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portuguesa (Decreto Legislativo Nº 54 de 1995).

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qualquer forma ou por qualquer meio, mecânico ou eletrônico, incluindo
fotocópia e gravação, sem a expressa permissão da editora.

Editora – Catia Mourão


Capa – Jéssica Gomes/Magic Capas
Diagramação – Catia Mourão
Revisão – Monique Ferraz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Mendes, Juliana

Porque fechei os olhos: vol.1 – 2. ed


Rio de Janeiro: Ler Editorial, 2017

ISBN 978-85-68925-**-*

1. 1. Ficção, Romance 2. Literatura brasileira


I. Título. II série.

CDD B869.3 CDU 82-3


Índice para catálogo sistemático:
1. Ficção: Romance, Literatura brasileira 869.3

Foi feito o depósito legal.


Direitos de edição:
Livro 1

Juliana Mendes
2ª Edição
Rio de Janeiro - Brasil

3
005 Prólogo
007 Capítulo 1 216 Capítulo 36
014 Capítulo 2 225 Capítulo 37
018 Capítulo 3 229 Capítulo 38
024 Capítulo 4 235 Epílogo
031 Capítulo 5 237 Agradecimentos
034 Capítulo 6
041 Capítulo 7
046 Capítulo 8
051 Capítulo 9
056 Capítulo 10
060 Capítulo 11
070 Capítulo 12
077 Capítulo 13
083 Capítulo 14
088 Capítulo 15
094 Capítulo 16
100 Capítulo 17
110 Capítulo 18
116 Capítulo 19
121 Capítulo 20
130 Capítulo 21
136 Capítulo 22
140 Capítulo 23
151 Capítulo 24
157 Capítulo 25
163 Capítulo 26
168 Capítulo 27
173 Capítulo 28
176 Capítulo 29
181 Capítulo 30
186 Capítulo 31
191 Capítulo 32
196 Capítulo 33
202 Capítulo 34
213 Capítulo 35
aren, querida, você precisa comer, está só pele e
osso!
Mamãe está falando a um tempo que parece infinito,
mas a minha mente permanece incapaz de processar qualquer
informação.
— Ano que vem vai voltar para a escola, ouviu? E você estava
tão animada com o balé... Não devia desistir disso. Entenda minha
filha: eles não vão voltar. Não adianta se trancar desse jeito, já está
na hora de fazer alguma coisa. Eu preciso de você, somos tudo o
que temos agora, uma à outra. Chega de ficar dentro de casa, você
não vai perder a sua vida também. Eu não vou permitir.
As palavras de mamãe continuam pairando sobre a minha
cabeça, mas a sua voz parece vir de longe. Não tenho forças para
responder. O sofrimento, dentro de mim, não diminuiu com o
passar dos meses. Dizem que o tempo cura tudo, mas
definitivamente não é verdade.
Há dores que nem o tempo é capaz de curar.
A minha vida acabou naquela tarde. Desde então, não sei como
ainda consigo respirar. A única coisa que sou capaz de sentir é essa
apatia, que me mantém vivendo, um dia após o outro. Não consigo
reagir a nada. Não consigo mais chorar. Eu olho ao meu redor e só
enxergo escuridão, um breu sem fim, do qual não posso sair.
Sei que mamãe precisa de mim. Ela também está sofrendo e
sozinha. Apenas isso me impede de tomar uma atitude extremada.
O melhor que posso fazer é me manter viva. Por ela. Não tenho
forças para nada, além disso. Não tenho ideia do que fazer de agora
em diante.
Adoraria dormir e nunca mais acordar.
Só gostaria de poder fechar os olhos...

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perto o estômago, na tentativa de amenizar a dor,
enquanto espero o antiácido fazer efeito. Termino de
fumar, com a testa encostada no vidro frio da janela
da sala, observando as pessoas e carros passando, apressados, lá
embaixo. A calmaria do 13º andar, não combina em nada com a
vista dinamizada que tenho agora, de West End — Downton. Está
tudo silencioso e monótono ao meu redor.
Decido ligar o aparelho de som, e No Surprises começa a tocar.
Ouvir um pouco de Radiohead deve ajudar o entardecer a ficar
ainda mais soturno. Tento me lembrar se comi alguma coisa, além
da banana com aveia do café da manhã. A pergunta não é
despertada pelo meu estômago — não costumo sentir fome —, mas
pela imagem de Andrew me perguntando se comi direito. Como ele
consegue ser irritante! Na condição de melhor amigo, se acha no
direito e, talvez, na obrigação de se preocupar em demasia comigo,
ao ponto de me sufocar muitas das vezes. Acredito que isso se dê,
especialmente pelo fato de eu não ter uma família que se preocupe.
Pelo menos, os oito anos de amizade me permitem intimidade
suficiente para mandá-lo à merda, quando me dá vontade.
Andrew e eu nos conhecemos na escola, quando entramos na
Pattison High School. Por se tratar de uma instituição privada, e eu
ter conseguido bolsa de estudos, frequentemente me sentia
desajustada e diferente. Era tímida, cabisbaixa e minhas roupas
eram predominantemente adquiridas em brechós e lojas de
departamentos. Definitivamente, não me encaixava no padrão das
diversas garotas deslumbrantes daquele lugar, motivo pelo qual
passava muito tempo na biblioteca, onde me sentia segura e
confortável. E foi brigando pelo último exemplar de Alice, que nos

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conhecemos. Andrew era um típico NERD, frequentador assíduo da
biblioteca. Nossa empatia foi imediata, e não nos desgrudamos
mais. Lewis Carroll1, despretensiosamente, nos uniu. Duas
criaturas estranhas, que encontrariam uma na outra o apoio
suficiente para fazer os anos passarem menos penosos.
Quando fomos para a universidade — Andrew para estudar
Administração e eu para estudar Marketing —, nossa amizade não
perdeu a força. Mantivemos contato o tempo todo, por e-mails ou
mensagens de texto, e nos encontrávamos sempre que o volume
de afazeres acadêmicos permitia. E, hoje, estamos aqui,
trabalhando e morando no coração de Vancouver, há apenas quinze
quilômetros um do outro.
Andrew trabalha em uma empresa especializada em
desenvolvimento de produtos tecnológicos, e eu trabalho em uma
pequena agência de publicidade e propaganda. A vida de
publicitária não é bem o que eu esperava, mas dá para pagar as
contas, e ainda sobra algum.
Hoje é dia de tomar uma cerveja com Andrew. Saímos todas as
quartas e sábados. Quero dizer, não necessariamente, às vezes
ficamos na minha casa mesmo, bebendo, conversando, jogando
baralho e vendo filmes. E, na verdade, quarta-feira foi ontem, mas
como precisei trabalhar até tarde para cumprir o prazo de entrega
de uma campanha, adiamos o encontro para hoje.
Olho no relógio de pulso, e ainda faltam duas horas para ele
chegar. É cedo para me vestir. Só de pensar em me arrumar já é,
por si só, desanimador. Meu estilo é muito básico, talvez até
demais. É a melhor forma de passar despercebida pela vida.
O celular desperta, me lembrando da reunião de trabalho que
teremos amanhã, para a apresentação de um possível novo cliente.
Não entendo todo o furor em torno disso. A semana inteira foi de
burburinhos dentro da empresa. Parece que a conta é grande e, se
pegarmos, será um grande salto para a Weiss Publicity & Dreams.
Aposto que é mais uma propaganda para vender esteiras para tias
gordas, que se cansaram de seus cabides convencionais.

São 20h45min, e Andrew aperta cinco vezes o interfone. É o


nosso código. Abro sem perguntar quem é, deixando a porta de
entrada entreaberta, enquanto vou à bancada da cozinha, colocar

1- Lewis Carrol: romancista e autor de Alice no País das Maravilhas, foi um dos
precursores da poesia de vanguarda.
os cigarros, o isqueiro, a carteira e o celular na bolsa. Não passa
muito tempo, e ele aponta, com seu familiar sorriso, como se não
tivesse passado pela tortura de ter sobrevivido a mais um dia
inteiro. Nunca vi alguém ser tão sorridente e bem humorado ao final
do dia! Dou uma risada irônica, como se perguntasse o motivo de
tanta empolgação. Andrew, como de costume, ignora a minha
provocação.
— E aí, pronta?
— Sim. Você não caprichou demais para ir ao Snooker?
Andrew está de calça jeans preta, camiseta impecavelmente
branca — como ele consegue? —, camisa preta de botões, sapatos
pretos e o cabelo com aspecto molhado, provavelmente pelo uso
de gel. É, indiscutivelmente, bonito e, quando está arrumado,
chega a ficar atraente. Não sei como se mantém solteiro por tanto
tempo.
Vendo suas roupas, me sinto mal arrumada na minha calça
jeans, blusa de alcinha branca, jaqueta preta, sapatilhas pretas e o
cabelo preso em um coque improvisado.
Andrew dá de ombros e sorri:
— Vou considerar isso um elogio, obrigado.
Reviro os olhos e pego a minha bolsa, fazendo um sinal para
sairmos e passando a mão nas chaves.
Caminhamos lado a lado, enquanto Andrew me conta sobre um
novo negócio que a empresa na qual trabalha está fechando com
uma importante parceira. Tento simular algum interesse, apesar de
não entender muita coisa do seu ramo de atuação. Acredito não ter
muito sucesso, pois ele parece encurtar a história, propositalmente.
— Alguma propaganda nova a caminho, para que eu veja e me
lembre do seu humor ácido?
— Amanhã temos uma reunião com um novo cliente. Parece que
a agência que cuidava do marketing não correspondeu bem às
expectativas, e ele está procurando uma “cara nova para suas
campanhas” — enfatizo as últimas palavras, desdenhando com a
voz.
— E qual o produto da vez?
— Não disseram. No mínimo, mais um pacote de ração para
cachorros fofinhos — respondo, sem esconder meu desânimo.
Andrew passa o braço pelos meus ombros.
— Bom, amanhã é amanhã, então vamos aproveitar a noite de
hoje e encher a cara, Geller — diz, já abrindo a porta do bar.
O Snooker é nosso velho conhecido, já que o frequentamos pelo
menos uma vez por semana, há mais de um ano. É um lugar não

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muito grande, com uma mesa de sinuca imponente no centro, bem
em frente ao balcão. As mesas e cadeiras ficam encostadas ao redor
do bar, nas grandes janelas de vidro temperado. A luz é baixa, com
alguns lustres avermelhados pendendo do teto, dando certo ar de
taverna ao ambiente. No balcão, Travis nos recebe com seu
característico meio sorriso.
— E aí, minha dupla preferida, o que vai ser hoje?
Travis é alto, muito alto mesmo, tem o corpo truculento, cabeça
raspada, um bigode grosso e avermelhado, e braços tatuados.
Parece gostar de trabalhar no Snooker. Ou apenas está passando
pela vida, sem questionar.
Assim como eu.
— E aí, T.! O de sempre — responde Andrew.
Travis coloca duas cervejas sobre o balcão. Brindamos e dou um
longo gole, fechando os olhos e deixando a bebida descer
suavemente pela garganta, aproveitando a sensação.
Ah, eu preciso mesmo disso hoje!
Abro os olhos e Andrew me observa, sorridente.
— Sede, hã? Vai com calma, que hoje não quero ir embora cedo.
Aliás, você comeu?
Começou!
— Um sanduíche, antes de você chegar — respondo, pensando
nos três biscoitos indigestos que verdadeiramente comi. Andrew
não precisa saber.
— Melhor do que nada — e balança a cabeça em aprovação.
— Olha, vagou a nossa mesa, vamos! — tento distrai-lo, para
evitar mais um sermão sobre a minha alimentação.
Sentamos e Andrew começa a me contar sobre um vizinho que
decidiu virar massagista e, por isso, ultimamente o prédio tem
ficado o dia todo repleto de gente estranha, entrando e saindo. Ele
reclama do quanto isso pode ser perigoso. Tiro sarro da sua
preocupação excessiva, e rimos muito. A conversa passa a fluir
amena e agradável, como sempre.
Lá pela quinta cerveja, quando já estou bem mais relaxada e
rindo sem parar das piadas de Andrew, recebo um aceno de Travis.
Confirmo se é para mim que está apontando, e ele faz sinal positivo
com a cabeça. Vou até o balcão. Ele me entrega uma cerveja que
tento recusar, uma vez que a minha ainda está cheia.
— Foi cortesia daquele rapaz ali — ele aponta para um homem
sentado à minha direita, no último banco do balcão. Olho de lado
para ele, que sorri e levanta a sua garrafa para mim, a guisa de
brinde.
— Ele não viu que eu estou acompanhada?
— Bom, ele me perguntou se Andrew é seu namorado, e eu disse
que não. Então, você não está realmente acompanhada, está? —
Travis responde, com os olhos cheios de boas intenções.
Olho novamente para o rapaz. É bem bonito. Deve ter por volta
de uns 25 anos, cabelos loiros e despenteados de uma maneira
sexy, olhos claros e um belo sorriso. Daria uma boa trepada
ocasional, se o seu sorriso não me parecesse bondoso demais.
Parece ser o tipo de pessoa que se envolve facilmente, e não estou
interessada. Sinto um pouco de pena. Ele nem imagina o quão
incapaz eu sou de corresponder ao interesse de quem quer que
seja. O quanto estou morta por dentro.
— T., agradeça a ele, mas não estou interessada. Estou
acompanhada — e me viro na direção de Andrew, que nos observa.
Faço um sinal com a mão, indicando que vou ao banheiro.
Tranco a cabine, querendo me esconder do mundo. Lembranças
fragmentadas me vêm à mente, memórias de uma felicidade
experimentada tão brevemente e que me foi arrancada, com tanta
estupidez.
Sinto um enjoo forte, e um nó na garganta me lembra de que eu
sou incapaz de chorar. É um nó permanente, que eu tento
insistentemente desfazer com conhaque, cerveja e cigarro, mas
nada adianta. Acho que é por isso que não consigo comer direito. A
comida sempre se acumula na garganta, deixando uma sensação
sufocante, quase insuportável.
Quando volto para a mesa, Andrew pergunta, antes mesmo de
eu me sentar:
— Outro admirador?
Dou de ombros e tomo um gole da minha cerveja.
— Sabe, você deveria começar a viver... Quantos anos já faz?
Se você tinha quinze... Já são nove anos! — diz, assustado. — Não
acha que passou da hora de superar, de começar a olhar à sua volta
e se abrir para o mundo, para as possibilidades? Nem digo por
causa daquele babaca do balcão, que claramente não serve para
você, mas precisa abrir o seu coração, Cake. Você se arrastou como
uma sombra na escola. Depois, fez o mesmo na universidade. E o
faz ainda hoje. Você é uma das pessoas mais solitárias que eu
conheço.
Sempre voltamos a esse assunto. Andrew não entende que não
quero companhia. A dele já está de bom tamanho.
Um detalhe em seu discurso me chama a atenção, e pergunto:

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— Como você sabe que aquele cara não serve para mim? — e
levanto a sobrancelha direita.
— Ele só quer entrar na sua calcinha — Andrew retruca,
parecendo ligeiramente desconfortável.
— Nesse caso é que serve mesmo — digo, dando uma risada.
Ele me olha desolado, sem retrucar. Andrew sabe que não quero
relacionamentos para além de uma noite. Não sei a razão de ainda
se importar.
Vejo que sua expressão mudou e decido tentar melhorar seu
humor.
— Andy, você se esqueceu de uma parte fundamental, quando
descreveu a minha parca existência em poucas palavras: eu não
sou sozinha, eu tenho você! — e sorrio, colocando a mão por cima
da dele, que está repousada sobre a mesa. Ele entrelaça os nossos
indicadores, gesto tão comum entre nós, e com uma expressão de
profunda tristeza diz, entre os dentes:
— Você sabe que tem. Nem imagina o quanto... — e dá um longo
suspiro. — Vou ao banheiro.
De vez em quando, Andrew solta frases enigmáticas como essa,
e nunca entendo o que quer dizer. Só pode ser para me provocar,
para me fazer reagir de alguma maneira. Somos mais do que
irmãos. Talvez, uma espécie meio torta de almas gêmeas.
Olho em volta do bar e percebo que a cerveja está fazendo seu
esperado efeito. Sinto-me tonta e rodopiante. O rapaz bonito do
balcão ainda está lá, só que, agora, mais desfocado e conversando
com outra garota, igualmente desfocada. Sorrio. Tomara que ele se
dê bem dessa vez.
Quando volta do banheiro, antes que eu diga que devemos ir
embora, Andrew faz sinal para Travis fechar a conta. Ele se senta
de volta à minha frente e diz, sorrindo:
— Acho que já bebemos demais por hoje!
O bem humorado Andy está volta. Respiro aliviada e confirmo
com a cabeça.
Viu? Almas gêmeas.
Seguimos andando de volta para o meu prédio, onde Andrew me
deixará e pegará um táxi. Estou bocejando sem parar e de modo
nada elegante, o que o faz rir e desdenhar da minha fraqueza para
o álcool.
Chegamos à portaria, e Andrew pergunta:
— Sábado, então?
— Precisa confirmar toda vez? — bufo e reviro os olhos.
Ele bufa de volta, o que sempre faz depois dos meus comentários
ácidos.
— Venho à tarde. Podemos ver um filme na sua casa e sair
depois.
— Beleza.
Dou um abraço rápido de despedida, mas ele me aperta e me
levanta. Seu adeus costumeiro. Diz que faz isso para controlar o
meu peso e ver se não estou emagrecendo demais.
Já no apartamento, sento no sofá e abro a bolsa, procurando por
um cigarro. Evito fumar com muita frequência perto de Andrew,
pois seria mais um sermão a respeito dos malefícios do cigarro. Vou
para a cozinha e abro a geladeira. Enrolo duas fatias de blanquet
de peru e enfio na boca. Pego um copo de água gelada, tomo de
uma vez e debruço sobre o balcão frio da cozinha, curtindo as
últimas tragadas.
No quarto, visto uma camiseta velha para dormir e um short,
pensando no quanto pareço indesejável nestes trajes. Tudo bem,
até sei que não sou feia. Nem bonita. Sou do tipo normal, creio eu,
um estilo “nada demais”. Tenho 1,70m, 58 kg, olhos e cabelos
castanhos, nariz e boca pequenos e proporcionais ao rosto fino. Meu
corpo é firme, mas sem exageros, seios e bumbum de tamanho
comum, quadril não muito largo, e cintura marcada. Apenas a
minha pele é muito pálida, e acho que seria bom ser um pouco mais
corada.
Se o rapaz do balcão do Snooker me visse agora, no lugar de
uma cerveja me daria um calmante, só para que eu dormisse mais
rápido e o poupasse dessa visão. Apesar de que, não acredito que
estava muito melhor usando jeans e camiseta.
Ajusto o rádio relógio para despertar às sete horas, percebendo
que já passam de duas da madrugada. Ainda bem que cinco horas
de sono é mais do que costumo conseguir dormir. Deito, e me cubro
com lençol e colcha até os ombros, deixando um cobertor leve sobre
as pernas. Estava mais quente na rua, mas aqui no alto da minha
torre, sinto um frio leve me gelando as bochechas.
Eu sempre sinto frio à noite, especialmente na hora de dormir, e
nunca sei distinguir se ele vem de fora ou de dentro de mim.

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despertador toca, implacável, anunciando o começo do
meu dia. Abro os olhos, atordoada, um após o outro, me
acostumando com a claridade que vem da janela. Sento na
cama e demoro alguns minutos para me levantar, constatando que
estou melhor do que esperava. Nada de sintomas de ressaca.
Levanto e deixo a cama sem arrumar, já que moro sozinha,
ninguém virá aqui em casa hoje, eu pago o aluguel e eu posso.
Deixo um café coando na cafeteira, enquanto vou ao banheiro
me aliviar e tomar uma ducha rápida. Enquanto tomo banho, penso
no quanto sou grata pela equipe de criação da WP&D não precisar
se vestir de maneira demasiadamente formal para as reuniões.
Pode ser uma das vantagens de se trabalhar em uma pequena
empresa, que quer passar a imagem de moderna e despojada.
Talvez a única.
Depois de escovar os dentes, olho para o espelho do armário de
remédios e vejo que também não estou com aspecto de ressaca.
Apenas o semblante triste de sempre, com as costumeiras olheiras
em seu devido lugar.
Escolho uma calça de sarja verde escura, um conjunto rosa
salmão de blusinha de alcinha e casaquinho de crochê por cima,
além de um par de sapatos baixos, de tom nude. Isso é o melhor
que posso fazer. Ainda bem que não tenho de me preocupar com o
penteado. Herdei esse cabelo prático do meu pai: liso e com
caimento natural. A diferença, é que o dele era curtinho e o meu
vai até o meio das costas. Ainda assim, deixar secar sozinho é mais
do que suficiente.
Penso em meu pai com a amargura proveniente da saudade. Há
muito dele em mim. Muito além dos cabelos, que agora seco
vigorosamente com a toalha. Inevitável pensar no fatídico dia em
que ele e o meu amor foram arrancados de mim, junto com a minha
vontade de viver, a minha alegria e os meus sonhos.
Vou até à penteadeira, passo um leave-in e uso um pente largo.
Coloco um batom cor de boca. Estou pronta para a reunião.
Antes de sair, bebo uma grande xícara de café forte, amargo e
sem açúcar. É assim que eu gosto. Ponho duas fatias de blanquet
de peru enroladas na boca e mastigo, com meu estômago
protestando um pouco pelas bebidas de ontem à noite. Tomo um
antiácido e pego as minhas chaves, dando uma conferida na bolsa.
Chego à empresa às oito e meia em ponto, sem me preocupar
em achar vaga para estacionar, uma vez que o meu compacto cabe
em qualquer lugar. O trânsito estava tranquilo, e dirigi ouvindo
Coldplay essa manhã. Passo pela recepção e cumprimento Sabrina,
nossa recepcionista, que já está em seu posto de trabalho. Sigo
para a sala de criação.
Nossa sala é pequena, mas aconchegante e com os móveis bem
distribuídos, inclusive as três mesas de trabalho: uma em frente à
porta, onde trabalha Robert Creag, outra logo ao lado da de Robert,
onde eu fico, e a última em frente à minha, ocupada por Gabriela
Gonzalez.
Robert tem 33 anos, é alto, magro, de cabelos grandes e
escuros, presos em um rabo de cavalo. Ele é publicitário e toca
guitarra na noite de Vancouver, com a sua banda de rock. Sempre
me chama para assistir aos shows, mas ainda não me senti
compelida a ir. Adoro Bob, apesar de ter alguma coisa nele que,
não sei explicar... Algo me deixa constrangida, com certa
frequência, quando estou em sua presença.
Gabriela é a designer da equipe. Uma latina lindíssima, da
mesma idade que eu. É morena, olhos castanhos e voluptuosos,
cabelos negros, abaixo dos ombros e ondulados, e uma boca
carnuda, que está sempre vermelha. É dona de uma alegria e
vivacidade extenuantes. E é super, super gay. Sua namorada se
chama Maria, e elas moram juntas há quatro anos, desde que se
mudaram para Vancouver, quando Gabriela veio terminar a
faculdade, e Maria percebeu que não aguentaria ficar longe dela.
Gosto da minha equipe de trabalho. É pequena, mas
competente, objetiva, assertiva e muito agradável de conviver.
Mesmo com a estranheza eventual que sinto, ao lado de Bob. Muitas
vezes precisamos trabalhar até tarde, especialmente em época de
fechamento de campanha e, ao lado de Bob e Gabs, isso se torna
muito mais fácil.

15
Entro na sala, sendo a última a chegar. Cumprimento os dois, e
Bob, na intenção clara de me constranger, comenta:
— Uau, está uma gata hoje hein, Geller? — e sorri, ao mesmo
tempo em que Gabs passa por trás de mim, me dando um tapa na
bunda.
Eles constantemente fazem piada pelo fato de nunca me verem
com alguém, com a exceção de Andrew. Depois de quase dois anos
de agência e de falar um milhão de vezes, compreenderam que
Andy é apenas meu amigo.
— Vai à merda, Bob — resmungo, olhando feio também para
Gabs.
— Aí, Gabs, a Srta. Karen-Adoro-Um-Elogio-Geller está bem
humorada hoje! — Bob dá uma gargalhada, e Gabriela abre um
sorriso majestoso.
É danada de bonita mesmo.
— Então, qual é a desse cliente? Não sabemos nada ainda? —
pergunto, de maneira urgente, procurando mudar de assunto.
— Nada — diz Gabriela, sentando no tampo da minha mesa. —
Não sei para que tanto mistério. Como se fosse algo grande e
suntuoso. Aqui, nunca é algo grande e suntuoso — e damos risada
do seu comentário.
O telefone de Bob toca e Sabrina avisa que já podemos nos
encaminhar para a reunião.
A sala de reuniões também é pequena, mas decorada com muito
bom gosto. Às vezes me pergunto quem cuidou da decoração da
empresa. A recepção, por exemplo, é pequena, com as paredes
pintadas em branco gelo, um balcão de granito cinza e madeira
escura, um sofá de três lugares quase preto, uma poltrona fazendo
conjunto, uma mesinha de centro de mogno, com um vasinho de
flores pequeno repousando sobre ela, um bebedouro de água
mineral no canto e uma TV de tela plana, de 42 polegadas, instalada
na parede, de frente para o sofá.
A sala de reuniões, também de paredes branco gelo, possui uma
mesa de mogno grande, com um tampo central negro e
envernizado, e é cercada de doze cadeiras pretas, estofadas e
muito confortáveis. De frente para a mesa fica uma tela branca,
onde fazemos a reprodução de slides, e há um bebedouro de água
mineral no canto da sala.
Devidamente instalados em suas cadeiras, já estão o diretor da
empresa, Carl Weiss, o vice-diretor e seu irmão, Gunther Weiss, e
o assistente da diretoria, o simpático, amigo e querido por todos
nós, Jake. Cumprimentamos a todos, e Bob se senta do lado
esquerdo de Jake, seguido de Gabs e eu.
Há um clima de tensão no ar. Que cliente é esse, afinal, que está
deixando todos sobressaltados? Coloco o meu bloco de anotações
sobre a mesa e observo que, devidamente arrumados em uma
bandeja, estão uma garrafa térmica de inox, oito xícaras de café,
com pires e colherinhas, um açucareiro e uma jarrinha de leite.
Jake olha para mim, me dando seu sorriso doce de sempre.
Gosto muito dele. É o nosso porta voz com a direção, uma vez que
a família Weiss é, quase sempre, intratável.
Às nove horas em ponto, a porta da sala de reuniões se abre e,
no lugar da nossa recepcionista polida de sempre, entra uma
Sabrina vermelha, tropeçando e desconcertada, como nunca vi
antes. Sua postura impecavelmente elegante, se perde no meio de
seu tailleur cinza chumbo e scarpins pretos. Gabriela e eu trocamos
um olhar divertido, segurando o riso. Sabrina tenta se recompor do
que parece ter sido um enorme susto, abrindo espaço ao conduzir
três homens pela porta.
Enfim, nossos clientes chegaram.

17
primeiro a entrar é um homem por volta de 65 anos, de
cabelos grisalhos e ralos, mas bem arrumados. Está um
pouco acima do peso, mas nada alarmante. Acho que
parece até bem, para a idade. Está vestindo um terno cinza, com
gravata bordô, camisa cinza e sapatos marrons, envernizados. Tem
um rosto redondo e sorridente, e vou com a cara dele de imediato.
O segundo homem se parece muito com o primeiro, porém mais
novo e com mais cabelo. Deve estar na casa dos cinquenta anos.
Está vestindo um terno preto, de risca de giz, com gravata preta,
camisa branca e sapatos pretos. É igualmente educado, porém, um
pouco menos sorridente. Devem ser irmãos.
Quando finalmente vejo o terceiro homem, posso compreender
todo o furor que desconcertou Sabrina. Meu coração dispara, e
minhas mãos começam a suar. Ele é lindo! Não, lindo é um
eufemismo. Ele é escandalosamente lindo! Deve estar na faixa dos
trinta anos, é alto, esguio, forte de um jeito sutil. Tem os cabelos
de um tom claro de castanho lindíssimo, salpicado de leve por
alguns poucos fios cinzentos. O fato de serem jogados e desfiados,
dá um ar jovem ao conjunto. Os olhos são azuis e brilhantes, e a
barba é rala, por fazer. Está de terno preto, camisa branca, aberta
no colarinho, destacando o começo de um pescoço forte e largo.
Um homem perturbadoramente bonito, que me faz apertar as coxas
por baixo da mesa, quase em um ato involuntário. Tão lindo, que
até Gabriela está de queixo caído. Um homem que conseguiu deixar
a Srta. Gonzalez boquiaberta. Isso é um feito e tanto!
Os três nos cumprimentam calorosamente, e Gunther inicia a
apresentação, fazendo uma breve introdução acerca da empresa,
não deixando de citar nossos trabalhos mais significativos. Ele
sempre começa as reuniões dessa forma e depois deixa que cada
um se exponha, descrevendo formação e função. Já perdi as contas
de quantas vezes me apresentei ao longo desses dois anos,
portanto, é um texto decorado. Porém, hoje engasgo enquanto
Gabriela fala, pois serei a próxima, e não sei se aguento os olhos
desse homem perturbador sobre mim por muito tempo. Ainda mais
depois dos nossos olhares já terem se cruzado algumas vezes,
enquanto o restante dos meus colegas se apresentava.
Sinto o meu estômago fazendo pequenos arabesques2
desengonçados.
A hora fatídica acaba de chegar, assim que dou um gole no copo
de água que, providencialmente, foi colocado à minha frente por
Sabrina, logo no início da reunião.
— Bom dia, meu nome é Karen Lily Geller. Sou publicitária, me
formei há dois anos na University Of British Columbia. Concluí a
minha graduação concomitante ao MBA, que cursei nos últimos dois
anos de universidade.
Nesse momento, escuto um sussurro de aprovação, mas não me
atrevo a olhar de onde veio. Temo encontrar um certo olhar. Sinto
um fio gelado de suor escorrendo pelas minhas costas, que ignoro
ao continuar o meu discurso:
— Estou na Weiss Publicity & Dreams há dois anos, integrando a
equipe de criação, ao lado do Sr. Creag e da Srta. Gonzalez. Estive
envolvida na concepção dos cinco projetos preciosamente
lembrados pelo Sr. Weiss no início da reunião, então, acredito ser
desnecessário perturbá-los com repetições. Estou aqui para somar
e me coloco à disposição para o desenvolvimento da campanha que
estão por nos apresentar. Espero que possamos trabalhar juntos, e
que o resultado seja satisfatório para todos — e respiro fundo,
terminando a minha apresentação.
Olho para eles, e o homem perturbador está me encarando, com
a sobrancelha erguida. Eu sinto o meu rosto queimar e abaixo os
olhos, fitando as minhas mãos suadas, que se entrelaçam em meu
colo.
Os clientes, então, se apresentam. O homem mais velho é,
ninguém mais, ninguém menos, do que Jack Newman, o dono da
Newman Construction S.A, a maior empresa de construção do
Canadá, há mais de trinta anos como líder de mercado. Engulo em
seco e finalmente compreendo a grandeza e suntuosidade com a
qual esse cliente foi tratado e, das quais, Gabriela, Bob e eu,

2-Arabesque: é uma posição do ballet clássico, onde o corpo do bailarino se apoia


em um pé e a outra perna fica estendida atrás do corpo, em linha reta.

19
desdenhávamos agora a pouco. Jack e Patrick Newman são irmãos
— Rá! — e dirigem a construtora, porém, Jack está querendo se
aposentar e tirar um longo tempo “descansando os ossos no litoral”,
conforme suas próprias palavras. Para tanto, entrará em seu lugar
no comando da empresa, ninguém menos do que seu filho, o
engenheiro e super competente Paul Newman. No momento em que
Jack passa a palavra para ele, meu coração bate acelerado e com
tanta força, que fico com medo de alguém ouvir.
— Bom dia a todos. Primeiramente, gostaria de agradecer as
palavras e a confiança do meu pai. Se hoje sou uma pessoa
merecedora e capaz de tamanha responsabilidade, é por causa
desse homem, sentado aqui ao meu lado.
Suspiro com essa demonstração de afeto e orgulho, declarada
ao pai.
— Assumir a empresa da nossa família, para mim, está além de
responsabilidade. No auge dos meus 31 anos — Rá —, posso dizer
que acompanhei de perto, mesmo quando criança, sua concepção
e desenvolvimento. Assisti suas realizações dentro de casa e nos
olhos do meu pai. Essa empresa é a vida dele, portanto, representa
para mim afeto, amor, carinho e família. Foi assim que sempre
trabalhamos.
A paixão avassaladora em sua voz, não apenas pelo pai, mas
pela empresa e o seu trabalho, é palpável e emocionante. Isso
mexe com qualquer ser humano que não tenha uma pedra no lugar
do coração. Talvez, por isso, por mais que tente demonstrar
interesse, Carl parece não absorver realmente nenhuma palavra do
que Paul Newman diz.
— Gostaria de explicar os objetivos que temos para os próximos
anos, e onde vocês poderiam entrar. Mas tenho uma pergunta a
fazer para a Srta. Geller em primeiro lugar, se me permitem.
Arregalo os olhos e tenho a certeza de que as minhas bochechas
estão em uma cor próxima do roxo. Meu estômago, agora, se
contorce em seguidos battements frappes3.
— A Srta. realmente associou o MBA com a graduação?
Respiro fundo. Eu posso responder a isso.
— Sim, Sr. Newman, a minha apresentação é uma síntese
resumida e verídica dos meus anos acadêmicos — enfatizo, me
sentindo ofendida por ele achar que eu poderia estar mentindo.

3-Battement Frappe: é um movimento de ballet clássico. A palavra battement é de origem francesa,


que significa "bater". No battement frappé, os movimentos do pé vão de uma posição flexionada ou ao
lado do tornozelo da perna de apoio, estendendo-se até uma posição reta, rapidamente e com força e,
ao fazê-lo, bate no chão.
Acredito que Paul percebe o meu desconforto, pois
imediatamente procura se retratar:
— Srta. Geller, peço desculpas se fui indelicado e deixei a
impressão de que duvidei das suas palavras. Apenas fiquei
interessadíssimo e gostaria de saber como isso é possível — diz,
aparentando estar realmente curioso.
Aprenda os benefícios do cocktail de café, Coca-Cola e
energético, para não perder tempo dormindo, Sr. Newman, e o
senhor consegue uma graduação, um MBA e uma gastrite
poderosa.
— As minhas notas eram acima da média, e entrei com o pedido,
mesmo sabendo que era muito difícil de conseguir aprovação.
Porém, após avaliação curricular, consegui uma indicação do reitor
da universidade para que um dos orientadores me aceitasse, antes
da conclusão da graduação. Sabe como é, ninguém diz não ao reitor
— digo, e todos dão uma gostosa risada, fazendo com que eu me
sinta mais confiante. — A indicação, associada à decisão de abrir
mão de todo o resto na minha vida, inclusive do sono, pareceu
traçar o caminho certo para mim — e as risadas retornam, agora
em um grau sonoro maior.
Rá!
— Então a Srta. é graduada em Publicidade e Propaganda, e
possui MBA em...
— Marketing...
— Ah, sim.
— ...e Gestão de Negócios.
A sala se cala. Ouço apenas a minha respiração e um “GLUB”,
vindo do galão de água.
— Duas especializações? — Paul Newman pergunta, incrédulo,
com os olhos arregalados e a boca aberta.
— Não é tão absurdo, uma é quase complementar à outra. É
como se eu tivesse feito uma só, apenas um pouco mais extensa —
respondo, nervosa e corada.
Quando isso vai acabar?
— Fascinante... — sussurra Paul, quase que para si mesmo. Ele
fica alguns segundos me encarando, e lá se vai a minha confiança
mais uma vez, vencida pela timidez. Abaixo os olhos novamente.
Paul pigarreia e continua:
— A respeito do que temos em mente para a nossa compania,
trata-se de colocar em prática um antigo sonho do meu pai, que
hoje também é o meu: tornar a Newman Construction S.A uma
especialista em realizar sonhos. Queremos nos dedicar à construção

21
de condomínios de casas populares, a preços acessíveis, e em
lugares onde as pessoas nem ousariam sonhar em ter a sua casa
própria. Desejamos que essas pessoas tenham acesso à boa
moradia, em locais seguros e tranquilos, onde seus filhos possam
brincar, despreocupadamente. Esperamos trazer o antigo para o
novo. A nossa empresa, hoje, está consolidada no mercado, e
temos capital para colocarmos esse plano em prática. Em suma,
não queremos vender um produto, propriamente, e sim apresentar
um ideal, um novo estilo de vida, de forma que as pessoas
compreendam e abracem a nossa ideia. É basicamente isso.
Paul Newman termina a sua apresentação com um sorriso
lindíssimo, arrebatador, enervante e que ressoa em todo o meu
corpo. Ele abre o paletó — o que me faz tomar outro gole de água
gelada — e volta a se sentar.
Jack Newman se levanta, para retomar a palavra:
— A agência que geriu a nossa publicidade ao longo desses anos,
não conseguiu captar a ideia do projeto. Fui atraído até vocês por
um motivo simples, mas muito especial: o nome da agência.
Queremos realizar sonhos, e vocês prometem sonhos. Seriam
capazes de realizar os nossos? — pergunta, de pé, com os olhos
desafiadores e as duas mãos apoiadas sobre a mesa.
Fico boquiaberta. Não é ração, nem cachorro-quente, nem
aparelho para obter os glúteos perfeitos! O meu estômago se
contrai de excitação e nervosismo, não só pelo gigantesco desafio
que se descortina à nossa frente, mas também pelo fato de que
Paul Newman insiste em me encarar, deliberadamente. Ele deve
me achar uma espécie de NERD esquisita de 24 anos, com uma
graduação, duas especializações e nenhum senso de moda.
Lamento, por um segundo, por não ter trazido o meu antiácido.
Olho para o lado e percebo a excitação pelo desafio perpassando
por Gabriela e Bob, e fico aliviada de não ser a única em êxtase,
com a possibilidade desse trabalho.
Nesse momento, a atmosfera da sala muda. Carl Weiss assume
a palavra. Esse homem é de uma astúcia e perspicácia para vender
o seu peixe, como eu nunca vi igual. Nada parece lhe surpreender,
nada lhe passa despercebido. Ele está sempre pronto para tudo.
Carl, sem sombra de dúvidas, venderia a mãe, a própria alma e
uma bicicleta, com a mesma facilidade. Na verdade, acredito que a
alma ele já tenha vendido, e quem quer que tenha comprado,
pagou um altíssimo preço.
Percebo uma leve, mas significativa diferença na Carlsfera dessa
reunião. É como chamamos a atmosfera criada por Carl, uma piada
interna e que sempre rende momentos divertidos entre Gabs, Bob
e eu. A Carlsfera de hoje, contrasta com uma presença mais
imponente e sufocante. Paul Newman parece ser o centro de
qualquer universo em que esteja. Ele exala exuberância e paixão.
Além de entusiasmo, por seus ideais e sonhos.
Me pego pensando se ainda me lembro de como é ter um
sonho...
No final do discurso de Carl — que devo reconhecer, foi de longe
o melhor, nesses dois anos em que o acompanho, dadas as devidas
proporções dessa campanha —, Jack Newman e ele estão
apertando as mãos, selando o acordo entre a Newman Construction
S.A e a Weiss Publicity & Dreams. Jake, de posse de sua agenda
eletrônica, marca a primeira reunião de criação para a próxima
segunda-feira, às quatorze horas. Gunther se retira para um canto
da sala, ligando para o escritório, a fim de providenciar o contrato.

23
inalmente a semana acabou. Espreguiço-me na cadeira,
constatando o cansaço dominando o meu corpo. Focamos até
tarde de segunda à quarta, na campanha de venda de uma
linha de óculos escuros. Era a maior empreitada na qual estávamos
trabalhando, e corremos para terminar, a fim de ficarmos menos
sobrecarregados para o novo cliente, caso o contrato fosse fechado
hoje. E foi, para a alegria de todos.
Saímos da sala de reuniões em polvorosa e passamos o resto da
tarde fazendo planos, animadíssimos. É claro que a beleza de Paul
Newman não poderia passar sem ser citada na conversa.
— E aquele homem? — comenta Gabriela, com os olhos
faiscando. — Quase esqueci que gosto de racha, amiga! — diz, me
dando um tapa na bunda.
Dou uma gargalhada.
— Ele é bonito.
— Bonito, Karen? Ele é um deus! E tem cara de ser bom de cama
— Gabs diz, rindo por me ver envergonhada e, mais ainda, por ver
Bob aborrecido com os seus comentários. — Ele ficou
impressionado com você, Geller.
Sinto as bochechas queimando, mais uma vez.
— Ficou nada! Com certeza, acha que eu sou uma grande
charlatã. Ou uma espécie de NERD, esquisita — retruco, enquanto
as minhas entranhas se contorcem, em um nada delicado passe4.

4-Passé: passo do ballet clássico, onde o pé passa pela perna que está como apoio até chegar à altura do
joelho, formando a posição de número “quatro” no ar. As duas pernas permanecem viradas para fora.
— Impressionante mesmo, foi ver a Sabrina entrando na sala,
toda vermelha e tentando se equilibrar em cima daqueles saltos,
como se estivesse andando em uma corda bamba — Bob diz, e
gargalhamos, eu mais ainda, agradecida pelo foco ter sido desviado
de mim.
Na verdade, sinto uma pontada de pena de Sabrina. No fundo,
sei que só não me comportei da mesma forma, porque não estava
de pé, tendo de me equilibrar sobre um par de scarpins altíssimos.
Depois de declinar de mais um convite de Bob para assistir ao
show de sua banda, nos despedimos e sigo para casa. O trânsito
está relativamente bom para uma tarde de sexta-feira.

Apesar do cansaço, decido que hoje será o glamoroso dia da


faxina. O apartamento está precisando de uma boa limpeza e, como
Andrew virá amanhã, será mais do que bom recebê-lo em um lugar
minimamente apresentável. Coloco um short, uma camiseta velha
e amarro uma bandana no cabelo. Ligo o aparelho de som,
escolhendo Maroon 5 para me acompanhar em minha “sabatina” de
sexta à noite. Separo vassoura, rodo, panos de limpeza, balde, os
produtos de que preciso e finalmente me entrego ao suplício, após
acrescentar Sugar, This Love, She Will Be Loved e Animals na
playlist, as minhas prediletas.
O apartamento é pequeno. Na sala, apenas um sofá de três
lugares, na cor creme — mas tão grande, que facilmente abrigaria
quatro pessoas —, uma mesinha de centro, de madeira e tampo de
vidro, um aparelho de som, um móvel baixo, de madeira e com
duas gavetinhas, onde fica a TV de 47 polegadas e uma mesinha
de canto, ao lado da porta de entrada, onde coloco as
correspondências. Na cozinha, somente um fogão, uma geladeira,
um armário aéreo em L, balcões ladeando o refrigerador, uma pia
e uma mesinha com quatro cadeiras. Os dois ambientes são
conjugados, separados apenas pelo balcão e dois banquinhos.
No meu quarto repousam a minha cama, um armário embutido,
um criado mudo e uma penteadeira. No outro quarto, uma cama de
solteiro e uma escrivaninha. E os banheiros são simples, tanto o da
minha suíte, quanto o comum à casa: vaso sanitário, pia, armário
e box, basicamente. O que tem a mais no meu, é uma pequena
banheira, onde só cabe uma pessoa.
Tamanho não é o problema, e nem a quantidade de coisa, pois
gosto de tudo muito sóbrio e simples, sem amontoar nada. Porém,
o apartamento tem alguns detalhes chatíssimos de limpar: as

25
enormes janelas de vidro da sala e os azulejos imaculadamente
brancos da cozinha, por exemplo.
Passam das onze da noite, e finalmente meu calvário termina.
Olho em volta, triunfante: a casa está limpa e cheirosa, bem
diferente de mim agora, mas estou realmente satisfeita. Guardo as
armas de guerra, sento no sofá e acendo o cigarro da vitória. Vou
até a geladeira, pego uma solitária cerveja e decido assistir um
pouco de TV. Escolho um episódio de um seriado que já está na
metade, só para dar tempo de terminar a minha cerveja e o meu
cigarro, antes de tomar banho. Parece uma série interessante,
sobre a vida de um psicopata que vive em Belfast, Irlanda, mas
como não peguei do começo, não consigo acompanhar direito.
Sinto o cansaço dominando a minha mente, algumas partes do
corpo doloridas e a cabeça ficando pesada...
Acordo, em um sobressalto, tremendo de frio. Olho ao redor para
me localizar. A TV ainda está ligada, mas a estação está fora do ar,
e deduzo que deve ser muito tarde. Sinto-me toda grudenta. Tomo
uma ducha morna e relaxante. Apesar de querer lavar o cabelo, não
o faço, para não ter de dormir com ele molhado. Ainda de toalha,
me jogo na cama. O rádio relógio aponta quatro da madrugada.
Ajusto o despertador para as nove horas. É dia de almoçar com a
mamãe, e não quero me atrasar. Adormeço instantaneamente.

A clínica em que mamãe está instalada é, realmente, muito boa.


Toda vez que venho aqui, me surpreendo. Tem um enorme jardim
na frente, sempre muito florido, independente do clima. O casarão
é antigo, mas muito bem conservado, todo em tons de branco e
cinza. Atrás da casa tem um pátio, onde os internos podem
caminhar e fazer outras atividades, ao ar livre. Cada um tem o seu
quarto particular, com banheiro privativo. O espaço coletivo da
casa, conta com um quarto de TV, uma sala de jogos, uma sala com
instrumentos musicais, uma biblioteca e uma cantina, enorme e
limpa, onde todos fazem as suas refeições. Mamãe sempre insistiu
na importância de se manter um bom plano de saúde, mesmo
depois da morte do papai, durante o período longo de vacas
magras. Olhando como está bem instalada e cuidada, sinto alívio e
gratidão por ela ter feito isso.
O Alzheimer de início precoce veio implacável e devastador, aos
48 anos de mamãe. Começou quando eu estava no último ano de
faculdade. Passei a notar que ela vinha se esquecendo de muitas
coisas, além de andar mais agressiva, um comportamento que
definitivamente não combinava com ela. Insisti, por muito tempo,
para que fosse ao médico, mas atribuindo os sintomas ao cansaço,
sempre adiava a consulta. Como eu estava morando no Campus,
via a mamãe com pouca frequência e não tinha como levá-la. O
ponto crucial foi o dia em que eu estava em um dos seminários de
conclusão de curso, e recebi uma ligação. Era um rapaz, dono de
uma barraca de feira, dizendo que a minha mãe estava lá, confusa,
depois de ter jogado um punhado de frutas nas pessoas. Ela não se
recordava de onde morava e como fazer para voltar para casa,
apenas se lembrou do meu nome, e ele conseguiu o meu número
no serviço de informações. Fui buscá-la, com a ajuda de Andrew, e
a levei imediatamente à emergência. Após uma longa espera por
resultados de vários testes clínicos, neurológicos e demais exames,
ela foi diagnosticada com a doença. Isso tem pouco mais de dois
anos e, de lá para cá, tenho perdido a minha mãe dia a dia, aos
poucos e em doses homeopáticas. Quando venho visitá-la, o que
faço todos os sábados, nem sempre ela me reconhece. Eu tenho
consciência de que o seu prognóstico é o pior possível.
Logo que chego à clínica, avisto a minha mãe no jardim. Parece
bem disposta em sua camisa florida de botões, jardineira jeans,
chinelos e um chapéu de palha. Pela terra em suas mãos, calculo
que esteve mais uma vez mexendo nas plantas. Porém, agora
permanece sentada em um banco de frente para o jardim, com um
baldinho, uma pá, um olhar perdido e uma expressão confusa.
— Oi, mãe, bom dia! A senhora está linda! — digo, esperando
que ela olhe para mim.
Ela se levanta e abre os braços:
— Cake, que saudade!
Respiro aliviada. Ela me reconheceu! Damos um forte abraço, e
sinto todo o amor pulsante que tenho por essa mulher, que sempre
foi um exemplo de vida para mim.
— Estava cuidando das flores?
— Tentando, minha filha, mas esqueci de onde coloquei o
regador. E, por mais que eu tente, não consigo me lembrar —
responde, com ar tristonho e envergonhado.
— Ah, mas quer saber de uma coisa, mãe? Não tem problema.
Olha só — digo, apontando para densas nuvens escuras que se
formam no céu. —, Deus vai se encarregar de regá-las para nós.
Ela me olha e abre um enorme sorriso, ao perguntar:
— Está com fome?
Realmente não estou.
— Faminta! Vamos almoçar?

27
Nosso almoço transcorre tranquilo. Ela me conta sobre a sua
rotina na semana que passou, ou pelo menos a parte que consegue
se lembrar. Eu digo para ela sobre a nova conta que fechamos com
a Newman Construction S.A. Todas as vezes que falo sobre o meu
trabalho, ela se incha e utiliza a mesma frase:
— Seu pai estaria orgulhoso de vê-la tão adulta!
Mamãe nunca se esquece dele. Mesmo nos períodos de amnésia,
nos piores estados, ela nunca se esquece. É lindo e trágico. Um
retrato do que parece ser a explanação do amor verdadeiro.

Andrew liga para avisar que está chegando. Abro a primeira


gaveta do móvel da sala, para fazer uma pré-seleção de alguns
filmes. Passo os DVD’s, um a um, escolhendo alguns. Encontro
Coppélia, uma peça de balé encenada pelo Corpo de Ballet de
Bolshoi. Jake me deu esse DVD no meu último aniversário, depois
de uma conversa que tivemos a respeito da minha adoração por
balé clássico. Deixo no topo da pilha de DVD’s que selecionei.
Acendo um cigarro e fico aproveitando a brisa na minha enorme e
exagerada janela da sala, de onde as nuvens parecem ainda mais
carregadas, fechando o céu em um cinza escuro.
Cinco toques. Abro o portão e deixo a porta da sala entreaberta.
Menos de cinco minutos depois, Andrew entra no apartamento.
Cortou o cabelo e está ainda mais bonito, o safado. Sua pele
morena clara harmoniza muito bem com os cabelos e olhos negros,
nariz fino e lábios carnudos. Ele malha, e isso fica visível por baixo
da camisa polo de cor verde clara, e da calça jeans, preta e justa.
Além do físico estonteante, Andrew é um cara legal, inteligente,
esforçado, simpático e cuidadoso. Não sei como não existe uma fila
de mulheres atrás dele.
Andy coloca duas sacolas grandes de papelão sobre o balcão da
cozinha e vem até mim, sorrindo, me dando um abraço apertado.
— Saudade de você, Cake!
Dou um beijo em sua bochecha, e ele volta para as compras.
— Como vai chover, pensei em fazermos a nossa festa em casa
mesmo — e tira de dentro das sacolas vários tipos de queijo, um
salame italiano, algumas embalagens de patê e três garrafas de
vinho.
Adoro a ideia de ficar em casa. Vou até a cozinha e alcanço duas
taças, uma tábua, uma faca para cortar o salame e uma petisqueira,
para acomodar os frios depois de cortados.
— E aí, o que vamos assistir?
— Separei alguns filmes, estão ao lado da TV — e aponto o móvel
com a faca que estou cortando o salame.
Enquanto ele passa os DVD’s, levo a petisqueira e as taças para
a mesa de centro, torcendo para Andrew escolher Coppéllia. Volto
para buscar uma das garrafas de vinho e o saca-rolha, e ele
pergunta, com uma das sobrancelhas erguidas:
— Balé?
Bufo e respondo:
— Você sabe como eu gosto de balé. Vi o DVD e me deu vontade
de assistir de novo, oras!
— Ah, Geller, aí seria exigir demais de mim.
Reviro os olhos.
— Escolha outra coisa, então. Para que você trouxe patê?
— Aaahh, era para comermos com baguete, mas esqueci do pão!
— Você é sempre exagerado, aqui já tem muita comida.
— Comida nunca é demais, Cake! — ele sorri. — Foi ver a sua
mãe?
— Fui.
— E como ela está?
— Me pareceu muito bem. Não dá para acreditar que a doença
já está tão avançada — digo, me sentando sobre o tapete e
encostando as costas no sofá.
Andrew pega a garrafa de vinho e o saca-rolha.
— Mas o médico disse que seria assim, não é? Alguns dias bons,
outros nem tanto. Gosto quando vai lá em um dia bom. Você volta
mais animada — diz, servindo a bebida.
— Pois é, vamos ver até quando isso vai durar.
— Cake, o seu otimismo é contagiante — ele ri, com escárnio. —
E a nova conta? Pegaram?
— Pegamos! — respondo, animada. — Carl não deixa passar
uma, é formidável como aquele filho da mãe tem o dom de vender.
Acho que ele vende até avião pegando fogo, se quiser.
— E qual é o produto?
Explico o teor da reunião para Andrew, que muda a expressão,
de divertida para assombrada, quando menciono o nome da
construtora.
— Karen, você tem ideia da dimensão desse trabalho para vocês?
Esse cara, o Newman, é um dos maiores empreiteiros do país! Se
não for o maior. Isso pode alavancar a sua carreira em uma
proporção inimaginável — diz, cheio de entusiasmo na voz.
Eu olho para Andy, duvidosa. Não pensei por esse ângulo, ainda.
Só fiquei envolvida pela possibilidade do desafio.

29
— No momento, só estou preocupada em corresponder às
expectativas dos clientes — respondo, tremendo ligeiramente, ao
pensar em Paul Newman e em que tipos de expectativas dele eu
gostaria de corresponder. — Não pensei no futuro ainda.
Andrew suspira fundo e, com um ar de reprovação, murmura:
— E quando é que você pensa, Karen?
stamos assistindo Sociedade dos Poetas Mortos, um de
nossos filmes favoritos. Já vimos tantas vezes, que em
várias cenas repetimos as falas dos personagens, sorrindo
um para o outro. Adoro quando ficamos em casa. Andy é tão
familiar para mim, que me sinto confortável e tranquila perto dele.
No dia em que arranjar uma namorada, não sei o que vou fazer.
Ela, certamente, não vai compreender a nossa amizade. Mulheres,
em geral, são muito ciumentas.
Acaba o filme, e Andrew se levanta para esticar as pernas,
enquanto eu vou até a janela para fumar um cigarro. Ele apenas
olha, sem falar nada. Suspiro, aliviada por não ter de tolerar, mais
uma vez, a sua reprimenda antitabagista.
— Cake, aproveite que está na janela e dê uma olhada no meu
carro, lá embaixo. Deixei mal estacionado.
Estreito os olhos para os pontinhos na rua. Procuro o carro de
um lado. Nada. Olho para o outro lado. Nada. Refaço a busca. Nada.
Começo a ficar nervosa e digo:
— Andy, eu acho que o seu carro não está lá!
Ele abre um sorriso.
— Está sim. Vou te mostrar — e chega à beirada da janela. —
Está vendo aquele Corolla de teto preto ali?
— Acho que sim, o que tem? — digo, apertando os olhos.
— Esse agora é o meu carro! — e dá o maior sorriso que já vi
até então.
Arregalo os olhos e dou um pulo, para abraçar o meu amigo.
— Não acredito que você conseguiu comprar o seu Corolla! — ele
sonha com esse carro desde a faculdade. — Quando foi isso?

31
— Já estava esperando chegar a quinze dias. Escolhi alguns itens
adicionais, e acabou demorando um pouco mais. Não te contei, pois
queria fazer surpresa. Finalmente tenho um carro de macho! — diz,
em tom gozador, tão feliz que começo a rir.
— Vai me deixar dirigir?
— Isso vai depender da minha coragem.
Olho para ele, com uma sobrancelha erguida.
— Eu tenho amor à vida, Karen! — e dá uma gargalhada.
Mostro a língua para ele e rio junto. Está realmente feliz!
— Vamos comprar a baguete? Na verdade, não me esqueci de
trazer. Apenas queria uma desculpa para dirigir até o mercado! —
ele pisca e sorri, parecendo uma criança que ganhou o presente de
natal antecipado.
— Isso é bem a sua cara mesmo. Vamos lá, vamos ver o que
aquele bebê pode fazer!
Chove fraco, e Andrew desliga o alarme do carro. É lindo, preto,
brilhante, enorme, imponente, indiscutivelmente um Sedan de
respeito. Sento no banco do carona, maravilhada com o painel
ultramoderno e respirando o aroma inebriante de carro novo.
— E esse cheiro? — ele diz, fechando a porta.
— Eu sei, estava pensando nisso!
— Esse carro mexe com o psicológico, cara! Dá uma sensação
de poder, controle, confiança... — Andrew diz, com as mãos no
volante, admirando o veículo, como se o visse pela primeira vez.
— Olha, se você não pegar um monte de mulher com esse carro,
não existe mais salvação — digo, dando uma risada.
— Meu objetivo não é esse, Geller, e no momento estou
realmente satisfeito de poder estreá-lo com você. Não queria que
outra pessoa dividisse essa ocasião comigo! — e dá um sorriso
terno, que eu devolvo com prazer. — Vamos lá comprar um
pãozinho, para incrementar a nossa festa.
Rodamos até o supermercado pelo caminho mais longo, pelo
prazer de aproveitar a viagem. Enquanto dirige, Andrew fala de
todos os componentes adicionais que pediu. Está empolgadíssimo,
e eu sinto uma alegria genuína, ao ver meu amigo tão feliz por
realizar um dos seus sonhos. Que bom que as coisas estão dando
certo. Andy é uma das melhores pessoas que eu conheço e merece
que tudo realmente funcione para ele.
Voltamos para casa, depois de uma volta rápida pelo
supermercado. Andrew escolheu baguetes e uma caixa de
chocolates. Ele sempre compra coisas demais. Pelo menos me
deixou pagar, já que não ajudei em nada no festival de queijos e
vinhos, distribuído na minha mesa de centro.
Depois de arrumar os pães cortados em um cesto, e colocá-lo
junto com os patês e os bombons sobre a mesinha, volto a me
sentar no mesmo lugar. Andrew abre a segunda garrafa de vinho e
serve as nossas taças.
— E aí, Geller, qual será o filme?
— Você escolhe! — e proponho um brinde ao carro novo.
Andrew opta por Sr. e Sra. Smith. Ele tira os tênis e as meias, e
se senta no tapete, ao meu lado. Logo no começo do filme, após
uma breve perseguição, há uma parte muito quente, em que os
personagens de Brad Pitt e Angelina Jolie se agarram na chuva. A
cena é sensual, tal qual os seus protagonistas. Sinto um pouco de
constrangimento por assisti-la ao lado de Andrew e acredito que ele
também, pois se mexe um pouco no próprio lugar.
Deito a cabeça no assento do sofá, para desviar os olhos da TV,
e, de repente, levo um susto, demorando alguns segundos para
compreender o que está acontecendo: Andrew está em cima de
mim, segurando a minha cintura com a mão esquerda e o meu rosto
com a direita. Olho diretamente em seus olhos para tentar me
comunicar, já que pareço ter perdido as forças. Subitamente, ele
se abaixa e me planta um beijo contido nos lábios. Respiro fundo,
fecho os olhos e, não sei se por causa do vinho, acabo permitindo
e beijando-o de volta.
O beijo, inicialmente casto, se torna quente, desejoso, e Andrew
enfia a língua na minha boca com voracidade, em um desespero de
lábios e dentes. Eu passo os braços ao redor do seu pescoço, e ele
aperta a minha cintura, me fazendo erguer um pouco o corpo.
Andrew levanta a minha blusa, acariciando a minha pele, e em
seguida desce as mãos, segurando e apertando o meu quadril, me
puxando mais para ele. Estremeço de desejo, encolhendo as
minhas pernas ao sentir a sua ereção apertando a minha coxa.
Agarro os seus ombros, gemendo, quando uma de suas mãos vai
parar no meu seio direito.
Abro os olhos. Era o alerta de que eu precisava para despertar
desse pesadelo hormonal.

33
mpurro Andrew com força, e ele cai de costas, ao meu
lado. Levanto depressa, ajeitando a blusa, arfando,
tentando me conter e encontrar o que dizer. Olho para ele,
que agora está sentado no sofá, com a cabeça entre as mãos e os
cotovelos apoiados nos joelhos, tentando controlar a própria
respiração. Pela primeira vez, me sinto realmente desconfortável
ao seu lado, sem saber o que dizer.
— O pior, é que eu não quero pedir desculpas — ele murmura,
em um tom de voz suave e sem mudar de posição, como se falasse
consigo mesmo.
Respiro fundo e me sento na outra ponta do sofá, virada para
ele, com uma perna dobrada na frente do corpo, para deixar uma
distância de segurança entre nós. Um silêncio longo se instala. Eu
sei que, em algum momento, um de nós terá de quebrá-lo. Que
seja eu, então.
— Andrew, isso não podia ter acontecido. O que deu em você?
— pergunto, tentando manter o meu tom de voz o mais calmo
possível.
Ele se vira para mim com um olhar indignado, como se não
acreditasse na minha pergunta.
— Você, Karen! Não é possível que, depois de tantos anos... —
e passa a mão no cabelo, em sinal de exasperação.
— Justamente por serem tantos anos, que eu compreendo que
isso não passou de uma confusão. Deve ser o vinho. Ou carência.
Sei lá! — digo, tentando encontrar algum motivo que explique o
nosso momento de fraqueza.
— Talvez seja paixão, Karen. Ou, até mesmo, amor. Já parou
para pensar nisso? — diz, com os olhos brilhando e fitando,
diretamente, os meus.
Sinto o rosto queimando e os dedos das mãos gelados. Não sei
o que dizer a Andrew. Tento encontrar um sinal de dúvida em seus
olhos onde eu possa me agarrar, mas eles se mostram sofridos,
porém confiantes e resolutos.
— Karen, somos amigos há oito anos. Estamos sempre juntos.
Nem mesmo na faculdade, quando estávamos muito mais
ocupados, eu larguei você de lado. Nesse meio tempo, você nunca
me viu, de fato, envolvido com uma mulher, e sabe bem que não
faltaram oportunidades. Eu sempre tive relacionamentos curtos, e
você sabe disso. Nunca se perguntou o motivo?
— Eu, simplesmente, achei que você não tinha se apaixonado
por nenhuma delas.
— De certa forma, você tem razão. Eu não poderia ter me
apaixonado por nenhuma delas. Isso, porque eu já era apaixonado
pela pessoa mais maravilhosa e instigante que eu conheço. É você,
Karen! Sempre foi você! — ele cospe as palavras em cima de mim,
como se realmente estivesse cansado de segurá-las.
É difícil lidar com os olhos tristes do meu amigo. Meu querido
Andrew, que parece ferido e esgotado por ter escondido seus
sentimentos por tanto tempo.
— Andy, isso não é certo. Você não me quer, acredite em mim,
apenas está confuso. Eu sou complicada demais, você sabe disso
melhor do que ninguém! — digo, com as mãos juntas, em sinal de
súplica.
— Ah é, me esqueci desse predicado quando me apaixonei — e
ri, com desdém.
— É sério! Somos amigos. Mais do que amigos, somos irmãos!
O que temos é, de longe, muito melhor do que qualquer relação
amorosa. Eu amo você, muito mesmo, mas como o meu melhor
amigo, o meu parceiro, cúmplice e confidente. Você é tudo isso para
mim. A pessoa mais importante do mundo, e não quero que isso
acabe.
— A sua cabeça diz uma coisa, Karen, mas o seu corpo
demonstrou outra. Ele reagiu aos meus estímulos. Você não é tão
imune a mim quanto pensa e demonstrou que também me quer.
Ou pelo menos me quis, aqui mesmo nesse chão, há menos de
cinco minutos.
— Isso foi um lance físico, Andy. O fato de não estar interessada
em me relacionar, não quer dizer que eu não conheça os prazeres

35
de uma boa trepada. Você é lindo, tem um corpo maravilhoso e
sabe que eu não transo com ninguém já faz um tempo. Além disso,
estou perto de ficar bêbada. Basta juntar as coisas. E, mesmo
assim, eu consegui retornar à lucidez a tempo, antes que isso
caminhasse para um desfecho ainda pior.
— Desfecho pior? É isso que significaria fazer amor comigo? — e
me lança um olhar ofendido.
— O envolvimento sentimental seria o pior desfecho.
— Você acaba de dizer que não tem esse tipo de sentimento por
mim! — diz, parecendo ainda mais confuso.
— Mas você disse que tem por mim! E eu iria acabar te
magoando, te ferindo e nunca me perdoaria por fazer isso.
— Por que acha que me magoaria?
— Porque você faria amor comigo, Andrew. Eu só treparia com
você! Eu sou oca por dentro! Sou vazia, estou morta! — grito.
Por que ele não pode enxergar isso? Depois de tantos anos, será
que não me conhece? É tão frustrante!
— Não, você não está! — diz, se levantando e pegando a minha
mão. — Desde que te conheci, descobri uma menina triste e
perdida, encobrindo uma mulher forte, batalhadora e linda, mas
extremamente cruel consigo mesma. Você passou por uma enorme
perda, irreparável, o que fez com que se fechasse para o mundo,
procurando evitar envolvimentos que pudessem lhe trazer mais
sofrimento. O que não percebe é que, com isso, acaba sofrendo o
tempo todo, 24 horas por dia. Esse sofrimento se tornou tão
habitual, uma zona de conforto tão grande, que tudo o que aparece
para te tirar dessa escuridão você repele, como se fosse uma
doença contagiosa! Eu sei bem disso, e por isso mesmo fiquei na
minha esses anos todos, escondendo os meus sentimentos.
Andrew dá um longo suspiro, de olhos fechados.
— Falando com você agora sobre tudo, percebo que também me
enclausurei dentro de mim, sufocado por esse amor, afastando
quem quer que tentasse se aproximar me oferecendo algo
diferente. Isso não é saudável para mim, e muito menos para você.
No entanto, aqui estou eu, depois de oito anos, vislumbrando uma
vida cheia de possibilidades para nós dois. Estou disposto a tentar,
Karen. Eu preciso saber se você quer entrar nessa comigo, ou se
vai continuar escolhendo o medo e a escuridão.
Absorvo as palavras de Andrew uma a uma, como gotas.
Realmente não imaginava que ele se sentia assim. Estou nauseada
e confusa. Há sinceridade e esperança em seu discurso, o que me
comove profundamente. Sinto uma imensa compaixão, além de
muita tristeza por saber que o meu querido amigo sofre por tantos
anos, graças a um sentimento velado. É exatamente disso que se
trata: amor não correspondido.
Não posso retribuir a esse amor, não tenho condições de amar
ninguém. Não mais. Andrew acredita que isso pode mudar e que,
tentar, está ao meu alcance. Mas não posso enganá-lo, não posso
arrastá-lo para a minha escuridão ainda mais.
Ah, Andy... Eu não queria perdê-lo... Não sei o que eu vou fazer
sem você. Mas preciso ser menos egoísta e libertá-lo dessa corrente
com a qual o amarrei, sem perceber. Preciso pensar mais em você
do que em mim, agora.
E percebo que sei exatamente o que devo fazer. Tiro a minha
mão da dele e procuro forças para dizer o que precisa ser dito:
— Andrew, eu não posso dar o que você quer. Eu não sinto o
mesmo e nunca irei sentir. Compreendo que se sente preso a mim
por uma esperança em algo que não vai acontecer. Não o culpo por
isso, realmente te atrelei a mim por amarras invisíveis, mesmo que
não o tenha feito deliberadamente, mas agora que enxergo, não
posso mais fazer isso. Você é iluminado e não pode mais se ofuscar
com a minha escuridão. Precisa viver a sua vida. Por isso, você deve
ir embora. Agora — digo, com o tom de voz mais frio que consigo
produzir.
Andrew arregala os olhos e se aproxima de um pulo, segurando
os meus ombros.
— Karen, não! Não é isso o que eu quero! Você não entendeu
nada! Não vou me afastar de você, quero que nos aproximemos
ainda mais, que tenhamos a máxima intimidade, que fiquemos
juntos! — ele diz, com a voz estrangulada, parecendo sufocar um
grito.
— Eu entendi e te digo que, esse tipo de intimidade que você
quer, eu não posso dar. Essa não é uma possibilidade para mim.
Quero que vá embora, e não me procure mais.
Andrew vira de costas, caminha até o balcão da cozinha e de
volta para o sofá, olhando para os lados. Está visivelmente
desesperado e perdido. Estou partindo o seu coração, e isso me faz
sentir uma dor lancinante.
— Cake, esqueça tudo isso. Vamos continuar como sempre
fomos. Prefiro ter você na minha vida, mesmo que parcialmente,
do que não ter você de forma alguma — diz, com os olhos
marejados.
— O problema é que, o que você vê como parcial, é tudo o que
eu tenho para te dar.

37
— Eu sei, eu compreendo e aceito que seja assim. Não quero
perder você! — e, agora, as lágrimas caem livres dos seus olhos.
Penso em Quebra-Nozes, um dos meus espetáculos de balé
favoritos. O primeiro ato conta a história do Quebra-Nozes de
aparência humana, vestido como soldado, mas que tinha
as pernas e a cabeça de tamanho desmensurado. A protagonista,
Clara, gostava tanto da sua aparência, que o pediu como presente
de Natal ao seu padrinho. Logo em seguida, Clara experimentou-o
e viu que ele sempre quebrava as nozes, sem perder o sorriso e
com grande eficácia. O irmão de Clara, Fritz, que tinha visto o
funcionamento do Quebra-Nozes, também quis usá-lo, mas
escolheu as maiores castanhas do cesto. O Quebra-Nozes, sendo
usado grosseiramente por Fritz, acabou tendo um de seus braços
quebrados, sendo atirado no chão, depois disso. E Clara o consolou,
abraçando-o até que ele dormisse.
Ao relembrar a história, percebo que por muitos anos fui Clara,
e Andrew foi o meu Quebra-Nozes, destruindo os meus horrores,
por maiores que fossem, sem perder o sorriso, a força e a doçura.
E eu o embalei esses anos todos, fazendo-o dormir, e dormindo
junto, em um pesadelo do qual não tenho forças para sair.
Agora eu sou Fritz. Arranquei o coração de Andy e joguei-o no
chão. Não posso mais fazer isso. Ele não merece ser o meu Quebra-
Nozes. Ele merece ser o príncipe encantado de alguém.
— Andrew, não dá para simplesmente fingirmos que nada
aconteceu. Eu sempre ficarei com esse medo, sem saber o que você
espera de mim. Já sinto uma enorme culpa pelo mal que causei a
você, até agora. Eu temo que alimente uma expectativa irreal. Se
você esperou por oito anos, nada me garante que não irá esperar
por mais oito, e isso só vai atrasar a sua vida. Você perdeu um
monte de garotas legais por minha causa, quando poderia estar
feliz com alguém. Mas está aqui, preso comigo. Isso não é justo.
Essa é a vida que eu escolhi viver. A única que consigo viver. Não
posso fazer isso com você. Nem um dia a mais. Nem um minuto.
Andrew se joga no sofá, respirando fundo e passando as mãos
no rosto, agora molhado de lágrimas. De repente, ele me encara,
lívido.
— Então, é isso? Não vou mais ver você? — sua voz rouca
denuncia o quanto está magoado.
— Não. Pelo menos, não enquanto você não conseguir resgatar
a sua vida, e até que eu não seja mais nociva a você.
— Você não é nociva, Karen... — murmura.
— Sou sim, e você sabe disso. Por favor, quero que vá embora
— digo, abrindo a porta de entrada.
Ele se levanta e, se arrastando sobre os pés, passa pela porta,
de cabeça baixa. Andrew me puxa para si, me dando um abraço
apertado e demorado, sem me erguer do chão, dessa vez. Ao me
soltar, pega a minha mão e sussurra, olhando nos meus olhos:
— Você disse que eu sou iluminado. Por que não vem para a luz
comigo, Cake?
Seu coração está arrasado. Não aguento mais ver tanta dor. Isso
precisa acabar. Reúno o restante das minhas forças, para dar a
facada final:
— Porque a luz e as trevas não se misturam, Andrew.
Ouvimos o som de alerta do elevador. Ele faz um sinal negativo
com a cabeça, desolado, e entra. Volto para o apartamento, com o
som das portas do elevador se fechando atrás de mim, evitando o
seu último olhar.
A sensação que tenho, é a de que acabei de protagonizar um
filme. Um provável drama. Ao me sentar no sofá, com as mãos
tremendo, encho a minha taça de vinho e busco o consolo de um
cigarro. Sinto-me apática, como se nem a tristeza fosse um
sentimento digno de mim. Como sempre, meus olhos ficam
marejados, mas não consigo chorar. Sinto o costumeiro nó na
garganta. Sou tão oca por dentro, que não sou capaz de derramar
uma lágrima sequer.
Atrevo-me a pensar em como a minha vida estaria hoje, se tudo
acontecesse de modo diverso. Será que eu seria diferente do caco
humano que me tornei? Andrew e eu teríamos nos aproximado,
seríamos amigos? Acredito que ele teria sido bem mais feliz se eu
não tivesse cruzado o seu caminho. Estraguei a sua vida por muito
tempo, e isso me dá um enorme pesar. Espero que, agora, ele
consiga viver melhor, sem ter uma sombra se arrastando às suas
costas. Andrew é jovem, tem apenas 24 anos e muita vida pela
frente. Sim, ainda há tempo para ele. Fiz o que tinha de ser feito.
Foram anos alegres. Mesmo que eu não fosse feliz, entre nós
havia certa alegria. Sem a nossa amizade, certamente eu não teria
suportado. Andy foi o meu porto seguro, o meu pilar de
sustentação. Agora percebo como fui egoísta. O que ofereci a ele
todo esse tempo? Menos do que nada. E ele me deu tudo. E ainda
queria me dar mais. Queria me dar o seu coração.
O cansaço, causado pela discussão mais terrível da minha vida
e pelo misto de sentimentos destoantes e confusos dentro de mim,
me atormenta. Apago o cigarro e tomo o último gole de vinho. A

39
taça de Andrew agora repousa sobre a mesa, inerte, junto aos
restos de comida.
Restos do que poderia ter sido, da sua presença na minha vida.
Para Andy, foi a noite da sua libertação. Com o tempo, ele
conseguirá enxergar isso, tenho certeza.
Vou para a cama, onde desabo, adormecendo imediatamente.

Que porra de barulho infernal é esse?


Procuro ao redor e percebo que vem da mesinha de cabeceira.
Meu celular?
Olho o rádio relógio.
Ainda é de madrugada! Quem poderia estar me ligando às duas
da manhã?
— Alô — atendo, com a voz falhando.
— Alô, com quem eu falo? — pergunta uma voz fria, do outro
lado da linha.
— Aqui é Karen Geller. Com quem quer falar?
— Srta. Geller, aqui é do St. Paul’s Hospital. Estamos ligando
para informar a respeito do Sr. Carten...
ndo de um lado para o outro na sala de espera do bloco
cirúrgico. Está um frio insuportável, e não paro de
tremer. A expectativa pelo fim da cirurgia é enorme.
O que será que está acontecendo lá dentro?
Olho em meu relógio de pulso, e são três horas da madrugada.
Não passou tanto tempo, mas estou ansiosa e desesperada desde
que me ligaram para avisar que Andrew havia sofrido um acidente.
Ele estava dirigindo em alta velocidade, embriagado, na pista
molhada de chuva, perdeu o controle e arremessou o carro em
cheio contra um poste. A batida ocasionou um traumatismo
craniano, cinco costelas quebradas, e uma delas perfurou o baço,
que está sendo removido às pressas, para conter a hemorragia
interna. O estado dele é grave, e as enfermeiras não foram capazes
de prever um prognóstico.
Imediatamente após receber a notícia, me senti tragada para o
inferno. Como isso foi acontecer? É tudo culpa minha, Andrew
nunca correu no trânsito. Como pude mandá-lo embora, nervoso
como estava e depois de termos bebido mais de uma garrafa de
vinho? Como não pensei nisso e antecipei que algo poderia
acontecer?
Ah, Andy, eu sempre sou tão egoísta com você...
Meu coração está apertado e apavorado pelo medo de perdê-lo.
Eu disse que era destrutiva. Eu avisei a ele.
Pobre Andy, você não merece nada disso.
A porta da sala de espera se abre, e os pais de Andrew entram,
transtornados. Eva se joga em meus braços, para um abraço em
meio às lágrimas. Joe parece estar segurando firme a preocupação,
provavelmente para tentar aliviar a dor da esposa.

41
— Karen, criança, como isso foi acontecer? — Eva fala, com a
voz entrecortada por soluços. — Andy é sempre tão cuidadoso no
trânsito! O que houve?
Não sei como responder. Sinto vergonha, porque sei que a culpa
é minha. Procuro escolher as palavras para contar sobre o acidente,
ocultando os detalhes mais terríveis, na tentativa de poupá-los o
máximo que puder. Joe está sentado em um dos sofás, me
observando, enquanto Eva segura as minhas mãos. Depois de
contar quase tudo o que sei, convido Eva para se sentar, enquanto
termino:
— Eles me ligaram porque nos falamos mais cedo, o meu número
tinha sido o último que ele tinha discado e estava na memória do
celular. Andy estava lá em casa, antes do acidente. Bebemos um
pouco de vinho. Ele foi embora, e não me dei conta de que não
deveria estar bem para dirigir. Andrew não deveria ter ido, eu não
deveria ter deixado. A culpa é toda minha, se ele tivesse dormido
lá em casa, nada disso teria acontecido — e abaixo os olhos,
apertando os dedos.
— Eu não acredito que ele estava dirigindo depois de beber. Isso
é inimaginável, de tão imprudente. Vocês dois não são crianças, já
deveriam ter um pouco mais de juízo! — Joe pronuncia as primeiras
palavras, desde que chegou. Está com o olhar perdido, fixo em algo
inexistente, sem piscar.
— Eu sei. Realmente a culpa é minha. Eu poderia ter evitado que
ele fosse embora — sussurro, e meu coração se aperta. Se eu não
o tivesse mandado embora, se tivesse dado vazão às suas
investidas, provavelmente Andrew se encontraria na minha cama,
agora. Eu estaria infeliz, mas ele, em segurança. — Andy está na
sala de cirurgia agora, e precisamos aguardar notícias. Vocês
conseguiram falar com a Linda?
— Sim, ela está vindo para cá — responde Eva.
Linda é irmã de Andrew, apenas três anos mais velha do que ele,
e sempre nos demos muito bem. Não nos vemos há algum tempo,
e sinto saudades dela. Acho que era uma das que torcia para que o
irmão e eu ficássemos juntos, engrossando a arquibancada ao lado
de Eva e, agora sei, do próprio Andrew. Joe nunca demonstrou ter
qualquer opinião a respeito. Mal sabia Linda que eu seria a desgraça
da vida do seu irmão.
Absorta nesses pensamentos, eu ouço a porta da sala de espera
se abrir. Linda abraça a mãe, dá um beijo no rosto do pai e me dá
um forte e longo abraço, dizendo:
— Que saudades de você, Cake! Pena que nos reencontramos
nessas circunstâncias.
Repito a história que contei a Eva e Joe, sobre o acidente. Em
seguida, permanecemos calados, angustiados pela preocupação e
espera que parecem não ter fim. Tento repassar na minha mente
tudo o que aconteceu na noite passada, mas estou muito confusa.
A paixão de Andrew é genuína, sincera, e sinto um profundo pesar
por isso. Como nunca notei? Ele sempre esteve lá para mim, é o
melhor amigo que uma garota pode querer, e eu fiz isso... Andy
não pode morrer. Ele não merece ter a vida interrompida tão cedo,
justamente quando as coisas estão dando tão certo para ele.
Ele tem que ficar bem, ele tem que ficar bem, ele tem que ficar
bem... — repito, mentalmente, como um mantra.
A porta da sala de espera se abre novamente, e um médico
entra. Ele é alto, negro, jovem e parece extremamente cansado.
Retirando a máscara cirúrgica, caminha em nossa direção.
— Vocês são os parentes do Sr. Carten?
— Somos — responde Eva, enquanto todos ficamos de pé ao
mesmo tempo. — Sou a mãe dele.
— Meu nome é Dr. Clark — o médico se apresenta. — A cirurgia
terminou. Conseguimos conter a hemorragia e extraímos o baço.
As costelas irão se regenerar com o tempo. Ele também deslocou a
clavícula e rachou a bacia, mas não é grave e também se
regenerarão com o tempo. O que me preocupa, realmente, é o
traumatismo craniano que detectamos na tomografia. Não sabemos
a profundidade do edema. A pressão intracraniana está estável, o
que já é alguma coisa. Precisaremos fazer uma bateria de exames,
mas, no momento, ele está sendo transferido para a UTI. Vamos
esperar o efeito da anestesia passar, para sabermos atrás de quais
respostas devemos ir.
— E podemos vê-lo? Por favor! — implora Linda, ansiosa.
— Um de cada vez, e muito rapidamente — Dr. Clark responde,
com a mandíbula tensa.
Estamos na sala de espera da UTI. Eva e Joe já entraram para
ver Andrew, e Linda agora está com ele. Aguardo a minha vez,
resignada, assistindo a todos saindo de lá, chorosos e emocionados.
Linda não seria diferente e sai fungando, com um lenço na mão,
enquanto me encaminho para a UTI.
A imagem que vejo é chocante demais: Andrew imóvel, frágil,
vulnerável e tão pequeno, no meio de uma confusão de aparelhos!
Está muito branco, uma palidez mórbida. Sento na cadeira ao lado

43
da sua cama e acaricio os seus dedos de leve. Estão gelados.
Entrelaço o meu indicador ao dele, sussurrando:
— Andy, sou eu — paro e respiro fundo, com o nó na garganta
tentando me impedir de falar. — Me perdoe pela noite passada, eu
não deveria ter mandado você embora. Eu não quero que vá. Fui
injusta e insensível com os seus sentimentos. Eu sou mesmo muito
destrutiva, além de chata, esquisita... O que você foi ver em mim?
— e passo o nariz nos dedos dele. — Eu gostaria, com todo o meu
coração, de retribuir o seu amor. Eu te amo, de outra forma, mas
eu te amo muito. Não desista, por favor. Sei que não estou em
condições de te pedir nada, mas vou pedir assim mesmo: lute. Por
favor. Por mim.
Respiro fundo, sem saber o que fazer. Como posso ficar sem
Andrew? O estado dele é grave, eu vejo na sua cor cinzenta, e no
gelo de sua pele. O que eu posso fazer para reverter essa situação,
para instigá-lo a lutar pela própria vida?
Ele pode me ouvir? E se eu... Como poderia... Será?
— Andrew, eu vou te fazer uma promessa e quero que preste
muita atenção. Se você ficar bom, vou tentar fazer alguma coisa a
respeito de nós dois. De repente, encontramos um caminho. Quem
sabe isso pode dar certo? Você pode ter razão, podemos fazer uma
tentativa. Aliás, você sempre tem razão. Isso é irritante, sabia? —
digo, beijando a sua mão de leve, sentindo os meus lábios
congelarem ao toque.
A enfermeira entra, me avisando de que Andrew precisa
descansar. Faço um carinho suave com o dedo que está entrelaçado
ao dele e me despeço, prometendo voltar.

Em casa, vou para o sofá, buscando um cigarro na bolsa. Estou


atordoada. Fiz uma promessa para Andrew no calor do momento,
na ânsia desesperada de que ele fique bem, e não sei como diabos
poderia fazê-lo feliz. Como fazer isso dar certo, uma vez que não
sou apaixonada por ele?
Enfim, o que menos importa no momento, é o que eu sinto. Ele
me ama e precisa de mim, agora mais do que nunca. Eu também o
amo, não da mesma maneira, mas esse amor terá de ser suficiente.
Não posso mais questionar sobre isso e tomo uma decisão, a mais
séria que já tomei em toda minha vida: vou ficar com Andy, pelo
tempo que ele me quiser. Se isso o fizer feliz, então assim será.
Devo isso a ele, não quero que sofra mais. Quem sabe, com o
tempo, não aprendo a amá-lo como merece? Minha vida será para
ele, de hoje em diante. É assim que tem que ser.
Sinto um buraco no estômago. Olho no relógio de pulso, e são
três horas da tarde. Não coloco nada no estômago desde ontem.
Decido sair para comer alguma coisa, será uma boa desculpa para
que eu possa dirigir um pouco.
As opções para o almoço são restritas. Os restaurantes já estão
fechados, e eu não quero encarar um fast food. Tampouco, quero
sair do bairro. Sigo pelas ruas, e menos de dez minutos depois,
encontro uma cafeteria. Estaciono em frente e entro, pedindo um
cappuccino e um bagel. Não consigo comer nem a metade. Decido
me dedicar ao cappuccino, que está descendo pela garganta com
um pouco menos de dificuldade. Minha cabeça começa a doer e
meu estômago revira. Busco o meu antiácido na bolsa e engulo,
junto com um analgésico.
Saio da cafeteria e vejo o mercado do outro lado da rua, o
mesmo que Andy e eu fomos ontem à noite. Essa lembrança me dá
uma pontada no peito. Acho que seria bom colocar alguma comida
na geladeira. Andrew iria gostar disso.
Atravesso e entro no supermercado, pegando uma cesta de
compras. Caminho, sem pressa, pelos corredores. Pego uma caixa
de leite, uma de suco de laranja, pó de café, iogurte, um pacote de
pães e uma dúzia de ovos. Vou ao balcão de frios e peço trezentos
gramas de blanquet de peru, e algumas salsichas. Por último, pego
um fardo de cerveja. Acho que já está de bom tamanho. Só de olhar
para tudo isso, meu estômago embrulha.
Dirigindo-me ao caixa, lembro de que estou ficando sem
detergente de louças e volto para o corredor de produtos de
limpeza. Descubro que trocaram o produto de lugar e me estico ao
máximo, me colocando na ponta dos pés, na tentativa de alcançá-
lo na prateleira mais alta.
De repente, sinto uma súbita onda de calor, e o meu corpo todo
estremece. Alguém atrás de mim pega o detergente com facilidade,
fazendo um gesto para me entregar. Viro-me para agradecer e
engasgo, ao ver que, parado à minha frente e com um sorriso
arrebatador que chega até os olhos, está ninguém mais, ninguém
menos do que Paul Newman.

45
stou paralisada. Demoro alguns segundos, para
compreender que essa figura arrebatadora realmente está
aqui, parada na minha frente e sorrindo para mim.
— Desistiu do detergente, Srta. Geller? — pergunta, e o sorriso
agora tem um toque irônico.
— Ah, c-claro, o-obrigada — respondo, consciente de que devo
parecer ridícula gaguejando, desconcertada, na frente dele.
Abaixo os olhos e coloco o frasco na minha cesta de compras.
— Você vem sempre neste supermercado, Srta. Geller?
Eu só quero sair correndo e me livrar da presença desse homem
lindo, que me deixa tão encabulada. E hoje, arrumado de forma
informal, ele está de matar: Paul Newman veste uma camiseta de
malha preta e uma calça de moletom cinza, com um par de tênis
de corrida. Não consigo deixar de olhá-lo de cima a baixo, o que ele
percebe claramente, dando um sorriso malicioso.
— S-sim, moro aqui perto. Nunca o vi por aqui antes — tento
soar indiferente, mas a minha respiração acelerada me condena.
— Eu costumava frequentar outro supermercado, bem longe
daqui, perto de onde eu morava. Mudei-me para o bairro ontem,
então resolvi dar uma explorada por aí e abastecer a geladeira —
diz, sorrindo.
Paul Newman no meu bairro? Meu vizinho? É sério isso?
— Ah, sim. Está gostando? — e sinto o meu estômago revirando
em um desajeitado demi-plié5.

5-Demi-plié: é um passo de ballet clássico, onde os joelhos são flexionados até o máximo que o bailarino
conseguir, acompanhando a linha dos pés e sem tirar os calcanhares do chão.
— Ainda não pude ver muita coisa. Estou envolvido com a
mudança, e isso é muito chato. Apesar de que, não tenho muitas
coisas para colocar no lugar. Minha noiva e eu morávamos juntos,
mas terminamos. Ela não ficou muito satisfeita e destruiu a maioria
das minhas coisas, incluindo as roupas — diz, com o olhar fixo no
meu, de modo tão profundo, que temo que possa desvendar a
minha alma.
Uma pequena luz de alerta se acende na minha mente.
Ele e a noiva terminaram? Ele era noivo? Claro que devia ser.
Um homem desses, sozinho? Nem pensar! Apesar de que, ele está
sozinho agora!
Meu estômago se contorce ainda mais.
— Ah, sinto muito por isso — digo, abaixando os olhos e
interrompendo o contato visual perturbador.
— Obrigado, Srta. Geller, mas estou bem. Você é quem não me
parece muito bem, está doente?
Só então me dou conta de que devo estar com uma aparência
horrível. Passei a madrugada toda e parte do dia no hospital, sem
banho, sem dormir e, como coloquei a primeira roupa que encontrei
no armário quando recebi a ligação acerca do acidente, a
composição não está nada bonita: calça jeans desbotada, tênis e
um camisão de moletom. O cabelo está mal preso em um rabo de
cavalo.
— Não, só estou cansada. Um amigo sofreu um acidente de
carro, passei a noite no hospital e saí de lá agora a pouco — digo,
com tristeza.
— Sinto muito Srta. Geller, ele vai ficar bem?
— Espero que sim. E pode me chamar de Karen.
— Bom, Karen, eu estava indo pagar por essas compras, gostaria
de me acompanhar?
— Sim, também já terminei.
— Você na frente, por favor — e faz sinal para que eu possa
passar.
Caminho até o caixa, nervosamente, sentindo o olhar escaldante
de Paul Newman sobre mim.
Meu vizinho! Isso é inacreditável! Solteiro! Mais inacreditável
ainda!
Mas isso não faz, realmente, diferença. Um homem desses nunca
olharia para mim. E, mesmo se olhasse, eu não quero e não posso
ter nada com ninguém. Ainda mais agora, depois da promessa que
fiz a Andrew.

47
Saímos do supermercado, e Paul coloca as suas compras em
uma mão, estendendo a outra para pegar as minhas sacolas.
— Posso acompanhá-la até a sua casa, Karen?
— Realmente não precisa, Sr. Newman, meu carro está parado
ali em frente.
— Ah, está de carro? Achei que morasse perto. E me chame de
Paul.
Abaixo os olhos, envergonhada. Como explicar para esse homem
lindo e deliciosamente esculpido, que cinco quarteirões configuram
uma distância gigantesca para mim?
— Moro a cinco quarteirões daqui, vim de carro porque estava
com vontade de dirigir um pouco.
— Deixe-me ao menos acompanhá-la até o carro — diz, pegando
as minhas compras e sem me dar tempo de responder.
Atravessamos a rua, desligo o alarme e abro a porta do carona.
Na hora em que Paul Newman se abaixa para colocar as sacolas
sobre o banco, seu braço roça pela minha barriga, e sinto o seu
perfume. Uma nova onda de calor toma conta de mim, me fazendo
estremecer.
— Agradeço a gentileza, Paul — digo, sem conseguir disfarçar a
voz rouca, estendendo a mão para cumprimentá-lo. Ele passa o
polegar pelo meu pulso, enviando uma corrente elétrica
diretamente para o meio das minhas pernas.
— Você está bem mesmo, Karen? Precisa de alguma coisa?
Sinto a minha pele queimar.
— Estou sim, obrigada. Só preciso dormir um pouco — respondo,
recolhendo a mão.
Sorrio, timidamente, e dou a volta no carro, entrando, batendo
a porta e colocando a chave na ignição. Paul se abaixa, me olhando
pela janela fechada do carona. Antes de dar a partida, abaixo o
vidro.
— Foi um prazer encontrá-la e saber que somos vizinhos. Quem
sabe, um dia desses, possamos sair para tomar um café, e você me
leva para conhecer as redondezas?
— Certo, podemos ver isso – respondo, girando a chave.
— Até amanhã, Karen.
Saio com o carro, vendo a imagem de Paul Newman diminuindo,
lentamente, no retrovisor. Já não me lembrava da reunião de
amanhã. Minha respiração acelerada começa a voltar ao normal.
Afinal de contas, que raio de homem é esse, que me tira o fôlego,
o chão, e a capacidade de andar, falar e respirar ao mesmo tempo?
Debaixo da água morna do chuveiro, me pergunto como estará
Andrew. Sei que não faz muito tempo que saí do hospital, mas
preciso de notícias. Penso na minha promessa e, como uma
invasora, a imagem de Paul Newman vem à minha mente.
Hoje pude ver, mais de perto, alguns detalhes que não percebi
no dia da reunião. A barba dele é rala, mas não é barba por fazer,
é bem cuidada e desenhada. É opcional. Quando sorri, suas
bochechas sobem levemente, desenhando uma linha delicada
embaixo dos olhos. Paul Newman, literalmente, sorri com os olhos.
Dependendo da forma como pronuncia as palavras, duas covinhas
tímidas aparecem em suas bochechas. Nos olhos azuis eu já havia
reparado, só não sabia que possuíam poderes hipnotizadores. E o
corpo... Não é exageradamente forte, tem os músculos perfeitos,
bem desenhados e torneados. Parece uma escultura humana.
Realmente, um sujeito lindíssimo. E cheiroso! Que cheiro delicioso
tem aquele homem... Um perfume que nunca senti antes, elegante,
masculino, sutil, primitivo, porém delicado. Quase consigo sentir
novamente, só de me lembrar...
Termino o banho, antes de sucumbir ao desejo do meu corpo de
ser tocado, se aproveitando da lembrança de Paul Newman. Visto
uma calça de brim preta, uma camiseta e um casaco de moletom
cinza, por cima. Coloco o mesmo par de tênis de antes, trocando
apenas as meias. Prendo o cabelo molhado em um coque e pego as
chaves. Ainda não descansei, mas não posso esperar para voltar ao
hospital.

O estado de Andrew permanece o mesmo. A mãe dele está na


sala de espera da UTI, onde vai passar a noite. Não consigo vê-lo
de imediato, já que estão trocando o curativo da cirurgia. Decido ir
até a lanchonete e buscar alguma coisa decente para Eva comer.
Saio do hospital e acendo um cigarro. A noite está fria e, o céu,
pouco estrelado. Termino de fumar e vou procurar a lanchonete,
onde consigo comprar um sanduíche de atum e um café com leite
para Eva, que agradece imensamente.
Finalmente, me liberam para ver Andrew. Nada parece
realmente diferente. Ele continua inconsciente, e me pergunto
quanto tempo o efeito da anestesia ainda pode durar. Sento na
cadeira ao lado da cama e entrelaço nossos indicadores. Deito a
cabeça no cobertor, por cima do seu quadril, e relaxo por estar
perto do meu amigo. Definitivamente, é o lugar mais familiar do
mundo.

49
— Andy, estou aqui de novo. A noite hoje está bem fria, e o céu
com poucas estrelas. Você certamente iria reclamar. Sei como
gosta do céu estrelado, e como me critica por eu preferir as nuvens.
Parece que vai dar uma esfriada forte, por esses dias. Quando você
sair daqui, a gente vai planejar de uma vez a nossa ida à Moscou.
Estamos sempre adiando pelo meu medo de viajar de avião, não é?
E você vai ter que me levar a pelo menos um espetáculo do Bolshoi
— sorrio, imaginando Andrew reclamando e revirando os olhos
diante da possibilidade. — Será que você pode me perdoar e
começar a melhorar? Sinto tanto a sua falta... — sussurro e acabo
cochilando, apoiada no meu querido amigo.
Depois de ser acordada pela enfermeira, questiono sobre o
estado de Andrew e sua demora em voltar da anestesia, para ter a
pior notícia de todas: o efeito já passou.
Andrew está em coma.
segunda-feira começa arrastada, e me sinto deprimida
e sem ânimo. Bob está de folga na parte da manhã, e
fico grata por isso. Gabs e eu somos amigas, a única
amiga que tenho além de Andrew, e gosto de conversar e desabafar
com ela, que está bastante atenciosa comigo em solidariedade pelo
que aconteceu no fim de semana. Porém, ao lembrar-me da
conversa que tivemos mais cedo, fico mais angustiada.
— Uau, Karen! O interesse dele em você sempre foi nítido! Como
você não notou? Todo mundo falava, até achamos, de início, que
vocês eram mais do que amigos, você sabe disso.
— Eu não sei, Gabs, não sei mesmo. Eu fico retomando algumas
coisas na minha cabeça e penso que, em certos momentos, eu
deveria ter enxergado algum sinal. Mas ele também era muito sutil.
— Olha, já que você realmente é inocente desse jeito, e eu sou
sua amiga, vou te dar uma dica: fica esperta com o Bob.
— Ahn? Como assim?
— Bob gosta de você. A diferença, é que Andrew é carinhoso,
educado, paciente, além de te amar e ser seu amigo. Ele sabe te
tratar e nunca se aproveitou de uma oportunidade de
vulnerabilidade. É quase um príncipe. Bob é muito boa gente, não
é maldoso, mas é homem e quer te comer. Então, fica esperta.
— Gabs! É sério isso? Como você sabe? Ele já te falou alguma
coisa?
— Eu sei, porque eu tenho uma vantagem sobre vocês dois: eu
sou uma mulher, com a cabeça de um macho. Eu percebo a
linguagem corporal de ambos os lados. E você, inconscientemente,
já sabe, porque já te peguei várias vezes se encolhendo, quando
ele joga algum comentário maldoso. Aprenda a confiar mais nos
seus instintos e menos nessa autoestima de merda que você tem.

51
Será que é isso? Considero-me tão indesejável, que não acredito
que alguém possa me querer? Será por isso que não enxergo as
coisas acontecendo ao meu redor?
— Olha, isso é o de menos, e o assunto nem é esse, só quis
aproveitar para te alertar. O que realmente estamos tratando aqui
e que não faz sentido é você se culpar por Andrew. Você estava
nervosa, sem saber o que fazer, procurando uma solução. E o que
mais me irrita, é essa promessa maluca que você fez. Sacrificar a
sua vida e a dele? Pelo amor de Deus! Ainda bem que,
provavelmente, ele não ouviu esse monte de bobagens.
Não soube o que dizer depois disso e optei por me distrair,
colocando os meus e-mails em dia. Agora que terminei, decido
procurar a Newman Construction S.A no Google, para estudar mais
sobre a empresa. Todas as notícias que encontro são relacionadas
a projetos de sucesso, faraônicos: arranha-céus, mansões,
complexos, enfim, verdadeiros monumentos arquitetônicos.
Realmente, é uma construtora de sucesso. O que torna ainda mais
impressionante a mudança de objetivos na cultura da empresa. É
um tanto incompreensível, admito, mas estou adorando fazer parte
disso. Lembro-me da minha mãe, lutando sozinha depois da morte
do meu pai, para sustentar a casa, já hipotecada. Como seria bom
se ela tivesse uma chance como essa na época, de ter uma casa
própria por um valor razoável, como essas que os Newman querem
construir.
Logo após o almoço, enquanto aguardamos o horário da reunião,
Gabs, que está com o notebook no colo, dá um gritinho:
— Gente, vocês já viram a noiva de Paul Newman? Eles estão no
Google!
Tento não correr para olhar, forçando as minhas pernas a
andarem calmamente até a mesa de Gabs. Ao me deparar com a
foto, meu queixo cai. A mulher é deslumbrante! Alta, magérrima,
seios siliconados, ressaltados em um decote generoso, cabelos
loiros e brilhantes, até o meio das costas, pele bronzeada e grandes
olhos verdes.
Ele não está mais com ela.
E rio da minha pretensa alegria, quando Paul Newman me contou
que está solteiro. Olha o tipo de mulher que ele gosta! Estou há
anos luz de distância.
São 13h05min, quando Sabrina abre a porta da sala de reuniões,
onde estamos Bob, Gabriela e eu. Estranhamente, após a entrada
de Paul Newman — que está glorioso em um terno azul marinho,
de corte italiano e camisa branca, sem gravata, com os dois
primeiros botões do colarinho abertos. — a porta se fecha. Parece
que veio sozinho. Ele cumprimenta Bob e Gabriela com cortesia, se
dirigindo a mim, em seguida:
— Olá, Karen, como vai?
— Estou bem, obrigada — respondo, corando.
— Você parece melhor. E o seu amigo?
— Na mesma, mas obrigada por perguntar — abaixo os olhos,
evitando o olhar da Srta. Gonzalez, que deve estar me encarando,
cheia de uma curiosidade maliciosa.
Paul sorri e se senta em uma cadeira, de frente para nós.
— Daqui para frente, cuidarei de todos os detalhes da campanha.
Meu pai está ocupado com uma construção em Trenton, e meu tio
está com ele. Portanto, seremos apenas nós quatro, trabalhando
juntos — diz, com um tom simpático, porém muito profissional. —
Vamos fazer isso funcionar e da melhor maneira, tenho certeza.
Trouxe algo que escrevi para a reunião, de forma bem orgânica,
que podemos explorar para assumirmos uma direção favorável a
todos — e ali, nas entrelinhas, posso notar a sua paixão pelo que
faz, tão bem aparente na reunião anterior.
Começamos, e tomo nota de tudo o que aparentemente é
importante. A descrição de Paul acerca de suas ideias é muito mais
precisa e contundente do que achei que seria, o que parece nos
nortear, uma vez que a subjetividade não sistematizada seria uma
perda de tempo. Bob, Gabriela e eu colocamos algumas das ideias
sobre as quais conversamos, e tudo parece se encaixar de forma
harmoniosa com as ideias de Paul. Passamos as próximas duas
horas discutindo, escrevendo, desenhando, concordando,
discordando, e as primeiras nuances da campanha da Newman
Construction S.A começam a tomar forma. É um pequenino
embrião, mas os bracinhos e perninhas já podem ser vistos.
Fazemos um intervalo, quando Sabrina entra com uma bandeja
contendo um bule de café, um jarro de leite, quatro xícaras, com
pires e colherinhas, um açucareiro e uma bomboniere, recheada de
pequeninos e delicados biscoitos amanteigados. Paul Newman toma
a iniciativa e serve o café nas quatro xícaras, perguntando como
cada um gosta do seu.
— Puro e sem açúcar, por favor — respondo.
Ele levanta uma sobrancelha, intrigado.
— Amargo?
— Como a vida! — responde Gabriela, sorrindo para mim.
É a minha resposta costumeira, quando me perguntam por que
gosto de café amargo.

53
O clima muda completamente, de brainstorm profissional para o
que parece um encontro de colegas. Isso graças a Paul Newman,
que conduz até mesmo a pausa para o lanche, transformando-a em
um momento agradável, onde todos parecem relaxados. Todos,
menos eu. Durante a reunião e, mesmo agora, ele dirige o olhar
para mim várias vezes, mesmo enquanto os meus colegas falam.
Pelo menos hoje, acredito estar mais apresentável do que
ontem, no supermercado. Optei por uma calça de sarja preta, blusa
rendada branca e de manga curta, uma sandália plataforma branca,
de cortiça e os cabelos soltos. Mas tenho consciência de que o meu
pouco e agitado sono, a preocupação e o cansaço, deixam minha
aparência pior do que comumente é.
— É sempre tão calada, Karen? — Paul me tira dos meus
pensamentos.
— Ih, essa daí é assim, está sempre se escondendo em algum
cantinho — Gabriela responde, me dando uma piscadela.
Faço uma careta. O que ela está pretendendo?
— Não seja inconveniente, Srta. Gonzalez. É que estou um pouco
cansada, Sr. Newman, só isso — respondo, com a cara fechada para
Gabriela.
— Bom, então não vamos demorar, para não prolongar ainda
mais o cansaço da Srta. Geller. Retomemos a reunião. Na verdade,
podemos conciliar os dois. Quanto mais cedo recomeçarmos, mais
cedo terminaremos — diz Paul, com um sorriso terno para mim.
Engasgo com o café, começo a tossir, e Bob me dá tapinhas nas
costas.
— Não, imagina, eu estou bem, nós estamos aqui para trabalhar.
Vamos fazer isso — e começo imediatamente a falar sobre um
tópico que pensei durante a minha reunião com Bob e Gabriela.
Trata-se da minha principal aposta para o projeto: a ideia de unir
sustentabilidade e consciência ecológica na construção desses
condomínios, propostos pela Construtora Newman. Além de ser um
tema em voga no mundo contemporâneo, uma casa construída com
materiais ecologicamente sustentáveis é mais barata, tanto em
curto quanto em longo prazo, além de ser um benefício
inquestionável para o planeta. Falo demoradamente sobre o
assunto, me cercando do cuidado de apresentar vários dados
estatísticos de estudos que utilizei como fontes de pesquisa, e
corroboram exatamente para o que quero dizer.
Quando termino, fito os olhos de Paul, que parecem fascinados.
Ele não fala nada e permanece me observando. Não consigo desviar
do olhar penetrante que me prende e suga, me tirando a capacidade
de raciocínio. Um silêncio constrangedor toma conta da sala,
quebrado providencialmente por Bob, que pigarreia e começa a dar
a sua opinião sobre o assunto, dissolvendo o nosso contato visual.
A reunião se estende por mais duas horas, quando parece que
finalmente as ideias se esgotaram. Terminamos satisfeitos e
orgulhosos com o resultado, inclusive Paul Newman, que se mostra
ainda mais entusiasmado com a consciência de que conseguimos
compreender a missão que temos pela frente. Marcamos uma nova
reunião para sexta-feira à tarde, a fim de definirmos metas,
perspectivas e o formato da campanha. Paul faz questão de
encontrar-se presente, mais uma vez. Está mesmo envolvido nisso,
parece realmente ser a sua meta de vida.
Despeço-me de todos, pedindo licença e seguindo para a sala de
criação, a fim de guardar as minhas coisas e sair, de preferência
antes de Bob e Gabriela aparecerem. Não estou com humor para
responder às perguntas que certamente me farão, a respeito de
Paul Newman. Quando me viro para ir embora, eles estão entrando.
Com um breve adeus saio da sala, seguindo pelo corredor. Aceno
para Sabrina na recepção e passo pela portaria do prédio, dando de
cara com Paul.
— Karen, estava aqui pensando se você não se incomodaria de
me dar uma carona. Meu carro está na revisão. Ia pegar um taxi,
mas já que moramos tão perto... — ele diz, e eu fico desconcertada.
Esse homem nem deve caber no meu carro!
— Eu daria carona, com prazer, mas vou passar no hospital para
ver o meu amigo, antes de ir para casa — respondo, dando graças
por ter me livrado de estar em um carro apertado com o
arrebatador Paul Newman, a uma distância nada segura.
— Ah, que ótimo, não estou com pressa e adoraria acompanhá-
la, se não se importar — diz, com um sorriso terno.
O quê? Ele quer ir ao hospital comigo? Que raio de ideia
estapafúrdia é essa? Esse homem deliciosamente lindo não tem
nada melhor para fazer? Que absurdo!
— Bom, se você realmente não se incomoda... Apesar de que,
não acho que seja um programa muito divertido — digo, abaixando
os olhos.
Ele sorri e me oferece o braço para irmos até o carro, onde dou
a partida e saio, a tempo de ver, pelo retrovisor, duas figuras
boquiabertas e olhando para nós.
Droga! Amanhã terei de enfrentar mais uma inquisição Creag-
Gonzalez.

55
e importa se eu ligar o som? — pergunto, na esperança
de que a minha respiração entrecortada, o meu coração
acelerado e o meu estômago revirando não sejam
ouvidos por Paul.
— De forma alguma.
Creep começa a tocar, com seus acordes perturbadores e,
imediatamente, me sinto em um ambiente mais seguro. Paul olha
para o rádio, depois para mim, fazendo um barulho com a garganta.
Acho curioso e contenho um sorriso.
— Não gosta de Radiohead?
— Gosto, mas o fato de ser a primeira música que toca quando
você liga o som do seu carro, me diz que a impressão que tenho ao
seu respeito é bastante coerente.
Impressão ao meu respeito? Que porra é essa? Esse cara não
me conhece, como poderia ter qualquer impressão ao meu
respeito?
— E eu poderia saber qual seria? — pergunto, com uma rispidez
mal disfarçada.
— Que você é triste, Karen.
Ah... Ele está indo ao hospital comigo, visitar um amigo querido
e que está em coma. Uma situação bem triste por si só.
Parabéns, Sherlock.
— Não estou dizendo que você está triste por causa do seu
amigo, porque isso é natural — diz, como se respondesse aos meus
pensamentos. — Falo dessa tristeza profunda que vejo em seus
olhos, em seu corpo, na sua voz... Está enraizada. Você não está
triste. Você é triste.
Abro a boca duas vezes para responder, indignada, mas não
encontro o que dizer. Quem deu a ele o direito de criar impressões
ao meu respeito? E que intimidade é essa que Paul Newman pensa
ter, para me falar esse tipo de coisa?
Uma raiva absurda toma conta de mim, e ultrapasso o próximo
sinal vermelho, sem perceber. Ele nota a minha irritação e
comenta:
— Desculpe se fui invasivo e a aborreci. Só quis arrumar um jeito
de dizer que, caso precise conversar com alguém, estou à
disposição.
Ah, faça-me o favor, quer virar meu amiguinho, agora?
— Agradeço, mas estou indo bem até então. E isso é
extremamente inapropriado. Você é meu cliente e mal me conhece.
Aliás, você não me conhece — falo, com rispidez.
— É, tem razão. Não conheço mesmo — e solta um longo suspiro.
Chegamos ao hospital. Estaciono e saio logo do carro, batendo a
porta com força. Paul também sai e faz menção de me acompanhar,
quando me viro e digo:
— Não devo demorar, você pode me esperar aqui — e saio
andando rapidamente, antes de dá-lo a chance de responder.
Eva me abraça forte. Está abatida pelo cansaço, com os olhos
fundos e a expressão caída. Parece tão desprotegida... O meu
coração se enche de compaixão por ela.
— Está aqui desde quando?
— Desde hoje cedo, filha. Linda viria passar a noite, mas teve
um imprevisto no trabalho e não conseguirá sair de lá, então ficarei
por aqui — Eva diz, resignada, com a sombra de um sorriso no
rosto.
— Eu fico essa noite, se você não se incomodar.
— Não, minha querida, você precisa descansar, trabalhou o dia
todo — responde, passando a mão no meu rosto, da forma que só
uma mãe sabe fazer.
— Eu estou bem, de verdade. Você precisa tomar um banho,
comer direito e dormir um pouco. Não sabemos quanto tempo essa
rotina irá durar, e precisa estar forte para aguentar os dias que vem
pela frente. Eu gostaria mesmo de ficar — digo, segurando forte a
sua mão.
Com os olhos marejados, Eva me abraça apertado.
— Tem certeza, minha filha? — pergunta, ainda em dúvida sobre
o que deve fazer.

57
— Absoluta. É o mínimo que posso fazer — já que a culpa de
Andrew e vocês estarem passando por essa situação é minha. —
Alguma coisa que eu precise saber a respeito dele?
— Não, Cake, ele está estável, mas permanece na mesma — ela
diz, desanimada.
— Estável é bom sinal!
— É... Pode ser.
— Vá descansar. Só vou precisar de um favor. Eu estava levando
um cliente em casa, e ele ficou lá embaixo, esperando no carro.
Você pode entregar as chaves e dizer que ele pode ir dirigindo para
casa? Eu volto de ônibus. Nós moramos no mesmo bairro, amanhã
pego o carro com ele — digo, estendendo as chaves.
— Tem certeza, minha filha? Não quero causar transtornos para
você — diz, apreensiva, torcendo a barra do suéter verde que está
vestindo.
— Não é nenhum transtorno, pode ficar tranquila. Você tem
como ir embora?
— Vou pegar um táxi.
— Então, descanse bem essa noite. Qualquer novidade e entro
em contato imediatamente.
— Está certo, então, minha querida. Muito obrigada! Amanhã
cedo estarei de volta. Que Deus te abençoe, você é mesmo muito
especial — diz, me dando um abraço, seguido de um beijo na
bochecha.
Especial...
Especialmente perigosa.
Vou até à enfermaria, comunicar que estou substituindo Eva e
que gostaria de ver Andrew. Uma das enfermeiras diz que, assim
que for possível, me avisará. Meia hora depois, ela me libera para
entrar na UTI. Nada parece diferente. Tomo o meu lugar na cadeira
ao lado da cama, enroscando o meu indicador ao dele.
— Oi, voltei. Como estão as coisas por aí? O que você anda
aprontando nesse esconderijo? Aposto que está pentelhando
alguém! — e solto uma risada triste. — Sabe aquela conta da
Newman? Hoje foi a primeira reunião, de fato. Foi ótima, muito
promissora, parece que falamos a língua que eles querem ouvir.
Você ficaria orgulhoso — penso na inacreditável inconveniência de
Paul Newman e no quanto gostaria de contar isso para Andy, que
certamente faria algum comentário mordaz e me renderia boas
risadas. Decido não aborrecê-lo com isso, agora. — Vou ficar
famosa e caminhar por largos e longos tapetes vermelhos, de
premiações publicitárias. Você tem que voltar para me
acompanhar, senão não vai ter a menor graça. Você vai voltar, não
vai? Sei que quer dar um tempo por aí, mas não demore muito
mais, por favor. Sinto tanto a sua falta! — e dou um beijinho suave
nos dedos de Andrew, esfregando o meu nariz nas costas da sua
mão.
Apoio a cabeça no quadril do meu amigo e fico assim, por um
bom tempo.
Começo a tremer de frio e olho o relógio de pulso. São quase
nove da noite. Como o tempo passou rápido! Devo estar aqui a mais
de uma hora, e nenhuma enfermeira veio me expulsar. Fico grata
por terem se esquecido de mim, mas está quase insuportável de
tão gelado, e decido buscar um café na lanchonete, na tentativa de
me aquecer. Não vim preparada para ficar, então, não tenho
nenhum agasalho mais quente à disposição e não me atreverei a
pedir um cobertor para as enfermeiras.
Despeço-me de Andrew e saio da UTI, fechando a porta atrás de
mim, com cuidado. De repente, sinto uma súbita onda de calor.
Prendo a respiração, ao olhar para as cadeiras da sala de espera.
Sentado, com os cotovelos apoiados nos joelhos, as mãos
entrelaçadas e olhando para mim, está o homem mais
inconvenientemente perturbador que já conheci.

59
que você está fazendo aqui?
— A mãe do rapaz me entregou as chaves do seu carro
e me deu o seu recado. Espero que não se importe,
mas fui levá-la em casa. Voltei, porque jamais poderia deixá-la ir
de ônibus, em especial depois de passar uma noite inteira acordada,
no hospital. E, como também não permitirei que dirija, ainda mais
cansada como estará, ficarei com você e a levarei embora pela
manhã — Paul responde com simplicidade, dando de ombros, como
se estivesse me informando sobre a previsão do tempo.
Estou aturdida. Quem é esse homem e o que ele quer, afinal?
Será que é maluco? É isso, deve ser louco. Talvez um psicopata.
Não, ele demonstra muita paixão pela vida para ser um psicopata.
Deve ser só um doido varrido qualquer.
— Paul, isso é um absurdo! Eu agradeço, mas posso voltar
dirigindo. Não vou dormir ao volante, nem nada parecido — digo,
passando a mão nos cabelos, nervosa.
— Como não há garantias disso, vou dar essa discussão por
encerrada. Não posso deixar que você arrisque a sua vida, senão
vou perder a minha publicitária mais talentosa, e não terei a minha
campanha finalizada — fala, com firmeza, mas me dando uma
piscadela, acompanhada de um meio sorriso.
Sei que não adiantará argumentar, ele não vai mudar de ideia.
Achei que sua campanha seria um desafio, mas, certamente, Paul
Newman é um desafio muito maior. Dou um suspiro, me dando por
vencida.
— Venha, vamos tomar um café — digo, de braços cruzados.
— Será um prazer acompanhá-la, Srta. Geller — e se coloca ao
meu lado, sorrindo e oferecendo o braço. Reviro os olhos, e
caminhamos juntos para a lanchonete.
Peço um café grande, puro e sem açúcar, enquanto Paul prefere
um cappuccino. Ele mexe em sua xícara com a colher, e a leva à
boca para experimentar, dando um pulo:
— Merda! Quente!
Dou uma risada, mais alta do que gostaria.
— Ora, ora, é a primeira vez que a vejo rir com vontade. Se
soubesse, já teria me queimado antes.
— Seria um espetáculo e tanto, Sr. Newman!
Sinto um ardor incômodo no estômago e encontro o antiácido na
bolsa. Tomo um comprimido, com um gole de café.
— O que é isso que você tomou?
— Antiácido. Eu tenho gastrite nervosa.
— Meu Deus, e toma café desse jeito? — ele arregala os olhos.
— Me mate, mas não tire o meu café. Foi o que eu disse para o
médico — digo, dando mais um gole, de forma desafiadora.
— Você não parece ter o menor apreço por si mesma.
Fico sem jeito e abaixo os olhos, torcendo as mãos no colo.
— Me fale sobre esse rapaz que está em coma. Vocês são amigos
há muito tempo?
Alegro-me imediatamente. Adoro falar de Andrew, é um assunto
fácil e muito agradável para mim.
— Oito anos. Desde a escola. Ele é o meu melhor amigo.
— E como foi que ele veio parar aqui?
Entristeço e abaixo os olhos novamente. Paul levanta meu
queixo com o indicador.
— O que foi? — pergunta, com o olhar preocupado.
— Ele está assim por minha culpa — digo, com a voz engasgada.
— Como assim? — Paul franze a testa.
Decido resumir a história:
— Ele estava na minha casa, e tínhamos bebido quase duas
garrafas de vinho. Tivemos uma briga, e mandei-o embora. Ele
pegou o carro e saiu em alta velocidade, chovia e a pista estava
molhada. Andrew perdeu o controle, derrapou e bateu de frente
com um poste.
Paul olha para mim, ainda de testa franzida.
— E onde entra a sua culpa nisso?
— Está claro, não? Se eu não o tivesse mandado embora, e ele
tivesse passado a noite lá em casa, nada disso teria acontecido.

61
— Hum... Eu não acho muito justo você se culpar. As pessoas
discutem, brigam e se reconciliam o tempo todo. Isso faz parte da
vida. Você nunca quis que isso acontecesse e, tampouco, poderia
prever um desfecho desses.
— Mas eu devia ter sido menos egoísta e pensado nele.
— Bem, isso depende. Qual foi o motivo da briga?
Fico envergonhada. Isso é muito íntimo. Não quero expor a
Andrew ou a mim. Não sei por que Paul está fazendo tantas
perguntas. E não sei por que eu, simplesmente, não consigo deixar
de responder.
Mudo de ideia, ele não é louco. É uma espécie de bruxo
poderoso.
— Porque ele decidiu que queria ser mais do que meu amigo —
respondo, de cabeça baixa.
— E você não quer? Não se interessa por ele?
— Não. Não me interesso por ninguém. Estou morta por dentro
— falo rapidamente, antes de conseguir segurar as palavras.
Paul arregala os olhos e para a xícara no meio do caminho,
quando ia levá-la aos lábios. Pousa a louça de volta no pires, se
recompondo, e pergunta:
— Por que se sente morta por dentro?
— Eu não me sinto, eu estou. Eu sou uma sombra de alguém
que já não existe mais. E você está aqui, em plena segunda-feira à
noite, perdendo o seu tempo com alguém que é menos do que
nada.
Paul não se intimida pelo meu olhar e rebate, com um meio
sorriso:
— Srta. Geller, definitivamente nós discordamos sobre o conceito
de desperdício de tempo. Posso saber por que você acha que é
menos do que nada?
— Porque tudo o que eu tinha, foi tirado de mim. Não sobrou
nada.
— Como assim?
Paro de falar. Essa não é uma história que eu contaria a um
desconhecido, mas Paul Newman está sentado à minha frente,
solícito e preocupado. Talvez ele tenha o direito de saber com quem
está lidando.
— Se não quiser, não precisa me contar, mas eu gostaria
realmente de saber.
— Considerando que você está perdendo o seu tempo comigo,
creio que não tenho outra escolha... Aos treze anos, conheci um
garoto. Ele tinha acabado de se mudar com a família para uma casa
próxima à nossa. O nome dele era Marcus e tinha quinze anos.
Paul olha para mim, compenetrado.
— Nós morávamos em Iqaluit, território de Nunavut, pois meu
pai trabalhava na Ilha de Baffin. Era a última sexta-feira antes das
aulas começarem, e saí para andar de bicicleta. O dia estava
ensolarado, e eu gostava de aproveitar o calor do sol. Estava
descendo pela ladeira da minha rua, quando o freio da minha
bicicleta falhou. Comecei a gritar, desesperada, porque o fim da
ladeira dava em um cruzamento, onde passavam carros o tempo
todo. Marcus estava na calçada, em frente à sua casa, viu aquilo e
não pensou duas vezes antes de se enfiar na frente da bicicleta, na
tentativa de pará-la. E conseguiu. Eu caí de lado, apenas arranhei
um pouco o rosto e o cotovelo, mas ele bateu a cabeça e quebrou
uma das pernas. Tudo isso, para me salvar.
Tomo mais um gole de café.
— Ele teve de ficar em casa por vinte dias, com a perna
engessada e sem poder sair. Eu ia visitá-lo diariamente, levava a
matéria das aulas e o seu dever de casa, além de doces e revistas.
Passávamos as tardes estudando, rindo, conversando, jogando
videogame... E nunca mais nos separamos. Acabamos nos
apaixonando. Era um amor lindo e infantil. Ele foi à minha casa,
pedir permissão para namorar comigo. O meu pai, que era o cara
mais incrível do mundo, não só permitiu como apoiou. Ele viu a
pureza do sentimento que tínhamos um pelo outro, e a ingenuidade
que carregávamos. E não quis destruir isso, fazendo um grande
drama. Papai foi um bom amigo. O melhor deles.
Paro para tomar outro gole de café. Paul parece nem piscar
diante da minha história.
— Por que diz que seu pai foi um bom amigo? Ele morreu?
— Calma, eu vou chegar lá — digo a ele, que retoma a sua
posição de ouvinte. — Marcus e eu namoramos por dois anos. Dois
felizes anos. Éramos jovens, cheios de planos. Pensávamos no
futuro que teríamos juntos, com que idade iríamos nos casar, como
seria a nossa casa, quantos filhos iríamos ter... O amor que
tínhamos um pelo outro, nos amadureceu precocemente. Ele foi o
meu primeiro... — paro e dou uma tossida. — É... Você sabe.
Olho para Paul e não vejo nenhum sinal de julgamento por eu
ter perdido a virgindade tão jovem.
— Eu era realmente feliz, pensava que era a garota mais sortuda
desse mundo. E foi aí que, de repente, tudo mudou — engasgo,
sentindo aquele familiar nó na garganta.

63
— Ele transou com você e te abandonou? Foi isso? — pergunta,
com a mandíbula tensa.
Fecho a cara imediatamente.
— Não! Marcus nunca faria isso. Ele me amava! — respondo,
com raiva. — Se ousar manchar a memória dele, eu não conto mais
nada e te mando embora — digo para ele, com o dedo em riste e
em tom ameaçador.
— Meu Deus, me desculpe, Karen! Não tive a intenção, só
interpretei mal as coisas. Não falarei mais nada, até que termine —
diz, arrependido.
Demoro alguns segundos e continuo:
— No dia em que fizemos amor pela primeira vez, Marcus me
deu um anel de compromisso, prometendo que se casaria comigo
e pedindo que eu o usasse todos os dias, até que ele trocasse por
um anel de noivado. Era uma bijuteria simples, mas carregada de
significado. Eu adorei o anel e não tirava nem para tomar banho.
Eu amava Marcus com todo o meu coração e tinha a certeza de que
ele seria meu, e eu seria dele, para sempre.
O meu coração aperta, antecipando a dor das próximas palavras.
— Novamente, era sexta-feira, fim das férias de verão. Estava
quente e meu pai nos levou para uma represa que tinha perto de
casa, para passar o dia. Nadamos a manhã inteira, na parte mais
rasa, é claro. Depois, comemos uns sanduíches que minha mãe
havia preparado e nos deitamos na grama. Foi quando percebi que
meu anel não estava no meu dedo. Procuramos em todos os cantos,
mas provavelmente perdi na água. Marcus viu a minha tristeza e
disse que iria encontrá-lo, voltando para a represa. Ele mergulhava,
voltava, olhava para os lados, mergulhava, voltava, e assim fez
várias e várias vezes. Até que mergulhou e não voltou mais.
Paro de falar e fecho os olhos. A dor daquele dia arde dentro do
meu peito, como se eu estivesse vivendo tudo de novo. Sinto Paul
colocar a mão sobre a minha. Abro os olhos e ele está acariciando
os meus dedos com o polegar. Retiro a mão rapidamente e pego o
meu café, dando mais um gole. Está frio.
— Ele havia se afastado muito para o fundo. Eu fiquei
desesperada e comecei a gritar pelo meu pai, que estava cochilando
embaixo de uma árvore, um pouco afastado de nós. Ele veio
correndo e, quando viu meu desespero, entendeu o que estava
acontecendo. Por instinto, pulou na água atrás de Marcus. Só que
o meu pai era um péssimo nadador...
Fico calada. Vejo a expressão de choque no rosto de Paul.
Relembrar tudo isso é doloroso demais para mim, e sei que ele está
ciente disso.
— Só conseguiram encontrá-los dois dias depois, em um estado
tal, que você pode imaginar. A minha vida desmoronou. Perdi tudo
o que eu tinha de melhor, de mais amado, precioso, ao mesmo
tempo. Fiquei em estado de choque. Parei de ir à escola, não saía
de casa, não comia. Simplesmente fui definhando, sem vontade de
viver, por meses a fio. No ano seguinte nos mudamos, e minha mãe
me obrigou a voltar para a escola. A nova diretora gostou de mim
e, por pena eu acho, me aplicou uma prova niveladora, para que
eu não ficasse atrasada e não perdesse o restante do ano. Fui tão
bem no teste, que ganhei uma bolsa de estudos em um colégio
particular. Odiava ir à aula, e o único lugar onde me sentia
minimamente melhor era na biblioteca. Passava horas por lá,
afundada nos livros, todos os dias. Certo dia, fui perguntar à
bibliotecária se um determinado livro estava disponível, e ela me
disse que o último exemplar estava nas mãos de um rapaz, me
apontando Andrew. Foi assim que nos conhecemos, e é como se ele
viesse como um sopro de vida para mim. Andy é espirituoso, bem
humorado, cheio de energia e fez com que os anos se passassem
menos penosos. Ele é a minha alma gêmea, um pingo de luz na
minha escuridão. Tornamo-nos inseparáveis. Só que, infelizmente,
ele confundiu tudo, e agora estamos aqui.
Paul olha para mim e permanece calado, por um tempo. Quando
vê que não vou acrescentar mais nada, diz:
— Karen, eu não fazia ideia. Sinto muito por todo esse
sofrimento e por essas terríveis perdas pelas quais passou, ainda
tão jovem.
— Irreparáveis — sussurro, como se falasse comigo mesma.
— Mas gostaria de entender uma coisa... Por que você fala que
Andrew confundiu as coisas? Ele não pode ter, realmente, se
apaixonado por você?
Reviro os olhos.
— Ah, por favor! Andrew é um desses caras perfeitos. Lindo,
inteligente, carismático, alegre... Ele é iluminado. E eu, bem... Eu
sou eu. Não faz nenhum sentido — digo, dando de ombros.
— Karen, eu estou impressionado com o que esse sofrimento fez
com você. Você criou uma imagem tão distorcida e negativa de si
mesma! — diz, parecendo realmente assombrado.
Não falo nada. Paul me olha fixamente, mas não consigo encarar
os seus olhos agora. Cruzo os braços, na tentativa de me aquecer.

65
O café não foi suficiente para me esquentar, e sinto muito frio. Ele
percebe e se levanta, me oferecendo a mão:
— Vamos voltar para a sala de espera, lá você vai ficar mais
confortável.
— Olha, Paul, realmente é muito gentil da sua parte fazer isso,
apesar de eu não saber exatamente o porquê. Mas, sinceramente,
não precisa. Amanhã você certamente tem que trabalhar e precisa
dormir.
— Está me dispensando, Srta. Geller? — pergunta, em tom de
brincadeira.
— Não é isso, mas é que você está aqui no hospital, onde está
internada uma pessoa que você nem conhece, com uma
acompanhante que mal conhece também... Não faz o menor
sentido.
Realmente não compreendo as intenções de Paul com tudo isso.
Ele me olha e passa o nó do dedo indicador no meu rosto.
— Karen, a única coisa que eu sei é que quero fazer companhia
a você. Não vou deixá-la sozinha — e seus olhos brilham de
sinceridade.
Uma nova onda de calor atravessa o meu corpo. Enrubesço e
abaixo os olhos.
— Vamos? — ele estende o braço para mim, mais uma vez.

São 23h30min, e noto que ficamos mais tempo na lanchonete do


que pude perceber. Paul tira o celular do bolso e parece estar
verificando as suas mensagens.
— Você não precisa avisar a alguém que está aqui?
— Eu moro sozinho, ninguém sabe que não estou em casa.
Lembro-me de quando me contou sobre o fim do noivado, e
resolvo ir por esse caminho.
— É mesmo, você me disse que terminou com a sua noiva. O
que aconteceu?
Ele para, olhando para cima. Parece estar escolhendo as
palavras.
— Simplesmente não deu certo. Ela não era a mulher certa para
mim — é tudo o que ele diz.
— Ah...
— Me diga uma coisa, Karen, depois do seu namorado, você
nunca mais teve ninguém?
— Tive alguns encontros, mas nada que passasse de uma noite.
Não tenho o interesse de me relacionar.
E como poderia? Marcus era a minha vida e morreu em uma
atitude de extrema demonstração de amor. Como eu poderia amar
outra pessoa?
— Nem com esse Andrew? — Paul insiste.
— Andy é um bom amigo... E sei que eu sou a melhor amiga
dele. Ele só está confuso. Apesar de... — e paro, pensando na
promessa que fiz na cabeceira da cama de Andrew.
— O que foi? — Paul pergunta, franzindo a testa.
— Bem, eu prometi que se Andy se recuperar, eu vou ficar com
ele.
Paul me olha, assustado.
— O quê? Quando você prometeu isso?
— Logo que ele deu entrada na UTI, inconsciente. Eu devo isso
a Andrew. Ele só está nessa situação por minha causa.
— Mas você disse que não o ama.
— Não... Quero dizer, amo, mas não dessa maneira.
— E vai sacrificar a sua vida em função de viver com alguém que
não ama? — pergunta, em um tom exasperado.
Dou uma risada desanimada.
— A minha vida não é grande coisa, para isso ser considerado
um sacrifício.
— Karen, essa imagem negativa que criou de si mesma e tomou
como verdade, é muito injusta — diz, em tom amargo.
— Como você sabe?
— Como eu sei... — ele para, por alguns segundos, considerando
minha pergunta — O que vejo na minha frente é uma menina linda,
altruísta, mas profundamente triste. Agora que sei da sua história,
entendo os motivos. Você foi marcada por um passado trágico, de
forma que não consigo nem chegar perto de imaginar. E se culpa
pela morte do seu namorado, do seu pai e, agora, pelo acidente do
seu amigo. E isso a faz enxergar a si mesma como uma pessoa
indigna de amar e ser amada. É como se o seu amor fosse uma
maldição, que destrói quem atravessa o seu caminho. Isso tudo a
faz extremamente infeliz, mas, não sei dizer a razão, a torna ainda
mais linda. Dá vontade de te colocar no colo, de cuidar de você e
mostrar que não é nada disso — e sua voz está embargada, de
emoção e sinceridade.
O meu coração dispara, bombeando um calor morno,
perturbador e agradável por todo o meu corpo.
— Você está enganado — murmuro, com as bochechas
queimando.

67
— Uma pena que pense assim. Sei que realmente acredita que
estou enganado, e isso me deixa muito chateado — diz, abaixando
a cabeça.
Preciso mudar de assunto. Sinto-me desconfortável demais com
o rumo que essa conversa está tomando.
— Quer ir comigo lá embaixo, para fumar um cigarro?
— Você fuma? Desde quando?
Dou de ombros.
— Sei lá. Desde sempre.
— Mais uma forma de se autodestruir? — e levanta uma
sobrancelha.
— Uma forma de relaxar — sorrio.
— Conheço formas melhores. Mas tudo bem, eu vou com você.
Formas melhores?

Encostada no meu carro, dou uma forte tragada, soltando a


fumaça em seguida, enquanto deito a cabeça na porta. Fecho os
olhos e respiro fundo, para sentir o ar da noite.
— Como você não consegue enxergar o quanto é linda? — Paul
pergunta, olhando para mim.
Dou de ombros, sem dizer nada.
— Mesmo cansada, depois de um dia de trabalho e uma noite no
hospital, vestida de jeans e camiseta, com o cabelo preso de
qualquer jeito e, pior, fumando esse maldito cigarro, você é a visão
mais bonita que já tive o prazer de reverenciar.
Ouço suas palavras e sinto as minhas pernas ficando dormentes,
o meu estômago retorcendo e o meu sangue virando geleia.
— Isso só prova que você precisa andar mais por aí — e dou uma
risada, tentando esconder a vergonha que está me queimando por
dentro.
Paul apoia o cotovelo na lateral do carro e permanece olhando
para mim. Com os nós dos dedos, acaricia o meu rosto. O meu
primeiro impulso é o de fugir, mas apenas fecho os olhos. Seu toque
é suave e delicado. Um contato desconhecido, mas que me traz
conforto.
O que eu sei sobre esse homem? Ele é meu cliente. Engenheiro
e herdeiro de uma das maiores construtoras do país. É lindo,
gostoso, cheiroso, está solteiro e mora no meu bairro. É educado,
gentil, simpático, irritante às vezes, muito perturbador e, por
alguma razão desconhecida, está aqui comigo, acariciando o meu
rosto.
Por quê?
Paul aproxima a frente do seu corpo, encostando-se à lateral do
meu. De repente, sinto muito, muito calor. Ele passa o nariz e os
lábios no meu cabelo, se abaixando até a minha orelha. Percebo a
sua respiração quente, quando sussurra:
— Que vontade de cuidar de você!
Sinto um arrepio percorrer o meu corpo, ressoando por todas as
partes já aquecidas por ele. Suas palavras são tão doces e sensuais,
que o meu estômago se contorce, e meu ventre realiza um
exagerado rond de jambé6. Começo a sentir as pernas tremendo e
agradeço por estar apoiada no carro.
— Você não pode... — murmuro, de olhos semicerrados,
sentindo o seu cheiro e inebriada pelas sensações que me causa.
— Eu posso, se você deixar — ele diz, descendo lentamente a
mão pelo meu cabelo, até o meu pescoço. Minha respiração acelera.
— Você é tão linda...
Paul beija a minha testa e passa os lábios pela minha pele,
têmporas, pálpebras e nariz. É uma sensação entorpecedora.
Subitamente, me lembro de Andrew. Estou aqui por ele, para
cuidar dele!
O que diabos estou fazendo?
Abro os olhos e me desvencilho de Paul, desencostando do carro.
Arrisco me firmar sobre as pernas bambas e passo a mão pelo
rosto, para tentar me livrar da sensação dos seus lábios formigando
a minha pele. Olho para ele, que continua encostado no veículo, me
observando com cautela. Respiro fundo e digo, com o máximo de
calma que consigo:
— Não se preocupe, eu sei me cuidar sozinha.

6-Rond de Jambe: passo do ballet clássico que significa "círculo da perna", onde são feitos semi-círculos
que retornam sempre para primeira posição. O movimento é repetido várias vezes, e pode-se dizer que
correspode a criar a letra 'D' no chão.

69
a enfermaria, pergunto se posso ficar mais um pouco
com Andrew. A enfermeira me concede alguns minutos.
Entro correndo pela UTI, sem falar e olhar para trás,
procurando me afastar de Paul e de sua maluquice, além de toda a
perturbação que experimento quando estou perto dele.
Passado algum tempo perto de Andrew, já me sinto mais calma
e, novamente, dona dos meus atos e faculdades mentais. Saio pela
porta. Paul não está na sala de espera. Finalmente, parece que se
cansou e foi embora. Sinto um grande alívio. Esse homem me
desestrutura, me domina, e eu não preciso de nada disso na minha
vida no momento. Prefiro passar a madrugada sozinha.
Sento-me em uma poltrona reclinável e me empertigo para trás.
Pode ser que consiga relaxar e cochilar um pouco. Cruzo os braços
e me encolho o máximo que posso. Está um frio congelante. Deito
a cabeça de lado e fecho os olhos.
Não sei quanto tempo se passou, quando sinto alguém colocando
um tecido quente, perfumado, macio e confortável em cima de
mim. Será que as enfermeiras ficaram com pena e resolveram me
emprestar um cobertor? Abro os olhos, e Paul Newman está
ajeitando o seu paletó ao redor dos meus ombros, me cobrindo até
o queixo.
— Achei que tinha ido embora — digo, sem forças para me
levantar.
— Fui ver se encontrava alguma coisa decente para você comer.
A cozinheira estava esquentando uma canja de galinha, e consegui
angariar um copo. Tome, vai te aquecer — e me entrega um copo
grande e fumegante de sopa.
— Isso é muito atencioso, obrigada. E você, não vai comer?
— Ela só podia dispor desse copo. Depois eu como qualquer
coisa, você está precisando mais do que eu, está tremendo — diz,
enquanto ajeita a parte do paletó que caiu de cima de mim, quando
peguei o copo de suas mãos.
A perturbação e raiva que eu sentia se esvaem. Fico comovida
com a preocupação de Paul, e com o modo atencioso como me
trata.
— Esse copo é muito grande. Toma comigo?
— Não se preocupe, tome tudo, você precisa se alimentar — diz,
enquanto se senta no sofá, em frente à minha poltrona.
— Vou ficar feliz em dividir com você.
Segurando o copo com uma mão e o paletó com a outra, me
levanto da poltrona, para sentar ao lado de Paul. Encolho as pernas
para cima do assento e me cubro com o paletó, que ele,
imediatamente, ajeita em cima de mim novamente. Tomo um
golinho da sopa. Está quente e desce suave, me aquecendo. Tomo
mais um golinho e estendo o copo para ele.
— Tudo bem, vamos dividir, sua teimosa — ele diz, com um
sorriso contido.
Passamos um tempo lado a lado, tomando a sopa e conversando
amenidades. Em outra situação, pareceríamos dois bons amigos
batendo um papo, tranquilamente. Paul me conta que também é
filho único, e os pais se separaram há alguns anos. A mãe mudou-
se de cidade e casou-se novamente. O pai não se casou mais. Não
teve todo aquele drama de separação, pois já estava quase indo
para a faculdade quando aconteceu, e não precisou ficar sendo
disputado pelos pais. Ele se formou aos 21 anos e, desde então,
trabalha na empresa do pai. Puxou bastante a aparência da mãe,
mas seus cabelos cinzentos, apesar de raros, apareceram aos
dezesseis anos, e deve essa característica hereditária à família do
pai.
— Por isso você parece tão velho... — digo, dando uma risada
provocativa.
— Ah, eu pareço velho? Pois não sou eu quem calça sapatilhas
de vovó — retruca, rindo com vontade.
— Ei! Minhas sapatilhas não são de vovó! São vintage — faço um
floreio, para destacar a palavra. —, e você não entende nada de
moda.
— Pois, para mim, vintage é a palavra sofisticada que arrumaram
para velho-caindo-aos-pedaços — e ri ainda mais.
— Você é irritante! — digo, cruzando os braços, fingindo que
estou ofendida.

71
— Acaba de descobrir uma das minhas maiores qualidades, Srta.
Geller.
— Já havia percebido isso há algum tempo, Sr. Newman.
Olho no relógio de pulso, e são quatro horas da manhã. Nem
acredito que a madrugada esteja passando tão rápido! Não parece
que faz esse tempo todo que estou aqui. Provavelmente, a
companhia de Paul Newman seja a responsável por isso.
Meus olhos começam a pesar. Pisco cada vez mais fundo. Paul
ajeita o seu paletó em mim novamente, passando os dedos pelo
meu cabelo e dizendo:
— Você devia tentar cochilar um pouco. Daqui a pouco já vai
amanhecer, e iremos embora.
Não consigo responder. Estou mesmo com sono e cansada.

— Karen, querida, acorde. Já cheguei.


Desperto com a voz doce de Eva me chamando, e com o toque
suave dos seus dedos em meu rosto. Abro os olhos aos poucos e
procuro me ambientar. Ah, sim, estou no hospital. Acho que
cochilei. Por quanto tempo?
Céus!
Tomo um susto, ao perceber que estou deitada no peito de Paul,
e ele está com o braço em volta de mim, me acolhendo. Sento-me,
envergonhada, sem olhar para ele, esfregando os olhos e olhando
o relógio de pulso. São seis horas.
— Conseguiu comer? Descansou um pouco? — pergunto a Eva.
— Sim, filha, jantei, tomei um longo banho, dormi bem, já tomei
café da manhã e trouxe esse para você — e me estende um copo
grande de café com leite. — Nem sei como agradecê-la, Cake. Estou
muito melhor, obrigada! Ah, e obrigada a você também, Paul, pela
gentileza de me deixar em casa ontem. Se soubesse que estaria
aqui, teria trazido um desses para você também — Eva diz,
apontando o copo de café com leite em minhas mãos.
Como assim eles já se tratam pelo primeiro nome? O feitiço
Newman já se estendeu à Eva?
— Imagina, foi um prazer. E não se preocupe com isso — ele
responde.
Paul pigarreia e sorri. Não posso mais ignorá-lo. Sinto a
obrigação de explicar a sua presença.
— O Sr. Newman é meu cliente e passou a noite aqui, com medo
de que eu dormisse ao volante na hora de ir embora, e ele ficasse
sem a sua campanha publicitária — digo, sorrindo e me
arrependendo imediatamente da piada, ao lembrar de que Andrew
está aqui justamente por ter sofrido um acidente de carro.
— Hum, interessante. Você acha que Paul é seu cliente, mas ele
se apresentou para mim ontem como seu amigo — e Eva dá um
sorriso irônico.
Fico sem saber o que dizer e decido mudar o foco.
— Vou me despedir de Andrew — e me levanto, entregando o
paletó para Paul e estendendo o copo de café com leite. — Você
segura para mim?
— Claro.
— Ah, e obrigada pelo paletó, Sr. Newman.
— Não tem de quê, Srta. Geller.
Sigo para a UTI, não sem antes perceber o olhar confuso e
desconfiado de Eva.

— Paul, isso é ridículo, estou em perfeitas condições de dirigir.


— Eu nunca deixaria uma dama ir dirigindo para casa depois de
passar a noite comigo, Srta. Geller — diz, sorrindo e entrando no
carro.
Dou um suspiro e sento no banco do carona. Paul me estende o
copo de café com leite que Eva trouxe, mas recuso.
— Pode tomar, não bebo leite.
— Por quê?
— Longa história. Mas não aguento nem o cheiro.
— Hum... Ok.
Chegando ao meu prédio, aperto o controle da garagem, que
abre vagarosamente.
— A minha vaga é a 13 A — sinalizo para ele, que faz um sinal
afirmativo com a cabeça e encaminha o carro para estacioná-lo.
— E agora, vai voltar andando para casa?
— Daqui a pouco eu vejo isso. Estou mais preocupado em deixá-
la em segurança, em seu apartamento.
— Você quer subir? — pergunto, com os olhos arregalados.
— Quero apenas garantir que você chegue acordada lá em cima.
Reviro os olhos e saio do carro, com Paul Newman em meu
encalço.

— Gostei das janelas.


— É... Não é nada ruim ter essa vista. Aceita um café?

73
— Sim, por favor. Se você me permitir, providenciarei algo para
comermos também. Tem ovos na geladeira?
— Tem, mas não estou com fome.
— Pois eu estou faminto!
Dou de ombros e abro o refrigerador. Tiro ovos, manteiga e leite.
Pego uma frigideira no armário, farinha e açúcar na despensa.
Coloco tudo em cima do balcão, ao lado do fogão, e digo:
— Fique à vontade — e coloco o café para coar na cafeteira. —
Você se incomoda se eu for tomar um banho? Preciso trocar essa
roupa.
— É claro que não, eu me viro bem aqui — ele responde,
enquanto começa a mexer nas coisas.
— Tem certeza? Não vai colocar fogo em tudo, ou tentar me
matar no chuveiro? — pergunto, com um tom irônico e uma
sobrancelha erguida.
Paul suspira fundo e fala, de forma extremamente sensual:
— Se eu fosse para o chuveiro com você, não seria para matá-
la, Karen. Não dessa forma.
Enrubesço e meu estômago se contorce, em um alongamento
desastrado. Esse homem, que agora me encara, é realmente
perturbador. Ele está jogando o seu feitiço, se fixando direto nos
meus olhos, com esse olhar faminto. Sinto-me como Harry Potter,
encurralada pelo basilisco7 na Câmara Secreta. A diferença, é que
Paul não me transforma em pedra, mas em gelatina.
Saio literalmente correndo até o meu quarto, fechando a porta.
Tomo um banho quente e relaxante. A imagem de Paul Newman
invadindo o banheiro, com os seus olhos escurecidos e famintos,
teima em querer me assombrar, me dando calafrios na barriga e
deixando a minha pele sensível. É impossível saber lidar com ele.
Não sei o que está acontecendo comigo, mas esse homem me
manipula como uma marionete. Ele tem poderes inimagináveis
sobre mim. Nunca passei por isso e me sinto completamente
perdida.
Foco! Preciso de foco. Atentar-me a Andrew e sua recuperação.
Não posso me perder agora.
Visto uma calça legging e uma regata amarela. Escovo os dentes,
penteio o cabelo e volto para a cozinha.
— Bem vinda à “Cucina de Paul8”! — ele enfatiza as últimas
palavras com um sotaque italiano engraçado, apontando para a

7-Basilisco: serpente do filme Harry Potter e a Câmara Secreta controlada pelo bruxo Voldemort, que
transforma em pedra as pessoas que olham diretamente em seus olhos.
8-Cucina de Paul: do italiano, cozinha do Paul.
mesa, que está servida com dois pratos cheios de ovos mexidos e
duas torradas em cada.
— E sem queimar nada! — digo, batendo palmas.
Paul faz uma reverência.
Sorrio e me sento para comer. Ele se acomoda ao meu lado.
— Durma agora pela manhã, você deve estar morta.
— Não posso, tenho que trabalhar daqui a pouco. Nossa, isso
está muito bom! — digo, apontando para o prato, com a boca cheia
de torrada.
— Minha campanha, minhas regras. Hoje de manhã você está de
folga.
— Meu chefe, regras dele. Carl não vai me dispensar uma manhã
inteira.
— Por isso tomei a iniciativa de pedir uma coisa para você — e
se levanta para pegar o paletó, que está em cima do balcão. Ele
remexe no bolso interno, puxando um papel. — É um comprovante
do hospital, solicitando a sua dispensa do trabalho na parte da
manhã, para a realização de exames médicos — diz, me estendendo
o comprovante.
— Mas isso não é verdade! — respondo, com ar de assombro.
— Eu sei — ele chega perto de mim e sussurra. —, mas eles não
sabem.
Paul parece estar se divertindo. Estreito os olhos, pegando o
papel:
— Isso é fraude, Sr. Newman. Nunca poderia imaginar que, um
dia, abriria as portas da minha casa para um infrator! Como
conseguiu isso? — pergunto, em tom irônico e desafiador,
segurando o papel.
— Isso o quê? Não sei do que você está falando.
Dou uma risada. Paul sorri de volta, e terminamos o nosso café.
— Karen, você se incomoda se eu descansar um pouco no seu
sofá? A minha casa está uma bagunça, cheia de caixas espalhadas,
inclusive em cima da cama. Uma das empregadas da casa do meu
pai vai lá hoje dar um jeito em tudo, mas só chegará à tarde.
Afasto rapidamente a ideia de como seria ter Paul Newman
descansando na minha cama.
— Eu tenho um quarto de hóspedes. Se quiser, pode ficar lá.
— Não precisa, o sofá está ótimo.
— Huumm, não sei, e se você for um psicopata? — pergunto,
estreitando os olhos.
— Aí você estaria correndo um grande risco ao ficar sozinha
comigo — diz, se aproximando e trazendo de volta a sua voz

75
sensual, acompanhada de um olhar faminto, que se comunica
diretamente com todas as partes certas do meu corpo.
Enrubesço e sinto muito calor.
— Tudo bem, não tenho muito a perder — e dou um sorriso
triste.
Não tenho mesmo.
— Vou pegar travesseiro e coberta para você — e corro até o
quarto novamente.
Quando volto, Paul está colocando os copos, pratos e talheres na
pia.
— Pode deixar que eu lavo mais tarde. Já que você — enfatizo,
apontando para ele. — me deu a manhã de folga, se importa se eu
for dormir um pouco?
— Claro que não, é para isso que eu — agora ele enfatiza,
apontando para si mesmo — te dei folga.
— Então, com licença.
Antes de sair da sala, paro e olho para trás.
— Paul...
Ele levanta o seu par de olhos penetrantes na minha direção.
— Obrigada pela companhia. Por tudo. Muito obrigada.
Paul sorri o seu sorriso arrebatador, que chega aos olhos. Pego
o meu celular na bolsa e vou para o quarto. Deitada, mando uma
mensagem para Jake, avisando que não irei trabalhar de manhã.
Programo o rádio relógio para despertar às onze horas,
adormecendo em seguida, sem me cobrir.
Sinto muito, muito calor.
cordo, assustada com o barulho do despertador. Sinto
a cabeça zonza, a boca seca e o corpo cansado. Aos
poucos, vou me situando e repassando os
acontecimentos da noite passada. Paul me pede uma carona, passa
a noite comigo no hospital e acaba dormindo no meu sofá.
Merda! Ele ainda está no meu sofá!
Levanto, desejando continuar na cama e tateio o chão com os
pés, à procura dos chinelos. Vou ao banheiro me aliviar, escovar os
dentes e sigo até a sala. Paul não está no sofá e a coberta que lhe
dei está dobrada em cima do travesseiro. Olho ao redor e não vejo
sinal dele.
Vou até a cozinha em busca de um café para ativar o cérebro.
Na bancada, preso pela cafeteira, está um bilhete escrito em uma
caligrafia rígida, com uma pequenina margarida em cima:

Prezada Srta. Geller,


Agradeço muitíssimo a hospitalidade.
Com você, até uma noite no hospital pode ser
demasiadamente agradável.
Obrigado por confiar em mim!
Espero que esteja bem.
Paul
P.S: Você tem um excelente sofá.
Fico imaginando o quão boa deve ser a sua cama.

Passo os dedos no papel e na pequenina flor solitária, sentindo


o coração batendo na garganta. Esse homem só pode estar de
brincadeira. Como pode ser agradável passar a noite em um
hospital? Apesar de que, para mim, realmente não foi tão ruim. Na

77
companhia de Paul, eu não vi o tempo passar. E esse comentário
sobre a minha cama? Será inocente ou com segundas intenções?
Pego uma xícara de café, com o coração acelerado e o meu
estômago realizando um suave pas de chat9. Paul é tão atraente,
lindo, gostoso... Essa noite, pude constatar que também é
simpático, gentil, cuidadoso, carinhoso... Se não fosse o meu
coração congelado no tempo, e a promessa que fiz a Andrew, talvez
até pudesse me envolver sexualmente com ele, por um tempo. Sua
companhia me fez segura, protegida e aquecida, sensações que não
tenho há muitos anos. Não com essa intensidade, pelo menos.
Tudo é muito confuso. Esse excesso de gentileza é tão estranho,
que chega a ser constrangedor. Eu poderia jurar que Paul Newman
está interessado em mim. Mas por que estaria? Eu vi a foto da ex.
Aquele é o tipo de mulher que Paul gosta e que combina com ele.
O que deve sentir por mim, é apenas compaixão. Para uma pessoa
altruísta e cheia de boas intenções, não seria de se estranhar.
Balanço a cabeça, para espantar os meus pensamentos. Mesmo que
ele estivesse interessado, eu não estou. Não posso estar.
E chega de pensar em Paul Newman. Tenho que sair para
trabalhar. Ironicamente, na campanha de Paul.

Eu mal entro na sala de criação, e Gabriela me puxa em direção


à sua mesa, me empurrando para sentar em uma cadeira em frente
à outra, na qual Bob já está acomodado.
— O que está acontecendo entre você e o Newman? — ela
pergunta, com o olhar flamejando de curiosidade. Olho dela para
Bob, que me fita com o mesmo interesse, embora a reação pareça
menos calorosa. — Vamos lá Geller, desembucha!
— Como assim? De onde vocês tiraram a ideia de algum tipo de
relação entre o Sr. Newman e eu? — pergunto, nervosamente.
— Ah, por favor, Karen! Ele chega à reunião ontem te chamando
pelo primeiro nome, pergunta sobre Andrew, vocês vão embora
juntos no seu carro, e você só me aparece para trabalhar agora à
tarde! Alguma coisa certamente está acontecendo aqui. Você
estava com ele até agora? — Gabriela pergunta, dando pulinhos de
excitação, enquanto Bob permanece calado, me fitando com uma
expressão indecifrável.

9-Pas de chat: no ballet clássico, é um salto rápido e preciso, onde através de um demi-plié as duas
pernas pulam e ficam dobradas no ar, ao mesmo tempo que avançam de lugar. Os pés permanecem
esticados.
— Ah, isso... — tento parecer o mais blasé possível. — No
domingo, esbarrei com o Sr. Newman no supermercado, onde
descobri que ele se mudou para o meu bairro. Estava chateada pelo
acidente de Andrew, tinha acabado de sair do hospital e comentei
sobre isso com ele. Ontem, quando estava indo embora, ele estava
lá fora tentando pegar um táxi, e ofereci uma carona, já que somos
praticamente vizinhos. É isso. Fim da grande história que vocês
estavam procurando.
Por motivos óbvios, decido não contar sobre a noite no hospital.
Não quero mais interrogatórios ansiosos por detalhes e, muito
menos, especulações sobre Paul e eu.
— E você chegar para trabalhar só agora, entra onde? —
finalmente Bob resolve começar a falar.
— Entra nisso — e pego o papel do hospital na minha bolsa,
entregando para ele.
— Você passou a manhã no hospital fazendo exames? Está tudo
bem? — e o tom dele muda, de frio, para caloroso e preocupado.
— Sim, foi mais uma crise de gastrite, nada demais — respondo,
sem olhar em seus olhos, para não denunciar a mentira.
— Como está Andrew? — Bob pergunta.
— Na mesma, por enquanto — respondo, desanimada, mas
aliviada por mudar de assunto.
— Então, isso é tudo sobre você e o Newman? — Gabriela insiste.
Quando ela quer, sabe ser insuportável.
— E o que você achou que fosse?
— Ah, sei lá... Ele é lindo, você é linda, ele é solteiro, você é
solteira... E ele parece tão encantado por você... Totalmente
possível, não acha? — ela responde.
— Ele não é solteiro. Vimos a sua foto com a noiva, aquele dia
— tento disfarçar.
— Ele era noivo — enfatiza Gabriela. — Saiu no Google que eles
terminaram. Cheguei a pensar que você tivesse algo a ver com isso.
Arregalo os olhos, fazendo a expressão mais surpresa que
consigo.
— Gabriela, você tem uma imaginação invejável! — digo, dando
uma risada.
— Olha Karen, pode até não estar rolando nada ainda, mas ele
obviamente está interessado em você. O jeito como te encarou na
reunião, a forma como se preocupou com você... Está na cara de
bobo dele, quando te olha. E tem mais: você fica abalada. Eu
percebi. O clima na sala de reuniões estava tenso, quente, pegando
fogo!

79
Enrubesço e abaixo os olhos. Um possível interesse de Paul
passou pela minha cabeça mais cedo, mas cheguei à conclusão de
que não tem o menor cabimento.
— Gabriela, você tem um problema sério em ver coisas onde não
existem — respondo, sem olhar para qualquer lugar,
especificamente.
— Eu tenho? E Bob, também? Porque ele também reparou.
Olho para Bob, que não faz menção de dizer absolutamente
nada, e me levanto de uma vez, cansada de ser submetida a essa
tortura. Não tenho que dar satisfações a ninguém, afinal de contas.
— Ai, Gabriela, você viaja demais. Que tal trabalharmos um
pouco, para variar? — pergunto, dando o assunto por encerrado.

O trânsito de volta para casa estava excepcionalmente tranquilo.


Vou até a geladeira e faço um sanduíche, mas só consigo comer a
metade. Meu estômago está gritando. Tomo um antiácido e, em
seguida, fumo um cigarro, sentada no sofá. Lembro-me do celular
que deixei carregando na cabeceira da cama e vou verificar as
minhas mensagens. Tenho uma de Eva, agradecendo por eu ter
passado a noite no hospital. Sorrio e decido tomar um banho, antes
de ir desejar que Andrew tenha uma boa noite.
Na sala de espera, Eva me recebe calorosamente. Conversamos
um pouco, e reparo em um lindo vaso de flores do campo,
enfeitando a mesinha ao lado do sofá.
— Nossa, que flores lindas!
— Ah sim, Cake, gostaria que você mandasse os meus
agradecimentos a Paul pelas lindas flores que enviou, estimando as
melhoras do meu Andrew! Eu agradeceria, mas não tenho o contato
dele — diz, sorrindo, e eu fico perplexa.
Paul Newman me apresenta a mais um de seus predicados:
galanteador.
— Bem gentil da parte dele. Nós temos reunião amanhã, e
transmitirei o recado. Será que posso ver Andrew? — e levanto, me
encaminhando para a UTI.

Paul parece estar em todo lugar, não me permitindo esquecê-lo.


Seu feitiço é realmente poderoso, e começo a ficar com medo. Deve
ser carência. Já não vou para a cama com ninguém há uns dois
meses. Só pode ser isso.
Com a cabeça confusa e precisando relaxar, paro no primeiro bar
que encontro no caminho de volta para casa. Está relativamente
cheio para uma terça-feira. Sigo até o balcão e peço um conhaque.
O lugar é todo em madeira, com um ar praiano, e o barman usa
uma camisa florida. É um bar temático. Assim que tomo o primeiro
gole da minha bebida, ouço uma voz desconhecida atrás de mim:
— Ora! Ora! Ora! E não é que existe mesmo o destino!
Giro o meu banquinho e paro, perplexa: o rapaz que me ofereceu
uma bebida, da última vez em que fui com Andrew ao Snooker está
de pé, bem na minha frente. E é realmente bonito! Ele está de calça
jeans, tênis e uma bata de linho branca. Um espetáculo da
natureza.
Ainda bem que resolvi usar esse vestido.
Estou com um vestido preto de lã, de gola rolê e meia manga,
colado no corpo e acima do joelho, além de um par de botas de
cano alto, com um pequeno salto.
— Por acaso está me perseguindo? — pergunto, sorrindo.
Presa da noite escolhida com sucesso. É a chance de me livrar
do feitiço de Paul Newman.
— Humm, vejo que se lembrou de mim. Posso me sentar? — ele
pergunta, apontando o banco em frente ao meu.
— Na verdade, eu estava indo para casa. Parei só para tomar um
drink.
— Ah, tudo bem, entendi — ele diz, desapontado.
— Se quiser, pode me acompanhar.
Ele arregala os olhos e sorri, mostrando os dentes brancos e
perfeitos.
— C-claro!
— Ótimo. Vamos — respondo, deixando o dinheiro da minha
bebida sobre o balcão.
Sigo pelo bar e ouço o rapaz bonito, logo atrás de mim:
— Ei!
— Sim? — pergunto, me virando para ele.
— A propósito, meu nome é Alex — ele diz, sorrindo.
— Karen, muito prazer — respondo, estendendo a mão.

Vamos no meu carro para o meu apartamento, uma vez que Alex
mora próximo ao bar e está à pé. No caminho, conversamos pouco.
Na verdade, ele fala mais do que eu. Fico sabendo que tem 26
anos, faz residência em Gastroenterologia, no Hospital

81
Universitário, tem pai e mãe vivos, casados e felizes, e dois irmãos
mais novos.
Quando entramos, vou para o sofá e me sento, acendendo um
cigarro.
— Pode se servir do que quiser — digo, apontando a geladeira,
por cima do balcão da cozinha.
Ele pega uma cerveja e vai até o sofá, se sentando ao meu lado.
— Você está bem? — pergunta.
— Estou, por quê? — devolvo a pergunta, intrigada.
— Não falou quase nada, até agora. Parece triste e que não quer
que eu esteja aqui.
O olhar de Alex é confuso, mas carinhoso. Fico com pena, não
estou sendo legal, e ele parece um cara bacana. Coloco a mão sobre
a dele, dizendo:
— Me desculpe, não estou nos meus melhores dias, mas eu gosto
que você esteja aqui.
Ele sorri e toma um gole de cerveja. Dou uma última tragada no
cigarro e o apago.
— Você não deveria fazer isso — ele diz, apontando o cinzeiro,
na mesa de centro.
— E você fala demais — rebato, sentando em seu colo, de frente
para ele e com as pernas abertas.
Olho dentro dos olhos arregalados de Alex e enfio a minha língua
em sua boca. Ele me abraça e me beija de volta, descendo uma das
mãos, das minhas costas até o meu quadril. Com a outra mão, ele
alisa uma das minhas coxas, enfiando os dedos por baixo da barra
do vestido. Puxo os seus cabelos para trás. Ele dá um gemido e
começa a lamber e beijar o meu pescoço. Fico de pé, com a
respiração ofegante.
— As camisinhas estão lá dentro.
Alex se levanta e me segue até a porta do quarto, onde me
agarra por trás, apalpando os meus seios por cima do vestido e
cheirando a minha nuca. Ele me empurra até a cama, me jogando
de bruços, e se deita por cima de mim, tirando o meu cabelo do
rosto e esfregando a sua ereção na minha bunda. Espasmos
percorrem o meu corpo, me deixando arrepiada e eriçando os meus
seios. Alex então me vira, me deitando de costas, e tenta me beijar.
Me esquivo, mordendo o seu queixo e descendo pelo seu pescoço.
Giro de lado para alcançar a gaveta do criado-mudo, onde estão as
camisinhas, e ao pegar um envelope, sinto Alex erguendo um lado
do meu vestido, lambendo e mordendo a pele sensível, na junção
entre a minha coxa e a minha bunda.
á está quase na hora do almoço, quando acabo de
responder os meus e-mails. A manhã passou voando, e
sinto-me um pouco cansada pela atividade sexual da noite
passada. Alex foi uma delícia, apesar de só me fazer gozar uma
vez. Não posso atribuir essa culpa a ele, pois nunca fui mulher de
orgasmos múltiplos, mas gosto quando encontro alguém que
consegue me fazer gozar duas vezes numa mesma noite. Três
então... Mas foi o recorde e só aconteceu uma vez.
Ao que parece, eu estava mesmo enferrujada. Sinto-me um
pouco dolorida. Minha consciência também pesa um pouco. Ainda
não consegui me esquecer da cara de decepção de Alex, quando
perguntei se gostaria que eu chamasse um taxi para ele, dizendo
que preferia dormir sozinha. Isso, logo após ter me recusado a dar
o meu número de telefone.
Pobre Alex. Ele é mesmo um bom rapaz.
Meu celular toca, interrompendo os meus pensamentos. Atendo
sem verificar quem é:
— Karen Geller.
— Karen, é Eva. Você pode vir ao hospital? — a voz de Eva soa
chorosa, e meu coração dispara.
— Eva, aconteceu alguma coisa?
— Ah, filha... Andrew não está bem.

Eva está na sala de espera da UTI, acompanhada de Linda, Joe,


e um médico que ainda não conheço.
— Cake! — Linda me dá um abraço forte.
— O que está havendo?

83
— Você é...? — pergunta o médico.
— Karen Geller, amiga da família.
— Ah, sim. No início da manhã percebemos uma alteração na
respiração do paciente...
— Andrew. O nome dele é Andrew — digo, interrompendo.
— S-sim, do Sr. Andrew — retoma o médico, parecendo um
pouco constrangido. — Como ele está no respirador, notamos um
chiado diferente no aparelho. Optamos por fazer um Raio-X do
tórax e descobrimos que ele está com pneumonia. Um dos pulmões
está com depósito de líquido. Iremos fazer a drenagem agora e
começar a administrar os antibióticos adequados.
— Mas como isso aconteceu? Por que não viram antes? —
pergunto, com rispidez.
— Os sinais dele estão sendo monitorados e permaneceram
estáveis todo o tempo. Inclusive, ele não apresentou febre até hoje
de manhã. O estado de coma não permite que detectemos que o
paciente está em sofrimento, até que o corpo dele nos diga, Srta.
Geller — responde o médico, com firmeza.
— Ele vai ficar bom? — Eva pergunta, com um fio de voz.
— Vamos aspirar o pulmão e monitorar, para descobrir o motivo
de estar cheio de líquido. Se for devido à pneumonia, com a
drenagem e o controle dos antibióticos, o esperado é de que haja
alguma melhora nas próximas 72 horas.
— E se não for? — Linda pergunta.
— Esperamos que seja. O que acontece agora, é que o respirador
não é mais uma opção. Queremos evitar quaisquer possibilidades
de contaminação. Precisaremos fazer uma traqueostomia.
Arregalo os olhos. Traqueostomia! Vão furar a garganta do meu
amigo? Ele vai odiar isso! Sempre cuidou muito bem do próprio
corpo, não tem nenhuma marca e agora vai ganhar uma cicatriz
horrível, para o resto da vida.
Para lembrar-lhe, para sempre, o quão ruim eu sou para sua a
saúde.
— Faça — diz Joe, com firmeza.
— Se me dão licença... — e o médico sai, se dirigindo para a UTI.
Ficamos ali, imóveis e calados. Joe segura a mão de Eva, e Linda
e eu damos os braços.
Menos de uma hora depois, o médico vem até nós. Joe voltou
para o trabalho, e estamos apenas Eva e eu, enquanto Linda foi
buscar um café.
— Deu tudo certo. Drenamos toda a água do pulmão, e ele já
está recebendo os antibióticos. A traqueostomia foi realizada. Vou
ter de reduzir as visitas em número e tempo. Apenas cinco minutos
e, no máximo, duas vezes ao dia. Vamos manter o ambiente o mais
estéril possível.
Eva agradece e se senta.
— Eva, quer que eu passe a noite aqui? Você parece tão
cansada... — pergunto, com ternura.
— Não, filha, de jeito nenhum. Quero ficar com o meu filho —
responde, com a voz embargada.
— Tudo bem. Eu vou voltar para o trabalho, mas estou no
celular. Qualquer coisa, você me liga?
— Claro, ligo sim. Acho que hoje não adianta você voltar aqui.
Linda está comigo, e já que temos que reduzir as visitas, acho
melhor que sejamos só nós duas.
— Sem problemas. Eu ligo à noite para saber notícias. Se
precisarem de mim, me liguem ou mandem mensagem, que eu
retorno. A qualquer hora. Está bem?
— Tudo bem, querida, obrigada.

Saio do trabalho às dezoito horas em ponto, mas o trânsito está


caótico, e estou parada há dez minutos. Resolvo aproveitar e ligar
para Eva.
— Karen!
— Oi, Eva. Como estão as coisas por aí?
— Na mesma, aguardando ele começar a reagir.
— Precisam de alguma coisa? Querem que eu leve alguma coisa?
— Não, querida, estamos bem. Linda vai estar comigo essa noite.
Pode ficar tranquila, qualquer novidade, avisarei a você.
— Tudo bem, pode ligar mesmo, a qualquer hora.
— Eu sei, meu anjo, muito obrigada.
— Eva...
— Sim.
— Diz para ele que mandei um beijo.
— Pode deixar, querida. Até.
— Até.
Desligo bem na hora que a fila de carros começa a andar. Sinto-
me cansada, mentalmente e fisicamente, mas, de repente, percebo
que não quero ir para casa. Hoje é quarta-feira, dia de sair com
Andrew. Sinto-me muito sozinha, desde que ele foi internado. Nos
falávamos todos os dias por WhatsApp, praticamente o dia todo, e
agora ele está lá, daquele jeito. E por minha culpa. Eu mereço todo
o sofrimento e solidão que estou sentindo nesse momento, mas ele

85
não. Andrew não merece passar por nada disso. E não estaria
passando, se eu fosse menos egoísta. Esse pensamento me
consome todo o tempo.
O que eu fui fazer?
E me dou conta de que estou em frente ao Snooker. Imbico o
carro de súbito, para estacionar na vaga logo à minha frente,
provocando uma série de xingamentos do motorista que está atrás
de mim.
Entro no bar. Travis está enxugando um copo quando me vê, e
com uma expressão duvidosa, pergunta:
— Sozinha, K.?
— Andrew não pode vir — é tudo o que consigo responder.
Ele me fita por alguns segundos.
— Cerveja?
— Não, preciso de alguma coisa mais forte.
— Hum... Está tudo bem? — ele pergunta, enquanto serve uma
dose de conhaque.
— Vai ficar, T. Espero que fique — respondo, pegando o meu
copo e seguindo para uma mesa vazia.
Penso em Andrew. Provavelmente, estaríamos falando do cara
bêbado que está jogando sinuca, sozinho e tropeçando nos próprios
pés, sempre que tenta dar uma tacada. Com certeza eu estaria
rindo de algum comentário maldoso de Andrew.
Ah, Andy, meu amigo, meu querido amigo... Como eu me
arrependo! Como gostaria que você estivesse aqui! Como me sinto
perdida e sozinha sem você!
E Paul Newman invade a minha mente. Não o vejo desde ontem
de manhã, mas parece ter muito mais tempo. Ele é legal e
engraçado, e agora que descarreguei a minha tensão sexual em
Alex, quem sabe Paul e eu possamos ser amigos. Poderia ser
divertido e...
Não!
O que aconteceu com Andrew, é o que acontece com quem se
aproxima de mim! Ele foi uma vítima, Marcus foi uma vítima, papai
foi uma vítima. Não posso deixar que Paul seja mais uma.
Procuro mudar o rumo dos pensamentos e me lembro de
mamãe. Sempre ligo às quartas-feiras, para saber como ela está.
Hoje, com a corrida ao hospital, esqueci completamente. Ela vai
ficar chateada. Isso, se não estiver na fase do breu. Se for o caso,
ela nem irá se lembrar. Amanhã de manhã vou ligar para ela.
Acho que Gabriela deve ter razão em relação a Bob. Ontem,
durante o período inquisitório de Gonzalez, ele me olhava com um
olhar estranho, quase de reprimenda. Aposto que pensava que eu
estava me relacionando, depravadamente, com um cliente. E devia
estar chateado por me imaginar cavalgando no colo de Paul
Newman, e não no dele.
Credo! Que nojo! Para que eu fui pensar nisso!
Nesse emaranhado de pensamentos desconexos, chamo o
garçom e peço a minha segunda dose de conhaque. Sinto as
bochechas queimando. Verifico o celular para ver se tem alguma
mensagem, quando o garçom coloca o copo com a bebida na mesa
e se senta à minha frente. Ergo os olhos, para repreendê-lo por
esse comportamento inapropriado, quando tomo um susto:
— Deus!

87
aul lança um olhar divertido ao ver a minha reação de
espanto.
— Surpresa, Srta. Geller?
Respiro fundo e pisco diversas vezes, a fim de retomar o prumo.
— Na verdade, eu estava me perguntando até quando você iria
esperar para me mostrar essa sua cara feia novamente —
respondo, dando uma risada.
— Cara feia? — Paul dá uma gargalhada. — Posso dizer que um
rol bastante extenso de mulheres discordaria dessa sua colocação.
— E você não está sentado na mesa de nenhuma delas — sorrio,
levantando uma sobrancelha.
Uau, como estou atrevida! Só pode ser efeito do álcool.
— Bem, isso é verdade — ele sorri de volta. — Mas de tudo o
que você falou, vou levar em consideração a parte de que estava
pensando em mim.
Abaixo os olhos, passando o dedo indicador na borda do copo de
conhaque. Toda a coragem trazida pelo álcool se esvai, em questão
de segundos. O meu estômago se contorce e o meu coração
acelera.
Preciso virar esse jogo.
— O que você realmente está fazendo aqui? — pergunto, com
rispidez.
— Uau, Srta. Geller! Eu moro por aqui, esqueceu? Enquanto
cidadão que trabalha e pode pagar por um drink no final do dia, vim
exercer meu direito — diz, com um meio sorriso e uma piscadela,
enquanto estala os dedos e chama o garçom.
— Posso acompanhá-la em seu drink?
Faço um gesto cortês com a mão, indicando que pode ficar.
— Como foi o seu dia?
— Produtivo, Sr. Newman, acredito que ficará satisfeito com o
material que temos para apresentar na reunião de sexta-feira —
respondo, levando o copo de conhaque aos lábios e dando um
pequeno gole.
— Hummm, ótimo — diz, me encarando.
Paul e a sua mania de me encarar fixamente. É enervante.
— E como vai seu amigo?
Abaixo os olhos novamente.
— Ele teve uma piora. Foi diagnosticado com pneumonia, mas já
está sendo medicado, e esperamos que melhore nas próximas 72
horas.
Paul coloca a mão sobre a minha, acariciando-a com o polegar e
dizendo, em tom sincero:
— Sinto muito, Karen.
Uma onda de calor toma conta de mim, e sinto as minhas pernas
tremerem. Tiro a minha mão da dele para pegar o copo, dando mais
um pequeno gole.
— Eu também. Aliás, Eva me pediu para agradecê-lo pelas flores.
Ela está impressionada com você, Sr. Newman.
Ele sorri. O garçom chega, trazendo uma cerveja. Faço um gesto,
pedindo mais uma dose de conhaque.
— Quantas você já bebeu? — Paul pergunta, apontando o meu
copo e dando um gole em sua bebida.
A boca de Paul se fechando no gargalo da garrafa, aliada à
imagem do líquido escorrendo pela sua garganta, e ao movimento
de engolir, é muito sensual. Esse homem, sem dúvida, é
devastadoramente sexy. A camisa salmão, desabotoada no
colarinho, me dá uma visão privilegiada do seu pescoço, forte e rijo.
Hoje ele está com três botões abertos, e mínimos pelos castanho-
claros aparecem pelo V. As mangas dobradas lhe conferem um ar
jovial, além de deixarem visíveis algumas veias saltadas nos fortes
antebraços.
— Não sei, não contei. Acho que é o terceiro.
— Uau, está querendo mesmo se embebedar, Srta. Geller.
— Tive um dia difícil — e sorrio, encabulada.
— Imagino — diz, dando mais um gole na cerveja.
Paul larga a garrafa, apoia os cotovelos sobre a mesa e cruza as
mãos.
— Sabe no que eu estava pensando?
— Hum?

89
— Em qual seria o maldito motivo de você, quase sempre,
prender o cabelo.
Hã? Que tipo de pergunta é essa?
— Sei lá. É prático.
— Mas o seu cabelo não me parece pouco prático. É liso, sedoso,
brilhante...
Fico vermelha.
— Acho que você faz de tudo o que pode para esconder a sua
beleza natural, Karen.
Aonde ele quer chegar?
— Digamos que eu não tenha muito trabalho para isso — e dou
uma risadinha.
Paul estreita os olhos e sussurra, provocante:
— Digamos que você não consegue.
Sinto a boca seca e lambo os lábios, tentando me desviar de um
par de malditos olhos hipnotizadores.
— Para alguém tão bonito, você tem um gosto bastante exótico
no que diz respeito à beleza feminina.
— Ah, então eu não sou mais uma cara feia? — e Paul abre o seu
sorriso arrebatador.
Dou de ombros e sorrio de volta, com as bochechas queimando.
Acabei de falar que ele é bonito? Puta merda! Preciso parar de
beber.
— E como vai a mudança? — pergunto, lutando para mudar de
assunto.
— Vai bem, obrigado. Já está tudo arrumado e devidamente
instalado, apenas por um pequeno detalhe.
— Qual?
— Não consigo fazer o meu fogão funcionar — e lança um olhar
infantil que eu ainda não conhecia, fazendo um beicinho adorável.
Dou uma gargalhada.
— Sério?
— Sério. Estou tendo que comer na rua, por enquanto.
— Por que não pediu à empregada para ajudá-lo?
— Tereza só foi lá arrumar as coisas para mim. Ela é empregada
do meu pai. Ainda não tenho uma pessoa para trabalhar lá em casa,
mas semana que vem vou entrevistar algumas candidatas.
— E vai ficar sem fogão até lá?
— A não ser que alguma alma caridosa aceite ir lá em casa, me
dar uma mãozinha — diz, sorrindo e tomando mais um gole de
cerveja.
— Vamos torcer por isso, Sr. Newman — e cruzo os dedos.
— Ah, Srta. Geller, acho que você está brincando um pouquinho
demais com o fogo — e sorri, maliciosamente.
— Eu? — pergunto, fazendo cara de inocente, até que cerro os
olhos. — Ainda nem comecei...
Estou flertando com Paul?
Porra, eu estou flertando com Paul!
Meu Deus, eu nunca flertei com ninguém! Nem com Marcus. Nem
com nenhum dos casos sexuais que eu tive. Não me reconheço
mais! É como se outra pessoa tivesse se apoderado do meu corpo.
Esse mesmo corpo que está, internamente, realizando graciosos
développés10.
Paul faz um sinal, pedindo ao garçom para fechar a conta.
— Já vai? — pergunto, sem conseguir disfarçar o sinal claro de
desapontamento na voz.
— Nós vamos. Você gosta de brincar, não é? Pois vamos brincar
de fazer aquele fogão funcionar — responde, olhando para mim,
sério e sem piscar.
Não consigo responder. Nada me vem à mente. E agora, eu vou
para a casa dele? Isso não seria inapropriado? Paul é meu cliente,
afinal de contas. Mas eu só vou ajudá-lo com o fogão! E ele é meu
vizinho, não custa nada dar uma mão.
E Andrew? Mas o que ele tem a ver com isso tudo? Se eu só vou
me entender com o fogão de Paul, o que está errado? E eu me sinto
segura e saciada, depois da noite com Alex. Não tenho nada a
temer, tenho? Afinal, por que estou pensando nisso?
Preciso realmente parar de beber.
— Vamos? — Paul pergunta, me estendendo a mão. Ele pagou a
conta dele e a minha, sem que eu percebesse.
Quando abre a porta do bar para mim, dou de cara com o meu
carro.
— Puxa, estou de carro... — digo, como se lamentasse para mim
mesma.
— Tudo bem, eu vim a pé e posso dirigir, tomei apenas uma
cerveja. Não é bom deixar o carro aqui.
Assinto com a cabeça e lhe entrego as chaves.
Do bar até a casa dele são apenas cinco minutos. Paul estaciona
em frente ao prédio, e eu me impressiono com a construção à
minha frente.
— Uau, que lindo!

10-Développé: um movimento do ballet clássico em que uma perna serve de apoio, enquanto a outra
perna se ergue para uma posição fora do ar, normalmente em noventa graus, ou seja, paralela ao chão.

91
— Não é? O edifício foi reformado, mas a arquitetura original do
século XIX foi preservada.
O prédio é todo em tons de dourado e bordô, com lindas e
delicadas pinturas em alto relevo.
— Parece uma viagem no tempo — sussurro.
Paul sorri, enquanto abre a porta de entrada para mim. O hall é
gigantesco e possui o chão de piso queimado, com um grande
mosaico no centro, onde repousam dois sofás de três lugares de
couro preto, e duas poltronas combinando. Na lateral, atrás de um
grande balcão de granito preto e vidraçaria fumê, está um homem
muito bem vestido, de terno e gravata pretos e camisa branca.
— Boa noite, Sr. Newman — ele diz, polidamente. — Senhorita
— e acena a cabeça, me cumprimentando, gesto que retribuo.
— Boa noite, River — Paul responde e segura o meu braço, me
levando até o elevador.
Chegamos ao apartamento, no 17º andar. A sala é enorme, com
as paredes pintadas em amarelo claro e decoradas em branco. Um
sofá marrom repousa de frente para um painel, que sustenta uma
gigantesca TV. No canto oposto ao sofá, avisto um imenso bar em
mogno, com um pequeno balcão e três banquetas à frente.
— Quer beber alguma coisa?
— Conhaque, se tiver. Bela sala!
— Isso porque você ainda não conheceu a vista! — Paul diz,
pegando a minha mão e me levando até a enorme porta de vidro,
que dá para uma pequena sacada.
— Uau! — sussurro, sem palavras para a visão à minha frente:
uma enorme área arborizada, com um grande lago central, rodeado
de pequenos arbustos — Eu nem sabia que o bairro tinha um parque
assim!
— Você não anda muito por aqui, não é?
Faço que não com a cabeça. O mais longe que já fui por aqui, foi
no supermercado ou no Snooker.
— Venha, não quero você sozinha aqui fora depois de já ter
bebido três ou quatro doses de conhaque — ele diz, passando o
braço pela minha cintura e me conduzindo de volta para a sala.
Paul segue até o bar, servindo um copo com conhaque e pegando
uma cerveja, que tira do frigobar instalado, harmoniosamente, no
interior do móvel. Ele me entrega o copo e levanta a sua garrafa,
propondo um brinde.
— Ao meu fogão!
— Ainda nem vi o seu fogão.
— Mas por causa dele, você está aqui — diz, me olhando
fixamente.
Brindamos, e tomo um gole do conhaque. Ele desce quente e
afogueando minhas bochechas, mas não é o suficiente para acalmar
as minhas entranhas, que esqueceram o decoro e agora estão
dançando um desaforado samba.
Coloco o copo sobre o balcão e digo:
— Vamos escalar logo esse Everest. Onde fica a sua cozinha?
Paul dá a volta no balcão e aponta a direção:
— Por favor, a senhorita na frente.
A cozinha é bem espaçosa, toda dolorosamente branca e limpa.
— Nota-se que essa cozinha nunca foi usada — digo.
— Não foi.
Vou até o fogão e tento ligar uma chama, mas não consigo.
Confiro as instalações e tudo parece em seu devido lugar. Vou
verificar a instalação do gás. Levanto os olhos para Paul e indago:
— Tem certeza de que você tentou descobrir o problema?
— Claro! — ele sorri, e não sei decifrar se está falando a verdade.
Ergo as sobrancelhas.
— Por quê? Você já descobriu?
— Realmente, é um problema dificílimo de detectar — e giro a
chave de saída do gás, que estava fechada. — Pronto.
— Sério? Simples assim? — pergunta, boquiaberto.
— Era só a saída do gás, que estava bloqueada. Paul, você
realmente não sabia disso? — olho para ele, com os olhos cerrados
e braços cruzados.
— Nem sabia que tinha que abrir o gás! — e dá uma gargalhada.
— Onde é?
Viro para mostrar onde fica a válvula e sinto uma súbita onda de
calor invadindo o meu corpo. Paul Newman está posicionado
perigosamente atrás de mim, com o seu cheiro inebriante invadindo
as minhas narinas, e seu corpo delicioso, praticamente, encostado
ao meu.

93
entindo a proximidade de Paul, fico paralisada. Minhas
entranhas estão revirando como nunca, se contorcendo em
um vigoroso sissone11, e eu sinto um calor fora do normal.
Minha boca está seca, e minha respiração acelerada. Como vou
escapar desse homem? Como vou fazer para fugir, se as minhas
pernas não me obedecem?
Vejo suas mãos repousarem em meus quadris. Fecho os olhos,
sentindo o seu toque me queimar. Ele aproxima o corpo ainda mais
do meu, até encostar-se totalmente em mim, cheirando o meu
cabelo e sussurrando no meu ouvido:
— Karen, você está me enlouquecendo. Não posso mais fazer
esse jogo. Eu quero você. Eu quero você, agora.
Suas palavras são alucinantes. Viro de frente para ele, e seus
olhos estão inflamados. Está visivelmente louco de desejo. E eu
também estou. Nesse momento, sei que não serei capaz de fugir.
Eu, igualmente, quero muito esse homem.
Em um movimento rápido, Paul me empurra contra o fogão,
segurando a minha cintura. Sua língua invade a minha boca sem
pedir licença, em um beijo quente, intenso, alucinado. Seguro os
seus braços, apertando-os, e o beijo de volta. O desejo reprimido
desde que o conheci domina o meu corpo e a minha mente. Não
consigo evitar e respondo a todos os seus estímulos. Ele solta a
minha boca, puxando o meu lábio inferior com os dentes, e segue

11-Sissone: no ballet clássico, é um salto caindo em um pé, com a perna trabalhada estendida para o
lado, para frente ou para trás, em um movimento parecido com o de uma tesoura.
beijando o meu queixo, a minha mandíbula, descendo para o meu
pescoço, enquanto geme contra a minha pele.
— Você é incrível, Karen. Que cheiro delicioso você tem!
Enfio as mãos por baixo da sua camisa, sentindo a pele quente
e os músculos tensos. Passo as unhas de leve sobre ele, que solta
um urro rouco. Paul desce uma das mãos da minha cintura para a
minha bunda, e espalma a outra nas minhas costas, mantendo o
meu corpo colado ao seu, apertando a ereção iminente no meu
ventre e voltando a me beijar, com loucura e desejo, se
alimentando da minha boca.
Sem parar de me beijar, Paul me pega no colo, e enquanto eu
passo as pernas em volta da sua cintura, ele me leva em direção
ao quarto.
No corredor, antes de chegar ao quarto, ele me imprensa na
parede, e sinto todo o seu corpo, rígido, contra o meu. Paul segura
o meu queixo com uma das mãos, me imobilizando o rosto,
mantendo o nariz encostado no meu, com as nossas respirações se
misturando. E me beija devagar, lambendo os meus lábios e
mordiscando. Cada carícia da sua língua envia ondas elétricas pelo
meu corpo, ressoando até o meio das minhas pernas. Ele aperta a
sua ereção em mim mais uma vez, e parece estar ainda maior e
mais duro. Gemo em sua boca, e ele me solta de uma vez, me
puxando com pressa pela mão.
Paul me atira sobre a cama, subindo de joelhos em seguida e
ficando por cima de mim. Começo a desabotoar sua camisa, que
ele tira e deixa cair pelos ombros. Ele ergue um pouco da minha
blusa, sem despir os meus seios, abre o botão da minha calça e
puxa o zíper, abaixando só um pouco o cós. Estou arfante, e minha
pele queima de desejo. Paul começa a distribuir carícias ao longo
da minha barriga, lambendo e beijando, lambendo e beijando, e eu
sinto que vou explodir a qualquer momento.
— Ah, eu sonhei com essa barriguinha linda! É exatamente como
eu imaginava.
Descalço as minhas sapatilhas com os pés, enquanto ele puxa a
minha calça, até acabar de tirá-la.
— Que calcinha linda, Srta. Geller! — e puxa o elástico da minha
lingerie cor de rosa com os dentes, deixando-o bater na minha pele
quando solta. Isso produz um arrepio, que ressoa no meio das
minhas coxas.
Sento, puxando as minhas pernas, que ainda estavam para fora
da cama. Ele se ajoelha de frente para mim, fazendo um floreio:

95
— Vamos libertar este cabelo lindo das amarras da opressão —
e sorri, puxando o elástico. — Nossa, você é maravilhosa — diz,
passando a mão no meu rosto.
Quando tenta me beijar de novo, eu digo:
— Chega de beijo. Quero você. Agora.
Minhas palavras funcionam como combustível no fogo que é Paul
Newman. Ele tira calça e cueca, com urgência, e puxa a minha
calcinha com uma rapidez impressionante. Eu tiro a minha blusa,
ficando apenas de sutiã.
— Então, você me quer, Srta. Geller?
Ele me encara. Obviamente quer que eu repita, e eu não me
importo nem um pouco de fazê-lo.
— Quero. Agora. Por favor, Paul.
Ele dá um sorriso, deliciosamente sexy.
— Pois eu vou acabar com você, até que não aguente mais.
Paul se posiciona em cima de mim e desabotoa o meu sutiã,
liberando os meus seios. Ele morde o lábio inferior e cerra os olhos,
respirando fundo e soltando um suspiro audível, em seguida:
— Nossa...
E explora os meus seios usando uma força desmedida, com a
boca e as mãos, um após o outro. Sua barba rala me arranha,
aumentando todas as sensações que ele me provoca. Enquanto
aperta um dos bicos, Paul chupa, morde e lambe o outro com força,
com uma intensidade fora do normal. Dói, mas eu adoro! Preciso
dessa dor. Aliás, preciso de Paul Newman inteiro!
Desço as mãos pelas suas costas e cravo as unhas em sua pele,
fazendo-o soltar um gemido delicioso. Ergo o meu quadril,
provocando a sua ereção, e digo, com a respiração acelerada, quase
sem fôlego:
— Paul... Por favor... Você, dentro de mim... Agora.
Então, ele se posiciona com uma habilidade impressionante e me
penetra de uma vez, me arrancando um grito de prazer. E começa
a se movimentar com força, para frente e para trás, em um ritmo
alucinante. Não tenho tempo para me acostumar com a invasão
dentro de mim, o que só me faz desejá-lo mais forte e mais fundo,
me esfregando, me devastando, me consumindo inteira.
Paul se abaixa para me beijar e desvio a boca, oferecendo o meu
pescoço, que ele aceita e abusa. Aos poucos, vai aumentando o
ritmo, quando puxo os seus cabelos, indicando que estou chegando
lá. Sinto o meu corpo todo estremecer, grito e arqueio as costas,
me encontrando com ele em um orgasmo longo e arrasador. Paul
sai de dentro de mim, urrando, e sinto um jorro quente na minha
coxa direita.
Ele cai, com o corpo ao lado do meu, arfando, enquanto eu
também respiro acelerado do lado dele.
— Porra, Karen! — diz, sem fôlego. — Eu sabia que seria bom,
mas nem de longe imaginei que fosse ser assim.
— E eu ainda nem comecei — digo, tentando controlar a
respiração e sorrindo, maliciosamente, encontrando o seu olhar
desejoso.
— Ah é? E o que você vai fazer? — sussurra e abre o seu sorriso
arrebatador.
— Primeiro, vou limpar minha perna — digo e me levanto,
pegando a cueca de Paul do chão e usando-a para me limpar. —
Devíamos ter usado camisinha. Isso é perigoso.
— Eu sei, mas simplesmente não consegui largar você.
— Bem, eu tomo pílula — digo, voltando para a cama e deitando
de bruços. —, portanto, engravidar não é uma possibilidade. E sou
doadora de sangue, então, faço exames de seis em seis meses.
Além de me cuidar. Nunca faço o que fizemos hoje sem usar
camisinha. Quanto a mim, você está seguro.
— Então, estamos ambos seguros. É a primeira vez na vida que
transo sem camisinha.
Olho para ele, de olhos arregalados.
— Sério?
— Sério.
— Nem com a sua noiva?
— Nem com a minha ex-noiva — ele enfatiza o ex.
— Nem em uma aventura adolescente?
— Nunca. Só com você — diz, me dando um sorriso terno e doce.
Enrubesço. Será verdade? Ele parece estar sendo realmente
sincero.
— Se você sempre usa camisinha, por que toma pílula?
— Porque a minha menstruação é irregular e eu sinto muita
cólica. Com a pílula, eu não menstruo e tudo fica mais controlado.
— Hummm, então agora vai ser muito mais interessante.
Paul passa os dedos pelas minhas costas, de cima para baixo,
com suavidade. Em seguida, me vira de costas para ele,
aproximando o corpo do meu e se encaixando atrás de mim.
— Você é muito gostosa. Adoro esse desenho que a sua cintura
faz, até o seu quadril — ele diz, percorrendo o caminho com o dedo.
— Desde que te vi pela primeira vez, imaginei você nua na minha
cama. Porém, ver você agora, prova que a minha imaginação não

97
fez jus à delícia que você é. Fomos muito rápido da primeira vez, e
sei que isso aconteceu por estarmos reprimindo o nosso desejo,
todo esse tempo. Mas quero me deleitar, me perder em você,
saborear essa delícia que eu tenho nas mãos. E sem pressa.
As palavras de Paul me deixam molhada, excitada e pronta para
tudo o que ele quiser fazer comigo. Ele começa a beijar o meu
ombro, subindo com a boca, me enchendo de arrepios. A mão que
estava na minha cintura, alisa a minha barriga, enquanto ele
comprime o pau, já duro novamente, contra a minha bunda. Torço
o meu braço para trás e seguro a sua nuca, enquanto chupa o meu
pescoço e a minha orelha. Ele se ergue um pouco, e a sua boca
procura a minha, mas eu sussurro:
— Nada de beijo.
Paul alisa os meus seios, demoradamente, enquanto se encosta
inteiramente em mim: seu peito está nas minhas costas, seu pau
na minha bunda, suas coxas na parte de trás das minhas, a palma
das mãos sobre os meus mamilos rígidos e doloridos, sua boca
sobre o meu pescoço, cabelo e orelha. Estamos completamente
ligados um ao outro, com os nossos corpos se esfregando, todas as
partes conectadas e se acariciando. Isso me enche de um tesão
incontrolável. Nunca fui tratada com esse grau de intimidade
sexual, onde não sabia quando terminava a minha pele e começava
a da outra pessoa. É um prazer indescritível, e começo a sentir que
posso gozar só com a sensação do corpo de Paul se esfregando ao
meu dessa maneira.
Estou gemendo, tão perdida nesse prazer completamente novo,
que nem sinto quando ele se aproxima do meu ouvido,
sussurrando:
— Levanta a perna para mim, linda.
Obedeço, levantando a perna esquerda, dobrando o joelho e
apoiando a sola do pé na cama. Ele passa a mão na minha coxa e
a aperta, se posicionando atrás de mim. E então me penetra, lenta
e dolorosamente, assim mesmo, de lado. Sinto o seu peito
musculoso, molhado de suor, às minhas costas.
— Você é muito gostosa, Karen, e eu quero você de novo, bem
assim, linda como está. Quero sentir todos os seus músculos me
apertando por dentro, enquanto eu te como, gostoso e bem
devagar.
Solto um gemido e empurro a minha bunda contra ele. Paul
começa o movimento de vai vem, para cima, para frente e para
baixo, me preenchendo, devagar e constante. Ficamos nesse ritmo,
eu sentindo e apertando o seu pau duro com a minha boceta
molhada, e ele me comendo com suavidade, aproveitando cada
milímetro de mim.
Cada vez mais, Paul aperta o corpo no meu, segurando o meu
seio com força como ponto de apoio, apertando o meu mamilo entre
os seus dedos, me arrancando gritos de prazer. Sinto sua
respiração quente, enquanto ele geme no meu ouvido, me
provocando arrepios na nuca. E sei que estou entregue a esse
homem, ao seu feitiço, ao seu corpo e ao seu desejo.
Ele desce a mão devagar pela minha barriga, meu umbigo, meu
ventre, o comecinho da minha boceta úmida, até encontrar o meu
clitóris, apertando-o, apenas uma vez. Estremeço e solto um grito,
forçando o meu quadril nele, enquanto gozo com uma intensidade
alucinante.
Paul se força mais contra mim, me penetrando ainda mais fundo,
e aumenta o ritmo, tornando-se incessante, devastador, ainda me
acariciando com os dedos. E, mal acabou o primeiro, eu explodo
novamente em um orgasmo ensandecido, gritando e arfando. Paul
enlouquece, sentindo o meu líquido quente, e goza em seguida,
com um ruído animalesco e, dessa vez, sem sair de dentro de mim.
Esse som me deixa alucinada. Sinto o seu jorro quente me
preenchendo por dentro, enquanto ele dá as últimas estocadas. A
sensação é terrivelmente deliciosa, e me faz gozar junto com ele
novamente, pela quarta vez essa noite.

99
e bruços, suada e ofegante, observo Paul ao meu lado,
com a cabeça apoiada no travesseiro, passando os dedos,
com delicadeza, pelas minhas costas.
— Você superou todas as minhas expectativas — ele sussurra.
Dou uma risadinha pelo nariz, e ele abre o seu sorriso
arrebatador.
— Você fica mais linda ainda, depois de transar — e tira o cabelo
do meu rosto.
— Maluco — digo, sorrindo.
— Estou mesmo ficando maluco. E a culpa é sua.
Bufo, com a minha melhor cara de desdém.
— Minha? Imagine só eu, uma reles ninguém, enlouquecendo
Paul Newman!
Ele franze a testa, em sinal de exasperação.
— Não gosto que fale assim de si mesma — diz, se aproximando
e depositando um beijo no meu ombro.
Paul deita o rosto bem em frente ao meu, com os nossos narizes
quase se encostando. Por um tempo que não sei precisar, ficamos
respirando o ar um do outro, nos encarando. Os olhos dele, tão
azuis, são donos de uma travessura juvenil encantadora. Ao mesmo
tempo, são profundos e cheios de sentimentos.
— Um doce pelos seus pensamentos.
— Estava pensando que você tem olhos muito bonitos.
Ele sorri.
— Você também. Ele são castanhos, mas dependendo da luz,
ficam quase verdes. São lindos e tristes... — diz, com carinho,
passando o nariz no meu.
Eu escondo o rosto no travesseiro, envergonhada. Paul ri e me
abraça, me dando vários beijos nos ombros, nas costas, e uma
mordidinha na cintura.
— Ai! — grito, com a voz abafada pelo travesseiro.
— Olhe para mim, ou vou morder mais — ele ameaça, se
divertindo.
— Não vai não! — digo, com o rosto ainda enfiado no travesseiro.
Eu começo a me sacudir para me defender do ataque. Paul dá
uma gargalhada e se senta em cima das minhas coxas, me
imobilizando as pernas. Ele prende os meus braços ao lado do
corpo, começa a me encher de pequenas mordidas, e eu morro de
cócegas.
— Chega! — grito, gargalhando e me debatendo, inutilmente —
Tudo bem, eu me rendo!
Ele me dá um beijo na bochecha e volta a se deitar ao meu lado.
— Assim é bem melhor. Eu posso olhar esse seu rosto lindo!
Parece que descobri o seu ponto fraco, Srta. Geller, e agora posso
fazer o que quiser com você — diz, sorrindo maliciosamente. — Está
com fome? O meu fogão está funcionando perfeitamente!
Cerro os olhos e o encaro, perguntando mais uma vez:
— Jura que realmente não sabia qual era o problema do fogão?
Ele me dá outro beijo na bochecha e sorri, dizendo:
— Você nunca vai saber!
Paul se levanta e veste a calça jeans, sem cueca.
— Vamos fazer algo para comer.
Começo a procurar as minhas roupas, quando o escuto abrindo
uma gaveta. Ele me oferece um roupão, dizendo:
— Ponha isso, vai ficar confortável e aquecida.
Dou a volta na cama, pegando a peça e me vestindo.
— Você não se esconde com o lençol. Gosto muito disso. Não
prenda o cabelo, está lindo. Venha.
Pego a mão que ele me estende, e vamos para a cozinha.
— Vejamos o que temos na geladeira: um macarrão chinês —
ele cheira a caixa, fazendo uma careta. — que está azedo, ovos,
leite, alface, cenouras, e um pouco de queijo.
— Temos uma omelete como a melhor opção.
— Omelete, então! — diz, sorrindo. Parece empolgadíssimo, e
não consigo deixar de rir.
— Você fica linda quando sorri. Aliás, mais linda ainda! — diz,
me deixando envergonhada.
— Quer que eu rale o queijo?

101
— Claro! O ralador está no segundo armário, os pratos nesse
armário.
Apanho os utensílios e vou até a geladeira, para pegar o queijo.
Coloco tudo no balcão e começo a ralar.
Que reviravolta! Estou na cozinha de Paul Newman, depois de
trepar com ele por duas vezes, ralando um pedaço de queijo. É uma
situação em que, normalmente, eu me sentiria constrangida e
desconfortável, porém, estranhamente estou tranquila e relaxada.
— Ei, ainda está aqui comigo? — Paul pergunta, passando o dedo
no meu rosto.
Sorrio. Estou. O pior é que realmente estou. Como não estive
com mais ninguém por nove anos. Por que esse homem me
desestrutura dessa maneira, destruindo todas as minhas defesas,
me deixando vulnerável a ele e aos seus feitiços?
Vejo o seu corpo sem camisa. O sexo foi tão arrebatador, que
mal pude observá-lo direito. Percebo que é forte na medida certa,
com peitoral e barriga bem esculpidos, e mínimos pelos no peito.
Os músculos das costas se desenham, à medida que ele se mexe.
Os braços fortes deixam à mostra duas veias, que descem do bíceps
ao antebraço.
Delicioso.
Eu termino de ralar o queijo e levo o prato até Paul, que o pega
da minha mão, me dando um beijo suave na boca. Coloco o ralador
na pia e lavo as mãos. Sob o seu olhar atento, pego a minha bolsa
na sala e procuro um cigarro. Vou até a varanda. Fumar com essa
vista é quase poético.
Lembro-me de Andrew. Será que o estou traindo? Ele está
inconsciente por minha culpa, e eu aqui, tendo orgasmos múltiplos
com Paul Newman. Isso, depois de ter prometido compromisso aos
pés de sua cama. Bem, mas se eu fizer disso uma simples trepada,
não configura traição, configura? Quero dizer, ele ainda não
acordou. Tecnicamente, ainda não estamos juntos.
Estou tão absorta em meus pensamentos, que não notei a
música que começou a tocar. Só me dou conta, quando começo a
cantarolar junto, por reflexo. É Delicate, do Damien Rice. Amo essa
música. Paul chega por trás de mim na varanda, me abraçando pela
cintura e repousando o queixo no meu ombro.
— Conhece essa música?
— É uma das minhas favoritas — digo, escorando a cabeça no
peito dele e fechando os olhos.
Paul me abraça pela cintura, e passo os braços ao redor do seu
pescoço. Começamos a dançar devagar, com ele me apertando
forte, junto de si. Deito a cabeça em seu peito e aproveito o
momento. A música está quase no fim.
— Vamos comer? — pergunta me dando um beijo na testa, já
pegando a minha mão e me levando até o balcão da cozinha.
Nós dividimos o mesmo prato e, de vez em quando, tento roubar
o que Paul corta com o garfo, provocando uma ocasional guerrinha
pela comida. Quando sobra o último pedaço, nos encaramos, com
um olhar divertido. Agarro o prato e saio correndo pela sala, com
Paul atrás de mim, desviando dele duas vezes.
De repente, paro e espeto a omelete, deixando o prato no balcão
do bar de mogno. Olho para Paul, ameaçadoramente.
— Não ouse! — ele diz, apontando o indicador para mim.
Enfio o pedaço na boca e saio correndo, mas ele me agarra por
trás e me puxa para o sofá, forçando a boca na minha, tentando
abri-la. Mastigo correndo e engulo, abrindo a boca em seguida e
colocando a língua para fora. Ele sorri, cheio de malícia. A minha
respiração, imediatamente, começa a acelerar.
Paul passa a língua nos cantos dos meus lábios e me planta um
selinho macio e leve. E vai fazendo isso por toda a boca, lambendo
e dando pequenos e suaves beijos. Eu o empurro no sofá e levanto
a barra do roupão para me posicionar, sentada, sobre ele. Seguro
o seu rosto com as mãos e beijo o seu nariz, queixo e pescoço. Ele
desata o cinto do roupão, passando os dedos ao longo da pele
exposta pela abertura, do colo até a barriga, como se estivesse
desenhando duas linhas ao longo do meu corpo, me fazendo
estremecer. Termino de tirar a peça, sacudindo os ombros e
deixando-a cair no chão.
— Você é deliciosa.
Sorrio e desço a mão para a calça dele, abrindo o botão e o zíper,
liberando a sua ereção. Olho e lambo os lábios: ainda não tinha
visto, de fato, como era grande. Posiciono-me em cima dele e desço
o quadril, me deixando penetrar bem fundo. Gememos ao mesmo
tempo. Olho dentro dos olhos inflamados de Paul. Sua boca está
aberta. Passo os dedos em seus lábios, que os beijam com carinho.
Com ele dentro de mim, sussurro:
— Agora, eu é que vou foder você.
Ele solta um gemido de satisfação vindo do fundo da garganta,
e começo a me movimentar, jogando a cabeça para trás,
insinuante. Vou me movimentando demoradamente, e Paul me
aperta com uma das mãos, enquanto segura a minha cabeça com
a outra. Ele beija o canto da minha boca, mas me desvencilho e
ofereço o meu pescoço, intensificando o rebolado.

103
De repente, Paul me ergue com o seu corpo, se colocando de pé
e agarrando as minhas coxas, que aperto ao redor do seu quadril.
Ele dá a volta no sofá, me imprensando contra a parede, com força.
E começa a estocar fundo em mim, uma após a outra. Enquanto
tenta me beijar, com a boca forçando a minha, eu gemo e procuro
evitar, mexendo a cabeça e agarrando o seu cabelo.
Ele para, de repente, e eu dou um resmungo irritado de
frustração. Paul sorri, satisfeito.
— O que você quer, minha gostosa? Diz para mim — ele
pergunta, me olhando diretamente nos olhos.
— Quero você todo, forte, dentro de mim. Me fode, Paul! —
imploro.
— Tão exigente, Srta. Geller.
Ele retoma e intensifica o ritmo. As estocadas são cada vez mais
fundas e dolorosas. Eu me agarro a ele como posso, já que não
sinto mais o meu corpo, estando além dos limites do prazer que
Paul Newman me proporciona. E eu grito, perdendo o restante das
forças, enquanto me entrego completamente, em um orgasmo
libertador. Sou seguida por Paul, que goza forte e ruidosamente
dentro de mim.
Estou fraca, imprensada por esse homem enorme, mal
conseguindo conter as pernas e esperando a minha respiração
voltar ao normal. Paul abre os olhos, e percebo uma expressão
melancólica em seu olhar. Minhas pernas finalmente cedem, e ele
me apoia com cuidado, me colocando no chão. Em seguida, arruma
a calça, sem tirar o corpo da minha frente, de modo que não posso
sair.
Paul coloca os braços ao meu redor, com as mãos apoiadas na
parede, me encarando. Parece chateado. Ele passa o nariz no meu
e beija a minha boca, com suavidade. Esfrega a bochecha na minha,
e os olhos fechados pelo meu rosto, seus cílios fazendo cócegas na
minha pele. E se vira de repente, caminhando para o bar de mogno,
onde pega uma cerveja.
Visto o roupão e fico encarando Paul, que se senta em uma das
banquetas do móvel, com o olhar perdido. Aproximo-me dele e tiro
a garrafa de sua mão, colocando-a sobre o balcão. Pego os seus
braços, passo em volta da minha cintura e o abraço sobre os
ombros, afagando os seus cabelos. Ele me aperta forte, e ficamos
assim por alguns segundos, até que ele afrouxa o aperto ao meu
redor.
— Você vai me dizer o motivo? — seus olhos estão cheios de
dúvidas, e vejo um raio de dor, quase imperceptível.
— De quê? — pergunto, mas já sabendo o que ele quer dizer.
— Por que não posso te beijar? — pergunta, em tom suplicante,
como se temesse a resposta.
Seus olhos tristes me fazem sentir uma dor estranha no peito.
Muitos homens já me fizeram a mesma pergunta, mas me dou
conta de que é a primeira vez que me custa responder.
— Mas nos beijamos, quando você chegou perto de mim no fogão
e várias vezes depois — digo, tentando distraí-lo.
— Sim, e foi muito bom. Até a gente chegar à cama. A partir daí,
você não me deixou beijá-la mais.
— Eu sei... — digo e abaixo os olhos.
— Por quê?
— Olha Paul, é complicado... Eu prefiro evitar o beijo. Mas
fizemos todo o resto. Três vezes! Não foi bom?
— Claro que foi, mas eu amei beijar você. Sua boca, seu gosto...
E você me privou disso. Então, eu quero saber o motivo.
Saio dos braços dele e vou para o sofá. Sento e encolho as
pernas para cima do estofado, apoiando o braço no encosto.
— Você tem nojo de mim? — murmura, com um tom temeroso
e magoado.
Arregalo os olhos e digo, com a voz mais alta do que o normal:
— Claro que não, Paul! Nojo de você? Depois de tudo o que
fizemos?
— Então, eu não entendo... — ele diz, baixinho, fazendo sinal
negativo com a cabeça.
O meu coração dói ao vê-lo assim, tão triste e vulnerável.
Endireito-me no sofá, apoio os cotovelos nos joelhos e seguro a
cabeça entre as mãos.
— Eu disse que sou destrutiva. Passei algumas horas com você,
e olha como já está triste. Eu tenho essa escuridão que contamina
as pessoas que se aproximam de mim. Não devia ter vindo. Eu
sabia no que ia dar. Mais uma vez, fui egoísta.
Ouço Paul se levantar e sinto o seu peso, ao sentar-se ao meu
lado, no sofá.
— Karen, eu não admito que você fale isso, muito menos que
estrague esses momentos que vivemos hoje. Eu só fiz uma
pergunta. Eu queria entender. Ainda quero.
Respiro fundo e resolvo falar. Ele tem o direito de saber.
— Olha, Paul... Eu não beijo durante o sexo, porque o beijo é
algo muito íntimo.
Ele me encara, confuso.
— Íntimo? E o que nós fizemos foi o quê?

105
— Sexo, Paul. Nós fizemos sexo. É instintivo, carnal, físico. O
beijo vai além, espelha o que tem dentro da gente. É um caminho
perigoso.
— Perigoso por quê?
— Porque é carregado de sentimento. Vai muito além de desejo.
É a real expressão de intimidade entre um casal. Tudo começa no
beijo. Não apenas o sexo, mas as paixões arrebatadoras, o amor...
— E por que você me deixou beijá-la, a princípio?
— Como eu disse antes, o sexo também começa no beijo. Depois
que abrimos essa porta, não precisamos mais dele.
— Isso quer dizer, que você fechou todas as outras portas — ele
diz, desanimado. — Você só quer transar comigo.
O quê?
Fico constrangida no mais alto nível.
— Achei que era o que queria também. Você disse que, desde
que me viu, me imaginou nua, na sua cama. Nós transamos três
vezes, em poucas horas. Não entendo o que tem de errado nisso.
Paul olha profundamente em meus olhos e suspira.
— Sim, imaginei mesmo. Isso não é mentira.
— Então?
— Só que também fantasiei sobre você na minha cozinha,
comendo comigo, conversando, caminhando de mãos dadas,
sentada no sofá, assistindo TV... Eu simplesmente não parei de
pensar em você, desde a primeira vez em que te vi, então pude
imaginar vários cenários. Mesmo antes da minha noiva e eu
terminarmos, logo depois de eu assumir estar me apaixonando por
outra pessoa.
Se apaixonando? Paul está apaixonado??? Não!
— Paul! Você está cometendo um grande erro! — grito,
descontrolada.
Paixão? Não, não, não! Não pode ser! Isso é um pesadelo! De
novo não!
E a sensação é de que estou me afogando, com o pé preso no
fundo do mar, me debatendo e sem conseguir voltar ao topo.
— Paul, você está enganado, não está apaixonado por mim. Você
mal me conhece! — digo, boquiaberta, ainda absorvendo o impacto
de suas palavras.
— Olha, Karen, eu também duvidei no começo. Achei ridículo.
Não sou nenhum adolescente, para me apaixonar por alguém que
nem conheço. E isso não combina comigo, eu gosto de planejar as
coisas. Não ajo por ímpeto, não sou assim.
— Pois, então!
— E aí eu tive a certeza de que precisava, quando você dormiu
no meu ombro, naquele hospital. E quando te ouvi defendendo o
seu ponto de vista, na última reunião. E hoje, quando tentou se
esconder de mim no travesseiro, quando dançamos juntos na
varanda, quando brigamos pela comida... Eu quero você, não
somente o seu corpo. Quero você por inteiro.
É como um soco no meu estômago. Isso não pode estar
acontecendo de novo! Primeiro, Andrew, agora Paul? Mais um no
caminho da destrutiva Karen Lily Geller! O problema é que, com
ele, tem algo diferente. Ele me faz sentir entregue e vulnerável... É
ainda mais perigoso.
Não! Não vou fazer isso. Não posso destruir Paul Newman,
arrastando-o para a minha escuridão. Não quero fazê-lo sofrer
assim. Ainda mais, um homem como ele. Eu vejo em seus olhos
que está sendo sincero. Ah, como eu gostaria de poder retribuir
esse sentimento! Mas não posso! Definitivamente.
— Paul, eu não tenho muito a te dar. Eu não me envolvo com
ninguém. Não costumo nem repetir o mesmo cara na cama,
justamente para evitar que esse tipo de coisa aconteça. Eu opto por
sexo casual, coisa de uma noite. E realmente acho que você pode
estar confuso e, com o tempo, vai tomar consciência disso.
— Então, você vai me afastar também?
Paro de respirar. Sei que está falando da forma como afastei
Andrew. O desfecho foi terrível. Não quero cometer outro erro, mas
não quero fazê-lo sofrer.
Meu Deus, que pesadelo!
O que eu posso fazer por ele? De que maneira poderia minimizar
o seu sofrimento? Não consigo vê-lo assim, tão triste. Algo nesse
homem mexeu com o meu coração, e eu me sinto ligada a ele, de
modo inexplicável.
Levanto e caminho pela sala, sob o seu olhar atento. Paul
respeita o meu silêncio. Penso, penso, penso, e me vem algo à
cabeça, muito maluco, mas que pode dar certo.
— Eu tenho uma ideia, e é o melhor que posso fazer — digo,
com resignação.
— Fale — ele levanta os olhos, ansioso.
— Não vou te mandar ficar longe de mim. Não depois do que
aconteceu com Andrew. Eu gosto de você, Paul, você é um cara
legal, generoso e curto muito a sua companhia. Podemos ser bons
amigos. Só que, no nosso caso, amigos que transam de vez em
quando — digo, com uma angústia crescente dentro de mim por
não saber ao certo o que estou propondo.

107
— Você quer que eu seja o novo Andrew — ele diz, consternado.
— Não! Eu nunca transei com Andrew! De certa forma, nunca fui
aquilo que ele desejava. Não quero ser egoísta com você, mas o
que posso te dar, é o que estou propondo. Lembrando, que
precisamos levar em consideração a promessa que fiz a Andrew. Eu
devo isso a ele e não vou faltar com a minha palavra. Então, entre
nós, esse tipo de amizade só pode acontecer até que ele acorde —
digo, com firmeza.
— Isso é tão injusto, tão insano... — Paul diz, passando a mão
nos cabelos.
Caminho até ele. Pego as suas mãos e as acaricio. Ele abaixa a
cabeça, e eu ergo o seu rosto.
— Olhe para mim. Eu estou falando a verdade. O que estou
oferecendo é mais do que qualquer um teve de mim, mais do que
sei que consigo permitir. Com exceção de Marcus. E só estou
fazendo isso, porque sei que é a melhor forma de você colocar as
ideias em ordem e compreender que não me quer na sua vida. Se
eu não tivesse tanta certeza, não entraria nessa, sabendo que
Andrew pode acordar a qualquer momento, e isso só trará mais
sofrimento para nós dois.
— Essa sua promessa é ridícula. Ele está inconsciente e nem
deve ter ouvido...
— Se ele não tiver ouvido tudo bem, podemos manter a nossa
amizade colorida, até que você se canse de mim. E, acredite, isso
vai acontecer.
Paul me puxa para junto de si, afundando a cabeça na minha
barriga, enquanto acaricio os seus cabelos. Ele respira fundo e fala,
com a voz entrecortada:
— Tudo bem. Se você diz, então vamos ver de quanto tempo
precisaremos para eu me cansar de você. Sejamos amigos, com
benefícios — e me estende a mão, que eu aperto selando nosso
acordo.
— Bem, acho que vou para casa.
Preciso me afastar de Paul e pensar um pouco nisso tudo. Estou
desesperada, sem saber se estou tomando a decisão certa.
— Você não tem que ir — ele diz, beijando a minha mão.
— Eu tenho que dormir, e amanhã preciso de roupa limpa para
ir trabalhar.
— A que horas você tem de estar na empresa?
— Oito e meia, no máximo.
— A gente mora tão perto... Eu te acordo a tempo. Já passam
de duas da manhã, é perigoso — diz, quase implorando para que
eu fique.
Respiro fundo. Tudo bem. Posso fazer isso por ele.
— Posso tomar um banho antes de dormir?
Paul abre o seu sorriso arrebatador, me derretendo um pouco
mais.
— Claro! Venha, vou te mostrar tudo no banheiro — e pega a
minha mão, me puxando e levando de volta para o quarto.
Tomo um banho quente e relaxante, pensando em tudo o que
conversamos. Estou tão confusa! Tenho um carinho forte por Paul,
que cresceu da forma como nasceu, repentinamente. Nunca senti
isso tão rapidamente por alguém. Não quero vê-lo triste, sofrendo.
Por outro lado, tenho Andrew. Espero mesmo que ele melhore e,
quando acontecer, não serei mais livre. Como lidar com isso? Será
que Paul tem razão, e Andy realmente não se lembrará da
promessa? Será que não ouviu?
Não aguento mais pensar, é muita pressão. Vou acreditar que,
até Andrew se recuperar, Paul já terá se cansado de mim, tudo
estará em seu devido lugar, e todos ficarão felizes. Sim, isso vai ter
que dar certo.
Enrolo-me na toalha e volto para a cama. Paul está dormindo.
Deito ao seu lado, de toalha mesmo e acaricio o seu cabelo. Como
é lindo! Dormindo assim, tão vulnerável, é ainda mais bonito.
Parece um menino.
Então, durmo olhando para ele, admirando-o e desejando tê-lo
conhecido em outra época da minha vida. Esperando não fazê-lo
sofrer. Paul não merece sofrer, nem um minuto sequer. E eu não
vou deixar. Especialmente por minha causa.

109
cordo, sentindo uma onda quente subindo pela barriga.
Pisco os olhos para me situar. Rapidamente,
compreendo de onde vem esse calor: Paul está
acordado, e bem acordado, a minha toalha está desenrolada e ele
me acaricia. Solto um gemido rouco, sentindo os seus dedos
brincando em mim, bem lá embaixo. Afago o seu braço e me viro
para beijar o seu ombro. Ele aumenta o ritmo das carícias, e me
contorço na cama, o desejo tomando conta de todo o meu corpo.
Quanto mais eu me reviro, mais ele me esfrega. Começo a sentir o
corpo todo febril e tremendo, enquanto Paul se posiciona entre os
meus seios, chupando, mordiscando e assoprando os mamilos
doloridos, enquanto enfia dois dedos dentro de mim. E,
praticamente antes de acordar, sou arrebatada por um orgasmo
instantâneo e intenso, relaxando logo em seguida.
— Bom dia — ele diz, divertido, me dando um beijo na têmpora.
— Isso é só para mostrar que a nossa amizade pode te trazer
grandes benefícios — e dá o seu sorriso arrebatador.
— Bom dia! Pois saiba que, desse jeito, você se torna um forte
concorrente ao posto de melhor amigo — digo, me espreguiçando.
Ele dá uma gargalhada.
— Vamos, já são 06h10min — e dá um pulo da cama.
Sento-me, dando um longo e alto bocejo, sem o menor decoro.
— Karen Geller, você é mesmo uma dama!
Olho para Paul e, divertida, faço menção de "coçar o saco". Ele
ri ainda mais e volta para a cama, me puxando pelos pés, enquanto
eu grito e me debato, até rolar para o chão.
— Pronto, agora você vai se levantar. Café da manhã em dez
minutos! — e corre para sair do quarto, mas ainda posso ouvir a
sua risada enquanto se afasta.
Procuro as minhas roupas e me visto. Meu cabelo ainda está
úmido e consigo penteá-lo com facilidade. Vou ao banheiro me
aliviar, lavo o rosto e faço um bochecho com um enxaguante bucal
que encontro sobre a pia.
Quando chego à cozinha, reparo que Paul está vestido com uma
calça social preta, camisa azul clara, gravata preta, sapatos pretos
e envernizados. Um avental de cozinha protege a roupa, enquanto
ele está no fogão, fazendo panquecas. Sinto o cheiro de café e vou
até à cafeteira, pegando uma caneca, que encontro depois de abrir
o terceiro armário. Sento sobre a banqueta em frente ao balcão e
o observo cantando, enquanto faz a comida. Não posso deixar de
rir desse homem lindo, vestido como um empresário bem sucedido
e de avental, cantarolando e cozinhando. Está uma graça com o
pano de prato pendurado em um dos ombros.
— Você é sempre tão animado pela manhã?
— E por que não seria? — responde, sorrindo.
Paul pega um prato em cima da mesa e coloca a última
panqueca, levando-o ao balcão e alcançando mais dois pratinhos
menores, junto com dois garfos, um frasco de xarope de glicose e
um tablete de manteiga.
Ele se senta ao meu lado e pergunta, ao colocar duas panquecas
no meu prato:
— Então, como funciona essa história de amigos com benefícios?
Respondo, com um olhar irônico:
— Preciso desenhar?
— Não, engraçadinha, a parte dos benefícios você esclareceu
muito bem a noite passada — e sorri, maliciosamente, enquanto eu
enrubesço. — Quero saber se podemos sair, nos ver, se você vai
me dar o seu número, essas coisas.
— Meu celular! — grito e corro para a sala, buscando-o em minha
bolsa, à procura de alguma mensagem com notícias de Andrew.
Nada. Sinal de que continua na mesma.
Volto para a cozinha.
— Alguma novidade? — Paul pergunta.
Faço que não com a cabeça e me sento novamente. Enfio um
pedaço generoso de panqueca na boca.
— Você gosta mesmo desse Andrew, não é?
— Ele é a minha alma gêmea — respondo, com a boca cheia,
dando de ombros.
Paul ri da minha falta de recato.
— Mas não é apaixonada por ele... — sussurra, como se falasse
para si mesmo.

111
— Não sou. Você sabe disso — respondo, tomando um gole de
café.
— Então, vai me dizer como isso vai funcionar?
— Você não tem amigos?
— Pouquíssimos e todos são homens. Por motivos óbvios,
nenhum com benefícios.
Olho para ele, colocando a mão no peito e dizendo um sonoro
“ufa”. Paul dá uma gargalhada.
— Então, tirando a parte dos benefícios, você vai agir
exatamente como age com eles — e dou uma piscadinha, comendo
outro grande pedaço de panqueca.
Pego o meu celular e envio uma mensagem. O aparelho de Paul
vibra no bolso de sua camisa. Ele o pega, abrindo o seu sorriso
arrebatador ao ler a minha mensagem, que diz:

“Você fica uma delícia de avental!”

— Rá! Então a senhorita já tinha o meu número! — diz, em tom


divertido e me apontando o garfo.
— Gabriela, Bob e eu temos os contatos de todos os nossos
clientes. Hummm, você sabe como fazer uma boa panqueca!
— E você come igual a um dragão!
Sorrio, me lembrando de que já não tinha todo esse apetite há
muito tempo.
Terminamos de comer e retiro os pratos para lavá-los. Volto para
o balcão e tomo mais um gole de café, esvaziando a xícara, que
também lavo em seguida.
— Então, já vou indo — digo, me aproximando dele.
— Vou descer com você, tenho que ir para o escritório.
Paul me acompanha até a porta do carro e me encara, fixamente.
— Adorei a noite de ontem, amiga! — e me mostra, mais uma
vez, o seu sorriso arrebatador.
— Foi ótimo — e sorrio de volta.
— Então tá, se cuida — diz, abrindo a porta do carro para mim.
Dou a partida e saio, vendo Paul me observando através do
retrovisor, até que viro a esquina e o perco de vista.

Bob, Gabs e eu passamos a parte da manhã trabalhando com


afinco na campanha de Paul. Em alguns momentos, me pego rindo
sozinha com a lembrança dele me puxando da cama para me
acordar.
Na hora do almoço, ligo para a mamãe. Aparentemente está tudo
bem, apesar dela estar passando pela fase do breu, que é como eu
chamo quando está anuviada, sem se lembrar de muita coisa. Em
seguida, ligo para Eva, mas ela não atende. Deixo uma mensagem
de voz perguntando sobre Andrew e avisando que passarei no
hospital mais tarde.
Saio do prédio junto com Gabriela, e atravessamos a rua, rumo
ao restaurante no qual costumamos almoçar. Depois de fazermos
os pedidos, ela me encara.
— Karen, o que está acontecendo?
— Ahn?
— Você parece... Diferente. Está muito bonita, acho que mais
corada, de cabelos soltos... Além disso, hoje de manhã te vi perdida
em pensamentos por várias vezes.
— Ah, não é nada demais, só transei ontem à noite — digo,
dando de ombros.
— Ahá! Sabia que tinha alguma coisa! Quem é ele?
— Ninguém que conheça, você sabe que não sou de me apegar.
Apenas digamos que estou satisfeita — digo, dando uma
piscadinha.
— Nem precisava falar! Está na sua cara! E eu sei que você não
gosta de se envolver, conheço a sua história e entendo os seus
motivos. Mas esse cara aí, eu não sei não...
O garçom chega com os nossos pedidos. Depois que ele se retira,
Gabriela continua:
— Já encontrei com você várias vezes, depois dos seus encontros
furtivos. É a primeira vez que a vejo assim.
— Assim como?
— Você parece tão... Sei lá... Feliz!
Engasgo com o suco de laranja, tossindo muito. Ela me passa
um guardanapo, para que eu possa secar os respingos da blusa.
— Gabs, isso é cisma sua. Sou a mesma de sempre. Pare de falar
bobagens e me conte como está Maria — digo, visando uma
mudança de assunto.
Gabriela passa todo o horário de almoço explicando como ela e
a mulher estão planejando a viagem de férias que farão para a
África. Ela está empolgadíssima e descreve o roteiro programado,
com riqueza de detalhes.
Quando pagamos a conta, Gabs me dá um sorriso irônico.
— O que foi agora? — pergunto, intrigada.
— Nada.
— Fala logo, Gonzalez!

113
— Você diz que é a mesma, não é? Pois a Karen de ontem não
limparia o prato desse jeito — e me dá uma piscadela ao se levantar
da mesa.
Reviro os olhos e a sigo. Eu sei que geralmente deixo comida no
prato, pois o meu estômago embrulha, o nó na garganta insiste em
aparecer, e não consigo comer tudo.
Mas eu estava com fome, oras! Que coisa chata!
Acabo de me lembrar de que não tomei o antiácido hoje.
Engraçado o meu estômago não ter reclamado ainda.

Chego ao hospital e encontro Linda, sozinha, na sala de espera


da UTI. Quando me vê, ela corre ao meu encontro, me dando um
abraço caloroso.
— Oi, Cake!
— Oi, Linda! A sua mãe não está por aqui hoje?
— Não. Papai deu um ultimato nela. Disse que, se não aceitasse
a nossa ajuda, ele não viria mais, nem mesmo para visitar Andrew.
Claro que o meu pai não faria isso, mas parece que a ameaça
funcionou. Ele passou a noite e parte da manhã. Eu vim logo após
o almoço e vou ficar até amanhã, de manhã. Enquanto isso, a
mamãe consegue descansar um pouco.
— Que bom, ela precisa mesmo. Eu posso revezar com vocês,
Linda, já disse isso para a sua mãe, mas ela só aceitou a minha
ajuda uma vez.
— Ah, a mamãe não aceita a ajuda de ninguém, ela não quer
sair de perto de Andrew. É compreensível, mas se ela cair doente,
tampouco poderá fazer algo. Pelo menos, hoje ela está em casa. E
eu consegui antecipar as minhas férias. Além disso, papai consegue
flexibilizar os horários, e mamãe não trabalha, então, não justifica
incomodarmos você, que só tem a noite para descansar — diz,
apertando a minha mão.
Sinto-me culpada ao lembrar-me da noite passada. Eu fiz de
tudo, menos descansar.
— Não é incômodo, Linda, sempre que precisarem eu venho
passar a noite.
— Eu sei, Karen, obrigada. Você sempre foi uma ótima amiga.
— Nem tanto assim – respondo, cabisbaixa. — Será que consigo
ver Andrew?
— Acho que sim, a febre cedeu e eles estão um pouco mais
flexíveis. Algumas enfermeiras são mais legais do que outras, e a
que está aqui hoje é do time das legais. Vou lá falar com ela.
Poucos minutos depois, Linda volta acompanhada da enfermeira.
É uma senhora baixinha, com grandes bochechas, rosadas e
brilhantes. Ela me chama, com um aceno de mão.
— Dez minutos.
— Muito obrigada!
É a primeira vez que vejo Andrew com a traqueostomia, e o meu
coração se aperta. Sento na cadeira ao lado da sua cama,
enroscando o meu indicador ao dele.
— Oi, Andy, voltei. Estava morrendo de saudades — digo,
acariciando a sua mão — Ontem não vim, porque você não estava
podendo receber muitas visitas. Fui ao Snooker, era o nosso dia de
ir lá. Eu senti tanto a sua falta!
Realmente senti. Tudo naquele lugar me lembra de Andrew e,
ontem, em algum momento entre um conhaque e outro, pensei ter
sentido o seu perfume. Omito o detalhe de que Paul Newman
apareceu, mudando todo o desfecho da noite.
— Sinto a sua falta todo o tempo. Vejo coisas que gostaria de
comentar com você, penso no que diria de determinada situação,
ou em como riríamos de alguma coisa... A vida é tão vazia sem
você! Onde está, afinal, que não quer voltar para nós? — pergunto,
com tristeza. — Você é forte, eu sei que é. Lute, por favor! Lute por
todos nós. Não desista.
Abaixo o rosto e encosto o nariz na sua mão, dando um beijo
delicado no dedo que está entrelaçado ao meu.
A enfermeira aparece de repente, dizendo:
— Srta. Geller, vamos deixá-lo descansar agora, está bem?
— Tudo bem. Desculpe, nem senti o tempo passar — respondo
e me volto para Andrew, dando um beijo suave em sua testa e
acariciando o seu cabelo. — Andy, eu tenho que ir, mas em breve
eu volto. Amo você, viu? Não se esqueça disso.
Saindo da UTI, pergunto à enfermeira:
— Qual o real estado dele?
— Bem, Srta. Geller, a febre cedeu e fizemos um novo Raio-X. A
água no pulmão não voltou, então ele parece estar reagindo muito
bem à medicação. Amanhã, novos exames serão feitos, e teremos
um prognóstico mais concreto.
Linda se junta a mim, me abraçando de lado. Passo o braço ao
redor de sua cintura e pergunto:
— Vamos tomar um café?

115
entadas na última mesa da lanchonete, olho para Linda, com
carinho. Está um pouco abatida, mas parece bem, apesar de
tudo. Ela sempre foi assim, forte e obstinada. É admirável.
— Sabe, Karen, houve uma época em que achei que você se
tornaria minha cunhada.
Sinto as minhas bochechas corarem.
— Linda, eu nunca olhei para Andrew dessa maneira. Ele sempre
foi como um irmão para mim. O mais irônico disso tudo é que, agora
que ele está dessa forma, posso realmente vir a ser sua cunhada
— digo, com um sorriso melancólico.
— Como assim?
Conto toda a história para Linda, desde o que aconteceu no meu
apartamento no dia do acidente, até a minha promessa no leito de
Andrew. Ela ouve com atenção, e em momento algum parece me
julgar.
— Cake, a culpa definitivamente não é sua. E nem dele. Andrew
se apaixonou por você, mas você não. Isso acontece com todo
mundo, todos os dias. É uma situação mais do que normal. Eu
acompanhei a amizade de vocês desde o início e sei muito bem que
você nunca deu esperanças, nesse sentido. E ele também sabia.
Conversamos sobre isso mais de uma vez.
— Conversaram? — pergunto, enrubescendo.
— Sim. Ele gostava de você, porém sabia que não havia sinal
nenhum de sua parte de que era correspondido. Mas também
gostava da amizade de vocês e não queria perdê-la. Isso foi há
muito tempo, achei que Andrew já tivesse superado.
— Pelo visto, isso não aconteceu.
— Mas a culpa não é sua. A gente não escolhe de quem gostar
— ela aperta a minha mão sobre a mesa.
Lembro de que ontem, nesse mesmo horário, Paul Newman
estava segurando a minha mão no Snooker.
— Mas se eu tivesse lidado com isso de outra forma, se não o
tivesse mandado embora, se ele não tivesse dirigido depois de
beber, agora tudo seria diferente.
— Karen, se ele não quisesse, não teria ido, mesmo com você
mandando. Andrew é teimoso. E ele poderia ter pegado um taxi.
Não adianta ficar lidando com hipóteses, não é assim que funciona.
Você não quis que ele dirigisse bêbado, muito menos que se
acidentasse. Pensar assim é irracional. Não é justo que se torture
dessa forma.
Aquiesço e Linda continua:
— Mais irracional ainda, é a promessa que você fez. Entendo que
seja fruto do desespero, por querer que ele volte para nós, e da
culpa enorme que sente pelo que aconteceu, mas passar a vida
inteira ao lado de alguém que não ama, é cruel e injusto. Não só
consigo mesma, mas com ele também. Vocês merecem ser felizes,
cada qual com uma pessoa que os amem, e que vocês amem de
volta. A vida a dois já não é fácil quando existe amor, Karen. Sem
amor, é impossível!
— Mas eu não vou ficar com mais ninguém nessa vida. Eu me
fechei para isso, você sabe.
— Claro que vai. A partir do momento em que você se abrir, vai
encontrar alguém. Alguma pessoa ainda vai aparecer para
arrebatar o seu coração, de um jeito que você não vai compreender.
E isso é o que dá sentido à vida da gente, justamente as coisas que
acontecem sem sentido algum — diz, com carinho.
Penso em Paul, e em como ele me desestruturou e virou de
cabeça para baixo, em tão pouco tempo. Será que é esse tipo de
arrebatamento ao qual Linda se refere? Rapidamente, procuro
afastá-lo dos meus pensamentos.
— Vou voltar à sala de espera, gosto de estar por perto. Pense
no que falei, é só o que eu peço. Pense bem — ela diz.
Sorrio e me levanto para acompanhá-la.
Despeço-me de Linda com um abraço. Como gosto dela! Seria
ótimo se fôssemos mais próximas.

Deito na cama depois de tomar banho, fumar um cigarro e comer


uma tigela de mingau de aveia. Pego o celular, que está na

117
cabeceira. São 20h30min. Ainda é muito cedo, mas me sinto
cansada e sem forças para levantar. Terá Linda razão em tudo o
que disse, e a culpa não é tão minha assim, no fim das contas? Será
que fiz uma promessa indevida, e cumpri-la faz parte de um futuro
inevitavelmente sombrio e infeliz? Estou tão confusa e absorta em
pensamentos, que levo um susto quando o meu celular toca. Olho
no visor e atendo, sorrindo:
— Sr. Newman!
— Karen, que bom que atendeu! Atrapalho?
— Não, já estou deitada.
—Já? Deve estar cansada. Foi ao hospital hoje?
— Fui.
— E o seu amigo?
— Está começando a reagir à medicação. As perspectivas são
boas. Ele vai fazer uns exames amanhã.
— Que bom, tomara que fique tudo bem.
— É, tomara.
Ele faz uma pausa, antes de perguntar:
— Você está bem?
— Estou, por quê?
— Sua voz parece mais triste do que hoje de manhã.
— É... Conversei muito hoje com a irmã de Andrew. Ela me falou
umas coisas... Acho que estou um pouco confusa. Reflexiva, na
verdade.
— Ah, é? Que tipo de coisas?
— Resumidamente, ela disse que a culpa do acidente não é
minha, e que se eu cumprir a promessa que fiz a Andrew estarei
penitenciando a nós dois.
— Hum... Gostei dela.
— Imagino — e sorrio.
— Ela só está te fazendo pensar em coisas que eu já havia falado,
mas você não quis ouvir.
— Ah, você queria uma desculpa para continuar me comendo,
então a sua opinião não conta.
— Srta. Geller! Você beija a sua mãe com essa boca suja?
Dou uma risada.
— Bem, eu ia convidá-la para ver um filme comigo, mas se você
já está deitada...
— Ah, Paul, realmente estou cansada, e com a cabeça cheia.
Podemos assistir amanhã, se você ainda quiser.
— Claro, amanhã está ótimo. Sabe, gosto de saber que você está
confusa e reflexiva.
— Ah, é? E posso saber por quê?
— Sinal de que não é tão cabeça dura quanto parece.
Sorrio e quase posso ver o sorriso dele, do outro lado da linha.
— Você está sorrindo. Deve estar linda.
— Não, estou emburrada.
— Fazendo biquinho?
— Isso te agradaria, Newman?
— Demais, Geller.
— Então, não.
Paul dá uma gargalhada.
— E mais, estou com uma camisa de time de baseball, cabelo
preso — enfatizo a última palavra. —, e calcinha de algodão, estilo
calcinha da vovó.
Paul dá mais uma gargalhada.
— Puro charme e glamour!
— Sempre.
— Você é bonita até do avesso, menina.
Uma tristeza súbita toma conta de mim.
— O meu avesso é negro, Paul.
— Ah, Karen, você não sabe mesmo o que diz.
— Você é quem não sabe.
— Quer apostar?
— Não faço apostas, especialmente com maus perdedores.
— Mau perdedor, eu? Que coisa mais descabida!
— Não é não. Você ficou todo revoltado porque perdeu o último
pedaço de omelete para mim.
— Claro, você é uma gulosa.
— E você não reclamou disso fora dos limites da cozinha.
Ele dá um longo suspiro.
— Nem me lembre. Senti o seu cheiro o dia todo na minha pele.
É delicioso — ele diz, e eu enrubesço. — Aposto que ficou vermelha.
— Você nunca vai saber — respondo, sorrindo.
— Ah, Srta. Geller, o que eu faço com você...
Estremeço. Minhas entranhas reviram, quando o seu tom de voz
fica mais sensual. Preciso encerrar essa conversa, senão vou acabar
abrindo a porta do meu apartamento para Paul Newman ainda hoje,
e realmente preciso de espaço para pensar.
— Paul, acho que vou dormir. Está me dando sono.
— Que forma sutil de dizer que eu a entedio.
— Você realmente é chato, mas estou mesmo cansada. Esse
mérito não é seu.
— Se bem me lembro, parte desse cansaço é mérito meu, sim.

119
Dou uma gargalhada.
— É verdade. Foi tão insignificante, que já tinha me esquecido.
— Karen, Karen, Karen, da próxima vez vou dar um jeitinho de
você não se esquecer.
E minhas entranhas se preparam para realizar um bem sucedido
grand fouettésen tournant12.
— Você sabe que eu estou brincando. Foi ótimo. Mesmo. Pensei
nisso algumas vezes, hoje.
— Eu também. Várias vezes.
Ele suspira. Estou a um triz de chamá-lo para a minha cama.
— Nos vemos amanhã?
— Está me dispensando, Geller?
— Estou, Newman.
— Tudo bem, mas só porque você precisa descansar e repor as
energias para amanhã.
Dou uma risada.
— O que lhe faz supor que terei motivos para gastar energia
amanhã?
Ele demora alguns segundos e, por fim, responde:
— A forma como o seu corpo inteiro reage a mim, Geller. É
enervante quando estamos juntos. Eu quero te tocar o tempo todo
e sei que você sente isso, tanto quanto eu. Mesmo agora, longe de
você, isso é tudo em que eu penso, poder te tocar. E ontem percebi
que, mesmo quando estou com você, ainda parece que não é o
bastante.
E minhas entranhas se desequilibram, levando um tombo
ornamental.
— Até amanhã, Paul.
— Até amanhã, linda. Durma bem.
— Você também.
— Tchau, senhorita deliciosamente enervante Geller.
— Tchau, senhor irritantemente sedutor Newman.
Desligo o telefone, com um sorriso gigantesco no rosto. Minhas
pálpebras começam a pesar, e eu durmo em seguida, com o
coração excepcionalmente aquecido.

12-Grand FouettésenTournant: é um movimento do ballet clássico conhecido como chicoteado, que


pode ser feito em meia-ponta, ponta ou com um salto.
ob, Gabs e eu optamos por almoçar na nossa sala, para
evitar a garoa que cai lá fora. Chafurdamos em comida
chinesa, enquanto conversamos, animadamente. Bob
conta detalhes do último show de sua banda, e de como uma
mulher, que havia bebido além da conta, sentou em seu colo,
tentando persuadi-lo a ir para casa com ela.
— Arrasou, Bob! — digo, dando uma gargalhada.
— Porra, Karen, se a coroa fosse gata, eu até encarava — ele
diz, com resignação —, mas ela parecia uma trombada de
caminhão!
— Como ela estava vestida? Como ela era? — Gabriela pergunta.
— Era pequena, de cabelo curtinho e vermelho. Da roupa eu não
me lembro direito, talvez um vestido preto, por quê? — ele
pergunta, confuso.
— Bob, era a minha tia — diz Gabriela, séria.
Ele arregala os olhos.
— Mentira! Como você poderia saber?
— Ela me contou a mesma história. No dia, fui eu quem a deixou
na porta do bar.
Bob fica lívido.
— Porra, Gabs, eu não quis falar assim da sua tia, foi mal! Ela
não era tão feia assim.
Gabriela e eu nos olhamos, e compreendo na hora a sacanagem
que faz com Bob, contando essa mentira para deixá-lo em uma saia
justa. Caímos juntas na gargalhada. Rio tanto, que lágrimas brotam
nos meus olhos.
Ele finalmente compreende.
— Gabriela, você é uma grande filha da puta.

121
E rimos mais ainda.
Quando me dou conta, já terminei de comer.
— É impressionante o apetite dessa garota, ultimamente — diz
Gabs, com malícia.
Enrubesço e arregalo os olhos para ela, tentando mandar um
aviso silencioso para manter a merda da boca fechada.
Gabs dá uma risada.
Bob olha de uma para a outra, sem entender, e pergunta:
— O que eu perdi dessa vez?
— Karen deu para um carinha que ela diz que não é ninguém,
mas depois disso anda falante, cheia de apetite e sorridente, como
eu nunca a vi antes!
Sinto um enjoo súbito, e a comida parece querer subir para a
garganta.
— Gabriela! — grito.
Bob fica sério, de repente.
— É verdade? — ele pergunta para mim.
— Claro que não! Vai acreditar nas histerias da Gabriela? — digo,
olhando feio para ela, que me encara sorrindo e levanta as mãos.
— Gente, mas só fiz um comentário inocente! — ela diz,
segurando o riso.
Tento parecer brava, mas não consigo me segurar e, de repente,
estamos as duas às gargalhadas.
Bob dá de ombros, dizendo:
— Bem que achei que você estava diferente. Acho que mais
bonita, sei lá.
— Só porque coloquei essa roupa? — escolhi hoje um vestido de
algodão soltinho, que vai até o joelho, de alças finas e elástico na
cintura, fundo vinho e estampado com pequeninas flores brancas,
junto com sandálias rasteiras brancas e um suéter branco, à parte.
— Pois agradeça ao calor.
— Bendito calor! — Bob diz, erguendo as mãos.
— Ao ar condicionado fajuto da Weiss! — Gabs levanta o copo, à
guisa de brinde.
Mostro a língua para os dois, fazendo uma careta, e começamos
a rir novamente, descontrolados.
Sem avisar, Sabrina abre a porta da nossa sala, descompensada
e trazendo um sorridente Paul Newman em seu encalço. Gabriela
está sentada na minha mesa, Bob está com os pés em cima da dele,
e eu estou na cadeira, com as pernas cruzadas em posição de lótus.
Levantamos rapidamente, envergonhados, ao sermos
surpreendidos em um momento de demasiada descontração.
— Sr. Newman, desculpe, acabamos de almoçar agora, não
vimos que já tinha dado a hora da reunião — Bob diz, tentando
reestabelecer o prumo.
— Não precisa se desculpar, Sr. Creag, eu cheguei adiantado.
Estava na sala de espera, mas ouvi as risadas de vocês. O clima
está tão alegre e descontraído, que pedi a Srta. Sabrina para me
trazer até aqui — e se aproxima, sussurrando. — A moça não devia
ter entrado sem bater, mas me pareceu muito nervosa, quando falei
com ela. Acho que não está muito bem.
Gabriela e eu olhamos uma para a outra, segurando o riso.
Sabemos o quanto Sabrina fica desconcertada na presença de Paul
Newman.
E quem não ficaria?
— Pensei em passar um tempo com vocês, conhecê-los melhor,
considero isso importante no processo de trabalho. Incomodo? —
ele pergunta, me dando uma piscadela.
Engulo em seco.
O que é isso? De onde veio essa ideia?
Paul está sendo demasiadamente inapropriado. Por que chegou
mais cedo, e para que vir até a nossa sala? Isso não faz parte do
protocolo.
— Claro que não incomoda, Sr. Newman — diz Gabriela, com seu
sotaque latino sedutor, enfatizando o R no final da palavra senhor.
— Sente-se, fique à vontade.
— Por favor, me chame de Paul — diz, sorrindo e se sentando na
poltrona em frente à minha mesa.
Enrubesço e abaixo os olhos.
— Olá, Karen. Se me permite a audácia, a senhorita está
especialmente bonita hoje.
— Até Paul Newman percebeeeeuu — Gabriela cantarola.
— Sr. Newman — digo, em um aceno de cabeça formal, com a
voz fria —, é muita bondade sua.
— Karen nos contou que vocês agora são vizinhos, Paul —
Gabriela diz, e eu desejo que a sua língua dê uma câimbra.
— Ah, contou, foi, Srta... Gonzalez, certo?
— Pode me chamar de Gabriela.
— Um belo nome, para uma bela dama. Sim, moramos bem
próximos um do outro — e seu sorriso mostra um quê de malícia.
— Você devia mostrar o bairro para ele, Karen — Gabriela diz, e
eu sei bem quais são as suas intenções com essa sugestão.

123
— Karen tem sido bastante solícita nesse sentido, Gabriela —
Paul responde, e me afundo na cadeira, desejando que o chão se
abra embaixo de mim.
— Imagina, Sr. Newman, espero que tenha aprendido a chegar
ao supermercado — digo, com os olhos faiscando.
— Ah, sim, obrigado. Também achei aquele bar bastante
acolhedor — responde, levantando o corpo como se me desafiasse.
Sinto, mais do que vejo, os olhares de Bob e Gabriela me
queimando, enquanto as minhas entranhas tentam se equilibrar em
um chassé13 distraído. Preciso sair dessa, e rápido.
— Mas isso não foi mérito meu, já que, quando chegou, eu já
estava lá.
Rá! Também posso jogar esse jogo, Newman.
— Ah, mas na sua companhia ficou bem mais agradável — ele
diz, sorrindo.
— Imagina! Aquele dia eu estava uma péssima, Sr. Newman,
tinha acabado de sair do hospital, onde fui visitar o meu amigo
Andrew, lembra? — e levanto uma sobrancelha.
— Você é sempre boa companhia, Karen — ele diz, com um
sorriso zombeteiro nos lábios.
— É bastante lisonjeiro, Sr. Newman, mas aí está algo que não
teria como saber. O senhor mal me conhece — digo, me sentindo
triunfante.
— Me chame de Paul — ele diz, me encarando.
Não respondo e apenas dou um sorriso forçado.
Olho para Bob e Gabriela. Ele está com os braços cruzados e os
lábios contraídos. Ela, com os olhos arregalados e a boca
entreaberta, esboçando um sorriso.
— Bem, está na hora da reunião. Com licença — digo, pegando
o meu material e seguindo para a sala de reuniões.
Nos primeiros minutos de conversa, ainda paira o
constrangimento criado pelo espetáculo de Paul Newman na nossa
sala. Que joguinho é esse que acabamos de jogar? Em que ele
estava pensando? Que iria me intimidar na frente dos meus
colegas, no meu trabalho? Não sei a intenção dele, mas,
definitivamente, Paul Newman não me conhece. Quando percebo
que estão todos constrangidos, tomo as rédeas da reunião, o que
parece funcionar. O restante da tarde segue tranquilo e,
aparentemente, precisaremos apenas de mais um ou dois

13-Chassé: é um movimento do ballet clássico, onde um pé "caça" o outro.


encontros no máximo para fecharmos a campanha. A próxima
reunião é marcada para a quarta-feira da próxima semana.
Despedimo-nos de Paul Newman, eu da forma mais fria possível,
e voltamos para a nossa sala, para guardar o material de trabalho
e irmos embora. Quando pego a minha bolsa, Gabriela me vira de
frente para ela, com os olhos faiscando de curiosidade e
perguntando:
— Karen, Paul é o fodedor misterioso, não é?
Fico lívida. Tento demonstrar uma imensa indignação, mas acho
que a minha expressão e o meu rosto me condenam. Abro a boca
para falar, mas não emito nenhum som de imediato, tendo que
fazer um esforço sobre-humano para conseguir balbuciar poucas e
cortantes palavras, em um tom mais alto do que o normal:
— Eu já disse que não tem fodedor misterioso, Gabriela!
Saio da sala como um raio, ignorando a expressão estarrecida
de Gabriela, por eu ter praticamente gritado com ela. Passo pela
portaria sem me despedir de Sabrina, dobro à direita e sigo a
passos largos, de cabeça baixa, em direção à esquina, onde está o
meu carro. Trombo com alguém no caminho, mas não paro e não
peço desculpas. Apenas continuo a andar, sem olhar para trás.
Escuto uma voz familiar me chamando:
— Karen, ei! Espere aí!
Chego ao meu carro e vejo Paul correndo na minha direção.
Entro rapidamente, dou a partida e arranco, cantando pneu, antes
que ele me alcance. Estou com ódio mortal dele que, por algum
motivo sádico, optou por me expor hoje, na frente da sagaz
Gabriela Gonzalez. Quem ele pensa que é? Isso é, no mínimo,
antiprofissional. Sempre preservei a minha vida pessoal para,
agora, ele vir cheio de gracejos, me fazendo passar por ridícula na
frente dos meus colegas e me submetendo aos questionamentos de
Gabriela! Ah, faça-me o favor!
O trânsito não poderia estar pior. Soco o volante três vezes,
quando tenho de dar uma freada brusca porque o carro da frente
parou de repente. Noto que não coloquei o cinto de segurança.
Maldito Paul Newman!
Enquanto espero a fila de carros andar, sinto o sangue ferver em
minhas veias. Meu celular toca, e pego a minha bolsa para
encontrá-lo.
É ele. Desligo. Não quero falar com esse desgraçado.
Cinco minutos parada. Meu celular volta a tocar. Não vou
atender.
Filho da mãe!

125
Sete minutos parada. Ouço o toque novamente. Quando pego
para desligar, vejo que é Linda e coloco no viva-voz.
— Oi, Linda!
— Karen, oi, está podendo falar?
— Estou dirigindo, mas pode falar.
— Só para avisar que Andrew fez os exames, e a pneumonia está
regredindo bem. Ele vai se safar dessa!
— Que boa notícia, Linda! Esse safado não joga para perder! —
digo, sorrindo.
— Ele é forte, Cake! Ah, outra coisa, não venha hoje. Já excedeu
muito o número de visitas. Minha tia vai viajar e quis visitá-lo, antes
de ir. A equipe que está aqui hoje não é das mais maleáveis.
— Tudo bem, amanhã eu passarei por aí.
— Está certo, Karen. Boa noite.
— Tchau, Linda.
Onze minutos parada. Meu celular toca novamente. Ele não
desiste.
— O que você quer?
— Você está com raiva de mim?
— O que acha?
— Eu sei que está, mas só porque brinquei com você?
— Me expondo no meu trabalho, Paul? Você não conhece a
Gonzalez. Ela não vai me deixar em paz. A ideia que você tem de
brincadeira, é muito diferente da minha.
— Mas eu não falei nada demais, não ficou nada claro para eles.
— O que é ainda pior, porque ela vai me infernizar, até arrancar
alguma confissão de mim.
— E eles ficarem sabendo da nossa relação é ruim, porque...
— Primeiramente, não existe relação nenhuma. E você é nosso
cliente, eu não quero me comprometer! — e percebo que estou
gritando.
Paul fica em silêncio por alguns segundos, antes de dizer:
— Entendi. Desculpa. Eu só quis brincar com você.
— A minha vida privada não é brincadeira. Pelo menos, não para
mim.
— Você está certa. Desculpe-me.
Ficamos em silêncio novamente, por alguns segundos.
— Ainda vamos nos encontrar hoje?
— Não estou com a menor vontade.
— Ah, Karen, por favor, já pedi desculpas.
— Tudo bem, mas não quero ver você. Nem falar com você.
Preciso de um tempo. Tchau, Paul!
No chuveiro, deixo a água quente acalmar os meus nervos. Visto
um short jeans e uma camisa de malha branca e larga, que pende
do ombro. Procuro um antiácido, meu estômago está gritando. Pego
a garrafa de vinho que restou do desastroso encontro com Andrew,
o mesmo que resultou no fatídico acidente. Quando estou abrindo
o invólucro da rolha com uma faca, o interfone toca. Eu tomo um
susto, deixando a faca escapar, cortando em cheio a palma da mão.
— Merda! — grito e corro para pegar um pano de prato, para
apertar na mão. O interfone toca de novo.
— Quem é?
— Sou eu. Por favor, me deixe subir.
— Vá embora, eu disse que não quero ver você.
— Karen, deixa de ser infantil. Vamos conversar.
— Ah, eu que sou a infantil agora? Tchau, Paul.
O corte está latejando e vou até a pia. Quando a água encosta
na ferida, sinto uma dor forte espetando a carne.
— Aahhrggh, merda, merda, merda! — grito, batendo o pé no
chão, repetidamente.
Aperto novamente o pano na mão. Vinho! É disso que preciso.
Álcool no sangue vai fazer a dor passar. Porém, agora ficou
impossível de abrir a garrafa. Decido pedir uma mão ao meu vizinho
de frente. Ele costuma dar jeito nos meus potes de pepino, quando
não consigo abri-los.
Com dificuldade, abro a porta e volto para buscar a garrafa.
Quando me viro, Paul Newman está na minha sala.
— O que você está fazendo aqui? — pergunto, entre dentes.
— A gente tem que conversar — ele diz, quando vê o pano
ensanguentado na minha mão. — Karen, o que é isso? — pergunta,
de olhos arregalados.
Coloco a garrafa sobre o balcão, a fim de apertar mais o pano na
mão machucada.
— Isso não é da sua conta — rosno.
— Você fez isso de propósito? — pergunta, sussurrando.
Dou uma gargalhada histérica.
— Você não vale tudo isso, Newman.
Paul vem para cima de mim, segurando o meu pulso, e eu tento
me soltar, mas a dor está forte demais.
— Me deixe ver, por favor — ele pede, em um tom suplicante.
Minha respiração está acelerada de raiva, mas a dor é ainda
maior. Viro o rosto e abro a mão, afrouxando o aperto. Ele tira o
pano de cima da ferida e toma um susto:
— Nossa, Karen, isso está muito feio! Como você se cortou?

127
— Estava abrindo o invólucro do vinho com a faca e me assustei,
quando você tocou o interfone.
— Porra, me desculpe! Você tem um kit de primeiros socorros?
— Aqui — e aponto para o armário aéreo da cozinha.
Paul alcança a caixa e me puxa para o banheiro. Ele tira o pano
e abre a torneira da pia, colocando a minha mão debaixo d’água.
Eu encolho de dor, e ele vai lavando o machucado, com delicadeza.
Enquanto deixa o corte na água corrente, Paul abre o kit de
primeiros socorros e tira um pacote de gaze, que abre com os
dentes. Ele fecha a torneira e aperta um chumaço sobre a ferida.
— Primeiro, vamos estancar o sangue — diz, enquanto pressiona
a gaze na palma da minha mão e acaricia o meu pulso, com o
polegar — Sinto muito.
Não respondo.
Alguns minutos em silêncio, e Paul puxa a gaze, devagar. O
sangue parece ter parado de escorrer.
— Okay, vamos limpar isso — ele diz, firme.
Sento-me na tampa do vaso sanitário, e ele pega um frasquinho
de iodo e um pouco de algodão.
— Isso vai doer — diz, em um tom de voz suave, procurando me
acalmar.
— Vai logo com isso, Newman!
Ele embebe o algodão em iodo e encosta na ferida. Dou um grito
e tento tirar a mão, mas ele me segura firme pelo pulso e limpa
todo o machucado, assoprando ao mesmo tempo, para aliviar a
ardência. Tampo a boca com a outra mão, suprimindo os gritos.
Fecho os olhos, sinto uma tonteira forte e respiro fundo, para me
manter no lugar. Quando dou por mim, Paul já tampou o
machucado com gaze, enrolou uma atadura e prendeu com
esparadrapo.
— Pronto — e dá um beijo suave na palma da minha mão, sobre
o curativo.
— Obrigada — digo, com a voz engasgada, ainda reflexo da dor.
Levanto e pego as coisas para arrumar, mas ele não deixa.
— Eu dou um jeito nisso depois. Venha, vamos conversar um
pouco — e pega a minha outra mão, me guiando.
Sentamos no sofá e ficamos apenas nos olhando por um tempo,
que parece uma eternidade, antes que eu comece a falar:
— Por que você fez o que fez hoje?
— Eu não queria expor você, Karen. Eu juro.
— Mas expôs — digo, com a cara fechada.
— Eu sei. Sinto muito, perdi o controle. Ficar perto de você é
perturbador para mim. Eu ainda não sei lidar com isso. Você me
provoca sem fazer esforço algum, e eu acabei te provocando de
volta.
Sinto as minhas bochechas queimarem. Eu, que sempre achei
esse homem perturbador, descubro que ele pensa o mesmo de
mim!
— Mas por que diabos você foi entrar na nossa sala? Por que
chegou quase meia hora antes do horário marcado?
— Você quer mesmo saber?
— Quero.
— Cheguei mais cedo porque queria ver você. Quando a
recepcionista disse que estavam almoçando, não quis incomodar e
fiquei na sala de espera. Mas foi aí que ouvi a sua gargalhada. Fiquei
imaginando o seu rosto corado e descontraído, seus dentes lindos,
expostos... Me perguntei se você chorava de rir, se estava com a
mão na barriga, ou de olhos fechados... Então, não aguentei e pedi
para ela me levar até lá. Eu queria ver você rindo daquele jeito. Foi
como um canto de sereia para mim — ele diz, abaixando os olhos.
Meu Deus! Tudo isso porque ele queria me ver sorrir? Isso
derrete o meu coração inteiro! É tão lindo e doce... Quero fugir,
mas a verdade é que, se eu o envolvo com o meu canto de sereia,
Paul me envolve com o seu feitiço. Ele é a minha kriptonita. Não
sou capaz de resistir. Ainda mais quando o vejo assim, de coração
aberto, tão frágil e vulnerável.
Coloco a minha mão não machucada sobre a de Paul. Quando
levanta os olhos, vejo um misto de paixão e medo em seu olhar.
Passo os braços pela sua cintura, e ele me aperta forte contra o
peito.
— Por favor, não me afaste — ele sussurra no meu ouvido.
E eu me prendo no seu abraço, plantando um beijo suave em
sua boca. Ele me segura, sem querer se desvencilhar do beijo e
respirando fundo, ruidosamente. Ficamos uma eternidade com os
lábios colados. Ele querendo mais, porém, consciente de que não
sou capaz de dar o que deseja.

129
uando Paul finalmente me solta, me afasto um pouco, para
encará-lo.
— Temos uma garrafa de vinho, um saca-rolha, e uma mão
inutilizada. Acho que preciso da sua ajuda — digo, sorrindo.
Ele respira fundo, como se estivesse aliviado por eu não tê-lo
mandado embora.
— Será um prazer, Srta. Geller.
Paul levanta e vai até o balcão, onde abre a garrafa com
facilidade. Encontra rapidamente duas taças e volta para o sofá,
colocando tudo sobre a mesa de centro.
— Quer assistir o filme aqui? — pergunto.
— Não dá, o que quero assistir está passando no cinema.
Podemos ir amanhã. Quer assistir alguma coisa na TV?
— Naquela gaveta tem vários filmes, podemos assistir algum, se
você gostar — digo, apontando o móvel.
— Ah, que ótimo! Vou dar uma olhada.
Assim que abre a gaveta Paul me olha, incrédulo:
— Você tem Coppélia! — sussurra.
Olho para ele, com uma sobrancelha levantada.
— Você gosta?
— Essa peça foi o primeiro espetáculo que a minha mãe me levou
para assistir. Ela gosta muito de balé. Eu tinha apenas quatorze
anos e não gostei muito da peça, era um moleque, afinal de contas.
Mas me apaixonei por Coppélia, à primeira vista. Ela foi o meu
primeiro amor! — e abre o seu sorriso arrebatador.
Dou uma gargalhada.
— Bem, Sr. Newman, não sei se será a mesma Coppélia, mas se
você quiser assistir, não me incomodará nem um pouco.
— Eu quero! — diz, com os olhinhos brilhando, e imagino com
perfeição aquele menino de quatorze anos da sua história.
Faço um sinal com a mão para o aparelho de DVD, convidando-
o a ligá-lo. Ele imediatamente coloca o disco no leitor, pega o
controle remoto e se senta ao meu lado. Paul liga a TV e, enquanto
o filme carrega, serve nossas taças.
— E você, gosta de balé?
— Eu amo balé clássico. O meu espetáculo preferido é O Lago
dos Cisnes. Comecei a fazer balé na adolescência, mas acabei
desistindo, quando papai e Marcus... — e paro, sentindo o nó na
garganta se formando, mais uma vez.
Paul pega a minha mão em um carinho delicado, dizendo:
— Sinto muito.
Olho para ele e vejo a compreensão em seus olhos.
— Tudo bem. De qualquer maneira, as bailarinas têm de ser
graciosas. Eu sou muito estabanada, nunca daria certo.
— Pois eu acho você tão delicada... — ele diz, pegando a minha
mão e levando até os lábios.
Sinto o meu estômago revirar.
— Ssshhh, começou! — e coloco o indicador nos lábios, pedindo
silêncio.
Paul chega mais perto de mim e passa o braço ao redor dos meus
ombros. Tenho pavor dessa intimidade excessiva, medo de que isso
possa iludi-lo de alguma forma, mas não quero chateá-lo depois da
briga estressante que tivemos hoje. Não resisto e me aninho em
seu abraço.
Quando termina o espetáculo, olho para ele e pergunto,
sorrindo:
— E aí, era a sua Coppélia?
— Não. De qualquer forma, ela só era minha nos meus sonhos,
Srta. Geller. Hoje, a mulher que povoa os meus sonhos é outra —
diz, passando o indicador no meu rosto.
Paul está seguindo por um caminho perigoso, e eu preciso
colocar um freio nisso.
— Paul, nós somos amigos, lembra? Por favor, já conversamos
sobre isso.
— Eu sei, Karen. Como eu disse mais cedo, ainda não sei agir
muito bem com tudo isso, mas vou aprender. Tenha um pouco de
paciência, é só o que eu te peço, isso ainda é muito novo para mim.
Mas de uma coisa eu sei: eu quero você, quero ficar perto de você,
tocar em você, cuidar de você, te agradar, e isso eu não vou evitar.
Não consigo evitar.

131
— Tudo bem, mas vamos com calma. Não temos e não teremos
um relacionamento amoroso. Preciso que isso fique bem claro.
— Sim, está claro para mim, fique tranquila. O fato de não poder
beijar você, sempre me lembra disso — ele diz, contorcendo a boca.
— Mais vinho?
— Por favor — digo, me endireitando no sofá. — Quer pedir uma
pizza?
— Claro! Você gosta de pizza de quê? — pergunta, passando a
mão no celular.
— Margherita — digo, sem jeito. Sei bem que quase ninguém
gosta de margherita.
Paul dá uma gargalhada.
— A minha preferida também! Menos um motivo para brigarmos.
— Brigar não é tão ruim, Sr. Newman. Especialmente, se
considerarmos o processo de fazer as pazes depois — digo, sorrindo
para ele.
Ele me olha, desligando o telefone.
— Como está a mão?
— Bem melhor, quase não sinto mais.
— Acha que dá para fazer certas coisas? — pergunta, com o olhar
malicioso.
Imediatamente o meu coração dispara.
— Ora, Sr. Newman, de repente eu tenha apenas de ficar com
as mãos quietas. Você poderia amarrá-las, se quisesse — e levanto
as sobrancelhas para ele.
Paul me puxa pela mão não machucada e cheira o meu pescoço.
Em um movimento rápido, me pega no colo. Eu solto um grito,
seguido de uma risada. Ele me leva para o quarto, onde fazemos
as pazes repetidas vezes até que, exaustos, caímos no sono.

— Ei, dorminhoca, bom dia! — Paul me acorda, com beijos na


bochecha e no canto da boca.
— Bom dia — e me lembro de que é sábado, levantando de um
pulo. — Que horas são?
— Calma, são nove horas. Você não trabalha hoje, trabalha?
— Não, mas é o dia de visitar a minha mãe.
Paul se levanta, tentando me acompanhar.
— Você nunca me falou sobre a sua mãe. Não sabia se ainda
estava viva e não me atrevi a perguntar.
— Está e não está. Ela foi diagnosticada com Alzheimer de início
precoce e, de lá para cá, a tenho perdido aos poucos. Ela está numa
clínica-asilo. Todo sábado vou visitá-la e almoçar com ela, mas nem
sempre me reconhece.
Paul me olha com compaixão.
— Não se preocupe, está tudo bem. Já me acostumei com a ideia
de que, em breve, ela não estará mais aqui. Quase não está, na
verdade — digo, dando de ombros.
— Não diga isso, sei que você não pensa realmente assim – diz,
passando o polegar no meu rosto. — Posso ir com você?
Franzo a testa.
— Por quê? — pergunto, mais ríspida do que gostaria.
— Hummm, vejamos, para conhecê-la? — ele responde, com um
tom irônico.
Reviro os olhos e me dou por vencida. Vou ao banheiro me aliviar
e escovar os dentes. Paul arruma a cama e, quando saio pela porta,
pergunta:
— Topa tomar café na rua?
— Topo.
Estamos na cafeteria que eu tenho o costume de ir. Paul come
uma torrada de pão francês e um café com leite, e eu peço ovos
com bacon e um café puro.
— E o seu amigo?
— Ah, está melhorando! — digo, abrindo um largo sorriso. — A
pneumonia regrediu.
— Que bom! Gosto de te ver assim, feliz.
Inclino a cabeça e cerro os olhos.
— Você gosta de mim até do avesso, Sr. Newman.
Ele dá uma risada.
— Aí você me pegou.
Chegamos à clínica às onze horas. Paul está muito charmoso
com seu visual despojado: calça jeans, camisa de malha branca,
tênis e óculos escuros. Eu estou com um vestido de algodão branco,
de frente única, florido na barra e no cinto, acompanhado de
sandálias brancas e cabelo preso em um rabo de cavalo. Está um
calor suave essa manhã.
Ao descermos do carro, ele exclama:
— Uau, esse lugar nem parece uma clínica!
— Não é? — digo, sorrindo. — Gosto muito daqui. Mamãe
também gosta.
De pé na recepção, a enfermeira Norah me recebe
calorosamente, e fico sabendo que mamãe ainda está na fase do
breu. Abaixo a cabeça, desanimada, e Paul passa o braço ao meu
redor.

133
— Não fique assim, vamos vê-la. O importante é que ela sinta
que você está com ela.
Faço um sinal afirmativo com a cabeça, confortada pelas
palavras carinhosas de Paul, e seguimos para a sala de música,
onde Norah indica que iremos encontrá-la.
Mamãe está sentada em uma poltrona de couro, com a cabeça
deitada para trás e os olhos fechados, logo ao lado do piano. Parece
funestamente serena. Pouso a mão sobre a dela, com delicadeza.
— Mamãe?
Ela abre os olhos e me vê, com aquele franzido na testa, já
familiar. Ele sempre está lá, quando ela está no breu.
— Oi mãe, sou eu, Karen, sua filha. A senhora não está se
lembrando de mim?
Ela faz que não com a cabeça, parecendo confusa.
— Não tem problema. Vamos dar um passeio pelo jardim? Eu
quero muito lhe contar uma história — digo, com carinho.
Ela assente com a cabeça e se levanta. Quando fica de pé, repara
em Paul, que está logo atrás de mim.
— Mãe, este é o meu amigo, Paul Newman. Paul, esta é a minha
mãe, Louise Katherine Geller.
— É um prazer conhecê-la, Sra. Geller — ele diz, oferecendo a
mão para pegar a dela. — A senhora está bem? Como tem passado?
— Estou bem, só um pouco tonta — ela responde.

Sentamos em um banco de frente para o canteiro de flores. Paul


se acomoda à nossa frente, na beirada da mureta do jardim.
— Está vendo aquelas flores ali? — pergunto, apontando para
um punhado de pequenas gérberas alaranjadas. — Foi a senhora
quem plantou. Lembra-se disso?
Ela franze a testa.
— Fui eu? Elas são lindas, não são? — mamãe pergunta,
sorrindo.
— Sim, são lindas! A senhora tem um talento extraordinário com
as plantas!
— Ah... É mesmo. Tenho, não é?
Sorrio para ela, com ternura.
— Quer ouvir uma história?
Desde a descoberta da doença, no período do breu a mamãe me
pede para contar histórias. Ela gosta, especialmente, das de
princesas.
— Ah, sim, quero! — diz, batendo palmas.
— E qual a história teremos hoje?
— Cinderela! — ela grita, com um sorriso infantil.
Levanto do banco, estendendo a minha mão para Paul, que nos
observa:
— Sr. Newman, venha se juntar a nós para ouvir essa linda
história.
Paul sorri, pega a minha mão e se senta ao lado de mamãe.
Conto a história da maneira como ela gosta: enceno algumas
partes, faço as vozes dos personagens e canto as músicas. Em uma
delas, puxo a minha mãe para dançar, e ela gira pelo jardim junto
comigo, rindo sem parar. Reparo que, em alguns momentos da
narrativa, ela repete algumas frases dos personagens. Mesmo no
breu, ela ainda está ali, escondida em algum lugar. Isso acalenta o
meu coração.
Ao final da história, me curvo agradecendo aos aplausos de
mamãe e Paul, que grita “bravo!” e assobia.
— Mais uma! — mamãe grita.
— Ah, não senhora, agora é hora de almoçar — digo.
Ela emburra a cara e cruza os braços, como se tivesse oito anos
de idade.
— Não quero comer!
Sempre que está no breu, ela perde a fome.
— Mas a senhora precisa comer, mamãe. Não gosta da
sobremesa? — pergunto, aflita. É muito difícil fazê-la se alimentar
quando está assim.
— Eu quero só a sobremesa — diz, ainda emburrada.
— Mas... — retruco, e Paul faz um sinal com a palma da mão
para mim, me pedindo para esperar e se dirigindo a ela:
— Sra. Geller — fala baixinho, fingindo que é para eu não
escutar. —, se a senhora comer tudo, eu lhe dou a minha
sobremesa.
Os olhos de mamãe brilham, e ela torna a abrir o seu sorriso
infantil.
— Promete?
Ele beija os dedos em forma de X, dizendo:
— Palavra de escoteiro. E escoteiros nunca mentem.
Paul se levanta e oferece o braço à mamãe, que aceita de bom
grado. Ele estende o outro para mim. Corro ao encontro deles, e
seguimos os três para o refeitório.

135
brigada pelo que você fez pela mamãe hoje — digo,
enquanto estamos no carro, voltando para casa.
— Eu achei linda a forma como você cuida dela. E adorei o
espetáculo da Cinderela! — diz, dando uma risada. — Você tem uma
criança escondida dentro de si, e que hoje eu tive a sorte de
conhecer, Srta. Geller.
Sorrio e meu telefone toca. É Linda.
— Oi, Linda.
— Oi, Cake.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não, está tudo bem. Andrew está se recuperando da
pneumonia a olhos vistos! Liguei para avisar que ele não poderá
receber mais visitas por hoje. A família toda resolveu acampar aqui.
Sinto uma pontada de tristeza. Queria ver o meu amigo.
— Certeza? Não quer que eu passe por aí para levar alguma
coisa? Você está ficando direto?
— Não, estamos revezando. Pode ficar tranquila. Amanhã te ligo
para dizer a melhor hora para você vir.
— Tudo bem, então. Fique bem, Linda.
— Tchau, Cake.
Fico calada. Paul parece perceber a minha decepção e pergunta:
— O que houve?
— Não vou poder ver Andrew hoje. Está cheio de gente lá. Só
espero que Linda não esteja tentando me afastar, depois do que
conversamos aquele dia — digo, revelando o principal motivo da
minha angústia.
— Karen, se ela disse que tem muita gente lá, deve ser verdade.
É fim de semana, as pessoas devem estar aproveitando as folgas
do trabalho para visitá-lo. Não coloque minhocas nessa sua
cabecinha à toa.
Paul deve ter razão. Eu sempre penso demais e arrumo
explicações mirabolantes para tudo. Resolvo abordar outra
questão, que também está me preocupando.
— Paul, você disse que quer ir ao cinema hoje. Acha mesmo uma
boa ideia?
Ele me olha sem entender.
— Por que não seria?
Não estaria arriscando, ao sair com Paul em um local tão público?
Alguém pode ver e comentar. Mas se Paul e eu nos tornamos
amigos, não existe motivo para esconder isso, existe? Os benefícios
é que devem ficar entre quatro paredes.
— Ah, é um lugar público, podemos encontrar alguém conhecido.
— Karen, somos amigos, isso não é pecado. Se não podemos ir
a um simples cinema juntos, então, que amizade é essa?
— É, você tem razão.
— Uau! — ele diz, sorrindo. — Essa foi fácil, Geller.
— Aproveite enquanto pode, Newman! — digo, sorrindo de volta.
— Raramente abro mão de uma discussão.
— Pode discutir comigo sempre que quiser, desde que esteja
disposta a fazer as pazes daquele jeito depois — diz, me dando uma
piscadinha.
Chegamos à frente do meu prédio.
— Você vai subir?
— Estava pensando em ir para casa, tomar um banho e me
arrumar para sairmos mais tarde. Vem comigo?
— Ah, Paul, se não se importa, acho que vou descansar um
pouco. Estou cansada e com sono.
Ele franze o cenho, mas parece desistir de retrucar.
— Passo aqui para te pegar as oito. A sessão é as nove.
— Não precisa, encontro você lá. Onde é?
— Fica no Oakridge Centre. Por que não posso te buscar? — ele
pergunta, desapontado.
— Porque vou passar em algumas lojas antes. Tudo bem?
Preciso respirar um pouco, me recuperar desse furacão chamado
Paul Newman. Ele me provoca um turbilhão de sentimentos, todo o
tempo. Isso é novo e delicioso, mas ao mesmo tempo, cansativo e
assustador demais.
Paul respira fundo.
— Sem dramas, Newman — digo, cruzando os braços e batendo
o pé para ele.

137
Ele ri e passa a mão pelo cabelo.
— Karen, você é terrível. Nos vemos lá, então. Às oito.
— Combinado. Quer que eu te leve em casa?
— Não precisa, vou andando — me dá um beijo no rosto e sai do
carro.
Durmo a tarde toda, descansando o corpo, mas em especial, a
mente e o coração. São tantas emoções e pensamentos
desordenados...

Às sete e meia da noite, o táxi para em frente ao Oakridge


Centre. Entro no Shopping e penso em mandar uma mensagem
para Paul avisando que cheguei, mas prefiro dar uma passeada
pelas lojas. Pelo menos, não terei mentido integralmente para ele.
Depois de passar algum tempo namorando livros em uma
livraria, passo em frente a uma loja de brinquedos e vejo um
garotinho chorando, logo na entrada. Deve ter por volta de três
anos e parece estar sozinho. Devagar, me aproximo e pergunto:
— Por que você está chorando, meu bem?
— Me "pedi" da minha mãe aí "dento".
A loja está lotada. Estendo a mão não machucada para o
garotinho, que a pega com seus dedinhos gordinhos e aperta.
— Vamos lá achar a sua mamãe.
A loja é enorme. Andamos por onde dá, já que está muito cheia
e tenho de pegá-lo no colo.
— Se você a vir, me mostre, está bem? — digo, e ele faz que
sim com a cabecinha, segurando a chupeta. Quando já andamos o
quanto era possível, me dirijo a uma das vendedoras, que está,
providencialmente, passando ao meu lado.
— Moça, pode nos ajudar? Esse rapazinho aqui se perdeu da
mãe. Você poderia anunciar no alto-falante que estaremos logo na
entrada, esperando por ela?
— Claro! Qual é o seu nome, querido?
— "Macel" — ele diz, enxugando o rosto com as costas da
mãozinha gorducha.
A vendedora faz o anúncio no microfone, enquanto levo Marcel
para a entrada. Logo ali, em uma das vitrines, vemos um
bonequinho de neve, que solta pequenas bolinhas de sabão. Ele fica
encantado e começa a bater as mãozinhas nas bolas, mostrando
um sorriso divertido por trás da chupeta. Coloco-o no chão e me
sento, de frente para ele. Brincando, estouramos as bolinhas
juntos. De repente, uma delas pousa na ponta do meu nariz, e
Marcel dá um tapinha para estourá-la. Tampo o nariz com a mão e
grito um “ai!”, só de brincadeira. Ele solta uma deliciosa
gargalhada, e ficamos alguns minutos rindo e nos divertindo, com
a nossa brincadeira de estourar bolinhas de sabão. Noto quando a
mãe dele finalmente aparece, pois Marcel dá um gritinho animado:
— Mamãe!
Ela se abaixa e abraça o filho, que se joga em seus braços.
Parece que também estava desesperada, procurando por ele.
Percebo que Marcel ganhará um irmãozinho ou irmãzinha em breve,
dado o tamanho da barriga de sua mãe.
— Moça, muito obrigada! Ele saiu de perto de mim, enquanto eu
corri no banheiro. Com essa barrigona, está difícil de acompanhar
o ritmo desse mocinho — ela diz, bagunçando os cabelos do filho.
— Imagina, não precisa agradecer. A gente se divertiu muito,
não é? — e dou uma piscadela para ele, que sorri por trás da
chupeta.
— Agora nós vamos embora, não é, Marcel? Chega de emoções
fortes por hoje. Tchau e muito obrigada! A propósito, eu sou Louise
— ela diz, sorrindo.
O nome da minha mãe.
— Muito prazer, eu sou Karen. E não tem de quê. Tchau, Marcel
— digo, abanando a mão para ele.
Quando Louise se vira para sair pela porta da loja, ele tira a
chupeta e me joga um beijo, que ouço estalar na mãozinha
gorducha e pequena. Mando outro de volta e, só então, noto que
ainda estou sentada no chão. Dou um sorriso, estouro uma última
bolinha de sabão e, quando me levanto, batendo as mãos nos
fundilhos da calça jeans para limpá-la, o meu coração dispara ao
ver certo sujeito sentado em um banco de madeira, do lado de fora
da loja, me observando através da vitrine, com seu sorriso
arrebatador e uma expressão que, não sei bem dizer, se está mais
para divertida ou encantada.

139
aio da loja, me sentindo meio boba. Paul se levanta e me dá
um beijo no rosto.
— Oi — diz, tirando o meu cabelo do ombro.
— Oi — respondo, com um sorriso tímido, levantando os ombros
em uma expressão de “o que mais eu poderia fazer?”.
— Quem é o menininho?
— Não conheço. O nome dele é Marcel. Ele estava perdido da
mãe na porta da loja, e fui procurá-la com ele.
— Ah, sim, belo gesto, Srta. Geller — diz, passando o braço pela
minha cintura e me dando um beijo no topo da cabeça. — Sabe,
acho que nunca a vi mais bonita.
Olho-me de cima a baixo. Estou de calça jeans, tênis, uma
camiseta branca, um lenço amarrado no pescoço, à guisa de colar,
e uma jaqueta verde escura. Olho para ele, com uma expressão
interrogativa. Paul parece compreender a minha confusão.
— Quis dizer que nunca a vi tão linda quanto ali — e aponta para
a loja. —, brincando e rindo com aquele garotinho. Ele, com certeza,
conseguiu extrair o melhor de você.
Abaixo os olhos, encabulada.
— Para com isso, Newman. Vamos logo, senão perderemos o
horário — digo, para mudar de assunto.
— Já perdemos.
— Sério?
Viro o relógio de pulso, para ver que são 21h10min. Nem senti
o tempo passar! Por quanto tempo fiquei brincando com Marcel?
Sinto uma pontada de raiva, ao perceber que a mãe dele ficou
sumida por tempo demais. Coitadinho.
— E agora? Tem outra sessão?
— Não. Era a última. Quer andar um pouco?
— Pode ser. Lá fora? Aqui está cheio demais.
De repente, os olhos dele ficam repletos de uma vivacidade
incrível, e seu sorriso arrebatador retorna, dobrando de tamanho.
— Claro! Tive uma ideia. Vem comigo — e pega a minha mão,
me levando até uma delicatessen próxima.
— Paul, enquanto você entra aí, se incomoda se eu for ao
banheiro?
— Claro que não. Te encontro na porta.
Quando volto do banheiro, ele está me esperando, com duas
sacolas na mão. Parece animado e ansioso. Olho, desconfiada, e
pergunto:
— Posso saber o que está tramando?
— Você já vai ver.
Saímos do Shopping e seguimos pela rua. Paul não fala nada,
apenas posso observar que o seu rosto está relaxado, e o esboço
de um sorriso insiste em manter-se ali. Pelo que percebo, estamos
caminhando em direção ao Queen Elizabeth Park.
— Você quer ir ao parque há essa hora? — pergunto.
— É nessa hora que a mágica acontece! — responde, sorrindo.
— Confie em mim. Venha.
Continuamos caminhando, e noto que estamos indo em direção
ao lago. Pequeninos pontos brancos boiam sobre a água, mas não
consigo identificar o que são. Enquanto andamos, observo grupos
de adolescentes conversando animadamente, e jovens casais
apaixonados, aproveitando a noite para namorar.
Quando chegamos à beira do lago, Paul coloca as sacolas no
chão. De uma delas, tira duas taças, cuidadosamente amparadas
dentro de uma caixa, e uma garrafa de vinho, cuja rolha já foi
removida, estando apenas encaixada no gargalo. Da outra sacola,
ele tira um pacote de pão e quatro pequenos sanduíches,
embalados sofisticamente, um a um. Ele estende as sacolas, como
se fossem toalhas, e coloca tudo em cima delas. Em seguida, retira
o paletó, estende no chão e me diz, com voz firme:
— Sente-se.
Obedeço. Ao fitar o lago, vejo com nitidez os pontinhos brancos,
que não havia identificado. São cisnes! Eles estão dormindo, com a
cabeça escondida debaixo da asa.
Que lindo!
Paul senta-se ao meu lado, tira as taças da caixa, apoiando-as
firmemente sobre a grama e servindo o vinho. Em seguida, pega
um dos sanduíches e me oferece, junto com um dos cálices.

141
— Gostaria de convidá-la para jantar, Srta. Geller.
Pego o que me é oferecido, dando-lhe um sorriso sincero:
— Será um prazer, Sr. Newman — e levo a taça aos lábios.
— Espere, não beba ainda! — ele diz, pegando a sua, que levanta
a guisa de brinde. — Às sessões de cinema perdidas!
Olho em seus olhos lindos e inflamados, e retribuo:
— Aos improvisos de sábado à noite!
Brindamos e tomo um pequeno gole. O vinho está delicioso. Abro
o pequenino sanduíche, delicadamente embalado, e como com
pequenas mordidas. É de salmão e queijo brie. Uma delícia! Paul
come o seu em duas bocadas e logo abre o segundo.
— Depois, eu que sou a gulosa!
— Estou com fome! Devia ter comprado vários!
— Pode comer o outro.
— Não, eu comprei dois para cada um.
— Estou sem fome. Aliás, para que você comprou um saco de
pães?
Paul bate as mãos para limpar as migalhas, abre o pacote, toma
duas fatias e pica em pedaços pequenos, à sua frente. Ao observar
a minha expressão intrigada, diz:
— Observe a mágica!
Ele escolhe uma pedrinha pequena e atira no lago. Dois dos
cisnes tiram a cabeça da asa, à procura do que está perturbando o
seu sono. Paul toma dois pedaços do pão picado e joga na água. Os
cisnes, imediatamente, vão à busca do alimento. Não demora muito
para que os outros também acordem, e Paul segue arremessando
o pão na água. Quando me dou conta, estamos cercados de cisnes,
aguardando o próximo arremesso. Olho ao redor, maravilhada, com
o rosto doendo de tanto sorrir.
Ele me entrega duas fatias de pão e pergunta:
— Quer tentar?
Faço que sim com a cabeça e parto um pedaço, jogando na
direção do lago, mas não consigo alcançar a água. Os cisnes
permanecem flutuando, olhando para o alimento inerte na grama,
quando o menorzinho deles se empertiga para fora, se sacodindo,
e corre para pegar o bocado de pão. Ele come rapidamente e me
fita, em seguida. Começo a jogar várias pequenas porções na
grama. Os outros parecem desconfiados e não saem do lago, mas
o corajoso pequenino vai comendo todos os pedaços, que
propositalmente começo a jogar mais perto de mim. Quando o
pequeno cisne já está bem próximo a nós, pego três pedacinhos de
pão e estendo a mão, encostando-a na grama. O pequenino me
olha, vem e come na palma da minha mão. Aperto os olhos e
prendo o lábio inferior entre os dentes, para prender o riso. O bico
belisca e faz cócegas. Corto mais alguns pedaços, sob seus olhinhos
atentos, e estendo a mão novamente, que ele aceita de imediato.
Quando termina, digo baixinho:
— Você já comeu bastante, meu pequeno, vamos dividir com os
seus amiguinhos, está bem?
Pego um punhado de pães e fico sobre os joelhos. Jogo com mais
força e consigo atingir a água. O pequenino cisne volta para o seu
bando, que agora come com estardalhaço.
Olho para Paul, que ficou calado todo esse tempo, talvez para
não atrapalhar a minha interação com o pequenino cisne. Ele está
me encarando, com um semblante carinhoso e admirado.
— Você também é uma encantadora de cisnes!
Dou uma gargalhada.
— É a mágica!
Então, me detenho no que ele disse e franzo a testa.
— Como assim, também? Além de você? — pergunto.
— Não. Porque você é, obviamente, uma encantadora de
homens, Srta. Geller. — diz, com um sorriso carinhoso.
Fico vermelha.
Encantadora de homens? Faz-me rir.
Ele joga o último punhado de pães na água, que os cisnes
comem, rapidamente. Quando percebem que acabou a farra,
voltam a se dispersar pelo lago.
— Adorei isso — olho para ele, com doçura. — Adorei mesmo!
Obrigada!
— Eu adorei mais ainda, pode ter certeza.
Tomamos mais um pouco de vinho, e ele continua calado.
— O que foi? — pergunto.
Paul me olha, e posso ver um traço melancólico em seu rosto.
— Nada. Só estou cansado — diz, dando um gole no vinho.
— Por que não me disse? Poderíamos ter saído outro dia — digo,
com um tom sincero de preocupação.
— Não. Eu queria ver você.
— Foi uma semana difícil?
— É... Surgiu algo essa semana que preciso resolver, mas não
sei bem o que fazer... — responde, enigmático.
— É no trabalho? — pergunto, tentando fazer com que desabafe
comigo.
— De certa forma... Está vinculado, sim.
— Se eu puder ajudar...

143
Paul me encara e sinto que vai falar alguma coisa, mas parece
que muda de ideia.
— Não, infelizmente, você não pode me ajudar — responde,
abaixando a cabeça.
Não aguento vê-lo triste assim. Parte o meu coração. Encosto a
lateral do meu corpo no dele e dou um pequeno empurrão com o
ombro. Ele me olha e sorri. Dou mais um empurrão.
— Ei! Sorria! — digo, segurando o seu queixo, e Paul pega a
minha mão, beijando a palma e soltando-a em seguida.
Começamos a conversar sobre amenidades: filmes, comidas,
músicas prediletas, os anos de faculdade, a rotina no trabalho e,
assim, nos permitindo conhecer melhor um ao outro. O papo flui,
animado e suave. O torpor vai sumindo aos poucos dos olhos de
Paul.
Terminando a taça de vinho, me deito sobre o paletó, respirando
fundo para sentir o ar da noite. Pela primeira vez, desde que me
lembro, não sinto vontade de fumar um cigarro.
— Posso fazer uma pergunta?
— Claro.
— De verdade, por que você e a sua noiva terminaram?
Ele pensa um pouco, como se ponderasse, e então começa a
falar:
— É complicado. Nosso relacionamento já não vinha bem há um
bom tempo. Não sei o que mudou em mim, mas comecei a achá-la
superficial, sem profundidade, vazia... Sei que é uma coisa horrível
de se dizer, mas era como eu realmente me sentia. E não era
absolutamente culpa dela. Jennifer sempre foi a mesma, quem
estava mudando era eu. Comecei a me sentir infeliz, mas não
falávamos sobre isso. Acho que ela acreditava que, conversar sobre
um problema, nos faz admitir que ele existe.
— Hum...
— Foi aí que ela me surpreendeu. Certo dia, Jennifer tinha ido
ao salão de beleza, e eu estava sentado no sofá, com o tablet na
mão. Não percebi quando chegou, só fui vê-la porque pigarreou
atrás de mim. Ela estava de pé, parada, me encarando com um
olhar fulminante. Percebi que tinha sido pego no flagra.
Olho para ele. Parece se entreter ao contar a história.
— Estava vendo pornografia? — pergunto, antecipando uma
risada.
— Não! Estava olhando a sua foto.
O quê?
Paul me encara. Está se divertindo com a minha expressão de
assombro.
— Quando eu disse que terminei por sua causa, você duvidou?
— Óbvio! — murmuro, com a voz falhando.
— Bem, foi quase isso. Depois da primeira reunião na agência,
não consegui tirar você da cabeça. Te achei linda, obviamente, e
percebi que era tímida, mas de todos os que falaram aquele dia, foi
a mais inteligente, sagaz, assertiva e quem realmente parecia ter
capacidade de captar o espírito da coisa. Fora o seu currículo
acadêmico. Você realmente me impressionou.
Tenho a sensação de que as minhas bochechas estão mais
escuras do que o vinho.
— Entrei no site da agência, na seção “Equipe de Trabalho”, para
saber mais informações sobre você. Lá, tem uma foto sua.
Puta merda, aquela horrenda fotografia de identificação, que me
pediram assim que entrei na agência! Não seria apenas para
cadastro de funcionários e apresentação pessoal?
Detesto aquela foto!
— Você está encantadora, com uma expressão firme, porém
doce. Deve ser uma das poucas pessoas que saem realmente
bonitas em fotos tiradas para documentos.
Cubro ao olhos com o braço. Não consigo olhar para ele. Estou
queimando de vergonha.
— Ei, não quer saber o resto da história? — pergunta, rindo.
— Quero — digo, descobrindo só um olho.
Paul dá uma risada e puxa o meu braço.
— Ela chegou quando eu estava vendo a foto. Pior que, sem
perceber, estava passando o dedo sobre a tela, "acariciando" o seu
rosto. Eu estava hipnotizado e não sei há quanto tempo Jennifer
estava me observando. Não tive como disfarçar. Acho que nem
queria, na verdade. Ela me questionou sobre você, abri o jogo e
decidi terminar tudo.
Engulo em seco.
— Então, não foi bem por minha causa — digo, tentando arranjar
uma desculpa melhor. — O relacionamento de vocês já estava ruim.
Isso foi só o estopim.
— Ela tem cem por cento de certeza de que você é a culpada.
— E você acha isso engraçado?
Paul dá de ombros.
— Na verdade, o que ela pensa não faz diferença para mim. Não
mais.
— E, por que está rindo, então?

145
— Para te provocar! — e abre o seu sorriso arrebatador.
Tento dar um tapa no braço de Paul, mas ele desvia a tempo.
Levanto de súbito para tentar novamente, mas sou agarrada pelos
punhos. Estamos nos olhando, ele ainda rindo, e eu com a cara
fechada. De repente, um desejo brutal parece pairar sobre nós. O
meu coração dispara, e a minha respiração acelera. Sinto as
entranhas revirando, e um calor sobe pelo meu ventre, retesando
em todo o meu corpo. Os olhos de Paul estão inflamados, a sua
boca entreaberta, e a respiração também acelerada. Solto os meus
punhos das suas mãos e chego para o lado, para me afastar e
retomar a razão. Ergo a minha taça, para que ele possa enchê-la.
— Pensei que poderíamos ir para o meu apartamento — diz, com
uma voz sensual, que se comunica direto com o meio das minhas
pernas.
— Primeiro, vamos esvaziar essa garrafa. Estou gostando de
ficar aqui.
Deito novamente, e Paul se deita ao meu lado, sobre a grama.
— O céu está maravilhoso, não é? Nem parece que estamos no
meio de uma metrópole — digo, e estremeço um pouco.
— É verdade. Está com frio?
— Só um pouco.
Ele se arrasta para perto, abrindo o braço. Sorrio, me aconchego
no seu corpo e o frio passa, instantaneamente. Não resisto à sua
delicadeza. Uma sensação de segurança me preenche, como se
nada de ruim pudesse me acontecer. Paul acaricia o meu cabelo
com cuidado, dando beijos ocasionais no topo da minha cabeça.
Passo o braço pela sua barriga, abraçando-o de volta, forte, bem
forte. Sinto uma emoção estranha crescendo dentro de mim, uma
vontade de estar sempre nos braços dele. Como pode uma coisa
dessas? Eu mal o conheço, e é como se perto dele fosse o local mais
seguro do mundo, o lugar onde eu deveria estar.
Não sei quanto tempo se passa, e começo a me sentir sonolenta.
— Vamos? — sussurro.
Ele não responde. Olho para cima e sorrio. Parece que
adormeceu. Bem aqui, diante do céu aberto, deitado na grama e à
beira de um lago. Penso que devo passar algum tipo de segurança
para ele também.
Isso é um grande erro. Não posso me enganar. Eu ainda sou
aquela mesma pessoa destrutiva. Nada mudou. Exceto que...
Sim!
Eu sei e não posso mais mentir para mim mesma: estou
irremediavelmente apaixonada por Paul Newman! Acordo e durmo
pensando nele, e o meu coração dispara quando o vejo. As
borboletas no meu estômago nunca mais me deixaram, depois de
conhecê-lo.
Não tenho mais como ocultar isso de mim e eu sei disso, mas
dele eu posso. Aliás, preciso. Paul é tão diferente... Feliz,
apaixonado, carinhoso, delicado, gentil e cheio de vida, ele não
merece uma pessoa como eu. Preciso mantê-lo em segurança e
protegido do meu sentimento.
Uma ideia me passa pela cabeça. No momento, ele está
dormindo e, no mundo do inconsciente, não pode me ver. Ergo o
corpo com cuidado, para evitar que acorde. Eu me debruço sobre o
seu rosto, com delicadeza, e encosto, de leve, os meus lábios nos
lábios macios e quentes de Paul. Preciso sentir a sua boca na minha,
desesperadamente. Nunca quis tanto beijar alguém. Olho para ele
e sinto toda a paixão que arde dentro de mim.
Como pude ser tão imprudente de me apaixonar? Fugi desse
sentimento por nove anos! Não que tenha sido difícil, porque
nenhum homem chegou nem perto de mexer comigo. Eu criei uma
barreira eficiente por todo esse tempo, mas desde que Paul entrou
na minha vida, ela parece cada vez mais frágil, como se fosse feita
de açúcar. Porque ele é o meu potinho de açúcar.
Beijo novamente os seus lábios, com carinho. Paul respira fundo
e me abraça.
Puta merda! Será que estava acordado esse tempo todo?
Antes que eu possa dizer alguma coisa, ele me vira e me deita,
parte sobre a grama, parte sobre o seu paletó. Paul me observa,
com os olhos brilhando, intensos. Está mesmo apaixonado. É nítido
na forma como me olha.
Não posso demonstrar que também estou. Não posso! Não pos...
Ele se abaixa e me beija, interrompendo os meus pensamentos.
Um beijo suave, a princípio, avaliando a minha reação. Mas eu não
posso mais, não consigo mais resistir e passo os braços ao redor do
seu pescoço, puxando-o para mim. Aos poucos, o beijo se torna
romântico, apaixonado e lascivo. Nossas línguas entrelaçadas vão
se reconhecendo, se explorando, tornando-se cúmplices uma da
outra. Nesse exato momento, o mundo é todo resumido a nós dois
e a essa intimidade, infinita e absurda. E o contato vai se tornando
intenso, quente, seguindo o ritmo dos nossos corpos, agora
totalmente apertados um contra o outro.
Paul se coloca de pé de uma vez, e eu já sinto saudades do seu
corpo sobre o meu, da sua boca na minha.

147
— Vamos — ele diz e me puxa, pegando o paletó e me trazendo,
quase correndo, pela grama.
— As taças, a garrafa... — murmuro ofegante, sendo
praticamente arrastada por ele.
Paul para em frente a um adolescente, estende uma nota de
cinquenta dólares e pergunta se ele aceita recolher o que deixamos
na grama, para jogar no lixo. O rapaz aceita prontamente,
comentando com o colega do lado que conseguiu o dinheiro para as
bebidas.
— Agora, eu quero você, eu preciso de você! — diz, determinado,
sem olhar para trás e se certificar de que o jovem realmente fará o
serviço.
Mal conseguimos chegar ao apartamento dele. Nossas bocas e
braços não se desgrudam. Ao fechar a porta, Paul tira a jaqueta dos
meus ombros, a minha blusa, o meu lenço, tudo com uma
velocidade recorde. Quando vou tirar a sua camisa, devido à
voracidade, acabo prendendo a gola em sua cabeça. Abro o buraco
com os dedos, procurando os seus olhos e os beijo, sorrindo, em
um pedido silencioso de desculpas. Ele acaba de tirar a blusa e me
abraça forte, me apertando contra ele. De repente, se afasta e tira
os tênis, as meias, a calça e a cueca, enquanto eu o sigo, me
livrando do meu sutiã, calça e calcinha. E estamos completamente
nus, nos encarando. Ele vem até mim, como um predador. Eu
recuo, até bater as costas na porta de entrada. A um passo de mim,
Paul me olha de cima a baixo, passando a língua nos lábios e
sorrindo.
— Como você é gostosa... — murmura, ainda com os olhos fixos
no meu corpo.
E se joga em cima de mim, me agarrando pela cintura, subindo
as mãos pelas minhas costas e beijando os meus ombros, de um
lado ao outro, pela linha da clavícula.
— Enrole as pernas em mim — sussurra e eu obedeço,
prontamente.
Paul me segura pelas coxas e me empurra ainda mais contra a
porta. Ele se posiciona embaixo de mim e fala no meu ouvido,
fazendo arrepios percorrerem por todo meu corpo:
— Se segure bem. Agora vou comer você, explorando essa boca
linda. Eu quero fazer isso há muito tempo, então, não respondo por
mim.
Eu gemo de prazer e exaustão, por segurar essa paixão dentro
de mim por tanto tempo. Paul me penetra, com uma profundidade
que, posso jurar, nunca senti antes. Eu berro, liberando os meus
medos. Ele captura o meu grito com a boca e começa a me
consumir, poderosamente, enquanto me beija, mantendo a língua
no mesmo ritmo do quadril, sem parar e me deixar respirar direito.
Gemo aturdida contra a boca de Paul, despejando na minha
respiração todo o meu o sentimento. Porque também o quero,
quero tudo com esse homem. Estou louca por ele e temo que veja
isso, mas, especialmente nesse momento, eu preciso que Paul saiba
que eu o quero, tanto quanto ele me quer. E me entrego de corpo,
alma e coração, em um orgasmo catártico e ascendente, que dura
mais tempo do que qualquer outro que eu já tenha experimentado.
Ele enlouquece, indo a êxtase junto comigo, tremendo e arfando,
sem tirar a boca da minha.
Com as nossas respirações ainda descompassadas, Paul cola
nossas testas e sussurra:
— Ainda não terminamos, Geller.
Sem sair de dentro de mim, ele me carrega até o quarto. Quase
não consigo manter as pernas ao seu redor. Estou mole e tremendo.
Ele me deita com suavidade em sua cama, se posicionando em cima
de mim, com uma perna de cada lado do meu quadril, olhando
dentro dos meus olhos e passando os nós dos dedos no meu rosto.
— Linda, vou te fazer gozar de novo, agora.
Suas palavras disparam o meu coração. Não quero que ele saia
de perto de mim, de cima de mim, de dentro de mim. Desejo cada
milímetro desse homem. Paul parece compreender, pois começa a
se mexer mais uma vez, devagar, entrando e saindo, com o corpo
colado ao meu e a boca grudada à minha. Ele mantém o ritmo suave
e já está ficando duro novamente. A criatura não parece precisar
de tempo para se recuperar e me beija com desespero, como se a
vida dele dependesse de mim, de estar em mim. Eu retribuo a todos
os seus estímulos. Ele sussurra palavras ininteligíveis dentro da
minha boca, intensificando o movimento dos quadris, se tornando
mais rápido e mais forte, e eu me ofereço novamente.
Enrolo as pernas ao redor de sua cintura, comprimindo-o contra
mim. Estou encharcada com a minha excitação e com o gozo de
Paul, e isso me deixa ainda mais enlouquecida. Ele continua a me
beijar com a sua língua exigente e acaricia os meus seios,
apertando os meus mamilos, duros e doloridos. Fico alucinada e,
quanto mais tenho dele, menos parece ser suficiente e mais eu
quero. Cravo as unhas com vontade em suas costas e arqueio o
corpo, apertando ainda mais as pernas em torno do seu quadril,
quando ele começa a tremer em deliciosos espasmos.
— Karen! Eu vou gozar nessa delícia de boceta, minha gostosa!

149
— Ah, Paul, me preencha! Eu quero você, quente, dentro de
mim!
E chegamos ao segundo clímax juntos, gemendo na boca um do
outro, com um som doce e sensual.
Ele desaba sobre mim, ofegante. E, nesse momento, eu vejo
como estamos completamente entregues, apaixonados e
deliciosamente saciados.
aul sai de cima de mim, preguiçosamente, se jogando ao
meu lado na cama. Ainda estamos ofegantes. Ele faz um
carinho no meu rosto com o indicador. Parece feliz e confuso,
ao mesmo tempo.
— O que foi? — pergunto, recuperando o ar.
— Você me beijou — diz, baixinho.
— É...
— E me deixou beijá-la.
— Eu sei — e sorrio para ele.
— Por quê?
— Não sei... — respondo, afastando da minha cabeça a resposta
clichê e óbvia, que grita dentro de mim: “porque me apaixonei por
você!”. — Eu apenas senti vontade de beijar você.
— Obrigado — ele diz, sorrindo ternamente e me fazendo
derreter por dentro, um pouco mais.
Chego o meu corpo para perto dele, me aconchegando em seus
braços.
— Você é uma caixinha de surpresas, Srta. Geller. Não sei bem,
mas não me lembro de algum dia me sentir mais feliz do que agora.
Sorrio contra o seu peito. Sua declaração me ilumina e corrói ao
mesmo tempo. Até quando vou sustentar essa felicidade que,
supostamente, proporciono a ele? Quando finalmente vou dar uma
de Karen Lily Geller e estragar tudo?
Como eu gostaria de ser quem ele precisa! Como eu gostaria de
ter esperanças...
E adormeço, atormentada pelos meus pensamentos e
acalentada pelo movimento suave da respiração de Paul.

151
A janela me informa que o dia já está claro. Sinto o cheiro suave
de Paul, misturado ao odor leve de suor e sexo que paira no quarto.
Sua respiração está pesada e ritmada, sinal de que ainda está
dormindo. Que bom! Hoje eu farei o café da manhã para ele.
Tomo uma chuveirada rápida e escovo os dentes. Tudo o mais
silenciosamente possível, para não acordá-lo. Na ponta dos pés,
fecho a porta do quarto e vou até a cozinha. Depois de muito me
virar para achar as coisas, consigo preparar torradas, ovos mexidos
e salsichas. Tudo ao som de Sheryl Crow, cantando If It Makes You
Happy, música que há tempos andava esquecida no meu Ipod. Faço
também um café. Quando estou arrumando os pratos na mesa,
paro com uma colher no ar, à guisa de microfone, com os olhos
fechados e cantando o refrão:

If it makes you happy


(Se isso te faz feliz)
It can´t be that bad
(Não pode ser tão ruim)
If it makes you happy
(Se isso te faz feliz)
Then why the hell are you so sad?
(Então, por que diabos você está tão triste?)

Ao me virar, me deparo com Paul somente de bermuda, com os


olhos inchados de dormir e rindo muito da minha performance. Seu
tórax, mesmo relaxado é perfeitamente desenhado. Eu paro com a
colher na mão e uma expressão inegavelmente estarrecida,
olhando para ele, em um misto de encantamento e vergonha.
— Bom dia, linda!
— Bom dia — digo, com a voz falhando, entregando o meu
entorpecimento pela simples presença desse homem delicioso.
— Que cheiro bom! — diz, sorrindo.
Ele caminha até a mesa e me dá um beijo no rosto, mas viro a
boca para ele, passo os braços pelo seu pescoço e o puxo para mim.
Ele responde à minha investida, me abraçando e beijando com
ardor. Paro para tomar fôlego.
O que está havendo comigo?
— Nossa, Karen, você me deixa sem ar — sussurra, ainda
abraçado comigo. — Gosto muito desse novo nível de amizade que
se estabeleceu entre nós — diz, sorrindo maliciosamente e
apertando a minha bunda.
— Sente-se para comer, enquanto ainda está quente — digo, e
ele me dá um olhar faminto, rindo do duplo sentido que deve ter
colocado na minha frase. — Como você é indecente!
— Eu? — e abre o seu sorriso arrebatador.
Comemos em silêncio por alguns minutos, nos olhando e
sorrindo de vez em quando.
— Você vai passar o dia comigo? — pergunta, ansioso.
Rio da insegurança dele. É tão insuportavelmente doce!
— Posso lhe conceder esse privilégio, Sr. Newman — respondo,
com uma sobrancelha levantada.
A verdade, é que não quero ficar longe dele.
— Que bom! — diz, sorrindo e se esticando para segurar o meu
queixo. — Tenho planos para nós.
Estremeço.
Nós...
Por que isso soa tão certo aos meus ouvidos? E me dou conta de
que estamos agindo como um casal. Talvez não... Quem sabe,
apenas como amigos muito íntimos. Se bem que, nem com Andrew
eu tinha tanta intimidade. Definitivamente, agimos como um casal.
Isso me assusta. Tenho muito medo, mas por enquanto, terei de
parar de pensar demais. Não vou estragar o nosso domingo. Não
vou estragar o dia de Paul.
— Quais são os seus planos? — pergunto, desejando que seja
passar o dia na cama. Ou no sofá, no chuveiro, na cozinha...
— Vou te levar para conhecer uma pessoa muito importante para
mim.
Ah, não! Conhecer alguém importante? Será o pai? Não estou
preparada para isso, não sei o que vai acontecer conosco. Ainda é
muito cedo. Acabo de admitir, para mim mesma, a profundidade
dos meus sentimentos por ele.
E, realmente, prefiro passar o dia na cama.
— Paul, não sei se isso é uma boa ideia.
— Karen, não somos amigos? Não tem nada de errado. Além do
mais, você não sabe quem é. Confie em mim, vai gostar dela.
Ela? Quem é ela? A mãe? Não, ela mora em outro estado, seria
impossível. Não quero mesmo ir, mas seus olhos brilham tão lindos
e animados, que não consigo recusar.
— Tudo bem.
— Só iremos à tarde. Tem alguma ideia do que podemos fazer
para passar o tempo até lá? — pergunta, com um tom irônico na
voz.
Olho para ele e ergo uma sobrancelha.

153
— Algumas ideias, Sr. Newman. Depende da logística — digo,
dando um meio sorriso.

Seguimos no carro, ao som de Can’t Stop e By The Way, de Red


Hot Chilli Peppers. Depois da tórrida manhã de pura luxúria que
passamos juntos, nenhum dos dois tem muita força para falar.
— Cansada? — pergunta, com um sorriso malicioso.
Olho para ele, abaixando os óculos escuros.
— Você sabe levar uma mulher à exaustão, Sr. Newman.
Ele dá uma deliciosa gargalhada.
Sinto os meus lábios inchados dos beijos lascivos e repetidos de
Paul. Ele está claramente recuperando o tempo perdido. Descanso
a cabeça no encosto do banco e fecho os olhos, adormecendo, feliz
por estar ao lado dele.
— Karen, meu bem, chegamos — e sinto um toque suave em
meu ombro.
Abro os olhos, e estamos de frente para uma linda casinha. É
pequena, mas arborizada e com um terreno impressionante. Saio
do carro, e Paul me oferece a mão, que aceito imediatamente.
Quando passamos pelo pequenino portão que dá acesso ao
jardim, uma senhora pequena, morena, de vestido simples e lenço
nos cabelos grisalhos sai do meio das plantas, com um gigantesco
sorriso de dentes muito brancos. Ela grita, estendendo os braços:
— Paul Polvo!
Ele sorri de volta, caminhando até ela, com os braços também
abertos:
— Nana Banana!
Paul a abraça e a levanta, fazendo-a gritar e dar tapinhas em
seu braço.
— Me coloca no chão, menino levado!
Ele obedece e beija suas mãos, com carinho. Acho que só agora
se lembra de que estou por perto.
— Karen, venha cá.
Me aproximo, meio sem jeito.
— Nana, essa é Karen, uma amiga minha. Karen, essa é Nana,
a mulher que me criou.
— Sou a babá. Muito prazer! — ela diz, me puxando para um
abraço, que retribuo timidamente.
— O prazer é todo meu.
— Venham para dentro, vou fazer um café.
A casa de Nana é limpa e muito arrumada. Sento em um sofá
vermelho, ao lado de Paul. Ele, radiante por estar aqui, pega a
minha mão e fala:
— Essa mulher me criou, me acompanhando até eu ir para a
faculdade. Quando saí de casa, chorou mais do que os meus pais.
Desde então, se aposentou e eu venho visitá-la sempre. Ela é como
uma mãe para mim.
— Babá aos dezessete anos? — debocho.
Ele dá de ombros e diz:
— Ela cuidava de mim. E parecia muito feliz com isso. Eu gostava
de ter alguém que se preocupasse comigo.
Uma pontada de tristeza perpassa por seus olhos, e eu aperto a
sua mão.
— Seus pais não se preocupavam?
— Papai tinha os negócios, e mamãe precisava lidar com ele.
Nana era a minha companhia — e sorri, com carinho.
— Olha o cafezinho!
Ela aparece, trazendo uma grande bandeja de madeira, com três
xícaras, um bule e um prato cheio de pequenos quadrados de bolo.
Paul levanta-se para ajudá-la.
— Meu bolo de milho! — ele exclama, com os olhos brilhando, e
eu não consigo conter uma risadinha.
— Adivinhei que você vinha — ela diz, dando uma piscadela para
mim.
Suspeito de que faça o bolo repetidamente, esperando pelo dia
em que ele vá aparecer.
Nana senta em uma poltrona à nossa frente e serve as xícaras,
que aceitamos prontamente. Paul já está abocanhando um pedaço
de bolo.
— E a nariz-de-cheira-peido, não veio com você?
Ele dá uma gargalhada.
— Nós terminamos, para o seu deleite, Nana.
— Aaah, até que enfim! Essa aí é bem mais bonita e combina
mais com você — diz, apontando para mim, e acho que fico da cor
do sofá. — E não fale de boca cheia — ela repreende Paul.
— Ah, nisso nós concordamos — ele diz, dando um sorriso para
mim. — Mas somos só amigos.
— Que nada! Meu filho, no auge dos meus setenta anos, já vi
coisa suficiente para saber dizer quando um homem e uma mulher
estão apaixonados. E vocês dois aí ó — e aponta o indicador em
riste para nós —, estão morrendo de amor um pelo outro.

155
Arregalo os olhos e engasgo com o café. Paul pega a xícara da
minha mão e a coloca na mesa, me oferecendo um guardanapo.
— A senhora pode me dizer onde fica o banheiro? — pergunto,
ainda tossindo.
— É aquela portinha no final do corredor — ela aponta.
— Com licença — e corro para lá, trancando a porta.
Que situação constrangedora! Sinto-me envergonhada e quase
sufocada pelo pavor. Será que está tão escancarado assim? Olho
no pequenino espelho do armário de remédios e vejo o meu rosto
pegando fogo. Abro a torneira da pia, molhando as bochechas e o
pescoço. Não quero levar em consideração o que Nana está
dizendo, mas e se Paul levar? E se ele descobrir? Não posso dar
bandeira, preciso me controlar. Vou voltar lá e manter tudo sob
controle. É, eu posso fazer isso. Sei que posso.
— Melhor, querida? — Nana pergunta, quando volto para a sala
e me sento de novo ao lado de Paul, tomando o cuidado de manter
uma distância um pouco maior.
— Sim, obrigada — respondo, retomando a minha xícara de café.
— Na verdade, Paul é meu cliente e se mudou para o meu bairro.
Acabamos nos esbarrando algumas vezes e nos tornamos amigos
— digo, no tom mais frio e displicente que consigo.
— Sim, ele acabou de me dizer isso. Desculpe, querida, sou uma
velha boba — ela diz, sorrindo para mim.
E eles começam a conversar, animadamente. A filha caçula de
Nana está grávida pela terceira vez, e ela está radiante pela
chegada do próximo netinho. Sua neta mais velha virá passar as
próximas férias na casa da avó. O marido de Nana morreu há quatro
anos, vítima de um câncer de esôfago e, desde então, ela tem
vivido sozinha, com a sua criação de galinhas.
— Eu te chamei para morar comigo, Nana, mas você é muito
teimosa — Paul ralha com ela.
— Não, meu filho, você já é homem feito. Além do mais, gosto
da casa que você construiu para mim. Só saio daqui depois de
morta — diz, com um sorriso afetuoso.
Arregalo os olhos, encantada. Então, Paul construiu essa casa!
Ou melhor, creio que mandou construir, mas com certeza o
planejamento foi dele. Por isso achei o lugar tão aconchegante.
Enfim, dou-me conta de que é esse o tipo de residência que ele
quer em seu projeto. Isso é muito esclarecedor! É como se tudo por
aqui nos envolvesse em um abraço carinhoso. E, finalmente,
compreendo que o objetivo não é construir casas. Paul Newman
quer criar lares!
assamos uma tarde muito agradável com Nana. O
constrangimento inicial se dissipou, e conversamos
animadamente. Ela contou várias histórias de Paul quando
criança, e me diverti ao conhecer o seu lado levado.
Já no carro, acenamos para ela e pegamos o caminho de volta.
— Adorei! Obrigada por me apresentar a Nana.
— Ela é fantástica! É a minha segunda mãe. E ela também gostou
de você.
— Ah, isso me lembra... Por que ela chamou a sua namorada de
nariz-de-cheira-peido?
Paul dá uma gargalhada.
— Jennifer era um tanto ostensiva. Nana dizia que ela vivia com
o nariz em pé, e que sempre tinha cara de quem estava sentindo
um cheiro ruim.
— E isso é verdade?
Ele pensa um pouco para responder.
— É... De certa forma, é sim.
— Como se apaixonou por alguém tão diferente de você?
— Ah... Quando a gente se apaixona fica meio cego, não é?
— Verdade. Você pode achar a pessoa bonita até do avesso —
digo, segurando o riso.
— Ah, mas com você não corro o risco de estar cego pela paixão.
— Por que não?
— Porque não.
— Sério, por que não?
— Já disse, porque não.
— Não vai falar?
— Não!

157
— Por favor... — imploro, juntando as mãos.
— Já disse que não.
Cruzo os braços, emburrada, e olho pela janela. Ele finge não
notar e continua dirigindo, apesar de que o percebo me olhando de
rabo de olho, contendo um sorriso.
— Então, para a minha casa ou para a sua? — Paul pergunta.
— Eu para a minha e você para a sua — respondo, rispidamente.
— Pensei em assistirmos a um dos seus DVD’s — diz, parecendo
surpreso com a minha reação.
— Não quero — digo, com os braços ainda cruzados, e a cara
fechada.
— Só por que eu não quis te responder?
— Não, porque estamos juntos desde sexta à noite!
— E daí?
— E daí que quero fazer as minhas coisas. Amanhã eu trabalho,
tenho que descansar. E quero ficar um pouco sozinha.
— Mas eu não quero.
— Isso é problema seu.
Paul suspira fundo. Parece reunir forças para não perder a
paciência. Sei que estou agindo como uma criança mimada e
birrenta, mas não consigo evitar.
— Se eu te contar, você me deixa ir para casa com você? —
pergunta, e uma faísca estranha passa por seus olhos.
— Deixo! — respondo prontamente, denunciando a minha
curiosidade.
— Srta. Geller, aí está um lado seu que eu não conhecia! Não
sabia que era tão curiosa! — ele parece se divertir. — Tudo bem,
mas vou te contar mais tarde, quando já estivermos lá.
— Ah, por quê?
— Porque tenho a impressão de que a sua reação não será das
melhores. E não falo mais nada. Ou é assim, ou deixo você na sua
casa e vou para a minha.
Não adianta, sei que não vou arrancar nada dele agora e terei
de esperar. Por que estou tão curiosa, afinal? Reflito por quase todo
o caminho de volta e percebo que, no fundo, sei o motivo. Ele disse
que não corre o risco de estar cego de paixão. Deve ser porque
descobriu que não está, de fato, apaixonado, e que tudo se tratou
de um engano.
Tão óbvio...
Esse pensamento é perturbador. Não era isso que eu queria?
Quando aceitei me aproximar, esperava que Paul percebesse que
eu não valia à pena e se desencantasse de mim. Enfim, o meu plano
deu certo. O que eu não contava, é que iria me apaixonar por ele,
e que iríamos nos grudar dessa maneira, a ponto de eu não querer
mais ficar longe. Como saber que eu iria encontrar, em Paul, o meu
lugar seguro no mundo?
De qualquer forma, já havia decidido que não falaria sobre os
meus sentimentos, para não destruir a sua vida. Então, com certeza
as coisas estão tomando o rumo certo. Paul não está apaixonado,
e podemos continuar a ser amigos que trepam de vez em quando,
até que ele se apaixone por outra pessoa, e a gente se afaste. Será
natural e indolor. Para ele, pelo menos. Eu só vou precisar
encontrar um lugar escondido, para guardar o sentimento que
tenho por Paul. Vai ficar tudo bem. Até que foi bem simples.
Quando menos espero, ele está parando o carro na frente do
meu prédio.
— Então? O que vai ser? — pergunta, me despertando dos meus
pensamentos sombrios.
— Eu escolho o filme! — digo, com um tom bravo, saindo do
carro e batendo a porta, não sem antes perceber um sorriso em
seu rosto.
Entramos no apartamento. Paul está calado, talvez intimidado
por me ver tão nervosa. Coloco a minha bolsa em cima do balcão
da cozinha e busco um cigarro. Vou até o sofá, me sento e dou uma
boa tragada.
— Vai ficar parado aí? — pergunto a Paul, que permanece de pé,
perto da porta.
— Não, é que... Bem, — ele respira fundo. — talvez não tenha
sido uma boa ideia.
— O quê? Vir pra cá?
Ele assente com a cabeça.
— O pior que pode acontecer, é eu te dar umas porradas — digo,
tentando conter uma risada. — Se estiver com medo, pode ir.
Paul me olha, a princípio assustado, mas em seguida respira
fundo, demonstrando alívio. Ele vem até o sofá, sentando-se ao
meu lado.
— Você é uma mulher muito, muito confusa, Karen.
Ergo as sobrancelhas e digo:
— Eu nunca escondi isso.
— É verdade — ele diz, e em seguida balança a cabeça, na
tentativa de retornar à razão. — Qual filme você quer assistir?
— Não vai me dizer o que está escondendo?
— Vou, mas não agora. Eu prometi que vou falar, será hoje, mas
vai ser no momento certo.

159
— Ai, quanta bobagem! — digo, tirando os tênis e as meias.
— Você está fazendo pouco caso de mim e eu não gosto disso —
diz, me encarando com um semblante muito sério.
De repente, me sinto envergonhada. Paul foi um amor comigo
hoje, me levando para conhecer uma das pessoas que ele mantém
na mais alta consideração. E ainda quer passar mais tempo comigo.
Aliás, ele tem sido um doce, desde que o conheci. Por que, então,
estou com raiva? Ah, sim, porque estou frustrada. Ele não está
apaixonado por mim e, apesar de ser o melhor que poderia
acontecer, em algum lugar dentro do meu coração isso dói. Como
me sinto estúpida!
Preciso ficar feliz por ele, preciso ficar bem!
Vou ficar. Vamos seguir com o plano.
— Me desculpe. Fiquei irritada à toa. Não quis fazer pouco caso
de você — digo, da forma mais terna que consigo.
Paul abre o seu sorriso arrebatador e responde:
— Tudo bem, gosto de você me pedir desculpas! Está
desculpada! Quer escolher o filme?
— Escolhe você.
Paul fica entretido um bom tempo na gaveta de DVD’s, parando
de vez em quando para exclamar, quando vê algum título que lhe
agrada. Por fim, escolhe O Poderoso Chefão, coloca no DVD Player
e se senta ao meu lado.
— Mas O Poderoso Chefão é uma trilogia!
— Eu sei — e seu sorriso é malicioso. — Só arrumei mais duas
boas desculpas para voltar aqui.
Me pego corando. Que droga! Por que Paul fica enviando esses
sinais? Está óbvio que não está mais apaixonado! Deve estar agindo
apenas como amigo, e eu aqui, me corroendo por dentro,
imaginando um monte de coisas.
O filme começa e ficamos em silêncio. Quando acaba, Paul
desliga a TV e me olha, com uma expressão indecifrável. De
repente, me pega com força pelos punhos e diz:
— Se lembra da sensação, quando fiz isso?
Lembro bem. Na praça, quando brincávamos, ele segurou os
meus punhos e um desejo gritante se instalou entre nós, igual ao
que está nascendo agora. Engulo em seco. Nossos olhos estão
vidrados, e meu corpo arde. Jogo-me em cima de Paul, sentando
em seu colo, de frente para ele. Ele pega as minhas coxas e diz:
— Você realmente fica linda de vestido, mas quero muito tirá-lo.
O meu corpo inteiro se acende, só pelo som da sua voz. Ele puxa
o meu vestido com delicadeza e emite um gemido, que vem do
fundo da garganta, quase em adoração.
— Sem sutiã e sem calcinha? — sussurra, com a voz falhando.
— Muito calor — e dou um sorriso malicioso.
— Ah, Karen!
Puxo sua camiseta e ele desabotoa a calça jeans, se liberando
de dentro da cueca. E, sem preliminares, me encaixo nele. Nós dois
gememos em uníssono, profundamente, quando nos moldamos um
ao outro. Começo a me movimentar, para cima e para baixo, em
um ritmo lento e constante.
Depois de me explorar com as mãos, do pescoço até o início da
barriga, Paul me puxa pela nuca, procurando a minha boca. Sei que
ainda quer testar se pode me beijar. E eu o beijo forte, sem cessar
o movimento de vai e vem em cima dele, que me aperta com força
contra si mesmo.
— Eu nunca tenho o suficiente de você, minha menina. Parece
que tudo só está no lugar certo quando estou assim, dentro de
você.
Paul agarra a minha cintura com força e levanta o quadril de uma
vez, estocando fundo dentro de mim, e me arrancando um grito de
prazer. Ele ri, maliciosamente, e começa a me dar repetidas
estocadas. Fecho os olhos e jogo a cabeça para trás, sentindo uma
nuvem se formar ao meu redor, me tirando de órbita, me deixando
tonta e flutuante. Acho que vejo estrelas estourando. Sinto o meu
corpo tremer e grito o nome de Paul, quando sinto a minha
liberação jorrando, desenfreada. Ele abaixa uma das mãos entre
nós, encontra o meu clitóris e o belisca, prolongando o orgasmo e
me enviando novos espasmos pelo corpo.
Paul se levanta, me erguendo, e enrolo as pernas em torno da
sua cintura. Ele me leva para o quarto, sem desgrudar os nossos
corpos, me inclina para a cama e me deita de costas, ainda dentro
de mim. Passa a mão pelo meu rosto e traça uma trilha de beijos
suaves pelo meu queixo e pescoço. Ele beija a minha boca
carinhosamente, com as nossas línguas se movendo lentamente,
sem nenhuma pressa. Uma onda de desejo retorna ao meu corpo,
me acendendo inteira, mais uma vez. O que sinto por esse homem
é incontrolável e entorpecedor, como se fosse um vício. Sinto-o
pulsante em mim, e ele começa a me massagear por dentro, mais
uma vez. Antes de nos entregarmos novamente, Paul interrompe
os seus movimentos e ergue a cabeça, para que seus olhos se

161
liguem aos meus. Seu rosto parece refletir um sentimento intenso
e sublime.
— Karen, quando eu disse que a paixão me deixou cego com
Jennifer e que eu não corria o mesmo risco com você, teve uma
razão de ser — diz, acariciando o meu rosto com o indicador e
voltando a estabelecer o seu ritmo dentro de mim.
Meu Deus! Ele escolhe logo agora para falar? É sério isso? Meu
coração se contorce de desespero.
— Eu sei o motivo — respondo, ofegando e dando a chance de
ele não precisar me dar explicações.
— Ah é? E por que, então? — pergunta, intrigado e tão ofegante
quanto eu.
— Porque você finalmente percebeu que não está apaixonado
por mim — respondo, tentando não transparecer tristeza nos olhos,
ao passo que sinto o estômago revirando.
— É isso. Você acertou em cheio.
Então eu estava certa! A indesejável Karen Lily Geller deu as
caras, com todas as suas nuances, e Paul percebeu que não era
alguém por quem valia à pena se apaixonar. E sou uma idiota, por
sentir tanta tristeza.
Era isso que eu queria, era isso que eu queria, era isso que eu
queria... — repito para mim mesma, como um mantra. Ao mesmo
tempo, uma onda de novos arrepios percorre o meu corpo, com
Paul me acariciando por dentro, em um movimento suave e
constante.
Ele me olha profundamente, franzindo as sobrancelhas. Sinto-
me incapaz de dizer qualquer coisa. Então, ele respira fundo,
dizendo:
— Realmente, eu estava enganado. Não estou apaixonado por
você. O que sinto é... Eu te amo, Karen Geller.
rregalo os olhos, e sei que a minha boca está
entreaberta. Não acredito no que acabei de ouvir!
Pisco repetidas vezes, como que para despertar de um
estado de entorpecimento.
Paul disse que me ama? Eu ouvi bem?
A gente se conhece há poucos dias! Não, isso não pode ser amor!
Paixão, carinho, desejo, mas não amor! O amor machuca, é a
estrada mais perigosa que existe. Só deixa rastros de dor, perda,
melancolia e solidão. Ele não pode me amar! Isso é inconcebível,
impossível!
Meu Deus, como deixei a situação fugir do controle dessa
maneira?
— Ei, está aqui comigo, ainda? — ele pergunta, puxando o meu
queixo e me encarando, ainda se movimentando dentro de mim.
O olhar é temeroso, mas, ao mesmo tempo, posso ver com
clareza o seu sentimento por mim. Só vi algo do tipo uma vez.
Lembro-me de Marcus e da forma abrupta pela qual foi tirado de
mim, como fomos arrancados do nosso: “felizes para sempre”.
Relembro toda a dor que senti, quando fui privada de viver esse
amor.
Agora estou aqui, com este homem lindo, cheio de vida,
carinhoso, que me faz sentir segura e protegida, e inebriado de
amor por mim. Eu gosto dele, gosto mesmo, mas amor é uma
palavra muito forte. Não sei se, algum dia, chegarei a esse ponto.
Nem se posso lidar com isso, se quero lidar com isso. Tenho o poder
de machucá-lo de forma irremediável, e isso me apavora. Quanto
mais eu alimentar esse sentimento, maiores serão as cicatrizes da

163
dor que, um dia, irei lhe causar. Talvez eu deva terminar tudo
agora, e dar a ele a chance de escapar.
— Paul, isso está errado, muito errado. Você não pode me amar.
Eu não posso retribuir a você como merece. Isso só vai nos levar a
um caminho sem volta. Ter de sair desse lugar mais uma vez, seria
doloroso demais para mim. E, certamente, para você também —
digo, ainda atordoada por sua declaração e por esse turbilhão de
pensamentos e sentimentos, que lutam dentro de mim.
— E por que teríamos que, necessariamente, sair desse
caminho? Por que não caminharmos juntos, lado a lado? — e a
esperança em sua voz me faz sofrer ainda mais.
— Paul, quando foi que um relacionamento seu deu certo?
Ele para de se movimentar dentro de mim.
— Nunca.
— E por que daria agora? O que garante isso?
— Nada. Só sei que, se não tentarmos, nunca iremos saber.
— Paul, eu só amei um homem a minha vida toda. Foi a
experiência mais maravilhosa e mais terrível da minha vida.
Ele pensa um pouco, antes de continuar.
— Você ficaria com ele novamente? Mesmo sabendo do que iria
acontecer? Faria tudo de novo?
— Faria — respondo prontamente, sem hesitar.
Ele abre o seu sorriso arrebatador, e eu me desmancho mais
uma vez.
— Então, o amor se sobrepõe à dor.
— Sim, com certeza. Mas não aguentaria passar por todo aquele
drama de novo.
— Karen, você não tem que, necessariamente, passar por isso
de novo. As histórias nunca são iguais. A vida, as pessoas, os
sentimentos e as formas de lidar são sempre diferentes.
É muita coisa para pensar. Estou tão atordoada...
— Nada é garantido nessa vida, mas o que eu sei hoje, é que eu
amo você. Amo o seu jeito taciturno de encarar a vida, amo o seu
sorriso, amo quando fica brava, amo quando está envergonhada,
amo a sua fragilidade e a sua força, que se debatem o tempo todo,
amo te ver brincar... Você me conquistou sem fazer o mínimo
esforço, apenas por ser exatamente como é: a pessoa mais
verdadeira, encantadora e real que eu conheço. Sinto-me livre para
ser eu mesmo, ao seu lado. E gostaria muito de viver esse
sentimento e aproveitá-lo com você — diz, com a voz embargada
de emoção, retomando o movimento de se enfiar e se retirar de
dentro de mim.
— Mas Paul, tem o Andrew e eu prometi... Ah! — digo, quase
sufocando de agonia e prazer.
— Não, Karen — ele faz sinal com a cabeça, para que eu pare de
falar. —, essa promessa é descabida. Eu sei, a irmã dele sabe, e eu
tenho certeza de que você também já se deu conta disso.
Fico calada. Eu sei que é errado e que faria Andrew
extremamente infeliz, mesmo me sentindo em dívida com ele. O
que eu quero, afinal? Ficar com Paul? Ter uma relação com ele? Eu
o beijei enquanto transávamos e sei que, em se tratando de mim,
isso realmente quer dizer muita coisa. Mas uma sombra paira em
cima de nós. Uma sombra de um passado infeliz, que permeia,
permanentemente, o meu presente. Eu seria capaz de amar
novamente, sem que o monstro que existe dentro de mim
assumisse as rédeas desse amor?
Solto um gemido, quando Paul estoca mais fundo em mim, para
chamar a minha atenção.
— Karen, olhe para mim — ele puxa o meu queixo, de forma que
os nossos olhos se encontrem, mais uma vez. — Eu não estou
pedindo a você que me ame de volta, nem que rotulemos isso que
estamos vivendo juntos. Não quero que se sinta esmagada pelo que
eu sinto, nem pelas suas dúvidas, apenas que me permita amar
você. Que não me afaste. Porque eu sei que esse é seu primeiro
pensamento. Quero viver com você, um dia após o outro, sem
medo, sem culpa, sem ansiedade. Viver, simplesmente. E que você
faça parte disso.
Uma emoção indescritível toma conta de mim. Se eu fosse capaz
de chorar, acho que estaria em prantos. O que ele está me
oferecendo, é muito mais do que eu sonhei e mereço. Uma vida
plena, sem medos ou amarras.
Será que sou capaz disso? Paul não me quer à exaustão, apenas
deseja a alegria, a sorte e a tranquilidade do dia a dia juntos. E eu
penso que, pode ser que eu também queira isso. Passo a mão em
seu rosto, seus olhos lindos continuam me encarando, e o
movimento de vai e vem é suave e delicioso. Ele beija a palma da
minha mão, um beijo profundo, que toca a minha alma.
Eu não aguento mais fugir. Não consigo. Não quero.
— Tudo bem — digo, com a voz falhada, talvez pelas lágrimas
não derramadas e pelo prazer que ele me proporciona.
— Tudo bem o quê? — pergunta, franzindo os olhos.
— Vamos viver isso — eu respondo, dando um pequeno sorriso.
— Devagar, eu preciso de tempo.

165
Ele arregala olhos. De repente, começa a me encher de beijos
na testa, rosto, nariz, boca, queixo, bochechas.
— Ah, eu amo você, Karen, amo você! Obrigado por isso. Vai
funcionar, eu sei que vai — e ele desaba o corpo em cima de mim,
me abraçando apertado.
Paul começa a cheirar o meu pescoço e a mordiscar a minha
orelha. Eu passo as unhas pelas suas costas, e ele aumenta a
intensidade dos movimentos, me tomando com força e paixão.
Solto um grito de desejo e satisfação.
— Estamos comemorando, Karen! Quero comemorar a noite
toda! — ele diz, alto e ofegante.
De repente, Paul sai de dentro de mim, me vira de bruços e
suspende a minha bunda, me penetrando de uma vez, estocando
forte e urrando o meu nome, enquanto eu gemo e grito o seu,
repetidamente.
E estou vendo estrelas, mais uma vez.

Perdi a conta de quantas vezes nos fizemos gozar essa noite.


Apenas sei que estamos na cama, em uma imensa satisfação pós-
foda. Eu de bruços, e ele ao meu lado, apoiado em um dos
cotovelos. Paul me fita com um olhar amoroso, de adoração,
enquanto acaricia a lateral do meu corpo, na altura das costelas.
Sinto uma cosquinha leve e gostosa.
— Posso fazer uma pergunta? — indago.
— Todas — ele responde, sorrindo.
— Porque você, tão bem sucedido e podendo morar nesses
lugares luxuosos, em que tudo está à distância de um estalar de
dedos, escolheu morar aqui?
Paul franze a testa, demonstrando não ter entendido bem a
pergunta.
— Não me entenda mal, não que você tenha que morar em
algum lugar luxuoso, mas é que o bairro é simples, nada a ver com
magnatas e mega empresários.
— A resposta é simples. Como você mesma disse, não tenho que
morar em um bairro luxuoso.
— Não, mas poderia, se quisesse.
— Sim, poderia, mas não tenho interesse. Eu morei em lugares
assim, bairros luxuosos e condomínios fechados. Até em hotéis,
onde cinco estrelas não seriam suficientes para classificá-los. E o
que eu via enquanto caminhava por esses locais, eram figuras sem
rosto, andando umas entre as outras, ou trancafiadas em suas
muralhas de aço. Eu gosto de gente, Karen. Gosto de rostos
expressivos, de ver a emoção nas pessoas, de imaginar o que estão
sentindo. Adoro sentar em uma praça e alimentar os pássaros, sem
ninguém me olhando torto, como se meu comportamento fosse
inadequado — Paul pensa um pouco, antes de continuar. — Eu
gosto da vida, dos sentimentos, sou um apaixonado incorrigível,
Srta. Geller.
— Então, quando você se mudou para cá, não sabia que eu
morava aqui? — pergunto de supetão, deixando escapar a minha
real suspeita.
Ele levanta as sobrancelhas, e seu rosto se contrai em uma
expressão raivosa, que eu ainda não conhecia.
— É aí que você quer chegar? Acha que eu descobri onde
morava, e me mudei para cá de propósito? Isso seria bastante
doentio, não?
Abaixo os olhos, um pouco envergonhada. Paul parece
sinceramente ofendido.
— Desculpe, mas você disse que, depois da primeira reunião, foi
no site da empresa procurar informações ao meu respeito, então
pensei que...
Paul me interrompe.
— Eu queria saber mais a seu respeito, mas jamais com o intuito
de persegui-la. — responde com um tom frio, que não combina
nada com aquele homem apaixonado, que falava comigo há dois
minutos.
— Me desculpe, eu lamento, sinceramente. Não devia ter
pensado isso. Então, nosso encontro no supermercado...
— Foi quando eu soube que você morava aqui — ele completa
minha frase.
— E aquela noite, no Snooker...
— Coincidência, pura e simples. Apesar de que, prefiro pensar
que foi o destino.
Ficamos alguns dolorosos segundos em silêncio, até que Paul
respira fundo, prende a respiração e pergunta:
— Ainda duvida de mim?
— Não — digo, com um tom claro de arrependimento.
— Ótimo — e ele solta o ar.
Paul me dá um beijo frio no topo da cabeça e se levanta de
imediato, procurando suas roupas.
"Missão Desfazer O Encanto: Karen 1 X 0 Paul”.
E dou um sorriso amargo e infeliz.

167
aul está no parapeito da janela da sala. Ele ficou realmente
magoado, mas essa reação me parece um tanto exagerada.
Não falei nada demais... Ou será que falei? Eu sou uma
pessoa sincera e, quando algo me incomoda, eu simplesmente digo.
Não sei ser diferente. Se ele não puder lidar com a minha
sinceridade, então, definitivamente não pode lidar comigo.
Andrew tem essa vantagem: ele sempre soube compreender e
até parecia admirar a minha franqueza extrema. Ou, quem sabe,
apenas estava cego de paixão e ignorando os meus rompantes? O
problema é que Paul me ama, e o amor pode ser extremamente
doloroso.
Tento desfazer o clima sombrio entre nós.
— Vamos assistir ao segundo filme?
Ele me olha, parecendo despertar de um devaneio. Seus olhos
estão frios e distantes. Longe de ser o homem caloroso que eu
conheço. Ele dá de ombros e responde:
— Você é quem sabe. Estamos na sua casa, pode escolher o que
iremos fazer.
Coço a testa, nervosamente, e digo, suspirando fundo:
— Você tem a liberdade de ir embora, se quiser.
Ele me encara por um tempo, sem responder, e imagino que
esteja considerando a hipótese, até que pergunta:
— Você quer que eu vá?
— Se você quiser ir.
Ele suspira fundo e repete a pergunta.
— Você quer que eu vá?
Nossa! O que ele quer? Que eu implore para que fique, me
desculpe, assista ao filme comigo e me foda de novo?
— Não, Paul, eu não quero que você vá! — grito, lutando contra
todo o desejo de mandá-lo ir embora.
Se for para ficar assim, então que vá logo, porra!
— Então, não irei — responde, voltando a olhar para a rua.
Ergo os braços e os deixo cair, em um gesto de desistência dessa
conversa insana. Quando me viro para voltar para o quarto, meu
celular toca sobre o balcão da cozinha. É Linda. O meu coração
dispara.
— Linda, oi!
— Oi, Cake! Desculpe ligar agora, mas preciso muito de um
favor.
— Claro, diga lá.
— Você poderia passar essa noite no hospital? Papai conseguiu
levar a mamãe para jantar. Eles não saem há tanto tempo, e é
aniversário de casamento dos dois. Só que me ligaram da empresa,
e parece que tem um incêndio acontecendo que só o extintor aqui
pode apagar.
— Claro, Linda, chego em quinze minutos.
— Sério, Cake? Não estou te atrapalhando?
— Claro que não! Eu disse que você pode ligar sempre que
precisar. Até já.
— Você é demais. Até, Cake!
Desligo e os olhos de Paul estão sobre mim, atentos. Vou para o
quarto me trocar, já que estou de roupão, e digo:
— Mudança de planos. Estou indo para o hospital.
Paul aparece na porta do quarto, e o seu olhar parece mais
suave.
— Aconteceu alguma coisa? — um brilho de compaixão aparece,
por baixo das nuvens que ainda vejo em seus olhos.
— Não vai ter ninguém para ficar lá com Andrew — digo,
enfiando a minha calça jeans.
Paul respira fundo e vai à caça de seus tênis, para calçá-los.
— Sinto muito, mas tenho mesmo que ir — digo, sem olhar para
ele, procurando um sutiã no armário. — Se quiser ficar e se ajeitar
antes de ir, não tem problema. Deixo as chaves com você e busco
de manhã, na sua casa.
Ele me olha e, mais uma vez, parece ofendido.
— O que a faz pensar que não irei com você? Só preciso passar
em casa e vestir algo mais quente. Parece que está esfriando um
pouco.
Pergunto-me se realmente está esfriando lá fora, ou entre nós.
— Paul, realmente não precisa.

169
— Eu sei, mas quero ir.
Sento na cama. Como fazê-lo entender que quero aproveitar
essa oportunidade para me afastar um pouco disso tudo? Que
preciso enxergar de fora e com clareza esse furacão amoroso, que
me tragou da noite para o dia, e com o qual me sinto incapaz de
lidar como deveria?
— Paul, olhe para mim — digo, com a voz suave. — Eu realmente
prefiro ir sozinha. Gostaria de ter um tempo para pensar em tudo
o que aconteceu e no que você me disse. Tudo isso é muito rápido,
estou confusa e, francamente, assustada.
— Assustada com o quê?
— Com o fato de você me amar, com a profundidade do que eu
sinto por você, por ter te beijado quando fizemos a... — e me
interrompo, esperando consertar a tempo. — sexo, por não nos
desgrudarmos mais... É tudo demais, forte demais, intenso demais,
e eu estou atordoada — digo, com a voz tremendo.
— Mas você concordou em tentar! Não temos que pensar muito
nisso, temos que viver! — e a sua voz suplicante e triste faz o meu
coração doer.
Pego a mão de Paul e coloco sobre o meu colo.
— Isso não mudou. Eu só preciso analisar, explorar os meus
limites, saber até onde sou capaz de ir. Pensar é um dos meus
predicados, Newman, acostume-se com isso — e dou um sorriso
terno, que não recebo de volta. — Tem mais uma coisa, eu
realmente quero passar um tempo com Andrew. Ele é meu amigo,
sinto muita falta dele. Gostaria de ter um momento com ele, mesmo
que não saiba que estou lá.
— Isso é impossível. Não sentir a sua presença é, humanamente,
impossível — diz, chegando perto de mim e abraçando a minha
cintura.
Encosto a cabeça em seu ombro, e ele recosta a dele na minha.
— Você não está tentando me afastar, está? — pergunta, com
uma voz sussurrante, falando contra o meu cabelo.
Abraço Paul com força. Não quero afastá-lo, não mais. A única
certeza que tenho, é a de que o quero por perto.
— Não! Não quero que se afaste, nem vou me afastar de você.
Por favor, confie em mim.
Não consigo evitar pensar que, no fim, quando vir o quão
frustrante e indesejável eu sou, é ele quem vai tomar a iniciativa
de fugir. E eu serei eternamente infeliz. Mais uma vez.
— Ei — ele me puxa pelo queixo, me plantando um beijo suave
na boca. —, vai lá ficar com o seu amigo. Vou te levar, não quero
que dirija com essa mão — ele aponta a minha mão machucada.
— Já está bem melhor, quase não sinto mais. Você fez um ótimo
trabalho — digo, sorrindo e mostrando o curativo. — Mas vou
adorar que me leve, na condição de que, pela manhã, eu volte de
taxi.
— De acordo. Mas será que posso ficar por aqui? Gostaria de
fazer o seu café da manhã, quando voltar estará cansada e faminta
— pergunta, com um olhar receoso, mas doce.
Meu estômago se contorce. O que sinto por ele realmente me
assusta. Quero afagar o seu rosto e abraçá-lo, dizendo que tudo vai
ficar bem. Me seguro para não fazer isso. Não posso fazer
promessas que não sei se conseguirei cumprir.
— Claro, vou gostar de encontrá-lo aqui, quando eu voltar.
Paul sorri, aliviado. Uma ideia me ocorre, talvez uma tentativa
de deixá-lo feliz, de compensá-lo pela mágoa que lhe causei hoje.
— Paul, você tem que trabalhar amanhã?
— Tenho que dar um pulo no escritório de manhã para assinar
uma papelada, mas poderia tirar o restante do dia de folga. Por
quê?
Aperto as mãos, envergonhada. Nunca tomei iniciativa de nada,
com Paul. Na verdade, acho que com homem nenhum. Exceto
iniciativas sexuais, é claro.
— Eu tenho algumas folgas para tirar no trabalho, a meu
contento. Pensei em usar uma delas amanhã, para passarmos o dia
juntos, e compensá-lo pela merda de domingo que você teve por
minha causa.
Os olhos de Paul faíscam. Ele pega o meu queixo e fala, contra
a minha boca, com nossas respirações unidas:
— Querida, o meu dia foi ótimo. Adorei tudo o que fizemos.
Aquela discussão me deixou um pouco chateado, mas por motivos
particulares e que não têm a ver com você. Não quero aborrecê-la
com isso. Desculpe-me se exagerei. Mas eu gostaria muito de
passar o dia de amanhã ao seu lado. Essa proposta me deixa
absolutamente encantado! — e me dá um beijo intenso, onde as
nossas línguas se encontram, se desejando e pedindo perdão uma
à outra por ficarem por tanto tempo longe. Dou um gemido, mas
ele interrompe o beijo e diz, com o nariz colado ao meu:
— Se não pararmos agora, a sua amiga vai ficar te esperando
por um bom tempo. E eu sei que você se sentiria culpada. Na volta,

171
vou te receber muito bem, pode ter certeza. Não vou me permitir
esquecer o que estou sentindo agora.
O cheiro delicioso do seu hálito inunda as minhas narinas. Como
eu quero esse homem!
Paul se levanta e me puxa pela mão até a cozinha. Pego a minha
bolsa, conferindo se tenho tudo de que preciso, e coloco o celular
lá dentro.
— Pegue um casaco, lembre-se do frio que faz lá, e eu não
poderei esquentá-la dessa vez. Não vai sentir fome?
— Vou usar o casaco que está no sofá — digo, dando a volta no
balcão da cozinha e pegando também um pacote de biscoito
salgado. — Pronto.
— Está levando o celular?
— Estou.
— Qualquer coisa, me ligue, mande mensagem de texto ou um
WhatsApp, e eu vou imediatamente até você.
Reviro os olhos e sorrio. Quando vejo que ele abaixa o rosto,
envergonhado, me aproximo e passo os braços ao redor do seu
pescoço.
— Paul, eu só vou cuidar de um amigo que está precisando de
mim. Fique tranquilo. Eu volto pela manhã. E me perdoe mais uma
vez pela tolice de hoje, nunca quis chateá-lo. Eu não duvido de
você, não te considero um perseguidor.
Paul treme ao ouvir essa palavra. Ele disse que tem motivos
particulares para ter se chateado tanto. Quais serão esses motivos?
Quando tivermos oportunidade, com certeza, vou querer saber.
— Não me considera mesmo?
— Não, não mesmo. Eu confio em você.
Ele encosta a testa na minha e suspira. Sinto sua respiração
quente.
— É só que... Eu te amo — diz, me dando um beijo suave.
Paul parece não ter dito tudo o que queria dizer, mas agora não
tenho tempo de extrair mais informações.
— Eu sei — respondo, envolvendo-o em um forte abraço, com
uma dor lancinante no peito por não conseguir dizer o mesmo para
ele.
ake, que bom que chegou! — Linda me recebe com um
abraço apertado.
— Desculpe, demorei mais do que esperava —
respondo, corando.
— Espero mesmo que não esteja atrapalhando a sua noite.
— Não está, Linda, eu estava indo me deitar.
O que não deixa de ser verdade. Ia me enfiar na cama,
esperando que a frieza de Paul fosse embora. Essa parte Linda não
precisa saber.
— Olha, devo terminar rápido por lá. Apesar de que, trabalhar
com TI é imprevisível. Mas assim que terminar, eu volto para você
ir descansar.
Quando falei para Paul que precisava de um tempo, eu estava
falando a verdade. Já sinto falta dele, admito, mas preciso mesmo
pensar e organizar as minhas ideias. Também fui sincera ao dizer
que quero ficar um pouco com Andrew. Parece que tem uma
eternidade que não o vejo!
— Eu já estou aqui. Amanhã tirarei uma folga e poderei
descansar bastante. Se você terminar cedo o que tem a fazer, vá
para casa e descanse. Eu quero ficar. Gosto de poder fazer alguma
coisa por Andy, por vocês. Por favor!
Linda parece considerar.
— Olha, Karen, não vou dizer que um descanso não cairia bem...
— Então, vá tranquila. Eu vim para ficar.
Ela me puxa para um abraço, dizendo:
— Ai, Cake, então eu vou. Muito obrigada mesmo. Amanhã
mamãe vem cedo. Eu só volto à noite, então, não verei você, pois
te proíbo de vir aqui amanhã! Quero que descanse. Promete?

173
Reviro os olhos.
— Prometo.
Ela sorri, me dá um beijo na bochecha e segue pelo corredor.
Então se vira, falando baixo e eu entendo, mais pelo gesto que faz
com as mãos do que por suas palavras:
— Qualquer coisa, me ligue.
Faço um sinal de positivo com o polegar e me sento em uma das
poltronas da sala de espera.
Abro a bolsa e pego o meu celular para checar a hora. Na pressa,
me esqueci de colocar o relógio de pulso. São 23h01min. Vejo que
tenho uma mensagem de WhatsApp, recebida às 22h55min. É de
Paul, me dando apenas um tímido “Oi”. Sorrio. É a primeira vez que
nos falaremos pelo aplicativo. Digito, freneticamente. Tomara que
ele ainda não tenha dormido.
“Oi, vi a sua mensagem agora.”
A resposta é instantânea.
“Chegou bem?”
“Sim, já tô na sala d espera.”
“Está mto frio aí?”
Sorrio. Ele não deixa de se preocupar. Eu sempre senti muito
frio, mas perto de Paul me sinto aquecida. Até por mensagem de
texto ele me aquece.
“Eu tô bem, Paul, é sério.”
Parece que consigo ouvir seu longo e profundo suspiro.
“Vou acreditar em vc.”
“Pq n tenta dormir um pouco?”
“Vou tomar um banho antes. Tô na sua cama, sentindo o seu
cheiro incrível por toda parte.”
Ele não pode me ver, mas as minhas bochechas pegam fogo.
“Seu cheiro tb é incrível. Têm toalhas limpas no armário do
banheiro.”
“Ok.”
“Paul...”
“Oi.”
“Gosto d saber q vc está aí.”
Ele fica um tempo interminável digitando, até que a mensagem
chega. É muito pequena, considerando todo o tempo que esperei.
“Gostei mto d ter me deixado ficar.”
“N molhe o banheiro todo c esse seu pezão d pato.”
“KKKKKKKKKKKKKKK, pé de pato???”
“É!”
“Pelo menos, eu n tenho um coice d mula!”
“Como se atreve, Newman?”
“KKKKKKKKKKKKKKKKKK”
Olho ao redor, constrangida por estar rindo alto demais para o
lugar onde eu estou. Recomponho-me e volto a digitar.
“Vá dormir.”
“Tô indo.”
“Até amanhã.”
“Tô c saudade.”
Meu coração palpita tão forte com essas últimas palavras, que
quase posso ouvi-lo.
“Tb tô.”
“Mesmo?”
“Claro, Paul, acha q n sinto a sua falta?”
“Eu n imaginava...”
“Vá dormir. Mts bjs, boa noite e sonhe c os anjos.”
“Tá, fique bem, qqer coisa me liga. Amo vc.”
Parece que ele nunca vai cansar de dizer isso. E, toda vez que
diz, o meu coração se enternece um pouco mais. Ao mesmo tempo,
me sinto culpada por não retribuí-lo. Não posso dizer nada,
enquanto não tiver certeza do que sou capaz de dar a ele. Por isso
eu precisava desse tempo. Preciso, desesperadamente, pensar em
nós.

175
noite seguiu arrastada. Os únicos momentos que
realmente passaram voando, foram os que passei com
Andrew. Quando Eva chegou, conversamos por alguns
minutos e, em seguida, mandei mensagem para Jake, avisando que
precisaria tirar uma das dezenas de folgas que tenho no banco de
horas. Expliquei que havia passado a noite no hospital com Andrew
e estava esgotada. Ele me respondeu, quase que imediatamente,
dizendo que “já não era sem tempo”. Certifiquei-me de pegar um
comprovante do hospital, para apresentar no trabalho. Não pude
evitar o sorriso, ao me lembrar do cuidado que Paul teve ao fazer
isso por mim, quando passou a noite ali, comigo.
No táxi, já indo para casa, percebo que não consegui pensar na
nossa situação tanto quanto gostaria. A única coisa que consegui
ter certeza essa noite, é de que sinto a falta de Paul. Em vários
momentos, me perguntei se ele tinha conseguido dormir e, agora
mesmo, me indagava se já estaria acordado. Tive de me segurar
várias vezes, para não mandar mensagens no meio da noite,
apenas para me certificar de que ele estava bem, ou para diminuir
a saudade.
Do lado de fora do apartamento, já dá para sentir um cheiro
divino de bacon fritando. Obviamente ele está acordado, fazendo o
meu café da manhã, como disse que faria. Ele gosta de cuidar de
mim, de me mimar e isso é inegável.
Entro pela porta e sou arrebatada por um homem enorme, me
abraçando com força, cheirando o meu cabelo, beijando a minha
cabeça, a minha testa e a minha boca.
— Deus! Como senti a sua falta! — diz, com a respiração ofegante
contra a minha boca, e o nariz colado ao meu.
Enlaço os meus braços ao redor de seu pescoço e falo em seu
ouvido, com carinho:
— Calma, eu estou aqui. Também senti a sua falta.
Mais do que imaginei ser possível.
— Como está o seu amigo? — pergunta, se afastando um pouco
e me olhando, passando as mãos pelos meus braços, como se
quisesse ter a certeza de que estou bem.
— Na mesma, mas consegui passar um bom tempo com ele.
Estou feliz por isso — digo, fechando a porta de entrada com o pé.
— Que bom, minha linda, se você está feliz, eu também estou.
Está com fome?
— Faminta! Mas quero tomar um banho antes de comer, para
tirar esse cheiro de hospital.
Paul me abraça novamente, cheirando o meu cabelo.
— Seu cheiro é maravilhoso, Karen, não existe nenhum outro
que se sobreponha ao seu. Mas vá tomar o seu banho. Quando
terminar, já estará tudo pronto por aqui.
Sorrio para a doçura de Paul, dou um beijo suave em sua boca
e sigo para o banheiro.
Depois de me vestir e secar o excesso de água do cabelo com a
toalha, volto para a cozinha. A mesa já está posta com torradas,
ovos, bacon, salada de frutas e cereais. Para beber, suco de laranja
e café.
— Certamente, isso tudo não veio da minha geladeira — digo,
fazendo Paul dar um salto.
— Eu dei uma corrida até o mercado antes de você chegar —
responde, sorrindo e puxando uma cadeira para que eu me sente.
— Uau, não sabia que abriam tão cedo!
— Eu tenho meus truques — responde, enchendo o meu copo
com suco de laranja e me dando uma piscadela.
Ah, certamente que tem. Esse homem é cheio de truques. Um
ou mais deles foram usados, deliberadamente, para me deixar
caindo de amores por ele.
— Você conseguiu dormir? — pergunto, dando um gole na bebida
gelada e refrescante.
— No começo não, senti a sua falta na cama. Mas o seu cheiro
foi me acalmando, até que peguei no sono. E você? Conseguiu tirar
um cochilo, pelo menos?
— De leve, naquela poltrona reclinável da sala de espera.
— Deve estar cansada... — diz, pegando a minha mão e
acariciando-a com o polegar. — Eu vou à empresa de manhã, e

177
você dorme. Quando voltar, almoçaremos e passaremos o resto do
dia juntos.
Levanto uma das sobrancelhas. Paul está apenas de calça de
moletom, com os cabelos ainda úmidos de um banho que deve ter
tomado, logo antes de eu chegar. Sua visão apetitosa é
perturbadora, e eu varro o seu corpo com os olhos.
— Se me lembro bem, você prometeu que me receberia de uma
determinada maneira hoje. Quero dizer, além do café da manhã
que, a propósito, está delicioso — digo, com a boca cheia de
torrada.
Paul dá um sorriso malicioso.
— Então termine o seu café da manhã, para que eu possa te
levar para o quarto e comer o meu, porque também não aguento
mais esperar.

Minha cabeça ainda está pesada, e meus olhos se recusam a


abrir, quando sinto um nariz roçando o meu.
— Querida, acorde... Já está quase na hora do almoço. Você tem
que comer. Vamos lá, prometo que, essa noite, vou deixar você
dormir.
Desperto de imediato.
Ah não! O que Paul quer dizer? Vamos passar essa noite
separados? Não quero dormir longe dele!
Mesmo sonolenta, esse pensamento me sobrevém e me
desagrada muito.
Gente, desde quando fiquei tão dependente?
— Achei que você ia querer dormir aqui de novo — sussurro, com
a voz rouca, tentando disfarçar o meu desapontamento.
— Não, você dormirá no meu apartamento hoje. Venha, levante-
se. Ainda tem que me dizer o que quer fazer. O almoço será de
comida italiana. Quero te levar em um restaurante ótimo que
conheço. Como passaremos a nossa tarde, é você quem escolherá
— diz, me dando um beijo na têmpora.
Ah, eu sei bem como gostaria de passar a tarde toda com Paul.
Ainda mais quando sinto o meu quadril dolorido, devido ao sexo
fantástico que fizemos hoje cedo. Mas não quero que ele pense que
sou alguma espécie de maníaca sexual. Além disso, tem um lugar
em que eu realmente gostaria de levá-lo.
O restaurante era magnífico. Simples, mas requintado. A cara de
Paul! Uma das coisas que gosto nele, é de não ter medo de ir onde
ele quer me levar. O homem é o extremo oposto da quantidade de
dinheiro que tem.
Minha mão machucada já está bem melhor, graças aos cuidados
do meu enfermeiro particular, que se empenhou em manter meu
curativo limpo. Não preciso mais de atadura, apenas de um pouco
de esparadrapo. Mesmo assim, tive de insistir muito para dirigir,
dando garantias de que estou me sentindo ótima. Paul acabou
cedendo, acho que mais por eu ter dito que não iria contar aonde
vamos. É uma surpresa, então não tem como ele me guiar dessa
vez.
Depois de dirigir por quase uma hora, paro em frente a uma
estância afastada de Vancouver.
— Desça do carro. Cuidado, que pode ter estrume espalhado por
aí — digo, sorrindo.
Paul está lindo, como sempre: calça jeans preta, camisa azul
clara, com as mangas dobradas até os antebraços e os três
primeiros botões abertos, botas marrons (já que aconselhei o uso)
e óculos escuros. Eu optei por um visual bem mais relaxado:
camiseta regata branca, camisa xadrez aberta e amarrada na
cintura, calça jeans, botas pretas, óculos escuros e cabelo mal
preso no alto da cabeça. Quando ele foi me buscar, depois de ter
passado em casa para se arrumar, me olhou cheio de paixão,
dizendo que eu estava incrivelmente sexy com essa roupa. Eu já
acho que mais pareço um saco de batatas.
Dou a volta no carro e estendo a mão para Paul.
— Venha, você vai adorar.
Ele pega a minha mão e me puxa, me dando um abraço forte e
um beijo na bochecha.
— Já estou adorando.
Conduzo Paul até um celeiro, logo na entrada da estância e grito
alto, fazendo-o dar um pulo.
— Cliff! Ei, Cliff! Onde você está, velho safado?
Em uma fração de segundos, Cliff aparece na porta do estaleiro.
Tem 52 anos, é alto, encorpado, com cabelo, barba e bigode
escuros, começando a grisalhar. É um cara formidável. Ele vem até
mim, com um sorriso largo e acolhedor.
— Cake!
Cliff me ergue no alto, como se eu não pesasse nada e me gira,
tirando de mim uma gargalhada costumeira.

179
— Como está o meu velhote? — pergunto, ainda em seu colo,
dando um beijo estalado em sua bochecha.
— Ótimo! Levando a vida do meu jeito, como você pode ver.
Amo esse lugar, então não tenho do que reclamar, você sabe disso.
Cliff realmente é apaixonado pela sua estância e cuida dela com
um imenso prazer.
— Me põe no chão, quero que conheça uma pessoa muito
especial. Esse é Paul Newman. Paul, esse é Clifford Normand.
Paul cumprimenta Cliff educadamente, mas parece um tanto
ressabiado. Acho que não gostou muito da sua demonstração de
afeto e intimidade comigo.
— O velhote aqui era o melhor amigo do meu pai. Ajudou-nos
muito, quando ele morreu. Cliff, eu trouxe Paul para conhecer o
château.
Os olhos de Cliff brilham e seu sorriso largo se abre.
— Claro! Venham e cuidado onde pisam, tem cocô de vaca para
todo lado.
Olho para Paul e sorrio. Percebo que está confuso. Ele passa o
braço pela minha cintura, e seguimos Cliff até uma casinha de
madeira, instalada no meio da estância. É um cômodo só, onde está
abrigada uma das coisas mais sensacionais que já vi na minha vida.
Paramos na porta, e Cliff se dirige a nós, antes de abri-la, com uma
reverência, dizendo:
— Bem-vindos ao “Château Gellmand”!
Deixo Paul entrar na frente e, antes mesmo que eu passe pela
porta, o escuto dizer, em um tom de voz assombrado:
— Mas o que é isso?
ntro na casinha, a tempo de observar um Paul Newman
boquiaberto e de olhos iluminados. Está ainda mais lindo,
de um jeito especial. Cliff percebe o quanto ele está
maravilhado e dá uma gostosa e rouca gargalhada.
— O que é tudo isso? — Paul pergunta, estarrecido.
— Cliff? — me dirijo a ele, dando-lhe a chance de explicar.
— Bem, eu comecei a construir essa maquete há muitos anos,
com o pai da Cake. Ele era arquiteto e eu construtor. Gostávamos
de trabalhar em projetos simples, geralmente fazendas no interior
do país, e compartilhávamos um desejo em comum, que é o que
está diante dos seus olhos. Conversávamos muito sobre
construirmos uma comunidade, onde as pessoas pudessem ter
acesso à moradia com facilidade, as crianças tivessem segurança e
todos se sentissem parte das famílias uns dos outros. E começamos
a partir dessa maquete. Quando Steve morreu, esse sonho morreu
com ele. Mas eu continuei a construir a maquete. Como um tributo
ao meu melhor amigo.
Paul se aproxima do trabalho. Não sei se para ele é assim, mas
é a melhor maquete que já vi na vida. A riqueza de detalhes das
casas e arredores é impressionante. Cliff se esmerou em trazer vida
ao projeto, provavelmente por pensar que seria a única forma de
realizar seu sonho.
— Meu Deus, isso é magnífico! — sussurra Paul, se aproximando
e observando cada detalhe.
Cliff e eu trocamos um olhar cúmplice de satisfação.
Ocasionalmente, Paul faz perguntas a ele, que parece muitíssimo
satisfeito em responder.

181
Acho que já estamos há mais de uma hora no château, quando
as perguntas de Paul parecem terminar, e ele consegue absorver
cada detalhe.
— Sr. Normand, definitivamente precisamos ter uma conversa
séria — ele diz, com os olhos brilhando de excitação.
— Claro, meu jovem, mas me chame de Cliff. Vamos tomar um
café.
A casa de Cliff é simples, a típica casa de um homem solteiro e
de meia idade. Na verdade, me parece até mais arrumada do que
o costume.
— Agora eu tenho uma empregada, que vem em dias alternados.
Quando ela não está, fico perdido por aqui — ele diz, procurando
as coisas para tentar passar um café, um tanto constrangido.
— Cliff, definitivamente você precisa de uma mulher — digo,
sentada em sua mesa da cozinha, e ele dá a sua gargalhada rouca.
— Você sabe que é complicado pensar em ser de apenas uma
mulher, Cake. Tenho um coração grande demais — e sorri,
maliciosamente.
Cliff sempre foi conhecido por ter várias mulheres e nunca se
apegar a nenhuma. Destruía corações por onde passava, apesar de
nunca prometer nada a elas. Sempre foi sincero ao dizer que não
queria compromisso, mas as coitadas se apaixonavam e achavam
que poderiam mudá-lo. Pobrezinhas.
— Meninos, por que não vão para a sala, enquanto eu dou um
jeito nessa cozinha? Daqui a pouco levo o café — digo, despachando
os homens.
— Ah, Cake, você vai ser sempre a minha pequena heroína! — e
Cliff me puxa de lado, me dando um beijo carinhoso no topo da
cabeça.
— O seu charme não cola comigo, Normand. Suma daqui.
Vamos! — e dou um solavanco nele com o quadril.
Cliff sai, rindo e conduzindo Paul para a sala de estar. Ele nunca
ligou para diferença de idade e já ficou com moças até mais novas
do que eu, desde que fossem maiores de vinte e um anos. Mas a
mim, sempre respeitou e tratou como uma filha. E sinto o mesmo
amor por ele.
Lavo as louças que encontro na pia e arrumo as coisas nos seus
devidos lugares. Conheço a estância há muitos anos, então, sei me
virar bem na cozinha. Encontro na despensa, ingredientes
suficientes para fazer uns bolinhos de chuva. Aprendi a receita com
Camila, uma garota brasileira que passou uns tempos na casa e na
cama de Cliff. Preparo a massa e coloco o óleo para esquentar,
enquanto passo um café. O daqui é especial, são os melhores grãos
que já experimentei.
Acomodo um cesto forrado com os bolinhos, um bule de café
fumegante e três xícaras em uma bandeja. Levo para a sala e
encontro Paul e Cliff sentados nas poltronas ao lado do sofá, em
uma conversa animada. Se existiu qualquer estranhamento inicial,
parece ter ficado completamente no passado.
— Ah, aí está a nossa menina! — Cliff diz, sorrindo. — Eu tinha
certeza de que você estava fazendo alguma coisa para comer
também.
— Claro, senão você é capaz de passar o dia sem se alimentar
— e olho para ele de modo repreensivo.
Coloco a bandeja na mesa rústica de centro e sirvo as xícaras,
estendendo uma para Paul e outra para Cliff.
— Hummm, bolinhos de chuva! Você sabe como agradar um
velho, Cake! — diz Cliff, dando uma mordida em um bolinho,
sujando o bigode com açúcar.
— Até que enfim você admitiu que está ficando velho! — digo,
sorrindo largamente.
— É, a idade chega para todos. Estava até considerando
realmente a possibilidade de, quem sabe, me amarrar em alguém.
Não gostaria de envelhecer sozinho — ele diz, e um lampejo
melancólico passa pelo seu olhar.
— Eu nunca vou deixá-lo sozinho, você sabe disso. Mas acho
ótimo que você encontre alguém para esquentar os seus pés à noite
— digo, enquanto pego um guardanapo e passo em seu bigode.
Quando olho para Paul, que esteve calado todo esse tempo, o
vejo se deliciando com a nossa conversa. Ele está lindo, mais ainda
do que antes, se é que isso é possível.
— Então, sobre o que conversavam? — pergunto, dirigindo a
xícara de café aos lábios.
— Cake, Paul quer construir o château! Isso não é fantástico? É
mais do que sempre sonhei! Ele tem um projeto exatamente igual
ao nosso, só ainda não tinha o esboço. É como se ele tivesse
sonhado, e nós tivéssemos passado para a maquete!
— Ah, sim, ouvi falar desse projeto — respondo, sorrindo e
olhando de esgueio para Paul.
— Cliff e eu, inclusive, conversamos sobre como adaptar o
projeto a novas ideias, e ele tem um feeling fantástico. Estou
animado com o que podemos fazer aqui. — diz Paul, com os olhos
brilhando de animação.

183
Eles passam a próxima meia hora conversando sobre o assunto,
e Paul marca de Cliff visitar a construtora na semana seguinte, para
que possam, efetivamente, fechar um contrato.
De repente, Paul interrompe a conversa, se levanta da poltrona
e senta-se ao meu lado. Ele repousa a mão no meu joelho, dizendo:
— Karen, esse projeto também é do seu pai. Não farei isso, caso
te machuque de alguma forma, ou se as lembranças forem
dolorosas demais para você. Se me disser que isso te incomoda, eu
paro por aqui. Não quero, por nada nesse mundo, que você se
magoe.
Ponho a mão por cima da dele, acariciando os nós dos seus
dedos, e respondo, com toda a sinceridade:
— Nada me faria mais feliz do que ver os sonhos do meu pai e
de Cliff serem realizados.
Ele entrelaça os nossos dedos e sorri, aliviado. Ficamos nos
encarando por um período de tempo que não sei precisar, até
sermos interrompidos pela pergunta de Cliff.
— E isso aí, o que é?
Viramos para ele e ajeito o corpo, que estava totalmente virado
para Paul. Eu nem havia notado.
— Isso o quê? — pergunto.
— Vocês dois... O que é está rolando entre vocês?
— Somos amigos. Estamos nos conhecendo... É isso —
respondo.
— Então, Andy saiu do caminho, finalmente? — Cliff pergunta.
Meu coração dá um salto, e meu estômago revira. Sinto a bile
subir para a garganta. Afasto a minha mão de Paul e fecho o punho,
com força.
— Cliff, não fale assim! Andrew sofreu um grave acidente de
carro e está em coma, no hospital. Não seja cruel — respondo,
sobressaltada, sentindo Paul apertando o meu joelho, como se
dissesse para eu me acalmar.
— Cake, sinto muito, eu não podia imaginar! Não me leve a mal,
eu gosto mesmo do Andy, mas ele te sufoca. Não te deixa viver.
Ele é nitidamente apaixonado por você e fica ao seu redor, como
um cão de guarda, minando as chances de você conhecer alguém.
E é claro que não sente o mesmo que ele, mas se deixa levar por
essa dominação, porque evita que você encontre alguém e tenha
que lidar com essa merda toda de relacionamento. Mas isso só te
faz mal e te esconde do mundo — diz, com uma serenidade pouco
peculiar de sua personalidade.
— Desde quando você virou conselheiro sentimental? —
pergunto, me sentindo ligeiramente ofendida e constrangida.
— Cake, eu te amo como se fosse minha filha, e você sabe disso.
Te vi crescer, estando menos presente do que gostaria, porque me
mudei pra cá e ficamos longe, mas nem por isso me importo menos.
Parece que você morreu junto com Steve e Marcus, naquele dia
trágico. O meu sonho é vê-la desabrochar novamente. E hoje, o
que vejo aqui — ele diz, apontando para Paul e eu. — é a chance
real disso. Pelo menos, é o mais próximo que já vi de realmente
acontecer. Você está muito diferente. E eu gosto muito disso.
Sinto as minhas bochechas queimando e não consigo olhar para
Cliff. Paul alisa minha perna com carinho, sem dizer uma palavra.
Ele respeita o meu silêncio.
— Bom, acho que está na hora de irmos. Já combinaram tudo o
que precisam? — pergunto, me levantando.
— Sim, e trocamos telefones, se esquecermos de qualquer coisa
podemos entrar em contato um com o outro — Paul diz, ficando de
pé logo em seguida.
— Acompanharei vocês.
Quando chegamos ao carro, Cliff me olha por cima dos cílios,
cauteloso.
— Não vai dar um abraço no seu velho?
Reviro os olhos e me jogo em volta do seu pescoço.
— Se cuide e coma direito, Cliff. Peça a empregada para começar
a vir todos os dias, para cuidar melhor de você. Não quero que fique
sozinho.
— Não estou tão velho assim, Cake! Ainda dou conta de mim.
Obrigado por trazer Paul para ver o château. E, Paul, obrigado por
vir — ele diz, estendendo a mão para Paul, ainda com o braço em
volta da minha cintura.
— Eu que agradeço, Cliff, estou muito animado com a nossa
parceria. O que temos aqui é grande, muito grande e vai ser
fantástico! Agradeço a sua confiança! — e eles dão um aperto de
mão de cavalheiros.
— Você dirige? — pergunto para Paul, estendendo a chave do
carro.

185
stamos na estrada, de volta para casa. A tarde passou
voando, e nem acredito que já são quase dezessete horas.
O céu começa a se avermelhar, anunciando a chegada do
crepúsculo.
— Karen, você está bem? Está tão calada...
Olho para Paul, sorrindo.
— Estou bem. Apenas admirando o céu. Gostou de Cliff?
— Muito, ele é um cara e tanto! E adorei o projeto dele e do seu
pai! Aliás, você nunca me disse que o seu pai era arquiteto. Nunca
me falou nada sobre Cliff e o château.
— Ah, meu pai não parecia mesmo um arquiteto — sorrio. — E
sobre Cliff e o projeto, era algo que eu precisava ter certeza que
você iria gostar antes de mostrar. É muito importante para ele, e
para mim também.
— Karen, hoje você me deu muito mais do que pode imaginar.
Vi o meu sonho ali, realizado na minha frente. Aquilo é exatamente
o que eu quero. Fico feliz e lisonjeado que você me deixe realizá-
lo, junto com Cliff — diz, colocando a mão sobre o meu joelho e
acariciando de leve, fazendo o meu coração disparar e a minha pele
se arrepiar.
— Eu confio em você, Paul. Esse projeto vai reviver uma parte
do meu pai, e eu não confiaria em outra pessoa para fazer isso —
digo, com a mão sobre a dele.
— Eu sei que confia. E eu nem tenho como agradecê-la por isso
— ele diz, sorrindo.
— Isso foi mérito seu. Você conquistou a minha confiança.
— É mérito nosso. Eu conquistei a sua confiança, e você se abriu
para mim. Sou ainda mais grato por isso. Parece que te conheço a vida toda.
Não consigo mais me imaginar sem você — diz, apertando a minha coxa.
Sorrio. É exatamente assim que eu me sinto. Parece que conheço
Paul desde sempre e mal me lembro da minha vida sem ele. Isso é
novo, assustador e, ao mesmo tempo, extremamente familiar para
mim.
— Cliff te chama de Cake. Já ouvi Eva te chamando assim
também. É um apelido de infância? — pergunta, voltando a mão
para o volante e deixando a minha perna órfã do seu toque.
— É. Meu pai me chamava de Cake e Cliff sempre me chamou
assim. Andrew, uma vez que ouviu o apelido, passou a me chamar
assim, e a família dele também.
— Entendo. É bonitinho. Carinhoso.
— É sim — sorrio.
— Quero te levar para jantar. Aonde quer ir?
— Mc Donald’s! — respondo, pensando que poderia devorar uma
bela porção de batatas fritas agora mesmo.
Paul dá uma gargalhada.
— Como quiser, Srta. Geller!
Depois de devorar um sanduíche com batatas grandes,
passamos em meu apartamento, para que eu possa pegar algumas
roupas. Vamos dormir no apartamento de Paul.
— Sabe, eu acho que você poderia deixar algumas coisas na
minha casa, para que não precisemos passar sempre por aqui antes
de você ir para lá. E eu posso trazer algumas coisas também, se
você quiser.
Ai, meu Deus! É sério isso? Não estávamos indo devagar?
— Mas Paul, moramos tão perto! Não tem necessidade.
— Enquanto estamos aqui, poderíamos estar dando uns amassos
no meu sofá. — diz, levantando as sobrancelhas.
Meu corpo inteiro se retesa diante do comentário malicioso.
— Vou fazer uma mala — respondo e saio para o quarto, sendo
acompanhada pelos olhos e a gargalhada de Paul.

Depois de darmos os prometidos amassos no sofá e estendermos


o momento para a cama, Paul acaricia as minhas costelas, gesto
tão habitual e que me dá tanto prazer.
— Adorei o nosso dia juntos.
— Eu também adorei. Gostei que tenha conhecido Cliff. Ele é tipo
da família.

187
— Você disse que ele ajudou vocês quando o seu pai morreu...
Como foi isso?
Respiro fundo. Lá vamos nós para mais uma conversa difícil.
— Quando papai e Marcus se afogaram, depois da guarda
florestal ter organizado uma busca pelos corpos, desistiram ao
anoitecer do segundo dia, para retomar no outro dia de manhã. Cliff
ficou enfurecido e organizou uma força tarefa com os vizinhos. Ele
encontrou os dois. E ajudou a minha mãe a encaminhar o corpo e
providenciar o sepultamento. Ela estava transtornada, não podia
fazer isso. Ele tomou conta de tudo — e me sinto engasgar com as
lembranças desse dia.
Paul se move para ficar colado a mim, me aconchegando em seu
peito e seus braços.
— Se não quiser falar sobre isso, não precisamos. Não quis te
chatear.
Ao aspirar seu cheiro, me sinto segura e corajosa. Ele merece
saber sobre o meu passado. E eu quero mesmo me abrir com ele.
— Não, tudo bem, eu gostaria de falar sobre isso com você. No
dia seguinte ao sepultamento de papai e Marcus, já era noite e eu
estava andando sem rumo pela rua, pensando um monte de
besteiras. Cogitava em acabar com o meu sofrimento, fugir...
Aquela dor parecia que me mataria. Ao mesmo tempo, pensava na
minha mãe, no sofrimento dela, e que jamais poderia deixá-la
sozinha... Enfim, enquanto eu caminhava, vi Cliff sentado na
calçada, com uma garrafa de uísque vazia na mão, e chorando
compulsivamente.
— Nossa... Não deve ter sido fácil para você — Paul diz, me
apertando ainda mais em seus braços.
— Não foi. Cliff havia sido tão forte até aquele momento, que vê-
lo ali, sofrendo e vulnerável, acabou com o que restava do meu
coração. Fui até ele que, quando me viu, tentou levantar e acabou
caindo com o próprio peso. Estava bêbado demais. Apoiei-o como
pude em meus ombros e o levei para casa. Coloquei-o na cama,
tirei seus sapatos e o cobri. Fiz um chá e o obriguei a tomar, sob
muitos protestos. Então, ele finalmente dormiu. Eu me deitei ao
lado dele, com medo de que passasse mal no meio da noite. Ele era
o melhor amigo do papai, sempre me tratou como uma filha e era
o que eu tinha mais próximo de um pai, naquele momento. Não
poderia abandoná-lo passando mal.
— Claro... Foi muito legal da sua parte — Paul diz, acariciando
os meus cabelos.
— Era o certo, o que tinha de ser feito, entende? No dia seguinte,
acordei com um grito agudo, assustada, sem entender o que estava
acontecendo. Uma das várias mulheres de Cliff tinha entrado na
casa. Ele estava deitado, de barriga para cima, e eu estava de lado,
com o braço sobre o seu peito. A mulher entendeu o cenário todo
de maneira leviana, provavelmente movida por um ciúme
irracional. Espalhou para a cidade inteira que Cliff havia abusado da
filha do melhor amigo, enquanto o corpo não havia nem esfriado no
caixão. Eu, obviamente, neguei tudo. Fui submetida a exames em
busca de marcas de abuso. Claro que não acharam nada, mas o
fato de eu não ser mais virgem complicou tudo. E, antes de acabar
sendo preso injustamente, Cliff foi embora. Mamãe, se sentindo
escandalizada pela cidade inteira, hipotecou a nossa casa e também
nos mudamos.
Paul não fala nada. Apenas me abraça cada vez mais apertado,
ao ponto de eu sentir dificuldade de respirar. Fico calada, até que
ele pergunta:
— Sua mãe acreditou em quem?
Respiro fundo, em busca de um pouco mais de ar do que o
protetor Paul Newman me proporciona, no momento.
— Sinceramente, eu não sei. Acho que acreditou em mim, mas
ficou ressabiada. E aliviada por Cliff ter ido embora, com certeza.
— Hummm, entendo. E como você reencontrou Cliff?
— Antes de ir para a faculdade, voltei na nossa antiga casa, a
fim de recolher coisas minhas que ainda estavam guardadas lá.
Livros, CD’s, essas coisas. E encontrei diversos pacotes enviados
pelo correio, todos sem identificação, endereço e com um cartão
postal em branco. Quando abri os embrulhos, soube imediatamente
de quem era. Cada um continha uma casinha do Château Gellmand.
Cliff havia enviado pacotes para mim por três anos, sempre no meu
aniversário e no natal. Os cartões postais eram todos do mesmo
lugar, e foi através deles que consegui encontrá-lo na estância.
Desde então, vou sempre lá. Pelo menos, uma vez por mês.
— Então, ele é um foragido até hoje?
— Não, porque mamãe não registrou queixa. A mulher que nos
pegou na cama foi quem prestou e, quando eu fiz dezoito anos,
entrei com um processo contra ela, por calúnia e difamação. Como
já fazia muito tempo, o processo dela prescreveu, o meu foi
arquivado, e ele já não corre risco nenhum.
Paul me puxa para cima, apoiando a minha cabeça no travesseiro
e encostando o nariz no meu.

189
— Você já passou por tanta coisa na vida, minha menina... Não
é a toa que tenha tanto medo do amor. Todas as pessoas que amou
foram tiradas de você, de alguma maneira. Seu pai e seu namorado
pela morte, sua mãe pela doença, Cliff pela injustiça... — e ele para,
engolindo em seco.
— Pois é. O amor sempre machuca. De uma forma ou de outra.
Paul me abraça, cheirando o meu cabelo e sussurrando no meu
ouvido:
— Eu vou te provar que a vida pode ser diferente. Que o amor
pode ser maravilhoso. Nós teremos problemas, mas sempre iremos
dar conta deles. E eu nunca vou deixar você.
O meu primeiro ímpeto é o de me afastar, e dizer para irmos
devagar. Tenho medo, isso é indiscutível, mas não quero mais sair
de perto dele. Se de alguma maneira eu ainda tiver uma chance de
ser feliz, sei que ela está aqui, nos braços desse homem que, por
algum motivo desconhecido, realmente me ama. Gostaria de ser
capaz de retribuir esse amor. É tudo o que eu mais quero.
aul estaciona o carro na rua transversal à da agência.
Estamos a alguns minutos nos olhando, ele acariciando a
minha mão, e eu com a cabeça recostada no banco.
— É tão difícil te deixar ir... — diz, traduzindo exatamente o que
estou sentindo.
— Você não deu a opção de ficarmos separados por muito tempo,
não é? — digo, sorrindo.
Paul não me deixou pegar o carro para ir trabalhar, garantindo
que me buscaria no mesmo lugar, mais tarde.
— Não consigo ficar longe de você. Estou apavorado com a ideia
de que, a qualquer momento, você pode não me querer mais — ele
diz, roçando os lábios nos nós dos meus dedos.
Mal sabe ele que essa ideia sempre me apavora: a possibilidade
dele não me querer mais.
— Eu dei sinais de que não te quero?
— Não, mas você é tão traumatizada, tem tanta coisa não
resolvida dentro de si mesma... Tenho medo de que acabe se
convencendo que precisa se afastar de mim. Nem que seja para
fugir do que estamos sentindo um pelo outro.
Eu também via essa possibilidade, confesso, mas isso foi até me
descobrir completamente dependente e apaixonada por Paul. Não
quero ficar longe dele. Talvez, se eu admitisse os meus
sentimentos, ele fosse se sentir mais seguro. Mas não consigo fazer
isso. De certa forma ele sabe, tenho certeza, mas acredito que
queira ouvir. Só não sei se consigo verbalizar isso. E, até mesmo,
se devo. Tudo é muito novo para mim. E ainda é bastante
assustador.
— Eu amo você, Karen — ele diz e me puxa para abraçá-lo.

191
— Eu sei. Eu também gosto demais de você, Paul, não duvide
disso. Eu só não sei lidar com isso muito bem, mas não vou fugir.
Quero enfrentar tudo isso, e simplesmente por ser com você. Por
favor, confie um pouco em mim. Eu não estou me entregando a
você levianamente. Acredite um pouco em si mesmo e no que você
faz comigo — respondo, dando um beijo suave em sua boca.
Paul me prende, intensificando o beijo, e nossas línguas se
encontram e se unem, em um movimento desesperado de saudade
antecipada.
Já sinto a sua falta, sem nem termos nos despedido ainda. Como
pode ser possível?
Imediatamente o meu corpo responde à intensidade do beijo,
quando sinto Paul, rígido, contra mim.
— Vá logo, antes que eu ligue esse carro e te leve de volta para
a minha cama — ele diz contra a minha boca.
Sorrio e planto um beijo estalado em sua bochecha, saindo do
carro em seguida. Quando estou quase virando a esquina, vejo que
ele ainda me observa pelo retrovisor e mando um beijo no ar. Paul
sorri e deita a cabeça, em um gesto terno. Sigo para a agência,
com o vazio proporcionado pela ausência dele.
Bob e Gabriela já estão na sala, quando eu entro. Eles me olham
ressabiados, e acho bom que seja assim. Depois da última de
Gabriela, não darei chance para que me submeta a um novo
interrogatório. Sento à minha mesa, ligando o computador e
organizando o meu material.
Meia hora depois, o silêncio permanece. Isso é ridículo. Também
não precisamos ficar sem nos falar. Desde que não tentem invadir
a minha privacidade, está tudo bem.
— Como foi tudo por aqui ontem? — pergunto, na tentativa de
quebrar o gelo. Funciona imediatamente, pois Bob e Gabs se
aproximam da minha mesa.
— Não fizemos muita coisa. Acho que já temos praticamente
tudo pronto para apresentar ao Sr. Newman amanhã. É só dar os
arremates finais. Carl quer se reunir conosco hoje à tarde, para
apresentar um novo cliente — diz Bob.
— Parece que vamos voltar às rações, afinal — continua Gabs,
revirando os olhos, e eu sorrio para ela, que parece aliviada. —
Como está Andrew?
— Na mesma. Não tinha ninguém para passar a noite retrasada
lá, então eu tive de ficar. Tirando isso, nada de diferente.
— Almoço, nós três, hoje? — Bob pergunta.
Gabriela não responde e me olha, acredito que buscando
aprovação.
— Claro, acho ótimo — respondo, e eles sorriem, voltando para
os seus afazeres.
São quase 11h40min, quando o meu celular toca. Meu coração
pula e pego o telefone, correndo. Sorrio ao ver o nome de Paul
piscando na tela e saio da sala para atender.
— Oi, minha linda.
— Oi!
Ele dá uma risada.
— Saudades?
— Muitas.
— Eu também. Meu dia está péssimo longe de você.
— O meu nem tanto. Estou trabalhando na sua campanha, então
é como se estivesse com você.
— Ah, isso é desleal.
Agora a risada é minha.
— A que hora você vai sair?
— Não sei ao certo. Temos uma reunião com Carl à tarde, para
a apresentação de um novo cliente.
— Já?
— Praticamente terminamos a sua campanha, Sr. Newman.
— Espero que não seja nenhum cliente sedutor.
— Eu também. Ainda estou lidando com o último desse tipo.
Inclusive, ele estará sendo despachado amanhã.
Paul fica um tempo calado, até que diz:
— Somente o cliente será despachado, espero.
— Como assim?
— O namorado não.
Paro e prendo a respiração. Ele usou a palavra. Então é isso, Paul
é meu namorado. Acho que é o que somos mesmo, mas o choque
da primeira vez que a palavra surge não é amenizado por eu já
saber.
— O namorado não — repito.
Consigo ouvi-lo suspirar.
— Que bom...
— Tenho que ir, Paul. Combinei de almoçar com Bob e Gabriela.
— Tudo bem. Você me manda uma mensagem, avisando o
horário em que devo te buscar?
— Mando.
— Que bom que consegui ouvir a sua voz. Até mais tarde.
— Até.

193
Desligo o telefone, sorrindo, e volto para a sala, quase dando
pulinhos de satisfação.

Estamos no nosso restaurante favorito, e a conversa flui fácil e


agradável. Risadas frenéticas permeiam os nossos assuntos. É
sempre assim. Gosto muito dos dois, e fico feliz de estarmos de
volta às boas.
O celular de Bob toca, e ele se levanta para atender, se afastando
da mesa. Gabriela aproveita para falar a sós comigo:
— Karen, eu queria me desculpar por sexta-feira. Realmente me
excedi, mas foi por uma questão de termos intimidade. Me
considero sua amiga, e amigos são assim mesmo — diz, enquanto
nos deliciamos com um tiramissu de lamber os beiços.
— Tudo bem, Gabs, somos amigas. Só não quero que esse
assunto venha à tona na empresa. Você sabe que poderia me
prejudicar, mesmo sendo uma brincadeira. Carl é terrível, e
desconfio que tudo o que acontece chega até ele.
— Ah, mas chega mesmo. Carl está comendo a Sabrina — Gabs
fala, abaixando a voz.
O quê?
Fico boquiaberta.
— Jura? A impecável e acima-de-qualquer-suspeita Sabrina? —
pergunto, estarrecida pela revelação.
— Para você ver. Eu estava em uma das cabines do banheiro,
quando ela entrou falando no celular, bem no meio de uma
conversa erótica com Carl, e não percebeu que eu estava lá. Citou
o nome dele umas três vezes.
— Mas não poderia ser outro Carl?
— Ela disse que estava indo até a sala dele. Precisa ver como ela
pronuncia Carrrllll, como se estivesse miando — Gabs diz, e
fazemos cara de nojo. — Meia hora depois passou na frente da
nossa sala, tentando ajeitar o cabelo imaculado, que estava todo
despenteado.
— Bem, uma vez que Carl é casado, essa é uma informação
valiosa para usarmos a nosso favor, em caso de extremíssima
necessidade — digo, dando uma risada maldosa.
Gabriela dá uma gargalhada.
— Ah, com certeza. Agora, Karen, me diga... Você está com o
Newman, não está? — Gabs pergunta, contida, nitidamente
receosa.
Olho em volta, e Bob ainda está na calçada, falando frenético ao
celular, aparentemente, aborrecido.
— Estou. Nós... Estamos nos conhecendo, eu acho.
— Rá, eu sabia! — ela diz, batendo a mão na mesa.
Quando vê que eu fecho a cara, retoma a conversa em um tom
bem mais baixo.
— Olha, eu não sei o que vocês têm e em que pé está, mas
gostaria de te pedir que não pare. O que quer que ele esteja
fazendo com você, está te fazendo um bem enorme. Você
resplandeceu depois do que começou a acontecer entre vocês. Tem
ainda alguns traços depressivos, mas nunca te vi tão bem, de tão
bom humor, feliz... E linda! Você é linda, mas está reluzente.
Abaixo os olhos e coro. É difícil ouvir um elogio de uma mulher
deslumbrante como Gabriela. Deve contar ainda mais.
— Você está apaixonada! — ela diz, sussurrando, quando me vê
corar.
— Ai, Gabs... Pior que estou. E não sei como lidar com isso —
digo, com sinceridade, tampando o rosto com as mãos.
— Mas isso é ótimo! Depois de tudo o que você viveu, merece
demais ser feliz, minha amiga! — e sorri, com sinceridade. — E ele?
Também sente o mesmo?
Bob está voltando para a mesa e Gabriela diz, rapidamente:
— Drinks, você e eu, essa semana. Escolha o dia e me fale. Só
não posso na sexta.
— Okay.
Será bom sair com uma amiga, para variar. Preciso mesmo
conversar com alguém. Gabriela é curiosa, mas não é do tipo que
passa informação adiante, quando o assunto é sério. Adoro a ideia
de sairmos.
A reunião à tarde decorre tranquila. O cliente em questão é dono
de uma academia, e a propaganda é para angariar clientes. Nada
do que já não saibamos fazer com o pé nas costas. Quando vejo
que falta pouco para terminarmos, mando uma mensagem para
Paul por baixo da mesa, longe dos olhos de Carl:
“Estarei livre em meia hora. K.”
Menos de um minuto depois, chega a resposta:
“Não acredito que ainda falta meia hora para te ver. Estarei no
mesmo lugar. P.”
Sorrio, ansiosa pelo término da reunião.

195
aul está especialmente carinhoso e atencioso. Levou-me ao
hospital para ver Andrew e não se opôs a esperar no carro,
para evitar perguntas embaraçosas de Linda. E, também, me
deixou escolher onde dormiremos. Não sei se por termos passado
o dia inteiro longe um do outro, mas até mesmo no sexo que
fizemos, imediatamente ao chegarmos ao meu apartamento, ele
demonstrou paixão, saudade e necessidade de mim. Tenho certeza
de que correspondi à altura, com toda a falta que senti dele nesse
longo dia.
Estamos na cozinha, ele somente de calça de moletom, e eu
apenas de camisa de malha, como se completássemos um ao outro.
Curtimos um momento comum de casal, preparando uma refeição
juntos. E eu adoro isso.
— Querida, tenho duas notícias, uma boa, e outra não tão boa
— diz, me olhando de esgueio.
— Manda, Newman — respondo, sorrindo para ele, evitando
demonstrar ansiedade.
— Amanhã nós vamos sair. Tenho uma surpresa. E, para isso —
ele para de falar e corre até o sofá, pegando uma sacola que eu não
reparei que estava lá. —, você terá de aceitar esse presente.
Paul tira uma caixa grande de dentro da sacola e outra menor,
colocando em cima do balcão da cozinha. Pego a caixa maior e abro,
um pouco ressabiada. Embrulhado em papel de seda, está um lindo
e longo vestido azul turquesa. As alças e o bojo são de renda, com
o decote desenhando o colo, as costas nuas e uma faixa drapeada
na cintura. A saia é de seda, leve, delicada e esvoaçante. Na mesma
caixa, logo abaixo do vestido, está uma discreta e elegante carteira
prateada.
— Paul, para que isso? — pergunto, com os dedos tremendo por
pegar em algo tão sofisticado. Tão diferente de mim.
— Para o nosso compromisso de amanhã. Não queria que se
preocupasse com nada e, como não sabia se tinha vestidos de noite,
resolvi comprar um. Vai ficar maravilhoso em você — ele diz,
pegando a caixa menor e abrindo. — E eis o complemento.
No interior da caixa menor, sobre mais papel de seda repousa
um par de sapatos prateados de salto agulha, não tão altos quanto
os que costumo ver por aí, mas, ainda assim, altos demais para
mim, que sou adepta de tênis e sapatilha.
— Paul, eu andei sobre saltos assim pouquíssimas vezes. Não sei
se consigo fazer isso — digo, com o medo claro na voz.
— Karen, você é leve e naturalmente elegante, mesmo de jeans,
camiseta e sapatilhas. Isso não é nada para você. Confie em mim
e aceite o meu presente, por favor. Quero muito que se divirta
amanhã, e isso faz parte da diversão — ele diz, com o seu sorriso
arrebatador que chega aos olhos.
— Tudo bem, vou ver o que posso fazer com isso — respondo,
respirando fundo e fechando as caixas, para tentar esquecer a visão
daqueles saltos. — E qual a boa notícia?
Paul cerra a mandíbula, parecendo contrariado.
— Essa é a boa notícia.
Arregalo os olhos! Como sou estúpida! É claro que a surpresa é
a boa notícia. É que, infelizmente, desde que vi o vestido e os
sapatos, me senti tão incomodada que esqueci a parte boa.
— Claro que é! Me desculpe, Paul! É que achei um pouco demais.
Não queria te ofender, sou uma boba. Obrigada pelo presente —
digo, chegando perto dele e plantando um beijo em sua bochecha.
— Assim está melhor... — ele diz, afagando os meus cabelos. —
A má notícia é que terei de ir à Nova Iorque na quinta de manhã,
para resolver um problema com uma empreiteira. E sexta à noite
terá um coquetel, oferecido por um dos nossos fornecedores. Terei
de comparecer para fazer uma social. Gostaria que você fosse
comigo, mas agora que pegou um novo contrato, duvido que possa
— diz, desanimado.
— Exatamente. Não posso me ausentar agora, ainda mais que
acabei de tirar a segunda-feira de folga. Você volta quando?
— Sábado de manhã.
— Tudo bem, Paul. Vamos nos ver na quinta de manhã e no
sábado, quando você chegar. Então, tecnicamente, só não nos
veremos na sexta — digo, tentando consolá-lo, bem mais para
convencer a mim mesma de que não é tanto tempo assim.

197
E não é mesmo, sua boba!
— Mas não terei você quinta e sexta à noite. E não consigo mais
dormir sem você. Fico doido para o dia acabar logo, porque sei que
terei você toda para mim, quando chegar em casa.
Uma onda agradável de calor percorre o meu corpo.
— De qualquer maneira, na quinta-feira estou pensando em sair
com Gabriela. Uma noite das meninas. Tinha me esquecido de te
falar, porque ainda não tinha confirmado um dia certo com ela.
De repente, sinto a atmosfera ao meu redor mudar, como se o
clima ficasse pesado e sombrio. Paul dá a volta no balcão, com um
olhar feroz e predatório, como eu nunca havia visto antes. Não
dessa forma. Parece seriamente irritado. Ele pega o meu queixo
com firmeza, erguendo o meu rosto.
— O que implica uma “noite das meninas”? — pergunta, com um
tom ameaçador.
— Uma noite onde só saem mulheres, ora essa! E nem são tantas
mulheres, seremos Gabriela, provavelmente a namorada dela e eu.
Paul arregala os olhos.
— A Srta. Gonzalez tem uma namorada? — pergunta, parecendo
incrédulo.
— Quase uma esposa, na verdade. Elas moram juntas há muito
tempo. Isso te incomoda?
— Claro! É mais uma ameaça para mim. Achei que só precisava
me preocupar com Andrew, aquele tal de Jake e o Sr. Creag, além
dos homens que não conheço, mas pelo visto...
Jake? O Jake, da agência?
— Paul! Você não pode estar falando sério!
— Claro que estou. Você é minha. E eu não vou dividir você, por
mais que queiram isso.
Ele tem os olhos inflamados. Realmente não conhecia esse olhar.
— Ei! – digo, tirando a mão dele do meu queixo. — Não sou sua
propriedade. Eu estou com você porque eu quero. Isso deveria ser
suficiente para não se sentir ameaçado por ninguém. Você me
conhece e poderia respeitar a mim e ao valor que eu dou a você! —
digo, com raiva nítida na voz. — E entendo você citar Andrew,
apesar dele estar longe de ser uma ameaça no momento. Também
compreendo que fale de Bob, porque nem eu mesma confio nele,
mas Jake? De onde você tirou esse absurdo?
— Karen, você não enxerga mesmo como é bonita, não é? Não
percebe o encanto que exerce quando une isso à mulher sagaz e
inteligente que é. Eu vi a forma como ele olha para você, como
sorriu para você na primeira reunião que tivemos. Ele te quer,
nitidamente.
Isso é um absurdo. Jake é um doce de pessoa, trata a todos nós
com muito carinho, nunca agiu de forma desrespeitosa comigo e
nem deu indícios de estar interessado. Eu não sou tão idiota assim,
para não notar isso.
Sou?
— Isso é completamente descabido! E tem mais, você vai a um
coquetel sexta-feira, com certeza recheado de mulheres
maravilhosas da alta sociedade, há sei lá quantos quilômetros de
distância daqui. Se alguém deveria estar com ciúmes, sou eu!
— A-há! – ele grita, e eu dou um pulo. — Então você pensou
nisso! Está com ciúmes! — e dá uma risada divertida.
— Não estou não! — digo, entre dentes.
— Ah, está sim. Só que eu te chamei para ir. Você não me
chamaria para ir à noite das meninas.
— Claro, você não tem xoxota! — grito, a raiva latejando em
cada palavra.
— Olha a boca, Geller! Ou vou ter que lavar essa boca imunda!
— ele grita de volta, e parece estar contendo uma risada.
Estreito os olhos. Mesmo que ele esteja achando divertido, não
vou me permitir ameaçar.
— Pois tente! — digo, com a respiração ofegante de fúria.
Ficamos olhando um para o outro, com a raiva latejando nos
olhos e, não sei precisar quem cedeu primeiro, só sei que Paul está
em cima de mim, me agarrando pelo quadril e me beijando com
ferocidade, enquanto eu enrolo as pernas em sua cintura, agarro e
puxo os seus cabelos, sentindo-o gemer na minha boca.
Ele me ergue pelo quadril, me empurrando na primeira parede
que encontra. Sinto-me tão fortemente imprensada, que quase fico
sem ar. Percebo a sua ereção latejando em mim e o beijo com
ardor, dando vazão à nossa loucura, enterrando as unhas em seus
ombros e sentindo o seu corpo tremer de satisfação.
— Você está muito nervosa, Srta. Geller. Acho que precisa de
um banho frio para se acalmar — diz, ofegante.
E com uma rapidez impressionante, quando menos percebo já
está me enfiando debaixo do chuveiro, abrindo a torneira, sem se
preocupar em tirar a minha roupa.
— P-aul! — grito, com a voz entrecortada pelo gelo da água
caindo nas minhas costas.
— E tem mais, só um banho gelado não vai te acalmar, então,
eu vou dar exatamente o que você precisa — e me coloca no chão,

199
arrancando a camisa que estou vestindo, sem se preocupar com os
botões. Ele volta a me imprensar contra o azulejo gelado do box,
me beijando, enquanto abaixa a própria calça.
Paul ajoelha e abre as minhas pernas, esfregando o nariz na
minha boceta, agora duplamente molhada. Ele só tentou fazer isso
uma vez, e eu resisti, dizendo que não me sentia à vontade. A
verdade era que queria evitar isso com ele, especificamente, já
prevendo que, quanto mais eu entregasse de mim, mais estaria
entrando em um caminho sem volta.
— Hoje eu vou te provar, Karen. Eu sei que você quer.
Não tenho forças para resistir. Paul começa com pequenas
mordidas ao redor, e eu estremeço. Então, ele me abre e agarra o
meu grelo inchado entre os dentes, com suavidade, e começa a
fazer o trabalho com a língua. Contorço-me sobre ele, que não para
de me saborear inteira, clitóris, lábios, fenda, enquanto me fode
com a língua, repetidas vezes.
Quando sinto que vou sair do meu corpo, ele para. Eu rosno de
frustração. Paul sorri e começa tudo de novo, me lambendo e
chupando, tomando o seu tempo ao me explorar. Quando os
espasmos recomeçam, ele interrompe mais uma vez e se levanta,
para me encontrar furiosa.
Ele me ergue novamente pelo quadril, tornando a enrolar as
minhas pernas em sua cintura e investe contra mim, de uma vez,
me fazendo gritar e arregalar os olhos, ao senti-lo inteiro e pulsando
dentro de mim. Ele estoca de forma selvagem, me possuindo com
uma força que eu nem sabia que tinha.
— Você nunca mais vai me impedir de provar você. O seu gosto
é delicioso e isso aqui é meu.
Ele estoca mais fundo e eu grito. Paul captura o meu grito com
a boca e me beija, me deixando sem ar.
— Essa boca também é minha.
Ele aperta a minha bunda e crava as unhas curtas, me
levantando ainda mais.
— E essa bunda gostosa é só minha.
Paul abaixa a cabeça, chupa um dos meus seios com vontade e,
em seguida, morde o outro mamilo, com mais força do que eu
esperava.
— Eles também são meus!
De repente, diminui o ritmo e começa a me penetrar
suavemente, olhando dentro dos meus olhos, com o nariz
encostado no meu, até que se abaixa e dá um beijo suave no meu
peito, em cima de onde está o meu coração, batendo forte e
descompassado.
Por ele.
— E esse, também é meu.
E sobe com a língua pelo meu peito, pescoço, queixo, até enfiá-
la dentro da minha boca, retomando o ritmo alucinante das
investidas, a ponto de me enlouquecer com o barulho do seu quadril
batendo no meu, empurrando fundo, me consumindo inteira e
falando, entre cada estocada:
— Você. É. Minha. Você. É. Toda. Minha. Só. Minha.
Estremeço ao redor de Paul, gritando o seu nome, me
entregando a um orgasmo arrebatador. Ele não para e continua a
meter com força, sem largar a minha boca. Quando estou quase
atingindo o clímax novamente, sinto o corpo dele tremendo.
Gozamos juntos, com um espasmo cúmplice, urgente e longo,
muito além de tudo o que já fizemos até então, destruindo um ao
outro em um prazer intenso e possessivo.
Sim Paul...
Eu sou sua.

201
inda estamos ofegantes e agarrados um no outro. Não
quero interromper o toque e a urgência de estar
emaranhada em Paul. Ele parece sentir o mesmo. Sua
respiração se acalma aos poucos, no meu pescoço.
Depois de um tempo, finalmente ele me escorrega pela parede,
para me apoiar no chão, olhando nos meus olhos.
— Você entendeu que não consigo ficar longe de você? Que não
dá para imaginar a minha vida sem você, muito menos que outra
pessoa possa te tirar de mim? — diz, com o nariz encostado no
meu, os resquícios da respiração ofegante contra a minha boca.
— E você entendeu que eu sou sua, e que ninguém é ameaça
suficiente para me tirar de você? — pergunto, roçando os meus
lábios sobre os dele.
— Você jura? — pergunta, me dando beijos suaves no canto da
boca.
— Juro. Não tem mais ninguém para mim, Paul.
— E a sua promessa?
Então, você também pensa na bendita promessa!
Fico surpresa. Achei que ele nem considerasse isso como uma
possibilidade de problema.
— Foi uma promessa tola, Paul, feita no desespero que eu senti
pelo que aconteceu com Andrew. Como você disse, ele
provavelmente nem me ouviu. Não vamos nos preocupar com
palavras perdidas.
Paul suspira profundamente.
— Você é tão linda... Tão perfeita para mim... — ele diz,
acariciando o meu rosto com os nós dos dedos.
Aquelas palavras aquecem o meu coração. Ele me acha perfeita,
mesmo com toda a escuridão que existe dentro de mim. Isso é
amor, puro e verdadeiro.
— Você me faz querer ser perfeita para você — digo, acariciando
o seu rosto.
Ele volta a me abraçar forte, e eu estremeço.
— Vamos acabar esse banho, senão a gente vai congelar!

A manhã de quarta-feira passou voando, provavelmente pela


minha ansiedade relacionada à surpresa que Paul preparou para
essa noite. Falei com a clínica de mamãe, que permanece na
mesma, coisa que não me surpreende. Ela já passou mais de dois
meses consecutivos no breu, época em que achei que não voltaria
mais. Liguei também para Linda, perguntando sobre Andrew e
avisando que não poderei ir ao hospital essa noite. Gabriela e eu
marcamos a nossa saída para amanhã, no Snooker.
A reunião da nossa equipe com Paul, essa tarde, finalizou a
campanha, que agora será arrematada e disponibilizada para os
veículos apropriados. Isso foi um alívio, pois agora Paul não é mais
meu cliente, e me sinto menos culpada pela nossa relação. Tanto,
que fomos embora juntos, conversando pela rua até o seu carro,
evitando toques mais íntimos, mas sem nos preocupar em disfarçar
a proximidade entre nós.
Paul me deixa em casa para que eu possa me arrumar e vai para
o seu apartamento, prometendo voltar às oito.
Tomo um banho demorado, usando um novo sabonete líquido
que comprei para a ocasião, perfumado e delicado. Aproveito para
renovar a depilação, até que fique perfeita. Quando termino, enrolo
uma toalha na cabeça, escovo os dentes e passo hidratante no
corpo, seguido de um pouco de perfume amadeirado atrás das
orelhas, entre os seios e nos punhos. Passo no rosto uma loção para
uniformizar a pele, antes de aplicar a maquiagem. Utilizo um pó
compacto, um pouco de sombra cinza clarinha, rímel, um blush
bronzeador leve e um gloss nos lábios. Tiro a toalha, passo um
leave-in e penteio os cabelos usando o secador. Quando está seco,
faço uns cachos com baby liss e prendo para cima, em um coque
rebelde, com alguns fios caídos pelo rosto e pela nuca.
Dirijo-me ao quarto, para olhar o vestido que Paul estendeu no
cabide, tomando o cuidado de não deixá-lo amassar. Ele realmente
pensa em tudo. Visto a calcinha cara de renda branca que comprei
na hora do almoço, por achar que a ocasião merecia uma lingerie

203
que combinasse com todo o glamour. Coloco o vestido com cuidado,
para não estragar o cabelo e a maquiagem, puxando o zíper lateral
para fechá-lo. Em seguida, pego na minha caixa de bijuterias dois
pequeninos brincos de prata com vidrilhos, que minha mãe me deu
quando fiz quinze anos. São discretos e harmoniosos, e acho que
vão combinar bem com o visual. Coloco a minha identidade e meu
celular na bela carteira que veio com o vestido. Olho com desânimo
para a outra caixa. Não tem mais jeito, hora de encarar os
famigerados saltos.
Coloco os sapatos e me surpreendo por serem mais confortáveis
do que eu esperava. Caminho pelo quarto, percebendo que consigo
andar sobre eles com elegância. Ponho-me diante do espelho lateral
da penteadeira, que é de corpo inteiro, e me olho de frente, de
costas e de lado, girando para avaliar todos os ângulos possíveis.
O vestido parece feito sob medida e desenha o meu corpo, como se
tivesse sido costurado no mesmo, marcando os seios e a cintura
com suavidade, sem ser vulgar. O decote é desenhado no busto, e
as costas de fora dão um toque delicadamente sensual. É realmente
perfeito. Se Paul de fato escolheu esse vestido, conhece o meu
corpo milimetricamente. Enrubesço ao pensar que ele teve
experiências suficientes para conhecê-lo.
Às oito horas em ponto, meu interfone toca.
— Karen, está pronta ou quer que eu suba?
— Não precisa, estou descendo.
Quando saio pelo portão, fico estática com a visão que tenho à
minha frente: Paul está ao lado de uma limusine, apetitosamente
vestido com um terno preto, perfeitamente cortado e moldado ao
seu corpo musculoso, camisa branca de linho e gravata azul
turquesa, provavelmente para combinar com o meu vestido.
Quando dou por mim, percebo que ele está tendo a mesma reação
ao me olhar, me examinando de cima a baixo com a boca
entreaberta, lambendo de leve o lábio inferior. Ele se antecipa à
frente da escada e me estende um arranjo com três lírios brancos,
presos por uma fina fita de cetim.
— São lindas, Paul, obrigada.
— Linda é você. Karen, você está de tirar o fôlego! — diz,
pegando a minha mão e beijando os nós dos meus dedos, fazendo
com que a já familiar onda de calor percorra o meu corpo.
— Isso é mérito seu — digo, apontando o vestido. — A propósito,
você também está lindo.
— Esse vestido não ficaria tudo isso se não fosse você a vesti-lo,
Karen. Mas saber as suas medidas com exatidão, posso considerar
mérito meu — diz, respondendo à pergunta que me fiz mais cedo,
sobre ter sido ele ou não a escolher o vestido. — Vamos? —
pergunta, e tomo o braço que me oferece.
— Sabe — digo, sussurrando para ele, que se inclina para me
ouvir. —, nunca andei de limusine.
Ele abre o seu sorriso arrebatador.
— Que bom que sou eu a lhe proporcionar isso pela primeira vez.
O carro é enorme, com um estofado em L de couro bege,
instalado de frente para um minibar. O motorista fica separado de
nós por uma divisória acústica, onde uma janela sobe e desce por
controle remoto. Sobre o minibar repousa um balde de gelo, que
abriga uma garrafa de champanhe, com uma rolha já espocada.
Paul me acomoda no assento de couro e, em seguida, serve duas
taças, me oferecendo uma, ao se sentar ao meu lado. Sexual
Healing, de Marvin Gaye toca, ao fundo.
— Paul, isso tudo é maravilhoso, mas não é um pouco demais?
— Key, você sabe que não ligo para essas coisas luxuosas, e sou
bem mais simples do que aparento, mas eu quero tornar essa noite
especial. Quero agradar a mulher que aceitou ser a minha
namorada, e que me faz tão feliz. Quero que ela tenha uma noite
de princesa! — diz, me dando um beijo suave nos lábios.
Sinto as bochechas queimando. Esse homem é um príncipe, por
si só. Nem precisava de todos esses aparatos.
— Key14? — pergunto, me referindo ao apelido pelo qual ele
acabou de me chamar.
— É o apelido mais perfeito para você, não acha? — sorri, com
empolgação. — Além de ser o som da primeira letra do seu nome,
você é a chave que abriu o meu coração.
Sorrio. Gostei de Key. Gostei muito, na verdade. E é aí que me
dou conta de outro detalhe.
— Por que escolheu lírios para me dar?
— Karen Lily15 Geller.
— Ah, Paul! — digo, me jogando em seus braços.
Fico emocionada ao constatar que ele planejou cada detalhe
para me agradar. Paul me puxa para o seu colo e me abraça,
cheirando o meu cabelo.
— Você está tão perfumada... — e beija o meu ombro repetidas
vezes, enquanto acaricio os seus cabelos macios e deliciosamente
desalinhados.

14-Key: do inglês, chave.


15-Lily: do inglês, lírio.

205
Ficamos assim por um tempo, apenas sentindo um ao outro,
quando Paul olha pela janela, dizendo:
— Chegamos.
Ao sair do carro, me deparo com a fachada do Queen Elizabeth
Theatre.
— Vamos assistir a um espetáculo? — pergunto, sem conseguir
esconder a empolgação.
Ele sorri e aponta um quadro gigantesco, adaptado à entrada do
teatro, onde está escrito:

O Queen Elizabeth Theatre apresenta o espetáculo:


Ivan, O Terrível
Estrelado pelo Corpo de Ballet de Bolshoi
Única Apresentação

— Paul! — sussurro, de olhos arregalados e com a emoção


entalada na garganta. — Como você sabia...
— Que você queria assistir a apresentação? — ele me
interrompe. — No dia em que você foi para o hospital e eu dormi
na sua casa, vi o site do teatro aberto no seu notebook, justamente
nessa apresentação.
Lembro que, naquele dia, realmente esqueci o notebook ligado
sobre a cômoda.
— Eu olhei mesmo, mas os ingressos eram caríssimos! Acabei
deixando para lá e esquecendo. Paul, você gastou uma fortuna!
— Ei – ele passa o indicador no meu rosto, levanta o meu queixo
e me dá um beijo suave nos lábios —, uma noite de princesa,
lembra? — e sorri, pegando a minha mão e me conduzindo para o
teatro.
Obviamente, ele comprou os melhores lugares, onde temos uma
visão privilegiada de todo o palco. O meu coração bate tão forte,
que tenho medo de alguém ouvir. Paul me observa o tempo todo,
nitidamente fascinado com a minha animação.
— Você conhece a história do espetáculo?
— Não, mas você pode me contar — Paul diz, acariciando a
minha mão.
— Ivan, O Terrível é um clássico do século vinte. Conta a história
do jovem Ivan IV, que foi coroado príncipe da Rússia e tem que
escolher uma das treze filhas de Boyar para ser a sua esposa e
czarina. Ele seleciona Anastasia, e os dois acabam se apaixonando
profundamente. Só que Ivan começa a gerir o país em detrimento
dos interesses dos Boyars, que passam a tramar contra ele e
envenenam Anastasia, mesmo ela sendo uma Boyar, da família
Romanov. Então, Ivan se vê cercado por inimigos e assombrado
por pensamentos e fantasmas. Por fim, ele enlouquece.
— Pobre Ivan. Perder a mulher que ama deve mesmo levar à
loucura — Paul sussurra, pensativo, quando o último sinal no teatro
soa, indicando o início do espetáculo.

Assim que entramos na limusine, Paul me puxa para seu colo, e


eu o abraço com força.
— Muito obrigada, Paul. Foi maravilhoso. Você é maravilhoso.
Obrigada! — digo em seu ouvido.
— Minha menina, você não tem que me agradecer. É um prazer
vê-la feliz, mais do que tudo. É o segundo espetáculo de balé que
tenho o prazer de presenciar ao vivo com você. Agora, vou levá-la
para jantar. Espero que esteja com fome.
Não é o segundo espetáculo de balé que assistimos ao vivo, a
não ser que Paul esteja contando com o DVD de Coppélia. Mas não
me dou ao trabalho de corrigi-lo. Estou feliz. De fato, me sinto como
há muito não me sentia. Penso que só quero ficar aqui, envolvida
por ele. Para sempre.
A limusine para, e Paul desce do carro, oferecendo a mão para
que eu saia. Estamos diante de uma fachada lindíssima e iluminada,
onde um letreiro vertical diz “Hotel Georgia”. É magnífico. Ele me
conduz pelo saguão, me acomodando em uma poltrona de couro
bege, de frente para uma lareira que parece ter sido entalhada.
— Me espere por um segundo, não demoro. Descanse os pés,
quero dançar com você essa noite — diz, dirigindo-se até a
recepção do hotel. Antes que eu possa admirar todo o saguão
suntuoso ao meu redor, Paul retorna e me puxa para junto de si,
em um beijo profundo e ardente, sem se preocupar com quem quer
que esteja ao nosso redor. Ao me soltar, trôpega e sem fôlego, diz:
— Venha, vamos tomar um drink.
O lounge do hotel é lindíssimo. Parece a área externa de uma
piscina, com uma espécie de fogueira artificial no centro, cercada
de sofás, parecidos com espreguiçadeiras. Sentamos e,
imediatamente, um garçom muitíssimo bem vestido vem trazendo
os nossos drinks.
— Mas nem chegamos a pedir! — digo, com os olhos arregalados.
— Hoje eu estou no comando, meu bem. A sua função é só me
deixar mimá-la. — e me entrega uma taça contendo um drink
avermelhado, com uma única cereja no fundo e uma fina casca de

207
laranja pendendo para fora. Eu gosto, assim que tomo o primeiro
gole.
— Humm, que delícia, o que é? — pergunto, lambendo os lábios.
— É um Manhattan. Basicamente, bourbon, vermute doce, ervas
aromáticas e, o seu, com um leve toque de cereja.
— É uma delícia – digo, tomando mais um gole, fechando os
olhos e deixando o líquido repousar um pouco sobre a língua.
Quando abro os olhos, Paul está me encarando, com um olhar
inflamado e a boca entreaberta.
— Nenhuma mulher conseguiria ser mais sensual do que você,
ao provar um drink.
Abaixo o rosto, envergonhada, mas o meu corpo está todo
desperto diante das palavras de Paul.
— Venha, vamos jantar. Não vou aguentar esperar tanto pela
sobremesa — diz, me puxando pela mão.

Depois de uma refeição farta e deliciosa, o garçom se aproxima,


perguntando se desejamos pedir a sobremesa.
— Eu gostaria de um tiramissu, por favor — peço.
— E eu gostaria de um creme gelado de papaia com cassis. Peça
para servirem as sobremesas no quarto, junto com uma jarra de
Manhattan, por favor — Paul diz e se levanta, puxando a minha
cadeira.
— No quarto? — pergunto, com o coração disparado.
— Sim. Hoje passaremos a noite aqui — diz, enquanto me
encaminha para o elevador.
A suíte é enorme, equipada com dois ambientes. O quarto tem
a maior cama que já vi na vida, envolta por lençóis brancos, com
uma poltrona de cor marfim na frente, uma enorme TV e um
aparador de madeira escura, lindíssimo. A sala tem uma mesa de
jantar, de madeira, uma mesa de café da manhã, de vidro, ambas
para quatro pessoas, ladeadas por um sofá e duas poltronas de cor
marfim, uma mesa de centro com a mesma madeira escura do
aparador e outra TV gigantesca. As paredes são em tom de bege
claro, e o chão é todo desenhado. O banheiro é em granito escuro,
com uma suntuosa banheira branca no centro, cercada de velas
acesas.
— Paul! Isso é tão lindo!
— Que bom que gostou. Sente-se aqui — ele me chama para o
sofá da sala.
Quando me sento, Paul se ajoelha na minha frente, e o meu
coração dispara. Sinto as bochechas queimando. Ele nota a minha
excitação e sorri, maliciosamente.
— Não é o que você está pensando. Ainda não. Só quero tirar
esses lindos sapatos, porque quero que esteja confortável e
relaxada.
Delicadamente e de maneira devastadoramente sensual,
correndo os dedos pela minha perna esquerda até o pé, ele puxa o
sapato esquerdo, deixando-o cair com um baque surdo, no chão.
Quando está repetindo o mesmo movimento com o direito, e eu já
estou constrangedoramente ofegante, ouvimos o serviço de quarto
sendo anunciado na porta. Ele beija o meu tornozelo e vai atender,
me deixando sedenta pelo seu toque.
Paul me serve mais um drink.
— Você quer comer a sua sobremesa agora? — pergunta.
— Vou comer quando você quiser comer também — respondo,
ainda tentando controlar a excitação decorrente do seu toque.
Ele cerra os olhos e diz:
— Ah não, Srta. Geller, quando eu for aproveitar a minha
sobremesa você não estará em condições de comer nada — e sinto
o meu corpo todo se acender novamente. — Mas antes, quero vê-
la esvoaçar como um anjo nesse vestido.
Ele liga a TV, que já está programada em uma playlist.
Realmente pensou em tudo. Imediatamente, começa a tocar Just
The Way You Are, de Bruno Mars. Paul me puxa do sofá, pega a
taça da minha mão e a coloca sobre a mesa de jantar. De repente,
me rodopia, me trazendo para junto de si. Eu dou uma gargalhada,
e dançamos juntos, com Paul me conduzindo com graciosidade e
firmeza impecáveis. Sinto-me flutuando em seus braços, enquanto
fazemos do espaço vazio da sala a nossa pista de dança.
Em alguns breves momentos dançamos separados, e eu me solto
sem pudor, sem vergonha de me movimentar, porque ele me faz
sentir segura dentro de mim mesma. E, mais uma vez, Paul me
rodopia ao seu redor. Meu vestido esvoaça, conforme ele disse que
faria, emitindo um som baixo do farfalhar da seda.
Não consigo parar de sorrir. A música acaba, sendo seguida de
Crazy Love, de Michael Bublé. Paul me pega pela cintura, enquanto
passo os braços em torno do seu pescoço e subo em seus pés. Ele
parece adorar, pois dá uma gargalhada infantil e me conduz, com
leveza, como se eu não pesasse nada. Dançamos a música toda
assim, como se os nossos corpos fossem um só.

209
Quando acaba, ouço uma melodia familiar, que me dá um
espasmo no estômago. Lembro-me da primeira vez que dançamos,
quando passamos a nossa primeira noite juntos, no seu
apartamento.
— Essa é a nossa música, minha linda — e Delicate, do Damien
Rice ecoa pela sala.
Paul abaixa a cabeça, procurando a minha boca, e eu a cedo. Ele
encosta os lábios nos meus, roçando-os de leve, enquanto acaricia
os meus cabelos com uma das mãos. Eu me sinto completamente
inebriada com a sensação de pertencer a Paul Newman. Ele é meu
e eu sou dele. Meu corpo, minha alma e meu coração são desse
homem maravilhoso, que me fez ser sua princesa essa noite, pelo
simples prazer de me ver feliz.
De repente, sinto um ardor nas vistas e levo a mão ao olho
direito, sentindo o meu dedo se molhar.
O quê?
Sinto as lágrimas brotarem e me percebo chorando,
copiosamente, passando a mão pelo rosto, sem acreditar.
— Key, o que foi? Por que está chorando? — Paul pergunta,
segurando o meu rosto, em preocupação.
Olho para ele, rindo e soluçando ao mesmo tempo, uma mistura
de êxtase e entorpecimento.
— Paul, isso não acontece desde o enterro de Marcus e papai! É
um dos motivos pelos quais eu me sentia morta por dentro. Achei
que nunca mais seria tomada de qualquer sentimento que me
fizesse capaz de chorar — paro, tentando controlar os soluços para
que consiga falar, finalmente, tudo o que tenho para dizer. — Estou
emocionada e chorando de alegria, por você ser tão malditamente
perfeito! Por tudo o que me faz sentir e por tudo o que é. O seu
amor fez isso comigo! Essa sou eu, inteira! Inteiramente e
completamente apaixonada por você! — digo, sorrindo, com as
lágrimas rolando sem a menor dificuldade.
Paul arregala os olhos e me toma nos braços, me levantando do
chão e dando um grito. Ele me aperta com um amor e gratidão
indizíveis, e eu dou uma gargalhada. Afasto a cabeça para olhar
para ele, que lentamente me beija no rosto, por todo o caminho
que as lágrimas percorrem. E eu o beijo de volta, de forma suave,
pedindo acesso à sua boca. Nosso momento é cheio de um amor
intenso, e tudo o que não foi dito vai sendo entregue ali, na boca
um do outro, sem necessidade de mais palavras.
Paul me solta, pega o controle da TV e coloca a música em modo
repeat. Ele me vira de lado, descendo o zíper do vestido, devagar,
percorrendo o mesmo caminho com o dedo na minha pele sensível.
Puxo a sua gravata, tirando-a pela cabeça, e passo as mãos pelo
seu paletó, deixando-o pender por seus braços, até cair no chão.
Solto os botões da sua camisa, iniciando pelo primeiro, e ele me
segue, começando pelo último, até as nossas mãos se encontrarem
no meio do caminho, liberando o seu peito nu. Passo o nariz pelos
escassos pelos, tão suaves e macios, e dou beijos por toda extensão
musculosa à minha frente enquanto, com as mãos, vou descendo a
camisa, até que ela também repouse no chão.
Paul me vira de costas, me abraçando, cheirando o meu pescoço
e descendo uma das alças do vestido, enquanto me embala no
ritmo suave da música. Ele beija o meu ombro repetidamente e
desce a outra alça, fazendo com que uma nuvem de seda e renda
caia em volta dos meus pés. Me viro, abro e puxo o seu cinto com
rapidez. Ele se afasta por um momento, desabotoando a calça,
deixando-a cair por suas pernas, ao passo que tira os sapatos e as
meias.
Jogamo-nos um no outro, nos beijando, como se aquela rápida
separação fosse insuportável, e ele me deita sobre o carpete com
suavidade, se colocando ao meu lado. Até mesmo a distância até a
cama parece longa demais. Paul percorre a mão direita em meu
pescoço, meu colo, meus seios, minha barriga, e sua boca deixa
um rastro por onde ela passou, marcando a minha pele e a minha
carne, que eu sei que para sempre serão dele. Ele puxa a minha
calcinha, como se estivesse acariciando os meus quadris, até tirá-
la completamente. E coloca o rosto entre as minhas pernas,
beijando primeiro a parte interna das coxas, uma após a outra, até
ir subindo e começar a trabalhar com a língua em meu sexo,
enviando ondas de prazer e desejo por cada poro do meu corpo.
Paul é delicado e voraz na medida certa e, quando estou prestes
a gozar, ele para e sobe em cima de mim, apoiado nos braços, o
seu corpo cobrindo o meu totalmente, e me beija com paixão. Com
os dedos dos pés, eu encontro o cós da sua cueca box e engancho
nele, puxando-a para baixo. Ele geme na minha boca, e sinto
quando a sua ereção se liberta, batendo contra a minha coxa. Paul
se levanta, se posicionando na minha abertura e me penetra.
Soltamos, juntos, um gemido de satisfação. Ele começa a se
movimentar suavemente, e eu mexo o meu quadril contra ele, para
acompanhá-lo nessa dança sensual e apaixonada. E nos
entregamos, com o desejo, a paixão e a necessidade que temos um
do outro. Eu me sinto feliz, de uma forma como nunca imaginei que

211
poderia voltar a ser. Lágrimas brotam novamente nos meus olhos,
e eu as deixo cair, em um choro catártico, de alegria e alívio.
— Você é o meu amor — ele diz, enquanto me penetra mais
fundo.
— Sim. Eu sou sua. Eu sou toda sua, Paul — digo a ele, gemendo
em seu ouvido e empinando mais o quadril.
— Diz aquilo de novo... — ele pede, e sei exatamente o que quer
ouvir.
— Eu estou completamente apaixonada por você, Paul Newman.
— Ah, Deus...
E gozamos, num êxtase cheio de sentidos, promessas, esperança,
felicidade e amor, enquanto os últimos acordes de Delicate soam,
talvez pela milésima vez.
stamos na mesa de jantar, os dois de roupão e com o cheiro
do amor que fizemos ainda permeando a sala. Termino
minha sobremesa, mas vejo que a de Paul permanece no
gelo.
— Não está com vontade? — pergunto, apontando para a taça,
intocada.
— Eu tenho outros planos para ela... De qualquer forma, estou
saboreando te ver comer. Você fica linda quando come assim, com
prazer.
Começo a rir.
— E isso, é lindo? — pergunto, abrindo a boca cheia de doce para
ele ver.
Paul dá uma gargalhada.
— Acha que tenho nojo disso?
— Pois deveria.
— Vou mostrar o nojo que eu tenho de você.
Ele se joga em cima de mim, tentando sugar o doce da minha
boca. Eu aperto os lábios, mas Paul é muito mais forte do que eu e
consegue abrir uma pequena fresta na minha boca, onde enfia a
língua. E começa a me lamber, roubando a minha sobremesa, com
um misto de ardor e diversão. Sento em seu colo, de frente,
beijando-o e ficando cada vez mais excitada por essa intimidade
profunda entre nós.
Quando não tem mais doce nenhum a sorver de mim, Paul lambe
os meus lábios e sorri.
— Já que você roubou a minha sobremesa, agora eu vou roubar
a sua! — digo, pegando a taça de creme com uma mão e
empurrando Paul com a outra, até jogá-lo de costas, na cama.

213
Percebo sua respiração acelerada. Ele se coloca sobre os
cotovelos, para ver o que estou fazendo. Tiro o roupão e subo na
cama, desamarrando o dele e despindo-o para mim. Sento sobre a
sua barriga.
— Abra a boca — ordeno.
Quando ele obedece, sirvo uma colherada generosa de creme.
— Hora de pegar de volta o que é meu.
Enfio a língua na boca de Paul e ele se deixa levar por um beijo
indecentemente gelado, e melado, me dando total acesso. Desço,
com a língua ainda gelada, pelo seu queixo, pescoço, peito. Coloco
mais uma colherada em sua boca e vou buscar, para em seguida
beijar e lamber seus mamilos, sua barriga, e ouvir seus gemidos
deliciosos. Quando chego em frente à sua ereção, ele me olha,
assustadoramente lindo.
— Ainda estou com fome.
Pego uma colher de creme gelado e passo pelo seu pênis ereto.
Paul suga o ar com força. Espalho o doce por toda a sua extensão,
sem deixar nada descoberto, e desço a colher também pelas bolas.
Termino e aprecio o meu trabalho, colocando a taça de lado e
observando os olhos vidrados de Paul.
— Hora do banquete! — digo, lambendo os lábios
demoradamente.
Paul solta um gemido e eu sorrio, maliciosamente:
— Pode me ver comer, se quiser.
E começo a lamber o creme em volta do seu pênis, ouvindo Paul
soltar um sonoro e rouco “oh”. Sorrio contra a sua ereção e continuo
lambendo, primeiro a cabeça, descendo aos poucos por todos os
lados, até que esteja todo limpo. Quando termino, agarro o seu pau
com força e começo a masturbá-lo, enquanto desço para as bolas,
limpando com a língua todo o creme que espalhei.
— Karen, pelo amor de Deus! — ele diz, se contorcendo na minha
mão.
— Eu ainda não estou satisfeita, Newman. Controle-se.
Quando as bolas estão limpas, volto e chupo seu pau com
vontade. Uma, duas, repetidas vezes. Senti-lo enorme e pulsando
na minha boca é sexy demais, e preciso me segurar para não
mordê-lo.
— Porra, Karen, eu vou gozar. Caralho!
E enfio até o fundo, de uma vez. Ele não aguenta e goza com
força, atingindo direto a minha garganta. Engulo e continuo
chupando, até que os espasmos e o seu líquido terminem, sem
deixar uma gota desperdiçada.
Paul se inclina e me puxa para cima, segurando minha cabeça
com as duas mãos e colocando nossos rostos de frente um para o
outro. Ele me encara por alguns segundos, em um estado de
profunda adoração. Então, me beija e abraça, apaixonadamente.
Quando as nossas bocas se separam, olho em seus olhos e
acaricio o seu cabelo.
— Você nunca havia feito isso para mim — diz, com um tom de
admiração na voz.
Deito ao seu lado e digo:
— Você está errado.
Ele arregala os olhos, confuso.
— Acho que eu me lembraria, se tivesse acontecido.
— Não foi isso que eu quis dizer.
— Então, eu não entendi – diz, se colocando de lado e olhando
para mim.
— Eu nunca fiz isso.
Os olhos de Paul voltam a se arregalar.
— Você quer dizer que nunca fez em mim?
Reviro os olhos e ele entende exatamente o que eu quero dizer.
— Você nunca fez sexo oral? Em ninguém?
Faço que não com a cabeça.
— Sério? — pergunta, assustado.
Reviro os olhos de novo.
— Com Marcus eu era muito menina. De lá para cá, eu sempre
me dediquei ao sexo casual. Não ia sair chupando qualquer um que
não conheço, nem mesmo com camisinha. Isso é muito íntimo. É
quase como o beijo. Um pouco menos, talvez.
Paul permanece boquiaberto por alguns instantes, até pular em
cima de mim.
— Obrigado! Obrigado! Obrigado! — ele fala, repetidamente,
enquanto beija minha testa, meu nariz, minhas pálpebras, minha
boca e minhas bochechas, me fazendo gargalhar.
— Parece que você aprecia um belo banquete, Sr. Newman.
— Adoro ver você comer, Srta. Geller — e sorri maliciosamente,
até que franze o cenho. — Se você nunca fez, como pode ser tão
boa nisso?
Passo a mão no queixo dele e respondo:
— Porque eu sou perfeita para você.
Ele abre o seu sorriso arrebatador, e seus olhos ficam marejados.
— Sim, perfeita — diz, enquanto esfrega o nariz no meu. —
Perfeita para mim.
E nos perdemos um no outro, mais uma vez.

215
epois de passarmos uma noite maravilhosa, em que fui
transformada por Paul em uma princesa devassa, declarei
os meus sentimentos a ele, fui mimada em cada detalhe,
e fizemos amor adentrando a madrugada, estou entregue de volta
à realidade.
Não faz nem quatro horas que nos despedimos, e eu estou com
um nó na garganta que teima em não sumir. Paul pegou o voo as
oito, mas me ligou da sala de embarque, para se despedir. Tive de
controlar as lágrimas, para não fazer o papelão de chorar por uma
viagem de dois dias.
Isso é ridículo!
Olho para o relógio e faço um cálculo mental, para ter uma ideia
de quando ele chegará à Nova York. Ainda faltam, no mínimo, duas
horas.
Enfiar a cara no trabalho. É disso que preciso.
Gabs percebe a minha inquietação.
— Karen, está tudo bem? — ela pergunta.
— Ahn? Claro, por que não estaria?
— Você não ouve quando falamos. Está aérea, pálida. Está
passando mal?
— Não, acho que é fome, não tomei café da manhã. Vou comprar
alguma coisa para comer, vocês querem algo?
— Não, valeu — Bob e Gabs respondem, em uníssono.
— E a saída de hoje, ainda está de pé? — Gabriela pergunta.
Será bom sair. Posso parar de pensar em Paul o tempo todo e
me distrair. E, claro, evitar pelo máximo de tempo possível o vazio
que vai estar na minha cama.
— Claro!
— Ah, vocês vão sair e nem me chamaram? — Bob pergunta, se
fazendo de magoado.
Ah, não! Sem Bob, por favor!
— É noite das meninas, então você e o seu amiguinho se
mantenham longe de nós — Gabriela responde, apontando para as
calças de Bob, e eu solto uma gargalhada.
Ele cruza os braços, emburrado, dizendo:
— Pelo menos serviu para Karen rir um pouco.
Na lanchonete, penso em comer alguma coisa, mas só consigo
pedir um café com leite. O nó na garganta não se desfaz. Me dá
uma vontade incontrolável de fumar um cigarro. Faz um bom tempo
que não fumo, e não havia nem ao menos notado isso.

Às 12h35min meu celular toca, e meu coração dá um salto triplo,


fazendo um plié16 afobado. Saio correndo do restaurante onde
estou almoçando com Gabriela e Bob, para atender do lado de fora.
— Paul!
— Oi, linda!
Ah, como é bom ouvir a voz dele!
— Oi! Fez boa viagem?
— Fiz, o tempo ficou estável a viagem toda.
— Que bom!
E ficamos em silêncio. Estou morrendo de saudades dele. É tudo
o que quero dizer. Mas tenho medo de parecer uma maluca,
desesperada.
— Estou morrendo de saudades de você, minha princesa.
Meu coração bate tão forte, que quase sai pela boca.
— Eu também, Paul, muita. Você não faz ideia.
— Ah, faço sim, pode ter certeza!
Sorrio, feito uma adolescente boba.
— Você já está no hotel?
— Estou no táxi, a caminho de lá.
— Vai ter tempo de almoçar?
Parece que ouço o seu sorriso.
— A reunião é às quatorze horas. Vou tomar um banho e comer
alguma coisa. Preocupada comigo, Srta. Geller?
— Sempre, Sr. Newman.
— Que bom, porque também me preocupo com você.
— Ah é?
— Sempre, Srta. Geller. Se comporte na noite das meninas.

16-Plié: é um movimento de flexão de joelhos do ballet clássico

217
Dou uma risadinha.
— Pode deixar, Sr. Newman. Vou me comportar.
— Promete?
Reviro os olhos, sorrindo feito uma idiota.
— Prometo!
— Lembre-se de que você é minha. É perfeita para mim.
Sorrio, me lembrando de quando trocamos essas palavras, na
noite passada.
— Só para você.
Paul suspira profundamente.
— Não vejo a hora de voltar para você.
— Não vejo a hora de que você volte.
— Vou ter que desligar. O táxi está estacionando.
— Tudo bem. Boa sorte na reunião.
— Obrigado. Aproveite a sua noite.
— Eu irei.
— Tchau, minha linda.
— Tchau, Paul.
Volto para a mesa e devoro a comida, que antes não tinha
conseguido sequer tocar. E só por ter ouvido a voz de Paul, meu
coração está alegre novamente.

Entro no Snooker às oito em ponto, sendo recebida por Travis


com um largo sorriso.
— E aí, sumida!
— E aí, T.! Vim encontrar umas amigas — digo, quando escuto
vozes femininas gritarem o meu nome.
Maria e Gabriela estão sentadas na minha mesa favorita, perto
da porta.
— Elas estão ali. Manda uma cerveja para mim, T.?
— É pra já, Karen!
Travis não pergunta sobre Andrew, e eu me sinto aliviada por
isso.
Elas me recebem com entusiasmo.
— Maria, você está deslumbrante! O que fez com o cabelo? —
pergunto.
Ela é um pouco mais baixa e mais magra do que Gabriela,
porém, mais cheia de curvas, que estão ressaltadas em um vestido
tubinho essa noite. O cabelo, que antes chegava até as costas,
agora está caindo apenas até os ombros, em cachos suaves e bem
delineados.
— Você gostou? Cortei ontem! Ainda estou me acostumando —
ela diz, passando a mão de modo automático.
— Ficou lindo, valorizou o seu rosto.
Gabriela dá um beijo em sua bochecha e diz, com carinho:
— Ela sempre está linda.
Sorrio. O amor dessas duas é algo prazeroso de se ver.
— Karen, vamos lá, estou me roendo aqui. O que está
acontecendo entre você e o Newman, afinal? — Gabs pergunta, sem
o menor rodeio.
Sorrio para ela.
— Nós estamos namorando — respondo, dando de ombros.
Gabriela engasga com a cerveja, cuspindo o líquido sobre a
mesa. Começo a rir, e Maria dá tapinhas de leve em suas costas.
— Um homem conseguiu conquistar a inalcançável Karen Geller?
— ela pergunta, secando a boca com um guardanapo.
— E como conseguiu! Estou apaixonada por ele — confesso,
enquanto Maria pressente o perigo e abaixa a garrafa que Gabriela
ia novamente levando aos lábios.
— Puta merda! Pode ir contando tudo! Desde o começo. Não
poupe os detalhes! — Gabs diz, e vejo Maria revirando os olhos.
Conto o básico, na verdade, evitando os pormenores, vendo a
minha amiga se deliciar com cada revelação. Ao terminar, o meu
telefone toca. É Paul! Quando vou me levantar para atender, ela
diz, com firmeza:
— Não precisa sair, nós já sabemos de tudo mesmo.
Dou de ombros.
— Oi! — atendo, com a voz macia.
— Key! Estou atrapalhando a noite das meninas?
— Você nunca atrapalha.
— Que bom... Liguei só para dizer que estou com saudades.
Queria ouvir a sua voz antes de dormir.
— Estou feliz que tenha ligado. Eu também estou com saudades.
E, então, Gabriela grita:
— Tire a sua salsicha da nossa reunião de meninas, Newman!
E cai na gargalhada, sendo repreendida por Maria.
— Essa foi a Srta. Gonzalez?
— Foi.
— Você contou a ela sobre nós, então.
Fico envergonhada e prendo o ar sem perceber.
— Contei, agora há pouco.
Ele dá uma risada.

219
— Que bom, minha linda! Fico feliz que não sejamos mais tão
clandestinos!
Solto o ar.
— Achei que você ficaria chateado.
— Claro que não, por mim eu teria assumido desde o início. Eu
amo você.
— Eu sei disso. Mas estamos caminhando para isso, não é? Em
breve, todos vão saber mesmo.
— Sim, todos. E isso me faz muito feliz.
— A mim também. Como foi a sua reunião?
Paul dá um longo suspiro, e sinto que está preocupado.
— Estamos com um problema na filial. Precisamos descobrir o
que está acontecendo. Ainda não sabemos ao certo, mas temos
uma equipe cuidando disso, no momento.
— Isso pode fazer com que você precise estender a viagem?
Tento disfarçar o desânimo na voz, mas tenho certeza de que
está nítido em meus olhos.
— De jeito nenhum. Coloquei homens de minha inteira confiança
no caso. Eu não aguentaria ficar nem um dia a mais longe de você.
Mal posso aguentar agora.
Sorrio e meu coração se derrete.
— Espero que dê tudo certo.
— Vai dar sim, minha linda, não se preocupe com nada.
Ficamos em silêncio por alguns segundos.
— Bem, vou deixar você com as suas amigas. Qualquer coisa
que precisar, estou no celular, está bem?
— Tudo bem. Sinto muito por ter que desligar.
— Eu também sinto, mas não quero atrapalhar a sua noite. Até
porque, quando eu voltar, vai ser difícil sair de perto de você
novamente.
— Espero que não saia mesmo.
— Não vou.
— Promete?
— Palavra de escoteiro.
— Escoteiros nunca mentem — digo, sorrindo.
— Então, você se lembra!
Não sei como, mas escuto o sorriso arrebatador de Paul. Como
não me lembrar da forma como ele foi amoroso e cuidadoso com a
minha mãe, no dia em que usou essa frase com ela?
— Boa noite, meu amor.
— Boa noite, querido.
Um silêncio se faz.
— Você não quer desligar também?
Dou uma risadinha.
— Não, mas preciso.
Outro silêncio, e um longo suspiro de Paul se torna audível.
— Eu sei que precisa.
— Boa noite, Paul.
— Boa noite, Key.
Desligo o telefone, sorrindo e suspirando. Quando dou por mim,
vejo duas figuras embasbacadas à minha frente. Gabriela, com os
olhos arregalados e sorrindo. Maria, com a boca aberta. Ambas,
com os cotovelos na mesa e o queixo apoiado em uma das mãos.
— O que foi? — pergunto.
— Você ama esse cara! — Maria diz.
— Pra caralho! — Gabriela confirma.
— Gente, eu disse que estou apaixonada por ele, qual a
surpresa?
— Você não está apaixonada, simplesmente, você ama esse
cara! — Gabriela repete a frase de Maria.
Paro e penso por alguns segundos.
— Olha, gente, eu sinto desejo por ele, carinho, paixão, ternura,
mas amor... Amor é complicado. Acho que depois do Marcus, eu
nunca mais vou amar ninguém. E eu conheço Paul há, sei lá, tipo
três segundos? Como poderia amá-lo? Não faz sentido.
Elas se olham, sorrindo, certamente felizes de serem cúmplices
do que acabaram de presenciar.
— Como está Andrew? — pergunta Gabs, para mudar de
assunto.
— Na mesma. Passei por lá antes de vir para cá — digo, sem ter
o que acrescentar.
Vários assuntos, cervejas, uma cantada de um desconhecido e
partidas de sinuca mais tarde, e finalmente chego em casa. Decido
mandar uma mensagem, para que Paul saiba que estou bem.

“Cheguei! Estou bem e você ficaria orgulhoso de como me


comportei. K.”

Já é uma hora da manhã e, por mais que eu esteja com


saudades, espero que ele esteja dormindo e só veja a minha
mensagem pela manhã. Agora, em Nova York, já são umas quatro
horas, se não me engano. Troco de roupa, colocando uma camiseta
confortável para dormir e me deito.

221
A história que contei para Gabriela e Maria sobre Paul e eu, não
passa nem perto de tudo o que vivemos, em tão pouco tempo.
Começo a recapitular as lembranças do nosso curto relacionamento
em minha mente, como que para amenizar a falta que sinto dele.
Lembro-me da primeira reunião na agência, na sexta-feira,
quando o vi pela primeira vez. Já naquele dia, a sua presença me
perturbou. Ele era lindo de morrer. Aliás, ele é, mas hoje conheço
outros predicados desse homem. O meu homem. Mas naquele dia,
foi a sua beleza, a sua paixão pelo trabalho e os seus ideais quem
chamaram a minha atenção.
Nosso segundo encontro aconteceu dois dias depois, no
supermercado. Lembro nitidamente da onda de calor que percorreu
o meu corpo, ao senti-lo atrás de mim. Foi quando me contou que
terminou o noivado. E, hoje, admito que gostei de saber que ele
estava solteiro. Sua simpatia e gentileza foram singulares, e acabei
descobrindo que ele havia se mudado para o bairro.
Na segunda-feira, dia seguinte ao encontro no supermercado, foi
a segunda reunião. Paul entrou na sala me chamando pelo primeiro
nome e perguntando por Andrew. Foi delicado e gentil da parte
dele, mas me deixou desconcertada. Nesse dia, dei carona para ele
na hora de ir embora, o que rendeu as primeiras fofocas ao nosso
respeito. E foi a primeira noite que passamos juntos, porque ele
não admitiu me deixar sozinha no hospital.
Sorrio ao pensar nisso. A lembrança mais forte desse dia, na
verdade, é uma sensação. O calor que mais uma vez eu senti, ao
estar perto dele. Talvez tenha sido o que me deu segurança para
me abrir aquela noite, contando a minha história. Paul me ouviu
com atenção e, ao invés de me consolar como faria qualquer pessoa
em seu lugar, me deu alguns choques de realidade. Porém, naquele
momento eu estava anuviada demais para enxergar.
Depois do hospital, Paul me levou em casa e se certificou de me
conseguir uma dispensa do trabalho, para que eu pudesse
descansar. E fez café para mim. Me vem à cabeça o bilhete que ele
me deixou nesse dia, junto com uma pequenina flor. Lembro-me
de cada palavra, já que li e reli várias vezes:

Prezada Srta. Geller,


Agradeço muitíssimo a hospitalidade.
Com você, até uma noite no hospital pode ser
demasiadamente agradável.
Obrigado por confiar em mim.
Espero que esteja bem.
Paul
P.S: Você tem um excelente sofá.
Fico imaginando o quão boa deve ser a sua cama.

Sim, a palavra é confiança. Por mais incompreensível que possa


ser, eu realmente já confiava em Paul.
Na quarta-feira à noite, no bar, eu pensava nele quando
apareceu. Será que foi atraído pelos meus pensamentos? Foi a
primeira vez que fui ao seu apartamento, com a justificativa de
ajudá-lo com o fogão. Ainda não sei se foi ou não uma desculpa,
mas, sinceramente, não faz mais diferença. Foi o nosso primeiro
encontro sexual, ardente, desejoso, intenso. E não foi apenas sexo,
foi uma noite de emoções fortes. Nos divertimos ao brigar pela
omelete, o magoei ao revelar o fato de não beijar enquanto
transava... Lembro-me do quão doloroso foi vê-lo triste, o que me
fez propor a relação de amigos com benefícios. E foi nessa noite
que decidi que não deixaria ninguém magoá-lo. Nem mesmo eu.
A manhã seguinte foi deliciosa. Trocamos telefones, brincamos.
Percebi que nos divertíamos muito juntos. Me senti feliz por alguns
momentos, o que foi logo percebido pela sagaz Gabriela Gonzalez.
Quinta-feira à noite, após a minha conversa intrigante com
Linda, recebi o primeiro telefonema de Paul. Foi um telefonema
deliciosamente divertido, que me fez dormir aquecida e sorrindo.
Sexta-feira à tarde traz uma lembrança amarga. Paul invadiu o
meu trabalho, interrompendo o nosso horário de almoço, causando
um constrangimento terrível entre os meus colegas e eu. Fiquei
nervosa e briguei com ele, desmarcando a saída que combinamos
para a noite. Ele não aceitou, foi até a minha casa, machuquei a
mão, ele cuidou de mim e assistimos Coppélia, com a revelação de
que ela tinha sido o primeiro amor de Paul. Sorrio e abraço o
travesseiro, ao me lembrar da sua carinha de menino, me contando
essa história.
No sábado, Paul me fez companhia na visita à minha mãe e
soube lidar com ela de imediato, o que fez o meu coração se
aquecer. Marcamos um cinema para a noite, mas — e sorrio, ao me
lembrar com ternura de Marcel. — acabamos perdendo a sessão.
Não me arrependo, por dois simples motivos: o primeiro, é que não
me esqueço do olhar de admiração de Paul, me fitando naquele
momento lúdico e sincero. O segundo, é que isso rendeu o nosso
piquenique improvisado ao luar. Uma das experiências mais lindas
que já presenciei, com direito a uma dança de cisnes, no nosso lago
particular.

223
Levanto de súbito, diante dessa lembrança. Começo a analisar
uma série de fatos. O lago... Os cisnes... A menção de Paul na
minha “noite de princesa”, sobre ser o segundo espetáculo de balé
que assistimos ao vivo...
Minha mente liga os pontos e é isso! Esse foi o primeiro que
vimos juntos, ao vivo! Paul me levou para assistir, in natura, a um
dos meus espetáculos favoritos: O Lago dos Cisnes!
Lago dos Cisnes é uma peça de balé em quatro atos, que
conta a história do príncipe Siegfried, que se apaixona por
Odette, uma princesa transformada em cisne por um
feiticeiro malvado, sendo destinada a viver assim até ser resgatada
por um homem que lhe jure amor eterno. O príncipe, disposto a
quebrar o feitiço, é enganado pelo feiticeiro e acaba jurando amor
eterno à Odile, sua filha. Siegfried, então, tem de lutar com o
feiticeiro, para conseguir juntar-se a Odette, o seu verdadeiro
amor.
Paul providenciou tudo naquela noite, deliberadamente? Será
que compreende a intensidade dessa metáfora? É assim que ele me
enxerga, Odette e Odile, o bem e o mal lutando dentro de mim,
assombrados por um feiticeiro chamado passado?
Meu Deus!
Agora eu entendo! Por isso a confissão apaixonante que fiz a
mim mesma, ao luar! O meu coração já sabia! E eu o beijei neste
dia, abrindo mão das minhas crenças e tabus, sexuais e afetivos.
Sinto o meu coração disparar! Lembro-me da docilidade de Paul
com a minha mãe. Da tarde com Nana. Da animação com Cliff. Dos
nossos ciúmes e medos. Da minha noite de princesa. Das diversas
declarações de amor...
É isso! Agora está tudo claro! Paul Newman era a pessoa que
iria me livrar da minha maldição. O único capaz de resgatar a minha
Odette, o amor, a pureza, a bondade e a esperança. O homem que
iria me devolver à vida, me fazendo renascer em meio às penas.
Paul Newman é o meu Príncipe Siegfried!
Essa revelação vem como uma bomba avassaladora no meu
coração. Conheço Paul há exatos quatorze dias! Ele entrou na

225
minha vida fragilizando todos os meus mecanismos de defesa, me
instigando a descobri-lo, me levando a fazer concessões, me permitindo
sentir algo além de dor...
Esse homem, Paul, príncipe Siegfried é o meu salvador!
E agora eu sei tudo o que preciso saber sobre ele, sobre nós. É
o conhecimento supremo, o máximo do mínimo. Eu o amo! Amo
Paul desesperadamente, com o meu corpo, a minha mente, o meu
coração e a minha alma! Somos completamente um do outro! A
vida, Deus, ou o que quer que seja, achou que eu deveria ter uma
nova chance. Uma chance de 1.88m, de olhar doce e penetrante,
de palavras gentis e calorosas. Paul é o meu anjo da guarda, o meu
sopro de vida, a minha segunda chance de amar e ser feliz!
Sinto uma vontade desesperada de vê-lo. Preciso dizer que o
amo! Preciso aceitá-lo, definitivamente, na minha vida. Quero ser
a sua Odette e ajudá-lo a derrotar o malvado feiticeiro. Quero amá-
lo, cada poro de sua pele, cada nuance da sua alma. Amar o seu
belo coração.
Eu o amo! Esmagadoramente!
Tenho vontade de gritar, de sair correndo. Preciso vê-lo! Não
posso falar isso pelo telefone. Tenho que olhar em seus olhos,
abraçá-lo, beijá-lo e fazer amor com ele, adorando o seu corpo com
toda a minha energia vital. E isso só será possível amanhã! Ele só
volta amanhã! Como vou conseguir me conter?
Tomo um susto quando o meu celular apita o som de mensagem.
Pego correndo e leio.

“Que bom que chegou bem e que se comportou. Gosto de saber


que, mesmo longe, você continua sendo minha. Amo você. P.”

Eu também amo você! — quero gritar para ele!


Estou nervosa. Olho no relógio e são três da manhã. Seis horas
por lá. Por que ele está acordado tão cedo? Abro o WhatsApp.
“Pq está acordado tão cedo?”
A resposta é imediata.
“Acho q a pergunta melhor seria pq vc está acordada tão tarde?”
“N consigo dormir.”
“Pq?”
“Por nada.”
“Fale, K.”
Ele me conhece tão bem.
“Estou angustiada.”
“O que está havendo?”
Não posso falar isso pelo telefone. Ele merece mais, muito mais.
Preciso me conter.
“Sinto a sua falta.”
“Ah, linda, tb sinto mto a sua.”
“Vc precisa mesmo ficar aí até amanhã?”
“Preciso, K. Esse coquetel é uma importante oportunidade d
fechar um negócio q pode ajudar mto na construção do Gellmand.
N posso perder isso.”
“Td bem.”
“Vc n pode mesmo vir?”
“N posso. Amanhã é a nossa segunda reunião c o novo cliente.”
“Ah, q pena...”
“É.”
“Vc devia tentar dormir um pouco. Vai estar morta amanhã.”
“Eu vou tentar.”
“K...”
“Hum?”
“Tem alguma coisa t perturbando q vc n está m dizendo?”
“Só a sua ausência. Volte logo.”
“Como é bom saber disso.”
Ele nem imagina o quão mais eu tenho a dizer. Mas esperei até
hoje, posso esperar mais um dia.
“Vou tentar dormir.”
“Isso, linda, durma um pouco. Qqer coisa q precise, eu estou
aqui. Estou sempre aqui.”
Meus olhos se enchem de lágrimas, mais uma vez. E elas caem,
sem pedir licença, sem pudor e desenfreadas, pelo meu rosto.
“Eu sei q está. Obrigada.”
“N tem de q.”
“Mil bjs p vc, Paul.”
“Tds p vc, K.”
“Tchau.”
“Tchau, linda.”
E embalada pelo calor das palavras dele, finalmente adormeço.

Passei a sexta-feira irrequieta e nervosa. Meus colegas tiveram


o bom senso de não me perguntarem o que acontecia. Eles viram
que eu estava prestes a explodir a qualquer momento.
Paul me ligou de manhã e à tarde, os únicos dois momentos do
dia em que me senti realmente calma e aquecida. Antes do
coquetel, ele me envia uma mensagem:

227
“Linda, estou indo para o coquetel. Prometo me comportar tal
qual você se comportou na noite das meninas. Será péssimo não
tê-la comigo. Ansioso por amanhã. P.”

Sorrio e respondo.

“Aproveite. Confio em você. Ansiedade não descreve a minha


espera por amanhã. K.”

Depois da reunião, saio do trabalho e vou visitar Andrew.


Encontro Eva, que me recebe com muito carinho. Falo por um
tempo com ela, como sempre faço antes de entrar para vê-lo.
Somos despertadas da nossa conversa tranquila, quando duas
enfermeiras entram correndo pela UTI. Levanto de um salto. Uma
delas sai para procurar o médico, e a outra se encaminha para nós,
enquanto uma terceira entra, portando alguns instrumentos nas
mãos.
— O que aconteceu? — pergunto, assustada.
— Vocês são as acompanhantes do Sr. Carten? Hoje é o meu
primeiro dia aqui e ainda não conheço vocês, estava a pouco tempo
me inteirando da sua situação — a enfermeira explica.
— Sim! – Eva responde, prontamente. — Eu sou a mãe dele e
essa é a Karen, amiga da família.
— Pois Sra. Carten, Srta. Karen é um prazer informar que o Sr.
Carten acaba de acordar.
into uma vertigem, que me faz cambalear e cair na poltrona.
Eva se abana, freneticamente. A enfermeira continua:
— Checamos os sinais vitais e está tudo certo. A respiração
está estável. Iremos remover a traqueostomia e fechar o acesso,
para que o paciente consiga se comunicar. Assim, saberemos como
está a memória, orientação e afins.
Estou tonta. Sinto o ar queimando as minhas vias aéreas.
Ele acordou! Andrew acordou!
— Quero ver o meu filho! Posso vê-lo? — Eva pergunta, com a
voz tomada pela emoção.
— Daqui a alguns minutos chamaremos a senhora. Iremos só
realizar os procedimentos que expliquei, e volto para avisá-la — a
enfermeira diz e, imediatamente, volta para a UTI.
Eu não consigo falar, nem me levantar. Não tenho reação.
Escuto a voz de Eva ao telefone:
— Linda, minha filha, Andrew acordou, avise ao seu pai e
venham para cá. Ele voltou!
Eva me abraça, começa a chorar e só consigo passar as mãos
em suas costas. Acho que estou em choque.
Nosso Andy de volta! Filho da mãe!
Passado algum tempo, a enfermeira retorna.
— Vamos, Sra. Carten? Apenas a senhora, por enquanto.
Eva se levanta de um salto e segue para a UTI. Não faria
diferença se eu pudesse entrar. Não sei se consigo me colocar sobre
as minhas pernas. Acho que me transformei em uma gelatina
gigante.
Pego o meu celular, com as mãos tremendo de emoção, e mando
uma mensagem no WhatsApp para Paul.

229
“Oi, qdo puder me responde.”
A resposta é quase instantânea.
“Oi, linda!”
“Atrapalho?”
“Está me salvando, na vdd. Esse lugar está insuportável, e
acabei d me despedir d algumas pessoas. Vou embora. N aguento
estar em mais nenhum lugar sem vc. Nada tem graça.”
Meu coração se aquece. Ele me ama! E eu o amo demais!
“Paul, tenho uma notícia maravilhosa!”
“Ah, é?”
“É. Andy acordou!” — e coloco mil carinhas sorridentes em
seguida.
“Uau! É sério?”
“É! Recebemos a notícia há meia hora, + ou -.”
“E como ele está?”
“Ainda n sei, n pude entrar. Mas tiraram a traqueostomia e ele
está respirando sozinho.”
“Q bom, K! Adoro saber q vc está feliz!”
Sorrio largamente.
“Eu sei. E sei tb q vc realmente me ama. Pensei mto sobre nós
e quero desesperadamente conversar com vc. Estou finalmente
compreendendo um monte d coisas.”
“Jura? Agora me deixou curioso!”
Uma enfermeira aparece e chama a minha atenção.
“Paul, estão me chamando para vê-lo.”
“Está bem, vai lá.”
“Volta logo!!!”
Guardo o celular. Não vejo se ele respondeu. Não há tempo
agora, preciso ver o meu amigo. Acompanho a enfermeira e entro
na UTI. O olhar de Andrew, imediatamente, pousa sobre mim. Os
olhos estão cansados, com as pálpebras caídas, mas abertos.
Alguém está molhando os seus lábios com pedrinhas de gelo, até
que ele faz um gesto, demonstrando que está satisfeito.
Ele está aqui! Não acredito. Ele voltou!
Andrew me chama com um gesto de sua mão, e eu me aproximo,
entrelaçando o meu indicador ao dele. Espero alguns segundos por
alguma reação. Ele abre um sorriso fraco, mas sincero, e balbucia
a sua primeira e rouca palavra:
— Cake.
— Ah, Andy! — e me jogo em cima dele, abraçando-o e dando
um milhão de beijos distribuídos pelo seu rosto.
— Você está aqui — ele sussurra.
— Claro que estou! Onde mais eu estaria, seu idiota? —
pergunto, e as minhas lágrimas caem sobre ele.
— Meu Deus... — ele diz.
— O que foi? — pergunto, levantando e conferindo sua
expressão, seus braços, procurando por alguma coisa que possa
estar errada.
— Você está chorando! — ele sussurra.
Limpo as lágrimas, constrangida. Tomo a sua mão e a beijo,
muitas vezes. Sento-me na cadeira ao seu lado, aproveitando que
Eva foi conversar com o médico.
— Andy, você se lembra do que aconteceu?
Ele pensa um pouco.
— Lembro que discutimos. Eu peguei o carro, mas tinha bebido,
e no caminho para casa apareceu uma imensa mancha cinza na
minha frente.
O poste.
— Ah, Andy, é tudo minha culpa! Eu não devia ter te mandado
embora. Você tinha bebido, estava nervoso e, para piorar, estava
chovendo naquele dia. Eu não devia ter deixado você dirigir nesses
termos. Me perdoe, eu me arrependo tanto, tanto... Daria tudo para
estar no seu lugar! — digo, em meio às lágrimas.
Ele solta a mão da minha e afaga a minha cabeça.
— Você tem o meu coração, isso te absolve de todos os pecados
— sussurra.
Nesse momento, Eva, Joe e Linda entram, de forma nada
discreta, pela porta.
— Ah, meu irmão! — Linda fala, em meio às lágrimas, colocando
as mãos em suas bochechas e beijando mil vezes a sua testa.
— É, seu filho da mãe, você ainda me mata! — Joseph diz, dando
um soco de leve na ponta do pé dele.
— Linda, chega, você está me afogando. Bom te ver também,
pai! — Andrew diz, sorrindo.
O momento efusivo dura alguns minutos, até que o médico
aparece para dar uma olhada em Andrew e nos orientar.
— Olá, estamos tendo uma festinha na UTI? — pergunta, mas
graças a Deus parece estar bem humorado. — Vou precisar pedir
aos convidados que se retirem, para que eu possa verificar se o
presente aqui está adequado para uso.
Saímos a contragosto. Na sala de espera, nos abraçamos em
círculo.
Ele voltou!

231
Já se passaram mais de duas horas desde que Andrew acordou.
O médico optou por realizar uma tomografia para checar a atividade
cerebral e um Raio-X do tórax para certificar-se de que os pulmões
se recuperaram completamente. De lá, Andrew seria transferido
para um quarto. Desde então, estamos aguardando por notícias.
Linda e eu demos as mãos. Seus olhos estão fechados e acho que
está rezando, pois a boca se mexe sem emitir nenhum som.
Imediatamente, agradeço a Deus em pensamento pelo meu amigo
estar de volta.
Hoje realmente é o dia mais especial do mundo! Descubro que
amo Paul, que ele é o meu salvador e, para melhorar, Andrew volta
do coma, aparentemente bem e sem grandes sequelas.
Pensar nos dois, me lembra da promessa. Estremeço. Será que
Andrew ouviu? Será que se lembra? Não posso cumpri-la, não
agora. Eu amo Paul, ele é o meu calor. Sem ele, a vida é fria e
escura. Não posso mais ficar longe. Isso iria me matar.
Em contrapartida, amo Andrew. Ele é meu amigo, minha alma
gêmea. Sem ele, a minha vida teria sido completamente vazia e
solitária. Também preciso dele. Cada um dos dois ocupa o próprio
espaço dentro de mim, que é só deles. E eu os quero lá, cada qual
em seu devido lugar na minha vida.
Sem perceber, me pego sussurrando, quando abro os olhos e
vejo Linda me encarando, com o semblante sério.
— Que Andy não se lembre, que ele não se lembre...
— Não se lembre do que, Karen? — Linda pergunta.
— Linda, me perdoe, eu...
— Karen, eu já falei, você não pode cumprir essa promessa. Só
iria machucar os dois. Vocês seriam extremamente infelizes. Por
favor, reconsidere. De qualquer maneira, acho que está se
torturando à toa. Ele estava em coma, nem deve ter ouvido — ela
diz, com o rosto impassível.
Abaixo a cabeça. O pensamento em Paul e um medo terrível me
atravessam a espinha.
Os enfermeiros finalmente aparecem, junto com o médico.
— Então? — Joe pergunta, com o semblante preocupado.
— Nenhuma sequela cerebral, pulmões limpos e, se continuar
assim, dentro de poucos dias o paciente poderá ir para casa! — o
médico diz, e nos abraçamos novamente. — Ele já está no quarto
302, mas agora precisamos deixá-lo repousar, sua volta à vida foi
bem exaustiva. Vocês podem ir para casa descansar, ou se
acomodar na sala de espera do terceiro andar.
A enfermeira espera o médico se afastar um pouco e pergunta,
baixinho:
— Quem é Cake?
Eu coro e, timidamente, levanto a mão.
— Sou eu.
Ela sorri.
— O Sr. Carten insiste, veementemente, em falar com você. Para
ele não me deixar louca essa noite, darei a vocês dois cinco
minutos. Ele precisa mesmo descansar, mas é muito teimoso! —
diz, nos chamando para segui-la no caminho para o terceiro andar.
Antes de entrar no quarto, Linda aperta a minha mão, como que
para me lembrar do que acabamos de conversar. Eu a abraço,
sussurrando em seu ouvido:
— Vai ficar tudo bem, eu prometo.
Ao entrar no quarto, encontro Andrew sorrindo para mim.
— Cake! — e a voz parece menos fraca, apesar do aspecto mais
cansado de seu rosto.
— Oi! Você devia estar descansando. A enfermeira me deu cinco
minutos — digo, entrelaçando o meu indicador ao dele.
— É mais do que suficiente. Preciso te contar o que aconteceu
comigo nesses dias de sono profundo. Cake, eu estava indo
embora. É como se caminhasse por uma estrada escura, dentro de
mim mesmo. Fiquei muito tempo procurando uma saída, mas não
via nada. Andei, andei e então avistei um ponto de luz, pequenino,
longe. E veio junto com uma melodia, que no início não compreendi,
até que foi ficando mais nítida, e eu pude identificar. Quando ouvi
com clareza, percebi que era a sua voz.
Ah meu Deus!
Sinto o meu corpo todo ficando gelado.
— Você me pedia para voltar, dizia que estava arrependida e que
me amava. Dizia para eu lutar por você, por nós dois, que era
minha, ou que seria minha... Que ficaríamos juntos... Não me
lembro bem, estava tudo muito confuso — ele para, franzindo a
testa, como se tentasse se lembrar.
Começo a me sentir mal. Um misto de tonteira, enjoo, e sinto a
bile subindo à garganta.
— E eu lutei para seguir aquela doce voz, a sua voz, porque eu
precisava voltar, precisava saber se era real. E estou aqui!
Consegui! Mas eu preciso saber, Cake... Foi real? Isso aconteceu,
ou foi um sonho, uma ilusão, um delírio? Por favor, Karen, eu
preciso mesmo saber. Porque a minha vontade de viver, foi
proporcional à minha esperança de ter uma vida com você! —

233
Andrew diz, apertando o meu dedo com os seus, me observando
com os olhos suplicantes e marejados.
De repente, tudo fica escuro. Sinto o baque duro do chão contra
o meu rosto. Percebo vozes ao fundo e um movimento de pés ao
meu redor.
Ouço um zumbido.
Está tudo sombrio e silencioso.
Fecho os olhos.
Sinto frio.
Muito frio...
PAUL

deio viajar de classe econômica. As poltronas são apertadas


demais, e me sinto desconfortável, mas foi o que consegui
de última hora. Na verdade, dei sorte de ainda encontrar
um lugar agora, de madrugada. Vale à pena, porque não aguento
mais ficar longe dela. E parece que ela também não está nem um
pouco satisfeita em ficar longe de mim. Perceber isso me deixou
tão feliz, que me fez querer voar logo, de volta para o seu colo. Seu
abraço. Sua cama. Amo Karen em níveis que não imaginei serem
possíveis.
Já me apaixonei por outras mulheres, talvez umas duas vezes.
Mas esse sentimento que existe no meu coração, é algo
completamente novo. Meu mundo inteiro está resumido nela. Seus
olhos lindos, castanhos e que ficam esverdeados no sol. Seu lindo
e comprido cabelo, cor de chocolate. Seu rosto doce, com a boca
pequena e rosada, nariz fino e delicado e bochechas desenhadas,
no estilo Brigite Bardot. E aquele corpo... A pele alva e branca,
enfeitada com pequenas e claras sardas sobre os ombros, os seios
firmes e de tamanho perfeito para as minhas mãos, com mamilos
rosados e quentes, a cintura bem marcada, arredondando aquele
quadril desenhado, a bunda pequena e empinada, as pernas
deliciosas, com músculos delicadamente aparentes...
Mas não é só a sua beleza. É todo o conjunto. Karen é esperta,
dona de um humor sagaz, além de muito inteligente. E é muito mais
forte do que imagina. Passou por tanta coisa e ainda se mantém de
pé. E é justamente essa força que a torna tão frágil. O fato de não
enxergar o quão é vencedora, a torna vulnerável, mas ainda mais
bonita. Eu senti vontade de conhecê-la desde a nossa primeira
reunião. Quis cuidar dessa menina desde o nosso encontro no
supermercado. E me apaixonei de fato por ela, no dia em que foi

235
me ajudar com o fogão. Talvez antes. Bendita mania obsessiva que
eu tenho de deixar a válvula de gás fechada. Foi a melhor das desculpas.
Já li e reli suas mensagens várias vezes. O que será que ela quer
conversar? O que ela diz que, finalmente, compreendeu? Minha
menina tem se mostrado tão receptiva e aberta a mim,
ultimamente, que não consigo pensar que não seja algo de muito
bom.
Ela sente a minha falta.
Confessou estar apaixonada.
Chorou de emoção e amor nos meus braços.
E, agora, seu amigo acordou e ela está feliz. Menos uma nuvem
sobre Karen, sobre nós. Certamente, ele não se lembrará da
promessa desesperada que ela fez.
Minha menina... Sempre querendo consertar o mundo.
Fico imaginando o seu rosto. Sei que está feliz e gostaria de
adorá-la nesse momento. Seu sorriso, cada vez menos raro, é a
coisa mais linda do mundo inteiro. Quando Deus a fez, deve ter
dado um enorme sorriso, que imediatamente foi capturado por ela.
Olho para a sua última mensagem: “Volta logo!!!”. Estou
voltando, meu amor, porque não aguento de saudade, o vazio da
sua ausência é a pior sensação que existe.
Antes do avião decolar, decido mandar uma mensagem de texto:

“Minha linda, espero que esteja tudo bem. Sei o quanto deve
estar feliz. Gostaria de estar aí para abraçá-la. Não se preocupe em
responder, esse momento é seu e não quero tomá-lo de você. Só
quero que saiba que estou pensando em você. Sua felicidade
também é minha. Simplesmente porque eu te amo! Até logo. P.”

Passam-se alguns minutos e ela realmente não responde. Não


posso esconder uma pontada de decepção, apesar de ter pedido
que não respondesse. Deve estar entretida com o amigo e a família
toda. Encosto a cabeça na poltrona, e meus olhos pesam. Adormeço
brevemente, sonhando com a minha amada Karen. Estamos
patinando em um lago congelado, em meio a milhares de cisnes
brancos como algodão, que coreografam uma dança suave e
emocionante. Acordo, sentindo no fundo do coração o quanto a
amo. E sei que ela, de alguma maneira, também me ama. Espero,
um dia, ter a sorte de ouvir isso de seus lábios. Farei por merecer
o seu amor.
Sinto saudades, mas sorrio. Faltam poucas horas para estarmos
juntos novamente.
À minha mãe, responsável por fazer de mim um rato de
biblioteca, e ao meu pai, por estar presente mesmo na ausência.
Ao meu marido, pela paciência, amor, e por acreditar em mim.
À Carol, que muitas vezes guardou a sua dor no bolso para cuidar
da minha e à Renata, pela amizade, companheirismo e amor, que
nem a distância conseguiu apagar.
À Amanda Carvalho, por ser minha maior companheira nessas
aventuras literárias e quem acompanhou todo o desenvolvimento
desse trabalho.
À minha ex-aluna, Jéssica Balbi, pela boa vontade em
compartilhar a sua experiência e conhecimento em ballet clássico.
À LM Gomes, por toda a ajuda, amor e amizade.
À Juliana Parrini e Giovanna Melo, pelas dicas, paciência, carinho
e incentivo, me encorajando a não desistir dos meus sonhos e
objetivos.
À Debby Scar, Kacau Tiamo, Daniel Fogli, Alexandre Costa e
Monique Ferraz, pela delicadeza com que cuidaram desse projeto
quando o confiei em suas mãos.
À Tatiane Dunkel, pelas lindas palavras de incentivo e carinho e
à Andresa, pela concepção inicial dessa capa maravilhosa e
arrebatadora.
À Catia Mourão e à Ler Editorial, por acolherem e acreditarem no
meu trabalho. Que tenhamos longa vida juntas e milhares de
alegrias!
Ao grupo Lunáticas Por Romances, por me encher de ideias e me
fazer sorrir e às minhas leitoras fiéis do Wattpad, que
acompanharam a obra desde o início. Minhas amadas Jujusetes,
sem vocês, nada disso seria possível. Meus sonhos se tornam
realidade pelo privilégio de poder dividi-los com vocês.
À Karen, Andrew e Paul, que me fizeram companhia e me
inspiraram dia e noite. E a todos que, de alguma forma, estiveram
envolvidos nesse sonho que hoje se torna real.
À todos vocês, meu amor e gratidão.

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