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22, nº 4, 901-915
DOI: 10.9788/TP2014.4-17
Resumo
Este estudo teve como objetivo revisar a produção científica sobre as repercussões da exposição direta
e indireta à violência conjugal nas características emocionais dos filhos, com idades de zero a 12 anos.
Foram selecionados 14 artigos empíricos publicados nos últimos 12 anos (2002-2014), sendo um nacional
e 13 internacionais indexados em diferentes bases de dados, a partir da combinação de descritores sobre
o tema investigado. Os resultados sugerem uma diversidade de repercussões da exposição à violência
no desenvolvimento dos filhos a curto, médio e longo prazo, principalmente relativas a problemas de
comportamentos internalizantes e externalizantes acessados, na sua maioria, através do relato da mãe e/ou
da própria criança. Quanto aos aspectos metodológicos dos artigos incluídos na seleção final, todos eles
são quantitativos e a maioria transversal. Discute-se sobre a necessidade de novas investigações sobre
o tema, principalmente no Brasil. As limitações dos estudos investigados são destacadas, sugerindo-se
novos trabalhos sobre essa temática, que possam dar mais visibilidade ao fenômeno.
Palavras-chave: Violência conjugal, infância, características emocionais, revisão sistemática da
literatura.
Abstract
This study aimed to review scientific production about the effects of direct and indirect exposure to
marital violence on emotional characteristics of children aged 0-12 years (2002-2014). Based on a com-
bination of descriptors on the subject, 14 empirical papers published in the last 12 years, one national
and 13 international indexed in different databases were selected. The results suggest a variety of effects
related to the exposure to violence on development of children in short, medium and long term, espe-
cially concerning externalizing and internalizing behavior problems that were mostly accessed by the
report of the mother and /or the child himself. Regarding methodological aspects of the articles included
in the final selection, all of them are quantitative and most of them are cross-sectional. The need for
additional research on this theme, mainly in Brazil, is also discussed. The limitations of the investigated
1
Endereço para correspondência: Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 115, Bairro Santa Cecília, Porto Alegre, RS,
90035-003. E-mail: naipatias@hotmail.com
902 Patias, N. D., Bossi, T. J., Dell’Aglio, D. D.
studies are pointed out and new researches on this subject are suggested in order to give more visibility
to this phenomenon.
Keywords: Marital violence, childhood, emotional characteristics, sistematic review.
Resumen
Este estudio tuvo como objetivo revisar la literatura científica sobre los efectos de la exposición directa
e indirecta a la violencia doméstica sobre las características emocionales de los niños de 0 a 12 años de
edad. Fueron seleccionados 14 artículos empíricos publicados en los últimos 12 años (2002-2014), uno
nacional y 13 internacionales indexados en diferentes bases de datos, a partir de la combinación de des-
criptores sobre el tema investigado. Los resultados sugieren una diversidad de efectos de la exposición a
la violencia en el desarrollo de los niños en el corto, mediano y largo plazo, principalmente relacionados
con los problemas de internalización y externalización de conductas a los cuales se tuvo acceso princi-
palmente a través del informe de la madre y / o del propio niño. En cuanto a los aspectos metodológicos
de los artículos incluidos en la selección final, todos son cuantitativos y la mayoría es transversal. Se
discute acerca de la necesidad de más investigación sobre el tema, especialmente en Brasil. Las limita-
ciones de los estudios investigados son resaltadas, sugiriéndose nuevos trabajos en este tema que puedan
dar más visibilidad a este fenómeno.
Palabras clave: Violencia conyugal, la infancia, las características emocionales, revisión de la literatura.
A violência tem sido considerada um pro- me funções parentais, dirigida a outro membro,
blema de saúde pública que pode gerar consequ- mesmo sem laços de consanguinidade (World
ências inestimáveis à saúde como um todo, po- Health Organization, 2002). Essa violência pode
dendo, inclusive levar a morte (Minayo, 2006). ocorrer no espaço doméstico ou fora desse, e diz
Mais especificamente, a violência que ocorre no respeito às relações entre vítimas e perpetradores
contexto da família é entendida como um proble- da violência, mais do que ao espaço físico onde
ma social que afeta a todas as camadas socioeco- ocorre. Esse conceito diferencia-se da violência
nômicas, interferindo no sistema familiar como doméstica, pois essa se refere ao espaço físico
um todo e atingindo, principalmente, mulheres, privado, mais do que às relações de afeto, po-
crianças e adolescentes (Araújo, 2002). Dessa dendo acontecer entre pessoas que ali convivem,
forma, tornou-se uma das principais preocupa- como empregados, por exemplo (Ministério da
ções dos profissionais da área da saúde, pelo fato Saúde, 2001).
de não ser esperado que a família – contexto de Dentro do contexto da violência intrafami-
proteção e primeiro ambiente de desenvolvimen- liar, pode ocorrer a violência de pais contra seus
to humano – seja um ambiente violento (Abran- filhos, de forma direta, através da violência fí-
ches & Assis, 2011; Araújo, 2002; Ministério da sica, psicológica, sexual ou negligência. Neste
Saúde, 2001). mesmo contexto, a violência conjugal, consi-
Considerada como toda ação ou omissão derada uma forma de violência indireta aos fi-
que prejudique o bem-estar, integridade física lhos (Benetti, 2006; Ministério da Saúde, 2001),
e psicológica, bem como o desenvolvimento de também pode estar presente. Segundo Colossi
membros da família, a violência intrafamiliar é e Falcke (2013), a violência conjugal pode ser
cometida por um membro ou pessoa que assu- compreendida a partir de duas concepções teóri-
Repercussões da Exposição à Violência Conjugal nas Características Emocionais dos Filhos: 903
Revisão Sistemática da Literatura.
cas que, embora complementares possuem focos Lei, 11.340 de 7 de agosto de 2006 criou meca-
diferentes: (a) perspectiva feminista; e (b) pers- nismos para coibir a violência doméstica contra
pectiva sistêmica. A primeira considera a vio- mulheres estabelecendo medidas de proteção e
lência conjugal a partir da diferença de gênero e assistência às vítimas.
subversão feminina ao masculino, ainda presen- Pela perspectiva sistêmica, quando a violên-
te na sociedade atual. Dessa forma, a violência cia conjugal ocorre, toda a família sofre as con-
conjugal é um fenômeno unidirecional – homem sequências da violência, mesmo que de modo
(agressor) e mulher (vítima), de forma que o indireto. A respeito dessa vitimização indireta
atendimento e a proteção devem ser realizados dos filhos, através do testemunho da violência
com a mulher e a punição com o homem. Por conjugal sofrida, geralmente, pela mulher, estu-
outro lado, não excludente, mas complementar dos brasileiros são realizados, mas em menor nú-
à perspectiva feminista, a segunda abordagem, mero se comparados com estudos que enfatizam
sistêmica, considera a violência conjugal como a exposição direta de crianças e adolescentes à
um fenômeno da conjugalidade – da relação do violência (Araújo, 2002; Braga & Dell’Aglio,
casal. Assim, a mulher também está implicada 2012; Marasca, Colossi, & Falcke, 2013). No
na relação violenta de forma a fazer parte de sua entanto, presenciar ou testemunhar violência,
manutenção. Essa abordagem não tenta culpa- principalmente no contexto da família, tem sido
bilizar a mulher, mas compreende a violência preocupação constante de pesquisadores interna-
como um fenômeno circular e como um modelo cionais, já que não apenas a exposição direta à
de relação do casal. Essa percepção influencia a violência como vítima, mas também a exposição
forma como são orientados os casos que, geral- indireta, como testemunha da violência, resulta
mente, podem ser submetidos à terapia de casal em consequências ao desenvolvimento humano
(Colossi & Falcke, 2013). (Almeida, Miranda, & Lourenço, 2013; Harda-
Em uma perspectiva feminista, considera- way, McLoyd, & Wood, 2012; Ho & Cheung,
-se que a violência pode ocorrer da mulher para 2010; Mrug & Windle, 2010), como por exem-
o homem, mas sendo mais comum ocorrer do plo: problemas de comportamento internalizan-
homem contra a mulher (Cortez, Cruz, & Sou- te (depressão e ansiedade; Hanson et al., 2008;
za, 2013; Oliveira & Gomes, 2011; K. Santos et Hardaway et al., 2012; Margolin, Vickerman,
al., 2014). Nessa abordagem, a violência conju- Oliver, & Gordis, 2010; Mrug & Windle, 2010),
gal é considerada uma das principais causas de problemas de comportamento externalizante
morte de mulheres no Brasil, ocupando a sétima (agressão e comportamento antissocial; Harda-
posição no ranking internacional de homicídios way et al., 2012; Ho & Cheung, 2010; Williams
femininos pela violência sofrida (Waiselfisz, & Stelko-Pereira, 2008), Transtorno de Estres-
2012). De fato, dados de estudos brasileiros se Pós-Traumático (Benetti, Pizetta, Schwartz,
(Bhona, Lourenço, & Brum, 2011; Brum, Lou- Hass, & Melo, 2010; Williams, D’Affonseca,
renço, Gebara, & Ronzani, 2013; Waiselfisz, Correia, & Albuquerque, 2011), suicídio (Hay-
2012) estimam que, no Brasil, uma a cada cinco nie, Petts, Maimon, & Piquero, 2009) e sintomas
mulheres sofrem de alguma forma de violência somáticos (Hart, Hodgkinson, Belcher, Hyman,
durante a vida, tendo como principais agressores & Cooley-Strickland, 2012). Resultados nega-
maridos ou companheiros. Outros estudos, tam- tivos em termos educacionais, também são en-
bém nacionais, estimam uma prevalência maior contrados: evasão escolar (Haynie et al., 2009),
de violência – uma para cada três mulheres (Mi- problemas de comportamento na escola e me-
randa, Paula, & Bordin, 2010; Vieira, Perdona, nor desempenho escolar (Brancalhone, Fogo, &
& Santos, 2011). Segundo o mapa de homicídios Williams, 2004).
de mulheres no Brasil, de 1980 a 2010 a taxa de Devido às preocupações em relação à viti-
mortes aumentou em 217,6%, havendo um de- mização direta e indireta à violência, por parte
créscimo em 2007, no primeiro ano de vigência das crianças, este artigo teve como objetivo revi-
da Lei Maria da Penha (Waiselfisz, 2012). Essa sar a produção científica nacional e internacional
904 Patias, N. D., Bossi, T. J., Dell’Aglio, D. D.
sobre as repercussões da exposição à violência (quatro artigos), escritas em outros idiomas que
conjugal nas características emocionais dos fi- não os destacados nos critérios de inclusão (12
lhos, com idades de zero a 12 anos. Foram consi- artigos), revisões de literatura (87 artigos), te-
deradas as repercussões da exposição à violência ses, dissertações e outros tipos de trabalhos que
na infância, tendo em vista a importância desse não eram artigos empíricos (65 documentos).
período, já que diversos autores, principalmen- Além disso, foram excluídos os artigos que não
te de base psicanalítica (Bowlby, 1989; Mah- tinham como participantes ou foco da pesquisa
ler, Pine, & Bergman, 1975/1977; Winnicott, crianças de zero a 12 anos (404 artigos), que não
1945/2000), consideram as experiências iniciais apresentavam como foco de estudo a violência
e aquelas que ocorrem na infância como as mais conjugal (124 artigos) e que não abordavam as
importantes no desenvolvimento emocional e repercussões da exposição à violência conjugal
saúde mental. nas características emocionais dos filhos (18
artigos). A partir dessa primeira seleção, foram
Método considerados 22 artigos, que foram lidos na ín-
tegra por duas das autoras. Após a leitura, outros
A busca dos artigos foi realizada através artigos foram retirados da amostra por apresen-
das bases de dados eletrônicas: (a) SciELO tarem simultaneamente participantes crianças e
(Scientific Eletronic Library Online); (b) PeP- adolescentes, sem diferenciar resultados por ida-
SIC (Periódicos Eletrônicos em Psicologia); (c) de (oito artigos). Ao final, 14 artigos foram con-
MEDLINE (Pubmed); e, (d) PsycINFO. Para a siderados para o presente estudo, sendo lidos e
busca de artigos, foram utilizados os seguintes classificados por consenso por duas das autoras.
descritores combinados com operadores boole-
A Figura 1 apresenta o fluxo de seleção dos arti-
anos: (psychol*effect OR effect OR impact OR
gos, a partir dos critérios de inclusão e exclusão.
consequence) AND (domestic violence OR intra-
As informações dos estudos selecionados são
famil* violence OR marital violence) AND (pa-
apresentadas na Tabela 1.
rents OR child* OR adolescen*)2, selecionando
como período de busca os anos de 2002 a 2014
Resultados
(até maio de 2014).
Ao todo, foram encontrados 736 documen-
Os artigos foram classificados em quatro
tos, distribuídos entre as bases de dados, da se-
grandes categorias temáticas, definidas a priori,
guinte forma: 20 na base SciELO, nenhum na
a saber: (a) Caracterização das amostras; (b) Ca-
PePSIC, 458 na Medline (PubMed) e 258 na
racterísticas metodológicas; (c) Características
PsycINFO. Os artigos encontrados foram classi-
emocionais infantis; e, (d) Repercussões da ex-
ficados a partir dos seguintes critérios de inclu-
posição à violência conjugal nas características
são: (a) artigo empírico nacional e internacional
emocionais infantis. A seguir serão destacadas
escrito em inglês, português ou espanhol; (b)
cada uma das categorias e ilustradas a partir dos
ter como participantes, ou como foco do estu-
artigos considerados neste estudo.
do crianças de zero a 12 anos; (c) estudos cujo
foco principal foram as repercussões da expo-
sição à violência conjugal nas características Caracterização das Amostras
emocionais dos filhos. Foram excluídas aquelas Nesta categoria foram descritas as caracte-
referências repetidas entre as bases de dados rísticas dos participantes dos estudos. Observou-
-se que na maior parte dos artigos (A13, A3, A5,
A6, A9, A10, A11, A12, A13, A14) a amostra
2
Quando o asterisco (*) foi incluído no radical da
palavra significa que, na busca, foram considera-
das palavras com o mesmo radical. Por exemplo, 3
Os artigos estão elencados em ordem numérica
em adolescen* foram incluídos adolescence e segundo Tabela 1 e serão apresentados dessa for-
adolescent, ampliando a busca. ma no decorrer do artigo.
Repercussões da Exposição à Violência Conjugal nas Características Emocionais dos Filhos: 905
Revisão Sistemática da Literatura.
Tabela 1
Informações dos Artigos Selecionados em Termos de Título, Autores, Ano de Publicação e
Objetivos do Estudo (N=14)
Ano de
Título do artigo Autores Objetivo
publicação
A7 - Domestic violence and Rigterink, Katz, 2010 Examinar a relação entre exposição à
longitudinal associations with & Hessler violência doméstica e habilidades infantis
children’s physiological regulation para regular sua excitação fisiológica ao
abilities longo do tempo
A8 - Repercussão da exposição à Durand, Schraiber, 2011 Analisar a associação entre a exposição
violência por parceiro íntimo no França, & Barros à violência por parceiro íntimo contra a
comportamento dos filhos mulher com desajustes comportamentais e
problemas escolares entre os filhos
A9- Physically abused women’s Spiller, Jouriles, 2012 Examinar se a violência física e sexual
experiences of sexual victimization McDonald, experimentada pela mulher através de seu
and their children’s disruptive & Skopp parceiro está associada a problemas de
behavior problems comportamento disruptivo nos filhos
A10 - Interparental violence, Sturge-Apple, 2012 Examinar as especificidades da violência
maternal emotional unavailability Davies, Cicchetti, conjugal, indisponibilidade emocional
and children’s cortisol functioning & Manning materna e funcionamento fisiológico da
in family contexts criança nos relacionamentos interparentais
e entre pais-filhos.
A11- Exposure to maternal and Harding, Morelen, 2013 Relação entre violência perpetrada
paternal perpetrated intimate Thomassin, por parceiro íntimo e sintomatologia
partner violence, emotion Bradbury, de internalização e externalização em
regulation, and child outcomes & Shaffer crianças.
A12- Child involvement in Jouriles, Rosenfield, 2013 Examinar se o envolvimento das
interparental conflict and McDonald, crianças em conflitos interparentais
child adjustment problems: A & Mueller prediz problemas de comportamentos
longitudinal study of violent de internalização e externalização nas
families crianças.
A13- PTSD symptoms in young Levendosky, Bogat, 2013 Verificar associações entre violência por
children exposed to intimate & Martinez-Torteya parceiro íntimo e sintomas de TEPT em
partner violence crianças e suas mães.
A14- Longitudinal impact of Schnurr 2013 Verificar como a exposição à violência
toddlers’ exposure to domestic & Lohman doméstica na infância inicial pode
violence aumentar a exposição a problemas na
infância média.
constituiu-se pelas mães ou cuidadoras (por ex.: nais, e em instituições assistenciais que atendem
avós, etc) e seus filhos, que responderam sobre a pessoas que sofrem violência. Alguns estudos
ocorrência ou não de violência conjugal. Já em (A3, A6, A12) utilizaram amostras específicas
três estudos (A2, A4, A7) os participantes foram relacionadas à violência conjugal, recrutadas em
o casal (pai ou padrasto, e mãe ou madrasta), e instituições de proteção a vítimas de violência.
seus filhos. Por fim, um estudo (A8) teve como
participantes somente as mães, vítimas de vio- Características Metodológicas
lência conjugal, que foram solicitadas a relatar Nesta categoria são descritas, de forma bre-
sobre os comportamentos de seus filhos, sem ve, as características metodológicas dos estudos.
que esses também se configurassem como parti- Dos 14 artigos, apenas um (A8) é um estudo na-
cipantes do estudo. cional, sendo todos os outros internacionais. Em
Ressalta-se que a maioria dos estudos (A1, relação ao delineamento, verificou-se que todos
A2, A4, A5, A7, A8, A9, A10, A11, A13, A14) os estudos possuíam método quantitativo. Sobre
contou com amostras selecionadas em diferen- a coleta de informações, em sua maioria, os es-
tes ambientes comunitários, tais como escolas, tudos coletaram dados somente em um momento
hospitais, clínicas pediátricas, anúncios em jor- específico tendo sido estudos de corte transver-
Repercussões da Exposição à Violência Conjugal nas Características Emocionais dos Filhos: 907
Revisão Sistemática da Literatura.
sal (A1, A2, A3, A4, A5, A6, A8, A9, A10 e interação mãe-criança pela técnica da Situação
A11) e apenas quatro (A7, A12, A13, A14) apre- Estranha de Ainsworth, bem como uma observa-
sentaram delineamento longitudinal, coletando ção da interação mãe-criança em jogo livre. Po-
informações em diferentes momentos. de-se perceber que as características emocionais
A coleta de informações deu-se, em sua investigadas estão relacionadas a aspectos do de-
maioria, através de instrumentos ou testes padro- senvolvimento emocional infantil. No entanto,
nizados, mas também por questionários, entre- isso não fica explicitado nos artigos devido, em
vistas, observações, e procedimentos para avalia- certa medida, às dificuldades em definir o que é
ção de aspectos do funcionamento fisiológico da e ao que se refere o desenvolvimento emocional.
criança. O instrumento mais utilizado, em nove A frequência, a gravidade e a exposição à
dos 14 estudos, foi o Child Behavior Checklist violência conjugal foram acessadas por diferen-
– CBCL, respondido pela mãe, para acessar os tes instrumentos nos estudos. A maior parte dos
problemas de comportamento internalizantes e artigos utilizou o instrumento Conflict Tactics
externalizantes nos filhos. Além deste, a obser- Scale – CTS que foi respondido por ambos os
vação da interação familiar (mãe, pai e filhos), sujeitos do casal (A2, A4, A7), ou apenas pela
bem como a observação da interação da criança mulher (A6, A9, A10, A11, A12, A14). Em ou-
com pares foi utilizada em um estudo (A2). Em tros três estudos (A1, A5 e A8), somente a mu-
outro (A1), além do CBCL, também foi utilizado lher respondeu a instrumentos sobre a violência
o Attachment Q-set, respondido pelas mães, para conjugal, sendo o Severity of Violence Against
acessar o padrão de apego estabelecido entre Women Scales – SVAWS (A1, A13), o Index
mãe-criança, bem como a observação do com- Spousure Abuse – ISA-30 (A5), e um questioná-
portamento infantil pelo Eyberg task. Em outros rio padronizado para o estudo em questão (A8).
três estudos (A3, A6, A11) também foi utilizado Apenas em um estudo (A3) os respondentes fo-
o Child Depression Inventory – CDI e o Revised ram os filhos expostos à violência conjugal, sen-
Child Manifest Anxiety Scale – RCMAS (A3), do acessados pelo The Children’s Perceptions of
ambos respondidos pelas crianças. Interparent Conflict Scale – CPIC.
Cabe ressaltar ainda que um dos estudos Com relação ao subtipo de violência, a
(A9) utilizou a entrevista estruturada segundo o maior parte dos estudos investigou somente a
DSM-IV para acessar os comportamentos dis- agressão física (A2, A4, A7, A10, A12) como
ruptivos infantis. Já outro (A8) utilizou-se de indicador de violência conjugal. Neste intuito,
questionário padronizado para a pesquisa em esses estudos consideraram para análise apenas
questão. Em ambos os casos, os instrumentos a subescala de agressão física do Conflict Tac-
foram aplicados somente às mães. Por fim, dois tics Scale – CTS. Outro estudo (A11) utilizou as
estudos avaliaram aspectos fisiológicos infantis subescalas do CTS: violência física, ferimentos
(A7, A10), sendo que o primeiro, de Rigterink causados por agressão, coerção sexual e nego-
et al. (2010) utilizou eletrodos para medir a va- ciação. Já no estudo (A14) foram realizadas mo-
riação no espectro dos batimentos cardíacos e dificações na versão original do CTS, inserindo
respiratórios de crianças expostas a violência mais tipos de violência física e psicológica nas
conjugal, em uma atividade de laboratório. Foi subescalas. Outros estudos destacaram os sub-
considerada a linha de base tônus vagal, relacio- tipos de violência física e sexual (A9); atos e
nada ao funcionamento do sistema nervoso cen- ameaças de violência física e abuso sexual (A1);
tral responsável pelo controle emocional, para física e não física (A5); física, sexual e psicoló-
acessar a capacidade de regulação emocional gica (A6, A8); e sem especificação dos subtipos
infantil. Já o estudo (A10) de Sturge-Apple et al. de violência investigados (A3).
(2012) utilizou a coleta da saliva da criança para Em nove estudos (A1, A3, A5, A6, A8, A9,
medir os níveis de cortisol no organismo, que se A12, A13, A14) foi dada atenção à violência
relaciona à vivência de situações estressantes. sofrida pela mulher e perpetrada pelo compa-
Além disso, também realizou a observação da nheiro, sem considerar a possibilidade de este
908 Patias, N. D., Bossi, T. J., Dell’Aglio, D. D.
também ser vítima. Ressalta-se que nos estudos conflito interparental e se tal percepção estava
que utilizaram o Conflict Tactics Scale – CTS associada a diferenças no ajustamento emocio-
(A6, A9), o instrumento por si já prevê o relato nal das crianças, considerando problemas de
sobre violência cometida pelo entrevistado con- comportamento internalizantes e externalizan-
tra o cônjuge, assim como a violência sofrida tes. Além dos problemas de comportamento des-
pelo entrevistado. Mesmo assim, a definição do tacados, dois estudos (A1, A5) também inves-
instrumento contida nos estudos mencionados, tigaram as repercussões da violência conjugal
destacou que as mulheres respondiam sobre a no apego mãe-criança (A1) e na interação mãe-
violência cometida contra elas (e não por elas). -criança (A5).
Já outros estudos (A2, A4, A7, A10, A11) con- Já outro estudo (A8) ressaltou a associação
sideraram a agressão entre o casal e ressaltaram entre violência conjugal contra a mãe com com-
tanto a mulher quanto o homem como possíveis portamentos internalizantes e externalizantes
vítimas e autores da violência. Por exemplo, (agressividade contra a mãe ou pares, urinar na
estudo (A2) de Katz e Low (2004) utilizou o cama, chupar o dedo, ter pesadelos frequentes,
Conflict Tactisc Scale – CTS para acessar a vio- retraimento e fuga de casa) além de problemas
lência conjugal, sendo que o marido e a mulher escolares (abandono/interrupção ou repetência)
responderam sobre os atos violentos cometidos nos filhos expostos a essa violência. Outro es-
por eles contra o(a) companheiro(a) nos últimos tudo (A9) investigou a presença de comporta-
12 meses. mento disruptivo em crianças expostas a violên-
Sobre a forma de exame dos dados dos estu- cia conjugal, conforme os critérios do DSM-IV
dos selecionados, em todos os artigos foram rea- para diagnóstico de transtorno de conduta ou
lizadas análises estatísticas, por meio de análises transtorno desafiador opositivo. Por fim, dois
descritivas, caracterizando o perfil da amostra estudos (A7, A10) investigaram as reações fi-
(idade, sexo, classe socioeconômica) e análises siológicas infantis relacionadas à exposição à si-
inferenciais, buscando observar os preditores tuação estressante de violência conjugal e suas
ou as consequências da violência na mulher e repercussões para a capacidade da criança de
nos filhos. Também foram utilizadas análises de regular suas emoções. Estudo (A7) de Rigterink
modelagem de equações estruturais com vistas et al. (2010) examinou a relação entre exposição
a propor modelos explicativos para a violência à violência conjugal e habilidades infantis para
conjugal e suas consequências. regular sua excitação fisiológica ao longo do
tempo. Os autores partiram do pressuposto de
Características EmocionaisInfantis que crianças expostas à situação estressante de
Nesta categoria foram descritas, a partir dos violência conjugal tenderiam a ter sua capacida-
objetivos dos estudos, bem como dos aspectos de de regular emoções afetada, como dificulda-
teóricos e metodológicos, as características emo- des para se acalmarem sozinhas e maior neces-
cionais infantis que podem ser afetadas pela ex- sidade de um suporte externo para a regulação
posição direta e/ou indireta à violência conjugal. emocional. Na mesma direção, o estudo (A10)
Constatou-se que a maior parte dos estudos (A1, de Sturge-Apple et al. (2012) examinou as espe-
A2, A3, A4, A5, A6, A11, A12, A14) conside- cificidades da violência conjugal, da indisponi-
rou, no seu foco de pesquisa, as características bilidade emocional materna e do funcionamento
emocionais infantis relacionadas principalmente fisiológico (resposta ao estresse) da criança nos
aos problemas de comportamento internalizan- relacionamentos interparentais e entre pais-
tes e externalizantes que poderiam ser agravados -filhos. Já o estudo (A13) de Levendosky et al.
ou gerados pela exposição à violência conjugal. (2013) considerou os sintomas de Transtorno de
Pode-se ressaltar o estudo (A3) de Skopp et al. Estresse Pós Traumático (TEPT), e sua relação
(2005), que examinou se irmãos expostos à vio- com os mesmos sintomas apresentados pelas
lência conjugal diferiam na sua percepção do mães que sofriam violência pelo parceiro.
Repercussões da Exposição à Violência Conjugal nas Características Emocionais dos Filhos: 909
Revisão Sistemática da Literatura.
pré-escolar. Nesse estudo, a violência conjugal anos, e o segundo momento quatro anos após o
foi relacionada a outras dinâmicas de funciona- primeiro encontro, havendo perda de muitos par-
mento dentro da família, como a coparentalida- ticipantes e finalizando o estudo com 68 famí-
de, definida pelos autores como as maneiras pe- lias. Os dados revelaram que a gravidade da vio-
las quais os parceiros apoiam-se mutuamente no lência doméstica testemunhada pelas crianças
seu papel conjunto como líderes da família. Os foi baixa, já que os atos violentos predominantes
dados indicaram que casais violentos tenderam foram o empurrar, o agarrar ou o jogar algo no
a exercer uma coparentalidade mais conflituosa, parceiro. Tanto homens quanto mulheres relata-
sendo que ao invés de esses casais apoiarem uns ram os atos violentos perpetrados por si contra o
aos outros nos seus papéis parentais, acabavam cônjuge, o que coloca ambos como possíveis ví-
mais suscetíveis a envolver o outro na relação de timas e autores da violência. Foram encontradas
uma forma mais negativa e crítica. Por sua vez, a evidências de diferenças na trajetória do tônus
violência conjugal esteve relacionada com níveis vagal ao longo do tempo, sendo que as crianças
mais elevados de não cumplicidade da criança expostas à violência conjugal apresentaram au-
ao interagir com seus pares e com dificuldades mentos menores na linha de base tônus vagal
em regular suas emoções para interagir social- do que as não expostas, indicando que a expo-
mente. Da mesma forma, a coparentalidade mais sição à violência conjugal afeta negativamente
hostil mediou a relação entre violência conjugal o desenvolvimento de capacidades reguladoras
e ansiedade/depressão nas crianças, o que sugere emocionais internas. Isso sugere que a violência
que em lares maritalmente violentos, a coparen- conjugal pode ter consequências negativas não
talidade tende a ser mais crítica e hostil, colo- só a curto prazo, mas também prejudicar o fun-
cando os filhos em risco de desenvolver maior cionamento emocional ao longo do tempo.
sintomatologia depressiva e ansiosa.
No estudo longitudinal (A10) de Rigterink Discussão
et al. (2010) foi examinada a relação entre expo-
sição à violência conjugal e habilidades infantis A maioria dos artigos selecionados para
para regular a excitação fisiológica ao longo do este estudo não explicitou uma clara definição
tempo. Para isso, participaram da pesquisa 68 de violência conjugal. No entanto, os autores
famílias, nas quais as crianças eram submetidas investigaram diversas formas de violência (físi-
a um exame por eletrodos para medir a frequên- ca, sexual e psicológica) a que foram expostos
cia cardíaca e respiratória frente a uma ativida- mulheres, crianças e/ou casais dos estudos. Cabe
de em laboratório (escutar histórias por fone de ressaltar que a maior parte das formas de violên-
ouvido). Essa atividade buscou avaliar a regu- cia descritas foram aquelas que incluem agres-
lação emocional infantil frente a uma situação sões físicas, embora três estudos tenham incluído
estressante, medida pela linha de base tônus va- a violência psicológica. Destaca-se a dificuldade
gal, indicador do funcionamento do sistema ner- de identificação da violência psicológica, que in-
voso parassimpático. O estudo iniciou com 130 clui, entre outras formas de violência, a agressão
famílias, sendo que em metade delas as crianças verbal, chantagens, ameaças e humilhações, ao
foram classificadas como apresentando proble- contrário da violência física que resulta em mar-
mas de conduta, avaliados pelo Eyberg Child cas corporais (Ministério da Saúde, 2001). Esse
Behavior Inventory, e a outra metade classifica- fato pode fazer com que nem sempre as vítimas
da como sem problemas de conduta, formando percebam o ato como uma forma de violência
dois grupos distintos de análise. Ainda havia (Brum et al., 2013), embora a violência psicoló-
subdivisão dentro dos grupos, classificando gica geralmente ocorra concomitantemente com
aquelas crianças expostas e não expostas à vio- outros tipos de violência estando, portanto, qua-
lência conjugal. Essas famílias foram acessadas se sempre presente (Ministério da Saúde, 2001).
em dois momentos, sendo o primeiro quando as Nos estudos investigados, a exposição à
crianças estavam com idades entre quatro e seis violência conjugal foi considerada a partir das
Repercussões da Exposição à Violência Conjugal nas Características Emocionais dos Filhos: 911
Revisão Sistemática da Literatura.
vimento infantil. Estudos longitudinais permiti- cessidade de estudos que permitam o aprofun-
riam entender, de maneira mais aprofundada, o damento e compreensão da violência conjugal,
efeito da exposição à violência conjugal ao lon- definindo de forma explícita o que os autores en-
go do desenvolvimento da criança, considerando tendem por violência na relação do casal e como
as especificidades que são inerentes a cada idade. esta influencia o desenvolvimento dos filhos.
Ressalta-se que essa revisão de literatura No que diz respeito às características emocio-
aponta para a escassez de estudos que conside- nais, também foi observada uma falta de teori-
ram as vítimas indiretas da violência, ou seja, zação acerca desse conceito e uma dificuldade
aquelas que não são agredidas, mas testemu- de conceituá-lo. Os autores nem sempre deixa-
nham a agressão entre os pais e, por esse motivo, ram claro o que entendem por desenvolvimento
também sofrem suas consequências. Na seleção emocional, dificultando a análise dos dados e a
final, apenas um estudo nacional e 13 interna- compreensão das repercussões da exposição à
cionais foram analisados. Esse dado demonstra violência conjugal.
a necessidade de novos estudos sobre as reper- De maneira geral, os estudos destacaram as
cussões da exposição à violência conjugal no repercussões da exposição à violência conjugal
desenvolvimento dos filhos, já que há uma alta nas características emocionais dos filhos, de-
prevalência desse fenômeno nas famílias brasi- monstrando que a violência, além de repercutir
leiras e no mundo (Ministério da Saúde, 2001; de maneira negativa no casal – e, principalmente
Waiselfisz, 2012). No entanto, ressalta-se que na mulher (foco da maior parte dos artigos) – tam-
os descritores e as bases de dados utilizadas na bém implica em consequências importantes para
busca podem ter restringido o número de artigos outros membros da família, como as crianças.
encontrados sobre o tema. Assim, sugere-se que Dessa forma, as intervenções em famílias
em novos estudos possam ser utilizadas outras expostas à violência devem abarcar a compreen-
bases de dados, como Web of Science e Scopus, são da dinâmica familiar, de forma a assegurar
por exemplo. primeiramente, a segurança do(s) filho(s) e da
Ainda, os estudos demonstraram, a partir de vítima direta da violência conjugal – geralmente
seus resultados, a necessidade e a importância de a mulher. Os serviços de saúde e proteção têm
acompanhar todos os envolvidos em um lar vio- como dever garantir o acolhimento e atendimen-
lento, e não somente as vítimas diretas (aquelas to das vítimas da violência, com base em acom-
que são agredidas). Em uma compreensão sistê- panhamento médico, psicológico e social, assim
mica, toda a família sofre as consequências da como a proteção da pessoa agredida. Além dis-
violência conjugal, sendo que vítima e agressor so, o atendimento aos agressores também deve
podem ocupar ambos os papéis. Da mesma for- ocorrer, sem que isso signifique a não responsa-
ma, torna-se importante investigar as consequ- bilização pelo ato violento (Ministério da Saúde,
ências da exposição à violência conjugal em ou- 2010). Em uma visão sistêmica, a violência con-
tras áreas do desenvolvimento não mencionadas jugal é considerada um problema da dinâmica
nos artigos em questão, como as relações mais relacional do casal sendo, portanto, necessárias
conflitivas entre os próprios irmãos, as dificul- intervenções junto à díade, buscando a resolução
dades em estabelecer amizades, os problemas de de conflitos e relações familiares mais saudáveis.
aprendizagem em decorrência de fatores emo- Trabalhar na prevenção da violência tam-
cionais, a transferência da agressividade viven- bém é uma prática importante, visto que no Bra-
ciada em casa para o ambiente escolar, dentre sil, há histórica e culturalmente uma banalização
outros aspectos. da violência, principalmente em relação às mu-
lheres e as crianças. A disseminação de conhe-
Considerações Finais cimentos sobre as repercussões da violência no
desenvolvimento das crianças, adolescentes e
A partir da revisão sistemática realizada, da família, é essencial, sobretudo porque ainda
percebeu-se, em termos metodológicos, a ne- há uma naturalização de tais práticas violentas.
Repercussões da Exposição à Violência Conjugal nas Características Emocionais dos Filhos: 913
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