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MANFREDO TAFURI

projecto
e utopia
arquitectura
e desenvolvimento
do capitalismo

DEDAlUS - Acervo - FAU


COLECÇÃO DIMENSÕES
1. A ARTE COMO OFIcIO, Bruno Munari
2. O DESIGN INDUSTRiAl E A SUA .ESTÉTICA, Gillo Dorfles 11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111
3. ARTISTA E DESIGNER, Bruno Munarj ." .
4. APRENDIZAGEM DA FOTOGRAFIA- INICIAÇÃO, .Michael Langford 20200002112
5. DESENHO DE PERSPECTIVA, Robert W. Gill
6. DESENHO BÁSICO - As Dinâmicas da Forma Visual, Maurice de Sausmarez
7. PROJECTAR A CIDADE MODERNA, L. Benevolo, Tommaso Giura Longo e Carlo
Melograni
8. APRENDIZAGEM DA FOTOGRAFIA - APERFEIÇOAMENTC1, Michael Langford
9. FANTASIA, Invenção, Criatividade e Imaginação, Bruno Munari
10. AS ORIGENS DA URBANfsTICA MODERNA, Leonardo Benevolo
11 . A BANDA DESENHADA, Jean-Bruno Renard
12. BREVE HISTÓRIA DO URBANISMO, Fernando Chueca Goitia
13. EDUCAÇÃO EM ARTE, Maurice Barrelt
14. WALTER GROPIUS E A BAUHAUS, Giulio Carlo Argan
15. O SIGNIFICADO DAS CIDADES, Carlo Aymonino EDITORIAL
16. PROJECTO E UTOPIA, Manfredo Tafuri
PRESENCA
A Giusi

Título original
PROGETTO E UTOPIA
© Copyright by Gius. Laterza & Figli Spa., Roma-BaTi
Tradução de Conceição Jardim e Eduardo Nogueira
Capa de Rogério

Reservados todos os direitos


para a língua portuguesa à
EDITORIAL PRESENÇA, LDA.
Rua Augusto Gil, 35-A - 1000 LISBOA

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mos ideológicos, que a sua astúcia chega - para além de todas as boas fés
individuais - a impor formas de contestação e protesto aos próprios produ-
tos. Quanto· mais elevada é a subestimação dos conflitos no plano da forma,
tanto melhor se mantêm escondidas as estruturas validadas por aquela subli-
mação.
Enfrentar o tema da ideologia arquitectónica, deste ponto de vista, si-
gnifica tentar demonstrar como as propostas aparentemente mais funcionais
para a reorganização de um sector do desenvolvimento capitalista se viram
forçadas a suportar as mais humilhantes frustrações, tanto para poderem ser
I apresentadas até hoje como valores objectivos, para além de qualquer cono-
tação de classe, como na qualidade de momentos «alternativos», enquanto
terreno de choque directo entre os intelectuais e o capital.
AS A VENTURAS DA RAZÃO: Devemos dizer de imediato que não consideramos casual que uma
NATURALISMO E CIDADE NO SÉCULO DAS LUZES grande parte das recentes hipóteses interiores ao debate arquitectónico volte
a um exame rigoroso sobre as origens das próprias vanguardas históricas.
Voltando às origens, correctamente identificadas no período que vê a estrei-
Afugentar a angústia compreendendo e introspectando as suas causas: ta ligação entre ideologias burguesas e antecipações intelectuais, envolve-se
parece ser este um ~sprincipais i~p~rativos éticos _da arte burguesa. Pouco numa estrutura unitária todo o ciclo da arquitectura moderna.
importa se os conflltos, as contradlço~s, as laceraçoes que produzem a .an- Aceitar tal indicação permite considerar globalmente a formação das
gústia se vêem absorvidos num mecamsmo ~Io~al ~apaz de ,compor P!OVIS?- ideologias arquitectónicas, e em particular as suas implicações relativamente
riamente esses diferendos, ou se a catarse e atmglda atraves da subhmaçao à cidade.
contemplativa. . Mas será então necessário reconhecer o carácter unitário do ciclo cul-
A fenomenologia da angústia burguesa encontra-se completamente m~- tural percorrido pelo pensamento burguês: será necessário, por outras pala-
crita na «livre» contemplação do destino. É impossíve.' não choc~r?Ios co~Í1- vras, ter continuamente presente todo o quadro das suas elaborações. Não é
nuamente com as perspectivas produzidas por essa liberdade; e Imposslvel por acaso que a exploração sistemática do debate iluminista permite colher,
não perpetuar nesse trágico confronto:- a experiência do choque .. 0 cho- ao seu nível ideológico puro, grande parte das contradições que em diversas
que, derivado da experiência metropolItana, e que ~entaremos, a~ahsar n.as formas acompanham o percurso da arte contemporânea.
páginas que se seguem, é já um modo de t~rnar «acÍlva» a angustla. O gnto Formação do arquitecto como ideólogo do «social», individualização
de Münch fala já, nesse sentido, da necessld~d~ de uma ponte entre o «va- do campo adequado de intervenção na fenomenologia urbana, papel persua-
zio» absoluto de cada um, capaz de se expnmlr apenas num fonema con- sivo da forma nos confrontos com o público e autocrítico nos confrontos
traído e a passividade do comportamento colectivo. com a investigação própria, dialéctica - ao nível do inquérito formal - en-
A metrópole, o lugar da alienação absoluta, é, não por acaso, o centro tre o papel do «objecto» arquitectónico e o papel da organização urbana:
das elaborações de vanguarda. . . . são estas as constantes que ocorrem no interior da «dialéctica do I1uminis-
Enquanto o sistema capitalista teve ~ecess!dade. de apr.esentar a SI mes- mo».
mo a sua própria angústia - para contmu~r a ag~r, ~ceItando-se com a Quando Laugier, em 1753, enuncia as suas teorias sobre o desenho das
«viril objectívidade» de que fala Weber - .a Ideologia pode co~matar o pre- cidades, abrindo oficialmente a investigação teórica da arquitectura iluminis-
cipício existente entre os imperativos da ética burguesa e o umverso da Ne- ta, as suas palavras traduzem uma intenção dupla. Por um lado a redução da
cessidade. 'd . própria cidade a fenómeno natural, por outro a de superar qualquer ideia
Neste livro tentaremos, também, delinea~ as et~pas ~traves as quais apriorística do ordenamento urbano, através da extensão ao tecido citadino
essa necessidade de compensação no céu da Ideologia deixou de ser fun- de dimensões formais ligadas à estética do Pitoresco.
cionaI. . . I .
O dever-ser do intelectual burguês reconhece-se, todaVia, no v~ or Im-
perativo que assume a sua missão. «social»; ~ntre as «vang~ardas» mtel~c­ «Quiconque sçait bien dessiner un parc» - escreve Laugier - «traçera
tuais existe uma espécie de entendimento tacJt~ t~l, que a slmples_ tentatl.va sans peine le plan en conformité duquel une Ville doit être bâtie relative-
de pô-lo à vista provoca um coro de protestos mdl~na:I0s. A ~un~ao media- mcn! à son étendue et à sa situation. Il faut des places, des carrefours, des
dora da cultura identificou de tal modo as suas propnas aparenClas em ter- fUCS. II faut de la régularité ef de la bizarrerie, des rapports et des opposi-

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tions, des accidents qui varient Ie tableau, un rand o ' .
de la confusion, du fracas., du tumulte dans l~nsemb.lrd(rle) dans Ies detalls, mantém na mesma área formal que a pintura, a selectividade e o criticismo
e .» significam a introdução, no urbanismo, de um fragmentarismo que coloque
no mesmo plano dos valores não apenas a Natureza e a Razão, mas também
- .A realidade formal da cidade setecentista é retratad I o fragmento natural e o fragmento urbano.
Laugler, de modo penetrante. Já não encontramos ar a; .nas pa avras de A cidade, enquanto obra do homem, tende para uma condição natu-
mas a _aceitação do carácter antiprosp-ectivo do espaço qU~hpos de ordem, ral, tal como a paisagem, através da selectividade crítica realizada pelo pin-
referência ao jardim tem um significãdo novo' a varied ~r ~no; e mesmo a tor, deve receber o selo de uma moralidade social.
é chamada a fazer parte da estrutura urbana ~ontraria a e t a n~tureza, que E é significativo que, enquanto Laugier compreende agudamente, tal
I~dor, oratório e formativo que durante toda' a é oca o na .ura lsmo conso- como os teóricos ingleses do Iluminismo, o carácter artificial da linguagem
tmha dominado a episódica narratividade das Jstem~tUl'e V~l de l600 a 1700 urbana, nem Ledoux nem Boullée, tão inovadores nas suas obras, se arris-
N t d'd I zaçoes b arrocas
es a me I a, o llpe o ao naturalismo significa sim 11 . cam a abandonar uma consideração mítica e abstracta da Natureza. A polé-
.~_pureza original do acto de configuração do ambiente u ~~eamente _apelo mica de Boullée contra as perspicazes antecipações de Perrault a propósito
e
car~cter antior~ânico, por excelência, que é próprio da cid d ~reen,sa~ do do carácter artificial da linguagem arquitectónica é altamente indicadora a
maIS. A reduçao da cIdade a um fenómeno natural re a de. as ha amda
este'tI' d P't . spon e certamente à propósito disto C) .
. ca o ~ oresco, que o emptrismo inglês tinha int ro d 'd d d . Pode acontecer que a cidade como floresta de Laugier só tivesse como
metros decémos do século XVIII e que receberá em· C UZI o eS e os pn- objectivo as variadas sequências de espaços que apareciam na planta de Pa-
t . - .'
eonzaç_ao extremame?te nca e consequente. ozens " em 1759 uma
ris feita por Patte, registando, num único quadro de conjunto, os projectos
Nao sabemos ate que ponto possam ter influI'do d' t da nova praça régia. Mas é indubitável que se reclamam dessa mesma con-
concepçao - d e Cl'd ad e d ' as teorias inglesas o trec amente
e Laugler 'd- sobre a
cepção os projectos de George Dance o Jovem para Londres: projectos sem
Robert Castell em As cidades dos Antigos É no enta~ as c~nSl eraç~es de dúvida de vanguarda para a Europa de Setecentos(4). Limitar-nos-emos por-
ção urbana do abade francês e o paisagis~o do pI'nt °t,cer o que a mven- tanto a registar as intuições teóricas contidas na passagem de Laugier, tanto
. me'to d o b asead o na seIecçao,
- como instrumento para. or em. t em comum
_, .
um
máis sintomáticas quanto é certo que Le Corbusier se apoiará nelas ao deli-
_ sobre a realidade «naturaI»(Z). uma m ervençao CritIca
near os princípios teóricos da sua Ville radieuseCS).
Ora, tendo em conta que a cidade, , . O que significa, no plano ideológico, assimilar a cidade a um objecto
para os teoncos dos anos 700, se
natural? Por um lado, neste assunto transparece uma sublimação das teorias
(') M. A. La.ugier, Observations sur I'Architeclure, Haia 1765 fisiocráticas: a cidade não é vista como estrutura que determina, através dos
que o texto Citado retoma as teses já a resentadas ' págs: 312-3. Note-se no entanto seus próprios mecanismos de acumulação, a transformação dos processos de
tecture, Paris 1753 (págs 258-65) Sobr~ Laug'e1 r
pelolmesWmo Laugler no seu Essai sur [,Arehi-
18th Century Theory Z~emmer' Londres' 1962' cOonsu tafT olfgang Hermann, Laugier and-th"f, aproveitamento do solo e dos rendimentos agrícolas e fundiários. Enquanto
L augler . ' de Gwynn
· e os proJectos , e de George
, .D conJronto ' entre as te'
onas ur b"
amslIcas de fenómeno assimilável a um processo «natura!», não histórico porque univer-
. ance umor para Londres I
mente mteressante. A propósito, consulte-se: John Gw nn Lo d re~e a-se extrema- sal, é desvinculada de qualquer consideração de natureza estrutural. O «na-
com o Discourse on Publick Magnificence Londres 1~66.' M nHon and Westmmsler lmproved, turalismo» formal serve num primeiro momento para persuadir quanto à ne-
Younger, as Town-Planner (1768-1814), «íournal of the Soclet ugrBrun.t, George pan~e the
XIV, 1955, n.O 4 (com muitas inexactidães)' D Str d G bo Archltectural Hlstonans», cessidade objectiva dos processos postos em movimento pela burguesia pré-
ber and Faber, Londres 1971. O melhor co~tributo ~~b~e ~~:f~ anc~ Archite,ct, 1?1~-1825, Fa- -revolucionária; num segundo momento, para consolidar e proteger as con-
a
de Georges Teyssot, Città e utopia nell'll/uminism . I G publIcado ate hOJe e o volume quistas adquiridas de qualquer transformação ulterior.
1974. o mg ese. eorge Dance il giovane, Roma
Por outro lado, esse naturalismo altera a sua própria função ao assegu-
CO) Alexander Cozens, A New Melhod o[ assisting the lnven . . .. rar à actividade artística um papel ideológico em sentido estrito, Não é por
o[ Landscape, Londres 1786. É importante avaliar o . .:IO~ Drawmg Ongmal Compositions
Pope, citado por Cozens ao iniciar o seu tratado' «Thos:l~lllllca ? que a~sumem as palavras de acaso que, precisamente no momento em, que .
a eçonomia burguesa começa
?
are Nature still, but Nature methodized: I Natur~ n M u es hW1C are dlscov~red, not devised I
Laws wich first herself ordained». (ver, G. C. Ar~a~, eLa o~::;~a ~e;;'l~t r~s~ram~d I by ~he same
Reynolds a Conslable, Bulzoni, Roma 1965 á s 153 P Um!n.lSmo. m lnghtlterra da (') Sobre o significado das teorias de Perrault (expostas principalmente em: Claude Perrault, Les
za - sujeito e objecto de acçáo ético-pedaglgic~ __ e lsegs). O valor CIVI~ atnbuído à Nature- Dix Livres d'Archilecture de Vilruve, Paris 1673), consultar Manfredo Tafuri, «ArchileClura Arli-
. "
pnnclplOs .
de autondade que o racionalismo e o reve
. a-se como o substituto d os t ra d·· -
IClOnalS liâalis»: Claude Perrault, Sir Christopher Wren e il dibattilo sul linguaggio architettonieo, in Ba-
~o~e.rt Castell, The Villas o[ lhe Ancien~ Londr::~~~~od~~~avam a demolir. ~onsultar ainda roeco europeo, Baroeco italiano, Baroeco salenlino, Lecce 1971, págs. 375-98. Sobre a polémica
slgmflcado dos tratados de Castell e de Chámbers (W'll' ' Ch ca~o a Lord Burhngton. Sobre o com Boullée, consultar Helen Rosenau, Boullée's Treal(se on Architeclure, Londres 1963 (comen-
~ngs, Londres 1757), veja-se o ensaio fundamental dei ~~~olf ~~t:rs, Designs.of Chinese Build- l;'trios e notas) e W. Harmann, The Theory of Claude Perrault, Zwemmer, Londres. 1973.
lSm, the Landscape Garden, China, and the Enlighle L'A ower, Englzsh Neo-Pal/adtan- (') Sobre a actividade urbanista de Dance jr., veja-se a bibliografia citada na nota 1.
nrnent,« rte», 1969, n.O 6, págs. 18-35.
(') Consultar Le Corbusier, Urbanisme, «Esprit Nouveau», Cres, Paris 1925.
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a descobrir e a lançar as próprias categorias de acção e JUiZO, dando aos
«valores» conteúdos directamente mensuráveis com os metros ditados pelos
novos métodos de produção e de troca, a crise dos antigos sistemas de «va-
lores» seja subitamente escondida por um recurso a novas sublimações, tor-
nadas artificialmente objectivas através do recurso à universalidade da Na-
tureza.
É por isto que a Razão e a Natureza devem agora unificar-se. O racio-
nalismo iluminista não pode assumir por si próprio toda a responsabilidade
das operações que está a realizar, e considera necessário evitar um confron-
to directo com as suas próprias premissas.
É evidente que esta cobertura ideológica se baseia, durante todo o sé-
culo de Setecentos e os primeiros decénios do seguinte, sobre as contradi-
ções do ancien régime. O capitalismo urbano em formação e as estruturas
económicas baseadas no aproveitamento pré-capitalista do solo chocam já
entre si. É significativo que os teóricos da cidade não evidenciem essa con-
tradição, antes se preocupando em escondê-la ou, melhor, resolvê-la, anu-
lando a cidade no grande oceano da Natureza e concentrando inteiramente
as suas atenções nos aspectos superestruturais da própria cidade.
Naturalismo urbano, inserção do Pitoresco na cidade e na arquitectura,
valorização da paisagem na ideologia artística, tudo isto tende a negar a di-
cotomia, já patente, entre a realidade urbana e os campos: serve para per-
suadir de que não existe nenhum salto entre a valorização da natureza e a
valorização da cidade, enquanto máquina produtora de novas formas de acu-
mulação económica.-
Ao naturalismo oratório e académico da cultura seiscentista, substitui-
-se agora um naturalismo diferentemente persuasivo.
É no entanto importante sublinhar que a pretendida abstracção das
teorias iluministas sobre a cidade serve em primeiro lugar para destruir os
esquemas de planeamento e de desenvolvimento da cidade, barroca, e num
segundo momento para evitar, mais do que para condicionar, a formação de
modelos globais de desenvolvimento. Não é por acaso que uma operação gi-
gantesca e de vanguarda, como a reconstrução de Lisboa após o terramoto
de 1755, sob a direcção do Marquês de Pombal, foi conduzida num clima
completamente empírico, longe de quaisquer abstracções teóricas(6).
De um modo certamente anómalo relativamente às linhas gerais do
criticismo iluminista, a cultura arquitectónica desempenha portanto, nos
anos de Setecentos e Oitocentos, um papel essencialmente destrutivo. E isto
explica-se. Não se encontrando à sua disposição um substrato já maduro de
técnicas de produção adequadas às novas condições da ideologia burguesa e
do liberalismo económico, a arquitectura é obrigada a concentrar o seu tra-
balho autocrítico em duas direcções:
a) Na exaltação, com intuitos polémicos, de tudo aquilo que pode as-
sumir um significado anti-europeu. O fragmentismo de Piranesi é uma con-

(6) Consultar José Augusto França, Uma cidade das Luzes: a Lisboa de Pombal.

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I - John Gwynn, figura do volume London and Westminster lmproved, 1766.


sequência da descoberta dessa nova ciência burguesa que a é a crítica histó- . «Entre tous les arts» - escreve Quatremere - , «ces enfants du plai-
rica mas que é também, paradoxalmente, crítica da crítica. Toda a moda das Slr et de lanécessité, que I'homme s'est associés, pour l'aider à supporter les
referências à arquitectura gótica, chinesa, I}ind~,e o naturalismo romântico peines de la vie et à transmettre sa mémoire aux générations futures, on ne
dos jardins paisagísticos, onde imergem os gracejos sem ironia dos pavilhões serait nier que l'architecture ne doit tenir un rang des plus distingués. A ne
exóticos e das falsas ruínas, liga-se igualmente ao clima das Lettres persanes l'envisager que sous le point de vue de l'utilité, ele I'emporte sur tous les
de Montesquieu, do Ingénu de Voltaire, do cáustico antiocidentalismo de arts. Elle entretient la salubríté dans les villes, elle veille à la santé des hom-
Leibnitz. Para integrar o racionalismo e o criticismo, os mitos europeus são mes, eÚe assure leurs propriétés, elle ne travaille que pour la sureté, le re-
colocados em confronto com tudo o que pode, contestando-o, confirmar a pos, et le bon ordre. de la vie civileC).»
sua validade. No jardim paisagístico inglês consuma-se a anulação da pers-
pectiva histórica. Não é tanto a evasão na fábula que se pretende atingir b realismo iluminista não é desmentido sequer pelos sonhos arquitec-
com a agregação de pequenos templos, pavilhões, grutas, na qual se pare- tónicos em escala gigantesca de um Boullée ou dos sócios da Academia. A
cem ter unido as mais díspares testemunhas da história da humanidade. O exaltação dimensional, a depuração geométrica, o primitivismo ostentado,
«pitoresco» de Brown, de Kent, dos Wood, ou o «horrível» de Lequeu, que constituem as constantes desses projectos, assumem um significado con-
apresentam de facto um pedido. Com os instrumentos de uma arquitectura creto quando postos à luz daquilo que pretendem ser: não tanto sonhos ir-
que já renunciou a formar «objectos» para se transformar em técnica de or- realizáveis, como modelos experimentais de um novo método de projectar.
ganização de materiais previamente formulados, pedem uma verificação feita Do simbolismo desenfreado de Ledoux ou de Lequeu ao silêncio geo-
fora da arquitectura. métrico da tipologia de Durand: o processo seguido pela arquitectura do Ilu-
Com todo o desprendimento típico dos grandes críticos do Iluminismo, minismo é coerente com o novo papel ideológico que assume. A arquitectu-
esses arquitectos iniciam uma· sistemática e fatal autópsia da arquitectura e ra deve redimensionar-se a si mesma ao entrar na estrutura da cidade bur-
de todas as suas convenções. guesa, dissolvendo-se na uniformidade assegurada de tipologias previamente

!
b) Em segundo lugar, apesar de colocar entre parêntesis o seu pró- constituídas.
prio papel formal no âmbito da cidade, a arquitectura apresenta uma alter- Mas tal dissolução não ocorre sem consequências. Quem conduz ao li-
nativa à perspectiva niilista claramente descortinável atrás das fantasias alu- mite as intuições teóricas de Laugier é Piranesi: a sua ambígua reevocação
cinadas de um Lequeu, de um Bélanger, de um Piranesi. da lconographia Campi Martii é o monumento gráfico da manifestação da
Renunciando a um papel simbólico, pelo menos no sentido tradicional, cultura tardobarroca em resposta às ideologias revolucionárias, de que o seu
a arquitectura - para evitar a sua própria destruição -"-- descobre a sua vo- Parere sul{' architéttura é o mais claro testemunho Iiterário(8).
cação científica. Por um lado, pode transformar-se em instrumento de equi- No Campo de Marte piranesiano já não existe qualquer fidelidade ao
líbrio social; e então deverá enfrentar - o que será feito por Durand e Du- princípio tardobarroco de variedade. Dado que a antiguidade romana não é
but - a questão dos tipos. Por outro, pode tornar-se ciência das sensações: apenas um valor de referência carregado de nostalgias ideológicas e de teste-
e nesta direcção lançaram-se Ledoux e, de modo mais sistemático, Le Ca- munhos revolucionários, mas também um mito a contestar, todas as formas
mus de Mézieres. Tipologia e arquitectura falante, portanto: são ainda estes de derivação classicista são tratadas como mero fragmento, como símbolo
os temas levados a chocar entre si por Piranesi e que, mais do que conduzi- deformado, como resto alucinado de uma «ordem» maltratada.
rem a soluções, acentuarão durante os anos de Oitocentos a crise interna da A ordem no pormenor não conduz portanto ao simples tumulte dans
cultura arquitectónica.
Ora a arquitectura aceita tornar «política» a sua própria obra. Enquan- (') M. Quatremere de Quincy, título Architecture, em Encyclopédie méthodique, T. I, pág. 109.
to agentes políticos, os arquitectos devem assumir a tarefa de invenção con- (8) Cf. G. B. Piranesi, Il Campo Marzio dell'antica Roma, Roma 1761-62; ld., Parere sull'archi-
tínua de soluções de vanguarda, aos níveis mais generalizáveis. O papel da lettura, unido às Osservazioni, Roma 1765; Werner Kõrte, G. B. Piranesi ais praktischer Arehi-
ideologia, nestas condições, torna-se determinante. tekt, «Zeitschrift für Kunstgeschichte», 11, 1933; R. Wittkower, Piranesi's «Parere sull'architettu-
O utopismo, que a historiografia moderna quis reconhecer nas obras ra», <<1ournal of the Warburg Institute», In, 1938, pág. 2; Ulya Vogt-Cõknil, Giovanni Battista
Piranesi's «Carceri», Origo Verlag, Zurique 1958; Patricia May Sekler, G. B. Piranesi's Carceri:
do Iluminismo arquitectónico, é portanto exactamente definido nos seus si- Etchings and Related Drawings, «The Ar! Quarterly», XXV, págs. 331-63; Maurizio Calvesi, ln-
gnificados autênticos. Na realidade, as propostas arquitectónicas do Setecen- troduzione alia nuova edizione dei Focillon de! Piranesi (Alfa, Bolonha 1967); John Harris, Le
tos europeu não têm nada de irrealizável, nem é por acaso que toda a vasta Gray, firanesi and lhe lnternational Neo-Classicism in Rome, 1740-1750, em Essays in lhe Histo-
teorização dos filósofos da arquitectura não contém qualquer utopia social ry of Architecture presenled to Rudolf Wittkower, Phaidon Press, Londres 1967, págs. 189-96;
Maria Grazia Messina, Teoria dell'architettura in G. B. Piranesi, «Controspazio», 1970, n. 8/9,
em apoio do reformismo urbano preconizado ao puro nível formal. págs. 6-10, e 1971, n. 6, págs. 20-8; Manfredo Tafuri, G. B. Piranesi: /'architettura come «utopia
A própria introdução ao título Architecture, escrita por Quatremere de negativa», «Angelus Novus», 1971, n. 20, págs. 89-127; Jonathan Scott, Piranesi, Academy Edi-
Quincy para a Encyclopédie méthodique, é uma obra-prima de realismo mes- tions, Londres, SI. Martin's Press, Nova Iorque, 1975.
mo nos termos abstractos em que se exprime.
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l'ensemble, mas sim a um monstruoso pulular de símbolos privados de signi-
ficado. A floresta piranesiana, tal como as sádicas atmosferas das suas Car-
ceri, demonstra que não é apenas o «sonho da razão» que produz monstros,
mas que também a «vigília da razão» pode conduzir ao disforme: mesmo
quando o objectivo para o qual aponta é o Sublime.
Pode-se atribuir um valor profético ao criticismo do Campo de Marte
piranesiano. Nele, a ponta mais avançada do Iluminismo arquitectónico pa-
rece descobrir com um ênfase amargurado o perigo iminente da perda defi-
nitiva da organicidade da forma: os ideais da totalidade e da universalidade
já se encontram em crise.
A arquitectura pode esforçar-se por manter um carácter completo que
a preserva da dissolução total. Mas esse e~forço é tomado vão pela monta-
gem das peças arquitectónicas na cidade. E na cidade que esses fragmentos
são desapiedadamente absorvidos e privados de toda a autonomia; e de
nada lhes serve querer obstinar-se em assumir configurações articuladas e
complexas. No Campo Marzio dell'antica Roma assiste-se a uma representa-
ção épica da batalha provocada pela arquitectura contra si mesma: a tipolo-
gia é afirmada como instância de ordenamento superior, mas a configuração
dos tipos isolados tende a destruir o próprio conceito de tipologia; a história
é invocada como «valor» imanente, mas a paradoxal recusa da realidade ar-
queológica põe em dúvida o seu potencial civil; a invenção formal parece
enunciar o seu próprio primado, mas a reiteração obsessiva das invenções
reduz todo o organismo urbano a uma espécie de gigantesca «máquina
inútil».
O racionalismo parece descobrir a sua própria irracionalidade. Ao que-
rer absorver todas as suas próprias contradições, o «raciocínio» arquitectóni-
co dá uma base à técnica do choque. Os fragmentos arquitectónicos isolados
chocam entre si, indiferentes ao embate, e acumulam-se demonstrando a
inutilidade do esforço inventivo utilizado para definir a sua forma.
A cidade permanece uma incógnita - dado que o Campo de Marte pi-
ranesiano não engana ninguém quanto à sua própria qualidade de elabora-
ção experimental, escondida atrás da máscara arqueológica - e o acto de
projectar não é capaz de definir novas constantes de ordenação. Existe ape-
nas um axioma que resulta deste colossal bricolage: o irracional e o racional
devem deixar de excluir-se alternadamente. Piranesi não possui os instru-
mentos para traduzir em forma a dialéctica das contradições: deve limitar-se
portanto a enunciar, enfaticamente, que o novo e grande problema é o do
equilíbrio dos opostos, que tem na cidade o seu lugar representativo; infeliz-
mente, a destruição do próprio conceito de arquitectura.
Trata-se, em suma, da luta entre a arquitectura e a cidade, entre as
instâncias da ordem e o domínio do informe, que asssume uma tonalidade
épica no Campo de Marte de Piranesi. Neste, a «dialéctica do Iluminismo»
atinge um potencial insuperado, mas também uma tensão ideal tão violenta
que não pode ser aceite como tal pelos contemporâneos. O excesso pirane-
siano - como, sob outros aspectos, os excessos da literatura libertina da
idade das Luzes - transforma-se, enquanto tal, em revelação de uma verda-

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, , (i iovanni .Battista Piranesi, ilustração do Campo Marzio deU'antica Roma
I h I ,fl2), proJecto da zona do Mausoleu de Adriano e do «Bustum Hadriani».
d~: os desenvolvimentos da cultura arquitectónica e urbanística do Ilumin- forma moderna. Estamos já, nos Carceri, em presença de uma angústia pro-
msmo apressar-se-ão a escondê-la. duzida pelo :lnonimato do sujeito e pelo «silêncio das coisas».
No entanto, a descoberta da contradição como pretexto de salvação, Pensamos ser, aliás, evidente que esse silêncio coincide, para Piranesi,
para uma ~~Itura condenada - a expressão é piranesiana(9) - a construir com o do «signo». As imagens e as formas são reduzidas - após o eclipse
com mate~l~lS degradados, encontra, na obra do próprio Piranesi, uma ela- do rococó, representado nos quatro Capricci de cerca de 1744 - a signos
m~rosa, u~lilzação .. E não tanto no bricolage formal das ecléticas imagens ar- vazios: a esfera pura do altar do Priorato é disto bastante eloquente.
qmtectomcas contidas no Parere (também aqui a contradição é absorvida Mas um universo de signos vazios é o lugar da desordem total. Restará
e recomposta, tornada inofensiva), como nas duas redacções dos Carceri. portanto utilizar como um novo sistema aquilo que na obra piranesiana é
É ?os. Carceri, em particul~r na edição de 1761, que Piranesi revela a antecipação angustiada; o negativo que existe em Piranesi surgirá apenas a
consequencla da «perda» denunciada no Campo de Marte. A crise da ordo, intervalos na experiência arquitectónica do Iluminismo, como súbito aflorar
d.a .Forma, do classicista conceito de Stimmung assume aqui conotações «so- de um remoto complexo de culpa.
CIaiS». A destruição do próprio conceito de espaço realiza-se nos Carceri, A inerência da ambiguidade e da desordem à cidade, que' por volta de
funde-~e com a alusão simbólica à condição nova que se perfila no horizonte meados do século XVIII está a assumir novos papéis representativos no âm-
d.a SOCiedade que está a realizar um salto radical (a «romanidade» de Pirane- bito da economia nacional (apesar de a relação estrutural cidade-campo só
SI choca semJ?re, com efeito, com uma inegável vocação europeia). O espaço ser revolucionada muito mais tarde), é o conceito que preside à maior parte
?o. c~mstranglmento - o cárcere - é, nas gravuras piranesianas, um espaço do urbanismo de Setecentos. Mas é bastante difícil encontrar, nos Wood,
mfl~uto. O que é destruído é o «centro» desse espaço: isto é, ao arruinar dos em Palmer, nos Adam; em George Dance o Jovem, em Karl Ludwig Engel,
antIgos valores da ordem antiga corresponde a «totalidade» da desordem. A em L'Enfant, a consciência do significado atribuído por Piranesi ao eclipse
raison, que pr~duz aquela destruição, sentida de resto como fatal pelo gra- da Forma representado no âmbito urbano.
vador setecentlsta, traduz-se em irracionalidade. Mas os Carceri, precisa- Porém, o fragmentismo urbano, introduzido ao nível ideológico por
mente porque infinitos, coincidem com o espaço da existência humana. As Laugier, volta a viver na teorização eclética de Milizia.
c~nas h<:rn:éticas desenhadas por Piranesi, nas malhas das suas composições
«lmposslve~s»: mostram-no com uma clareza extrema. O que significa que «Uma cidade é como uma floresta» - escreve este nos seus Principf,
nos Carcen so poderemos ver a nova condição existencial da colectividade parafraseando quase literalmente Laugier - «quando a distribuição da cida-
libertada e amaldiçoada, simultaneamente, pela sua própria razão. Piranesi de é como a de um parque. São necessárias praças, cruzamentos principais,
não ~r~duz tanto em imagens uma crítica reaccionária às premissas sociais do vias em quantidade, espaçosas e direitas. Mas isto não basta; é necessário
IlummIsmo, mas sim uma lúcida previsão do que deverá ser uma sociedade que o plano seja desenhado com gosto, e com brio, a fim de que nele se
~ibertada dos antigos valores e dos consequentes constrangimentos por estes encontre ordem, bizarria, eurritmia e variedade: aqui as vias abrem-se em
Impostos. estrela, ali em pata de ganso, num sítio em espiga, noutro em leque, com-
~ Só resta então a possibilidade de uma alienação global, e voluntária, pridas paralelas, por todo o lado cruzamentos de três e quatro vias, em di-
num~ for~a colectiva. O constrangimento é a nova lei, com a qual é absur- versas posições e com uma multidão de praças de figura, grandeza e decora-
do dIscutIr: a resistência a esta lei in exprimível é paga com a tortura. Veja- ção sempre diferentesC 1).» I~
-~e a cena de tortura inserida na figura 11 dos Carceri; não é por acaso que a Não é difícil ver a influência de um refinado prazer dos sentidos na
~lg~r~ do torturado é a de uni. ser super-humano, rodeado de uma massa afirmação seguinte de Milizia: «quem não sabe variar os nossos prazeres,
mdlstmta. Na sociedade totalmente alienada, o libertino seiscentista e seten- nunca terá prazer. Deve ser em suma um quadro variado de infinitos aciden-
cista já não tem salvação: o seu «heroísmo» i condenado, com indiferença tes; uma grande ordem nos detalhes; confusão, estrépito e tumulto no con-
pelo próprio gravador(IO). ' junto».
A experiência da angústia surge pela primeira vez em Piranesi na sua
«A planta da cidade»- prossegue Milizia(lZ) - «é distribuída de tal
modo que a magnificência da totalidade seja subdividida numa infinidade de
C) G. B. Piranesi, Parere su I'architettura, cil., pág. 2.
CO). Lopez-Rey ??S~rvou. qu~ nos Carceri de Piranesi as figuras humanas se encontram presentes (") F. Milizia, Principf di architettura civile, Bassano 1813 3 , vol. li, págs, 26·7. Note-se, porém,
maIs para permitlf as maqumas de tortura funcionarem, do que para comunicarem o horror do que mesmo esta passagem, como quase toda a obra de Milizia, é fruto de um verdadeiro plágio:
torr,nento: é o mesmo autor, de resto, que institui uma relação de contraste entre a obra de Pira- as ideias de Laugier são de facto retomadas aqui, numa paráfrase evidente. A nós, portanto, o
nes~ ~ a .de Go.ya. Cf~. José Lopez-Rey,. Los Cárceles de Piranesi, los prisioneros de Goya, em texto de Milizia interessa como documento demonstrativo da difusão, no decurso de Setecentos,
S~rutl di Storla deU Arte In onore di LlOnello Venturi, De Luca, Roma 1956, vol. lI, da teoria da «cidade naturalista».
pags. 111-6. (12) Ibidem, pág. 28.

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belezas particulares, todas de facto diferentes, que não se encontrem nunca do, para a arquitectura, um papel comunicativo de v~lor pe_remptório(~).
nos mesmos objectos, e que percorrendo-a de uma extremidade à outra se A antítese não é contingente: envolve toda a conslderaçao das funçoes
encontre em todos os bairros algo de novo, de singular, de surpreendente. comunicativas da cidade. Para a Comissão de 1807, a protagonista das novas
Deve reinar nela a ordem, mas entre uma espécie de confusão [... ] e da mensagens ideais e funcionais é a estrutura urbana enquanto tal, apesar de
multidão de partes regulares deve. resultar no conjunto uma certa ideia de estar disposta a inserir nela o Foro antoliniano. . , . .
irregularidade e de caos, que tanto convém às grandes Cidades.» Para Antolini, pelo contrário, a restruturação da cidade e real~zada. m-
troduzindo na rede dos seus valores contraditórios um lugar urbano Irradian-
Ordem e caos, regularidade e irregularidade, organicidade e desorgani- te, capaz de produzir efeitos induzidos capazes de impedir qualquer cont~­
cidade. Estamos muito longe, aqui, daquele preceito tardobarroco de unida- minação; a cidade, como universo de discurso ou como sistema de con;~m­
de na variedade, que no pensamento de Shaftesbury assumira tonalidades cação, transforma-se para ele numa «mensagem» absoluta e peremptona.
místicas. Já se encontram delineadas aqui as duas vias da arte e da arqUltectura
O controlo de uma realidade não orgânica, uma actuação sobre essa modernas. d
«desorganicidade» não.para alterar a sua estrutura mas para fazer surgir des- .- Com efeito é a dialéctica imanente a todo o decurso da arte mo ema
ta uma rosa complexa de significados simultaneamente presentes: é esta a que parece opor' entre si quem tenta revolver as próprias vísceras do real
exigência que os escritos de Laugier, Piranesi, Milizia e - mais tarde e em para conhecer e assumir os seus valores e misérias, e quem pr~tende lançar-
tons moderados - os de Quatremere de Quincy introduzem no debate -se para além do real, quem quer construir de novo novas reahdades, novos
arquitectónico. valores, novos símbolos públicos. . _
Mas rapidamente erguem-se, contra tais hipótese, as instâncias de um ~_._._ O que separa a Comissão napoleónica de Antolini é a mesma Oposlçao
rigorismo tradicional. Giovanni Antolini, ao comentar os Principf de Milizia, que separará Monet de Cézanne, Munch de Bracque, Raoul Hausmann de
não deixa de lançar os seus dardos contra as intuições do teórico da Puglia, Mondrian, Hãring de Mies, Rauschenberg de Vasarely: . .
defendendo a autoridade vitruviana e a exemplificação ideal dela feita por Entre a «floresta» de Laugier e a reserva de Antohm situa-se uma ter-
. Galiani; contra a exaltação do empirismo e do «pitoresco» dos Wood e de ceira via destinada a transformar-se na protagonista de um novo modo de
Palmer a Baths, dos Crescents de Edimburgo, do plano de 1807 para Milão, intervenção e controlo da morfologia urbana. O plano d~ L'E~fa?t p.ara
ergue-se o rigorismo racionalista dos projectos de Gwynn para Londres, da Washington ou o elaborado para Jeffersonville, Jackson, e. Mlssoun Clty, ms-
Bari muratiana, da nova Pietroburgo, da nova Helsínquia. pirados nas teorias urbanistas de Jefferson, actuam com mstrumentos novos
4
No final da nossa análise, torna-se particularmente interessante a opo- relativamente aos modelos europeusC ).. •
sição ideal entre Antolini e os membros da comissão do plano napoleónico É no entanto importante sublinhar que a ideologia natu~ahsta enco~-
para Milão. tra, na América de Setecentos, um campo de explicação propna.me?te poh-
Estes últimos aceitam assumir uma dialéctica com a estrutura da cida- tico. É Jefferson quem reconhece com extrema lucidez o valor mstltuclOnal
de, tal como esta se tinha configurado na história. Porém, fazem implicita- e pedagógico da arquitectura. . . .
mente um juízo sobre ela. Enquanto produto de forças e acontecimentos de- A referência ao classicismo, ao palladianismo, ao expenmentahsmo m-
terminados pelo preconceito, o mito, as estruturas feudais ou da contra-re- glêsC5) é para Jefferson nada mais do que a demonstração do f~cto de .a
forma, o complexo tecido histórico do centro lombardo é para eles algo que raison do Iluminismo europeu se ter transformado, com a Revol~çao a.m~~l­
deve ser racionalizado, esclarecido nas suas funções e na sua forma, até cana, em guia prático da «construção da Democracia». Com maior eflcacla
mesmo valorizado, a fim de que do embate entre as persistências antigas -
lugares representativos do obscurantismo - e os novos traçados e influên-
('3) CfL G. Antolini, Descrizione dei Foro Bonaparte, presentato coi disegni al.comitat~ de ~over­
cias - lugares representativos da clarté das lumieres - se torne evidente e no della Republica Cisalpina, etc., Rarma 1806; A. Rossi, li conceito di tradwone ne~1 arehuettu-
operante na vida civil uma escolha a que corresponda uma clara e inequívo- ra neoc/assiea milanese «Società», XII, 1956, n. 2, págs. 474-93; G. Mezzanotte, L archllettura
ca hipótese acerca do destino e da estrutura física da cidade. neoc/assiea in Lombardia:-Esi, Nápoles 1966.
Não é por acaso que Antolini se opõe ao plano napoleónico. Se a co- C') Sobre a actividade urbanística de Jefferson veja-se o ensaio de John Reps, Thomas Jeffer-
missão napoleónica aceita de algum modo o colóquio com a cidade histórica son's Cheekerboard Towns, «1ournal of the Society of Architectural Hlstonans», XX, 1961, n. 3,
e dilui no seu tecido a ideologia que informa as influências, Antolini recusa- págs. 108-14. . S I A h'
(5) Ver a influência sobre a arquitectura de Jefferson do volume de Robert Morns, e eel re 1-
-se a esse colóquio. O seu projecto para o Foro Bonaparte é, simultanea- leelure Londres 1755. CfL Clay Lancasler, Jefferson's Arehiteetural lndebtedness to Robert Mor-
mente, uma alternativa radical à história da cidade, um símbolo carregado ris, (<J~urnal of lhe Society of Architectural Historians», X, 1951, n.o 1, págs. 2-10, e T. H. W~­
de valores ideológicos absolutos, um lugar urbano que, como presença tota- lerman, Thomas Jefferson. His Early Works in Architeeture, «Gazette des Beaux-Arts», XXI ,
lizante, se propõe o objectivo de alterar toda a estrutura urbana recuperan- 1943, n.O 918, págs. 89-106.

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do que qualquer outro protagonista da arte europeia politicamente empe- diversos momentos (de 1749 em diante) é um monumento à utopia agrária.
nhada, ele possui assim um modo de desenvolver a própria tarefa de organi- Mesmo em MonticeUo os modelos palladianos, scamozzianos e morrisianos
zador da cultura em operações «oficiais»: ver as suas intervenções de consul- são utilizados pragmatisticamente. Em vez dos alpendres laterais encontra-
ta para o plano de Washington, para os projectos da Casa Branca, do Cam- mos aqui duas alas de serviços cobertas com terraços que confluem para o
pidoglio ou para a restauração do palácio do Governador em Williamsburg núcleo residencial que se destaca na sua aparência de villa-templo. Mas no
e, em geral, toda a sua actividade arquitectónicaC 6). esquema geométrico encontra-se toda uma série de invenções tecnológicas e
É neste âmbito que deve ser considerada também a sua política agrária funcionais, que mostram a intenção de integrar o Classicismo nas exigências
e antiurbana. «modernas», de demonstrar toda a sua disponibilidade para um uso civil e
Contra Hamilton, que prossegue lúcida e friamente uma obra de acele- social concreto (já foi notado, por exemplo, que em Monticello Jefferson
ração do desenvolvimento do capital financeiro e industrial americano, dan- antecipa, através da sua nítida distinção entre espaço de serviço e espaços
do cumprimento económico à reviravolta política iniciada pelas revoluções servidos, um tema que será típico no primeiro Wright e em Kahn).
anti-inglesas, Jefferson é fiel a uma Democracia mantida ao nível da utopia. Noutros projectos arquitectónicos, Jefferson leva mais longe este seu
A economia agrícola, as autonomias locais e regionais transformadas mesmo programa: vejam-se os desenhos para as cidades de Battersea, de
em eixos do sistema democrático, o travão oposto ao desenvolvimento da Farmington no Kentuckye S), de Poplar Forest, onde o uso de uma geome-
indústria têm para Jefferson um significado simples: constituem sintomas do tria combinatória baseada em polígonos compostos e intersectados - segun-
seu receio frente aos processos que a própria Revolução tinha posto em mo- do uma síntese reconhecida por Lancaster como derivada do estudo da obra
vimento; receio, em substância, dos perigos de involução, de tradução da gráfica de Morrise 9) - assume um valor antecipatório relativamente à redu-
Democracia num novo autoritarismo, devido à competição capitalista, aos ção da linguagem à pura geometria (numa acepção completamente anti-sim-
desenvolvimentos urbanos, ao nascimento e ao crescimento do proletariado bólica, portanto) que será o ponto de chegada do debate do Iluminismo ar-
urbano. quítectónico na Europa (consultar a obra didáctica de Durand e de Dubut).
Neste sentido, Jefferson está contra a cidade e contra o desenvolvi- O aspecto heróico do Classicismo é portanto aceite por Jefferson como
mento da economia industrial; é esta a razão pela qual tenta impedir a De- mito europeu a «tomar» americano (mantendo-se portanto válida a sua apli-
mocracia de traduzir-se nas suas lógicas consequências económicas. cação sem preconceitos). Mas ao apresentar-se como Valor, como Razão
Com ele nasce a «América radical», nasce, portanto, a consciência am- construída, como capaz de unificar os ideais divergentes da compósita socie-
bígua dos intelectuais americanos, que se reconhecem nos fundamentos do dade dos jovens Estados Unidos, deverá apresentar-se também como valor
sistema democrático e se opõem à sua manifestação concreta. acessível, disseminável, social.
Aqui a atitude de Jefferson é ainda uma utopia, se bem que já não A utopia de Jefferson arquiteeto traduz-se toda no «heroísmo domésti-
como vanguarda mas sim como rectaguarda (note-se, a propósito, a afinida- co» do seu Classicismo. Os valores (ler: a imagem da Razão) são «importa-
de ideológica existente entre a cultura de Jefferson e a de Frank Lloyd dos» já feitos da Europa, em toda a sua carga celebrativa, mas imediata-
Wright, a quem se dirigiram críticos como Fitch e Scully)C 7). mente despojados de tudo o que possa isolá-los da vida civil: por outras pa-
A democracia agrária deve portanto celebrar-se a si mesma. Monticel- lavras, da sua «aura» inacessível.
lo, a cidade-fábrica projectada e construída por Jefferson para si mesmo em Veja-se como Jefferson actua ao projectar o novo Campidoglio de Rich- I'
mondo Baseando-se em consultas do arquitecto francês Clérisseau - Jeffer·
C6 ) Sobre Jefferson arquitecto, consultá r Fiske Kimball, Thomas Jefferson Architect, Boston son encontra-se em França em 1784 - reelabora o modelo da Maison Car-
1916, reimpressão, Da Capo Press, Nova Iorque, 1968; L T. Frary, Thomas Jefferson, Architect rée de Nimes, onde é apenas alterada a ordem das colunas externas (de co-
and Builder, Garret and Massie, Richmond 1939; Frederick Doveton Nichols, Thomas Jefferson's ríntias para jónicas), e envia o projecto para a América. O Campidoglio de
Architectural Drawings, Massachussetts Historical Society, Memorial Foundation, University of
Virginia Press, 1961; James S. Ackerman, Il Presidente Jefferson e il palladianesimo americano, Richmond acaba portanto por receber um valor ready-made na Europa,
«Bolletino dei centro studi A. Palladio», VI, 1964, parte n, págs. 39-48. Encontra-se recolhido adaptado à celebração das novas instituições democráticas, tornadas «sagra-
um completo repertório bibliográfico, actualizado até 1959, no volume de William B. O'Neal, A das» pelo Templo social do Campidoglio (depois assumido como modelo
Checklist of Writings on Thomas Jefferson as an Architect, The American Association of Archi- constante de referência e aplicado várias vezes: ver o Girard College de Th.
tectural Bibliographers, 1959.
Walker, o Banco da Pennsylvania de Latrobe, as obras de Strickland, etc.).
C') Consultar James Marston Fitch, Architecture of Democracy: Jefferson and Wright, in Archi-
recture and the Esthetics of Plenty, Columbia University Press, Nova Iorque-Londres 1961, págs.
31 e segs.; Vincent Scully, American Architecture and Urbanism, Thames and Hudson, Londres
1969; Id. American Houses: Thomas Jefferson to Frank Lloyd Wright, no volume de AA. VV., (") Consultar F. Kimball, Jefferson's Designs for two Kentucky Houses, <<Journal of lhe Society
The Rise of an American Architecture, The Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque, and Pall of Architectura! Historians», IX, 1950, n. 3, págs. 14-6.
Mall Press. Londres 1970, págs. 163 e segs. C') Consultar Clay Lancaster, op. cito

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o novo e uma visão completamente empírica do antigo tentam assim
uma fusão. Jefferson propõe a manutenção em vida de uma «ressurreição tradição urbana americana. Não é por acaso que L'Enfant desenha um pla-
dos mortos» - para usar as palavras de MarxeO) - utilizada na crise revo- no que vê sobrepor-se o esquema do quadrillage colonial àquele, então de
lucionária do Iluminismo europeu. O que é transparente na sua programa- vanguarda, sugerido pelo jardim francês de Lenôtre, pelo plano de Wren
ção da universidade da Virgínia em Charlottesville, para a qual usufrui do para a cidade de Londres, pela Karlsruhe setecentista, pela fantástica Paris
conselho de Thornton e de Latrobe (1817-26). O campus universitário deve- de Patte.
rá ser - segundo o Estatuto jeffersoniano - uma «aldeia académica»: a A cidade é de facto uma natureza nova na Washington de L'Enfant.
ideologia agrária abate-se completamente sobre o programa pedagógico. Or- Os modelos da cultura do absolutismo e do despotismo europeus são agora
ganizada segundo o esquema de um U aberto, convergente na biblioteca expropriados pela capital das Instituições democráticas, e traduzidas numa
com cúpula central, a universidade fracciona-se numa série de pavilhões se- dimensão social certamente ignorada nas Versailles de Luís XIV (e é tam-
parados, verdadeiros núcleos didácticos auto-suficientes, completos com resi- bém significativo que enquanto Washington é realizada, a city wreniana per-
dências académicas e unidos por um pórtico contínuo. A ordem e a liberda- manece apenas como um exemplo cultural, por ausência de instrumentos ad-
de procuram encontrar na organização formal a sua integração: os pavilhões, ministrativos) .
completamente diferentes entre si, demonstram a extrema flexibilidade da Os fermentos já vivos nos planos das cidades coloniais de Annapolis e
tipologia dassicista (não é por acaso que os muros divisórios dos jardins co- Savannah podem agora ser integrados entre si, e traduzidos num modelo
locados entre os núcleos didácticos e as residências assumem uma forma on- eloquente relativamente ao mundo, até pelas suas dimensões físicas. No in-
dulada, estranha em termos de coerência formal), enquanto o rigor da distri- terior da rede dupla de malhas ortogonais e radiais (da floresta urbana, isto
buição geral e da rotunda final aludem explicitamente à estabilidade, à per- é, da natureza tornada objecto de uso civil) as quinze praças, alegorias dos
manência, ao carácter absoluto das instituições. quinze estados da União, criam outros tantos pólos de desenvolvimento, en-
Jefferson produz assim uma primeira imagem eloquente daquilo que quanto a divisão entre poder legislativo e poder executivo se transforma em
será o esforço mais dramático realizado pela América «radical»: compensar imagem concreta na estrutura em «L» dos dois eixos que, partindo da Casa
a mobilidade dos valores e a estabilidade dos princípios, o ímpeto indivi- Branca e do Campidoglio, se intersectam no monumento a G. Washington
dual - sempre estimulado até ao limite da anarquia, ou da nevrose - e a (projectado por Robert MilIs, também autor do edifício do Tesouro, mas
dimensão social. Exactamente a contradição não resolvida que Tocqueville realizado depois sob a forma de um obelisco geométrico e metafísico): a li-
denunciará na sua La Démocratie em Amérique (1835-40) como o perigo que gação entre os dois pólos funcionais e simbólicos da nova capital é assegura-
ameaça a nova ordem democrática. da pela artéria oblíqua da Pennsylvania Avenueel
Fica no entanto assente que ao nNel arquitectónico e urbanístico, a Afastado L'Enfant por problemas causados pela sua pretensão de con-
ideologia agrária de Jefferson só poderá registar - apesar da imensa carga trolar rigorosa e despoticamente os desenvolvimentos da cidade (note-se que
de optimismo que pressupõe e da sua total oposição a qualquer incerteza Jefferson é contrário desde início ao plano grandiloquente do arquitecto
polémica - que de futuro o único modo correcto de «usar» a ideologia eu- francês), Washington inicia a sua vida, alcançando em 1800 3 000 habitantes:
ropeia da Razão consiste em reconhecer que a utopia (o Classicismo arqui- viajantes europeus como Trollope e Dickens admiram-na, mas a nova cidade
tectónico ou a democracia antifederal e antiurbana) deve renunciar, a este é ainda um compromisso entre a ideologia anti-urbana de Jefferson - ape-
nível, a apresentar-se como vanguarda. O que é completamente evidente nas provisoriamente esquecida pelo estadista, e favorecendo a criação de um
nas vicissitudes da planificação de Washington e nos desenvolvimentos do lugar simbólico onde a ideia da União se possa materializar totalmente-e a
movimento City Beautiful. grandeur de L'Enfant. A disponibilidade do plano é compensada e confirma-
Na planificação de Washington, o programa ideológico jeffersoniano é da pelos pontos fixos que estruturam a sua imagem: não é sem razão' que a
rapidamente aceite por L'Enfant: fundar uma capital traduz obviamente a cidade economicamente menos necessária da América é também a mais
«fundação» de um «mundo novo», corresponde a uma escolha unitária, a «configurada» .
uma decisão, a uma «livre escolha» que até então nenhuma vontade colecti- Assim, o Classicismo, que domina a forma, os desenvolvimentos e os
va tinha podido apresentar na Europa. A forma da nova cidade assume logi-
camente, neste quadro, um significado primário e preponderante: deverá fa-
lar das escolhas políticas realizadas, apropriando-se dos modelos disponíveis (") Sobre a história urbana de Washington, veja·se o documentado volume de John W. Reps,
da cultura e da praxis urbanista europeia. Deverá enxertar esse modelo na Monumental Washington, The Planning and Development of the Capital Center, Princeton Uni-
versity Press, Princeton 1967, comentado criticamente por Stanley M. Sherman, in <dournal of
lhe Society of Archilectural Historians», 1969, voL XXVIII, n. 2, págs. 145-8. CfL também EI-
bert Peets, The Genealogy of the Plan of Washington, idem, 1959, voL X, n, 2. págs. 3-4, e os
(20) K. Marx e F. Engels, 1848 na Alemanha e em França. dois volumes de Constance McLaughlin Green, Washington: Village and Capital, 1800-1878, e
Washington: Capital City, 1879-1950, Princeton University Press, Princeton 1962 e 1963.
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seus lugares monumentais, responde na sua atemporalidade ao programa
ideológico de Jefferson. Em Washington, permanece a referência nostálgica
aos valores europeus, concentrados preCisamente na capital de uma socieda-
de que se orienta através da sua corrida ao desenvolvimento económico e
industrial, para a destruição concreta, real, motivada, desses valores.
Washington constitui assim uma espécie de «má consciência» america-
na, que pode no entanto conviver com as frias e férreas leis do desenvolvi-
mento industrial: o preço disto é que, enquanto monumento, mostra conti-
nuamente e sem fingimentos a sua própria inactualidade.
Nestas condições, após as tentativas fracassadas de definição naturalis-
ta e romântica do MaU, do arquitecto-paisagista Andrew J ackson Downing
(de 1850 em diante), após as mais realistas iniciativas especulativas de Ale-
xander Robey Shepherd, de 1871 a 1873, que tenta introduzir no plano a
dimensão dilatada da Paris haussmanniana, depois dos projectos de Theodo-
re Bingham, Samuel Parsons Junior e Cass Gilbert, para o Potomac Park e
o Mall, e sob as influências da Exposição Colombiana de Chicago (1893),
será o plano da Park Comission que retomará e levará à execução, com urna
continuidade significativamente supra-histórica, a ideia original de L'Enfant
(a Park Comission, constituída em 1901 pelo senador McMillan segundo o
conselho do seu secretário Charles Moore, é formada por Daniel Burnham,
Charles McKim e Frederick Law Olmsted Junior).
O modelo é ainda a Europa «académica»: Burnham e os seus colegas
realizam urna longa viagem de estudo analisando as distribuições urbanas de
Viena, Budapeste, Paris, Roma, Frankfürt e Londres. Todos os programas
do movimento City Beautiful embocam no projecto do coração representati-
vo de Washington; aliás, é precisamente aqui que esses programas se reve-
lam completamente adequados. A Park Commission deve executar não urna
cidade disponível e adaptada ao business, mas sim um símbolo colectivo e
voluntariamente abstracto, urna ideologia realizada em imagem urbana, a
alegoria de um ordenamento político que pretende agora apresentar-se imó-
vel nos seus princípios, apesar da rápida e móvel evolução nas consequên-
cias socio-económicas. Washington, enquanto cidade, encarna a imobilidade
e a convencionalidade daqueles princípios, apresentados agora corno não
históricos; em Nova Iorqqe, em Chicago e em Detroit são reservadas partes
de protagonista do desenvolvimento (isto apesar de Burnham e de os urba-
nistas da City Beautiful tentarem interpretar a nova dimensão daquelas cida-
des em termos de valor formal: na realidade estão a prever, ao nível da
mais abstracta e ingénua superestruturalidade, as exigências de um controlo
unitário do desenvolvimento).
O projecto da Park Comission para o Mall é exposto em 1902 e provo-
ca um enorme interesse por parte do público. Ainda em estado de plano,
cumpre já o seu objectivo: apresentar-se corno ponto firme dos Estados Uni-
dos, corno símbolo por excelência da escolha popular que deu vida à União.
As duas avenidas infinitas, convergentes na zona - oportunamente prepara-
da através de urna série de aterros - do monumento a Washington, são ter-
minados por Memoriais a Jefferson e a Lincoln, realizados o primeiro a par-
3 - Em cima: vista da Cidade de Washington da margem sul do Anacostia Ri- 31
ver, 1834. No c~ntro e em baixo: vista prospectiva e planimetria do projecto do
centro de Washmgton, elaborado pela Senate Park Comission, 1902.
tir de 1930 (arquitecto J. Russel-Pope, e depois Eggers e Higgins), o segun- C,ol?car-se .explicitamente do lado das forças que provocam a mutação
do por Henry Bacon de 1912 em diante. O projecto da Park Comission e os morfologlca na cidade, controlando-a com uma atitude pragmática completa-
dois Memoriais (o plano definitivo para a Pennsylvania A venue será apre- mente estranha à cultura eu~opeia, é o grande mérito histórico da concepção
s~ntado apenas em 1964 pelo grupo Skidmore, Owings e Merrill) são indí-
urbana adoptada pelo urbamsmo americano desde a primeira metade de Se-
CiOS eloquentes das escolhas realizadas.
tecentos.
O Classicismo que os informa é integral, não mediatizado ou de com- . O uso d~ uma malha regular de artérias de escoamento como suporte
promisso como acontece - nos anos 20 a 40 - na área da cultura académi- Simples e flexlvel, para uma estrutura urbana que deseja salvaguardar a mu-
ta~ão. contí~ua, realiza o objectivo que a cultura europeia não conseguira
ca europeia. Sem inibições, mostra que, para a ideia da União a história
terminou. A escala desmesurada dos projectos renuncia proposit~damente a atmgir. A liberdade absoluta concedida ao fragmento arquitectónico isolado
enfrentar o particular; aqui interessa a dimensão pública, social, mundial, situa-se exactamente, aqui, num contexto que não é formalmente condicio-
como única protagonista: A Razão feita Democracia deve anunciar aomun- nado por ele. A cidade americana consegue atribuir o máximo de articula-
do os princípios abstractos da pax americana. ção aos elementos secundários que a configuram, mantendo rígidas as leis
Isto explica porque razão se renunciou - em 1902, tal como nos anos que a governam enquanto conjunto.
30 ou nos anos 60 - a utilizar, para a capital dos USA, as influências da Urbanismo e arquitectura vêem-se finalmente separados. O geometris-
cultura arquitectónica de vanguarda. Washington tende a sublinhar de todos mo do plano não quer em Washington, como anteriormente em Filadélfia e
os mod?s a sua própria distância (não a sua estranheza) aos planos de de- mais tarde em Nova Iorque, encontrar uma correspondência arquitectónica
senvolvImento. Nela se concentra, numa espécie de Olimpo sem tempo por- nas formas isoladas dos edifícios. Ao contrário do que acontece em Peters-
que indiscutível, antídialéctico, todo ele «positivo», a ânsia da sociedade burgo ou em Berlim, a arquitectura é livre de explorar os mais diversos e
americana à procura de raízes. longínquos campos de comunicação. É reservada ao sistema urbano a tarefa
A representação da estabilidade dos valores pode assim apresentar-se de exprimir o grau de funcionalidade dessa liberdade figurativa. Ou melhor,
tal qual é: uma aspiração convencional mas real, a que é necessário dar sa- de assegurar, através da sua rigidez formal, uma dimensão estável de refe-
tisfação, mantendo-a rigorosamente distanciada das forças que prevalecem rência. Deste modo, a estrutura urbana apresenta uma incrível riqueza ex-
no sentido do desenvolvimento, da actualização contínua e do desenvimento pressiva que, principalmente a partir da segunda metade de Oitocentos, se
tecnológico. deposita nas redes livres da cidade dos Estados Unidos: a ética liberal en-
. Valores, estabilidade, forma, são assim apresentados como objectos ir- contra assim os mitos pioneiros.
reaiS, ?Ias transfo~mados em matéria. São símbolos da nostalgia americana
pelo diferente de SI, termos de referência para uma sociedade continuamente
aterrorizada pelos processos que ela própria coloca em movimento e que
- no .entanto - ela mesma apresenta como irreversíveis. O Classicismo,
como ideal de uma Razão não contaminada, apresenta-se portanto conscien-
teme~te em todo o seu carácter de retaguarda. É isto que acontece em
Washmgton durante todo o nosso século, mas que reaparece, de modo sub-
terrâneo, no in,teri?r de toda a cultura americana, para desaguar na arqui-
tectura dos <<ngonstas da composição», na definição de KaIlmann - de
Louis Kahn, do Próprio Kallmann, de Romaldo Giurgola - que entre os :Elia, L'architecttura dei dopoguerra in USA, Capelle, Bolonha 1976'. «À escala urbanística - es-
creve Manieri a propósito do plano para a cidade de Nova Iorque de 1811 - dir-se-ia que a
anos 50 e os 60 puderam apresentar as suas próprias investigações como as- atitude puritana e 'antiarq~itectónica' se ajusta bem ao sentido de individualismo libertário jef-
pirações destrutivas, «anticonsumistas». A má consciência da América radi- fersomano, para o qual o Sistema, como é bastante evidente na Declaração de independência [... ]
cal, de Jefferson a Kahn, fecha-se sobre si mesma numa patética homena- consiste num suporte funCionai tão pouco embaraçoso quanto possível: se o governo deve ser
gem a valores inoperantes. apenas uma estrutura elástica e modificável em qualquer momento ao serviço de inalienáveis di-
f itOS humanos, por maioria ?e razão um plano regulador deve dar a máxima garantia de elasti-
Mas frente ao desenvolvimento de Washington vemos o de Nova Ior- 7
Cidade e apres ntar uma reSistência mínima à iniciativa produtiva» (op. cit., págs. 64-5), Cfr.
que, a antítese daquele. 7
amda a excepCIOnal documentação sobre a formação das cidades americanas contida em J. W.
Já foi basta?tes vezes analisada a relação que liga o pragmático esque- Reps, The Making of Urban America, Princeton University Press, Princeton 1965. Sobre
ma de desenvolvImento da Nova Iorque planificada pela comissão de 1807- Washington, exemplo clamoroso de continuidade entre a ideologia iluminista e o europeísmo do
-11 à estrutura de valores típica da sociedade dos Estados Unidos desde o movimento City Beautiful na América entre 1893 e cerca de 1920, ver: J. W. Reps, Monumental
momento em que se afirmou, não sendo necessário retomar aqui o exame Washington, cil. Consultar ainda: Albert Fein, The American City: the Ideal and the Real, in The
Rise of an American Architecture, cil., págs. 51-112.
deste temae2). .

(") Cfr. L. Benevolo, Storia dell'architettura moderna, Laterza, Roma-Bari 1977'; M. Manieri- 3 33
I
i

II

A FORMA COMO UTOPIA REGRESSIVA

Aquilo que por agora ressalta da análise sumária das expenencias e


das previsões da cultura arquitectónica setecentista é a crise - descoberta
precisamente ao tomar consciência do problema da cidade como campo au-
tónomo de intervenção - do conceito tradicional de forma (a digressão his-
tórica sobre o desenvolvimento de Washington cabe perfeitamente neste
quadro).
Desarticulação da forma e antiorganicidade da estrutura: já nos pri-
mórdios da arquitectura do Iluminismo se postulara um dos princípios com
base no qual se articularia o percurso da arte contemporânea. Nem é alheio
a talo facto de a intuição destes novos valores formais estar ligada desde o
início ao problema da cidade nova, que se prepara para ser o lugar institu-
cional da moderna sociedade burguesa.
Mas as instâncias teóricas de revisão dos princípios formais não condu-
zem tanto a uma verdadeira revolução de significados e sim a uma crise agu-
da de valores. As novas dimensões apresentadas pelos problemas da cidade
industrial, durante o século XIX, apenas contribuirão para agudizar essa cri-
se, durante a qual a arte terá dificuldade em encontrar as vias adequadas
para acompanhar os desenvolvimentos da realidade urbana.
Por outro lado, a desagregação da organicidade da forma concentra-se
na operação arquitectónica, sem conseguir encontrar uma saída na dimensão
citadina. Quando ao observarmos um «trecho» de arquitectura da época vi-
toriana somos tocados pela impressão de exacerbamento do «objecto» que
aí está consumado, muito raramente temos presente que eclectismo e plura-
lismo representavam, para os arquitectos do século XIX, a resposta exacta
4 - Frederick Law Olmsted, plano do sistema dos parques de BuffaJo ~m rela- aos múltiplos estímulos desagregadores induzidos pelo novo ambiente confi-
ção ao plano de desenvolvimento urbano, 1876. gurado pelo «universo da precisão» da realidade tecnológica.
O facto de a arquitectura somente conseguir responder a este «univer-
so da precisão» com um confuso «aproximadamente» não nos deve espantar.
Na real~':dde, é a estrutura urbana, precisamente enquanto registo dos con-
flitos que são o teatro dessa vitória do progresso tecnológico, que muda vio-
lentamente de dimensão, configurando-se como estrutura aberta, na qual é
utópico procurar encontrar. pontos de equilíbrio.
34 35
Mas a arquitectura, pelo menos segundo a concepção tradicional, é
uma estrutura estável, dá forma a valores permanentes, consolida uma mor-
fologia urbana.
Para quem queira romper com esta concepção tradicional e ligar a ar-
quitectura ao destino da cidade, mais não resta do que conceber a própria
cidade como o lugar específico da produção tecnológica e ela própria como
produto tecnológico, reduzindo a arquitectura a simples momento de uma
cadeia produtiva.
Em todo'Ü caso, a profecia piranesiana da cidade burguesa como «má-
quina absurda» é concretizada nas metrópoles que se organizam, no século
XIX, como estruturas primárias da economia capitalista.
O «zoning» que preside aos desenvolvimentos dessas metrópoles não
se preocupa - numa primeira fase - em mascarar o próprio carácter de
classe. As ideologias _de índole radical ou humanitária podem bem procla-
mar a irracionalidade da cidade industrial, mas esquecem-se (não por acaso)
de que a irracionalidade só o é para um observador que queira iludir-se a si
próprio pensando estar au dessus de la mêlée. O utopismo humanitário e as
críticas radicais têm um efeito imprevisto: convencem a burguesia progressis-
ta a colocar a si própria o tema da conciliação entre racionalidade e irracio-
nalidade.
Por tudo o que foi dito, este tema parece ser intrínseco à formação da
ideologia urbana. E é além disso familiar, considerado em abstracto, à cultu-
ra figurativa oitocentista, dado que na própria origem do eclectismo român-
tico está o resgate da ambiguidade como valor crítico in senso proprio: exac-
tamente a ambiguidade levada por Piranesi ao seu máximo expoente.
Aquilo que permite a Piranesi mediar a terrificante profecia do eclipse
do sagrado com nostalgias primevas e fugas pela dimensão do Sublime é
precisamente aquilo que permite ao eclectismo romântico fazer-se intérprete
da cruel realidade da transformação do ambiente humano em mercadoria,
nele imergindo parcelas de valores já perfeitamente gastos e apresentados
como aquilo q.ue realmente são, áfonos, falsos, retorcidos, desagregados:
como a demonstrar que nenhum esforço subjectivo poderá doravante recu-
perar uma autenticidade para sempre perdida.
A ambiguidade oitocentista reside toda ela na exibição desenfreada de
uma falsa consciência, que tenta um último resgate ético exibindo a própria
inautenticidade. Se o coleccionismo é o signo e o instrumento dessa ambi-
guidade, a cidade é o seu campo específico. A pintura impressionista, ao
tentar resgatar-se dela, não é por acaso que se colocará num observatório
imerso na estrutura urbana, mas distanciado dos seus significados pelas
deformações subtis de lentes que mimam um distanciamento científico
objectivo.
Se as primeiras respostas políticas a tal situação mergulham as suas
raízes no resgate de um utopismo tradicional que o Iluminismo parecia ter
liquidado, as respostas específicas dos meios de comunicação visual introdu-
zem um novo tipo de utopismo: a utopia implícita nos feitos realizados, na
realidade das «coisas» construídas e verificáveis.
, - O transepto do Crystal Palace em Londres (1851), numa gravura oitocentista.
36
É por este motivo que todo o filão do utopismo político oitocentista
. apenas terá relaçõesmediatas - e abundantemente - com as hipóteses do
«movimento moderno». .
Assim, teremos de considerar, por um lado, os laços habitualmente es-
tabelecidos pelá historiografia contemporânea entre as utopias de Fournier,
Owen, Cabet, e os modelos teóricos de Unwin, Geddes, Howard ou Stein e,
por outro lado, os do filão Garnier-Le Corbusier, como hipóteses a verificar
atentamente, sendo provável que venham a ser reconhecidos como funcio-
nais e interiores aos próprios fenómenos que através deles se querem ana-
lisar.e3) .

É, portanto, claro que as respostas específicas apresentadas pela crítica


marxista ao problema em torno do qual o pensamento utópico é obrigado a
girar sem tréguas, têm duas consequências imediatas sobre a formação das
novas ideologias urbanas:
a) reconduzindo os problemas gerais a um âmbito rigorosamente es-
trutural, tornam evidente o insucesso concreto a que a utopia se autoconde-
na, revelando ainda a vontade secreta de acabar no naufrágio, implícita no
próprio acto de nascimento da hipótese utópica;
b) anulando o sonho romântico de uma incidência tout court da acção
subjectiva sobre o decurso do destino social, revelam ao pensamento bur-
guês que o próprio conceito de destino é uma criação ligada às novas rela-
ções de produção. Enquanto sublimação de fenómenos reais, a aceitação vi-
ril do destino - fundamento da ética burguesa - pode, resgatar a miséria e
o empobrecimento que esse mesmo «destino» originou em todos os níveis da
vida associada e, principalmente, na sua forma-tipo: a cidade.
O final do utopismo e o nascimento do realismo não são momentos
mecânicos no interior do processo de formação da ideologia do «movimento
moderno». Pelo contrário, a partir do quarto decénio do século XIX, o uto-
pismo realista e o realismo utópico sobrepõem-se e compensam-se. O declí-
nio da utopia social determina a rendição da ideologia à política das coisas
realizada pelas leis do lucro: à ideologia arquitectónica, artística e urbana
resta a utopia da forma, como projecto de recuperação da totalidade huma-
na numa síntese ideal, como posse da desordem através da ordem.
A arquitectura, enquanto directamente ligada à realidade produtiva,
não é pois somente a primeira a aceitar, com rigorosa lucidez, as consequên-

e 3
) O capítulo sobre o socialismo utópico e as suas propostas de reorganização urbana não pode
ser tratado com critérios homogéneos relativamente à formação das ideologias do movimento
moderno. Pode apenas aludir-se ao papel alternativo que o romantismo utópico desempenhou
relativamente àquelas ideologias; mas os seus desenvolvimentos, em particular na praxis da pla-
nificação anglo-saxónica, são postos em confronto com os modelos elaborados pelo New Deal,
numa análise que ultrapassa os limites da presente nota, Sobre o significado da ideologia do tra-
balho que, no seio da tradição socialista, informa assim fortemente o aparecimento e os desen-
volvimentos das teorias urbanísticas oitocentistas e dos primórdios do século XX, veja-se o artigo
fundamental de Massimo Cacciari, Utopia e socialismo, «Contropiano», 1970, n. 3, pp. 563-586.
Veja-se também, do mesmo autor: Sur probleme dell'organizzazione. Germania 1917-1921, Intro- 6- Projecto de casas operárias, Londres, 1865.
dução a Gyõrgy Luckács, Kommunismus 1920-21, Marsilio, Pádua 1972.
7 - Louis H. Sullivan, projecto teórico de cidade com arranha-céus (de: "The
38 (jraphic», 19 de Dezembro de 1981, V). Gravura de H. von Hofsten. O desenho
ilustra um artigo de Sullivan sobre as vantagens de uma regulamentação dos edI-
fícios altos com destino comercial.
cias da própria redução anterior a mercadoria: partindo dos seus problemas
específicos, a arquitectura moderna, no seu conjunto, está em condições de
elaborar, mesmo antes de os mecanismos e as teorias da Economia Política
lhe fornecerem os instrumentos de actuação, um clima ideológico tendente a
integrar cabalmente o design, a todos os níveis de intervenção, no seio de
um projecto objectivamente virado para a reorganização da produção, da
distribuição e do consumo relativos à nova cidade capitalista.
Analisar o decurso do movimento moderno enquanto instrumento
ideológico da segunda metade do século XIX até 1931, data em que a sua IH
crise é patente em todos os sectores e a todos os níveis, significa traçar uma
história que se articula em três fases sucessivas:
a) uma primeira fase, que assiste à formação da ideologia urbana IDEOLOGIA E UTOPIA
como superação das mitologias tardo-românticas;
b) uma segunda fase, que vê desenvolver-se o papel das vanguardas
artísticas como projectos ideológicos e como individualização de «necessida- É contudo necessário definir mais atentamente as condições ,~o ~ra~a­
des insatisfeitas», consignadas como tais (como objectivos avançados que a lho intelectual em geral no momento da formação das modernas I eo ogIaS
pintura, a poesia, a música ou a escultura só podem realizar a um nível pu- burguesas e no da sua superação. ,. . " _
ramente ideal) à arquitectura e à urbanística: as únicas capazes de lhes dar Trata-se, afinal, de analisar os siglllfIcados lllerentes a utopia com pro
concretização; jecto no início do século, " I o
c) uma terceira fase, na qual a ideologia arquitect6nica se transforma 'Fora dos parâmetros de uma tal análise, torna-se lOcompreenslve
em ideologia do Plano: fase que é por sua vez superada e posta em crise sentido do ciclo global da arquitectura mlode~na., 1 XIX toda a utopia
quando, após a crise económica de 1929, através da elaboração das teorias Pois todo o «trágico» da grande Ku tur o ~ecu ~ d ' , . total do
anticídicas e da reorganização internacional do capital e após o lançamento weimariana, só podem sobreviver numa tentativa e omlmo
do Primeiro Plano Quinquenal na Rússia soviética, a função ideológica da
arquitectura parece tornar-se supérflua ou limitada a desempenhar tarefas de futuroÁ improdutividade do trabalho intelectual é a culpa que a cultura oito-
retaguarda e apoio marginal. centista sente pesar sobre si, e que as ideologias, avança?as tê~ ~e, s~p~::~
As páginas que se seguem pretendem apenas traçar as linhas mestras Mudar a ideologia em utopia torna-se então um Imperativo ca ~g~nc f' s
de tal processo, sublinhando alguns dos seus aspectos essenciais, de modo a sobreviver a ideologia deve negar-se como tal, ro~per aS pr?pnasAormt~_
fornecer um quadro para futuras elaborações e análises mais circunstan- , , ' I t na «construçao do d estmo», au
cristalizadas proJectar-se llltegra men e " d 'd I 'a
ciadas. crítica da ideologia é, nesta medida, pr?jecto de um domlOlO a l eo Ogl
realizada sobre as formas do desenvolvimento" , " d _
Weber Scheler Pareto, Mannheim: nos 11lICIOS do seculo ~X,? e.s
mascaramento dos idola que entravam a decolage~ d~ ,uma ,~,acI~nahzaçao
lobal do universo produtivo e do seu domínio sOCial e I~entl lca ,o com? ,a
~ova tarefa histórica do intelectual. A Wertfreiheit webe~Jana, a~os o ,tr,a~l­
co desencadeamento proposto por Nietzsche:, é ? «~alllfes~o» a reje.lça?
mais radical de qualquer compromisso entre ClenCJa e ldeo!o~la, Wertfr~lhelt
é precisamente liberdade do valor: àgora, é o valor que e Visto comotlmlPe-
, " ,' " dever o do «autocon ro o»,
dimento, O estatuto Cientifico tem um UlllCO ,:. 'd - a
ue é «o único meio para evitar os equívocos, dlstlllgUlr com e~actl. a?
;elação lógico-comparativa da realidade c?m t,ipO~4 ideais em sentido 10g1CO,
da avaliação da realidade com base em ldeaIs»( ),

, ' /' E' d' T ' 1958 P 119 e !l/avoro


(24) Max Weber " Il melodo delle scienze storlCO-SOCLa I, mau I, unm.,
r ação ' b' , ' d 'deolo-
da cntlca we enana a I
inte/lectuale come professione, Idem 1966, Para uma genera IZ

41
4()
, ' d ' t ara a consolidação da reali-
o facto de aquela Wertfreiheit ter para Weber um significado dramáti- da justificação»: o seu ofiCIO ten e umcamen e p
7
co não deve ser ignorado, O intelectual, recusando o juízo de valor, aceita da de existente, tal como ela ée ) , " 'f d último
virilmente o seu próprio dever ser: a aceitação é em primeiro lugar reconhe- Pelo contrário para o «pensamento progressIvo», «o slgm Ica o ,
cimento do irracional que existe no sistema, do negativo que há nele, e que, de cada coisa sing~lar advém-Ihe exclusivamente d~ qua1quer outrda COIsa
, d I d utopta do J uturo ou e uma
enquanto inseparável do positivo, é assumido como tal. O problema - para que esteja à sua frente ou aCima e a, e uma dignificação do
Weber, para Keynes, para Schumpeter, para Mannheim - reside nos instru- norma acima do ser, enquanto no pensamento consex;a or a S ado ou
mentos capazes de fazer funcionar conjuntamente positivo e negativo (capi- particular é deduzida de qualquer coisa que ,:stá 2~tras dela, do pass
tal e parte operária do trabalho), de não permitir uma divergência dos dois daquilo que preexiste pelo .me~os ~md embnao>:(. ), estrutural da totalidade
termos, de realizar a sua complementaridade, Para todos eles, o tema domi- A utopia portanto nao e mms o que «vlsao ,
que existe e há-de vir a ~xistir»e9), transcendência do ~<dado» puro, «slste~,a
nante é o de um futuro em que todo o presente seja projectado, de um
domínio «racional» do futuro de uma eliminação do risco que este com- de orientação te~dente a rom~er os laço~o da orde~e~~:t:nt:;~ p~ra~~~~~~, a~
portaCZS), -los a um nível diferente e mms elevado( )', P~ra d se~volvimento, Para
E por este motivo que Mannheim é obrigado a propor uma versão crítica da ideologia é um dos factore~ ~mamlcl?~ ~~ i:dividualizável é a di-
mistificada do funcionamento e da realidade da utopiae6), ambos - tal como para Keynes - ~ umca rea I a, ara além das afirma-
Para Mannheim, os ideólogos constituem apenas uma «classe de cul- nâmica do desenvol~imen,to, A _utopta ded~an~he~~~ ~lobais no sentido da
tos» que funcionam como freischwebende lntellektuelle, como «pensadores ções do seu autor, e preflguraçao de mo e os mal , ortanto
realidade dada, A «cr,ítica ao pensam~nto con~~r;~~~r; f~~~~-~:niento di-
urna necessidade, um Instrumento destmdado a Tb' só poderá converter-se
gia cfr. K. Loewenstein, Beitrlige zur Staatssoziologie, Tübingen 1961 (em particular o ensaio Ue-
nâmico do sistema. A ruptura ~?nsta~t~ o eqUl I no ão racional dos confli-
ber das Verhiiltnis von politischen ldeologien und politischen lnstitutionen, in «Zeitschrift für Poli- numa «política científica»> antl-ldeologlca, numa soluç h 'do a I'ne
, 1' d o's de ter recon eCl -
tik», 1955), Nas obras de Pareto, de Max Scheler, de Weber, a crítica da ideologia - articulada tos gerados pelo própno desenvo vlmen~o" ~p 1 l) te
em diferentes correntes de pensamento e com um grau de autoconsciência variável - não tem rência daqueles conflitos ao processo dlalectlco do rea 'nheim _ a uto-
apenas o significado de uma adesão desencantada ao dado da realidade, em todo o seu cruel A contradição ainda existente no pens~n;e~to de Man o\í-
condicionalismo, mas também o de uma apropriação de um instrumento de luta tipicamente mar-
ia como modelo inteiramente inserido na, dm~mlca re~1 dos pr~~~!~~:d~ no
~co-económicos, e o seu ~ar~cter de an~eClPdaçao ~xper:~~~~~~ 1nt~lectual de
xista, invertendo-o sobre si mesmo. A redução do marxismo a ideologia permitiu pois que esse
tipo de crítica desferisse os seus ataques contra as bases teóricas de um materialismo histórico
mal compreendido com mais ou menos boa fé. De notar, em todo o caso, que em Pareto a futuro - está em consonanCla com o chma e to o o
ideologia - o «pensamento pis torcido» - não é mais que um modo de ser da acção e da «teori-
zação não científica»: está-se ainda no âmbito de uma recuperação do «preconceito», reconheci-
vanguarda dos primórdios do século ~Xh' ., t' indicado A utopia deve
Mas em Keynes e Weber o camm o ]a es a . d 'deoIo ia
do como tal (de resto, a recuperação final da irracionalidade da ideologia não é estranha sequer
a Weber). operar no domínio da programaçã~: d~ve abando~ar .~ t=[~â~Ope:i~oso o !
e S
) Cfr. Antonio Negri, La teoria capitalistica dello s/ato nel '29: John M. Keynes, «Contropia-
geral. Mannheim exprime a conSClenCla de um eSVl er étua reestrutura-
no», 1, 1968, pp. 3 e segs. único verdadeiro «perigo>: qu~ ameaça o ~rocesso ~:!s iI~trumentos de ac-
e b
) Referimo-nos, em particular, à distinção traçada por Mannheim entre «pensamento pro- ção do real - entre."
a raclOnahdade do pro]ecto, os I'
' I d a neces sl'dade do desenvo vlmen o,
t
gressivo» e «pensamento conservadof». «A maior parte das integrações que o pensamento pro- tu ação e a conSClenCla socla
gressivo admite face aos factos particulares - escreve - emanam da utopia racional e conduzem
a uma visão estrutural da totalidade que existe e há-de vir a existi!». Também a própria ideolo-
gia se pode orientar para «objectos que são estranhos à realidade e que transcendem a existência e 7) K. Mannheim, Das konservative Denken, cit.
actua!», mas nem por isso deixa de «contribuir para a consolidação da ordem existente, Uma tal (28) lbid.
orientação incongruente - continua Mannheim - só se torna utópica quando tende a romper os (29) lbid .
laços da ordem existente». De facto, «em qualquer período histórico houve ideias que transcen- . . a vez afirmada se transforma de novo
deram a ordem existente, mas que não absolviam a função das utopias: constituíam pelo contrá- (30) É importante notar que para Mannhelm_ a uto~la: um t ideologia ~ utopia que poderia ter
rio as ideologias mais ajustadas a esse período, na medida em que estavam harmoniosa e organi- em ideologia: estabelece port~nto ~ma relaçao. dlalectlc~~;/~ carácter profundamente estrutural
camente integradas na visão prevalecente da época e não sugeriam possibilidades revolucioná- levado a reflectir, mesmo. no mtenor do seu dlscurs~ s h'm são uma tentativa de resposta à
rias». Karl Mannheim, Das konservative Denken, «Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpoli- da própria utopia. É assim claro que as t.eses d~ ~~nlde:olo ia Alemã, no próprio Manifesto
tik», 1927. Mas consultar também, de Mannheim, ldeologie und Utopie, Frankfurt a. M. 19523 , evidente leitura da funClonahdade ~a utopia contida da Uto i: à Ciência de Engels. Por ou~r~s
do Partido Comunista, e na Evoluç~o ~o. SOCl~hsmo, ~sário partindo de premissas UtOPI-
onde é cabalmente exposta a teoria da utopia como tendência em si irrealizável, capaz de rom-
per as fronteiras da realidade existente «para deixá-la livre para se desenvolver na direcção da
palavras, a teoria do «salto revoluclonano», ViSto como nI:~e
cas revela-se intimamente ligada à praxls soctal-democratlca
_ como é facilmente verificável
ordem sucessiva» (op, cit., p. 201)). É significativa a identificação do momento revolucionário nu~a análise atenta da história dos últimos cinquenta anos. .'
com a estrutura ideológica da utopia. Sobre o tema, cfr. Gõran Therborn, Critica e rivoluzione. . . ' H d .. I buch der SozlOlogle, Stuttgart 1931; e
La Scuola di Francoforte, Laterza, Bari 1972. (") Cfr. K. Mannheim, WissenssozlOlog 1e , m a.n . wor er 2
Max Weber, Gesammelte politische Schriften, Tubmgen 1958 .
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