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. ~.
do que pela nacionalidade ou etnia. Certamente, a partir do início do vam a maior parte da mão-de-obrá agrária, artesanal e industrial.
século lU, a cidadania não era mais tão importante. Em 212 e.c., qua Os escravos eram submetidos aos caprichos de seus senhores e prote
se todos os habitantes do Império eram cidadãos romanos, um sta gidos apenas por seu valor econômíco. Ainda assim, não havia uma
tus que já havia sido bastante cobiçado (lembremos da satisfação de nítida distinçáo racial, étnica ou religiosa entre escravos e senho
res. De fato, muitos escravos eram "importaçóes" recentes da África
são Paulo quando teve a oportunidade de dizer a um oficial romano
subsaariana ou das florestas da Germânia e, nos dois casos, eram
- que havia adquirido sua cidadania a muito custo que era um
valorados e diferenciados de acordo com a cor da pele, o tamanho e
romano de nascença), mas que a partir de então passava a ser apenas
a aparência. Porém a maioria não podia ser diferenciada do resto da
uma simples questão de conveniência militar e fiscal. O imperador
população, exceto talvez pelas marcas ou tatuagens que determina
Caracala havia estendido a cidadania romana a todos, de modo que
vam o status de escravo, ou pelas cicatrizes das surras que levavam
qualquer um pudesse ser convocado para servir nas legiões. Além
de seus senhores.
disso, como cidadãos romanos, todos teriam que pagar impostos.
Na teoria, a linha divisória entre o escravo e o cidadão livre era
Dessa forma, como praticamente todos os habitantes do Império
absoluta, mas na verdade também era permeáveL Assim como ho
passavam a ser romanos, a identificação por essa característica per
mens e mulheres livres podiam ser condenados à escravidão por
dia sua importância. Os estudos etnográficos modernos da identida questões cívis ou criminais, os escravos às vezes conseguiam entrar
de revelam que, na maioria das vezes, são os grupos fronteiriços que para o mundo dos cidadãos livres. Os senhores romanos podiam
formam as identidades "étnicas" mais importantes, geralmente em permitir que seus escravos tivessem suas propriedades (peculium),
oposição ao "outro" com quem interagem, o que náo ocorre com os que adquiriam em seu tempo livre. Embora essas propriedades não
habitantes do centro. Assim, como a maioria dos cidadãos romanos fossem de grande valor, elas podiam, em alguns casos raros, abrir ca
vivia cercada por outros cidadãos, já que muito raramente se de minho para que os escravos comprassem sua liberdade e a de sua fa
parava com os "germânicos livres" do outro lado do Danúbio ou mília. Além disso, os romanos cultivavam, havia muito, o generoso
se arriscava nas areias do Saara para interagir com os berberes, sua hábito de emancipá-los, geralmente quando estavam à beira da mor
"romanidade" era menos importante do que outros fatores na deter te, garantindo assim um funeral cheio de enlutados agradecidos.
minação de sua identidade essencial. O verdadeiro sentimento de Os emancipados viviam em um mundo intermediário. livres pe
unidade (ou de oposição) provinha das diferenças regionais,profis rante a lei e independentes para interagir socialmenre, mas presos a
sionais, de classe e, em algumas circunstâncias limitadas, religiosas. deveres específicos de deferência, pagamentos e assistência para com
Os bárbaros existiam (se é que existiam) apenas como uma catego seus antigos senhores. Pelo menos teoricamente, os filhos dos eman
ria teórica. cipados não herdavam o status de escravo. Assim, seus netos podiam
A distinção mais importante do mundo romano era entre os ci ascender socialmente, de acordo com sua sorte e talentos. Ascensões
dadãos livres e os escravos. O Império sempre havia sido uma so sociais espetaculares eram raras, mas aconteciam e alimentavam o
ciedade escravocrata, na qual os escravos - fossem eles escravizados sonho da mudança, perante a lei, do status de objeto para o de indi
além das fronteiras do Império durante as guerras ou dentro de seus víduo livre, ou até mesmo o sonho de enriquecimento.
limites pelo status hereditário ou pela condenação judicial - forma-
84 ..." O Mito das Nações Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos v- 85
Entre os cidadãos livres do Império, o abismo que separava a era destinada ao tesouro imperial, e o que sobrava permanecia na
elite das massas era enorme. Camponeses comuns, que trabalha própria comunidade para a manutenção dos serviços públicos. Os
vam em terras alheias como meeiros ou arrendatários, mal se dis membros dos conselhos municipais determinavam quem e quanto
tinguiam dos escravos. As elites, ou honestiores, gozavam de direitos cada um deveria pagar, além de como O dinheiro seria usado, o que
garantidos pela lei em virtude da riqueza que possuíam e de seu permitia que estabelecessem e aumentassem suas próprias redes de
valor para o Estado romano. Ao contrário dos humiliol'cs, ou cida patronato. Desde que os impostos pudessem ser arrecadados sem
dãos comuns, os honcstiores não eram punidos fisicamente, o mais grandes problemas, esse serviço era uma meta para boa parte da
penoso e humilhante dos castigos para a plebe. Quanto aos cidadãos nobreza local.
comuns, dependendo de sua condição econômica, podiam se en As elites não se diferenciavam das massas apenas por sua riqueza.
contrar em piores situações do que os escravos privilegiados, e nada Com a riqueza, vinha a cultura (paideia), que, mais do que qualquer
tinham em comum com os ricos proprietários de terras que con- . outra característica, distinguia os civilizados dos meramente roma
trolavam boa parte da vida deles. No século UI, sob a pressão dos nos. Por meio da educação, cultivada como um dos elementos do
impostos, do recrutamento militar e da diminuição da população, estilo de vida da elite provinciana, os honcstiores desenvolviam sua
o status dos arrendatários agrícolas se assemelhava bastante ao dos identidade como parte do mundo mais amplo da cultura romana.
escravos. Como eram os proprietários de terras que arrecadavam os Porém, por mais vastos que fossem os mundos culturais propor
impostos referentes a suas posses, e terras desocupadas não rendiam cionados pela paideia, a maior pane das elites locais conrinuava obs
tributos, eles tinham autoridade para controlar seus contingentes de tinadamente presa à região de suas propriedades. Da Síria à Gália,
uabalhadores. A profissão de agricultor, como as outras, tornara-se do norte da África à fronteira danubiana, os proprierários rurais
hereditária. Dessa maneira, os proprietários tinham o poder de per provincianos continuavam fortemente vinculados às particularida
seguir os arrendatários fugitivos e forçá-los a retornar à propriedade. des de sua região ou patria. As razóes para isso eram numerosas.
Ao longo dos séculos III e IV, oS proprietários exerciam cada vez O Império havia sido, desde seu princípio, uma rede de cidades (e
mais poder sobre seus arrendatários, o que incluía não só os direitos seus territórios adjacentes) ligadas a Roma por acordos específicos.
do tradicional patronato romano como também um grande poder Muitas personalidades locais eram descendentes das elites regionais,
político. cujas famílias controlavam a sociedade de suas regióes desde antes
As elites rurais do Império monopolizavam poder econômico e da chegada do Império Romano. Na medida do possível, o expan
prestígio político em suas localidades e regiões. Os membros dos sionismo imperial incorporava os poderes regionais preexistentes à
conselhos municipais, com suas posiçóes asseguradas por suas ri sua órbita. O poder central de Roma, onde havia uma variada tra
quezas fundiárias, controlavam a vida pública. Eram eles que lu dição cultural e religiosa, nunca havia exigido uma adesão exclusiva
cravam de forma mais direta com o sistema de governo e a "área aos valores romanos: sempre que possível, a tradição regional era
de livre comércio" que constituíam o mundo romano. Ao mesmo assimilada ou equiparada à de Roma. Além disso, as famílias não
tempo, tinham deveres, sendo o mais imporrante deles a arrecada precisavam abandonar o status que tinham nas antigas tradições
ção dos impostos anuais, feita por agentes. Parte desses impostos tribais ou regionais. Essas tradições podiam se tornar - e de fatO se
8ó """ o Mito das Nações
CapItulo 3: Bârbaros e outros romanos ,,- 87
tornavam - motivo de orgulho para as personalidades provincianas. lhes rendeu a reputação de ateus perigosos. Ao contrário dos judeus,
Dessa forma, rornar-se romano não significava a troca do velho pelo eles não se identificavam com uma região ou classe social específi
novo, mas a redes coberta do velho no novo. cas. As comunidades cristãs eram notórias por ignorar os padrões
Esse mesmo processo de incorporação também ocorria na esfe comuns do status social. Cada comunidade se desenvolvia como uma
ra religiosa. Da Mesopotâmia à Britânia, novos deuses podiam ser assembléia local, ou ecclesia, centrada em sua cidade (como todas
idolatrados como manifestações do antigo e do familiar. O deus do mundo romano) e administrada por um bispo eleito pela comu
celta Teutatis era associado a Mercúrio. Hércules geralmente era re nidade. As «igrejas" de Antioquia, Alexandria e Roma náo eram
presentado na Ásia Menor como um deus fenício ou púnico. Talvez nada uniformes entre si. Ainda assim, os cristãos formavam uma
o exemplo mais notável desse sincretismo seja o de Ísis, que, como facção que transcendia as particularidades do Baixo Império, um
personagem da obra Metamorfoses, de Apuleio, explica que os frígios dos poucos movimentos que abarcavam uma cultuta universal que
a chamavam de Pessinuntia, a mãe de Deus; os atenienses, de Atena; paradoxalmente transcendia as tradições específicas das igrejas lo
os cipriotas, de Vênus Paphia; os cretenses, de Diana; os sicilianos, cais. Desse modo, os cristãos apresentavam a anormalidade de uma
de Prosérpina; os eleusinos, de Ceres; Outros a chamavam de Juno, fraternidade ao mesmo tempo local e universal, sendo seus membros
Bellona, Hécate e outros nomes. l Povos diversos se uniam por meio cidadãos comuns e, ao mesmo tempo, bastante isolados de seus vizi
da idolatria, mesmo que não estivessem cientes disso. nhos. Essa ausência de características distintivas claras, pelas quais
As únicas religiões que os romanos não foram capazes de incor pudessem ser identificados quando fora da esfera religiosa, pode ter
porar foram o judaísmo e, em parte, sua ramificação, o cristianismo. alimentado o medo irracional que provocavam nos cidadãos comuns
O monoteísmo radical gerava um problema insolúvel para a política e nos defensores da ordem imperial.
religiosa romana. Alguns judeus podiam e se tornavam romanos, Os cristãos insistiam que eram exatamente iguais aos outros ci
como foi o caso de são Paulo. No entanto, eles não podiam se ligar dadãos: respeitosos, dignos e defensores leais de seu imperador, de
completamente ao mundo romano pelos elos tradicionais da reli sua cidade e de sua classe e profissão. Ainda assim, suas crenças os
gião. Ainda assim, após a destruição derradeira do templo sagrado distanciavam radicalmente dos laços sagrados que uniam o mundo
em 70 e.c. e a expulsão dos judeus da Palestina e da Judéia, os judeus romano.
que permaneceram espalhados pelo território do Império, ao que A integração religiosa era apenas uma parte do processo pelo
parece, fizeram as pazes com o sistema imperial. Não havia mais qual os magnatas locais haviam se incorporado a esse mundo, sem
notícias de comportamento separatista ou sedicioso por parte de com Íssose desligar de suas antigas alianças. O casamento e os laços
suas comunidades pequenas e dispersas. Entretanto eram os cristãos de parentesco também ligavam as elites romanas a suas cidade e
quem começavam a agir de forma subversiva. província. Veteranos e burocratas romanos se recolhiam a colônias
Os cristãos também eram monoteístas radicais, e sua rejeição aos recém-fundadas, onde se casavam e estabeleciam famílias, levando
cultos tradicionais de Roma e aos cultos romanizados do Império consigo tradições culturais romanas, mas, ao mesmo tempo, sendo
incorporados às economias agrárias das cidades provincianas. Os
1. Apulelo, 11. S.
provincianos que conseguiam se dar bem no mundo imperial ge
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos er- 89
88 -<> O Mito das Nações
século II, elas geralmente eram italianas. Mesmo que não fossem de
habitantes de todas as partes do Império e posicionadas estrategi
origem italiana, identificavam-se com sua cultura e estabeleciam re
camente em regiões fromeiriças. Embora muitas tropas auxiliares,
sidência na península. Embora muitas vezes a renda dessas famílias
a partir do século I, fossem formadas por indivíduos de povos vizi
fosse proveniente de regiões longínquas do Império, ela era, como
nhos, o mais comum era dividi-las e distribuí-las por todo o terri
em épocas passadas, enviada a Roma.
tório imperial, de preferência bem longe de seus povos de origem.
A única forma de adquirir tal status, ou a forma mais segura de
Dessa forma, as tropas germânicas eram deslocadas para o Egito,
mantê-lo por gerações, era o serviço imperial. Até o final do século
enquanto as citas guarneciam a Gália e a Britânla. Tanto para as popu
lU, a carreira pública dos jovens aristocratas que esperavam ascender
lações que viviam nas regiões fronteiriças como para as tropas auxi
às mais altas posições de riqueza e poder incluía a prestação de servi
liares deslocadas para longe de suas famílias, o exército era o veículo
ços militares e civis. Trabalhar para o sistema imperial, assim como
fundamental da romanização, a única instituição verdadeiramente
trabalhar para uma corporação multínacional moderna, implicava .
romana no Império.
um deslocamento constante. Um jovem que desejava ascender aos
Essa identidade específica começou a se transformar no século
mais honrosos cargos imperiais tinha que se deslocar por todo o
IH. A ampliação da cidadania fez com que praticamente toda a po
Império em sua escalada rumo ao topo. A Itália e a cidade de Roma
pulação tivesse acesso às legiões, e estas começaram a recrutar indi
continuavam atraindo os ricos e ambiciosos. O berço da civilização
aUtoridade sobre a comunidade em detrimento das Outras famílias, Da mesma forma, a distinção entre os povos citas (gados, hunos
tivessem sustentado versões distintas das tradições e tentado impô e ávaros), que lutavam a cavalo, e os germanos e celtas, que lutavam
las. Também é possível que essas tradiçóes fossem amplamente di no chão, era exagerada pelos romanos: certamente os nômades das
fundidas na SOciedade, e náo propriedades exclusivas de famílias estepes eram guerreiros que lutavam montados, mas os guerreiros
específicas. Certamente, ao longo dos séculos IV e V, quando os in germânicos do Leste também o eram, pelo menos quando sua ri
divíduos tentavam se estabelecer em posições de domínio, alegavam queza e status permitiam. Além disso, quando as unidades bárbaras
vínculos a essas tradições ou Se associavam a famílias lendárias e glo
eram incorporadas ao exército romano, eram enquadradas em fun
riosas ou a heróis mitológicos. Dessa forma, tentavam fazer com que
ções específicas que correspondiam mais às necessidades militares
Sua história fosse tida como a história de seu povo. Algumas vezes
romanas do que às habilidades étnicas tradicionais. Por volta do
isso funcionava, mas também podia ter conseqüências desastrosas.
ano de 400, a notitia dignitatum, uma lista oficial dos oficiais civis
Outras tradições culturais, como a língua, armas, táticas milita
e militares de alto escalão, listava unidades de cavalaria compostas
res, vestuário e estilos de penteado, podiam unir os grupos sociais,
por alamanos e francos. Esses guerreiros haviam sido recrutados por
mas também eram meios fluidos e adaptáveis de criar unidades ou
suas habilidades como cavaLeiros ou treinados para guerrear na ca
reivindicar diferenças. 5 Até mesmo os romanos reconheciam que,
valaria por conta de uma necessidade do exército romano?
embora um esquema ideal separasse os povos pela língua, havia
Roupas e ornamentos certameme variavam bastante e podiam ser
mais povos do que línguas. Além disso, antes do século IX, nin
símbolos de identidades colerivas. O modo como os membros de
guém parecia reconhecer a unidade lingüística das línguas germâ
nicas faladas por muitos dos povos bárbaros. uma sociedade se vestiam, os tipos de broches e cintos que usavam
ou como arrumavam os cabelos podiam comer significados simbóli
As armas e táticas militares variavam entre os bárbaros, mas
cos importantes~ No entanto, não podemos precisar quais eram esses
também não sabemos até que pOnto elas eram significativas como
significados. Os romanos se deleitavam ao discutir os diferentes tipos
representações de unidade para povos específicos. Armas ou táticas
de roupa e penteado, mas também nesse caso seus relatos provavel
distintivas, como os arcos dos hunos, as azagaias dos dácios, as lan
mente se baseavam mais em seu próprio interesse pelas classificações
ças dos gados ou os machados dos francos, são referidas nas fontes
do que na precisão da observação. Talvez seja melhor reconhecer que
romanas, mas sem nenhuma consistência. Provavelmente eSSas refe
essas características podiam ser manipuladas e ajustadas de acordo
rências eram mais um reflexo da mania romana de classificações do
com os interesses mutáveis dos grupos do que compreendê-las como
que das práticas reais dos bárbaros. Até mesmo no caso do machado
indícios de uma unidade cultural imutáveL
franco, que de faro parece ter sido uma arma característica no final
As tradições legais - ou seja, as formas de lidar com os confli
do século V, os próprios francos pareciam menos cientes dessa arma
tos - eram uma conseqüência das idemidades culturais e religiosas.
como parte da tradição "franca" do que seus inimigos, os visigodos
e bizantinos. Como a auroridade central era muito fraca, as disputas eram ad
ministradas pelos chefes de família, pelas assembléias das aldeias
5. Walrer Pohl. 'Telllng -: .. - ..
lIle Ullference; srgns of Ethnlc Ideotlty', em Walter PohJ, Heimut Reimetz.
e pelos comandantes militares. Regras eram estabelecidas para a
:>rraregles ofDistinction: Tlle Constructíon offthnfc COmmunities. 300-BOO.leiden. 1998, p. 17-69.
manutenção da paz ou, peIo menos, para que as rixas fossem con
96 '""" O Mito das Nações Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos €r-- 97
-
duúdas de uma forma pouco destrutiva para a comunidade. Enfim, dendo de pilhagens, da criação de animais e da agricultura de corte
esses grupos culturais e religiosos eram organizados sob lideranças e queima. A derrota, f?sse para os romanos ou para outrOS bárbaros,
políticas que, nos primeiros séculos de contato com Roma, sofreram podia significar o fim de um governante ou até mesmo de um povo,
transformaçõés profundas. que então poderia ser incorporado a uma outra confederação, mais
Quando os romanos entraram em contato pela primeira vez com vitoriosa.
os povos celtas e germânicos, essas populações eram governadas em Por volta do século IlI, o Império havia transformado até mesmo
sua maioria por reis sacros que assumiam o poder por meio da he populações que viviam além de suas fronteiras. A política romana
reditariedade. Cada rei era a personificação da identidade de seu prescrevia a criação de estados-tampões, que deveriam proteger o
povo. Ao longo dos séculos I e lI, os grupos que viviam perto dos Império de bárbaros hostis, proporcionar parceiros comerciais para
romanos começaram a abrir mão de seus reis sacros tradicionais em a aquisição de gado, matéria-prima e escravos, além de fornecer in
favor de líderes guerreiros que pertenciam a antigas famílias reais ou divíduos para a formação de tropas auxiliares. Isso não era novida
a classes de combatentes bem-sucedidos. Essa mudança favoreceu'o de. Durante séculos, o Império havia apoiado líderes "amigáveis",
Império, já que Roma podia influenciar mais facilmente os novos fornecendo armas, ouro e trigo com o objetivo de fortalecer as fac
líderes, provenientes de facções oligárquicas, do que os herdeiros da ções pró-romanas do mundo bárbaro. Alguns eram recompensados
antiga autoridade religiosa. com a cidadania romana. Armínio, que se rornara célebre com sua
Esses líderes eram promovidos por seus exércitos heterogêneos e vitória sobre Varo na floresta de Teutoburgo, não só havia se tornado
formavam os centros ao redor dos quais novas identidades políticas um cidadão romano como também havia sido admitido na ordem
e religiosas podiam ser desenvolvidas e nos quais, em alguns casos, dos cavaleiros.6
antigas noções da identidade sacro-social podiam ser inseridas. A Os efeitos da proximidade romana, não apenas entre os bárbaros
legitimidade dos líderes provinha principalmente de sua capacidade que viviam ao longo do limes? como também entre os que viviam
de conduzir seu exército à vitória. Uma campanha vitoriosa con bem além, foram consideráveis. O poder político-econômico dos
firmava seu direito à liderança e aumentava o número de pessoas romanos desestabilizou o tempestuoso equilíbrio de poder do mun
que aceiravam e compartilhavam de sua identidade. Com um pouco do bárbaro ao permitir que os líderes pró-romanos acumulassem
de sorte, os romanos também o reconheciam e o apoiavam. Dessa riqueza e poder excessivos em relação ao que era possível anterior
maneira, um líder carismático podia significar o início de um novo mente. Esses líderes, a quem os romanos haviam concedido a cida
povo. Com o tempo, o líder e seus descendentes estabeleciam uma dania e ensinado às "caminhos" dos impostos imperiais, também
identificação com uma tradição mais antiga, alegando a autorização adquiriam experiência militar e política ao servir o exército romano
divina, com base nas guerras bem-sucedidas, para que pudessem com suas tropas como federados. Ao mesmo tempo, o medo dos
personificar e perpetuar algum "povo" antigo. Porranto a integri romanOS e de seus aliados fazia com que as facções anti-romanas
dade constitucional desses povos dependia da guerra e da conquista
para que tivesse continuidade e para que sua identidade fosse esta 6. Vellelus Paterculus, Hlstorlae Romanae, 11. 118.2.
belecida: eram exércitos, embora sua economia continuasse depen- 7. Complexo de fortificações ao longo da fronteira imperiat.IN. T.)
98 .~ O Mito das Naçóes Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos e- 99
formassem confederações amplas, instáveis e por vezes poderosas, do poder romano. Quaisquer qu.e fossem suas causas principais, o
que podiam infligir danos consideráveis aos interesses de Roma dos resultado foi um deslocamento de poder da Itália para as fronteiras,
dois lados da fronteira. Isso havia acontecido, nos tempos de César, onde o exército tentava a todo custo conter os bárbaros. Os impe
com os gauleses e, no final do século I, com os bretões. Por volta ra.dores não eram mais formados nos grandes centros do Império,
do fim do século lI, uma grande confederação, a dos marcomanos, mas em meio às tropas das fronteiras. Quando esses "imperadores
pôs à prova a fronteira danubiana e irrompeu temporariamente em de quartel" não tinham condições de atender às reivindicaçóes dos
território imperial. legionários por melhores salários ou de conduzi-los à vitória courra
Portanto, em qualquer momento nessas grandes confederações, os exércitos rivais ou contra os inimigos bárbaros, eram assassinados
alguns indivíduos podiam reivindicar o direito a algum tipo de au por suas próprias tropas. Entre os anos de 235 e 284, 17 dos 20
toridade sobre alguma parcela do "povo", sugerindo que suas pró imperadores morreram de forma violenta, geralmente após poucos
prias tradições deveriam formar o "núcleo da tradição" ao qual um meses sendo contestados no comando.
grupo deveria aderir, ou então podiam se proclamar representantes O custo dessa máquina militar cada vez mais cara, e a.inda assim
legítimos de uma antiga tradição compartilhada. Sob essa perspecti malsucedida, se tornava um peso insustentável para os que mais ha
va, a identidade "étnica" entre os bárbaros era extremamente Ruida, viam se beneficiado com O sistema imperial no passado: os proprie
já que novos grupos surgiam, e grupos antigos desapareciam. Geral tários de terras provincianos, que por sua vez repassavam os cusws
mente o que permanecia era a crença, por mais imaginária que fosse, para seus arrendatários e escravos. Por causa disso, os camponeses,
de que esses grupos tinham um passado antigo e sancionado pelos cada vez mais insatisfeitOs, organizavam rebeliões esporádicas. O
deuses. banditismo, de ações de gangues a rebeliões sérias, sempre havia
sido de certa forma um problema para o Império. Em muitas revol
tas, os coloni, ao que parece, uniam-se aos escravos em oposição às
Crise e restauração
cobranças urgentes dos proprietários (de terras e de escravos).
Ao longo do século UI, pressões internas e externas iniciaram uma Os proprietários de terras, especialm(::nte os membros dos conse
reestruturação da sociedade e das instituições, tanto dentro como lhos l<;lcais, estavam tão desesperados quanto seus camponeses. Pres
fora do Império. As conseqüências foram efetivas e mud;uam não sionados pelos cobradores a pagar os impostos imperiais, sendo ou
apenas as estruturas sociais da população do final da Idade Antiga, não capazes de arrecadar os valores com os camponeses, muitos se
mas também a maneira como os povos compreendiam a si mesmos.. arruinavam. Cada vez mais, os agentes do distante e ineficiente cen
Antigas unidades se dissolveram, e nOvas identidades, algumas vin tro romano eram vistos pelos magnatas locais como inimigos mais
culadas a antigas identidades pré-romanas, emergiram. perigosos do que qualquer bando de bárbaros invasores. Nas regióes
A crise do século IH foi um fenômeno complexo, iniciado pelas européias do Império, assoladas pela violência e pela desordem, no
pressões cada vez mais fortes nas fronteiras do Danúbio, do norte vas unidades políticas separatistas começaram a surgir. Em 259, se
da África e da Pérsia Sassânida, assim como pela diminuição da guindo-se à inabilidade do sistema imperial de impedir os ataques
população e pela crise de Hderança no tradicional centro italiano destrutivos dos francos e outros bárbaros na Gália e até mesmo na
100 O Mito das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outros rornanos .,.... 101
Espanha, as tropas da Gália elevaram seu comandante, Cassiano membros desses próprios povos ou com seus vizinhos. falantes de
Latínio Póstumo, à púrpura imperial. No comando da Gália, da línguas germânicas. Nenhum dos dois termos havia sido utilizado
Britânia e de algumas partes da Espanha, Póstumo e seus sucessores para designar "antigos" povos a leste do Reno. Eram termos novos.
governaram o chamado "Império Gaulês" até 273. Como os historiadores modernos presumiram que os "novos povos"
Seria um erro conceber essas unidades separatistas como mani tinham que ter vindo de algum lugar, muitos buscaram as origens
festações de identidades "nacionais" em desenvolvimento na Gália dos alam anos na região do Elba, entre os suevos mencionados por
ou em outras partes da Europa Ocidental. Os arisrocratas ocidentais Tácito. Eles supuseram que uma parte dos suevos havia migrado
apoiavam o Império Gaulês, já que este havia esrabelecido medidas para a fronteira romana durante as primeiras décadas do século rIL
de segurança e proteção para as províncias ocidentais. Esse império Mas provavelmente os alamanos não haviam migrado de lugar ne
também lhes proporcionava um acesso mais imediato aos centros nhum: eles eram simplesmente uma coalizão de grupos nativos que
de poder, assim como um envolvimento político mais direto do que se tinham estabelecido havia muito no alto Reno e assumido uma
havia no sistema imperial mais centralizado de Roma. Portanto o nova identidade coletiva. De forma semelhante, os franci formavam
Império Gaulês era uma reação sensata a pressões insensatas. Além uma confederação de povos do baixo Reno.
disso, o apoio a Póstumo e seus sucessores náo implicava uma me Ao longo do baixo Danúbio, após as guerras marcomanas, um
nor dedicação às tradições dà romanitas. Contudo, se esse império outro conjunto de povos germânicos. sarmáticos e até mesmo româ
náo era uma evidência do "nacionalismo gaulês", era um indício nicos formaram uma coalizão sob O comando do godo Cniva. Por
de que as províncias romanas estavam mais preocupadas com as trás dessas aglomerações nas fronteiras romanas havia ainda outros
questões práticas da preservação das riquezas, segurança e status nas grupos, como os saxões (atrás dos francos), os burgúndios (atrás dos
localidades do que com os anacrônicos ideais da unidade romana. alamanos) e os vândalos (atrás dos godos).
Em certo sentido, esse império foi um ensaio da desintegração do Embora os bárbaros não tivessem causado a crise do século lII,
Império do Ocidente no século V eles certamente a intensificaram. Na década de 250, por exemplo, o
A crise do século UI também atingiu o mundo bárbaro. Na res rei gótico Cniva conduziu sua confederação multiétníca até a pro
saca das guerras marcomanas, novos povos surgiram nas regiões do víncia da Dácia,8 enquanto piratas góticos atacavam a costa do mar
Reno e do Danúbio durante o século UI. Os autores romanos se Negro a partir da foz do Danúbio. Quando as legiões do Reno fo
referiam a rodos eles como germani, a forma como designavam to ram deslocadas em direção ao leste para lidar com problemas inter
dos os povos dessa região, independentemente de suas diferenças nos e externos, os bárbaros aproveitaram a oportunidade para atacar
lingüísticas ou "étnicas". Posteriormente passariam a chamar os que a fronteira mal guarnecida. Após as tropas romanas terem sido des
viviam no baixo Reno de francos, ou "livres", ou "ferozes", e os do locadas das regióes dos cursos superiores do Ródano· e do Danú
alto Reno de alamanos, ou "povo". bio, bandos alam anos {possivelmente autorizados por comandantes
Como ambos os termos - franci e alamanní - sáo germânicos,
os romanos provavelmente tinham aprendido essas palavras com os B. Região correspondente à atual Romênia. (N. T.)
102 -;;, O Miro das Nações
Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos ...- 103
romanos provincianos) penetraram na chamada Agri Decumates.9 os guerreiros sobreviventes podiam ser forçados a servir ao exército
E as tropas francas avançaram bastante na Gália, e até mesmo na romano. Esses dediticii ou laeti, após um ritual de rendição no qual
Espanha. abandonavam suas armas e se colocavam à mercê dos conquistado
res, eram distribuídos por todo o Império em pequenas unidades, ou
Restauração e transformação estabelecidos em áreas despovoadas para prestar serviços militares e
reconstruir regiões destruídas pelos ataques bárbaros e pela fuga de
A série de imperadores enérgicos que pôs fim à crise o fez por me
contribuintes. Na costa do mar Negro, uma dessas unidades, for
didas que transformaram tanto o mundo romano como o bárbaro.
mada por francos, elaborou uma fuga heróica: roubaram um navio,
A primeira meta era conter a ameaça bárbara. O imperador Ga
cruzaram o Mediterrâneo, atravessaram o estreito de Gibraltar e,
lieno (253-268) e seus sucessores derrotaram os francos e alamanos
por fim, chegaram a suas terras. Porém a maioria terminou seus dias
de forma decisiva, e Aureliano (270-275) aniquilou os godos em
no heterogêneo exército romano.
uma série de campanhas que subdividiram a confederação gótica..
Contudo, embora a rendição formal (dedítio) desde os tempos
Os ataques bárbaros continuaram de forma esporádica, mas as fron
da República consistisse em um ritual religioso de rendição incon
teiras ficaram suficientemente seguras durante um século. Embora
o Império não tivesse recuperado totalmente a Dácia e a Agri Decu dicional e na aniquilação de urna sociedade, a realidade sempre ha
mates, as medidas imperiais estabeleceram uma segurança relativa via estado em desacordo com a retórica da ideologia triunfal dos
durante a maior parte do século IV. romanos. Em tempos igualmente remotos, os povos conquistados
Para alguns exércitos bárbaros, a derrota significava o fim de sua e destruídos tendiam a ser reconstruídos e a reconquistar, até certo
identidade como unidades sociais coesas. A destruição causada pe ponto, identidade e autonomia, geralmente com as mesmas elites
los ataques bárbaros no Império não se comparava à devastaçáo e à sociais e políticas de antes. A piedade romana (e as imposições polí
carnificina levadas a cabo pelas tropas romanas em expedições pelo ticas) significava, na verdade, a sobrevivência dos povos derrotados
Reno ou pelo Danúbio. Um panegírico do ano de 310 descreve o e "aniquilados", reconstituídos por meio de um tratado, ou fledtts,
tratamento dado aos brúcteros após urna expedição punitiva con que estabelecia suas obrigações para com o imperador. lO
duzida por Constantino: os bárbaros foram encurralados em uma Porém a derrota também significava mudanças importantes para
área pantanosa em meio a uma floresta impenetrável. Muiros foram os povos bárbaros das fronteiras que não eram incorporados ao exér
mortos, seu gado foi confiscado e suas aldeias, incendiadas. Todos cito imperial nem vendidos como escravos. Percebendo a impossi
os adultos foram lançados às feras na arena. As crianças provavel bilidade de sustentàr seu sistema político e econÔmico por meio das
mente foram vendidas como escravas. pilhagens, os reis militares bárbaros derrotados optavam por colabo
Portanto, nos casos mais extremos, a derrota significava a ani rar com o exército romano. Após derrotar uma milícia vândala em
quilação de um povo, a dissolução total de seus vínculos sociais e 270,0 imperador Aureliano firmou um tratado com eles, transfor
políticos, e sua incorporação ao mundo romano. Em outros casos, mando-os em federados. Tratados semelhantes foram estabelecidos
10. Gerllard Wirth, "Rome and Its Germanic Partners in the Fourtn Century', em Walter PQhl CEd.),
9. Região correspondente ao sudoesteda atual Alemanna. (N. T.) Klngdoms ofthe Empifll: The Integratlon ofBarbar/aos In Lote Antlqulty. Lelden, 1997, p. 13-55.
104 -<>;> O Mito das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos.,.... 105
com francos e gados antes da virada daquele século. Os foederatí ça de seus próprios reis: Esses subgrupos podiam ser considerados
obrigavam-se a respeitar as fronteiras do Império, fornecer tropas gentes, indie.ando uma constituição sociopolítica, ou pagi, sugerindo
para o exérdro imperial e, em alguns casos, gado e outros bens para uma organização de base territorial (pelo menos em parte), ou até
os romanos. Os líderes bárbaros aliados a Roma percebiam que, mesmo os dois ao mesmo tempo, como no caso dos lentienses.
lutando pelo Império, e náo contra ele, podiam alcançar níveis de Da mesma forma, os francos mais antigos eram compostos por
poder e influência anteriormente inimagináveis. Dessa forma, fac grupos como os camavos, os catuários, os brúcteros e os ansibários,
ções favoráveis e contrárias a Roma se desenvolviam no interior das e conheceram inúmeros regales e duces que comandavam partes da
confederações bárbaras ao longo do limes, mantendo um estado de coletividade e disputavam a primazia. Além disso, os francos não se
tensão e desunião entre elas que era ativamente alimentado por seus identificavam apenas com essas unidades menores e com sua con
vizinhos do Império. federação, mas também com o mundo romano. Na lápide de um
Novas formas de unidade política relativamente estáveis se dc; túmulo panônio do século IH, há a seguinte inscrição: Francus ego
senvolviam ao longo do Reno e do Danúbio, enquanto esses "no cives, miles romanus in armís ("Minha nacionalidade é franca, mas,
vos" povos estabeleciam acordos com a vitoriosa Roma. Que tipo como soldado, sou romano").12 Essa não é uma simples afirmação da
de identidade os membros desses grupos atribuíam a si mesmos? identidade bárbara. Sua língua e terminologia revelam o quanto as
Embora não saibamos exatamente o que os bárbaros pensavam de idéias romanas de cidadania influenciaram essa sociedade guerreira.
si, temos indícios de que os indivíduos podiam manter simultanea O fato de um individuo ser tido como um cidadão franco, aparen
mente identidades diversas, considerando-se membros de confede temente uma contradição, sugere um reconhecimento da natureza
rações mais amplas ou de grupos menores. Assim antigos nomes constitucional da unidade franca. Além disso, a declaração de que
"étnicos" continuavam sendo escutados por informantes romanos. o guerreiro, como soldado, era romano enfatizava a nova realidade
Os alamanos se estabeleceram na Agrí Decttmates, mas mantiveram fundamental que emergia no curso do século IH: o próprio exército
uma noção de identidade flexível e bastante dividida que apenas romano estava se tornando bárbaro.
ocasionalmente era unificada, geralmente quando eram dominados Arbogasto foi apenas um dos líderes francos que conseguiram
por um medo incontrolável de seus vizinhos romanos.u A confe manipular suas duplas identidades. A ascensão desses militares era
deração dos alamanos que combateu o imperador Juliano em 357, constantemente incentivada pelos imperadores, que precisavam en
por exemplo, foi liderada, ao que parece, por um tio e um sobrinho, COntrar formas mais econômicas de lidar com as exigências do exército
considerados "mais poderosos do que todos os outros reis", cinco reis romano provocadaS por conflitos internos e pela pressão na fronteira
de segundo escalão, dez regales e uma série de magnatas. Embora as persa. O recrutamento de bárbaros era mais econômico e efetivo do
fontes romanas considerem rodos esses líderes alamanni, também que o estabelecimento de tropas tradicionais. Constantino I abriu o
atentam para o fato de que a confederação era formada por grupos
como os bucinobantes, os lentienses e os jutúngidas, sob a lideran 11_ Citado em Joachim Werner, "Zur Entstehung der Relhengrâberzivilization: Eln Beitrag zur
11. Sobre os alamanos em geral, ver Geuenich, Geschichte derAlemannen. Darmstadt, 1973, p. 294.
106 _ O Mito das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos",... 107
caminho, não apenas incorporando unidades militares francas ao nas regiões mais a leste, na atual Ucrânia, reconheceram a autori
exército imperial, mas também promovendo bárbaros, como o fran dade de uma nova família real, que reivindicava uma legitimida
co Bonitus. a postos militares importantes. Bonitus foi o primeiro de antiga e divina. Já entre os grupos góticos que viviam a oeste,
de uma longa série de francos "imperiais". Em 355, seu filho, o intei inúmeros reiks (líderes de guerra) compartilhavam e disputavam o
ramente romanizado Silvano, comandante das legiões romanas de poder oligárquico.
Colônia, foi proclamado imperador por suas tropas. Silvano queria Por volta do século IV, os povos góticos que viviam nas regiões
voltar para perto de seu povo, mas lhe asseguraram que se o fizesse mais orientais, os greutungos (termo que pode ser traduzido, grosso
seria morto. Sendo assim, foi rapidamente assassinado por enviados modo, como "habitantes das estepes"), haviam incorporado carac
do imperador Constantino. Comandantes bárbaros subseqüentes, terísticas dos citas. Nas regiões mais ocidentais, os tervíngios ("povo
como Malarich, Teutomeres, Mallobaudes, Laniogaisus e Arbogas da floresta") estavam sob a influência direta de Roma. Ambas eram
to, aprenderam a lição de que o posto de imperador era perigoso. sociedades agrárias e sedentárias, mas na primeira cavaleiros da
Eles evitavam a usurpação, mas exerciam vasto poder no Império antiga tradição dos citas formavam a espinha dorsal do exército,
do Ocidente. enquanto na segunda a elite militar era composta essencialmente
Em sua maioria, esses generais romanos continuavam mantendo por unidades de infantaria. No século IV, os godos tervíngios co
relações íntimas com alguns membros de seus povos. Pouco após o meçaram a exercer hegemonia sobre inúmeros povos com diferentes
assassinato de Silvano, os francos saquearam Colônia, possivelmen . tradições lingüísticas, culturais e de culto.
te para vingar sua morte. Mallobaudes, que participou da vitória de Composta por comunidades agrárias e governada por assem
Graciano sobre os alam anos em 378, foi chamado simultaneamente bléias locais formadas por homens livres, a população desta confe
de comes domesticorum e rexfrancorum por Amiano Marcelino. Ou deração gótica estava, entretanto, sujeita à autoridade oligárquica de
tros, como Arbogasto, usavam o poder que tinham no Império para líderes militares que, por sua vez, submetiam-se à autoridade de um
atacar seus inimigos do outro lado do Reno. Ainda assim. a situação juiz real supremo, ou kindins. Em 332, Constantino e o juiz tervÍn
desses bárbaros a serviço do Império era instável, tanto dentro como gio Ariarico estabeleceram um tratado, ou foedus. Aorico, filho de
fora dele. Embora geralmente náo fossem menos confiáveis do que Ariarico, havia sido criado em Constantinopla, onde o imperador
os romanos no alto comando. seus rivais romanos freqüentemente havia inclusive erguido uma estátua em homenagem ao juiz. Sob
suspeitavam deles. Ao mesmo tempo, assim como oficiais imperiais o comando de Ariarico, Aorico e Atanarico (filho de Aorico), esses
e adeptos ,da religião romana - fosse a cristá ou a pagá -, sempre godos do oeste se tornaram cadq, vez mais integrados ao sistema im
eram alvos das facçóes anti-romanas quando estavam entre os seus. perial romano, fornecendo tropas auxiliares para as regiões do leste
A aceitação de um alto posto de comando entre os romanos geral do Império. A relação com esses bárbaros trouxe implicações para
mente significava' a renúncia de uma posição de liderança entre os a política imperial e suas disputas' internas. Em 365, o usurpador
bárbaros. Procópio convenceu os tervíngios a apoiá-lo como representante da
No Leste ,Európeu, a confederação gótica, com sua monarquia casa de Constantino, em detrimento' do imperador Valente. Após
militar, fragmentou-se sob ;l pressão imperial. Os gados que viviam a execução de Procópio, Valente organizou uma ofensiva punitiva
108 -;" O Mjto das Nações
Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos .,- 109
e brutal do Outro lado do Danúbio, que terminou apenas em 369, traduziu a Bíblia para o gótico em colaboração com outros. Úlfilas
com um tratado entre Atanarico e o imperador. e seus seguidores tentaram tomar um rumo intermediário entre as
A religião era uma força unificadora na confederação gótica, abordagens católica e ariana da natureza dos entes divinos, posi
cuja constituição heterogênea, no entanto, criava dificuldades para cionamento que inevitavelmente fez com que fossem considerados
a manutenção da unidade religiosa. Os cristãos - muitos cristãos da arianos pelas gerações subseqüentes de cristãos ortodoxos. A curto
Criméia haviam sido incorporados ao mundo gótico nos tempos de prazo, porém, a perseguição de Átanarico foi tão efetiva como ha
Cniva, e muitos outros durante os ataques na região do Danúbio via sido a amiga perseguição aos cristãos promovida pelo Império,
- provaram ser a minoria religiosa mais difícil de ser assimilada, resultando na cisão dos povos góticos. Então o arÍsrocrata gótico·
tanto por causa de sua fé monoteísta radical como pela importância Fritigerno aproveitou a oportunidade para firmar um acordo com o
do cristianismo para as estratégias políticas do Império Romano. Os imperador romano Valente: em troca de sua conversão ao cristianis
cristãos góticos representavam uma variedade de crenças, incluindo mo ariano, o imperador o apoiaria contra Atanarico.
a dos godos ortodoxos (ou seja, "crentes verdadeiros" ou católicos)
da Criméia, a da seita audiana de alguns dos tervíngios, que reco Transformação interna
nhecia a corporalidade de Deus, e as de várias comunidades arianas
ou semi-arianas dos Bálcãs góticos. O mais inRuente dos cristãos As medidas estabelecidas com o objetivo de encerrar a crise produ
góticos foi Úlfilas (cujo nome gótico significa "Pequeno Lobo"), um ziram efeitos consideráveis dentro e fora do Império. Em uma ten
gado de starus social relativamente elevado, da terceira geração de tativa de manter a produtividade e o controle sobre uma corrosiva
uma linhagem gótica. Seus ancestrais cristãos haviam sido captura base de cálculo dos impostos, o Império decidiu que as profissões
dos durante um ataque na Capadócia, por volta do ano de 260. Por passariam a ser hereditárias. Os trabalhadores rurais ficaram presos
volta de 330, ÚI.61as foi a Constantinopla como membro de uma às terras em que trabalhavam e ainda mais dependentes dos proprie
delegação, viveu em território imperial por algum tempo e, em 341, tários. Como a situação havia ficado mais opressiva, o "banditismo",
consagrado "bispo dos cristãos em terras géticas" pelo Concílio um eufemismo para rebelião armada, tornava-se cada vez mais co
de Antioquia, e então enviado aos Bálcãs góticos. A consagração de mum. Uma atitude mais efetiva, mas menos violenta, era a fuga:
Úlfilas e sua missão entre os godos e outros povos da confederação os camponeses simplesmente fugiam das terras em que o valor do
faziam parte de um programa imperial que possivelmente propiciou arrendamento e os impostos os arruinariam financeiramente. Co
a primeira perseguição aos cristãos góticos, promovida por Aorico meçaram então a surgir áreas desocupadas (agri deserti) no Império.
em 348, e ainda uma segunda, que teve início em 369, organizada Não se sabe exatamente se essas áreas eram realmente desocupadas,
por Atanarico. Durante a primeira, Úlfilas foi exilado, juntamente despovoadas por conta dos conflitos e impostos, ou simplesmente
com seus seguidores, na Moésia romana,13 onde pregou em gótico, regiões onde os cobradores imperiais eram incapazes de forçar o
latim e grego à multidão heterogênea, escreveu tratados teológicos e pagamento dos impostos.
A cobrança dos tributos se tornava cada vez mais penosa para os
13. Região situada a oeste do mar Negro. correspondente à atual Bulgária. (N. T.' conselheiros locais, ou curiales. Alguns curiales eram suficientemen
110 -e O Miro das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outroS romanos Er- 111
te poderosos para prosperar como executivos do sistema tributário velozes e especializadas (comítatenses), posicionadas muito além das
imperial, ou fisco, forçando o pagamento dos impostos por meio linhas de defesa, entrariam em ação.
de contatos políticos ou contratando criminosos. Para outros, fazer Essas reestruturações administrativas e militares proporciona
parte da cúria significava a ruína financeira, já que eles próprios ti ram um sistema imperial mais efetivo, mas também influíram bas
nham que pagar os imposros que não conseguiam arrecadar. Alguns tante na transformação social do Império. A reestruturação militar
cttriales se juntavam aos camponeses na fuga, indo da cidade para transformou a mais romana das instituições em um poderoso meca
o campo, onde, protegidos por milícias particulares, podiam inti nismo de regionalização e barbarização. As unidades militares fron
midar e resistir aos agentes do fisco. Dessa maneira, as demandas teiriças se converteram em tropas regionais, compostas por recrutas
fiscais enfraqueciam os vínculos de lealdade entre as comunidades locais, geralmente filhos de soldados. Como essas unidades eram
locais e Roma em ambos os extremos sociais. formadas pela parcela menos romanizada da população do Império,
Os principais agentes do poder central com quem os curiales lo! elas se tornavam cada vez menos distintas dos bárbaros contra os
cais mantinham contato eram cobradores e militares. Esses rorna quais lutavam para defender as fronteiras.
vam-se cada vez mais hostis e ameaçadores aos olhos da população As tropas comitatenses também eram formadas cada vez mais por
romana do século IV: A máquina burocrática também havia sido soldados bárbaros recrutados fora do Império. Os excelentes cavalei
totalmente reestruturada e ampliada. Com Diocleciano, as admi ros góticos do baixo Danúbio eram amplamente utilizados nas re
nistrações civil e militar, que havia muito eram unificadas, foram giões do leste do Império como tropas coligadas. Em algumas regiões,
radicalmente separadas. O número de províncias foi aumentado, os termos "gado" e "soldado" eram utilizados indistintamente. No
com o objetivo de diminuir a possibilidade de ações separatistas por leste, os bárbaros do baixo Reno (francos) ascenderam a postoS im
parte dos governadores locais, e então foram agrupadas em provín portantes na hierarquia militar. Assim o veículo fundamental da
cias maiores (dioceses), governadas por oficiais civis. romanização se tornava essencialmente bárbaro.
O exército também foi reestruturado, já que precisava reagir A profunda transfOrmação da identidade cultural, iniciada pela
com mais agilidade às situações emergenciais em todo o Império. conversão de Constantino, foi concomitante a essas mudanças nas
Para substituir o antigo sistema de legiões, foram criadas duas novas estruturas militar e administrativa. Para preservar os vínculos reli
unidades. A primeira linha de defesa era formada pelas unidades giosos que uniam a sociedade romana diante das múltiplas forças
limitanei, tropas de guarnição agrupadas nas fronteiras que deve descentralizadoras do século IH, Diocleciano instituiu um progra
riam manter o status quo em circunstâncias normais. Geralmente ma sistemático e violento de perseguição aos cristãos. A devoção
os soldados dessas tropas eram recrutados nas próprias populações monoteísta dos cristãos e sua rejeição aos antiqüíssimos rituais que
fronteiriças. Mal treinadas e mal equipadas, as limitanei dependiam haviam incorporado praticamente todas as outras tradições religio
das pequenas fortificações construídas ao longo da fronteira para sas 'estavam entre os principais alvos dessa perseguição. Nos sécu
repelir ataques bárbaros nas regiões do Reno e do Danúbio. Caso los anteriores, quando os cristãos ainda formavam, em sua maio
essas unidades fronteiriças fossem subjugadas, tropas de campanha ria, grupos marginais, essa rejeição havia provocado perseguições
112 -e O Mito das Nações