas as
nações extrabíblicas vizinhas) se admiravam com essa divindade que não
podiam controlar e a ela oravam. E fácil identificar por que faziam isso, já que
inadvertidamente o fazemos até hoje. E difícil descobrir por que o mesmo não
acontecia com os hebreus.

O mundo que nos cerca é magnífico. Sempre que lhe damos atenção, surgem em nós
sentimentos e pensamentos que nos arrebatam, que se parecem muito com oração. São
tão espontâneos, sem elaboração, autênticos e despretensiosos, que poucos duvidam de
algum tipo de comunhão profunda com uma realidade acima de nós, com deuses - ou
Deus. Comparadas com a experiência em cultos com hora marcada, em lugar de oração
estabelecida, essas sempre parecem mais genuínas. Isso talvez responda pela
preferência tantas vezes declarada pelo pôr-do-sol na praia em lugar de hinos do século
XVI11 cantados em uma capela.

Mas, quando nos voltamos para os ambientes naturais para recuperar esses sentimentos,
o que costuma acontecer é que prestamos mais atenção ao que sentimos do que
em Deus. Cruzamos uma linha divisória. Não estamos orando, mas sim “usando” a
natureza para produzir sentimentos religiosos. Penetramos no ritmo misterioso das
estações, nos

entregamos aos êxtases do clima, nos abrimos à influência do sol e dos planetas.

Por si só, não há nada errado nessa prática, e muito está certo. Errado é desenvolver a
manipulação e exploração sistemáticas da natureza. No curso de submeter-se às
forças naturais e absorver as energias da natureza divina, chega um ponto em que a
pessoa passa a questionar se não seria capaz de inverter a influência para que as forças
que vinha recebendo no ego sejam redirecionadas de alguma forma para influenciar a
natureza. Parece plausível e ela se lança à experiência. Acabou de cruzar outra linha
divisória. Está usando a criação para alterar a criação, virando-a contra ela mesma.

A prática é tão comum que recebeu um nome de fantasia: homeopatia, ou seja, cultivar
sentimentos/ritmos/ações de natureza divina para que a natureza divina fique sob minha
influência. A religião da natureza opera com base no princípio de que há alguma coisa
divina em montanhas, rios, na lua, no sol, nas estrelas, estações e no clima.
“Penetrando” na natureza, a pessoa entra no divino, participa da fertilidade, alia-se ao
lado vitorioso, experimenta êxtases imortais. Há na criação forças divinas que podem
ser ofendidas ou apaziguadas. Praticando os rituais adequados e com um pouco de sorte
conseguiremos manipular a natureza em benefício próprio.

Essa é a origem da antioração chamada mágica. A oração é a prática da


disponibilidade diante de Deus, mágica é o exercício da obstinação na natureza.
Mágica é o uso habilidoso de meios naturais para manipular o sobrenatural (seja ele
Deus ou o diabo) para levar o natural a satisfazer minha vontade. O mágico sabe usar
ervas, o movimento dos planetas, o encantamento dos sons, o prep-

aro de poções, a elaboração de diagramas (tudo na esfera da natureza) para impor sua
vontade sobre a natureza. Nos dias dos salmistas essa religião se chamava baalismo.5
Hoje essa religião surge na forma de uma ou outra tecnologia faustiana (usar a natureza
para orquestrar a concupiscência pelos sentimentos, usar a natureza para satisfazer o
desejo de poder, e assim por diante).

O relato cômico de 1 Reis 18, em que os sacerdotes de Baal se cortavam com pedras
para derramar o sangue na tentativa de influenciar o céu para que viesse a chuva, é a
história mais famosa da Bíblia sobre homeopatia. Se eles conseguissem fazer o líquido
vital fluir em quantidade suficiente de seus corpos, por certo o líquido vital também
fluiría de Baal, o deus do céu. Elias, ao contrário, não fez nada. Quem ora não age. A
ação cabe a Deus. Na oração não desenvolvemos tecnologia que coloca em movimento
engrenagens e roldanas de um milagre. Participamos da obra de Deus: “não seja como
eu quero, mas sim como Tu queres”.

Os tecnólogos são os sucessores dos magos pagãos. Os meios mudaram, mas o espírito
continua o mesmo: máquinas de metal e métodos psicológicos substituíram
poções mágicas, mas a intenção continua sendo impor minha vontade ao ambiente, a
qualquer preço. Deus não participa, ou então age só até o ponto em que pode ser usado
para acomodar o ego soberano.

O cenário da ação de Deus

Enquanto isso, o Salmo 1T4 mantém o foco na oração e não na magia. Mostra como
Deus age, tendo como
5. Um relato claro da singularidade da vida de fé de Israel em relação com o ambiente religioso encontra-
se em G. E. Wright, The Old Testament againsl Its Environment (Chicago: Alec Allenson, Inc., 1955).

cúmplice a natureza. Não há nenhuma indicação de como manipular a natureza para


alterar a história para nossa conveniência. A Terra não existe para ser usada por nós,
ela é o cenário da ação de Deus. Nos aproximamos da natureza em orgulho, para usá-la.
Na oração o salmista nos direciona para nos unirmos a ela em louvor e celebração
pela salvação de Deus.

Quando saiu Israel do Egito, e a casa de Jacó, do meio de um povo de língua


estranha, Judá se tomou o seu santuário, e Israel, o seu domínio. (Salmos 114.1-2,
RA)
As palavras mais discretas dessas linhas, os pronomes, acabam sendo as mais
importantes: Seu santuário,

Seu domínio, ou seja, santuário de Deus, domínio de Deus.

A experiência formativa da identidade de Israel, o êxodo, não é apresentado com


arrogância, como propaganda nacionalista, sob a qual se pode marchar gabando-se da
superioridade. Em lugar disso, o texto expressa submissão despretensiosa ao domínio
bondoso de Deus. A geografia (Judá) se torna liturgia (santuário). Um pedaço de
terra no oriente antigo se torna a arena em que a ação divina acontece. As duas formas
que costumamos usar para nos localizar na realidade (onde estamos e o que vemos)
são englobadas em elementos maiores e mais íntimos, a presença e a ação de Deus.
História e geografia são reunidas no culto.

A mente bíblica que ora, sabe que um lugar é mais do que geologia, mapa e análise,
mais que economia e propriedade. O lugar é visto em termos da presença e da ação de
Deus no ambiente. Essa mente não separa Deus da natureza. Rochas, rios, baleias e
elefantes são elementos

que participam da salvação. Não entende Deus através da natureza, faz exatamente o
contrário. Não declara que ela é divina, de forma que ela não leva peso maior do que é
capaz de suportar, de modo que não nos curvamos diante dela presos por superstições
apavorantes, nem ficamos enamorados dela por ilusões encantadoras. Também não
reduzimos Deus à natureza para podermos “dirigi-Lo”, convencidos de que basta
aprender a técnica certa para conseguir usá-Lo para alcançar nossos propósitos.

Mas surge o entendimento de algo mais semelhante a um sacramento: a saída do Egito e


a entrada em Canaã são meios que Deus usou para se fazer conhecido e presente com
Seu povo. Para isso, usou história passível de localização geográfica. A terra e seu
cenário não são instrumentos que as pessoas usam para influenciar Deus, mas sim
estrutura material para ação dEle entre Seu povo, que ora a Ele, não a uma pedra
“divina”, nem a um deus petrificado.

A diferença entre sacramento c ídolo (ou amuleto, encantamento, rito ou estatueta) é que
o primeiro é aquilo que Deus usa para dar e o segundo é o que usamos para pegar. O
elemento material está envolvido nos dois casos, mas nos dispomos diante do
sacramento e somos obstinados diante do ídolo. Assim, os sacramentos são a
matéria de todos os dias (rios, cordeiros, água, pão, vinho), porque Deus usa o que
estiver disponível para compartilhar dEle mesmo conosco. Os ídolos, por sua vez, são
matéria excepcional - metal precioso esculpido em formas impressionantes, objetos
incomuns como meteoros que suplementam nossa vontade e acrescentam força às nossas
aspirações de domínio. Entretanto, quando pensamos em Deus segundo o sacramento,
Ele usa nossa consciência para jogar uma

luz abrangente sobre o ambiente, que mostra Egito e Palestina (e também nosso país)
como lugar material em que Ele age em redenção.

O cantinho da vitória

As linhas intermediárias da oração expressam a forma como essa percepção


sacramental molda nossa relação com o ambiente.

O mar olhou e fugiu, o Jordão retrocedeu; os montes saltaram como carneiros, as


colinas, como cordeiros.

Em certo nível, isso nada mais é do que um relato vivo do êxodo: O mar olhou e fugiu.
Na linguagem mais sóbria da prosa, essa é a história de Israel. Fugindo dos egípcios e
bloqueados pelas águas do Mar Vermelho, os israelitas atravessaram por terra seca
depois que Moisés bateu com sua vara na água e o mar se abriu. Deus “providenciou
um caminho de escape”. O Jordão retrocedeu lembra quando o grande rio impediu a
entrada do povo na Terra Prometida depois da jornada de quarenta anos pelo deserto.
Então Josué bateu na água com a vara, o rio se abriu, o povo marchou por ele e iniciou
a conquista da terra. Deus providenciou um caminho para a vitória. O livro de Êxodo
narra em prosa que os montes saltaram como carneiros, as colinas, como cordeiros, a
história da longa espera do povo ao pé do Sinai, atemorizados pelo som do vulcão e o
terremoto que sacudia a montanha enquanto Moisés recebia a Lei.

Para dizer com clareza, a ação e a presença de Deus entre nós está tão além da
compreensão que a descrição séria e a definição precisa não servem mais. Os níveis de

realidade aqui vão tão além de nós que pedem extravagância na linguagem. Contudo,
não há exagero. Qualquer linguagem é inadequada e incapaz de transmitir as idéias.
Claro que as imagens do Mar Vermelho, fugindo como um chacal, do rio Jordão
abandonando seu posto como sentinela covarde, e da transformação do Sinai em
cordeiros e carneiros que brincam não são relato jornalístico dos acontecimentos, mas
também não são invenções de uma imaginação desenfreada. Trata-se de gente que ora e
testemunha a salvação. A transposição do que todos presumiam ser limitações reais (o
Mar Vermelho e o Rio Jordão) e o jorro inesperado de energia onde não havia nada
além de um afloramento imenso e morto de granito no deserto morto (Sinai)
determinaram novo uso para palavras antigas.
Há algo mais envolvido, ainda mais significativo. Na oração, adquirimos o que
Wallace Stevens chamou de “motivo para metáfora”. Vemos muito mais do que coisas
discretas, percebemos tudo em tensão dinâmica e em relação com tudo mais. A matéria
prima do mundo não é matéria, é energia. Para expressar essa vitalidade
interconectada usamos as metáforas.

A metáfora é uma palavra que carrega significado que vai além de sua função básica.
Em lugar de confundir, esse “além” estende e esclarece a compreensão. A linguagem da
ecologia demonstra a interligação de todas as coisas (ar, água, solo, pessoas, aves e
assim por diante). Exatamente da mesma maneira a da imaginação e a metáfora
demonstram a interligação de todas as palavras. O termo histórico (êxodo), o geológico
(montes) e o animal (carneiros) se relacionam com todas as outras palavras.

Os significados se ligam. Nada pode ser entendido isoladamente, analisado sob um


microscópio. Nenhuma palavra será compreendida com uma simples pesquisa
no dicionário. Desde o primeiro instante em que falamos somos atraídos à rede total de
todas as línguas que já foram faladas. Uma palavra nos leva a relacionamentos
surpreendentes com outra, depois mais outra, ainda outra. Por isso a oração gosta tanto
de palavras usadas com imaginação: metáfora, símile, metonímia, hipérbole. A oração
não usa a linguagem para construir um vocabulário do que existe, mas para nos ligar e
envolver em sintaxe associativa na qual tudo está em movimento, encontrando seu lugar
em ralação à palavra dita por Deus.

Wendell Berry disse bem: “A Terra não está morta, como o conceito de propriedade,
mas sim viva e com vigor, de forma intrincada como um homem, ou uma mulher e ... há
uma interdependência delicada entre a vida dela e a nossa”.6 Assim, a afirmação
imaginativa: os montes “saltaram como carneiros” é mais do que ilustração que
apresenta a exuberância de revelação do Sinai. É o entendimento penetrante de que a
Terra reage à revelação e participa dela. Paulo usa um pensamento diferente, embora
tão marcante quanto esse: Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como
em dores de parto. E não só isso, mas nós mesmos (Romanos 8.22-23). Metáfora e
símile não explicam, fazem com que deixemos de ser estranhos e nos tornam íntimos,
envolvidos em toda realidade criada pela Palavra de Deus.

A linguagem sofre depreciação, quando usa a metáfora como enfeite, para encobrir
pensamentos vazios e co-

6. Berry. A Continuous Harmony, pág. 12.

locar floreios em prosa de má qualidade. Na verdade, a linguagem imaginativa não é


aquilo que aprendemos a usar depois de dominar os rudimentos da fala comum. Ela
antecede a linguagem descritiva. Todas as crianças começam usando as palavras como
poetas, para elogiar, exclamar e comentar. A fala mais original e precisa é a
metafórica - palavras que descobrem uma unidade subjacente em que, muitas vezes com
surpresa, descobrimos que nos encaixamos, lugar ao qual pertencemos.

“Robert Frost lembra que 'Metáfora é tomar uma coisa por outra’. Nesse sentido,
toda linguagem é metafórica, pois insiste em ligar uma coisa a outra. Uma palavra,
qualquer uma, envia perpetuamente tentáculos de conexão por toda parte.”7

Somos residentes de um lar e não objetos em um ambiente. “Mundo” é mais do que


objeto de estudo e uso. Ele é permeado por espírito - de Deus e meu. Somos parte
do que conhecemos.

Entendemos agora que oração e poesia são parentes próximas. Toda palavra nos leva
mais para perto do lugar de onde as palavras vêm: a palavra criadora que faz montes,
carneiros, colinas, cordeiros, Israel, Judá, Jacó, Cristo, eu e você. Na poesia afirmamos
isso, na oração nos tornamos o que afirmamos à medida que nos encontramos
com Aquele que dá origem a tudo o que é dito.

Estremeça, ó terra

A última estrofe expressa o pessoal que se encontra no centro do natural.

Estremeça na presença do Soberano, ó terra, na presença do Deus de Jacó!


7. Barrett. The lUusion ofTechnique, pág. 173.

Ele fez da rocha um açude,

do rochedo uma fonte.

Aqui, terra abrange muitos elementos: Egito, Israel, Judá, mar, Jordão, montanhas,
colinas. No nivel mais profundo, não impera a divisão entre “animal, vegetal
e mineral”. Estamos juntos na presença de Deus, que não é o trovão do Sinai, nem as
ondulações do Jordão, nem as carruagens egípcias. E aquilo diante de que estamos
em reverência.

Estremeça aponta para o transcendental: admiração, respeito, reverência, humildade. O


homem-Prome-teu não treme diante de terra nem de altar, ele assume o comando. O
tecnológico não se impressiona com florestas nem exércitos de anjos; ele opera sua
régua de cálculo sem qualquer emoção, com mãos firmes. As pessoas que oram tremem
junto com toda criação que aguarda, com grande expectativa (Romanos 8.19) e em
adoração cheia de esperança diante do mistério da criação e da redenção na qual Deus
age em todas as coisas para o bem (8.28).

Paulo tentou apresentar esse processo com palavras retumbantes: predestinação,


justificação, glorificação. O esforço dele tem sido útil em muitos aspectos, mas
duvido que o pensamento teológico dele tenha conseguido nos levar muito além das
“orlas dos seus caminhos”. Mais tarde ele voltou à linguagem mais fundamental da
oração: O profundidade da riqueza da sabedoria e do conhecimento de Deus! Quão
insondáveis são os seus juízos e inescrutáveis os seus caminhos! (Romanos 11.33).
Nos encontramos, aqui, mais próximos da realidade, na presença da ação de Deus.
Deixamos de apenas pensar nela.

Quem não conhece Deus acredita que estremecer seja ficar apavorado na presença
dEle. Isso não é verdade. A sensação parece mais com uma diversão, uma
brincadeira de fé. “Natureza” costuma ser vista como uma vasta estrutura matemática de
causa e efeito, céu e terra governados por cetro de ferro, e qualquer um que ousar
desafiá-las será quebrado “em pedaços como um vaso de barro”. Por exemplo, a força
da gravidade é irrevogável e quebra minha perna se eu cair de uma árvore. A regra
inflexível da termodinâmica queima meu dedo quando pego uma forquilha que estava no
fogo.

A oração não desafia nem despreza essas leis, mas sabe que há mais do que elas no
ambiente. Existe também a liberdade. A diversão nasce no momento em que entendemos
isso. A oração, que entra em relacionamento com terra e céu, mar e montanha, brinca.
Ela salta e dança. Nosso universo não está preso nas leis de causa e efeito. Há, na
presença do Deus de Jacó, vida imprevisível. Existe liberdade para mudar, para nos
tornarmos melhores do que éramos ao entrar na presença de Deus, que faz da rocha
um açude, do rochedo uma fonte.

Milagres não são interrupções das leis. Se assim fosse, teriam que ser negados por
intelectuais preocupados ou defendidos por crentes ansiosos. Antes, são expressão da
liberdade desfrutada pelos filhos de um Pai sábio e generoso. Para entender esses
assuntos, nada de exegese rigorosa de textos bíblicos nem de experiências controladas
em laboratórios. Oramos sobre eles e, com isso, entremos em dimensões de liberdade
pessoal no universo. Em determinado nível (provavelmente, embora não
necessariamente, fora da compreensão acadêmica; os artigos da

“nova física” trazem esclarecimento inesperado sobre essas verdades), estamos


dançando. Nessa dança, lei e liberdade são sincronizadas e reagem uma à outra,
mutuamente dependentes, vivas e pessoais.
Nosso verdadeiro lar

Ninguém inicia a vida por sua própria conta. Também não termina. A vida, em especial
quando experimentamos pela fé a interação complexa entre criação e salvação, há mais
do que a mistura de bagagem genética e cultural. Não é um objeto feito com as tábuas e
os pregos de nossos pensamentos, sonhos, sentimentos e fantasias. Ninguém é auto-
suficiente. Ao nascer, penetramos em um mundo criado por Deus, já tomado por uma
história rica, repleta de participantes dedicados - mundo de animais,
montanhas, política e religião, onde as pessoas constroem casas, criam filhos, onde
vulcões cospem lava e rios correm para o mar; mundo onde, por mais cuidado que
tenhamos ao observar, analisar e estudar, fatos surpreendentes sempre acontecem
(como rochas se transformando em açudes). Sempre ficamos surpresos porque estamos
lidando com elementos além de nossas forças, que está acima de nossas cabeças.

Na oração, entendemos e praticamos nossa parte nesse envolvimento intrincado com


absolutamente tudo que existe, por mais distante que nos pareça ou por
mais indiferentes que sejamos. Essa oração vai além de uma ocupação secundária
emocionante ou agradável, à qual nos entregamos com prazer depois de terminar todo o
serviço de verdade. Ela é o tecido que liga nossa vasta existência. O mundo da criação
interpenetra o da redenção e vice-versa. O céu de beleza extravagante e a Terra
exuberante não são

meros cenários para fornecer um pouco de beleza à periferia do ego idolatrado. Eles
são a imensa beleza em que encontramos nosso verdadeiro lar, espaço em que
vivemos a cruz e Cristo, de forma abrangente, de coração aberto em louvor.
Material com direitos autorais

Capítulo 11
1

Ian L. McHarg, De.sign with Nature (Gardcn City, N.Y.: The Natural History
Press, 1969).
Amar a Deus
SALMO 45

Com o coração vibrando de boas palavras recito os meus versos em honra ao


rei; seja a minha língua como a pena de um hábil escritor.

Es dos homens o mais notável; derramou-se graça em teus lábios, visto que Deus te
abençoou para sempre.

Prende a espada à cintura, ó poderoso!

Cobre-te de esplendor e majestade.

Na tua majestade cavalga vitoriosamente pela verdade, pela misericórdia e pela


justiça; que a tua mão direita realize feitos gloriosos.

Tuas flechas afiadas atingem o coração dos inimigos do rei; debaixo dos teus pés
caem nações.

O teu trono, ó Deus, subsiste para todo o sempre; cetro de justiça é o cetro do teu
reino.

Amas a justiça e odeias a iniqii idade; por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te dentre
os teus companheiros ungindo-te com óleo de

alegria.

Todas as tuas vestes exalam aroma de mirra, aloés e cássia; nos palácios adornados
de marfim ressoam os instrumen-

tos de corda que te alegram.

Filhas de reis estão entre as mulheres da tua corte; à tua direita está a noiva real
enfeitada de ouro puro de

Ofir.

Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos: Esqueça o seu povo e a casa
paterna.
O rei foi cativado pela sua beleza; honre-o, pois ele é o seu senhor.

A cidade de Tiro trará seus presentes; seus moradores mais ricos buscarão o seu
favor.

Cheia de esplendor está a princesa em seus aposentos,

com vestes enfeitadas de ouro.

Em roupas bordadas é conduzida ao rei, acompanhada de um cortejo de virgens; são


levadas à tua

presença.

Com alegria e exultação são conduzidas ao palácio do rei.

Os teus filhos ocuparão o trono dos teus pais; por toda a terra os farás
príncipes. Perpetuarei a tua lembrança por todas as gerações; por isso as nações te
louvarão para todo o sempre.

Muitas vezes, quando dizemos "eu amo você ”, usa-


• íí >> (( * rrt

mos um imenso eu e um pequeno voce . lomamos “amo” como conjunção em lugar de


entender que é um verbo que implica em ação.

ANTHONY BLOOM 1

A oração é o ato que nos coloca em contato com os


relacionamentos mais abrangentes e os desenvolve -
ego, Deus, comunidade, criação, governo,
cultura. Nascemos em uma rede de relacionamentos e
continuamos nela por toda a vida. Mas muitas vezes
não é isso que sentimos. Nossa sensação é de
isolamento, afastamento, fragmentação e falta de
contato. Não aceitamos bem essa situação e nos
movemos para superá-la: telefonema para
um vizinho, inscrição em um clube, uma carta, um
casamento. As mais diversas tentativas se acumulam.
O ego parece menos isolado. A sociedade, menos
fragmentada. Os fatos se sucedem. Mas, se não
orarmos, não será suficiente: na oração, e só nela,
conseguimos penetrar na complexidade
e profundidade do todo dinâmico e inter-relacionado.
Deixar de orar não é uma omissão inofensiva. É
violação positiva do ego e da sociedade.
Se negarmos nossos relacionamentos, seremos piratas na sociedade, tomando sem dar,
vendo o mundo de coisas e pessoas como um espólio a pilhar. Se ignorarmos os
relacionamentos, seremos parasitas, sugando passivamente os nutrientes do corpo
político e dando apenas contribuição negativa à júda dos outrps. Oração é o ato
fundamental que impede, por um lado, que nos degeneremos em piratas e, por outro, nos
deformemos em parasitas.

I. Anthony Bloom, Begiming to Pray (Nova Iorque: Paulist Press, 1970), pág. XIV.

A situação em que isso fica mais aparente é o ato do amor. Estar apaixonado é a melhor
forma de viver como indivíduo e como cidadão. O amor leva o ego aos picos mais
elevados, e a sociedade à sua expressão mais madura. Amor é o ato em que público e
pessoal se unem de forma mais dramática, onde relacionamentos não vistos e bem além
de cálculos florescem e ficam à vista de maneira aconchegante e atraente. Nesse ato
interesses nacionais e individuais são buscados ao mesmo tempo.

Mas o amor é também o ato em que se manifesta o que temos de pior. Nesse campo
acontecem nossas conquistas mais extraordinárias, mas ele também é o palco das
quedas mais vergonhosas. O amor é o ato mais sublime de que os humanos são capazes,
mas também é a fonte das maiores desgraças. O êxtase surge do amor, mas a mesma
dinâmica muitas vezes se deteriora em violência. O lugar em que acontecem mais
assassinatos são os quartos dos casais.

O casamento expressa a conexão entre pessoal e público em todos os aspectos do amor.


Não há nada mais pessoal do que o casamento, onde duas pessoas se unem por vontade
própria e se entregam à alegria da intimidade. Também não há nada mais público: a
intimidade implica em responsabilidades, do modo que há necessidade de
um documento do Estado, da presença de um oficial público na cerimônia, de
testemunhas da comunidade para certificar o ato e registro oficial do evento em um
cartório. O casamento afirma a totalidade do amor entre duas pessoas. Além disso,
declara que a saúde da sociedade está em jogo. A cerimônia do casamento envolve em
um único ato a área pessoal e a pública. E, mesmo que os envolvidos não costumem
orar, ela costuma acontecer no lugar de oração.

E mesmo assim relutamos em acreditar que o amor seja um ato apropriado à política.
“Um casal que desfruta de um bom casamento”, escreveu Wendell Berry, “e cria filhos
saudáveis e moralmente competentes, prestam ao futuro do mundo serviço mais direto e
certo do que qualquer líder político, embora jamais pronunciem uma palavra pública
sequer.” 1 A cerimônia de casamento, estabelecida no limite entre pessoal e público,
continua a fornecer oportunidades para novos começos em amor que envolvem
indivíduos e sociedade. A relutância a explorar essas dimensões é fuga. Estamos
enrolados em amor a nós mesmos. Nos arriscamos em momentos rápidos de paixões
românticas em que tentamos incluir o outro, mas relutamos em ir além do cônjuge, do
filho ou do amigo. Vizinhos, chefes, grupos, causas, burocracia, nações, povos, raças -
todos são colocados sob outros rótulos como precedente, alfândega, protocolo,
interesse nacional, viabilidade econômica.

Do sagrado ao secular

O Salmo 45 é um hino de casamento. Como tal, integra pessoal e público na forma


característica das cerimônias. No sentido estrito, não se trata de oração, mas de cântico
dirigido aos noivos na presença de Deus. Contudo, no decorrer dos séculos de inclusão
nos cultos em templos, sinagogas e igrejas, acabou se tornando uma oração,
especialmente poderosa para acabar com o domínio do ego no amor.

A transição de secular a sagrado é bem comum na oração. Palavras que se arranjam


para tratar de assuntos

cotidianos se envolvem em uma realidade maior e, nesse contexto amplo, se


transformam em oração. A frase dita à mesa do jantar - “passe o pão” - é a experiência
que constrói a base para “o pão nosso de cada dia dá-nos hoje”. Um hino nupcial,
composto e entoado para noivos anônimos do antigo Israel, foi inserido em um livro de
orações (Salmos) e direciona a anulação do domínio do ego no amor nas orações
contemporâneas.

Com o coração vibrando de boas palavras

recito os meus versos cm honra ao rei ...

à tua direita está a noiva real enfeitada de ouro puro de Ofir.

O caráter público desse casamento é acentuado pela designação dos noivos como “rei”
e “noiva real” (versículos 1 e 9). Um casamento de Estado! Esse cântico
festivo celebra a união de um rei hebreu com uma rainha vinda de Tiro. As bodas reais
são eventos políticos, mas não deixam, por isso, de ser uniões românticas. Em nossa
sociedade democrática, onde os únicos casamentos reais que vemos são os transmitidos
da Grã-Bretanha, que ainda conserva traços de monarquia, o aspecto romântico das
uniões é o único aspecto a que damos atenção. Mas, na verdade, todo casamento
envolve o Estado, é autorizado e regulamentado pela legislação.

Em meio a velas, vestidos, músicas envolventes, votos fervorosos, abraços e beijos,


surgem também uma licença, algumas vezes enfiada sem a menor cerimônia no bolso de
um dos convidados. Os celebrantes, em muitas culturas, vestem os noivos como rei e
rainha, com coroa, tiara, cetro e vestido de cauda. A vestimenta formal enfatiza a
importância que os parceiros têm um para o outro, mas

também reconhece o impacto duradouro do casamento na sociedade, embora o casal


passe seus anos de vida comum usando roupas muito mais adequadas para fábricas,
mercados e fazendas.

O amor, em sua forma madura, é tanto pessoal quanto público e a cerimônia demonstra
isso. Mas poucas vezes vemos o amor desenvolver em totalidade inclusiva. Após o
casamento, o afastamento do amor é mais comum do que as aventuras. A imaturidade
fica mais em evidência do que a perfeição, mas o amor que se afasta do público
e mergulha na privacidade é irresponsável para com a nação. Cultiva o prazer
individual e abandona a responsabilidade comunitária.

Contudo, esse retraimento pode seguir em outra direção: amor que se afasta do pessoal
e vai para o público é irresponsável para com a família e os amigos. Leon
Tolstoi prendeu a atenção mundial durante alguns anos, proclamando o princípio do
amor como política pública, a forma de levar as nações a viverem em paz e união. No
entanto, os filhos dele reclamavam: “Papai ama o mundo, mas chuta os filhos como se
fossem cães”.2

De todos os aspectos em que o ego pode dominar uma pessoa, o amor a si mesmo é o
mais destrutivo. Amor é nosso modo básico de nos relacionarmos, exatamente como
acontece com Deus, à imagem de quem fomos criados. Se o usarmos fora de
relacionamentos, ou seja, egoisticamente, toraa-se uma abominação que corrompe a
sociedade e arruina o ego.3 Entretanto, a capacidade

para destruir passa longos períodos sem ser identificada porque aparece sob o título
envolvente de “amor”. Lutero dizia que o pecado era a pessoa incurvatus in se, ou
seja, curvada em si mesma. Quando o pecado leva o amor a se curvar em si mesmo ele
produz sua obra mais grotesca. A área em que isso fica mais evidente é no
casamento. O Salmo, ao colocar o casamento romântico em cenário político, fornece
um palco mais amplo para direcionar o desenvolvimento maduro do amor e protegê-lo
do aviltamento.

Nenhuma declaração de amor, por mais pública e apaixonada, garante que não haverá
decadência para levar o amor ao ego. Esse poema transformado em oração, o Salmo
45, toma dois elementos básicos do amor e os direciona para proteger contra as
distorções do amor a si mesmo e os desenvolve em belezas do amor maduro.
O primeiro elemento, direcionado ao rei-noivo, é adoração. O segundo, dirigido à
rainha-noiva, é afastamento. Adoração e afastamento em oração constituem a melhor
cura para o amor a si mesmo. Além disso, são de grande importância na vida política.

O amor é cego?

És dos homens o mais notável; derramou-se graça em teus lábios, visto que Deus te
abençoou para sempre.

Prende a espada à cintura, ó poderoso!

Cobre-te de esplendor e majestade.

Na tua majestade cavalga vitoriosamente pela verdade, pela misericórdia e pela


justiça; que a tua mão direita realize feitos gloriosos.

Tuas flechas afiadas

atingem o coração dos inimigos do rei;

debaixo dos teus pés caem nações.


O teu trono, ó Deus, subsiste para todo o sempre; cetro de justiça é o cetro do teu
reino.

Amas a justiça e odeias a iniqüidadc;

por isso Deus, o teu Deus, escolheu-te

dentre os teus companheiros ungindo-te com óleo de

alegria.

Todas as tuas vestes exalam aroma de mirra, aloés e cássia;

nos palácios adornados de marfim ressoam os instrumentos de corda que te


alegram.

Filhas de reis estão entre as mulheres da tua corte; à tua direita está a noiva real
enfeitada de ouro puro de Ofir.

A primeira metade do Salmo (versículos 2 a 9) é adoração livre e fluente, admiração


exuberante e extravagante. O noivo é belo (“és dos homens o mais notável”), fala
bem (“derramou-se graça em teus lábios”), heróico (“tuas flechas afiadas atingem o
coração dos inimigos do rei”), bondoso (“amas a justiça e odeias a iniqüidade”), alegre
(“nos palácios adornados de marfim ressoam os instrumentos de corda que te alegram”)
e feliz no amor (“à tua direita está a noiva real enfeitada de ouro puro de Ofir”).

Se eu, profundamente apaixonado por alguém, começar a descrever com paixão aquilo
que ninguém percebeu ou o que todos ignoraram durante muitos anos, alguns à minha
volta por certo irão comentar: “o amor é cego”. Isso quer dizer que o amor diminui a
capacidade de enxergar a realidade para que a fantasia, feita sob medida para se
encaixar em meus desejos, pode ser projetada sobre o outro e assim torná-lo mais
aceitável. A conseqüên-cia cínica é que se isso não acontecer, se eu o vir como

ele é de verdade, eu jamais me envolverei com ele, porque todo mundo é, de fato, bem
indigno de amor, seja isso visível ou não, e, em alguns casos particularmente
infelizes, as duas coisas. O amor não enxerga a verdade, ele cria ilusões que nos
incapacitam para lidar com as realidades duras da vida.

Mas o ditado popular, como acontece tantas vezes, está errado. Cego é o ódio. E
também o hábito, a condescendência e o cinismo. O amor abre os olhos, capacita-os a
verem o que sempre existiu mas foi omitido por pressa ou indiferença. O amor corrige
o astigma-tismo e o que havia sido distorcido em egoísmo agora é percebido com
precisão e apreciação. Também cura a miopia para que o borrão do outro distante
agora entre em foco preciso. Sara a hipermetropia para que oportunidades de
intimidade deixem de ser ameaças nebulosas e passem a ser convites abençoados. O
amor olha para aquele que “não tinha qualquer beleza ou majestade que nos atraísse,
nada havia em sua aparência para que o desejássemos” e enxerga aquele que é “dos
homens o mais notável” o que foi ungido entre seus companheiros com óleo de alegria.

Se víssemos o outro como ele, ou ela, realmente é, ninguém seria “o mais notável”,
exalando “aroma de mirra, aloés e cássia”. O amor penetra nas barreiras
construídas para defender contra rejeição, desprezo e depreciação, e vê a vida criada
por Deus para o amor. Quando nossos olhos estão doentes por causa do amor a nós
mesmos, não enxergamos beleza nem virtude. Tropeçamos em um mundo nebuloso, sem
foco e deformado e reclamamos que ele é feio, ameaçador ou entediante.

O amor a si mesmo distorce a admiração espontânea e a transforma em inveja


calculista. Tudo que é atraente e desejável recebe uma etiqueta de preço. Em lugar de
dança e exclamações em um mundo maravilhoso, nos colocamos à espreita entre
prateleiras e pesquisas de preço, perguntando: “Quando custa?”. Nossos impulsos
interiores destinados a amadurecer em amor que adora se pervertem e se tomam
aquisição planejada. Por conseqüência, vivemos em uma sociedade em que as
transações, tanto materiais quanto pessoais, se baseiam na inveja. As propagandas
estimulam o consumo como estilo de vida, desenvolvendo apetites insaciáveis, não
apenas por bens, mas também por novas experiências e satisfação pessoal. Espera-se
que a sociedade forneça estoque infinito de coisas e pessoas para satisfazer os apetites
motivados pela inveja. Esta, e a ansiedade que a acompanha, substituem a adoração
com louvores inventivos como a disposição dominante do amor a si mesmo.

A oração, nada menos, é pessoal e poderosa suficiente para enfrentar esses estímulos
onipresentes que incitam à inveja, para redirecionar para a adoração e outros a
imensa energia do amor que se curva no ego. Seguindo a orientação de Hebreus 1.9, os
cristãos usam o Salmo 45 para desenvolver a adoração de Cristo, em quem
encontramos o humano e o divino ao mesmo tempo. Em tal oração recuperamos a
capacidade do “assombro radical” que Abraham Heschel defendeu ser essencial para
personalidade e sociedade sadias.5

Nada nem ninguém jamais recebeu a admiração merecida. Adoração é o ato em que nos
colocamos de livre
5. Abraham Joshua Heschel, God in Search of Man (Nova Iorque: Farrar. Straus and Girou.x. 1955). pág.
46.
vontade em homenagem àquilo que é mais e melhor do que nós - que responde pela
maior parte do que existe. O mundo em que vivemos é fecundo em beleza e generoso
em bondade. Vivemos qptre gente que é “dos homens o mais notável” e “exalam aroma
de mirra, aloés e cássia”. Mas não nos damos conta disso, porque estamos
tão preocupados com a vaidade do amor a nós mesmos, espalhando cosméticos em
nosso rosto oprimido e emaciado, que não damos atenção à majestade e virilidade nas
pessoas, nas criaturas e em Deus. Fomos criados para adorar. Quando os instintos agem
espontaneamente, adoramos com fervor: “com o coração vibrando de boas palavras”.

Nova aventura em amor

A segunda parte do Salmo, dirigida à rainha-noiva, adverte contra o afastamento e


completa a cura do amor a si mesmo.

Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos:

Esqueça o seu povo e a casa paterna.

O rei foi cativado pela sua beleza; honre-o, pois ele é o seu senhor.

A cidade de Tiro trará seus presentes;

seus moradores mais ricos buscarão o seu favor.

Cheia de esplendor está a princesa em seus aposentos, com vestes enfeitadas de


ouro.

Em roupas bordadas é conduzida ao rei, acompanhada de um cortejo de virgens;


são levadas à tua presença.

Com alegria e exultação são conduzidas ao palácio do rei.

Ouça, ó filha, considere e incline os seus ouvidos: Esqueça o seu povo e a casa
paterna. A princesa de Tiro,

trazida à presença do rei hebreu para se casar com ele, já sente saudade de casa. Está
em país estranho, não conhece o território, as pessoas falam com ela com sotaque
diferente, ela sente falta da segurança agradável de seus amigos e sua família. Está
tomada de desejo pelo que deixou para trás. Enquanto permanecer ligada à infância, à
família e aos costumes (ou seja, aquilo que lhe deu certeza da aceitação e de sua
importância), ela será incapaz de uma nova aventura em amor.
Se a primeira regra do amor é o reconhecimento maravilhado {Esta, sim, é osso dos
meus ossos e carne da minha carne! - Gênesis 2.23), a segunda é o homem deixará
pai e mãe e se unirá à sua mulher, e eles se tornarão uma só carne (2.24). Se não
“deixar”, não poderá se apegar.

O amor nos leva a território novo. Para explorá-lo, será necessário abandonar o velho.
Isso implica em abandonar níveis de conquistas e relacionamentos anteriores e cultivar
novos. Todo ato de amor acarreta risco para o ego. Não há garantias. Muita coisa pode
dar errado: podemos nos magoar, há possibilidade de rejeição e engano. Mas, sem
correr esses riscos, só haverá repetição de padrões antigos, a rotina do conforto
conhecido.

A pessoa não será ela mesma se não crescer e, para a criatura feita à imagem de Deus,
isso significa amar. Nenhum ser vivo pode permanecer estático. Não há como preservar
a pessoa em resina. Todo novo ato de amor requer afastamento do que já foi superado,
e que agora serve apenas para infantilizar o indivíduo. Karlfried Durckheim insistia:
“Você nunca mata o ego, apenas descobre que ele vive em uma casa maior do que você
imaginava”. Para amadurecer, o ego tem que encontrar uma casa maior onde

possa morar do que aquela onde todos o mimam e atendem seus menores caprichos. A
passagem entre a casa paterna e o casamento é o arquétipo da transição do ego
confortável, que recebe cuidados, para o ego vigoroso, que cuida dos outros.

O amor a si mesmo é obcecado em manter o que tem e ainda acrescentar um pouco


mais. Por esse motivo é tão entediante. Nunca tem coisas novas a dizer, nem
outras descobertas a fazer. Avalia sua posição com base no que possui e entra em
pânico só de pensar em perder alguma coisa. Quando forçado a novos relacionamentos
e situações, sua primeira consideração não é sobre os novos campos para o amor, mas
sim sobre a perspectiva terrível de perda. Assim, agarra, segura e chora.

O afastamento, pré-requisito para o casamento maduro, nos prepara para amadurecer


em amor por todos. Uma vez após outra nós sobrevivemos ao nosso passado. Chega um
momento em que deixo de ser cônjuge, pai, empregado, saudável. Certos períodos de
minha vida são imensamente valiosos, alegres e úteis, mas, por sua própria natureza,
não há como perpetuá-los. Ironicamente, se tentarmos fazer isso em nome do amor,
estaremos arruinando o amor.

Afastamento não é deslealdade, é requisito para o próximo avanço do amor, que se


move para alcançar perfeição. Esses movimentos quase sempre começam com
sentimentos de perda e privação. Mas afastamento não é perda - é condição para nova
criatividade. Se nos agarrarmos a experiências, papéis, lembranças ou relacionamentos,
nos tornaremos dignos de pena. O amor a si mesmo continua apegado ao bem muito
depois que de-

ixou de ser bom para nós: “esqueça o seu povo e a casa paterna”. A casa de seu pai era
muito boa na sua infância. Não há nada errado com ela hoje, mas ela não comporta mais
você, se é que você quer aproveitar ao máximo sua vida. Hoje você é a noiva: “o rei
foi cativado pela sua beleza”. Antes seus amigos e seus pais a consideravam bela,
agora você será bonita em outra dimensão, para seu marido, seu rei.

Os versículos 12 a 15 descrevem a situação presente da princesa, corrigindo a privação


que ela sente. A roupa tecida com ouro, os vestidos de muitas cores, as companheiras
virgens, a parada de alegria que é a marcha do casamento - tudo isso é a realidade
presente. Está acontecendo agora. Mas, para aproveitar isso, ela tem que se afastar do
passado, deixar a experiência de ser apreciada e se lançar à de apreciar. A nostalgia
obscurece o esplendor do presente.

Muitos não conseguem entrar no êxtase do presente eterno por causa de ligação
preguiçosa e sentimental com “Tiro”. Emily Dickinson falou da “Renúncia - a
virtude cortante!”.4 A separação dolorosa do passado bom nos liberta para o presente
melhor. A negação ascética que é parte tão importante da vida de fé de maneira
nenhuma nega o prazer. Ela nos prepara para ele. O casamento é o paradigma da vida
comum para esse abandono de tesouros imaturos, pré-requisito para se experimentar as
delícias da

intimidade madura.

**

Abrir e crescer

As linhas finais são uma promessa que se cumpre quando a adoração (versículo 1 a 9) e
o afastamento (1015) se integram.

Os teus filhos ocuparão o trono dos teus pais;

por toda a terra os farás príncipes.

Perpetuarei a tua lembrança por todas as gerações;

por isso as nações te louvarão para todo o sempre.


Em lugar de pais, filhos; de passado, futuro; de ancestrais, descendentes. Ao invés de
entender a nós mesmos através do que recebemos por herança, nos entendemos pelo que
nos tomamos ao criar nova vida.

O amor a si mesmo é estéril, infértil. O amor é fértil. O amor a si mesmo se liga às


coisas familiares e aconchegantes: bens, costumes. O amor se desliga do
tumulto doentio e com isso se abre para a fertilização do novo, para o êxtase do inter-
relacionamento e do ato da criação. O apego é fechado e restrito. O afastamento leva à
abertura e ao crescimento.

Há uma alteração sutil nesses versículos, que passa sem identificação em nossas
traduções, a mudança do discurso da noiva para o noivo (o hebraico faz distinção entre
os pronomes “teus” e “tua” quando quem possui é do sexo feminino ou masculino”). O
destinatário agora é o noivo-rei. Ele, assim como a noiva, precisa se afastar quando
compartilha os resultados. Nada no amor é unilateral. Tanto na adoração quanto no
afastamento há necessidade de um parceiro. Não é possível separar as ações e designá-
las como masculinas ou femininas. Sempre que isso acontece, a diferença leva à
exploração e à subserviência. Essa é

uma das armadilhas mais antigas do amor a si mesmo, e é inaceitável. Acabar com o
domínio do ego no amor envolve a dignidade da mutualidade e pratica a união em
oração.

A oração cria o espaço que permite nos afastarmos do que considerávamos necessário
mas que, de fato, é apenas restritivo. Então estaremos livres para receber amor, já que
este só pode ser vivido como ato livre. A oração cria esse afastamento da necessidade
e abertura à liberdade. Na análise de Henri Nouwen,

sem oração “nossos relacionamentos com os outros se enchem de carência, avidez,


rigidez, apego, dependência, scntimentalismo, exploração e parasitismo. ... Somos
incapazes de considerar os outros como diferentes de nós; vemos as pessoas
apenas como gente que pode ser usada para satisfazer nossas necessidades,
muitas vezes ocultas”.7

A sabedoria deste mundo considera o amor maravilhoso para o quarto, mas inadequado
para o governo. Aceita juras de amor na praia, à luz da lua, mas as considera
embaraçosas na mesa de reuniões da sala do conselho de uma empresa. O problema é
que nada na Bíblia corrobora essa contenção. Deus não apenas ama cada pessoa para
a salvar, Ele também vai estabelecendo Seu reino. Além do mais, as Escrituras falam
que o mesmo Deus que governa o mundo salva a alma.
Ninguém tem dificuldade para acreditar que a característica principal de Deus é amor,
já que “Deus é amor” (1 João 4.16). Os textos deixam claro que Ele age em amor
aos indivíduos e ao público. “Sei que me quer bem, a Bíblia assim o diz”, não é citação
bíblica, mas é um resumo preciso

7. Henri Nouwen. Reaching Out (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1975), pág. 30.

do conteúdo, exatamente como Deus tanto amou o mundo (João 3.16). O mundo e o ego
são o foco duplo do amor de Deus. Ele não adota uma forma de agir com o mundo
e outra com os indivíduos. Não dedica à alma amor pessoal e às nações postura
impessoal. Não nutre amor redentor pelas pessoas para depois agir como policial na
história. Em todo tempo o que O move é o amor.

E bem verdade que a expressão do amor na sociedade e na cultura requerem formas


diferentes de expressão entre membros da família e amigos. A manifestação
mais comum no setor público é a paixão pela justiça. Leis, não beijos, a busca séria da
política, em lugar de oferecimento planejado de rosas, são o caminho. Mas a base
bíblica para o amor não pode mudar. Este, não oportunidades nem busca de lucro,
continua sendo o fundamento, que não pode ser trocado por nada, nem por ninguém.

Espontaneidade no amor

Para impedir a troca, o povo de fé ora. Oração é a forma em que o amor pode ser
praticado na sociedade e no ego. Aqui também ela envolve adoração e afastamento. O
amor maduro se desenvolve no louvor generoso ao que existe e na recusa determinada a
se apossar das coisas. Nisso, outros recebem afirmação e são libertos. A
sociedade recebe espaço para desenvolver em amor, sem ser desmoralizada nem ter
seu crescimento obstruído pela cobiça. A oração desses egos louvados e libertos
infiltra a sociedade de formas que a libertam para a espontaneidade em amor, tanto nos
aspectos pessoais quanto nos públicos.

O casamento é a maneira normativa (embora não exclusiva) em que as pessoas


experimentam e praticam essa

vida de amor. Esse ambiente requer a integração das áreas pessoal e pública. Todo
casamento une duas famílias não relacionadas em contato histórico de compromisso.
Toda sociedade possui tabus contra incesto e leis contra casamento dentro da família.
Existem razões genéticas para isso, mas também políticas. O crescimento para
dentro acarreta problemas biológicos e também sociais. Precisamos ser obrigados a
sair de nós mesmos para ter contato com outros e demonstrar com nossa vida que ele é
aliado e não inimigo. Através da prática da adoração e do afastamento, os estranhos se
tomam apaixonados. A rivalidade natural que se desenvolve entre pessoas diferentes é
revertida no ato do casamento, quando surgem alianças.

Isso era óbvio em nível internacional nos casamentos na Antigüidade e na Idade Média,
que eram combinados entre casas reais, como no Salmo 45. Apesar disso, continua
verdade em nosso bairro. Cada matrimônio cruza outro limite de genealogia. Histórias
diversas se unem de forma que o outro é apresentado para apreciação e louvor, não
para desprezo e rejeição. Todo casamento prova que o outro indivíduo não é inimigo,
rival, ameaça e sim amigo, aliado e, na melhor das opções, objeto de amor.

Arquétipo da liberdade

Todo casal parte para o matrimônio com essa expectativa, mas nem sempre isso
acontece. Separações acontecem, parceiros se tomam rivais, se enchem de ciúme,
sentem-se ameaçados, rejeitam e sofrem rejeição. As traições acontecem. Ainda assim,
o ato de amor recorrente mais significativo que acontece na sociedade é o
casamento. Ezra Pound era defensor radical: “Uma família bondosa é

capaz de humanizar todo um Estado e levá-lo a agir com cortesia; um homem


explorador e perverso pode levar uma nação ao caos”.5 Sem dar atenção ao número de
fracassos, o efeito cumulativo das inúmeras experiências é positivo e contraria o
crescimento doCgo para dentro de si mesmo.

O casamento é o arquétipo da liberdade. Os parceiros deixam seus laços familiares


naturais, rompem redes de necessidade e previsibilidade e, no momento da
cerimônia, tomam-se os primeiros motivadores da política da liberdade. Isso vale
inclusive para casamentos arranjados: embora ninguém pense na vontade dos parceiros,
o arranjo resulta da escolha de alguém e não apenas da uma necessidade biológica.
Assim, todo casamento introduz na sociedade nova energia de amor e liberdade, que
tem poder para acabar com o domínio do ego, não apenas nos envolvidos mas em toda
a nação. Entretanto, apenas a introdução dessa energia não basta. Se bastasse, já
viveriamos há muito tempo na utopia. Há necessidade de continuação e de
aperfeiçoamento. Só conseguimos isso em Cristo. A fidelidade na oração nos leva à
longa vida de amor em que, e através da qual, o mundo não perecerá.

Saia da sua dieta!


Eugene Peterson 96 páginas /14 X 21 cm

Em Coma este livro, Peterson questiona a prática tão difundida de colocar as


experiências pessoais como autoridade máxima para a espiritualidade.
Ele nos chama de volta para as Escrituras e nos ensina a "comer" a
Bíblia - não como críticos ou estudiosos, mas como participantes.
"Queremos uma espiritualidade que envolva o mundo", afirma
Eugene Peterson, uma espiritualidade que seja capaz de dar conta
das complexidades e enormidades da vida na era da globalização.

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Sexualidade e espiritualidade. Muita coisa em comum.


O Eros Redimido

John White 16 x 23 cm; 256 páginas

Milhares dc cristãos vivem oprimidos pelo pecado sexual. Anseiam por perdão, cura c uma transformação que faça
diferença permanente em sua vida. Será possível destruir a fortaleza do pecado sexual? John \Vhitc afirma que sim c
lança o fundamento para mudanças. Realiza um estudo bíblico profundo sobre a sexualidade humana e analisa o que
significa ser homem ou mulher cm Cristo. Alcm disso, mostra as conseqücncias do pecado sexual, a ligação entre a
promiscuidade c a violência e os efeitos terríveis dos abusos cometidos nos rituais satânicos.

A mensagem central do livro apresenta o caminho da graça que Deus providenciou para a cura interior e a
transformação. Mostra também como tratar as feridas ocultas dos que precisam dc perdão, cura c esperança.

"Este livro tenta mostrar a estratégia de satanás e dos, digamos assim, deuses antigos, em relação aos pecados
sexuais. Sob essa perspectiva, desejo apresentar os princípios de redenção de Deus para cada tipo de pecado sexual.
PSra alcançar transformação temos que voltar às Escrituras como fonte primeira de informação/'

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Este livro foi impresso em Julho de 2005, pela Imprensa da Fé para Editora Textus.

Composto nas tipologias Times New Roman PS MT e Verdana. Os fotolitos da


capa c do miolo foram feitos pela Imprensa da Fé. O papel do miolo é OtT-set
75g/m2 e o da capa é Cartão Prcmium 250g/m2

Eugene Peterson é professor emérito de Teologia Espiritual na Regent


College, no Canadá. Antes disso, ele foi pastor da Igreja Presbiteriana
Cristo Nosso Rei, em Bel Air, Maryland, EUA, durante 29 anos.
Escreveu vários livros, entre eles: Corro com os cavalos, Coma este
livro, Transpondo muralhas (Editorial Habacuc), Um pastor segundo o coração
de Deus, 0 pastor contemplativo e 0 pastor que Deus usa.

‘‘Escrevi para cristãos", afirma Eugene Peterson, “que desejam agir para
muaar o que está errado na sociedade e querem ir direto ao centro do problema, e
não apenas fazer pequenos acertos em áreas de importância secundária. Escolhi 11
salmos que deram forma à política de Israel e podem, atualmente, moldar a nossa,
e os analisei com seriedade. São orações que moldam a vida nacional. Escrevi para
incentivar os cristãos a orarem esses salmos como filhos de Deus que têm a vida
eterna, e como cidadãos com responsabilidades diárias no cuidado de sua nação. ”

Eugene Peterson

Este inspirador livro servirá de incentivo para grupos de cristãos,


guiando a reflexão e indicando um caminho para agir para aqueles que
acreditam no poder verdadeiro da oração.
1

Berry, A Contirmous Harmony, pág. 80.

2
Henri Troyat, Tolstoy (Garden City, N.Y.: Doubleday, 1967), pág.

439.

3
(4) Lasch, The Culture of Narcissism, págs. 72-73.

4
Emily Dickinson, The Complete Poems (Boston: Little, Brown & Co., 1960).

5
Citado por Berry, A Continuous Harmony, pág. 41.

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