Sei sulla pagina 1di 9

NOTAS SOBRE A ABORDAGEM DA PRÁTICA DE ILICITUDES NA AMÉRICA PORTUGUESA

Paulo Cavalcante∗

Resumo: Este trabalho relaciona os fundamentos da sociedade de Antigo Regime e o processo


de colonização dado na América portuguesa para investigar a prática do descaminho, isto é,
do conjunto de relações lícitas e ilícitas encetadas para arrecadar e desviar tributos e direitos,
no caso, o quinto. Era “normal” descaminhar ou era apenas aceitável? Aceitava-se por razões
fundadas no costume e na jurisprudência ou, por outro lado, por razões pragmáticas,
vinculadas à necessidade de colonizar com economia de meios e à incapacidade controlar com
rigor? Qual é a relação entre a venalidade dos ofícios e o que hoje chamamos de corrupção?
Entre a sociedade de mercado atual, fundada em relações impessoais, e a sociedade escravista
de Antigo Regime na América portuguesa, fundada em relações interpessoais, quais são os
riscos concernentes à abordagem do descaminho enquanto objeto de investigação? Numa
palavra: entre a condenação moral contemporânea e a compreensão historiográfica de uma
prática social, qual é o ponto ótimo de objetivação do juízo historiográfico?
Palavras-chave: descaminho, colonização, Antigo Regime.

Abstract: This works relates the principles of the Ancient Regime society to the process of
colonization that took place in Portuguese America to investigate the ethos of going astray,
that is, from the set of illicit and licit relations created to gather and embezzle tributes and
rights, in the case, the fifth. Was it “normal” to go astray or was it simply acceptable? Was it
acceptable for reasons based on custom and jurisprudence or, on the other hand, for
pragmatic reasons tied to the need to colonize saving means and to the incapacity to control
with rigor? What is the relationship between the venality of the trade and what we call
corruption today? Between the society of contemporary market, founded on impersonal
relations and the slave-oriented society of the Ancient Regime in Portuguese America,
founded on interpersonal relations, what are the risks concerning the broaching of going
astray as an object of investigation? In a word: between contemporary moral condemnation
and the historiographical comprehension of a social practice, what is the optimal point of
objectivization of the historiographical judgment?
Key words : Going Astray, Colonization, Ancient Regime.


Professor Adjunto de História da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
2

Começo com o seguinte comentário de Heidegger a respeito de dois fragmentos (43 e


50) de Heráclito de Éfeso: “É mais salutar para o pensamento caminhar no estranho que
instalar-se no óbvio” (OS PRÉ-SOCRÁTICOS, 1985: 121). Não tenho a pretensão – e,
certamente, muito menos a competência filosófica – de desdobrar um comentário de
Heidegger sobre Heráclito. Apenas um desses colossos já seria demasiado. Tomo o
comentário, na verdade, para, a um só tempo, definir uma postura de investigação e demarcar
um objeto de estudo.

Fazer o pensamento caminhar no estranho é, a meu ver, abrir-se decididamente para a


diferença e assegurar o lugar da alteridade na configuração da realidade histórica, desde
sempre, em movimento cambiante. No campo em que me situo, o dos estudos coloniais, essa
atitude exigiu um esforço para conferir inteligibilidade especial à grande variedade de práticas
ilícitas que despontavam na documentação administrativa do final do século XVII e toda
primeira metade do XVIII. O nome mais geral dessas práticas é descaminho. Nome por si só
significativo, já que fazer o pensamento caminhar no estranho leva ao descaminho.

De um jato, o jogo de palavras permite entrever algo mais, isto é, não se trata apenas
de palavras, trata-se de um jogo real, afinal ocupei-me de práticas sociais, mas perigoso, dado
o risco de cair no nada. Numa palavra: o pensamento que caminhou no estranho encontrou o
descaminho, que é a anulação do caminho, e deixou a si próprio – pensamento – à deriva. Eis
o risco a correr para evitar que o pensamento se instale comodamente no óbvio.

Mas o que seria o óbvio? Há diferentes tipos de “óbvio”. Excluindo do inventário as


ocorrências provenientes do senso comum, dois tipos merecem ser enunciados. No primeiro, o
pensamento se compraz percorrendo uma infinidade desarticulada de casos de descaminho
cujo balanço ora resulta inconcluso ora eivado de preconceitos e juízos de valor. No segundo,
o pensamento não se ocupa diretamente do descaminho; este surge na cena como um
figurante que, apesar de presente e às vezes despertar curiosidade, não possui especificidade
ou relevância. Ele está lá, e não poderia deixar de estar lá, mas é tão somente um
complemento.
3
Os dois tipos atêm-se a um único procedimento básico, a saber, a constatação, e, por
extensão, descrevem e narram. E quando, no primeiro tipo, o pensamento arrisca-se a
compreender, descamba em superficialidades preconceituosas e valorativas muito fáceis de
formular, pois disponíveis na documentação coeva, transformando a crítica moralizante de
ontem e de hoje num discurso genérico pretensamente crítico, em suma, no discurso da
ordem.

Bom exemplo dessa matriz coeva que informa o pensamento contemporâneo instalado
no óbvio é o relato de Pedro Leolino Mariz, feito na Bahia, para Martinho de Mendonça de
Pina e Proença, em 17 de julho de 1734.

Represento a V. S.ª que pelo acréscimo de Povoações, que tem havido


no sertão da Capitania da Bahia, e ultimamente os descobrimentos
das Minas Novas; fazendo corpo de uma nova Colônia, se cuidou na
forma do seu estabelecimento; e porque este se regulou pelos serviços
que tenho feito a S. Majestade que Deus guarde há muitos anos a esta
parte, se esperavam ainda maiores utilidades do seu progresso: mas
por se achar este embaraçado pela desordem causada de vários
acidentes, começarei a relatá-los desde o princípio, para que à vista
do muito, que aproveitou a boa ordem que ia seguindo, se conheça
claramente o prejuízo, que se segue do contrário para facilitar pelo
modo, que V. S.ª entender ser mais conveniente aos Reais interesses,
os meios para o desejado fim (...) Aqui perdi o caminho da boa
ordem, e se introduziu a desordem em todas as cousas porquanto
tudo se alterou; os opostos a estes estabelecimentos empenharam
todo o seu esforço em os destruir por todos os modos: os sediciosos a
enredar tudo, o ouvidor a dar informes contrários, os contratadores
das Gerais a pretender o rendimento de quanto havia, o Governador
das mesmas a representar prejuízo da Fazenda Real os simulados a
insinuar alguma notícia dos Diamantes do Serro, os mais sagazes
dando jeitos à ruína, e a Plebe a amotinar-se, tudo era confusão, tudo
desordem que causou não poucos desatinos, e a tudo acrescentou
4
horror o grande número de excomunhões, que fulminaram os
sacerdotes (IAN/TT. Manuscritos do Brasil, livro 7, fl. 130-139v.
Apud. OLIVEIRA JUNIOR, 2002: 35-54. Grifos meus).

Todavia, como superar o conforto do óbvio e retomar o caminho do estranho?


Recapitulando, ao me abrir para o processamento da diferença em meu pensamento deparei-
me com o descaminho. Ato contínuo, desconsertado, encontrei no meu tempo presente uma
série de tratamentos discursivos pré-estabelecidos para essas práticas ilícitas que o nome
descaminho engloba e, em decorrência, sucumbi ao óbvio. Como superar então essa resposta
cômoda? Estranhando a resposta ao estranhamento inicial. De que modo? Com base no
documento citado, a informação da época que vem ao encontro do pensamento
contemporâneo é o discurso da ordem. É preciso desconfiar dele e seguir a recomendação de
Diderot: “Desconfiai daquele que quer estabelecer a ordem. Ordenar é sempre tornar-se
senhor dos outros, incomodando-os...” (DIDEROT, 1973: 454). Mas só isso não basta.

Se tenho por objetivo constituir o descaminho em objeto de investigação, se essa


desordem que ele representa e que tanto no passado como no presente incomoda a ponto de
tentarem suprimi-la, não há outro caminho para compreender o descaminho senão
vivenciando a sua própria negatividade. Quando o pensamento se demora na freqüentação
dessa negatividade, o descaminho deixa de ser a anulação do caminho e se constitui
dialeticamente em outro caminho (BORNHEIM, 1983: 45-62).

Por isso é legítimo perguntar sobre o papel da desordem no processo de colonização


da América portuguesa. As ilicitudes, os desvios, os descaminhos, o contrabando, os motins,
entre tantas outras manifestações indesejáveis ou inesperadas, enfim, de que maneira
dialogaram com a ordem instituída, suas instituições, discursos, práticas e representações?
Para tanto, é de suma importância abordar em profundidade a natureza contraditória do
processo de colonização (NOVAIS, 2005: 186-187), afinal, o caminho – isto é, a colonização
moderna – é o descaminho – isto é, exploração; o caminho – suposta ordem – leva ao
descaminho – suposta desordem; o descaminho – aparente negação – é o caminho – outra
afirmação.
5
De certo modo, não é esse o movimento que subjaz ao relato de Pedro Leolino Mariz?
“Aqui perdi o caminho da boa ordem, e se introduziu a desordem em todas as cousas
porquanto tudo se alterou”.

Nessa perspectiva, é preciso investigar as relações entre Estado e sociedade nas


colônias, discernir as fronteiras entre as relações lícitas e ilícitas na dinâmica social e na
cultura política e descortinar os diferentes modos de efetivação do consórcio Estado–Igreja e
das religiosidades. Não se trata de identificar vítimas e culpados, até porque estes são
produzidos nesta totalidade conflituosa e dinâmica, absolutamente invertida para o olhar
metropolitano que, salvo raríssimas exceções, não cuidava sequer de perceber o seu próprio
papel nessa aparente inversão. Trata-se de ajustar o foco da lente interpretativa para detectar
essas relações singulares, sigilosas e evasivas.

Desordem e colônia; será que a associação entre essas duas palavras não necessita de
alguma explicação prévia? Desde logo antecipo o ponto principal: a associação entre
desordem e colônia não é direta nem simples. Quem pensa assim é o senso comum. Ele diz:
“a colônia é o território da desordem”. E disso resulta uma visão negativa do ambiente
colonial. Negativa e, em certo sentido, a-histórica, pois não leva em conta o processo de
formação da sociedade colonial. E levar em conta o processo não quer dizer responsabilizar
alguém nem muito menos encontrar um culpado para a desordem – essa é a cilada em que cai
o historiador bastante “recortado” pelo estado-nação. Para ele, o culpado de plantão é o
colonizador, em nosso caso, o português ou genericamente o europeu. Não se trata disso.
Trata-se de levar em conta o movimento diferenciado e incessantemente transformador da
realidade social conforme o tempo. Não lidamos com coisas estáticas, lidamos com processos
e relações sociais.

Em face disso, a associação entre desordem e colônia, penso, deve ser mediada pela
palavra dimensão, e no plural: “as dimensões da desordem em colônias”. A desordem possui
sentidos e extensões variados que se configuram e se reconfiguram diferenciadamente. A
palavra dimensão sugere o movimento. Mas sugere mais. Sugere a relevância. Ela sugere que
a desordem é um aspecto significativo da realidade. Mas, vamos cuidar de não cair em outra
6
cilada. Não estou dizendo que tudo é desordem. Digo que ela existe, que merece estudo
elaborado, numa palavra, que merece ser dialeticamente trabalhada.

Georges Balandier em seu livro O Poder em Cena nos formula com sutileza e engenho
a chave para tratar o tema da desordem. Ele abre o capítulo O Inverso dessa maneira:

A ordem e a desordem da sociedade são como o verso e o anverso de


uma moeda, indissociáveis. Dois aspectos ligados, dos quais um, à
vista do senso comum, aparece como a figura invertida do outro. Esta
inversão da ordem não é sua derrubada, dela é constitutiva, ela pode
ser utilizada para reforçá-la. Ela faz a ordem com a desordem, assim
como o sacrifício faz a vida com a morte, a “lei” com a violência
apaziguada pela operação simbólica (BALANDIER, 1982: 41).

A imagem da moeda é boa e má. Má, porque é uma coisa. Boa, porque sugere a
unidade entre verso e anverso. Verso e anverso são diferentes, transmitem mensagens
diferentes, se complementam, podem se reforçar mutuamente, mas também se contradizem.
Constituem uma totalidade contraditória.

O ambiente colonial, a situação colonial, o contexto colonial etc., mas desde já


sublinho a palavra colonial – não numa oposição estéril à hoje tão difundida perspectiva
imperial, mas porque dá conta de uma especificidade que nunca foi inteiramente subsumida
ao reino ou às estruturas da sociedade de Antigo Regime, mesmo que nos trópicos –, em
suma, a situação colonial não é invertida nem é pura desordem: ela é contraditória.

É contraditória num sentido muito especial. Para conduzir eficazmente a colonização o


colonizador necessitou inúmeras e recorrentes vezes romper com a ordem que ele apregoava
(MELLO E SOUZA, 2006: 350-402). Por outro lado, também o colono desejoso de pertencer
ao espalhafatoso universo de honras, privilégios e mercês precisou dele divergir para de fato
nele poder ingressar.
7
Desvios, ilicitudes e descaminhos longe de pertencerem a um universo distinto e que,
de um certo ponto de vista, equivocado, é claro, mereceria perecer, na verdade constituem,
expressam e conduzem a construção de uma sociedade irremediavelmente diversa.

O olho que vê a ordem colonial como invertida ou como território da desordem é o


olho do colonizador. O colono que vê com o olho do colonizador de fato internalizou uma
ótica que não lhe pertence. Por sua vez, o historiador que não dá conta da crítica dessa ótica
internalizada e vê apenas a unidade da ordem desdobrada na América cai na cilada e fracassa
em seu ofício, numa palavra, fica prisioneiro de uma ideologia que alega não existir.
8
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BALANDIER, Georges. O poder em cena. Tradução por Luiz Tupy Caldas de Moura.
Brasília : UnB, 1982. Tradução de: Le pouvoir sur scènes. (Col. Pensamento Político, 46).
BORNHEIM, Gerd A. Dialética: teoria, práxis – ensaio para uma crítica da fundamentação
ontológica da Dialética. Porto Alegre: Globo, 1983.
CANDIDO, Antonio. Dialética da malandragem. In: O discurso e a cidade. 3. ed. Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004. p. 17-46.
CAVALCANTE, Paulo. Negócios de trapaça: caminhos e descaminhos na América
portuguesa (1700-1750). São Paulo: Hucitec; Fapesp, 2006.
CIRNE-LIMA, Carlos Roberto. Dialética para principiantes. São Leopoldo: UNISINOS,
2002.
DIDEROT, Denis. Suplemento à viagem de Bougainville ou diálogo entre A e B: sobre o
inconveniente de atribuir idéias morais a certas ações físicas que não as comportam.
Tradução e notas de J. Guinsburg. In: Voltaire – Diderot. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
p. 429-455. (Coleção Os Pensadores, 23).
FRAGOSO, João, BICALHO, Maria Fernanda, GOUVÊA, Maria de Fátima (Orgs.). O
Antigo Regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
KONDER, Leandro. A questão da ideologia. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
MELLO E SOUZA, Laura de. O sol e a sombra: política e administração na América
portuguesa do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
NOVAIS, Fernando. Aproximações: estudos de história e historiografia. São Paulo: Cosac
Naify, 2005.
OLIVEIRA JUNIOR, Paulo Cavalcante de. Negócios de Trapaça: caminhos e descaminhos
na América portuguesa (1700-1750). Doutorado. São Paulo: Programa de Pós-Graduação
em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo, 2002. v. 2. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-12072006-171102.
OS PRÉ-SOCRÁTICOS: fragmentos, doxografia e comentários. Seleção de textos e
supervisão de José Cavalcante de Souza. Traduções de José Cavalcante de Souza, Ernildo
Stein e outros. São Paulo: Abril Cultural, 1985. 365p. (Coleção Os Pensadores, 1).
9

Potrebbero piacerti anche