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\ BÁRBAROS E OUTROS ROMANOS


Ca

o MITO DAS NAÇÕES


A invenção do nacionalismo

Os romanos adoravam comparar seu mundo ao dos bárbaros. Po­


rém, como sugerimos no capítulo anterior, esses dois mundos cor­
respondiam a duas categorias distintas: a identidade romana, como
o popuius romanus, era constitucional, criada internamente e basea­
da em uma cultura e uma tradição intelectual comuns, em um sis­
tema legal e em uma predisposição para a integração a uma tradição
político-econômica comum. Resumindo, a qualidade de romano
era uma categoria constitucional, e não étnica. Já a qualidade de
bárbaro era uma categoria inventada, projetada em uma variedade
_de povos com todos os preconceitos e pressuposições de séculos de
etnogra6a clássica e imperialismo. Além disso, apesar da ênfase que
os romanos davam à diferença entre as duas categorias, uma neces­
sariamente não excluía a outra. Um indivíduo podia ser ao mesmo
tempo romano c bárbaro. A distinção, sempre mais teórica do que
real, tornou-se ainda mais incerta nos séculos IV e V.

Patrick J. Geary Identidades regionais, religiosas e de classe no Império

A qualidade de romano também não era o principal meio de identi­


ficação para os milhões de habitantes (permanentes ou temporários)
@
do Império Romano. Os habitantes do Império se identi6cavam
CONIAD
.LIVRO"
mais pela classe social, pela profissão ou pela cidade em que viviam
CapItulo 3: Bárbaros e outroS romanos v- 83
82 -'" O Mito das Nações

do que pela nacionalidade ou etnia. Certamente, a partir do início do vam a maior parte da mão-de-obrá agrária, artesanal e industrial.
século lU, a cidadania não era mais tão importante. Em 212 e.c., qua­ Os escravos eram submetidos aos caprichos de seus senhores e prote­
se todos os habitantes do Império eram cidadãos romanos, um sta­ gidos apenas por seu valor econômíco. Ainda assim, não havia uma
tus que já havia sido bastante cobiçado (lembremos da satisfação de nítida distinçáo racial, étnica ou religiosa entre escravos e senho­
res. De fato, muitos escravos eram "importaçóes" recentes da África
são Paulo quando teve a oportunidade de dizer a um oficial romano
subsaariana ou das florestas da Germânia e, nos dois casos, eram
- que havia adquirido sua cidadania a muito custo que era um
valorados e diferenciados de acordo com a cor da pele, o tamanho e
romano de nascença), mas que a partir de então passava a ser apenas
a aparência. Porém a maioria não podia ser diferenciada do resto da
uma simples questão de conveniência militar e fiscal. O imperador
população, exceto talvez pelas marcas ou tatuagens que determina­
Caracala havia estendido a cidadania romana a todos, de modo que
vam o status de escravo, ou pelas cicatrizes das surras que levavam
qualquer um pudesse ser convocado para servir nas legiões. Além
de seus senhores.
disso, como cidadãos romanos, todos teriam que pagar impostos.
Na teoria, a linha divisória entre o escravo e o cidadão livre era
Dessa forma, como praticamente todos os habitantes do Império
absoluta, mas na verdade também era permeáveL Assim como ho­
passavam a ser romanos, a identificação por essa característica per­
mens e mulheres livres podiam ser condenados à escravidão por
dia sua importância. Os estudos etnográficos modernos da identida­ questões cívis ou criminais, os escravos às vezes conseguiam entrar
de revelam que, na maioria das vezes, são os grupos fronteiriços que para o mundo dos cidadãos livres. Os senhores romanos podiam
formam as identidades "étnicas" mais importantes, geralmente em permitir que seus escravos tivessem suas propriedades (peculium),
oposição ao "outro" com quem interagem, o que náo ocorre com os que adquiriam em seu tempo livre. Embora essas propriedades não
habitantes do centro. Assim, como a maioria dos cidadãos romanos fossem de grande valor, elas podiam, em alguns casos raros, abrir ca­
vivia cercada por outros cidadãos, já que muito raramente se de­ minho para que os escravos comprassem sua liberdade e a de sua fa­
parava com os "germânicos livres" do outro lado do Danúbio ou mília. Além disso, os romanos cultivavam, havia muito, o generoso
se arriscava nas areias do Saara para interagir com os berberes, sua hábito de emancipá-los, geralmente quando estavam à beira da mor­
"romanidade" era menos importante do que outros fatores na deter­ te, garantindo assim um funeral cheio de enlutados agradecidos.
minação de sua identidade essencial. O verdadeiro sentimento de Os emancipados viviam em um mundo intermediário. livres pe­
unidade (ou de oposição) provinha das diferenças regionais,profis­ rante a lei e independentes para interagir socialmenre, mas presos a
sionais, de classe e, em algumas circunstâncias limitadas, religiosas. deveres específicos de deferência, pagamentos e assistência para com
Os bárbaros existiam (se é que existiam) apenas como uma catego­ seus antigos senhores. Pelo menos teoricamente, os filhos dos eman­
ria teórica. cipados não herdavam o status de escravo. Assim, seus netos podiam
A distinção mais importante do mundo romano era entre os ci­ ascender socialmente, de acordo com sua sorte e talentos. Ascensões
dadãos livres e os escravos. O Império sempre havia sido uma so­ sociais espetaculares eram raras, mas aconteciam e alimentavam o
ciedade escravocrata, na qual os escravos - fossem eles escravizados sonho da mudança, perante a lei, do status de objeto para o de indi­
além das fronteiras do Império durante as guerras ou dentro de seus víduo livre, ou até mesmo o sonho de enriquecimento.
limites pelo status hereditário ou pela condenação judicial - forma-
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Entre os cidadãos livres do Império, o abismo que separava a era destinada ao tesouro imperial, e o que sobrava permanecia na
elite das massas era enorme. Camponeses comuns, que trabalha­ própria comunidade para a manutenção dos serviços públicos. Os
vam em terras alheias como meeiros ou arrendatários, mal se dis­ membros dos conselhos municipais determinavam quem e quanto
tinguiam dos escravos. As elites, ou honestiores, gozavam de direitos cada um deveria pagar, além de como O dinheiro seria usado, o que
garantidos pela lei em virtude da riqueza que possuíam e de seu permitia que estabelecessem e aumentassem suas próprias redes de
valor para o Estado romano. Ao contrário dos humiliol'cs, ou cida­ patronato. Desde que os impostos pudessem ser arrecadados sem
dãos comuns, os honcstiores não eram punidos fisicamente, o mais grandes problemas, esse serviço era uma meta para boa parte da
penoso e humilhante dos castigos para a plebe. Quanto aos cidadãos nobreza local.
comuns, dependendo de sua condição econômica, podiam se en­ As elites não se diferenciavam das massas apenas por sua riqueza.
contrar em piores situações do que os escravos privilegiados, e nada Com a riqueza, vinha a cultura (paideia), que, mais do que qualquer
tinham em comum com os ricos proprietários de terras que con- . outra característica, distinguia os civilizados dos meramente roma­
trolavam boa parte da vida deles. No século UI, sob a pressão dos nos. Por meio da educação, cultivada como um dos elementos do
impostos, do recrutamento militar e da diminuição da população, estilo de vida da elite provinciana, os honcstiores desenvolviam sua
o status dos arrendatários agrícolas se assemelhava bastante ao dos identidade como parte do mundo mais amplo da cultura romana.
escravos. Como eram os proprietários de terras que arrecadavam os Porém, por mais vastos que fossem os mundos culturais propor­
impostos referentes a suas posses, e terras desocupadas não rendiam cionados pela paideia, a maior pane das elites locais conrinuava obs­
tributos, eles tinham autoridade para controlar seus contingentes de tinadamente presa à região de suas propriedades. Da Síria à Gália,
uabalhadores. A profissão de agricultor, como as outras, tornara-se do norte da África à fronteira danubiana, os proprierários rurais
hereditária. Dessa maneira, os proprietários tinham o poder de per­ provincianos continuavam fortemente vinculados às particularida­
seguir os arrendatários fugitivos e forçá-los a retornar à propriedade. des de sua região ou patria. As razóes para isso eram numerosas.
Ao longo dos séculos III e IV, oS proprietários exerciam cada vez O Império havia sido, desde seu princípio, uma rede de cidades (e
mais poder sobre seus arrendatários, o que incluía não só os direitos seus territórios adjacentes) ligadas a Roma por acordos específicos.
do tradicional patronato romano como também um grande poder Muitas personalidades locais eram descendentes das elites regionais,
político. cujas famílias controlavam a sociedade de suas regióes desde antes
As elites rurais do Império monopolizavam poder econômico e da chegada do Império Romano. Na medida do possível, o expan­
prestígio político em suas localidades e regiões. Os membros dos sionismo imperial incorporava os poderes regionais preexistentes à
conselhos municipais, com suas posiçóes asseguradas por suas ri­ sua órbita. O poder central de Roma, onde havia uma variada tra­
quezas fundiárias, controlavam a vida pública. Eram eles que lu­ dição cultural e religiosa, nunca havia exigido uma adesão exclusiva
cravam de forma mais direta com o sistema de governo e a "área aos valores romanos: sempre que possível, a tradição regional era
de livre comércio" que constituíam o mundo romano. Ao mesmo assimilada ou equiparada à de Roma. Além disso, as famílias não
tempo, tinham deveres, sendo o mais imporrante deles a arrecada­ precisavam abandonar o status que tinham nas antigas tradições
ção dos impostos anuais, feita por agentes. Parte desses impostos tribais ou regionais. Essas tradições podiam se tornar - e de fatO se
8ó """ o Mito das Nações
CapItulo 3: Bârbaros e outros romanos ,,- 87

tornavam - motivo de orgulho para as personalidades provincianas. lhes rendeu a reputação de ateus perigosos. Ao contrário dos judeus,
Dessa forma, rornar-se romano não significava a troca do velho pelo eles não se identificavam com uma região ou classe social específi­
novo, mas a redes coberta do velho no novo. cas. As comunidades cristãs eram notórias por ignorar os padrões
Esse mesmo processo de incorporação também ocorria na esfe­ comuns do status social. Cada comunidade se desenvolvia como uma
ra religiosa. Da Mesopotâmia à Britânia, novos deuses podiam ser assembléia local, ou ecclesia, centrada em sua cidade (como todas
idolatrados como manifestações do antigo e do familiar. O deus do mundo romano) e administrada por um bispo eleito pela comu­
celta Teutatis era associado a Mercúrio. Hércules geralmente era re­ nidade. As «igrejas" de Antioquia, Alexandria e Roma náo eram
presentado na Ásia Menor como um deus fenício ou púnico. Talvez nada uniformes entre si. Ainda assim, os cristãos formavam uma
o exemplo mais notável desse sincretismo seja o de Ísis, que, como facção que transcendia as particularidades do Baixo Império, um
personagem da obra Metamorfoses, de Apuleio, explica que os frígios dos poucos movimentos que abarcavam uma cultuta universal que
a chamavam de Pessinuntia, a mãe de Deus; os atenienses, de Atena; paradoxalmente transcendia as tradições específicas das igrejas lo­
os cipriotas, de Vênus Paphia; os cretenses, de Diana; os sicilianos, cais. Desse modo, os cristãos apresentavam a anormalidade de uma
de Prosérpina; os eleusinos, de Ceres; Outros a chamavam de Juno, fraternidade ao mesmo tempo local e universal, sendo seus membros
Bellona, Hécate e outros nomes. l Povos diversos se uniam por meio cidadãos comuns e, ao mesmo tempo, bastante isolados de seus vizi­
da idolatria, mesmo que não estivessem cientes disso. nhos. Essa ausência de características distintivas claras, pelas quais
As únicas religiões que os romanos não foram capazes de incor­ pudessem ser identificados quando fora da esfera religiosa, pode ter
porar foram o judaísmo e, em parte, sua ramificação, o cristianismo. alimentado o medo irracional que provocavam nos cidadãos comuns
O monoteísmo radical gerava um problema insolúvel para a política e nos defensores da ordem imperial.
religiosa romana. Alguns judeus podiam e se tornavam romanos, Os cristãos insistiam que eram exatamente iguais aos outros ci­
como foi o caso de são Paulo. No entanto, eles não podiam se ligar dadãos: respeitosos, dignos e defensores leais de seu imperador, de
completamente ao mundo romano pelos elos tradicionais da reli­ sua cidade e de sua classe e profissão. Ainda assim, suas crenças os
gião. Ainda assim, após a destruição derradeira do templo sagrado distanciavam radicalmente dos laços sagrados que uniam o mundo
em 70 e.c. e a expulsão dos judeus da Palestina e da Judéia, os judeus romano.
que permaneceram espalhados pelo território do Império, ao que A integração religiosa era apenas uma parte do processo pelo
parece, fizeram as pazes com o sistema imperial. Não havia mais qual os magnatas locais haviam se incorporado a esse mundo, sem
notícias de comportamento separatista ou sedicioso por parte de com Íssose desligar de suas antigas alianças. O casamento e os laços
suas comunidades pequenas e dispersas. Entretanto eram os cristãos de parentesco também ligavam as elites romanas a suas cidade e
quem começavam a agir de forma subversiva. província. Veteranos e burocratas romanos se recolhiam a colônias
Os cristãos também eram monoteístas radicais, e sua rejeição aos recém-fundadas, onde se casavam e estabeleciam famílias, levando
cultos tradicionais de Roma e aos cultos romanizados do Império consigo tradições culturais romanas, mas, ao mesmo tempo, sendo
incorporados às economias agrárias das cidades provincianas. Os
1. Apulelo, 11. S.
provincianos que conseguiam se dar bem no mundo imperial ge­
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos er- 89
88 -<> O Mito das Nações

ascensão era sempre uma possibilidade teórica, ou até mesmo reaL


ralmente retornavam à sua cidade de origem para assumir as honras
Durante a prolongada crise do século lII, a ascensão, geralmente por
e deveres de um benfeitor local. Forasteiros e famílias antigas se
meio do serviço militar, era mais do que uma possibilidade remota:
misturavam, dando continuidade às elites proprietárias de terras.
o próprio imperador Diocleciano era filho de um escravo dalma­
Durante gerações, os casamentos entre aS famílias locais fortalece­
dano emancipado. O sucessor de Diocleciano, Galério (305-311),
ram a identificação com a paisagem e a tradiçáo regionais. Essas
também era de origem humilde: fora guardador de rebanhos nos
identidades provincianas não substituíam nem competiam com a
romanitas. De fato, a romanitas era o contexro necessário no qual as montes Cárpatos.
Mesmo náo ascendendo da obscuridade ao poder, a maioria dos
particularidades da identidade provinciana podiam florescer.
camponeses continuava ligada a seus superiores por meio do pa­
A identidade aristocrática tomana era, portanto, multi facetada.
tronato e do clientelismo, um dos tipos de vínculo mais antigos
Por causa da rigorosa tradição da educaçáo aristocrática, as elites
da sociedade romana. Nas províncias, onde viviam as sociedades
romanas se identificavam bastante com a cultura romana central,
conquistadas, vínculos semelhantes revestiam as relações entre os
reconhecendo em Virgílio, Cícero e Horácio seu próprio passado.
proprietários de terras e seus camponeses e subordinados. Nos tem­
Ao mesmo tempo, continuavam bastante ligadas às sua província,
pos turbulentos do final da Idade Antiga, a importância desses vín­
especialmente à sua cidade. Exaltavam sua beleza, ferd1idade, seus
culos aumentou para ambas as partes. Os proprietários protegiam
rios e florestas em sua poesia. Buscavam o futuro em seus merca­
os camponeses dos cobradores de impostos e dos encarregados do
dos e suas ocupações públicas no conselho, ou cúria, da localidade.
Praticavam seus cultos em seus templos, que eram ao mesmo tempo recrutamento militar e, em troca, fortaleciam suas próprias milícias
táo universais quanto Roma e táo provincianos quanto a paisagem com os habitantes de suas terras. No século V, as revoltas contra o
que amavam. governo imperial eram armadas náo apenas pelos escravos e coloni,
Alguns historiadores, enfatizando o abismo que separava o es­ mas também por seus senhorios. No entanto, não há indícios de que
cravo do cidadão livre e o arrendatário do proprietário de terras, tais relações se baseavam em uma identificaçáo étnica ou nacional:
defendem a idéia de que as identidades de classe eram muito mais eram relações de lealdade emre indivíduos e famílias.
importantes para os grupos do que as identidades regionais, étnicas
ou sociais. Em certo sentido, eles estão certos: a realidade legal e o centro romano
a econômica do Baixo Império impediam maiores vínculos entre
Naturalmente os membros de algumas famílias eram mais do que
as classes e terminavam propiciando atos de violência, geralmente
magnatas e manipuladores regionais. As famílias importantes do
contra a opressão dos proprietários de terras. Entretanto o abismo
Império possuíam terras em muitas províncias: latifúndios na Áfri­
que separava as classes não era tão grande a ponto de não permitir
ca, na Gália e até mesmo na própria Itália, caso fizessem parte do
a ascensão social.
Senado romano. Essas famílias, pertencentes à mais alta classe do Im­
Ao longo de toda sua história, o Império Romano permitia, pelo
pério, sustentavam a plenitude da tradiçáo romana, o que poderia
menos teoricamente, que um escravo ascendesse ao cargo de sena­
significar a rejeição ou supressão de suas raízes provincianas. No
dor. Por mais inferior que fosse a classe social de um indivíduo, sua
90 ...", O Mito das Nações
Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos.,.. 91

século II, elas geralmente eram italianas. Mesmo que não fossem de
habitantes de todas as partes do Império e posicionadas estrategi­
origem italiana, identificavam-se com sua cultura e estabeleciam re­
camente em regiões fromeiriças. Embora muitas tropas auxiliares,
sidência na península. Embora muitas vezes a renda dessas famílias
a partir do século I, fossem formadas por indivíduos de povos vizi­
fosse proveniente de regiões longínquas do Império, ela era, como
nhos, o mais comum era dividi-las e distribuí-las por todo o terri­
em épocas passadas, enviada a Roma.
tório imperial, de preferência bem longe de seus povos de origem.
A única forma de adquirir tal status, ou a forma mais segura de
Dessa forma, as tropas germânicas eram deslocadas para o Egito,
mantê-lo por gerações, era o serviço imperial. Até o final do século
enquanto as citas guarneciam a Gália e a Britânla. Tanto para as popu­
lU, a carreira pública dos jovens aristocratas que esperavam ascender
lações que viviam nas regiões fronteiriças como para as tropas auxi­
às mais altas posições de riqueza e poder incluía a prestação de servi­
liares deslocadas para longe de suas famílias, o exército era o veículo
ços militares e civis. Trabalhar para o sistema imperial, assim como
fundamental da romanização, a única instituição verdadeiramente
trabalhar para uma corporação multínacional moderna, implicava .
romana no Império.
um deslocamento constante. Um jovem que desejava ascender aos
Essa identidade específica começou a se transformar no século
mais honrosos cargos imperiais tinha que se deslocar por todo o
IH. A ampliação da cidadania fez com que praticamente toda a po­
Império em sua escalada rumo ao topo. A Itália e a cidade de Roma
pulação tivesse acesso às legiões, e estas começaram a recrutar indi­
continuavam atraindo os ricos e ambiciosos. O berço da civilização

víduos nos distritos onde se estabeleciam, uma prática que perdurou


romana continuava sendo o epicentro da criação e distribuição dos

por décadas, ou até mesmo séculos. Além disso, já no final do século


recursos aparentemente inexauríveis oferecidos a todos que desejas­

lI, passou a ser permitido que os soldados em atividade se casas­


sem e fossem capazes de se tornar inteiramente romanos.

sem (embora eles já fizessem isso antes, informalmente). As esposas,


Mas os jovens provincianos que se davam bem na península
oriundas das populações locais, aceleraram o processo de formação de
náo eram esquecidos em suas cidades de origem. As centenas de
vínculos entre as legiões e as comunidades regionais, de modo que os
inscrições na base das estátuas erguidas em homenagem a eles, em
deslocamentos das tropas para regiões ameaçadas de invasáo come­
sua cidade de origem e/ou na comunidade em que se aposentavam,
çaram a gerar revoltas. As tropas auxiliares também começaram a
comprovam a continuidade dos vínculos entre eles, incluindo os que
resistir às tentativas de deslocamento. No ano de 360, ao se deparar
ascendiam às mais altas posições, e sua província. Até mesmo um
com um forte ataque persa na fronteira oriental, o imperador Cons­
imperador-deus como Diocleciano podia se recolher à sua Ilíria,2
tantino ordenou o deslocamento das tropas, inclusive as auxiliares,
após se aposentar, é claro, em seu esplendor imperial.
da fronteira germânica para o leste: o resultado foi uma revolta exa­
Se as grandes famílias senaroriais formavam um dos centros da
cerbada das legiões, que proclamaram Juliano, o César do Ociden­
romanidade, os militares formavam o outro. Em certo sentido, os
te, imperador. 3
militares representavam um tipo de idenridade menos ligada às par­
ticularidades das regiões. As legiões romanas eram formadas por
3. Até então, Jullano o Apóstata ostentava o titulo de César. ou Imperador subordinado, que
2. Antiga região da parte ocidental da penlnsula Balciínica. (N. T.) lhe havia sido concedido para que representasse o Império no Ocidente, já que o imperador
Constantino, com seu titulo de Augusto, guerreava na fronteira orientai. (N. T.)
92 '"'"" O Mito das Nações
Capitulo 3: B.'Írbaros e outros romanos .,- 93

Identidades sociais no mundo bárbaro


base de defesa mútua, entrando em ação em caso de rixas com ou­
Ao longo de toda a fronteira do vasto rmpério, as legiões ro­ troS clãs. Porém os pré-requisiros para a adesão aos dãs variavam, já
manas vigiavam o mundo que qualificavam impetuosamente como que os indivíduos, dependendo das circunstâncias, podiam se filiar
bárbaro. a uma variedade de grupos mais amplos. O núcleo familiar, e não o
Os romanos chamavam as unidades sociais de seus viúnhos bár­ clã, era a unidade primária da sociedade bárbara.
baros de gentes (em grego, ethne), "povos", e lhes atribuíam todas as A aldeia era administrada por uma assembléia de homens livres
características imuráveis que haviam sido, como já vimos, parte da sob a liderança de um chefe, e uma série de fatores determinavam
etnografia clássica desde Heródoto. O que esses grupos realmen­ sua escolha: riqueza, influência familiar c contatos com a liderança
re eram, quais eram suas próprias aura-identidades ou "consciência do povo do qual a aldeia fazia parte. As gentes, ou povos, eram for­
étnica", se é que havia uma, é algo que não podemos saber Com madas por uma combinação de tradições religiosas, legais e políticas
precisão. Entretanto, observando esses grupos pelo olhar de seus vi­ que proporcionavam um forte mas instável sentimento de unidade.
zinhos romanos, podemos chegar a conclusões Contrárias às de seus Os membros de um "povo" compartilhavam mitos de ancestrali­
contemporâneos "civilizados". dade, tradições culturais, um sistema legal e líderes comuns. Porém
Os grupos bárbaros eram compostos por pequenas comunida­ todos esses elementos eram flexíveis, múltiplos, e estavam sujeitos a
des de fazendeiros e pastores que viviam em aldeias às margens de negociações e até mesmo a controvérsias. Os mitos de ancestralidade
rios, no litoral e em clareiras. dos mares do Nane e Báltico ao mar consistiam em genealogias de heróis lendários e seus feitos. Os fun­
Negro. A maior parte dessas sociedades era formada por homens dadores dessas genealogias eram seres divinos, e as linhagens inicia­
e mulheres livres, organizados em núcleos familiares comandados das por eles náo formavam uma história no sentido greco-romano,
peIos maridos ou pais. O status na aldeia dependia da riqueza, me­ ou seja, uma narrativa estruturada tradicional. Pelo contrário, esses
dida pelo tamanho do rebanho de cada família, e da destreza mili­ mitos conservavam um relato apolítico e atemporal dos indivíduos,
tar. Alguns homens mais ricos comandavam núcleos familiares que interligados por elos familiares e contos de vingança e vendeta, aos
não incluíam apenas suas mulheres (alguns tinham mais de uma quais muiros indivíduos e famílias reivindicavam vínculos.
mulher) e seus filhos, mas também indivíduos livres dependentes e Os acadêmicos têm chamado esses complexos de crenças tradi­
escravos abrigados ao redor da casa principal.
cionais de "núcleos de tradiçáo" e, desde a publicação da obra do
Os núcleos familiares eram, por sua vez, integrados a u·m gru­
alemão Reinhard Wenskus, historiador e etnólogo da Idade Média,
po mais amplo, chamado pelos historiadores de sipe ou dão O dã
têm sustentado que as famílias reais eram o suporte desse tradi­
incluía tanto grupos familiares maternos como paternos, que com­
tionskern e que reuniam nele a essência de uma identidade étnica
partilhavam a noção da ascendência comum reforçada por uma
fictÍcia mas dinâmica.4 Em muitos casos, eles estáo certos. Porém é
"paz" particular, de modo que conflitos violentos entre seus mem­
possível que famílias diferentes, com o objetivo de estabelecer uma
bros eram considerados crimes incompensáveis e irreparáveis. Os
clás também tinham o tabu do incesto e possivelmente direito à 4. Reinhard Wenskus. Stammesbildung und Verfassung: das Werden der {rühmictelalrerlfchen Gentes.
herança. Esses grupos mais amplos também podiam formar uma Colônia, 1961. Walter ?ohl, em "Ethniclty In Early Medieval StudiesP, Archaeologla P%na 29, 1991:
p,41.afirma que o termo já hal/la sido usado em 1912 por H. M. Chadwick.
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CapItulo 3: Bárbaros e outros romanos e- 95

aUtoridade sobre a comunidade em detrimento das Outras famílias, Da mesma forma, a distinção entre os povos citas (gados, hunos
tivessem sustentado versões distintas das tradições e tentado impô­ e ávaros), que lutavam a cavalo, e os germanos e celtas, que lutavam
las. Também é possível que essas tradiçóes fossem amplamente di­ no chão, era exagerada pelos romanos: certamente os nômades das
fundidas na SOciedade, e náo propriedades exclusivas de famílias estepes eram guerreiros que lutavam montados, mas os guerreiros
específicas. Certamente, ao longo dos séculos IV e V, quando os in­ germânicos do Leste também o eram, pelo menos quando sua ri­
divíduos tentavam se estabelecer em posições de domínio, alegavam queza e status permitiam. Além disso, quando as unidades bárbaras
vínculos a essas tradições ou Se associavam a famílias lendárias e glo­
eram incorporadas ao exército romano, eram enquadradas em fun­
riosas ou a heróis mitológicos. Dessa forma, tentavam fazer com que
ções específicas que correspondiam mais às necessidades militares
Sua história fosse tida como a história de seu povo. Algumas vezes
romanas do que às habilidades étnicas tradicionais. Por volta do
isso funcionava, mas também podia ter conseqüências desastrosas.
ano de 400, a notitia dignitatum, uma lista oficial dos oficiais civis
Outras tradições culturais, como a língua, armas, táticas milita­
e militares de alto escalão, listava unidades de cavalaria compostas
res, vestuário e estilos de penteado, podiam unir os grupos sociais,
por alamanos e francos. Esses guerreiros haviam sido recrutados por
mas também eram meios fluidos e adaptáveis de criar unidades ou
suas habilidades como cavaLeiros ou treinados para guerrear na ca­
reivindicar diferenças. 5 Até mesmo os romanos reconheciam que,
valaria por conta de uma necessidade do exército romano?
embora um esquema ideal separasse os povos pela língua, havia
Roupas e ornamentos certameme variavam bastante e podiam ser
mais povos do que línguas. Além disso, antes do século IX, nin­
símbolos de identidades colerivas. O modo como os membros de
guém parecia reconhecer a unidade lingüística das línguas germâ­
nicas faladas por muitos dos povos bárbaros. uma sociedade se vestiam, os tipos de broches e cintos que usavam
ou como arrumavam os cabelos podiam comer significados simbóli­
As armas e táticas militares variavam entre os bárbaros, mas
cos importantes~ No entanto, não podemos precisar quais eram esses
também não sabemos até que pOnto elas eram significativas como
significados. Os romanos se deleitavam ao discutir os diferentes tipos
representações de unidade para povos específicos. Armas ou táticas
de roupa e penteado, mas também nesse caso seus relatos provavel­
distintivas, como os arcos dos hunos, as azagaias dos dácios, as lan­
mente se baseavam mais em seu próprio interesse pelas classificações
ças dos gados ou os machados dos francos, são referidas nas fontes
do que na precisão da observação. Talvez seja melhor reconhecer que
romanas, mas sem nenhuma consistência. Provavelmente eSSas refe­
essas características podiam ser manipuladas e ajustadas de acordo
rências eram mais um reflexo da mania romana de classificações do
com os interesses mutáveis dos grupos do que compreendê-las como
que das práticas reais dos bárbaros. Até mesmo no caso do machado
indícios de uma unidade cultural imutáveL
franco, que de faro parece ter sido uma arma característica no final
As tradições legais - ou seja, as formas de lidar com os confli­
do século V, os próprios francos pareciam menos cientes dessa arma
tos - eram uma conseqüência das idemidades culturais e religiosas.
como parte da tradição "franca" do que seus inimigos, os visigodos
e bizantinos. Como a auroridade central era muito fraca, as disputas eram ad­
ministradas pelos chefes de família, pelas assembléias das aldeias
5. Walrer Pohl. 'Telllng -: .. - ..­
lIle Ullference; srgns of Ethnlc Ideotlty', em Walter PohJ, Heimut Reimetz.
e pelos comandantes militares. Regras eram estabelecidas para a
:>rraregles ofDistinction: Tlle Constructíon offthnfc COmmunities. 300-BOO.leiden. 1998, p. 17-69.

manutenção da paz ou, peIo menos, para que as rixas fossem con­
96 '""" O Mito das Nações Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos €r-- 97

-
duúdas de uma forma pouco destrutiva para a comunidade. Enfim, dendo de pilhagens, da criação de animais e da agricultura de corte
esses grupos culturais e religiosos eram organizados sob lideranças e queima. A derrota, f?sse para os romanos ou para outrOS bárbaros,
políticas que, nos primeiros séculos de contato com Roma, sofreram podia significar o fim de um governante ou até mesmo de um povo,
transformaçõés profundas. que então poderia ser incorporado a uma outra confederação, mais
Quando os romanos entraram em contato pela primeira vez com vitoriosa.
os povos celtas e germânicos, essas populações eram governadas em Por volta do século IlI, o Império havia transformado até mesmo
sua maioria por reis sacros que assumiam o poder por meio da he­ populações que viviam além de suas fronteiras. A política romana
reditariedade. Cada rei era a personificação da identidade de seu prescrevia a criação de estados-tampões, que deveriam proteger o
povo. Ao longo dos séculos I e lI, os grupos que viviam perto dos Império de bárbaros hostis, proporcionar parceiros comerciais para
romanos começaram a abrir mão de seus reis sacros tradicionais em a aquisição de gado, matéria-prima e escravos, além de fornecer in­
favor de líderes guerreiros que pertenciam a antigas famílias reais ou divíduos para a formação de tropas auxiliares. Isso não era novida­
a classes de combatentes bem-sucedidos. Essa mudança favoreceu'o de. Durante séculos, o Império havia apoiado líderes "amigáveis",
Império, já que Roma podia influenciar mais facilmente os novos fornecendo armas, ouro e trigo com o objetivo de fortalecer as fac­
líderes, provenientes de facções oligárquicas, do que os herdeiros da ções pró-romanas do mundo bárbaro. Alguns eram recompensados
antiga autoridade religiosa. com a cidadania romana. Armínio, que se rornara célebre com sua
Esses líderes eram promovidos por seus exércitos heterogêneos e vitória sobre Varo na floresta de Teutoburgo, não só havia se tornado
formavam os centros ao redor dos quais novas identidades políticas um cidadão romano como também havia sido admitido na ordem
e religiosas podiam ser desenvolvidas e nos quais, em alguns casos, dos cavaleiros.6
antigas noções da identidade sacro-social podiam ser inseridas. A Os efeitos da proximidade romana, não apenas entre os bárbaros
legitimidade dos líderes provinha principalmente de sua capacidade que viviam ao longo do limes? como também entre os que viviam
de conduzir seu exército à vitória. Uma campanha vitoriosa con­ bem além, foram consideráveis. O poder político-econômico dos
firmava seu direito à liderança e aumentava o número de pessoas romanos desestabilizou o tempestuoso equilíbrio de poder do mun­
que aceiravam e compartilhavam de sua identidade. Com um pouco do bárbaro ao permitir que os líderes pró-romanos acumulassem
de sorte, os romanos também o reconheciam e o apoiavam. Dessa riqueza e poder excessivos em relação ao que era possível anterior­
maneira, um líder carismático podia significar o início de um novo mente. Esses líderes, a quem os romanos haviam concedido a cida­
povo. Com o tempo, o líder e seus descendentes estabeleciam uma dania e ensinado às "caminhos" dos impostos imperiais, também
identificação com uma tradição mais antiga, alegando a autorização adquiriam experiência militar e política ao servir o exército romano
divina, com base nas guerras bem-sucedidas, para que pudessem com suas tropas como federados. Ao mesmo tempo, o medo dos
personificar e perpetuar algum "povo" antigo. Porranto a integri­ romanOS e de seus aliados fazia com que as facções anti-romanas
dade constitucional desses povos dependia da guerra e da conquista
para que tivesse continuidade e para que sua identidade fosse esta­ 6. Vellelus Paterculus, Hlstorlae Romanae, 11. 118.2.
belecida: eram exércitos, embora sua economia continuasse depen- 7. Complexo de fortificações ao longo da fronteira imperiat.IN. T.)
98 .~ O Mito das Naçóes Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos e- 99

formassem confederações amplas, instáveis e por vezes poderosas, do poder romano. Quaisquer qu.e fossem suas causas principais, o
que podiam infligir danos consideráveis aos interesses de Roma dos resultado foi um deslocamento de poder da Itália para as fronteiras,
dois lados da fronteira. Isso havia acontecido, nos tempos de César, onde o exército tentava a todo custo conter os bárbaros. Os impe­
com os gauleses e, no final do século I, com os bretões. Por volta ra.dores não eram mais formados nos grandes centros do Império,
do fim do século lI, uma grande confederação, a dos marcomanos, mas em meio às tropas das fronteiras. Quando esses "imperadores
pôs à prova a fronteira danubiana e irrompeu temporariamente em de quartel" não tinham condições de atender às reivindicaçóes dos
território imperial. legionários por melhores salários ou de conduzi-los à vitória courra
Portanto, em qualquer momento nessas grandes confederações, os exércitos rivais ou contra os inimigos bárbaros, eram assassinados
alguns indivíduos podiam reivindicar o direito a algum tipo de au­ por suas próprias tropas. Entre os anos de 235 e 284, 17 dos 20
toridade sobre alguma parcela do "povo", sugerindo que suas pró­ imperadores morreram de forma violenta, geralmente após poucos
prias tradições deveriam formar o "núcleo da tradição" ao qual um meses sendo contestados no comando.
grupo deveria aderir, ou então podiam se proclamar representantes O custo dessa máquina militar cada vez mais cara, e a.inda assim
legítimos de uma antiga tradição compartilhada. Sob essa perspecti­ malsucedida, se tornava um peso insustentável para os que mais ha­
va, a identidade "étnica" entre os bárbaros era extremamente Ruida, viam se beneficiado com O sistema imperial no passado: os proprie­
já que novos grupos surgiam, e grupos antigos desapareciam. Geral­ tários de terras provincianos, que por sua vez repassavam os cusws
mente o que permanecia era a crença, por mais imaginária que fosse, para seus arrendatários e escravos. Por causa disso, os camponeses,
de que esses grupos tinham um passado antigo e sancionado pelos cada vez mais insatisfeitOs, organizavam rebeliões esporádicas. O
deuses. banditismo, de ações de gangues a rebeliões sérias, sempre havia
sido de certa forma um problema para o Império. Em muitas revol­
tas, os coloni, ao que parece, uniam-se aos escravos em oposição às
Crise e restauração
cobranças urgentes dos proprietários (de terras e de escravos).
Ao longo do século UI, pressões internas e externas iniciaram uma Os proprietários de terras, especialm(::nte os membros dos conse­
reestruturação da sociedade e das instituições, tanto dentro como lhos l<;lcais, estavam tão desesperados quanto seus camponeses. Pres­
fora do Império. As conseqüências foram efetivas e mud;uam não sionados pelos cobradores a pagar os impostos imperiais, sendo ou
apenas as estruturas sociais da população do final da Idade Antiga, não capazes de arrecadar os valores com os camponeses, muitos se
mas também a maneira como os povos compreendiam a si mesmos.. arruinavam. Cada vez mais, os agentes do distante e ineficiente cen­
Antigas unidades se dissolveram, e nOvas identidades, algumas vin­ tro romano eram vistos pelos magnatas locais como inimigos mais
culadas a antigas identidades pré-romanas, emergiram. perigosos do que qualquer bando de bárbaros invasores. Nas regióes
A crise do século IH foi um fenômeno complexo, iniciado pelas européias do Império, assoladas pela violência e pela desordem, no­
pressões cada vez mais fortes nas fronteiras do Danúbio, do norte vas unidades políticas separatistas começaram a surgir. Em 259, se­
da África e da Pérsia Sassânida, assim como pela diminuição da guindo-se à inabilidade do sistema imperial de impedir os ataques
população e pela crise de Hderança no tradicional centro italiano destrutivos dos francos e outros bárbaros na Gália e até mesmo na
100 O Mito das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outros rornanos .,.... 101

Espanha, as tropas da Gália elevaram seu comandante, Cassiano membros desses próprios povos ou com seus vizinhos. falantes de
Latínio Póstumo, à púrpura imperial. No comando da Gália, da línguas germânicas. Nenhum dos dois termos havia sido utilizado
Britânia e de algumas partes da Espanha, Póstumo e seus sucessores para designar "antigos" povos a leste do Reno. Eram termos novos.
governaram o chamado "Império Gaulês" até 273. Como os historiadores modernos presumiram que os "novos povos"
Seria um erro conceber essas unidades separatistas como mani­ tinham que ter vindo de algum lugar, muitos buscaram as origens
festações de identidades "nacionais" em desenvolvimento na Gália dos alam anos na região do Elba, entre os suevos mencionados por
ou em outras partes da Europa Ocidental. Os arisrocratas ocidentais Tácito. Eles supuseram que uma parte dos suevos havia migrado
apoiavam o Império Gaulês, já que este havia esrabelecido medidas para a fronteira romana durante as primeiras décadas do século rIL
de segurança e proteção para as províncias ocidentais. Esse império Mas provavelmente os alamanos não haviam migrado de lugar ne­
também lhes proporcionava um acesso mais imediato aos centros nhum: eles eram simplesmente uma coalizão de grupos nativos que
de poder, assim como um envolvimento político mais direto do que se tinham estabelecido havia muito no alto Reno e assumido uma
havia no sistema imperial mais centralizado de Roma. Portanto o nova identidade coletiva. De forma semelhante, os franci formavam
Império Gaulês era uma reação sensata a pressões insensatas. Além uma confederação de povos do baixo Reno.
disso, o apoio a Póstumo e seus sucessores náo implicava uma me­ Ao longo do baixo Danúbio, após as guerras marcomanas, um
nor dedicação às tradições dà romanitas. Contudo, se esse império outro conjunto de povos germânicos. sarmáticos e até mesmo româ­
náo era uma evidência do "nacionalismo gaulês", era um indício nicos formaram uma coalizão sob O comando do godo Cniva. Por
de que as províncias romanas estavam mais preocupadas com as trás dessas aglomerações nas fronteiras romanas havia ainda outros
questões práticas da preservação das riquezas, segurança e status nas grupos, como os saxões (atrás dos francos), os burgúndios (atrás dos
localidades do que com os anacrônicos ideais da unidade romana. alamanos) e os vândalos (atrás dos godos).
Em certo sentido, esse império foi um ensaio da desintegração do Embora os bárbaros não tivessem causado a crise do século lII,
Império do Ocidente no século V eles certamente a intensificaram. Na década de 250, por exemplo, o
A crise do século UI também atingiu o mundo bárbaro. Na res­ rei gótico Cniva conduziu sua confederação multiétníca até a pro­
saca das guerras marcomanas, novos povos surgiram nas regiões do víncia da Dácia,8 enquanto piratas góticos atacavam a costa do mar
Reno e do Danúbio durante o século UI. Os autores romanos se Negro a partir da foz do Danúbio. Quando as legiões do Reno fo­
referiam a rodos eles como germani, a forma como designavam to­ ram deslocadas em direção ao leste para lidar com problemas inter­
dos os povos dessa região, independentemente de suas diferenças nos e externos, os bárbaros aproveitaram a oportunidade para atacar
lingüísticas ou "étnicas". Posteriormente passariam a chamar os que a fronteira mal guarnecida. Após as tropas romanas terem sido des­
viviam no baixo Reno de francos, ou "livres", ou "ferozes", e os do locadas das regióes dos cursos superiores do Ródano· e do Danú­
alto Reno de alamanos, ou "povo". bio, bandos alam anos {possivelmente autorizados por comandantes
Como ambos os termos - franci e alamanní - sáo germânicos,
os romanos provavelmente tinham aprendido essas palavras com os B. Região correspondente à atual Romênia. (N. T.)
102 -;;, O Miro das Nações
Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos ...- 103

romanos provincianos) penetraram na chamada Agri Decumates.9 os guerreiros sobreviventes podiam ser forçados a servir ao exército
E as tropas francas avançaram bastante na Gália, e até mesmo na romano. Esses dediticii ou laeti, após um ritual de rendição no qual
Espanha. abandonavam suas armas e se colocavam à mercê dos conquistado­
res, eram distribuídos por todo o Império em pequenas unidades, ou
Restauração e transformação estabelecidos em áreas despovoadas para prestar serviços militares e
reconstruir regiões destruídas pelos ataques bárbaros e pela fuga de
A série de imperadores enérgicos que pôs fim à crise o fez por me­
contribuintes. Na costa do mar Negro, uma dessas unidades, for­
didas que transformaram tanto o mundo romano como o bárbaro.
mada por francos, elaborou uma fuga heróica: roubaram um navio,
A primeira meta era conter a ameaça bárbara. O imperador Ga­
cruzaram o Mediterrâneo, atravessaram o estreito de Gibraltar e,
lieno (253-268) e seus sucessores derrotaram os francos e alamanos
por fim, chegaram a suas terras. Porém a maioria terminou seus dias
de forma decisiva, e Aureliano (270-275) aniquilou os godos em
no heterogêneo exército romano.
uma série de campanhas que subdividiram a confederação gótica..
Contudo, embora a rendição formal (dedítio) desde os tempos
Os ataques bárbaros continuaram de forma esporádica, mas as fron­
da República consistisse em um ritual religioso de rendição incon­
teiras ficaram suficientemente seguras durante um século. Embora
o Império não tivesse recuperado totalmente a Dácia e a Agri Decu­ dicional e na aniquilação de urna sociedade, a realidade sempre ha­
mates, as medidas imperiais estabeleceram uma segurança relativa via estado em desacordo com a retórica da ideologia triunfal dos
durante a maior parte do século IV. romanos. Em tempos igualmente remotos, os povos conquistados
Para alguns exércitos bárbaros, a derrota significava o fim de sua e destruídos tendiam a ser reconstruídos e a reconquistar, até certo
identidade como unidades sociais coesas. A destruição causada pe­ ponto, identidade e autonomia, geralmente com as mesmas elites
los ataques bárbaros no Império não se comparava à devastaçáo e à sociais e políticas de antes. A piedade romana (e as imposições polí­
carnificina levadas a cabo pelas tropas romanas em expedições pelo ticas) significava, na verdade, a sobrevivência dos povos derrotados
Reno ou pelo Danúbio. Um panegírico do ano de 310 descreve o e "aniquilados", reconstituídos por meio de um tratado, ou fledtts,
tratamento dado aos brúcteros após urna expedição punitiva con­ que estabelecia suas obrigações para com o imperador. lO
duzida por Constantino: os bárbaros foram encurralados em uma Porém a derrota também significava mudanças importantes para
área pantanosa em meio a uma floresta impenetrável. Muiros foram os povos bárbaros das fronteiras que não eram incorporados ao exér­
mortos, seu gado foi confiscado e suas aldeias, incendiadas. Todos cito imperial nem vendidos como escravos. Percebendo a impossi­
os adultos foram lançados às feras na arena. As crianças provavel­ bilidade de sustentàr seu sistema político e econÔmico por meio das
mente foram vendidas como escravas. pilhagens, os reis militares bárbaros derrotados optavam por colabo­
Portanto, nos casos mais extremos, a derrota significava a ani­ rar com o exército romano. Após derrotar uma milícia vândala em
quilação de um povo, a dissolução total de seus vínculos sociais e 270,0 imperador Aureliano firmou um tratado com eles, transfor­
políticos, e sua incorporação ao mundo romano. Em outros casos, mando-os em federados. Tratados semelhantes foram estabelecidos
10. Gerllard Wirth, "Rome and Its Germanic Partners in the Fourtn Century', em Walter PQhl CEd.),
9. Região correspondente ao sudoesteda atual Alemanna. (N. T.) Klngdoms ofthe Empifll: The Integratlon ofBarbar/aos In Lote Antlqulty. Lelden, 1997, p. 13-55.
104 -<>;> O Mito das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos.,.... 105

com francos e gados antes da virada daquele século. Os foederatí ça de seus próprios reis: Esses subgrupos podiam ser considerados
obrigavam-se a respeitar as fronteiras do Império, fornecer tropas gentes, indie.ando uma constituição sociopolítica, ou pagi, sugerindo
para o exérdro imperial e, em alguns casos, gado e outros bens para uma organização de base territorial (pelo menos em parte), ou até
os romanos. Os líderes bárbaros aliados a Roma percebiam que, mesmo os dois ao mesmo tempo, como no caso dos lentienses.
lutando pelo Império, e náo contra ele, podiam alcançar níveis de Da mesma forma, os francos mais antigos eram compostos por
poder e influência anteriormente inimagináveis. Dessa forma, fac­ grupos como os camavos, os catuários, os brúcteros e os ansibários,
ções favoráveis e contrárias a Roma se desenvolviam no interior das e conheceram inúmeros regales e duces que comandavam partes da
confederações bárbaras ao longo do limes, mantendo um estado de coletividade e disputavam a primazia. Além disso, os francos não se
tensão e desunião entre elas que era ativamente alimentado por seus identificavam apenas com essas unidades menores e com sua con­
vizinhos do Império. federação, mas também com o mundo romano. Na lápide de um
Novas formas de unidade política relativamente estáveis se dc;­ túmulo panônio do século IH, há a seguinte inscrição: Francus ego
senvolviam ao longo do Reno e do Danúbio, enquanto esses "no­ cives, miles romanus in armís ("Minha nacionalidade é franca, mas,
vos" povos estabeleciam acordos com a vitoriosa Roma. Que tipo como soldado, sou romano").12 Essa não é uma simples afirmação da
de identidade os membros desses grupos atribuíam a si mesmos? identidade bárbara. Sua língua e terminologia revelam o quanto as
Embora não saibamos exatamente o que os bárbaros pensavam de idéias romanas de cidadania influenciaram essa sociedade guerreira.
si, temos indícios de que os indivíduos podiam manter simultanea O fato de um individuo ser tido como um cidadão franco, aparen­
mente identidades diversas, considerando-se membros de confede­ temente uma contradição, sugere um reconhecimento da natureza
rações mais amplas ou de grupos menores. Assim antigos nomes constitucional da unidade franca. Além disso, a declaração de que
"étnicos" continuavam sendo escutados por informantes romanos. o guerreiro, como soldado, era romano enfatizava a nova realidade
Os alamanos se estabeleceram na Agrí Decttmates, mas mantiveram fundamental que emergia no curso do século IH: o próprio exército
uma noção de identidade flexível e bastante dividida que apenas romano estava se tornando bárbaro.
ocasionalmente era unificada, geralmente quando eram dominados Arbogasto foi apenas um dos líderes francos que conseguiram
por um medo incontrolável de seus vizinhos romanos.u A confe­ manipular suas duplas identidades. A ascensão desses militares era
deração dos alamanos que combateu o imperador Juliano em 357, constantemente incentivada pelos imperadores, que precisavam en­
por exemplo, foi liderada, ao que parece, por um tio e um sobrinho, COntrar formas mais econômicas de lidar com as exigências do exército
considerados "mais poderosos do que todos os outros reis", cinco reis romano provocadaS por conflitos internos e pela pressão na fronteira
de segundo escalão, dez regales e uma série de magnatas. Embora as persa. O recrutamento de bárbaros era mais econômico e efetivo do
fontes romanas considerem rodos esses líderes alamanni, também que o estabelecimento de tropas tradicionais. Constantino I abriu o
atentam para o fato de que a confederação era formada por grupos
como os bucinobantes, os lentienses e os jutúngidas, sob a lideran­ 11_ Citado em Joachim Werner, "Zur Entstehung der Relhengrâberzivilization: Eln Beitrag zur

Methode der frühgeschlchtl ichen Archãologie",Archaeologla Geographíca I, 1950: 23-32,

reimpresso em Franz Petrí, 5/edlung, 5prache und BeviJlkerungs-struktur Im Frankenreich,

11. Sobre os alamanos em geral, ver Geuenich, Geschichte derAlemannen. Darmstadt, 1973, p. 294.
106 _ O Mito das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos",... 107

caminho, não apenas incorporando unidades militares francas ao nas regiões mais a leste, na atual Ucrânia, reconheceram a autori­
exército imperial, mas também promovendo bárbaros, como o fran­ dade de uma nova família real, que reivindicava uma legitimida­
co Bonitus. a postos militares importantes. Bonitus foi o primeiro de antiga e divina. Já entre os grupos góticos que viviam a oeste,
de uma longa série de francos "imperiais". Em 355, seu filho, o intei­ inúmeros reiks (líderes de guerra) compartilhavam e disputavam o
ramente romanizado Silvano, comandante das legiões romanas de poder oligárquico.
Colônia, foi proclamado imperador por suas tropas. Silvano queria Por volta do século IV, os povos góticos que viviam nas regiões
voltar para perto de seu povo, mas lhe asseguraram que se o fizesse mais orientais, os greutungos (termo que pode ser traduzido, grosso
seria morto. Sendo assim, foi rapidamente assassinado por enviados modo, como "habitantes das estepes"), haviam incorporado carac­
do imperador Constantino. Comandantes bárbaros subseqüentes, terísticas dos citas. Nas regiões mais ocidentais, os tervíngios ("povo
como Malarich, Teutomeres, Mallobaudes, Laniogaisus e Arbogas­ da floresta") estavam sob a influência direta de Roma. Ambas eram
to, aprenderam a lição de que o posto de imperador era perigoso. sociedades agrárias e sedentárias, mas na primeira cavaleiros da
Eles evitavam a usurpação, mas exerciam vasto poder no Império antiga tradição dos citas formavam a espinha dorsal do exército,
do Ocidente. enquanto na segunda a elite militar era composta essencialmente
Em sua maioria, esses generais romanos continuavam mantendo por unidades de infantaria. No século IV, os godos tervíngios co­
relações íntimas com alguns membros de seus povos. Pouco após o meçaram a exercer hegemonia sobre inúmeros povos com diferentes
assassinato de Silvano, os francos saquearam Colônia, possivelmen­ . tradições lingüísticas, culturais e de culto.
te para vingar sua morte. Mallobaudes, que participou da vitória de Composta por comunidades agrárias e governada por assem­
Graciano sobre os alam anos em 378, foi chamado simultaneamente bléias locais formadas por homens livres, a população desta confe­
de comes domesticorum e rexfrancorum por Amiano Marcelino. Ou­ deração gótica estava, entretanto, sujeita à autoridade oligárquica de
tros, como Arbogasto, usavam o poder que tinham no Império para líderes militares que, por sua vez, submetiam-se à autoridade de um
atacar seus inimigos do outro lado do Reno. Ainda assim. a situação juiz real supremo, ou kindins. Em 332, Constantino e o juiz tervÍn­
desses bárbaros a serviço do Império era instável, tanto dentro como gio Ariarico estabeleceram um tratado, ou foedus. Aorico, filho de
fora dele. Embora geralmente náo fossem menos confiáveis do que Ariarico, havia sido criado em Constantinopla, onde o imperador
os romanos no alto comando. seus rivais romanos freqüentemente havia inclusive erguido uma estátua em homenagem ao juiz. Sob
suspeitavam deles. Ao mesmo tempo, assim como oficiais imperiais o comando de Ariarico, Aorico e Atanarico (filho de Aorico), esses
e adeptos ,da religião romana - fosse a cristá ou a pagá -, sempre godos do oeste se tornaram cadq, vez mais integrados ao sistema im­
eram alvos das facçóes anti-romanas quando estavam entre os seus. perial romano, fornecendo tropas auxiliares para as regiões do leste
A aceitação de um alto posto de comando entre os romanos geral­ do Império. A relação com esses bárbaros trouxe implicações para
mente significava' a renúncia de uma posição de liderança entre os a política imperial e suas disputas' internas. Em 365, o usurpador
bárbaros. Procópio convenceu os tervíngios a apoiá-lo como representante da
No Leste ,Európeu, a confederação gótica, com sua monarquia casa de Constantino, em detrimento' do imperador Valente. Após
militar, fragmentou-se sob ;l pressão imperial. Os gados que viviam a execução de Procópio, Valente organizou uma ofensiva punitiva
108 -;" O Mjto das Nações
Capitulo 3: Bárbaros e outros romanos .,- 109

e brutal do Outro lado do Danúbio, que terminou apenas em 369, traduziu a Bíblia para o gótico em colaboração com outros. Úlfilas
com um tratado entre Atanarico e o imperador. e seus seguidores tentaram tomar um rumo intermediário entre as
A religião era uma força unificadora na confederação gótica, abordagens católica e ariana da natureza dos entes divinos, posi­
cuja constituição heterogênea, no entanto, criava dificuldades para cionamento que inevitavelmente fez com que fossem considerados
a manutenção da unidade religiosa. Os cristãos - muitos cristãos da arianos pelas gerações subseqüentes de cristãos ortodoxos. A curto
Criméia haviam sido incorporados ao mundo gótico nos tempos de prazo, porém, a perseguição de Átanarico foi tão efetiva como ha­
Cniva, e muitos outros durante os ataques na região do Danúbio via sido a amiga perseguição aos cristãos promovida pelo Império,
- provaram ser a minoria religiosa mais difícil de ser assimilada, resultando na cisão dos povos góticos. Então o arÍsrocrata gótico·
tanto por causa de sua fé monoteísta radical como pela importância Fritigerno aproveitou a oportunidade para firmar um acordo com o
do cristianismo para as estratégias políticas do Império Romano. Os imperador romano Valente: em troca de sua conversão ao cristianis­
cristãos góticos representavam uma variedade de crenças, incluindo mo ariano, o imperador o apoiaria contra Atanarico.
a dos godos ortodoxos (ou seja, "crentes verdadeiros" ou católicos)
da Criméia, a da seita audiana de alguns dos tervíngios, que reco­ Transformação interna
nhecia a corporalidade de Deus, e as de várias comunidades arianas
ou semi-arianas dos Bálcãs góticos. O mais inRuente dos cristãos As medidas estabelecidas com o objetivo de encerrar a crise produ­
góticos foi Úlfilas (cujo nome gótico significa "Pequeno Lobo"), um ziram efeitos consideráveis dentro e fora do Império. Em uma ten­
gado de starus social relativamente elevado, da terceira geração de tativa de manter a produtividade e o controle sobre uma corrosiva
uma linhagem gótica. Seus ancestrais cristãos haviam sido captura­ base de cálculo dos impostos, o Império decidiu que as profissões
dos durante um ataque na Capadócia, por volta do ano de 260. Por passariam a ser hereditárias. Os trabalhadores rurais ficaram presos
volta de 330, ÚI.61as foi a Constantinopla como membro de uma às terras em que trabalhavam e ainda mais dependentes dos proprie­
delegação, viveu em território imperial por algum tempo e, em 341, tários. Como a situação havia ficado mais opressiva, o "banditismo",
consagrado "bispo dos cristãos em terras géticas" pelo Concílio um eufemismo para rebelião armada, tornava-se cada vez mais co­
de Antioquia, e então enviado aos Bálcãs góticos. A consagração de mum. Uma atitude mais efetiva, mas menos violenta, era a fuga:
Úlfilas e sua missão entre os godos e outros povos da confederação os camponeses simplesmente fugiam das terras em que o valor do
faziam parte de um programa imperial que possivelmente propiciou arrendamento e os impostos os arruinariam financeiramente. Co­
a primeira perseguição aos cristãos góticos, promovida por Aorico meçaram então a surgir áreas desocupadas (agri deserti) no Império.
em 348, e ainda uma segunda, que teve início em 369, organizada Não se sabe exatamente se essas áreas eram realmente desocupadas,
por Atanarico. Durante a primeira, Úlfilas foi exilado, juntamente despovoadas por conta dos conflitos e impostos, ou simplesmente
com seus seguidores, na Moésia romana,13 onde pregou em gótico, regiões onde os cobradores imperiais eram incapazes de forçar o
latim e grego à multidão heterogênea, escreveu tratados teológicos e pagamento dos impostos.
A cobrança dos tributos se tornava cada vez mais penosa para os
13. Região situada a oeste do mar Negro. correspondente à atual Bulgária. (N. T.' conselheiros locais, ou curiales. Alguns curiales eram suficientemen­
110 -e O Miro das Nações Capítulo 3: Bárbaros e outroS romanos Er- 111

te poderosos para prosperar como executivos do sistema tributário velozes e especializadas (comítatenses), posicionadas muito além das
imperial, ou fisco, forçando o pagamento dos impostos por meio linhas de defesa, entrariam em ação.
de contatos políticos ou contratando criminosos. Para outros, fazer Essas reestruturações administrativas e militares proporciona­
parte da cúria significava a ruína financeira, já que eles próprios ti­ ram um sistema imperial mais efetivo, mas também influíram bas­
nham que pagar os imposros que não conseguiam arrecadar. Alguns tante na transformação social do Império. A reestruturação militar
cttriales se juntavam aos camponeses na fuga, indo da cidade para transformou a mais romana das instituições em um poderoso meca­
o campo, onde, protegidos por milícias particulares, podiam inti­ nismo de regionalização e barbarização. As unidades militares fron­
midar e resistir aos agentes do fisco. Dessa maneira, as demandas teiriças se converteram em tropas regionais, compostas por recrutas
fiscais enfraqueciam os vínculos de lealdade entre as comunidades locais, geralmente filhos de soldados. Como essas unidades eram
locais e Roma em ambos os extremos sociais. formadas pela parcela menos romanizada da população do Império,
Os principais agentes do poder central com quem os curiales lo! elas se tornavam cada vez menos distintas dos bárbaros contra os
cais mantinham contato eram cobradores e militares. Esses rorna­ quais lutavam para defender as fronteiras.
vam-se cada vez mais hostis e ameaçadores aos olhos da população As tropas comitatenses também eram formadas cada vez mais por
romana do século IV: A máquina burocrática também havia sido soldados bárbaros recrutados fora do Império. Os excelentes cavalei­
totalmente reestruturada e ampliada. Com Diocleciano, as admi­ ros góticos do baixo Danúbio eram amplamente utilizados nas re­
nistrações civil e militar, que havia muito eram unificadas, foram giões do leste do Império como tropas coligadas. Em algumas regiões,
radicalmente separadas. O número de províncias foi aumentado, os termos "gado" e "soldado" eram utilizados indistintamente. No
com o objetivo de diminuir a possibilidade de ações separatistas por leste, os bárbaros do baixo Reno (francos) ascenderam a postoS im­
parte dos governadores locais, e então foram agrupadas em provín­ portantes na hierarquia militar. Assim o veículo fundamental da
cias maiores (dioceses), governadas por oficiais civis. romanização se tornava essencialmente bárbaro.
O exército também foi reestruturado, já que precisava reagir A profunda transfOrmação da identidade cultural, iniciada pela
com mais agilidade às situações emergenciais em todo o Império. conversão de Constantino, foi concomitante a essas mudanças nas
Para substituir o antigo sistema de legiões, foram criadas duas novas estruturas militar e administrativa. Para preservar os vínculos reli­
unidades. A primeira linha de defesa era formada pelas unidades giosos que uniam a sociedade romana diante das múltiplas forças
limitanei, tropas de guarnição agrupadas nas fronteiras que deve­ descentralizadoras do século IH, Diocleciano instituiu um progra­
riam manter o status quo em circunstâncias normais. Geralmente ma sistemático e violento de perseguição aos cristãos. A devoção
os soldados dessas tropas eram recrutados nas próprias populações monoteísta dos cristãos e sua rejeição aos antiqüíssimos rituais que
fronteiriças. Mal treinadas e mal equipadas, as limitanei dependiam haviam incorporado praticamente todas as outras tradições religio­
das pequenas fortificações construídas ao longo da fronteira para sas 'estavam entre os principais alvos dessa perseguição. Nos sécu­
repelir ataques bárbaros nas regiões do Reno e do Danúbio. Caso los anteriores, quando os cristãos ainda formavam, em sua maio­
essas unidades fronteiriças fossem subjugadas, tropas de campanha ria, grupos marginais, essa rejeição havia provocado perseguições
112 -e O Mito das Nações

esporádicas. Entretanto, em meados do século IH, o cristianismo


já havia penetrado nas camadas mais altas da cultura romana: no
Senado, na aristocracia e aré mesmo na mansão imperial. O fato de
esses indivíduos se recusarem a se sacrificar ao genius, ou espírito, do
imperador era simplesmente intolerável.
De cerra forma, Constantino e seus sucessores náo rejeitaram
essa linha de raciocínio. Eles simplesmente a inverteram: legalizan­
do e favorecendo o cristianismo, Constantino poderia fazer uso de
seu dinamismo em seu próprio programa imperial. Seus sucessores
foram ainda mais longe, substituindo, por volta do fim do século, os
cultos romanos tradicionais pelo cristianismo e proscrevendo os cul­
tos alternativos com a mesma veemência com que seus antecessores
haviam proscrito os seguidores do cristianismo.
Mas essa medida trouxe consigo problemas táo complexos como
os que buscava resolver. Sendo o cristianismo uma religião oficial,
a relação entre christianitas e romanitas precisava ser questionada.
Nem todos os habitantes do Império eram cristãos: isso os tornaria
menos romanos? Além disso, os cristãos não eram unidos enrre si.
Isso não teria ranta imporrância para as religiões politeístas tradi­
cionais, mas o monoteísmo do cristianismo exigia total conformi­
dade. Enquanto isso, rentativas de acordo entre as diferentes igrejas
e seitas eram boicotadas, cada uma delas convencida de que seguia
o verdadeiro caminho da ortodoxia. Dessa forma, as identidades da
romanitas e da christianitas acabaram gerando um dilema, já que,
por volta do final do século IH, havia bárbaros cristãos e romanos
pagãos. A conversão do Império poderia implicar uma ampla regio­
nalização e fragmentação de sua população.
Porém, enquanto essas questões eram debatidas, os romanos e
seus vizinhos bárbaros tiveram que enfrentar uma crise muito maior,
provocada pela chegada dos hunos.

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