Sei sulla pagina 1di 17

Sete teses sobre Antônio Márcio Buainain2

o mundo rural Eliseu Alves3


José Maria da Silveira4
Zander Navarro5

brasileiro1
Resumo – Este artigo apresenta sete teses que procuram interpretar a situação atual e as tendências
do desenvolvimento da agropecuária e das regiões rurais brasileiras. Com base na primeira tese, que
argumenta sobre a existência de uma nova etapa na história agrícola e agrária do País, instituindo
um novo padrão de acumulação de capital, as demais estão associadas a facetas diversas. As teses
são necessárias para interpretar o momento atual e seus desafios futuros – dos novos desafios para
a produção e difusão de inovações na agricultura à crescente inviabilidade econômica dos esta-
belecimentos rurais de menor porte; da necessidade de melhor ajustamento da ação governamen-
tal à inexistência de uma política de desenvolvimento rural. O texto também sugere, como outra
tese, que essa nova fase pode estar marginalizando a relevância de debates nos quais, no passado,
discutiram-se as regiões rurais e suas particularidades.
Palavras-chave: desenvolvimento agrário recente, regiões rurais brasileiras, tendências sobre o
mundo rural.

Seven theses about the rural world in Brazil

Abstract – This article presents seven theses that intend to interpret the current situation and the
development tendencies for Brazilian agriculture and livestock, and its rural areas. Based on the first
thesis, which argues for the existence of a new phase in the country’s agricultural and agrarian his-
tory, thus establishing a new pattern of capital accumulation, the following six theses are associated
to diverse facets, but the set of theses are necessary to interpret the current state of affairs and future
challenges – from new challenges posed to the production and diffusion of agricultural innovations
to an increasing economic infeasibility of small rural establishments; from the need of better adjust-
ment in government action to the lack of a rural development policy. The article also suggests, as
another thesis, that this new phase may be marginalizing the importance of debates that, in the past,
involved discussions about rural areas and their particularities.
Keywords: recent agrarian development, Brazilian rural areas, trends about rural regions.

1
Original recebido em 30/4/2013 e aprovado em 7/5/2013.
2
Economista, Doutor em Ciência Econômica, pesquisador, professor da Unicamp. E-mail: buainain@gmail.com
3
Economista, Ph.D. em Agricultural Economics, pesquisador da Embrapa. E-mail: eliseu.alves@embrapa.br
4
Engenheiro-agrônomo, Doutor em Ciência Econômica, pesquisador, professor da Unicamp. E-mail: jmsilv@eco.unicamp.br
5
Sociólogo, Ph.D. em Sociologia, pesquisador da Embrapa. E-mail: zander.navarro@embrapa.br

105 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


Introdução Muitos elos analíticos poderiam unir a cur-
ta contribuição de Stavenhagen a alguns dos ar-
Um artigo e uma coletânea escritos na gumentos de Barros de Castro nos Sete ensaios,
década de 1960, respectivamente por um soció- sendo o principal a refutação da existência de
logo mexicano e um economista brasileiro, ofe- “sociedades duais” na América Latina (o notório
receram à literatura sobre “o desenvolvimento” “dualismo cepalino”) e a visão do economista
um conjunto de argumentos inovadores. Ambos sobre “as funções da agricultura” no processo
curiosamente coincidiram sobre o número sete, de expansão capitalista brasileiro – discutidas
o qual englobaria os focos principais acerca dos no segundo ensaio do livro. Para as teses então
temas que então os autores adiantaram para o dominantes, os ambientes rurais representariam
debate público. O artigo Siete tesis equivocadas o epítome do atraso econômico e das práticas
sobre América Latina, de Rodolfo Stavenhagen, sociais e políticas conservadoras, materializando
foi publicado no diário mexicano El Día, em ju- bloqueios estruturais à expansão de uma socie-
nho de 1965. Já o economista Antônio Barros dade moderna. Castro, por seu turno, insistiu que
de Castro lançou seu livro Sete ensaios sobre a na história nacional a agricultura não se consti-
economia brasileira em 1969 (CASTRO, 1969), tuíra em freio à industrialização, ainda que seu
publicação que representou uma criativa pro- desenvolvimento não tivesse seguido uma via
posta analítica, introduzindo uma visão que, na similar à dos países do capitalismo avançado. E
ocasião, já prenunciava o futuro polemista. Esse advertiu, em premonitória observação de grande
autor foi notável interpretador dos processos relevância: sem a democratização da proprieda-
econômicos do País6. Em especial, foram autores de da terra, as regiões rurais exportavam a de-
que confrontaram as narrativas dominantes com sigualdade social do campo para a cidade, por
a ortodoxia então prevalecente. Já na abertura meio de processos migratórios das famílias mais
desse artigo, uma advertência de Stavenhagen pobres. Adicionalmente, sua análise adiantava
ilustra os motivos que animam o presente artigo, uma interpretação que os fatos posteriores com-
em face da similaridade dessa advertência com provaram à exaustão, conforme a síntese de dois
parte da bibliografia brasileira que atualmente estudiosos de sua obra:
discute o desenvolvimento da agricultura7. Na
(...) O “Ensaio 2”, do livro Sete Ensaios..., é
ocasião, alertava o sociólogo mexicano que
uma das mais instigantes interpretações sobre
(...) En la literatura abundante que se ha produ- a relação de agricultura e indústria escrita no
cido en los últimos años sobre los problemas Brasil (...) Castro argumentou que a agricultu-
del desarrollo y del subdesarrollo económico ra brasileira contribuiu com a industrialização
y social se encuentran tesis y afirmaciones por meio da geração e permanente ampliação
equivocadas, erróneas y ambiguas. A pesar de excedente de alimentos e matérias-primas,
de ello, muchas de estas tesis son aceptadas da liberação da mão de obra e da transferên-
como moneda corriente (...) Pese a que los he- cia de capitais. O autor mostrou que, apesar
chos las desmienten, y a que diversos estudios do crescimento da população e da renda bra-
en años recientes comprueban su falsedad, o sileiras, o País não foi pressionado a aumen-
cuando menos hacen dudar de su veracidad, tar significativamente suas importações de
dichas tesis adquieren fuerza y a veces carác- alimentos (...), não foi obrigado a reduzir a
ter de dogma (STAVENHAGEN, 1965). expansão de suas exportações agrícolas pela

6
Em divertida ironia, o livro continha, de fato, apenas seis artigos. O sétimo não foi concluído pelo autor e foi publicado apenas posteriormente, embora o
título cabalístico de “sete ensaios” tenha sido mantido. Em mais uma ilustração, analisando os “fatos marcantes” acerca da agricultura brasileira, Alves e
colaboradores também listaram sete fatos considerados principais (ALVES et al., 2013).
7
É preciso que sejam claras as distinções conceituais entre expressões como “desenvolvimento agrícola”, “desenvolvimento agrário” e “desenvolvimento
rural”, para não citar outros termos correlatos e analiticamente próximos. Como é muito débil a história institucional brasileira, no tocante a ações estatais
estratégicas de indução à transformação social e econômica nas regiões rurais (que seria o “desenvolvimento rural”), as quais supõem prévias interpretações
acerca do “desenvolvimento agrário”, as tradições brasileiras, na literatura, confundem frequentemente tais expressões. Não se adentrará em tal campo
conceitual, mas os autores estão pressupondo que tais distinções conceituais são conhecidas dos leitores. Sobre o tema, consulte-se Navarro (2001).

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 106


pressão da demanda doméstica de terras para produção de alimentos baseado em pequenos
a produção de alimentos e, ainda, a agricultu- produtores de baixa produtividade, destaca-se
ra brasileira aumentou a oferta de alimentos atualmente como um dos setores mais dinâmi-
liberando mão de obra para suprir a demanda
cos da economia. É a base de cadeias produtivas
de trabalhadores no setor urbano da econo-
mia (...) a contribuição do setor foi importante que, no conjunto, produzem um quarto do PIB
ao permitir que o mercado urbano, que surgia nacional e aproximadamente um quinto do em-
da substituição das importações e não do au- prego total, mas, sobretudo, são extraordinários
mento da demanda das regiões agrícolas, se vetores do desenvolvimento social do interior
expandisse, sem que fosse estrangulado por do País, tanto em territórios da fronteira quanto
problemas gerados na oferta de alimentos ou
na reestruturação virtuosa de áreas de ocupa-
na incapacidade da agricultura de liberar mão
de obra para as cidades ou capitais (PRADO; ção agrícola antigas e estagnadas. Tome-se, por
BASTIAN, 2011, p. 245-246). exemplo, a produção da safra 2012–2013, que,
embora pontual, oferece uma ideia da riqueza
Essas observações iniciais, representativas
gerada e da importância para a economia bra-
de diminuta parte de um gigantesco debate sobre
sileira: estima-se que o valor bruto da produção
o desenvolvimento ocorrido meio século atrás,
inspiram este artigo por várias razões8. Primeiro, (VBP) dos 20 principais produtos é de 305 bi-
porque assiste-se hoje, tal como aqueles autores, lhões de reais, soma que parece inacreditável.
ao distanciamento entre os processos concretos Se apenas uma parte do VBP previsto, por exem-
que demandam explicação, de um lado, e parte plo, for cotejada com o lucro líquido total das 20
significativa das interpretações e da literatura, de maiores empresas brasileiras (públicas e priva-
outro lado. Trata-se de um hiato entre “teoria e das), obtido em 2012, somente a riqueza prevista
realidade” que contribui para a persistência das na colheita de 2 produtos (milho e soja) deverá
“afirmações equivocadas, errôneas e ambíguas” ser quase 50% maior do que o total do lucro
(Stavenhagen), as quais poderiam ter tido alguma amealhado por aquelas 20 empresas que são as
validade para explicar realidades que já foram mais rentáveis do País (146 bilhões e 104 bilhões
transformadas, mas atualmente embaralham os de reais, respectivamente).
debates sobre o mundo rural brasileiro.
O texto pretende arrolar alguns focos de
Em segundo lugar, aqueles comentários análise sobre a agricultura (ou, em sentido am-
do passado permitem destacar o impressionante plo, sobre “o mundo rural brasileiro”) na forma
contraste entre os contextos produtivos da épo- de teses, mantendo assim a expectativa de es-
ca e os atuais. Os dois cientistas sociais citados
timular o debate sobre o estado atual das ativi-
realçaram, sobretudo, o atraso social, o primiti-
dades agropecuárias e alguns aspectos da vida
vismo tecnológico e produtivo dos setores agro-
social rural, além de apontar algumas de suas
pecuários, a natureza politicamente reacionária
tendências futuras. Há uma seção inicial, na qual
da vida no campo e a pobreza então dissemina-
da. Meio século depois, o contraste, pelo menos três processos sociais são explicitados. Sem a sua
em relação ao caso brasileiro, não poderia ser aceitação, as sete teses, apresentadas sintetica-
mais abissal, particularmente se concretizadas as mente nas seções seguintes, se tornariam ilógicas
projeções de médio prazo da produção agrope- ou inconsistentes. São premissas que definem o
cuária (PROJEÇÕES..., 2013). As diferenças são contexto de mudanças do último meio século de
admiráveis. A agricultura brasileira, tradicional- transformações, semeando os pilares que anun-
mente entendida como um binômio que articu- ciariam um novo período no desenvolvimento
lava um enclave exportador com um setor de das atividades agropecuárias no Brasil.

8
Seria uma desmedida presunção qualquer comparação deste artigo com os textos daqueles renomados autores.

107 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


As sete teses e seu contexto foram aqueles principalmente atraídos para o
processo de expansão? Essa investigação ainda
contemporâneo
não foi realizada e, assim, sabe-se apenas epi-
É preciso, inicialmente, situar historica- sodicamente sobre as responsabilidades sociais
mente o debate proposto em relação a três di- (e produtivas) dos diversos atores. Mas sustenta-
mensões chaves: a temporalidade do processo se que os atores centrais não foram os mem-
(quando), os atores e grupos sociais (quem) e bros da velha oligarquia agrária, os quais teriam
os catalizadores e oportunidades (como) que modernizado seus latifúndios em um processo
concretizaram as transformações referidas pelo conservador de “mudar a forma para manter a
conjunto das teses apresentadas nas páginas essência”, um argumento central do influente li-
seguintes. vro de Silva (1982). Sem citar outros subgrupos
de produtores, a expansão iniciada no final da
O primeiro elemento de contextualização
década de 1960 moldou a formação de uma ge-
se refere ao ponto de partida do processo de de-
ração de agricultores, especialmente sulistas. Es-
senvolvimento agrário que fomentou a formação
tes, movidos por múltiplas razões – de natureza
de uma economia agrícola orientada, de fato,
familiar, econômica e financeira –, migraram em
por um modo de funcionamento essencialmen-
busca de renda e lucro para as diversas regiões
te capitalista. Quando teve início o processo?
da fronteira agrícola, difundindo o novo padrão
A que período histórico se refere? As perguntas
técnico e seu obrigatório e correspondente mo-
poderiam gerar incontáveis debates (KAGEYA-
delo organizacional. No Centro-Oeste, foram
MA, 1990), mas, neste texto, tal origem obede- principalmente os produtores sulistas que ativa-
ce a uma datação relativamente precisa. Não ram o crescimento da produção (com destaque
obstante marcantes histórias agrárias e agrícolas para a soja, uma vez adaptada aos ecossistemas
setoriais e regionais, especialmente o caso do tropicais). Outros grupos, em diversas regiões do
café em São Paulo (mas também o arroz no Rio País, também operaram um conjunto de mudan-
Grande do Sul, a cana-de-açúcar no Nordeste, ças similares, embora em época mais recente –
o cacau no sul da Bahia, entre outras situações oriundos de São Paulo e do Triângulo Mineiro.
regionais), as raízes mais promissoras da moder- São produtores com diversos perfis, responsáveis
na agricultura brasileira nasceram na década de pela expansão da cana-de-açúcar, da moderna
1960, com a instituição do sistema de crédito pecuária de corte e de leite, da horticultura e
rural e a implantação de um modelo de moder- da floricultura – que hoje é praticada sob novas
nização da agricultura largamente inspirado no técnicas organizacionais (de norte a sul) –, res-
caso norte-americano e fundado em um tripé pondendo até mesmo pelo dinamismo dos polos
indissolúvel: crédito rural subsidiado, extensão de irrigação no Nordeste. São ilustrações sociais
rural e pesquisa agrícola por instituições públi- que, no período contemporâneo, se espalharam
cas. Ainda que tenha sido um processo discrimi- em todo o País.
natório quanto às regiões, aos tipos de cultivos
Finalmente, a terceira indagação, pouco
favorecidos e aos beneficiários, aquele esforço
conhecida na literatura, diz respeito a como
inicial assentou as condições para a conforma-
se desencadeou a intensificação tecnológica
ção da agricultura moderna tal como a conhe-
e produtiva que catapultou as atividades agro-
cemos hoje; além disso, os debates em torno do
pecuárias às alturas. Não se está referindo aos
processo de modernização cimentaram as bases
mecanismos que promoveram a expansão na
da compreensão hoje dominante – com os seus
década de 1970, mas àquelas mudanças ins-
acertos e equívocos – sobre a agricultura do País.
titucionais, menos conhecidas, que durante a
Uma segunda pergunta que situa o deba- década de 1990 corrigiram parte dos bloqueios
te se refere a quem, em especial, ativou tal pro- então existentes, tendo promovido a estabiliza-
cesso de mudança. Que grupos de produtores ção monetária e promovido um esforço de re-

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 108


organização do Estado e suas políticas visando rida no pós-guerra, nos Estados Unidos, quando
ao desenvolvimento agrícola. Foi instituído, por igualmente enraizou-se uma compreensão tec-
exemplo, um novo padrão de financiamento da nológica e organizacional do setor em regiões
agricultura (que contou crescentemente com que anteriormente eram profundamente diversas
recursos privados), além de uma nova política no tocante à dinâmica agrícola.
cambial (em 1999), o que tornou os produtos de Em segundo lugar, esses padrões técnicos
exportação mais competitivos.9 e organizacionais vão se afirmando em ambien-
Mas, assim como a expansão produtiva no tes profundamente diferenciados, conformando
período pós-68 demandou financiamento exter- uma visível heterogeneidade estrutural, decor-
no, também esse segundo momento expansivo rente e caracterizada por distintas dinâmicas agrí-
desencadeado no final da década de 1990 con- colas que exigiriam uma igualmente diferenciada
tou com um formidável fator catalizador externo ação governamental – o que ainda não ocorreu
que, de fato, fez o processo acelerar e assumir com inteligibilidade operacional que garanta a
magnitudes impensáveis. Trata-se do cresci- sua efetividade. A heterogeneidade não decorre
mento espetacular das importações chinesas de apenas (e nem principalmente) de padrões tec-
commodities, entre as quais, de soja. De 1996 nológicos supostamente excludentes, mas tam-
a 2011, a China multiplicou por 400 as impor- bém da combinação de um grande número de
tações da leguminosa oriunda do Brasil, tendo situações e fatores. Estes ainda precisam ser estu-
elevado o País à condição de segundo maior ex- dados para compreender por que, por exemplo,
portador de soja para o país asiático. o mapa do Mato Grosso, um polo de dinamis-
mo da produção de grãos, está manchado de
Reunidos tais fatores (conhecimento tec-
regiões dinâmicas ao lado de outras fortemente
nológico, um grupo de produtores preparados e
atrasadas, embora ambas tenham recursos natu-
uma nova ordem político-institucional), ativados
rais semelhantes. A heterogeneidade se manifes-
pela ampliação dos mercados externo e inter-
ta tanto em condicionantes institucionais atuais
no, o processo modernizante se espalhou cele-
quanto em expectativas quanto ao futuro, e em
remente pelo território, tendo produzido alguns
diversas regiões. Estende-se da região amazôni-
impactos facilmente verificáveis em um grande
ca, cada vez mais blindada normativamente, em
número de regiões. Pelo menos três desses resul-
virtude dos imperativos ambientais, ao Nordeste
tados se destacam no Brasil rural.
rural. No Nordeste rural, a produção vai sendo
Primeiramente, a expansão produtiva re- igualmente engessada, tanto pela fragmentação
cente se baseia em padrões técnicos e organiza- extrema na posse da terra e condições inclemen-
cionais que modificam, de forma considerável, tes de produção – que tendem a agravar-se com
tanto os condicionantes quanto a dinâmica das as mudanças climáticas –, quanto pelo potencial
atividades agropecuárias. De forma acelerada, esvaziamento demográfico do meio rural em
esses padrões se tornam cada vez mais “natu- face dos níveis de pobreza (em comparação com
rais”, universalizando uma racionalidade geren- as oportunidades de emprego urbano). A hetero-
cial que abrange a escolha tecnológica e o uso geneidade é observável até dentro de um estado
dos recursos, via decisória que é cada vez mais de ocupação agrícola antiga – em São Paulo, por
difundida entre os diversos atores produtivos, exemplo, existem polos radicalmente distintos de
públicos e privados. Percebe-se, como resul- dinamismo, bastando comparar as regiões da ca-
tado, uma nítida analogia entre a dinâmica da deia sucroenergética com as áreas rurais do Vale
transformação atual no Brasil e a expansão ocor- do Ribeira (GONÇALVES; GONÇALVES, 2013),

9
Ainda está para ser devidamente analisado, por exemplo, o papel não apenas daquelas mudanças citadas, mas também de outras, provavelmente de igual
relevância. De um lado, por exemplo, está a sequência iniciada com a Lei de Biossegurança (BRASIL, 1995), a Lei de Propriedade Industrial (BRASIL, 1996)
e a Lei de Cultivares (BRASIL, 1997), e de outro lado, o conjunto de normas aprovadas no campo ambiental, culminando com a Lei de Crimes Ambientais
(BRASIL, 1998).

109 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


especialmente a introdução e a segunda seção. tos, a principal fonte de formação e apropriação
É urgente uma leitura correta das diferenças re- de riqueza no campo era a terra (especialmen-
gionais, a qual contribua para melhor redefinir as te antes da década de 1980), o que inevitavel-
políticas públicas correspondentes. mente atribuía forte centralidade à sua posse e
propriedade. Por essa razão, o espaço rural e a
Finalmente, o terceiro impacto que ainda
agricultura foram determinados pelos mecanis-
requer análise está gerando e difundindo trans-
mos de ocupação das fronteiras em processos
formações e tendências já observadas em ou-
de acumulação principalmente patrimoniais,
tros países, entre as quais o papel determinante
baseados na terra e no uso de mão de obra de
das cadeias produtivas (ou cadeias de valor) na
baixíssima remuneração, sem que a produtivi-
conformação produtiva, tecnológica e, especial-
dade jamais tivesse sido o motor principal do
mente, financeira das regiões rurais. A análise
processo. Já o novo padrão introduz o capital
das cadeias produtivas mais sofisticadas – e, por
“em todas as suas modalidades” no centro do
isso mesmo, as mais “rígidas” (por exemplo, a
desenvolvimento agrícola e agrário. Rebaixa o
cana-de-açúcar, a suinocultura e a avicultura) –
papel da terra, pois a produção e as rendas agro-
evidencia caminhos de configuração que prova-
pecuárias passam a depender, crescentemente,
velmente refletem o futuro das demais cadeias dos investimentos em infraestrutura, máquinas,
ora em formação. tecnologia e na qualidade da própria terra, além
Depois de tais considerações iniciais, as de investimentos em recursos ambientais e no
partes seguintes deste artigo introduzem sete treinamento do capital humano. Cada vez mais é
teses gerais sobre o atual momento vivido pelo preciso capital de giro para introduzir no sistema
desenvolvimento agrário brasileiro, na expecta- produtivo os insumos que viabilizam as inova-
tiva de serem proposições que possam estimu- ções para manter-se rentável em ambientes de
lar mais intensamente o debate sobre o estado crescente tensionamento concorrencial.
atual das regiões rurais e seu desenvolvimento Diante de tal padrão, multiplicam-se os
futuro. São proposições especialmente centradas arranjos produtivos. O arrendamento capitalista
em dimensões tecnológicas e econômicas, pois (que se expande, em especial, em regiões pro-
estas passaram a ser as mais decisivas. Outras dutoras de grãos e de cana-de-açúcar) é, talvez,
possíveis teses, de cunho sociocultural, seriam uma das sintomáticas expressões desse novo
igualmente relevantes, mas provavelmente se- padrão, pois sugere até mesmo alguma desma-
cundárias em relação às primeiras. terialização do capital, cuja contrapartida é a
crescente importância dos intangíveis – ou seja,
as empresas optam pelo arrendamento no in-
Primeira tese: uma nova fase tuito de preservar sua liquidez e a flexibilidade
do desenvolvimento agrário de seus investimentos –, incluindo os ativos que
são objeto de propriedade intelectual, que são
A partir do final da década de 1990, o de-
cada vez mais centrais no processo de inovação.
senvolvimento agrícola e agrário passou
A tendência de separar a propriedade da terra
a experimentar uma nova, inédita e irre-
de seu uso implica diversos desdobramentos
versível dinâmica produtiva e econômico-
relevantes para o futuro da agropecuária, entre
social no Brasil – um verdadeiro divisor de
os quais a exigência de disponibilidade de ca-
águas em nossa história rural.
pitais e a ampliação dos níveis de risco. E tem
Trata-se, de fato, de radical mudança no uma consequência óbvia: a atividade deixou seu
padrão de acumulação da agricultura. O que te- amadorismo do passado e, cada vez mais, exi-
ria sido alterado, em relação ao passado? Basica- ge a gestão de “profissionais do capital”, o que
mente, as mudanças dizem respeito às fontes de contribui não apenas para exacerbar o ambien-
produção da riqueza social. Em tempos pretéri- te concorrencial, mas também, e em particular,

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 110


para pressionar a vasta maioria dos produtores Nesse processo, consolida-se e amplia-se
rurais de menor porte. no Brasil um mercado de produtos e serviços
tecnológicos na agricultura, que opera em um
A dominação triunfal do capital, rebaixan-
ambiente fortemente regulamentado, de intensa
do o peso do fator terra, e o papel central das
competição. Esse mercado, fundado crescente-
inovações como os mecanismos principais de
mente na demanda de uma ampla classe média
crescimento da produção agropecuária são evi-
rural, viabiliza a existência de opções tecnológi-
denciados pela evolução da produtividade total
cas que respondem às particularidades regionais,
de fatores (PTF) – a forma metodológica e em-
e que têm assegurado a qualidade dos insumos e
pírica de oferecer indicadores sobre a crescente equipamentos que garantem os ganhos de produ-
eficiência tecnológica e produtiva da atividade tividade captados pela evolução numérica da PTF
(GASQUES, 2010). Estudos recentes, que anali- – para o País como um todo e para os principais
saram a evolução agropecuária nas últimas três sistemas produtivos de base regional. Ainda assim,
décadas, provam ser notável o desempenho da as dinâmicas de geração e difusão de tecnologias
PTF da agricultura brasileira, quando comparada que causam impactos inovadores diferem para
às dos demais países agrícolas mais destacados, os distintos produtos e regiões, concretizando as
o que vem criando bases sólidas para o cresci- circunstâncias do processo de diferenciação, que
mento de um padrão realmente sustentável – tanto pode atenuar quanto reforçar a heterogenei-
pois é poupador do recurso terra (FUGLIE et al., dade entre produtores e sistemas produtivos.
2012).
A instituição dessa nova via de acumula-
São inúmeras as evidências da transfor- ção tem diversas implicações. Sob tal regime de
mação estrutural operada no período, mas sua acumulação e lógica tecnológica, por exemplo,
manifestação mais iluminadora diz respeito são inevitáveis os processos de especialização
aos montantes de riqueza geral que a atividade produtiva e aumentos de escala de produção;
agropecuária vem produzindo. Tais sinais sur- a concentração (que pode ser desmedida) da
giram visivelmente a partir da segunda metade riqueza agropecuária; e, como processo maior,
da década de 1990, quando o saldo comercial a intensificação da diferenciação social entre
decorrente da produção agropecuária começou os produtores rurais. Outra implicação merece
a aumentar velozmente. Na maior parte dessa menção e deveria estimular amplo debate: o pa-
década, o saldo comercial total da agropecuária drão econômico-financeiro dominante impõe
se manteve em torno de 10–12 bilhões de dóla- um formato tecnológico igualmente dominante.
res, mas no final daqueles anos o crescimento Ainda que o padrão técnico possa operar mu-
foi mais acelerado. Em 2003 verificou-se um sal- danças parciais (o que ocorre frequentemente),
to (20,3 bilhões de dólares), e a partir de então, suas características mais essenciais passam cres-
as taxas de crescimento anuais se tornaram mais centemente a determinar a organização produ-
e mais significativas, até atingirem, em 2011, o tiva dos diversos setores de produção vegetal
espantoso total produzido pela agropecuária de e animal, assim conformando a hegemonia da
77 bilhões de dólares, tendo garantido assim um chamada “agricultura moderna” em praticamen-
vigoroso saldo positivo das relações comerciais te todas as regiões agrícolas.
totais. A principal força motriz para a obtenção Da tese decorre um corolário decisivo
desse resultado foi o aperfeiçoamento contínuo para o futuro da agricultura e das regiões rurais.
de um “ambiente de inovações”, difundindo-se Estruturas e processos econômicos não obede-
conhecimentos e novos aparatos técnicos, e es- cem a um despersonalizado e espontâneo moto
timulando-se a busca incessante da produtivida- próprio. Requerem agentes sociais e instituições
de – por excelência, o mecanismo empírico de novas. Dessa forma, o novo padrão que está
produção de riqueza. sendo estruturado nas regiões agrícolas institui

111 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


e difunde simultaneamente novos comporta- neutra, do ponto de vista social, e nem inócua,
mentos sociais ou, em termos mais gerais, uma do ponto de vista ambiental. As críticas à agri-
nova sociabilidade, a qual conformará crescen- cultura moderna, uma justa reação aos abusos
temente as práticas sociais – inclusive aquelas no uso de produtos químicos na agricultura,
dos agentes sociais não envolvidos diretamente são feitas em diversos níveis sociais e não se
com as atividades agropecuárias. Transforma-se limitam a um país ou região, e ganharam mais
assim o arcabouço societário, respondendo a força com a emergência dos temas ambientais
um processo de multiplicação de mercados e de e o fenômeno global das mudanças climáticas.
monetarização da vida social (STREECK, 2012). Mas em nenhum outro país o posicionamento
crítico-ideológico logrou paralisar o processo
da pesquisa científica, como ocorreu no Brasil.
Segunda tese: inovações Assim tem sido com o bloqueio à moderna bio-
na agricultura – o maior tecnologia na agricultura, fundando-se em dois
argumentos principais: o primeiro centrado nos
de todos os desafios riscos (que somente poderiam ser avaliados se a
O processo de produção e difusão de tecnologia fosse desenvolvida), e o segundo na
inovações na agropecuária mudou com- rejeição ideológica à própria agricultura moder-
pletamente sua natureza, quando compa- na capitalista, fundada na difusão de inovações.
rado com o de algumas décadas passadas.
No campo da tecnologia, a distância entre
É hoje um desafio gigantesco, pois opõe
as condições atuais e aquelas antes prevalecen-
distintos interesses sociais e econômi-
tes – e que justificaram tais críticas – é abismal.
cos (rurais e não rurais). Considerando-
Os questionamentos, de fato, foram relevantes
se o tema das mudanças climáticas, ultra-
para construir uma nova institucionalidade que
passa inclusive as fronteiras nacionais.
incorporou aos processos de inovação as dimen-
As transformações referidas na primeira sões sociais e ambientais ausentes no passado,
tese impulsionaram padrões tecnológicos sujeitos quando a afirmação tecnológica era determi-
a polêmicas tão intensas quanto desinformadas, nada, sobretudo, pelo cálculo econômico. Se
não obstante as remanescentes evidências de êxi- as contestações eram antes locais, aos poucos
to e irreversibilidade. Não são raras, ainda hoje, a nova institucionalidade foi sendo ampliada e,
as referências críticas ao “pacote tecnológico da atualmente, já se impõe, para diversos temas, em
Revolução Verde”. Seus autores ignoram que o escala global. É o caso, por exemplo, da discus-
impacto positivo da agricultura moderna para a são sobre mudanças climáticas e os novos pa-
humanidade quem sabe possa ser apenas rivali- péis da agricultura.
zado pelo impacto da penicilina. Em sua origem,
A evolução da indústria de insumos mo-
a Revolução Verde permitiu a intensificação do
dernos foi também conformada por essas con-
uso e do rendimento da terra, recurso escasso em
testações sociais e pelas mudanças institucionais,
países populosos, como Índia, Paquistão, China
e vem seguindo trajetórias ditadas pela necessi-
e México. Foram mudanças que viabilizaram o
dade de maximizar as vantagens potenciais das
crescimento da produção agropecuária, tendo
inovações. Mas essa indústria se organiza tam-
afastado o fantasma malthusiano que ameaça-
bém para incorporar as crescentes restrições re-
va aquelas sociedades, além de terem contido a
gulatórias e as demandas de grupos sociais que
ameaça da fome catastrófica e disseminada.
se apresentam como porta-vozes de interesses
Mas a intensificação da produção, apoia- específicos. Vem assim emergindo uma impres-
da no uso de sementes melhoradas, insumos sionante complexidade, pois a agroindústria e o
industriais, máquinas, água e gestão produtiva, processo de inovação tecnológica para a agri-
submetidos à racionalidade econômica, não foi cultura têm sido forçados a incorporar, além

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 112


das “velhas demandas” dos produtores (produ- safiador, pois enfrenta bloqueios decorrentes de
tividade, redução de custos e maior produção), sua pouca disponibilidade e baixa qualificação.
os inéditos condicionantes reivindicados por
novos atores sociais. Em decorrência disso, as Sinteticamente, o que se percebe é que a
respostas incorporam cada vez mais os impe- questão da inovação tecnológica na agricultura
rativos socioambientais, e a agricultura se estru- não é muito diferente, em nossos dias, dos desafios
tura crescentemente, não em pacotes, mas em que afetam outros sistemas que combinam intensa-
“soluções tecnológicas” portadoras dessa nova mente interesses privados e bens públicos. Há uma
institucionalidade, viabilizando sistemas produ- densa complexidade a ser confrontada e interpre-
tivos adequados às potencialidades das diversas tada, além de um número expressivo de deman-
áreas da produção. Sob tal contexto, diante do das que não podem ser atendidas imediatamente,
crescimento explosivo da demanda alimentar assim gerando fontes de descontentamento que
mundial, seria quimérica, para não dizer absur-
eventualmente serão mantidas por um longo tem-
da, a proposta de difundir tecnologias chamadas
“alternativas”, de uso local e de baixa produtivi- po. Sob tal contexto, no Brasil o desafio se agrava
dade, sob o pretexto de proteção ao ambiente e quando existe um “caso de sucesso”, exemplifica-
ainda ecoando as críticas do passado, que não do pela história da Embrapa. A Embrapa foi criada
correspondem mais ao cotidiano da agricultura. ainda na década de 1970 sob uma estratégia de
ação prática e imediata, não sob uma promessa
Em face de sua complexidade, o debate
sobre “inovações na agricultura” está exigindo genérica de ser uma “política pública”. Manter seu
maior abertura analítica e disposição para diá- orçamento, metas de crescimento e sua capacida-
logos plurais. Há atualmente uma íntima ligação de de produção de conhecimento intimamente ar-
entre agricultura e indústria; entre a vida rural e ticulados à complexidade esboçada acima é um
a sociedade como um todo; entre formas de pro- extremo desafio interno para essa empresa públi-
dução e padrões de consumo; e entre estruturas ca. Mas poderá se tornar uma ameaça destruidora
tecnológicas e vetores globais, como as mudan- se externamente prosperar a aceitação da equivo-
ças climáticas, para não citar a mais antiga das cada crítica acerca da inviabilidade da agricultura
relações, aquela que une a atividade produtiva
moderna (ou sua suposta correlação negativa com
agropecuária e a função de alimentação huma-
o meio ambiente). Esse é esforço, sobretudo, polí-
na. Diante dessa extrema complexidade, genera-
lizações rígidas perdem seu sentido e significado, tico de setores críticos que almejam construir um
sobretudo quando motivadas por enquadramen- “senso comum”, propondo (ainda inexistentes) al-
tos ideológicos e primarismos binários (como ternativas ao formato tecnológico como um todo. É
agronegócio e agricultura familiar, por exemplo). demanda que exigiria recursos, institucionalização
São inúmeros os exemplos que revelam a urgên- de novos grupos de pesquisa e, até mesmo, a im-
cia desse debate sem peias e, sobretudo, sem provável construção de uma nova ontologia cientí-
dogmas morais e políticos. Por exemplo, a agri- fica, todos objetivos de longuíssimo prazo que, se
cultura moderna não é incompatível com pro- e quando forem viáveis e concretizados, compro-
cessos produtivos intensivos em trabalho, e nem
meterão profundamente uma atual trajetória de su-
rejeita formas organizacionais menos comuns,
cesso, como tem sido o caso da Embrapa. Manter
como as cooperativas baseadas na racionalidade
econômica; além disso, um único grupo de pro- um posicionamento ambíguo sobre o tema apenas
dutos permite a coexistência de formas distintas alimentará aquela ameaça, minando a continui-
de organização econômica. Mas é inegável que dade da efetividade potencial da empresa, sem a
as transformações da sociedade vêm tornando o garantia de que um padrão tecnológico alternativo
uso do trabalho na agricultura um problema de- venha, de fato, a nascer algum dia.

113 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


Terceira tese: o desenvolvimento As implicações sociais e econômicas são
imensas e, provavelmente, nem os números
agrário bifronte
nem as consequências gerais foram devidamen-
A nova fase vem concretizando uma dupla te analisados pelos responsáveis pelas políticas
face – de um lado, a dinâmica econômica públicas, os quais argumentam repetidamente
concentra a produção cada vez mais, e de que “70% da produção de alimentos no Brasil
outro lado, aprofunda a diferenciação so- origina-se da agricultura familiar”. Tal afirmação
cial, promovendo intensa seletividade en- perde completamente o seu significado dian-
tre os produtores rurais. Em nenhum outro te da realidade da produção, revelada por uma
momento da história agrária os estabele- simples e direta tabulação dos dados do Censo;
cimentos rurais de menor porte econômi- assim, colabora para manter uma política agrá-
co estiveram tão próximos da fronteira da ria que não contribui para modificar o processo
marginalização. acelerado de inviabilização competitiva de um
grande número de estabelecimentos que pode-
Provavelmente, uma das conclusões es- riam ser economicamente viáveis, caso fossem
tatísticas de maior relevância na história agrária submetidos a estímulos e apoios consistentes
brasileira recente tenha sido aquela decorrente com as mudanças estruturais indicadas acima.
da pesquisa de Alves e Rocha (2010), com base
nos resultados apurados pelo Censo 2006. Em Não obstante serem históricas a desi-
síntese, os autores agrupam os produtores em gualdade social e a concentração da proprie-
três categorias, de acordo com os resultados pro- dade e da renda, os dados censitários recentes,
dutivos mensurados em valores brutos da pro- sistematizados no estudo citado, sugerem o
aprofundamento de um processo “bifronte” de
dução (VBP) e, posteriormente, transformados
desenvolvimento agrário, o qual vai alargando
em valores de salários mínimos.10 Surgem assim,
as disposições sociais (e possibilidades futuras)
grosso modo, três estratos sociais hierarquizados
entre os grupos extremos. De um lado, está
pelos ganhos gerados pela atividade agropecu-
um grupo muito reduzido de produtores extre-
ária. Quando separados os estratos por seu nú-
mamente preparado para extrair o máximo das
mero total e a renda bruta medida em salários
enormes oportunidades que vêm sendo abertas
mínimos médios mensais, a fotografia da situa- para a ampliação de suas atividades; e de ou-
ção vigente é pelo menos assustadora. O grau de tro, a vasta maioria dos produtores de menor
concentração dos resultados produtivos, medi- renda, os quais vão sendo empurrados contra a
dos pelo VBP, é tão elevado que parece ter sido parede, em um ambiente concorrencial que se
um equívoco do Censo. A decorrência é imedia- acirra diuturnamente.11 É polarização que – ago-
ta: a imensa maioria dos estabelecimentos rurais ra acentuada mais – questiona fortemente a via-
(2/3 do total de estabelecimentos), que alcança bilidade econômica de pelo menos três milhões
quase 3 milhões de unidades, se apropria de ma- de estabelecimentos rurais, os quais, de acordo
gros 3,3% do total da renda bruta. Causa ainda com o Censo analisado, conseguiram, naquele
maior perplexidade a conclusão daquele estudo ano, auferir no máximo o equivalente a meio sa-
quando separou o estrato dos estabelecimentos lário mínimo – e por estabelecimento, não por
mais ricos e concluiu que menos de 30 mil esta- membro da família. É processo de desenvolvi-
belecimentos rurais (0,62% do total geral) foram mento que tornará “redundantes” (rapidamente)
responsáveis pela metade do valor da produção a vasta maioria dos estabelecimentos rurais, de
total (ALVES; ROCHA, 2010). tamanho pequeno e até médio. Examinados os

Insista-se que a concentração apontada nesse estudo é a do “valor bruto da produção”, não a concentração da terra. Esta última já indicava um dos mais altos
10

índices de concentração mundiais antes mesmo do processo expansivo iniciado no final da década de 1960. Nos últimos 50 anos, a concentração da terra
praticamente não se alterou, nem mesmo com os aproximados 80 milhões de hectares distribuídos pela política de reforma agrária (HOFFMANN; NEY, 2010).
Sob tal contexto, a metáfora clássica do “treadmill” vem se tornando a realidade crua do desenvolvimento agrário brasileiro (COCHRANE, 1958).
11

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 114


dados agregados no artigo referido, seria possível co, elevar a produção de alimentos e de divisas,
concluir, por exemplo, sob uma situação hipo- distribuir renda e, por fim, avaliar a questão so-
tética de extrema linearidade proporcional, que cial no campo, especialmente o tema da pobreza
pouco mais de 1% dos produtores (55 mil es- rural. Inicialmente, esses foram os focos privile-
tabelecimentos rurais) poderiam responder por giados pelos diversos autores. Enquanto alguns
toda a produção agropecuária, inclusive aquela falaram em transformar a “economia natural”
parte destinada à exportação, deixando sem res- vigente no campo, outros propuseram destruir o
posta a pergunta sobre o futuro e o lugar social “complexo rural”, para não se estender nos de-
(e econômico) dos demais produtores. Se con- bates situados no campo da esquerda – o famo-
cretizada, ainda que em parte, essa suposição so debate sobre “feudalismo versus capitalismo”.
especulativa, o futuro das regiões rurais será ape-
Economistas mais realistas, incluindo,
nas o seu vazio demográfico.
entre outros, Celso Furtado, Antônio Barros de
Castro e Maria da Conceição Tavares, se preocu-
Quarta tese: a história não terminou, param, particularmente, com as chances de ex-
pansão capitalista, em face do atraso produtivo
mas o passado vai se apagando das atividades agropecuárias. Também analisa-
O último meio século desmentiu diversas ram as implicações de uma estrutura de proprie-
antevisões: da exacerbação da questão dade da terra concentrada e as repercussões da
agrária, simbolizada nas disputas pela ter- ausência da reforma agrária na configuração de
ra, às supostas tendências da concentração uma sociedade que estava então emergindo –
da propriedade fundiária e, mais ainda, as do excedente populacional que migrava e em-
teses sobre “campesinatos”. Desaparecem purrava para baixo os salários urbanos (Furtado)
assim alguns temas do passado, entre os ao argumento de Tavares sobre as facetas da
quais a reforma agrária. expansão capitalista no País. Segundo esta eco-
É preciso reconhecer que nos últimos 50 nomista, o atraso no campo e a concentração
anos diversos ingredientes da “questão agrária” fundiária não impediram o vigoroso padrão de
foram vencidos pelas vicissitudes das transfor- acumulação de capital observado, mas reforça-
mações rurais (ou as mudanças mais gerais da ram a concentração da renda e a estruturação de
sociedade). É impossível discutir aqui a enor- uma indústria de bens duráveis que reproduzia
me riqueza de detalhes sobre o tema. E existem os padrões de consumo dos países mais avança-
curiosidades inexplicáveis: na década de 1950, dos. Esse debate foi abafado durante os anos do
por exemplo, quando se deu o alvorecer desse autoritarismo, mas ressurgiu na década de 1980.
debate, algumas correntes propugnavam pela E houve uma reviravolta, pois um ponto de in-
reforma agrária para permitir o desenvolvimen- flexão foi o argumento de Graziano da Silva, em
to capitalista, mas exatamente naquela época se 1986. A necessidade de reforma agrária passou
observou um primeiro e vigoroso ciclo de acu- a ter apenas uma justificativa social, meramente
mulação, com a emergência da industrialização pretendendo “ajudar os mais pobres” do campo,
pesada. Meio século depois, também inexplica- oferecendo-lhes uma parcela de terra e um con-
velmente, ainda se mantém uma autarquia com junto de políticas sociais (SILVA, 1987).
volumoso orçamento destinado à política redis- A evolução da agricultura, das regiões ru-
tributiva de terras – quando não é significativa rais e da sociedade vem sepultando definitiva-
uma demanda social que reclame tal política. mente a questão agrária, pelo menos nos termos
No tocante à reforma agrária, uma síntese propostos no passado. Os níveis de renda agro-
dos debates englobaria as diversas proposições pecuária de milhares de produtores de menor
em quatro grandes necessidades para a sua im- porte não têm nenhuma significação para sus-
plantação, a saber: ampliar o mercado domésti- tentar o “dinamismo do mercado interno”, assim

115 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


como a emergente sociabilidade é que determi- o Estado foi “saindo à francesa”, o que é
na, de fato, os padrões migratórios – não mais comprovado pelos gastos públicos na agri-
os fatores de expulsão discutidos naquela litera- cultura. Abre-se assim uma nova fase, na
tura. A capilaridade atualmente existente, tanto qual os agentes privados serão os princi-
em relação aos meios de transporte, quanto aos pais atores do desenvolvimento.
meios de comunicação, assegura essa inversão Essa é uma tese crucial, pois diz respeito
histórica em relação aos movimentos espaciais ao Estado e suas políticas dirigidas ao desenvol-
da população rural. A reforma agrária também vimento das regiões rurais. Considera-se que o
não se relaciona mais com a oferta de alimen- Estado tem lido incorretamente os diversos sinais
tos e de matérias-primas de origem agropecuá- das transformações em curso, o que tem resulta-
ria. Diferentemente do passado, a incorporação
do em iniciativas erráticas, usualmente resultan-
de novas terras explica pouco do crescimento
tes da confusão de racionalidades: de um lado,
da produção, e o dinamismo da agropecuária
refletindo a persistência de políticas herdadas do
decorre principalmente de investimentos e da
projeto de modernização iniciado na década de
intensificação tecnológica. Estudos recentes de-
1960, e de outro lado, introduzindo novas visões
monstram que entre os censos de 1995–1996 e o
e instrumentos de regulação por meio de merca-
de 2006, os pesos da terra e do trabalho para ex-
dos. Esses últimos respondem às novas realida-
plicar a produção total caíram, respectivamente,
des agrárias e produtivas do período recente. A
de 18,1% para apenas 9,6%, e de 31,3% para
tese sustenta que o papel do Estado mudou (ou
22,3%. Mas o fator tecnologia disparou: antes
deveria mudar), seja porque sua ação já não é
explicava 50,6% da produção, e em 2006, res-
tão necessária, seja porque os desafios atuais são
pondia por 68,1% (ALVES et al., 2012).
muito mais complexos e transcendem as possibi-
Em decorrência, uma imediata conclusão lidades do Estado. Ainda além: muitas soluções
se impõe. O tema da reforma agrária, concreta- não serão mais estatais e dependerão da mobili-
mente, perdeu sua relevância, e a insistência (e zação de agentes privados.
correspondente alocação de recursos) em ações
Uma ilustração reveladora dessas mudan-
estatais nesse campo não encontra nenhuma
ças é o financiamento da agropecuária. Com as
justificativa razoável. Ignorando-se outros aspec-
reformas institucionais operadas na década de
tos já também vencidos, sequer cabe menção a
1990, as transferências de fundos públicos em
certa literatura que propõe uma discussão sobre
condições especiais foram drasticamente redu-
“campesinatos”, os quais seriam outra via possí-
zidas, conforme a Tabela 1, abaixo. Menciona-
vel de desenvolvimento agrário. É argumento tão
va-se então que a agricultura não resistiria aos
estapafúrdio que não merece comentário.
cortes do crédito estatal pesadamente subsidia-
do que vigorou até o início da década de 1990,
Quinta tese: o Estado – da o que não se confirmou. Pelo contrário, nos anos
mais recentes, o financiamento da agropecuária
modernização às novas tarefas vem crescendo vigorosamente, sem a necessida-
Durante o período inicial de moderniza- de de aportes diretos do Tesouro Nacional. Essa
ção, esgotou-se um conjunto de “primeiras expansão, só possível em virtude da mobilização
tarefas” de transformações rurais induzi- dos agentes privados, não apenas viabilizou a
das pelo Estado, combinando crédito ru- explosão da produção, mas também contribuiu
ral, pesquisa agrícola e serviços de ATER para a rápida difusão, em certas atividades e em
estatais. Nessa fase diversos agentes priva- regiões agrícolas específicas, do novo padrão
dos passaram a se dedicar à produção de de organização produtiva e de acumulação. Em
pesquisa e a difundir inovações, além de consequência, os agentes privados integrantes
disputar o bolo da riqueza. Paralelamente, das cadeias produtivas passaram a desempenhar

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 116


Tabela 1. Participação dos fundos do Tesouro Nacional (TN) em relação ao financiamento total da agricultura,
de 1985 a 2011 (incluindo Banco do Brasil e demais fontes).

1985 1990 1995 2000 2005 2010 2011

% dos fundos do TN diretamente


64,0 26,7 19,7 0,02 2,2 0,2 0,1
destinados ao financiamento rural
Fonte: Brasil (2013).

papéis tradicionais do Estado, não apenas no to- esse afastamento de “velhas funções” do Estado
cante ao financiamento, mas também à provisão não vem sendo substituído por ações inovadoras
de insumos tecnológicos, assistência técnica, co- convergentes com a nova fase em andamento,
mercialização e gestão de risco. diversas tendências problemáticas estão em ma-
Deve-se destacar que a retirada do sistema turação, como já antes apontado. O próprio di-
de crédito subsidiado, amparado na conta movi- namismo produtivo se vê hoje ameaçado pelas
mento do Banco do Brasil, em vez de enfraque- conhecidas deficiências sistêmicas, institucionais
cer a agricultura, gerou uma inédita dinâmica e regulatórias – da infraestrutura logística às in-
de integração crédito-inovação que estimulou certezas e indefinições regulatórias –, sobre as
a remodelação dos sistemas produtivos, tendo
quais o Estado deveria desempenhar papel co-
gerado novas necessidades e prioridades, como
ordenador e indutor de processos consistentes
investimentos em infraestrutura de produção,
logística de transporte e armazenamento, e ser- com os objetivos do desenvolvimento rural.
viços tecnológicos. Foram mudanças mais rele- Apesar da citada perda relativa de im-
vantes para impulsionar a produtividade geral portância orçamentária, o número de políticas
da agricultura do que o crédito de custeio, e a e ações de diversos ministérios e suas agências
ausência de inovações é atualmente uma das
não para de crescer. Mas são, na maioria, ini-
ameaças principais à competitividade do setor.
ciativas fragmentadas, improvisadas e sem níti-
Estranhamente, a demanda por crédito subsidia-
do ainda surge nas pautas de reivindicações de dos objetivos estratégicos. É situação que parece
organizações de produtores, sugerindo ser mais confirmar a hipótese acerca do “autismo” do
demanda política, apoiada por governantes, do Estado em relação às mudanças estruturais das
que propriamente uma necessidade que poderia, últimas décadas. Suscita, portanto, a pergunta:
de fato, incentivar o crescimento da atividade. o que realmente quer o Estado do mundo ru-
A “fuga do Estado” é também comprova- ral brasileiro? Se os interesses rurais no âmbito
da pela queda da participação dos gastos públi- das instituições políticas decisórias permitiram a
cos totais com agricultura, agregados em duas “fuga do Estado” no período, sem contrapartidas
grandes contas no Orçamento da União, as de aportes em áreas estratégicas, é inescapável
chamadas funções “agricultura” e “organização concluir que tais instituições políticas são setores
agrária”.12 Ainda que sejam alocações crescentes que também parecem desconhecer as tendên-
em termos absolutos, a participação relativa caiu cias do desenvolvimento agrário no Brasil.
substancialmente, o que revela uma mudança
de priorização por parte das elites políticas (no A Tabela 2 descreve o gasto público total
Executivo e no Congresso Nacional) no que diz do Orçamento da União destinado às funções
respeito ao tema “agricultura”. No entanto, como rurais.

São os gastos públicos gerais destinados às regiões rurais. A função “agricultura” inclui gastos com as atividades produtivas, mas não apenas aquelas relativas
12

ao financiamento, pois inclui igualmente os gastos em serviços de apoio e infraestrutura. A função “organização agrária” inclui os gastos com o programa
de redistribuição de terras, investimentos em assentamentos rurais, entre outras iniciativas governamentais.

117 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


Tabela 2. Gasto público total do Orçamento da União destinado às “funções rurais”, incluindo o crédito rural,
como proporções do total do orçamento.

1980 1987 1990 1995 2000 2010

% do orçamento destinado às atividades rurais 7,5 11,9 1,9 5,3 1,9 1,2
Fonte: Brasil (2013).

Sexta tese: a ativação de alimentar”). Assim, o conjunto da “pequena pro-


dução rural”, naqueles países, conta com a
uma relação perversa
proteção do Estado, muitas vezes até mesmo
Mesmo nas regiões rurais que prospera- garantindo a renda líquida da atividade. Em sín-
ram em virtude de alguma “dinâmica agrí- tese, são processos de desenvolvimento agrário
cola”, acaba prevalecendo uma tendência com inúmeras especificidades, mas quase todos
perversa em relação aos estabelecimentos com uma classe média rural que se tornou domi-
rurais de menor porte econômico, ainda nante na atividade. E protegida por uma ampla
que apenas por duas razões. Primeiramen- gama de formas de ação governamental.
te, os filhos migram para não mais voltar,
pois existe um custo de oportunidade mui- O Brasil vem seguindo uma trajetória
to elevado. E, segundo, porque a oferta de agrícola e agrária muito distinta daquela desses
trabalho contratado também se reduz, pelo países mencionados, com insuficiente (e equivo-
abandono do campo, o que eleva os salá- cada) ação governamental, o que vem animando
rios rurais. processos de transformação social que, mesmo
nos casos mais virtuosos e promissores, acabam
A história agrária dos países do capitalis-
sendo socialmente perversos. Como no enuncia-
mo avançado apresenta algumas similaridades e,
do da tese, ainda que as regiões rurais prospe-
entre essas, duas são salientes. Primeiramente, a
rem, em seus indicadores mais gerais, criando
atividade agrícola, comparativamente às demais
riqueza e oportunidades mais amplamente, não
alternativas econômicas, com o tempo se mos-
são freadas as variadas formas de marginalização
trou menos rentável, o que gradualmente afastou
os detentores de capital no campo. Naqueles pa- social dos pequenos produtores. São processos
íses, historicamente observou-se um processo de que encontram pouca compreensão da política
“desaburguesamento” da atividade econômica pública, e nenhum “escudo protetor” tem sido
“agricultura” e, ao mesmo tempo, um processo de erigido a favor das famílias rurais moradoras dos
ocupação por uma classe média rural, intitulada pequenos estabelecimentos. Um caso iluminador
genericamente de agricultores familiares. São paí- e ilustrativo é o ocorrido no oeste catarinense,
ses que observaram, na gênese de tais processos, analisado por Miele e Miranda (2013), em artigo
uma fuga de capitais para outros setores econô- emblemático acerca das tendências do desen-
micos, abrindo as chances para a consolidação volvimento agrário brasileiro. Trata-se de região
de grupos de produtores de menor porte como o de extraordinária dinâmica agrícola submetida a
principal esteio da economia agrícola. cadeias produtivas sofisticadas, responsáveis por
produtos de alta rentabilidade e competitividade
Em segundo lugar, as nações daquele gru-
no mercado mundial (avicultura e suinocultura).
po, praticamente sem exceções, implantaram di-
versas formas de ação governamental destinadas No caso específico da suinocultura, en-
a proteger o conjunto de pequenos produtores quanto a produção cresceu 197% durante duas
que foi se tornando majoritário no campo, so- décadas (1985–2006), o número de produtores
bretudo para garantir a oferta barata de alimen- integrados (com rebanhos acima de 20 cabeças)
tos (o que depois seria intitulado de “segurança foi reduzido a 36% do total original no mesmo

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 118


período, mostrando uma tendência irrefreável de brasileiro, como o maior produtor mundial
seletividade social, contra a qual nenhuma ação de alimentos.
(pública ou privada) foi capaz de opor-se no pe-
Atualmente é observado no Brasil um con-
ríodo analisado (MIELE; MIRANDA, 2013). Con-
texto relativamente bizarro, quando se examinam
forme o citado estudo demonstra cabalmente, a
o desenvolvimento agrário, suas interpretações e
própria “prosperidade geral” da região, ao ofere-
as ações governamentais. A modernização ca-
cer mais chances (de estudo, de trabalho ou ou-
pitalista da agricultura brasileira inspirou-se no
tras formas de renda, por meio da pluriatividade)
modelo norte-americano do pós-guerra, mas
para os filhos dos pequenos produtores, também
parte importante dos pesquisadores (especial-
contribuiu, ainda mais aceleradamente, para o
mente os sociólogos) examina principalmente o
encurralamento produtivo da atividade, ao re-
caso europeu para contrapor ao caso brasilei-
duzir fortemente a força de trabalho disponível
ro. Já as políticas públicas, no geral, ignoram a
nos estabelecimentos. Contribuiu, também, para
maior parte dos debates dos pesquisadores e são
o seu enfraquecimento, pelo aumento da idade
implantadas com base em um relativamente alto
média dos responsáveis.
grau de improvisação.
No Nordeste rural se observa um processo
Enquanto isso, a realidade vai se impondo,
de esvaziamento associado, de um lado, à invia-
mas seguindo rumo bem diverso das prováveis
bilidade econômica do minifúndio e às profun-
intenções originais de seus interpretadores prin-
das disparidades de qualidade de vida entre os
cipais. Provavelmente, em prazo não muito dis-
meios rural e urbano; e, de outro, às novas opor-
tante, vingará no País outro modelo, similar ao
tunidades de trabalho no meio urbano e regional
da história agrária da Argentina, um país que de-
e às expectativas e demandas pela vida urbana,
senvolveu com algum êxito determinados setores
criadas pela reconfiguração da sociedade rural
produtivos agropecuários, mas observou simulta-
mencionada anteriormente. Com o tempo, a
neamente o drástico esvaziamento demográfico
convergência de tais tendências (demográficas,
de suas regiões rurais. O caso brasileiro, em ter-
sociais, tecnológicas e econômicas) apenas con-
mos produtivos, experimenta um sucesso muito
tribuiu para tornar rígida e perversa a relação
mais significativo, mas atravessa, por enquanto,
inversa entre “prosperidade geral” e as chances
uma transição demográfica, a qual poderá ou
de permanência dos pequenos produtores na
não repetir a experiência argentina, no tocante às
atividade.13
dimensões de sua população rural. Mantidas as
tendências econômicas atuais, aquele padrão do
Sétima tese: rumo à via argentina país vizinho provavelmente se repetirá em prazo
médio em muitas regiões do Brasil rural. A única
de desenvolvimento possibilidade de se evitar a plena consolidação de
Jamais ocorreu no Brasil uma política de uma “via argentina” de desenvolvimento agrário
desenvolvimento rural. Inexistindo tal é instituir, pela primeira vez, uma verdadeira po-
ação governamental, o desenvolvimento lítica de desenvolvimento rural, resultante de um
agrário brasileiro vai impondo uma “via amplo e plural processo de debates sobre as re-
argentina”: o esvaziamento demográfico alidades agrárias, e capaz de confrontar-se com
do campo, o predomínio da agricultura de a atual “mitologia” sobre as regiões rurais que a
larga escala, a alta eficiência produtiva e muitos encanta. É preciso afirmar incisivamente
tecnológica, e o posicionamento, no caso que a ação governamental destinada ao campo

Sobre o Nordeste, examine-se o detalhado estudo de Buanain e Garcia (2013), o qual analisou o destino dos estabelecimentos rurais de reduzido tamanho
13

no Nordeste rural. Nesse caso, a generalizada pobreza rural, associada às oportunidades de trabalho, seja na própria região, seja em outros estados, com
a facilitação de menores riscos do processo migratório (sobretudo em virtude de menores “custos de transação”), tem igualmente indicado o esvaziamento
demográfico daqueles estabelecimentos.

119 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013


brasileiro é atualmente inadequada do ponto de salienta-se a natureza equivocada da ação go-
vista social e em relação às principais facetas do vernamental, em suas facetas mais gerais – ou
desenvolvimento agrário. Urge, portanto, obter seja, ocasionalmente pode estar acertando no
uma resposta da sociedade à pergunta: queremos varejo, mas está largamente incorreta no ataca-
um pujante país agrícola, o maior produtor de ali- do, pois não percebe com nitidez a verdadeira
mentos do mundo, assentado em uma agricultura revolução econômica e social em andamento no
de bases tecnologicamente modernas, mas sendo campo brasileiro. Sob tal percepção equivocada,
esta operada quase exclusivamente em unidades suas políticas e projetos precisariam sofrer radi-
produtivas de larga escala? Ou o melhor objetivo cal mudança operacional. Em segundo lugar, e
nacional seria obter o mesmo resultado econômi- em decorrência do relativo imobilismo governa-
co-produtivo, porém, também integrando parcela mental, o artigo pretendeu indicar, com ênfase e
significativa dos produtores médios e de menor insistência, em diversas partes, que a maior parte
porte econômico ao mesmo processo de trans- dos estabelecimentos rurais – aqueles de menor
formação? Se a segunda resposta for a seleciona- porte econômico – encontra-se em crescente
da pela sociedade, então a ação governamental encurralamento. São produtores que vão sendo
precisa ser modificada, provavelmente de forma deixados para trás em um ambiente produtivo e
radical – e com urgência.14 tecnológico cujo acirramento concorrencial vem
sendo acelerado rapidamente, na nova fase que
ora experimenta a agropecuária brasileira.
Conclusões
O desempenho de setores da agropecu-
Este artigo recolhe a experiência, relativa- ária brasileira, nos últimos 30 anos, apesar das
mente longa, de quatro pesquisadores do “mun- inúmeras políticas erráticas, tem conseguido se
do rural brasileiro” e propõe sete teses sobre o manter com desenvoltura econômica e produ-
desenvolvimento recente da agropecuária, tam- tiva – e, mais ainda, tem observado espetacular
bém comentando sobre aspectos sociais das re- crescimento de sua eficiência econômica, ele-
giões rurais do País. São proposições que têm, vando com brilhantismo sua produtividade total.
em especial, um inquestionável lastro empírico Vem, assim, correspondendo mais do que satis-
para sustentá-las como argumentos gerais que fatoriamente ao que Barros, no livro inicialmente
mereceriam a atenção dos responsáveis e toma- citado, intitulou de “funções da agricultura”, e se
dores de decisão sobre os rumos de uma ativi- tornando um destacado espaço de produção de
dade econômica que, de fato, vem “salvando” a riqueza social. Mas vem também encontrando
economia brasileira desde a grande crise econô- crescentes desafios e encruzilhadas a serem ul-
mica do início da década de 1980. trapassados, para manter seu papel social e eco-
Confirmadas definitivamente as teses pro- nômico. Espera-se que o conjunto de teses aqui
postas, inúmeras consequências poderão ser submetido ao debate possa contribuir para uma
antevistas. Entre as diversas leituras possíveis, fértil e plural discussão, a qual aponte rumos
diretas e indiretas, que o conjunto de teses arro- mais robustos para a história agrária brasileira.
ladas permite inferir, a mensagem principal des-
te artigo pretendeu apontar dois grandes focos
relacionados ao desenvolvimento agrário bra- Referências
sileiro. Ambos clamam por um urgente debate ALVES, E.; ROCHA, D. P. Ganhar tempo é possível? In:
nacional entre os interessados. Primeiramente, GASQUES J. G.; VIEIRA FILHO, J. E. R.; NAVARRO, Z.

Em algumas regiões brasileiras, a urbanização já é maior do que aquela do país vizinho. A comparação com a história rural argentina destina-se mais a
14

indicar a real possibilidade de serem desenvolvidas duas grandes alterações espaciais, ambas certamente indesejáveis para o Brasil: o forte esvaziamento do
campo e a concentração populacional massiva em algumas regiões metropolitanas. Ainda existe um tempo histórico que permitiria a maior descentralização
econômica e espacial, mas está se esgotando, e a tendência indicada nesta tese parece ser irrefreável.

Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013 120


(Org.). A agricultura brasileira: desempenho, desafios, FUGLIE, K. O.; BALL, V. E.; WANG, S. L. (Ed.).
perspectivas. Brasília, DF: IPEA, 2010. p. 275-290. Productivity growth in agriculture: an international
perspective. Oxfordshire: CAB International, 2012.
ALVES, E.; SOUZA, G. da S. e.; GOMES, E. G.;
MAGALHÃES, E.; ROCHA, D. de P. Um modelo de GASQUES, J. G. Produtividade total dos fatores e
produção para a agricultura brasileira e a importância transformações da agricultura brasileira: análises
da pesquisa da Embrapa. Revista de Política Agrícola, dos dados dos censos agropecuários. In: GASQUES
Brasília, DF, ano 21, n. 4, p. 35-59, out./nov./dez. 2012. J. G.; VIEIRA FILHO, J. E. R.; NAVARRO, Z. (Org.).
A agricultura brasileira: desempenho, desafios e
ALVES, E.; SOUZA, G. da S. e; ROCHA, D. de P.; perspectivas. Brasília, DF: IPEA, 2010. p. 19-44.
MARRA, R. Fatos marcantes da agricultura brasileira.
In: ALVES, E. R. A.; SOUZA, G. S.; GOMES, E. G. (Org). GONÇALVES, J. S.; GONÇALVES, S. P. Novas caras da
Contribuição da Embrapa para o desenvolvimento da pobreza de origem rural no Brasil: transformações, perfil e
especificidades da Região Sudeste. In: BUAINAIN, A. M.;
agricultura no Brasil. Brasília, DF: Embrapa Informação
DEDECCA, C. S. (Org.). A nova cara da pobreza rural:
Tecnológica, 2013. p. 1-21.
desenvolvimento e a questão regional. Brasília, DF: IICA,
BRASIL. Lei nº 8.974, de 5 de janeiro de 1995. 2013. (IICA. Desenvolvimento rural sustentável, 17).
Regulamenta os incisos II e V do § 1º do art. 225 da
HOFFMANN, R.; NEY, M. G. Evolução recente da
Constituição Federal, estabelece normas para o uso das estrutura fundiária e propriedade rural no Brasil. In:
técnicas de engenharia genética e liberação no meio GASQUES J. G.; VIEIRA FILHO, J. E. R.; NAVARRO, Z.
ambiente de organismos geneticamente modificados, (Org.). A agricultura brasileira: desempenho, desafios e
autoriza o Poder Executivo a criar, no âmbito da perspectivas. Brasília, DF: IPEA, 2010. p. 45-64.
Presidência da República, a Comissão Técnica Nacional
de Biossegurança, e dá outras providências. Diário oficial KAGEYAMA, A. O novo padrão agrícola brasileiro:
do complexo rural aos CAIs. In: DELGADO, G. C.;
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo,
GASQUES, J. G.; VERDE, C. V. M. (Org.). Agricultura e
Brasília, DF, 6 jan. 1995.
políticas públicas. Rio de Janeiro: IPEA, 1990. v. 1, p.
BRASIL. Lei nº 9.279, de 14 de maio de 1996. Regula 113-223.
direitos e obrigações relativos à propriedade industrial.
MIELE, M.; MIRANDA, C. R. O desenvolvimento da
Diário oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder indústria brasileira de carnes e as opções estratégicas dos
Executivo, Brasília, DF, 15 maio 1996. pequenos produtores de suínos do Oeste catarinense no
BRASIL. Lei nº 9.456, de 25 de abril de 1997. Institui a início do Século XXI. In: CAMPOS, S. K.; NAVARRO,
Lei de Proteção de Cultivares e dá outras providências. Z. (Org.). A pequena produção rural e as tendências
Diário oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder do desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo
Executivo, Brasília, DF, 8 abr. 1997. é possível? Brasília, DF: Centro de Gestão e Estudos
Estratégicos, 2013. p. 201-232.
BRASIL. Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998. Dispõe
sobre as sanções penais e administrativas derivadas de NAVARRO, Z. Desenvolvimento rural no Brasil: os limites
condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras do passado e os caminhos do futuro. Estudos Avançados,
providências. Diário oficial [da] República Federativa do São Paulo, v. 15, n. 43, p. 83-100, 2001.
Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13 fev. 1998. PRADO, L. C. D.; BASTIAN, E. F. Um economista no
BRASIL. Ministério da Fazenda. Tesouro Nacional. labirinto: um obituário de Antônio Barros de Castro.
Dados: Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, v. 54,
Tesouro Nacional [home page]. Disponível em: <https://
n. 3, p. 243-258, 2011.
www.tesouro.fazenda.gov.br/>. Acesso em: 6 jun. 2013.
PROJEÇÕES do Agronegócio 2012/2013 a 2022/2023.
BUAINAIN, A. M.; GARCIA, J. R. Os pequenos
Brasília, DF: MAPA: Embrapa, 2013. 72 p.
produtores rurais mais pobres ainda tem alguma chance
como agricultores? In: CAMPOS, S. K.; NAVARRO, SILVA, J. A. A modernização conservadora. São Paulo:
Z. (Org.). A pequena produção rural e as tendências Brasiliense, 1982.
do desenvolvimento agrário brasileiro: ganhar tempo SILVA, J. G. Mas, qual reforma agrária? Reforma Agrária,
é possível? Brasília, DF: Centro de Gestão e Estudos Campinas, v. 17, n. 1, p. 11-60, 1987.
Estratégicos, 2013. p. 29-70. STAVENHAGEN, R. Siete tesis equivocadas sobre América
CASTRO, A. B. de. Sete ensaios sobre a economia Latina. El Dia, Cidade do México, 25/26 jun. 1965.
brasileira. Rio de Janeiro: Forense, 1969.
STREECK, W. How to study contemporary capitalism?
COCHRANE, W. Farm prices, myth, and reality. European Journal of Sociology, Cambridge, v. 53, n. 1,
Westport: University of Minnesota, 1958. p. 1-28, May 2012.

121 Ano XXII – No 2 – Abr./Maio/Jun. 2013

Potrebbero piacerti anche