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Desastre e acontecimento na estrutura


Abril de 2008

Angela Vorcaro
UFMG, ALI
angelavorcaro@uol.com.br

1 - Criança: sujeito estruturado ou


tempo de estruturação do sujeito?

A topologia1 define o espaço por meio das relações entre os movimentos


(diacronia) de um objeto invariante (estrutura, sincronia). São os movimentos
de um objeto, enquanto este se mantém invariante, que estruturam o espaço. A
igualdade é definida pela trajetória da apresentação formal de um objeto à
outra apresentação formal (diacronia). Assim, um objeto será considerado
igual a outro se ele passa de um a outro por meio de uma deformação contínua
(diacronia). Quando ocorre uma ruptura opera-se a passagem de uma estrutura
a outra. Temos assim a continuidade do idêntico, a despeito das deformações
que modificam sua apresentação formal.
Há estrutura quando as incidências que afetam o objeto provocando
movimentos, dobras, torções não alteram sua apresentação formal.

Entre a perspectiva de estrutura da topologia e a estrutura do sujeito


temos um hiato. A complexidade da passagem de uma estrutura (sincronia)
para uma categoria (diacronia) é formulada por Lavendhomme2, nos seguintes
termos:
<<como descrever suficientemente uma estrutura e a classe
das transformações compatíveis? Seria preciso partir da descrição
teórica da estrutura do sujeito e descrever as transformações
compatíveis com esta estrutura. Não há sincronia sem uma certa
diacronia.>>

1
Cf. Granon-Lafont, A topologia de Jacques Lacan, Jorge Zahar, Rio de janeiro, 1988.
2
Lavendhomme, R., Le lieu du sujet, Seuil, Paris, 2002.
2

Interessa notar a veemência com que muitos psicanalistas de criança


afirmam a relação entre invariância na estrutura do sujeito e a condição de
criança, na vertente inaugurada pelos Lefort::

<<Não há especificidade na psicanálise de crianças. A


estrutura, o significante e a relação com o Outro não concernem de
maneira diferente à criança e ao adulto. É isto que faz a unidade da
psicanálise>>3

Ultrapassado o momento e o contexto dessa formulação4, a própria


perspectiva lacaniana oferece seu contraponto. Efetivamente, a estrutura, o
significante são os mesmos para a criança e para o adulto, mas relação do
infans com o Outro difere sobremaneira pois, entre eles, há a decantação dos
objetos a. Afinal, enquanto o infans e o adulto estão ambos, imersos no
campo simbólico onde as estruturas discursiva e o significante operam, esta
imersão não é a mesma. Trata-se, para o Infans, de efetuar a operação que
rompe sua imersão no campo simbólico reduzido a objeto a para o Outro
primordial todo onipotente, na subversão em que localiza suas fissuras, fruto
dos atos de engate que enlaçam seus orifícios corporais à insuficiência da
alteridade. Por isso, Lacan nos lembra que o Outro é matriz de dupla entrada,
pois Introduz o significante e também o objeto a. Entre eles, não há
nenhuma relação racionalmente determinável. Os objetos a constituídos pelo
laço entre a alteridade e os orifícios do corpo, definirão a condição de qualquer
suposto sujeito: ser causado por um objeto que não é o Outro do
conhecimento, mas pelo objeto a que risca, para ele, o Outro. O sujeito é

3
Em: A criança no discurso do Analítico, Judith Miller (org), p.13.
4
Afinal, a idéia de estrutura parece aí pautada pela resistência à concepção de
desenvolvimento infantil, oriunda de uma psicologia médica, que explica o sujeito pela evolução
de um sistema de necessidades, num corpo que tenderia à acumulação adaptativa. Como
sabemos, mesmo articulando organismo e meio, a noção de estrutura no desenvolvimento é
proposta na psicologia genética por Piaget e se define pela maturação ou pela complexificação
de um equilíbrio crescente: um estado de maior equilíbrio superaria o estado que o precede e a
este jamais retornaria, até a conformação da estrutura adulta-cientista. Teríamos aí um
exemplo típico de um processo de estruturação, segundo Piaget. Cf. Lacan, J. Seminário VIII,
A transferência, Jorge Zahar; Rio de Janeiro, 1992, p.101.
3

causado por esse objeto a do qual nada é pensável, mas que determina o
sujeito do pensamento que se imagina ser ser5.
A asserção de que a estrutura do sujeito é, por princípio e desde o
princípio, sincrônica é interrogada aqui, considerando a experiência clínica, que
deixa formular a hipótese de uma diacronia lógica.
A direção do tratamento nos conduz a considerar, no caso de crianças,
a estrutura de gestão do desejo como não decidida, para usar um termo de
Calligaris6 . É ainda o que permite ser depreendido da afirmação de Sauret de
que
<<Se a criança está inicialmente em posição de objeto do
fantasma materno e sintoma da verdade do par parental, se o infantil
evolui ao redor do despreendimento do fantasma e de um sintoma
próprios, é preciso deduzir disso que precede que a psicanálise com
uma criança é repentinamente uma contra-psicanálise: deixar cair isso
contra o que, sendo o caso, a análise poderá se efetuar – no sentido em
que Lacan lembrava que se pensa sempre contra um significante>>7

A consideração da diacronia implica distinguir a condição de efetuação


da função da fala no campo da linguagem. Afinal, o ato analítico incide sobre o
que ata a criança-objeto ao Outro. O ato só é um se rompe a condição que lhe
antecede – assim acolhendo uma condição de estrutura que se diferencia, que
se destaca.
Portanto, trata-se de seguir a lógica da trilha pela qual a unidade
biológica, que está inicialmente no lugar de objeto de uma alteridade
estruturada, reverte-se num sujeito estruturado, capaz de transmitir uma
herança simbólica.
Distinguir a diacronia lógica em que o sujeito se constitui é localizar a
estrutura por ruptura da apresentação formal que o antecede, sustentado pela
sincronia de sua inscrição, na linguagem.
Esta afirmação pode ser demonstrada através do que Lacan nos permite
com a topologia do Nó Borromeano8, considerando que as operações

5
CF. Seminário XXII, RSI. inédito.
6
Cf. Calligaris, C., Introdução a uma clínica diferencial das psicoses, Artes Médicas: Porto
Alegre, 1989, p. 27.
7
Marie-Jean Sauret, De l’infantil à la structure, Presses Universitaires du Mirail, Toulouse,
p.490;
8
E o que eu já tratei detalhadamente num livro e que apresentarei, aqui, brevemente. Cf.
Angela Vorcaro, A criança na Clínica Psicanalítica, Cia de Freud, Rio de Janeiro, 1997.
4

implicadas na estruturação do ser em sujeito estão no campo da linguagem. A


escrita da lógica psicanalítica do processo de estruturação do sujeito se insere
na hipótese de que as manifestações da criança são atos que escrevem o
texto que cifra a leitura de sua relação com a alteridade constituindo sua
realidade psíquica. Portanto, seus atos resgatam a determinação da estrutura
que a implica numa impossibilidade do acesso à plenitude do gozo, e que a
intimam imperativamente a desejar sem que nada o assegure. Suas
manifestações estruturam-se como uma linguagem que ordena <<esse tão
pouco de realidade que é a nossa: essa do fantasma>>9
Essa linguagem situa-se aquém da imediaticidade de sentido a que se
oferece e além do que, desta cifragem, pode ser descrito. Trata-se de um texto
que, para ser reescrito em outro registro, ou seja, decifrado, exige pontuação. E
pontuar é localizar as interseções do ciframento que ele desvela.
Assim, o caráter simbólico da teoria se distingue nodulado ao registro
imaginário, que apresenta sua consistência, e à materialidade real que o
causa. Não se trata, portanto, de privilegiar o simbólico como um modelo
teórico a ser aplicado na prática analítica, mas de sustentar os traços do
impossível de dizer em que ele se efetua em sentido. A distinção dessas três
dimensões não as hierarquiza, apenas permite demonstrar que elas só têm
vigência enlaçadas.
Trata-se, enfim, da redução da abusividade imaginária que recobre as
frestas com o sentido, e da redução do real à sua insistência que faz tropeço,
descontinuidade ao sentido, na unicidade diferencial da criança. Situar a
constituição do sujeito, a partir do estatuto simbólico da teoria, é considerar
lacunas que rasgam a ficção de domínio do sentido, diferenciando as
dimensões do imaginário e do real.
Cabe, portanto, formalizar a incidência dos acidentes que permitem
que algo de não efetuado suporte o cenário da eternização do sujeito do
desejo, demarcando os constrangimentos que fazem do processo de
estruturação subjetiva um ciframento da relação à alteridade10.

9
J.Lacan (1973-4), Seminário XXI , Les nons dupes errent, lição de 11/06/74, inédito.
10
Contempla-se, assim, apenas as condições que balizam, sem absolutamente bastar, a
leitura do texto hieroglífico escrito pela criança em suas manifestações transferenciais, para
que seu testemunho seja efetivamente passível de recolhimento e de intervenção, na clínica
5

Localizar esses acidentes implica discernir as propriedades específicas


do diferencial em que a condição de criança se efetua, situando a incidência
deste irredutível e os traços de suas incisões.
A fixação de uma estrutura capaz de permitir a transmissão de uma
herança simbólica passa pela consideração da criança a partir da inauguração
de um lugar de relações que amarram um organismo irredutível, uma posição
significante e uma consistência ideal, três heterogêneos que se deixam ler
como uma coincidência que os sobrepõe num mesmo ponto. Resgatar o
cálculo da especificidade do laço que os aperta, exige diferenciar as urgências
constrangedoras de incisões que permitem que, desse enlaçamento inaugural,
faça-se um sujeito. A rota deste ponto mergulhado num espaço que lhe impõe
alteridade radical será percorrida, considerando os deslocamentos que
intervêm em sua deformação, traçando rupturas e continuidades, que marcam
o caráter de sua constituição até que uma estrutura se destaque. Tal
destacamento inclui a estrutura da qual partiu, sendo, entretanto, exclusiva,
constituindo um precipitado singular.
Considera-se, portanto, que a criança não está só:<<Não apenas ela não
está só devido ao seu meio biológico, mas existe ainda uma esfera muito mais
importante, a saber, a esfera legal, a ordem simbólica>>11. Situar o alcance da
distinção e da coincidência entre a consistência da criança, seu organismo e
uma ordem transmissível implica considerar o suporte do nó borromeano,
que Lacan nos oferece. Pretende-se, portanto, tratar esta formulação,
contando com a indicação de que a finalidade da topologia <<é dar conta da
constituição do sujeito>>12.

psicanalítica. A escrita da lógica do singular irrepresentável, que reincide inédito na criança, é


sustentação da insistência do inconsciente, e só passível de localização e bordeamento. Afinal,
o efeito desejo num sujeito é defeito de realização. A emergência do inconsciente é a
permanência insistente dessa desordem transgressiva do desejo no corpo adaptável de
qualquer indivíduo. É a soberania da transferência na clínica, enquanto função de preservação
da relação entre o desejo e o ato de um sujeito, que cria a exigência ética de uma escrita que
subverta o ideal de domínio pleno da criança a que as leis da ciência, ao estabelecer
univocidade entre constituição subjetiva e maturação orgânica, conferiram transparência.
Determinar psicanaliticamente as propriedades específicas do processo de estruturação que
qualificam a condição de criança confere estatuto balizador ao que permite, ou não, sua
clínica, pois traz como correlato uma perspectiva de sua analisabilidade.
11
J. Lacan (1956-7), Seminário IV, A relação de objeto, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1995,
p.204.
12
J. Lacan (1964), Seminário XI, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1988, p. 193.
6

O nó borromeano estabelece a estrutura da realidade psíquica, realidade


determinada pelo constrangimento que suspende uma condição desejante
singular e indestrutível, demarcada por uma constelação de traços que
estruturam a relação ao inconsciente.
A topologia do nó borromeu mostra a geometria tridimensional cujos
pontos se determinam pela cunhagem de três círculos vazados, enganchados
e inseparáveis, destacando a combinatória das relações que presidem a
realidade psíquica.
A topologia borromeana13 tem a medida comum que homogeneiza as
três dimensões em que cada uma desempenha a mesma função de sustentar
juntas as duas outras, ao mesmo tempo em que distingüe, por nomeá-las com
as letras R, S, I, a heterogeneidade destas:
R - O real é isso em que o inconsciente se sustenta, portanto a coisa
inapreensível, este cúmulo de sentido que constitui enigma, o único quinhão de
saber que se tem. Enquanto dimensão pura de existência (Há), é obstáculo do
qual nada pode ser deduzido. A incessante impossibilidade de se dizer disso
qualquer coisa faz com que esse existente sustente a repetição do indefinível.
S - O que faz com que o real possa ser tomado como ponto mergulhado
e situável num lugar do espaço é o simbólico (Há discernível). O termo que o
escreve em sua ausência, que lhe confere incidência no campo discursivo, sem
o qual nada se diria, permite a veiculação cifrada que o envolve produzindo o
deslizamento significante substitutivo deste inapreensível, coincidindo com ele,
sem equivaler a ele: há um.
I - O reflexo dessa coisa, pelo que a representação responde,
suspendendo este deslizamento com uma intuição, com um sentido que toma
corpo. Trata-se do Imaginário, que, no homem, faz a consistência do que o
rodeia na mesma relação de reificação em que é capturado pela imagem do
seu corpo14. O imaginário é a condição de representação desse ponto e de
sua circulação, no que ele é <<como se fosse x>>, parecido com outros e,

13
Oriento-me aqui pelo RSI (Seminário XXII, inédito, de J. Lacan - 1974-5) e pelas formulações
que Jean Claude Milner, no artigo “R,S,I”, deixa ler com clareza.( Les noms indistints, Seuil,
Paris, 1983, p. 7 e segs.).
14
J. Lacan, “Conferencia en Ginebra sobre el sintoma” (04/10/75), Intervenciones e textos 2,
Buenos Aires, Manantial, 1988.
7

portanto, dessemelhante a outros: Há semelhança. É o que lhe atribui uma


relação definível, que o liga a outros, consistindo numa rede de semelhanças e
dessemelhanças. A realidade deste representável é o que lhe permite deslocar-
se de representação em representação, onde refrata o discernível em
propriedades de semelhança e de dessemelhança.

Estas três dimensões são supostas incessantes e indestrutíveis. É o que


faz, de cada uma delas, um círculo: qualquer coisa jamais cessa de existir,
qualquer coisa jamais cessa de se escrever e qualquer coisa jamais cessa de
se representar. Elas coincidem num mesmo ponto numa relação de
determinação recíproca que as constrange e as sustenta.
O nó borromeano é efeito de linguagem. O uso da palavra que
permite enunciá-lo distinguindo três sentidos definidos conceitualmente, traz à
tona o caráter simbólico do nó borromeano. Entretanto, o nó borromeano não
se reduz a uma metáfora. Na própria distinção de três registros, o caráter
simbólico de sua enunciação aponta o limite da substituição de um significante
por outro, já que o sentido de cada termo é elevado ao máximo admissível de
seu desvio: o que faz deles três termos distintos é o impedimento da
substituição de um por outro. O nó borromeano atinge o limite da metáfora,
pois, diferenciando as letras R,S,I mostra a impossibilidade da substituição de
uma por outra, resistindo à redução hierárquica. Neste mesmo movimento em
que o nó borromeano distingue três especificações, ele impede que essas
sejam tomadas como círculos consistentes que encerram um conteúdo, pois
cada círculo é vazado pelos outros, o que condena cada um ao
constrangimento daqueles que o circundam: eles só consistem da ligação que
têm entre si.
O nó borromeano é apresentável como imagem: uma representação
planificada de três sentidos distintos. Mas, o caráter imaginário que planifica a
superfície do nó não o reduz a um modelo ou a uma imagem.
Enquanto escreve o que pode ser imaginado do real, o nó
borromeano é um traço que suporta o real da linguagem, que dá ao nó a
consistência real de uma matriz enodada que sustém juntos RSI.
8

A escrita do nó cunha o furo em que cada dimensão se suporta. Cada


uma das três dimensões é efeito dessa dupla ligação que a liga e a constrange
às outras duas. O real do nó é esta ex-sistência definível enquanto relação de
exterioridade inclusa de cada dimensão, em que o fora não é um não-dentro.
Enfim, no nó borromeano, o traço circular de cada dimensão afirma a distinção
que faz cada uma descontínua em relação a outra. Cada traçado circular
delimita um interior vazado, portanto um interior em alteridade radical com o
traço circular que o bordeja, impedindo um funcionamento deslizante de um
registro ao outro. Tal como a demonstração dada na manipulação das letras da
linguagem matemática, a unicidade que o nó borromeano escreve implica a
sustentação de três letras, num modo de atar que põe cada uma das três na
mesma relação de um impossível desatamento:<<basta que uma não se
sustente para que todas as outras não somente não constituam nada de válido
por seu agenciamento, mas se dispersem.>>15.

Contando com a indicação de Lacan de que inventar não se reduz a


imaginar16, realizaremos uma operação de corte sobre os três círculos atados
no nó borromeano. Esse artifício aqui utilizado para abordar a hipótese da
constituição do sujeito, tecendo um nó, é instigado pela afirmação de Lacan:

<<Para fazer um nó borromeano é preciso fazer seis gestos, e seis


gestos graças a que eles são da mesma ordem, próximo a isso,
justamente, nada permite reconhecê-los. É bem por isso que é
preciso fazer seis, a saber, esgotar a ordem de permutações duas a
duas e saber antecipadamente que não se pode fazer mais, sem o
que a gente se engana>>17.

Supõe-se, portanto uma trançagem18 que perfaz <<a trama da qual o


sujeito é um determinado particular>>19

15
J. Lacan (1972-3), Seminário XX, Mais, ainda, Rio de janeiro, Jorge Zahar, 1982, p.174.
16
<<Muito da consistência, a história já deu provas, é pura imaginação [...]Se acontece não
existir raiz na função de x, nós a inventamos, inventamos a categoria da raiz imaginária. Este
ponto de flutuação permite ver que o termo imaginário não quer dizer pura imaginação J. Lacan
(1974-5), Seminário XXII, op. cit,, lição de 11/02/75.
17
J.Lacan (1973-4), Seminário XXI, op.cit., lição de 15/01/74.
18
Sobre esse ponto, é interessante destacar outra observação de Lacan que permite a
hipótese da trança:<<Ninguém jamais, no mundo, seguiu uma linha reta. Nem o homem, nem a
ameba, nem a mosca, nem o galho, nada! Pelas últimas notícias, sabe-se que o traço da luz
também não a segue, que é inteiramente solidário à curva universal. A reta, nisso tudo,
9

Consideraremos, a seguir, os seis cruzamentos entre RSI, até seu


retorno ao ponto de partida.
Consideremos uma posição zero, que precede o início do trançamento,
dando-lhe a condição de possibilidade. Trata-se do lugar em que o real do
organismo neo-nato é inserido na realidade psíquica do agente materno,
equivalendo ao termo simbólico que o localizava no campo discursivo antes
que ele nascesse e equivalendo, ainda, à consistência dos sentidos que
interpretam suas manifestações, supondo-lhes intencionalidade subjetiva. Essa
superposição real do organismo à posição simbólica investida imaginariamente
pela alteridade de um agente, produz uma espécie de regularidade automática
de alternância. Essa alternância é o mecanismo que opõe tensão e
apaziguamento, ao mesmo tempo em que articula essa descarga orgânica de
tensão, com o apaziguamento da resposta dada pelo agente materno. É isso
que poderá ser tomado, por aquele que o vive, como uma experiência de
satisfação. Aí, presença e ausência intercalam-se na automaticidade que
articula a resposta materna à manifestação da necessidade. Essa matriz
simbólica, que se inscreve na alternância de dois estados, inaugura a
condição de subjetivação. Nada há, de sujeito, nesse momento mítico: uma
matriz simbólica acéfala que permite a alternância tensão e apaziguamento,
colando o organismo à consistência imaginária que lhe é suposta pela mãe
que lhe responde. Podemos, assim, distinguir o organismo como algo de real,
a alternância entre os termos (tensão e apaziguamento) como simbólica, e a
consistência dos sentidos em que o agente materno interpreta o organismo
como imaginária. É o que nos permite planificar R,S,I como três linhas
vizinhas e maleáveis, que sofrerão deformações contínuas.

inscreve, de qualquer forma, alguma coisa. Inscreve a distância, mas a distância (comparem
com a via de Newton) não é absolutamente nada sem um fator efetivo de uma dinâmica que
chamaremos de cascata, aquela que faz com que tudo o que cai siga uma parábola. Logo, não
há reta senão escrita, agrimensura somente do céu. Mas existem enquanto tais, uma e outra,
para sustentar a reta, são artefatos que habitam somente a linguagem>> ( Seminário XVIII,
D’un discours que ne serait pas du semblant, inédito, lição de 12/05/71: Lituraterre). A trança,
portanto, pode ser tomada nesse estatuto de artefato da linguagem para a formulação da
constituição subjetiva.
19
J. Lacan (1973-4), Seminário XXI, op. cit., lição de 11/12/73.
10

Consideremos, agora, um primeiro movimento: incidência do real


nessa matriz simbólica. O funcionamento dessa matriz no organismo pode
ser caracterizado como um funcionamento simbólico, ou seja, funcionamento
presidido pelo movimento que articula tensão e apaziguamento. Quando, por
efeito do próprio funcionamento significante, essa alternância não se mantém,
o organismo é afetado por uma descontinuidade. É o que nomeamos
incidência do real no simbólico. Nesse esgarçamento que perfura a matriz
simbolizante, situamos o primeiro movimento da trança.
O segundo movimento é a superação dessa descontinuidade no
funcionamento, que exige o retorno da equivalência à situação de plenitude
anterior. Mas os objetos oferecidos para a satisfação ao gozo do ser não
possibilitam o reencontro do gozo pleno supostamente havido antes. Esses
objetos ressublinham o traço da diferença entre gozo esperado e gozo obtido,
que está cunhado no sujeito. A criança situa o agente da privação, que ela
ressente, na alteridade materna e, portanto, localiza nela a possibilidade de
satisfação, supondo nela o saber sobre seu gozo. Assim, a falta real no
simbólico é recoberta com a imaginarização do agente materno. O segundo
movimento, portanto, é caracterizado como uma incidência do imaginário no
real.
No terceiro movimento, a mãe imaginada onipotente deixa-se
pressentir afetada em sua potência. Ela demanda à criança o que a criança
não sabe dar. Aí, duas faltas se recobrem sem reciprocidade. A criança tenta
determinar o desejo materno e se oferece como termo que o contempla,
ocupando o lugar fálico a que pode supor equivaler. No pressentimento do falo
constituindo uma falta na mãe - falta que não consegue recobrir, mas supõe
preencher - traça-se o perfil da estrutura simbólica. Nesse lugar fálico, a
criança opera simbolicamente, lidando com a falta. Portanto, nesse terceiro
movimento, o simbólico recobre o imaginário: a criança propõe-se como falo,
tentando determinar o desejo materno, encarnando-se como termo simbólico
que equaciona a falta pressentida na mãe. Mas o pilar é frágil e sem saída.
Oferecer-se como falo ao desejo materno é fazer-se de objeto e anular-se
como desejante. Nesse terceiro movimento, temos a incidência do simbólico no
imaginário.
11

No quarto movimento, a criança pressente que essa posição que


ela adota, de signo, não se sustenta. Por mais que a criança se dê, ela não
é o falo materno, não satisfaz a mãe. E se ela pode supor-se ser, ela não tem
como defender-se, será engolida e anulada. Por esta via, a criança precisa
buscar algo que a defenda do desejo materno. É o que a conduz a deparar-se
com algo de real que priva e interdita a mãe. A criança constata que há um
constrangimento que incide nelas, obstáculo intransponível entre criança e
mãe. Nesse quarto movimento, realiza-se, portanto, o esgarçamento real do
simbólico que repete, na trama complexificada, o primeiro movimento; e, ainda,
integra todos os outros.
No quinto movimento, o obstáculo intransponível entre criança e
mãe será transformado, pela criança, no mito da onipotência paterna: ou
seja, a impossibilidade real de ser o objeto do gozo materno é reencontrada,
imaginariamente, personificada em pai, mitificado em sua onipotência. Apesar
de terrível, por lhe tirar a mãe, defende-a da voracidade materna ilimitada.
Toda a transição mítica que articula a idealização, o temor e a agressividade é
aí produzida. Neste quinto movimento, cuja estrutura repete, com outro
elemento, o segundo movimento, perfaz-se o recobrimento imaginário do real.
O sexto movimento é efeito da exaustão combinatória da
articulação das formas da impossibilidade de ser o falo materno, que
esgota a permutação da relação imaginária da criança com o real. Produz-
se a metáfora paterna, o sexto movimento da trança, em que o simbólico
ultrapassa o imaginário. O falo imaginário é posto fora de jogo e substituído
por uma unidade de medida que regula as relações entre desejo e lei, e
confere a eles uma lógica. A criança pode supor um saber ao pai; àquele que
é capaz de dar à mãe o que ela deseja, ou seja, a criança situa o pai no lugar
em que ao menos um sabe o que ela quer. A criança encontra o termo
simbólico que barra a sua posição de equivalência fálica e cria algo mais: o
título virtual que sustentará a sua identificação ao elemento mediador do
campo simbólico, elemento mediador que estrutura a orientação da relação à
alteridade. O sexto movimento, portanto, faz reincidir no simbólico o que, no
terceiro movimento, teve caráter imaginário.
12

Notamos, assim, o percurso em que o sujeito se inscreve no


simbólico que lhe pré-existe. Afinal, é a partir desse investimento fálico
da alteridade na criança, que se traça a incidência da ordem significante.
Trata-se do funcionamento que se instaura a partir da função imaginária
do falo, que irá promover a operação metafórica do Nome-do-pai,
permitindo ao sujeito evocar a significação do falo. Dessa forma, o sujeito
carrega a causa que o fende: o significante, que lhe permite inscrição pela
perda que só existe depois que essa simbolização lhe indica o lugar.

Entre a experiência em que a criança recebe atribuição fálica e a


constituição de sua significação, temos o lapso que a trança percorre,
na estrutura temporal reversiva em que a castração retroage ao
recalcamento originário para lhe conferir significância, nesse aprés-coup
que promove a articulação circular que não é recíproca. Portanto, se
essa trança ordena a estruturalidade de um sujeito constrangido pelas
dimensões Real, Simbólico e Imaginário, seus movimentos não se
superam, eles se mantêm na constrição que os enlaça.

O que foi considerado no trançamento implica a retroação que lhe


confere sua condição circular. Mas, cabe ressaltar, o nó borromeano não é a
norma para a relação de três funções. A articulação R, S, I só incide num
exercício determinado pela versão em que o sujeito se inventa situado em
relação à função paterna, ou seja, o nó borromeano é sempre pai-vertido,
13

perversamente orientado. Por isso, a constrição que mantém RSI ligados é


sempre singular e enigmática.
As sobreposições em que o Real incide no Simbólico e este, no
Imaginário, se encurralam num ponto central que demarca a causa vazia
da realidade psíquica de um sujeito desejante: o objeto que viria
satisfazer seu gozo é um objeto insensato do qual não há idéia. Atribui-se
a tal objeto uma letra: a, objeto a, cerne do gozo, que só é reconhecível
pelos resíduos de seu esfacelamento em objetos pulsionais.
A insuficiência de qualquer gozo que lhe venha em suplência é
constrição imposta pelo objeto a, inatingido gozo a mais, alocado no exterior
mais central da escrita do nó borromeano. O nó escreve as condições de
gozo e permite contar os seus resíduos: as intersecções entre os círculos
notam as modalidades do gozo, por falta do gozo pleno que não há. E a
realidade é abordada com os aparelhos do gozo, que a linguagem permite,
enquanto articula e faz prevalecer articulações privilegiadas entre o Simbólico,
o Imaginário e o Real.
É tomando a constituição subjetiva, formação do inconsciente,
como o que define a condição de criança para a psicanálise, que
podemos considerar que todas as operações implicadas na estruturação
do ser em sujeito estão no campo da linguagem, terreno em que a função
significante é realizada, imaginarizada e simbolizada, em dois blocos
distinguíveis: no primeiro (os quatro primeiros tempos), a criança simboliza
metonimicamente a função significante alocando-se no reconhecimento de que
poderia responder do lugar em que se supõe esperada, como objeto do desejo
de um outro – reconhecendo-se como falo; no segundo (os três últimos
tempos), a criança simboliza a função significante metaforicamente,
remetendo-se, como sujeito, à significação do falo.
Afinal, a função significante incide como real na individualidade do
organismo, desde que ele é nomeado, situado na relação a uma linhagem
e a um discurso. Tomada pela alteridade, essa individualidade orgânica
realiza-se enquanto distinção, pela contingência da função do traço que a
separa de sua imanência vital, na singularidade do que é aí cunhado, resíduo
que barra o mero fluxo vital e garante a inscrição da alteridade.
14

A imaginarização dessa função significante é efeito do


malentendido do gozo pleno que aparelha o gozo possível (fálico), no
desdobramento do jogo permutativo, entre significantes, onde se
sublinha a equivocidade: o Outro comparece como falta modalizada no
fantasma, assim constituído, em que o desejo se apoia. O indivíduo se
corporifica no ordenamento pulsional, fomentando a reciprocidade entre gozo
esperado e gozo obtido: a equivalência almejada encontra a diferença e a
repetição da não-identidade a reencontra, defeito de realização que sustém a
insistência do desejo.
Essa função significante, como diz Erik Porge20, é simbolizada na
medida em que o sujeito se posiciona referenciado no traço de sua
diferença absoluta: a única medida comum é a inexistência de medida
comum, que o impede de designar-se em equivalência, e o constrange a
ser representado entre significantes. Nesse encurralamento, um sujeito
objetiva-se - discórdia entre o que teria sido para o outro (a representação do
outro) e o que supôs ser (o representante representativo). A função fálica em
que o ser toma inscrição encontra o limite na existência do que nega essa
função: - a barra - função do pai, onde <<$>> só se relaciona ao que está
inscrito do outro lado da barra <<a>>, que prende o sujeito ao fantasma da
causa do seu desejo, o Outro.
Trata-se assim da torção subversiva da condição de equivalência à
posição que lhe é conferida na linguagem (sendo contado como alguma
coisa que para alguém é signo), para a asserção de sujeito na condição
de incomensurabilidade que o singulariza como desproporção (não sabe
representar-se, não equivale à posição que um outro lhe confere, nem à
posição em que supôs situar-se, só se incluindo em sua contagem, entre
significantes), ou seja, barrado, separado de sua significação21.
Nessa lógica, não há realidade prévia ao funcionamento da linguagem.
Trata-se da suplência ao gozo jamais obtido e do aparelhamento para o gozo
possível, em que tudo se ordena discurso.

20
Erik Porge, Psicanálise e tempo, Rio de Janeiro, Campo Matêmico, 1994.
21
Idem.
15

Criança, portanto, é a consistência imaginária que se dá a essa lógica


temporal de extração de uma estrutura subjetiva a partir da apresentação
formal de uma imanência vital e de uma alteridade estruturada, percurso feito
das distorções de sua posição consistente na estrutura que o precede.

É possível constatar que os acidentes implicados nos


entrecruzamentos entre Real, Simbólico e Imaginário tratados acima são
acontecimentos constitutivos da estrutura tridimensional da realidade psíquica
de um sujeito qualquer. São suas impossibilidades que permitem deduzir os
desastres que a série psicopatológica grave diferenciada pela psicanálise
localiza, nas manifestações da criança qualificadas como autismo, psicose,
fenômenos psicossomáticos e debilidade mental22. Tais condições subjetivas
podem ser consideradas a partir da impossibilidade de operar algum dos cinco
primeiros cruzamentos da trança borromeana produzindo a impossibilidade dos
acontecimentos da estrutura. A hipótese da constituição de um quarto elo, na
função de suplência, capaz de produzir nova modalização na estrutura, é a
aposta do tratamento destes quadros.
Outros quadros clínicos ou grupos sintomáticos, entretanto, também
constitutivos de uma série psicopatológica menos grave (fobias, neuroses
histéricas, obsessivas, depressão secundária, perversões, etc) dependerão
diretamente daquilo que se arma na operação do sexto movimento da
trança, ou seja, a operação simbólica que localiza e circunscreve a
metáfora paterna. Entretanto, os rearranjos das novas articulações entre
as dimensões Real, Simbólica e Imaginária desdobrados na latência e na
adolescência permitirão estabelecer novos traços estruturais ou ainda
sustentar aqueles já constituídos anteriormente.
É o que nos propomos trabalhar a seguir, com a consideração lacaniana
sobre o sinthome, ou seja, a quarta dimensão borromeana, que configura a
direção ética do tratamento psicanalítico, em toda a série psicopatológica da
infância, independentemente de seu estatuto.

22
Para o aprofundamento e diferenciação destas configuraçóes, cf. Da holófrase e seus
destinos, em Vorcaro, A., Crianças na Psicanálise, clínica, instituição, laço social, Cia de
Freud, Rio de Janeiro, 1999.
16
17

2 – Latência, ou o Real da temporalidade:

Mais do que uma manifestação fenomenológica da sexualidade, a


transposição da masturbação para a realização do ato sexual, operada na
passagem da criança ao adulto, a latência implica o tempo para
compreender a castração. O tempo, chamado por Freud de latência, exige a
consideração de sua incidência como presença do real na estrutura que traz
uma lógica que não prescinde da diacronia. E poderemos constatá-la.
Freud introduziu nos “Três Ensaios de Teoria Sexual” o que até hoje se
mantém como ponto de impasse entre os adeptos da concepção de sincronia
da estrutura do sujeito. Assim se expressou Jacques-Alain Miller (1992) ao se
referir ao significante criança:

<<Essa vocação de dissolver a criança, é a dificuldade que


introduz esta perspectiva lacaniana. Do ponto de vista do
inconsciente, se tomarmos a fórmula freudiana de que este não
conhece o tempo, pode-se pensar que o inconsciente não conhece a
criança tampouco. Assim, a criança seria uma denominação
cronológica e quando se é partidário da perspectiva estruturalista,
não se pode sustentar que a criança existe. [...] Há uma definição
de criança: é o sujeito cuja libido não se deslocou dos objetos
primários. Não vou dizer que é uma excelente definição, mas na
libido não é indiferente o fator temporal.>> (Miller,1992: 9-10,
grifos meus)23

Trata-se da interrogação sobre a condição estrutural da subjetivação e


os percalços da temporalidade real cujas marcas localizam a constituição do
sujeito.
Apesar de atribuir muita importância à latência e à puberdade,
localizando a constituição plena do sujeito apenas na puberdade, Freud afirma
que o essencial está cumprido com o Édipo, por volta dos 5 anos:

<<A inclinação infantil para seus pais é sem dúvida a mais


importante, porém não a única, das sendas que, renovadas na
puberdade, marcam o caminho para a escolha de um objeto. Outros

23
Apertura de las II Jonadas Nacionales: desarollo y estructura em la directión de la cura,
Buenos Aires, Centro Pequeno Hans, 1992, apud Bernardino, L., As psicoses não decididas da
infância, um estudo psicanalítico, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2004.
18

pontos de partida com a mesma origem possibilitam ao homem,


apontando-lhe sempre da sua infância, desenvolver mais de uma
série sexual e plasmar condições totalmente vaiadas para a eleição
de objeto>> (Freud, 1905, ESB:235-6 e AE:209).

Nem por isso, Freud deixa de abordar a latência como fator que nomeia
como constitucional:

<<parece seguro que o neo-nato traz consigo os germes de


noções sexuais que continuam desenvolvendo-se durante certo
lapso, porém, depois, sofrem uma progressiva sufocação
{...].Durante esse período de latência total ou apenas parcial, se
edificam os poderes anímicos que mais tarde se apresentarão como
inibições no caminho da pulsão sexual e, ao modo de diques,
restringirão seu curso (a repugnância, o sentimento de vergonha, as
exigências ideais na estética e na moral). Na criança civilizada
tem-se a impressão de que o estabelecimento desses diques é
obra da educação, e sem dúvida ela contribui muito. Porém, na
realidade, essa experiência é de condicionamento orgânico,
fixado hereditariamente e pode ocasionalmente ocorrer sem
qualquer auxílio da educação>>(Freud, 1905, ESB: 180-1 e
AE:160-1)

Ou ainda:

<<Quando a ternura que os pais têm sobre o filho evitou


despertar-lhe a pulsão sexual prematuramente – vale dizer, antes
que estejam dadas as condições corporais próprias da puberdade -
e despertando-a com tal força que a excitação anímica abra espaço
de maneira inequívoca até o sistema genital, aquela pulsão pode
cumprir sua tarefa: conduzia a criança, chegada a maturidade, até a
eleição de objeto sexual. Por certo, o mais imediato para a criança
seria escolher, como objetos sexuais justamente as pessoas a quem
ama desde a sua infância, por assim dizer, com a libido atenuada.
Mas, com o diferimento da maturação sexual, ganhou-se tempo
para erigir, junto a outras inibições sexuais, a barreira do
incesto e para implantar nele os preceitos morais que excluem
expresssamente a eleição de objeto, por sua qualidade de
parentes consangüíneos, as pessoas amadas da infância. O
respeito a essa barreira é sobretudo uma exigência cultural da
sociedade: tem que impedir que a família absorva interesses que
farão falta para estabelecer unidades sociais superiores e por isso,
em todos os indivíduos, porém especialmente nos
adolescentes, maneja todos os recursos para afrouxar os laços
que mantém com sua família, os únicos decisivos na infância>>
(FREUD, 1905, ESB: 231-2 e AE:205)
19

Enfim, Freud afirma literalmente o que permite localizar o caráter bifásico


da sexualidade. Nos acréscimos feitos aos Três ensaios em 1915,
encontraremos outras maneiras de apresentar a questão dos “DOIS TEMPOS
DA ESCOLHA DE OBJETO”:

<<O SEGUINTE PROCESSO PODE RECLAMAR O NOME


DE TÍPICO: A ESCOLHA DE OBJETO SE REALIZA EM DOIS
TEMPOS, EM DUAS ONDAS. A PRIMEIRA SE INICIA ENTRE 2 E
5 ANOS E O PERÍODO DE LATÊNCIA A DETÉM OU A FAZ
RETROCEDER: SE CARACTERIZA PELAS NATUREZA INFANTIL
DE SUAS METAS SEXUAIS. A SEGUNDA SOBREVÉM COM A
PUBERDADE E DETERMINA A CONFORMAÇÃO DEFINITIVA DA
VIDA SEXUAL.[...] A ELEIÇÃO DE OBJETO DA ÉPOCA DA
PUBERDADE TEM QUE RENUNCIAR AOS OBJETOS INFANTIS
E COMEÇAR DE NOVO COMO CORRENTE SENSUAL>>
(FREUD, ESB: 206 E AE:182)

Na infância, a criança é inscrita primeiramente como objeto do Outro.


Dessa perspectiva, como diz B.Nominé24, ela é um brinquedo erótico para os
pais e ela goza dessa posição em que é colocada, mas não detém nenhum
saber articulado sobre o gozo nesse lugar em que é posicionada. É o que
permite dizer que a sexualidade infantil é polimorfa: ela desconhece a
finalidade e as modalidades da reprodução sexual.
Não tem acesso nem ao ato sexual nem ao ato discursivo porque, por
um lado, a despeito da exigência pulsional, sua condição orgânica impõe uma
impossibilidade de realização. Por outro lado, apesar da exigência do laço
social de que fale, sua fala não tem estatuto jurídico, não é reconhecida num
estatuto discursivo.
Portanto, se a criança goza na infância, é sem domínio do saber sobre o
gozo e é o que permite a construção fantasmática em que, a despeito de
responder a uma falta do grande Outro, a criança não tem domínio do seu
ato.

24
Em conferência realizada em São Paulo, 1999.
20

A sexualidade adulta supõe o encontro com o outro sexo e o saber sobre


a procriação. Essa condição de saber sobre o gozo é o que implica no
sujeito a responsabilidade sobre seu ato.
Entre a sexualidade infantil e a sexualidade adulta temos o período de
latência em que a sexualidade infantil é abandonada, esquecida, e o sujeito
trabalha sua inclusão no campo do saber.
O período de latência é condição estrutural necessária à separação
entre gozo e saber, é o tempo para compreender a castração a que todo
sujeito está submetido.
Na latência a criança procura os meios de responder à existência da
falta de saber do grande Outro, descobrir uma posição em que possa
situar um saber em relação à alteridade.
Assim, a aquisição de conhecimento operada pela sua educação,
conduz a criança a deslocar-se de um gozo auto-erótico para enlaçar-se
nas modalidades de gozo que o campo social ordena, por meio do
aparelhamento que a linguagem produz. O sujeito sai assim da posição
infantil em que é objeto de um Outro para construir seu próprio mito em que
o grande Outro é não-todo, por meio das articulações e hiâncias
significantes que o tesouro cultural lhe oferece25.

25
Ao menos duas condições restritivas apontam para a violação do período de latência: desastres na
estrutura que jogam as crianças à deriva pulsional, impossibilitadas que ficam de fazer laços com os
semelhantes que agenciam o grande Outro.
O menino jogado na rua no período de latência, (mas também a criança violentada sexualmente e
a criança trabalhadora), antes que uma exigência pulsional o confronte ao outro sexo, é violentado
sexualmente, é batido no real de seu corpo já que é obrigado a funcionar no registro do adulto. Antes que
possa reorganizar sua construção fantasmática ele faz. Em vez de fantasiar faz o ato.
Ao dizer “é um assalto, me dá o dinheiro senão eu te corto a cara” especularizam o assalto
temporal sofrido e recebem como resposta o mesmo medo, o horror e a submissão já vivido por elas. Sua
fala ganha reconhecimento social, é ordenadora do laço em que ele supõe ter o domínio, fazer a lei
insensata do vale tudo. Nessa posição perversa, sua palavra não é engajada no brincar de bandido, mas faz
ato e tem reconhecimento devido ao perigo de desamparo a que submete o outro.
A violação da latência que o convoca a responder antes que detenha um saber, o institui num
lugar de poder que lhe é conferido, onde, a despeito do real de sua constrição orgânica, seu corpo pode
realizar qualquer ato: ele vai responder não com a palavra, mas com seu corpo.
A criança surda, sem acesso ao diagnóstico e ao tratamento na infância, fica exposta à condição
de débil. Muitas sem escolaridade alguma, outras vezes em escolas não habilitadas, é exposta a uma
restrição da língua a tal ponto que apenas alguns gestos indicativos são sistematizados por seus pares que
lêem estes gestos em posição signica, biunívoca. Depois de passarem toda sua latência na posição de
objeto do gozo do Outro, sem acesso a meios para aparelhar-se com algum saber, são enfim, na
adolescência, expostas á língua de sinais. Descobrem uma possibilidade inédita de circulação na língua,
de encontros, de saber. Enfim, aparelham-se com a língua. Nesse momento, entretanto seu corpo está
organicamente constituído, está acossada pela urgência das pulsões e pela necessidade de realização. Seu
21

É o que permite ao sujeito adolescente estabelecer as condições de


gozo sabendo, e portanto, podendo assumir a responsabilidade por seus
atos.
Nesta perspectiva, a adolescência é um momento de passagem
estrutural em que o sujeito olha por trás de seu período de latência para saber
do gozo perdido na infância, aparelhando-se para o gozo no encontro
com o outro sexo. Olhar por trás da latência permite confrontar-se à
desmontagem da promessa edípica construindo uma outra versão de sua
realização.
Traçamos o percurso em que o sujeito se inscreve no simbólico que lhe
pré-existe. Afinal, do investimento fálico da alteridade na criança, orienta-se a
incidência da ordem significante na dinâmica que se instaura a partir da
função imaginária do falo, promotora da operação metafórica do Nome-
do-pai que permite ao sujeito evocar a significação do falo26. Desta forma,
o sujeito carrega o verso da causa que o fende27, causa que é o significante
que lhe permite inscrição pela perda que só existe depois que essa
simbolização lhe indica o lugar28. Entre a experiência da atribuição fálica e a
sua significação temos, portanto, o lapso que a trança percorre, lapso não
apenas enquanto contingência temporal como também enquanto formação do

corpo não lhe impõe qualquer limite, qualquer ato pode ser experimentado sem nenhuma elaboração. É ao
mesmo tempo em que passam a falar, com o corpo pela língua de sinais, podem também fazer qualquer
ato com o corpo. Falar e fazer são facilmente equivalentes, transparentes, sem mudança de registro de um
para o outro, sem leitura de um sobre o outro.
Os surdos, ao se disporem da língua de sinais, dificilmente mantém-se submissos a pais que não
falam a língua deles. Esses adolescentes são jogados, sem intermediação, em outros laços, onde suas
referências parentais nada valem, pois efetivamente falam línguas estrangeiras a ambos. Morte, gravidez,
roubos e delinqüência em todos os seus âmbitos podem ser pressagiados nos dois casos.
Nessas duas situações, enfim – a primeira, dos meninos de rua, em que a adolescência é
antecipada, suprimindo a latência, por violação, e a segunda, dos surdos, em que a latência é postergada à
adolescência, em que a condição real do organismo produz a urgência de realização que impede o tempo
de elaboração da castração – encontramos a condição social incidindo na estruturação do sujeito:
antecipação da adolescência ou adiamento da infância.
Esses modos de supressão da latência mostram o limite do corpo – seja por sua restrição de
tamanho, habilidade e força, ou ainda por sua imaturidade sexual – como constrição necessária à
elaboração da castração, que faz o adiamento do ato uma condição estrutural do cálculo subjetivo. Tais
desastres na latência evidenciam o quanto o Real do desenvolvimento orgânico determina a possibilidade
da elaboração psíquica.
26
CF. Nina Leite, “História e estrutura”, Dizer, no. 7, Revista da Escola Lacaniana de Psicanálise, 1993.
27
Jacques Lacan (1960), Intervenção no Congresso de Bonneval, mimeo.
28
J. Lacan (1966), “Da estrutura como intromistura de uma alteridade, prévia a qualquer que seja o
sujeito”, Congresso de Baltimore, A controvérsia estruturalista, R. Macksey e Donato E. orgs., São
Paulo, Cultrix, 1976.
22

inconsciente, na estrutura temporal reversiva em que a castração retroage


ao recalcamento originário para lhe conferir significância, no aprés-coup
que promove a articulação circular mas não recíproca.
Se essa trança ordena a estruturalidade de um sujeito constrangido
pelas dimensões Real, Simbólico e Imaginário, seus movimentos não se
superam, eles se mantêm no constrangimento que os enlaça. O que foi
considerado no trançamento como linhas implica a retroação que lhe
confere sua condição circular.

Afinal, as três dimensões se repetem, são incessantes e indestrutíveis, fazem


coincidir lei e desejo numa determinação recíproca que constrange e
sustenta, no sintoma e no fantasma, as condições de gozo de um sujeito, ou
seja, sua realidade psíquica, orientada pela versão paterna.
Por isso, o nó borromeu não é a norma para a relação de três
funções. R, S, I só incidem num exercício determinado pela versão da
nominação paterna, ou seja, o nó borromeano é sempre pai-vertido. O
constrangimento que os mantém ligados é sempre enigmático.
Essa tripartição tracionada pela relação que a sustém aloca o ponto
central, onde se encurralam os cruzamentos de R, S, I. Demarca-se aí a
causa vazia da realidade psíquica de um sujeito desejante: o objeto que viria
satisfazer seu gozo, mantém-se irredutivelmente alhures, é um objeto
insensato do qual não há idéia. Atribui-se a tal objeto uma letra
23

:<<Não há nada no inconsciente,[...], que com o corpo faça acordo. O


inconsciente é dizcordante. O inconsciente é o que, por falar, determina o
sujeito enquanto ser, mas ser a se riscar desta metonímia cujo desejo eu
suporto, já que, para todo sempre, impossível de dizer como tal. Se digo que o
pequeno a é causa do desejo, isto quer dizer que ele não é dela o objeto. Não
é o complemento direto ou indireto, mas apenas essa causa [...] que causa
sempre. O sujeito é causado por um objeto que só é notável por uma escritura
[...] Abstração radical escrita com a figura de escritura a da qual nada é
pensável. Tudo que é sujeito, sujeito de pensamento que se imagina ser Ser, é
determinado pelo a>>29.
24

3 – A nodulação RSI na adolescência:

As considerações de Jean-Jacques Rassial30 sobre a articulação entre o


Real, o Simbólico e o Imaginário na adolescência nos permitem estabelecer a
hipótese de a passagem da criança ao adulto configurar o estabelecimento
de um quarto elo na trança borromeana, distinguido por Lacan como
Sinthome.
Rassial (op.cit.) esclarece os constrangimentos do Real, do Simbólico e
do Imaginário, na adolescência.

O Real: Sendo o corpo constituído no imaginário, apoiado no simbólico,


a ocorrência da puberdade fisiológica marca a presença do Real no corpo,
pois implica a transformação que extrapola a imagem previamente concebida31.
O acontecimento do acidente do corpo joga o sujeito no mundo sob o
modo de desamparo. Mas o real também incide com a constatação do
impossível da relação sexual. A criança, até então sustentada na promessa
de que, ao preço de uma renúncia provisória, teria acesso ao verdadeiro
gozo, depara-se com o fato de que, embora possa ter acesso à genitalidade, o
objeto de seu desejo e o Outro não são reconciliados no ato sexual: o
gozo sexual é parcial e o Real do fracasso o espreita.
O aspecto catastrófico desse acontecimento é primário e é sobre ele
que o sujeito elabora respostas.

O Imaginário: Um novo desenvolvimento imaginário que sustente a


imagem do corpo e a consistência do Outro, por meio de uma
redistribuição do mundo objetal será necessário na adolescência, para que o
sujeito não caia no Real. O imaginário secreta seu limite egóico: a impotência.

29
J. Lacan (1974-5), Seminário XXII, RSI, lição de 21/01/75.
30
Rassial, J-J, O adolescente e o psicanalista, Cia de Freud, Rio de Janeiro, 1999.
31
Cabe lembrar que, para além da adolescência, a presença do real no corpo também se
manifesta na angústia, na gravidez e na doença orgânica.
25

Para dar sentido à vida é preciso pagar o preço de um dano irreparável à


imagem infantil do corpo.
A ênfase na genitalidade leva o adolescente a dar ao Outro a
consistência imaginária do Outro sexo. Entretanto, o Outro se configura
sobre três avatares, na adolescência, seja ao voltar-se ao Outro do Outro
(os pais dos pais, a tia, a genealogia e a história da famíllia); seja atribuindo
uma nova função de Deus, que garantiria esse lugar Outro (arrebatamentos
místicos e religiões); seja na consideração da consistência da sociedade:
atraente e ameaçadora, visada e rechaçada, numa direção política como
engajamento utopista, mesmo que o mais tarde, o alhures, ainda
desempenhem seu papel de sutura na utopia.
O adolescente deve imaginariamente integrar os infinitos com os
quais se defronta, devido à constatação da fragilidade dos alicerces que
ordenavam para a criança. A consistência do Outro é exigida: mais solidez
que os pais e capacidade de integrar a medida do infinito.

O Simbólico: A mudança de posição na cadeia de gerações que


localiza o adolescente como virtualmente pai. O sujeito passa da extensão
mínima da cadeia simbólica à sua extensão máxima: há que por à prova que o
microcosmo familiar não é fundador, é apenas uma fórmula imaginária
delegada socialmente de uma estrutura simbólica e que o laço social é
outra fórmula. Daí se funda o interesse pelas teorias, sistemas e a
ideologia, denunciando as incoerências contradições internas do discurso
ou contradições entre o dizer e o fazer.
O significante, o que representa o sujeito, é também posto em
questão: daí as manifestações de apelidos, gírias, até o mutismo, pondo a
prova o simbólico, interrogando o que quer dizer falar ou de modo
performativo (juramentos, declarações de amor).
A ordem dos significantes é abalada em três níveis:
Significante mestre: a submissão ao adulto, por meio da ordem
parental não mais garante a identidade, o desejo escapa dessa captação.
26

Significante fálico: não garante uma relação válida com o outro sexo.
Será preciso fundar a intersubjetividade aquém ou além deste
significante.
Nome-do-Pai: não é mais sustentado pela relação familiar, vai ter que
ser validado destacado do pai da realidade e de todo pai imaginário,
podendo então se escrever no plural: a mulher, o sintoma, etc.
Enfim, na adolescência o significante se confessa enganador e o
simbólico frágil.

Momento lógico de apropriação do sintoma sexual, a operação que


se efetua na adolescência obedece ao que é recalque secundário de
representações insuportáveis para o ego, mas também vem completar,
confortar, validar o impasse fundador do recalque originário, pois faz o
sujeito entrar numa história possível, remetendo à pré-história (infância)
os traços disso que o produz.
Abre-se assim uma nova temporalidade, em que a adolescência enfim
confirma que a presença do Outro não é segura, sendo que a efetivação
da apropriação do sintoma sexual marca o fim do funcionamento psíquico
da adolescência.
27

4 – A construção do Sinthome:

O nó borromeano dimensiona o ponto: os três círculos do nó determinam


um ponto central, grafado com a letra a. Em cada uma das três dimensões que
constituem a nossa realidade e das quais depende nossa representação, a
consistência circular de cada elo do nó delimita os campos de ex-sistência: o
fora que não é um não-dentro. A ex-sistência se define pelo apagamento de
todo a consistência do sentido. Para que algo ex-sista, é preciso situar
buraco em cada um dos elos, pois só o buraco permite que cada elo se
ate. Assim, diferentemente da noção filosófica de existência, a ex-sistência,
fragmentada por um hífen, em Lacan, torna-se tangível. A ex-sistência
suporta-se do buraco de cada um dos elos R,S,I. Portanto, em cada um, a
circularidade consistente que define o sentido de cada registro circunda
seu buraco. Assim, a consistência do Simbólico contorna o recalcado, a
consistência do Real admite o buraco e a consistência do Imaginário é vazada
pelos orifícios corporais por onde transitam as pulsões.
Os três termos R, S, I também se diferenciam, a título de ex-sistência, a
própósito do gozo que faz o Real. À vista do Real, o gozo é o que ex-siste ao
sentido. O ex- é o que gira em volta do consistente e lhe faz intervalo,
propiciando modalidades diversas do atar neste intervalo.
O objeto a é o cerne do gozo que se sustenta com o nó borromeano. É
o objeto só reconhecível pelos resíduos de seu esfacelamento em objetos
pulsionais identificáveis corporalmente como manifestações do corpo:

<<o parceiro desse eu que é o sujeito, sujeito de qualquer frase de


pedido é, não o Outro, mas o que vem se substituir a ele na forma da causa do
desejo - que eu diversifiquei em quatro, no que ela se constitui diversamente,
segundo a descoberta freudiana, em objeto da sucção, objeto da excreção, o
olhar e a voz. É enquanto substitutos do Outro que esses objetos são
reclamados e se fazem causa do desejo>>32. (grifos meus)

A insuficiência que qualquer gozo, que venha em suplência, implica é


constrangimento imposto pelo objeto a enquanto o inatingido gozo a mais
(mais-gozar), alocado no exterior mais central da escrita do nó borromeano.

32
Seminário XX, Mais, ainda, op. cit., p.171.
28

O nó escreve as condições de gozo e permite contar os seus


resíduos. Cada uma das intersecções entre os círculos notam as ramificações
do gozo, por falta do gozo pleno que não há, onde o trabalho de operar as
relações com o a se distingue:
<<A realidade é abordada com os aparelhos do gozo.[...]aparelho, não
há outro senão a linguagem. É assim que, no ser falante, o gozo é aparelhado.
[...] Isto quer dizer que o gozo é anterior à realidade. >>33
.

33
Ibid., p.75.
29

Assim, a partir do ponto a, o planeamento do nó permite acrescentar


três funções que trazem gozo: A extensão dessas modalidades de gozo
implicam o triádico freudiano, Inibição, Sintoma e Angústia34, considerado por
Lacan como termos tão distintos quanto os registros R,S, I. Assim:
- FUNÇÃO DO SENTIDO: na articulação de S com I. A extensão do
sentido implica a inibição (no ponto em que algo do Imaginário pára de se
imiscuir no Simbólico), A inibição é sempre inibição de função corporal,
concebida como parada de funcionamento imaginária no ser falante.
O fato do nó resulta de algo que lhe é externo, o sentido, que se
adquire ao se tomar essas letras como Real, Simbólico e Imaginário. O termo
sentido é reduzido por Lacan ao que há nele de mais próprio: nomeia alguma
coisa. O sentido, lembra Lacan, nomeia a diz-mansão dessas coisas vagas
que se fundam no Real.
Localizado na junção do imaginário com o simbólico e suportado pela
ex-sistência correlata ao real, está o vago gozo do sentido, do corpo que fala:

34
Recorrendo ao triádico, Inibição, Sintoma, Angústia, anunciado por Freud, Lacan o
localiza no nó borromeano. Este triádico havia sido reintroduzido por Lacan no Seminário da
Angústia, segundo ele para mostrar as qualidades do afeto que os afetuosos aficcionados
estavam impedidos de perceber; demonstrar que esses três termos são tão heterogêneos
entre si quanto o Real, o Simbólico e o Imaginário.
30

<<se pensarmos que não há o Outro do Outro, pelo menos não gozo do
Outro do Outro, é bom que façamos a sutura em alguma parte.[...] tudo isso
para fazer sentido>>35.

O funcionamento significante enquanto reduzido à dimensão pura do


simbólico é o registro do equívoco, já que é encadeamento de termos
envergáveis em todos os sentidos. Na cadeia simbólica, os Uns

<<são todos feitos da mesma maneira, de não serem outra coisa senão
Um>>36.

Este funcionamento só é operante na interpolação do imaginário, que


neles encontra equivalências, reciprocidades e dessemelhanças, produzindo
valores designativos e assim permitindo, ao dizer, um laço que ultrapassa a
mera jaculação de termos deslizantes um a um:

<<na medida em que o Inconsciente se sustenta nesta alguma coisa


que é por mim definida, estruturada como o Simbólico, é do equívoco
fundamental com esta coisa que se trata, sob o termo Simbólico.[...]O equívoco
não é o sentido. O sentido é aquilo por que alguma coisa responde, é diferente
do Simbólico, e esta alguma coisa, não há meios de suportá-la senão a partir
do Imaginário>>37.

O sentido, somos reduzidos a imaginá-lo.


Em seu parentesco com a boa forma, o sentido é o efeito desse
funcionamento significante em que o imaginário lhe dá continuidade de
substância:

<<o homem pensa com a ajuda das palavras. E é no encontro entre


estas palavras e seu corpo que algo se esboça [...] ali se coloca o sentido>>38 .

O sentido é o curso, a direção do ciframento nas manipulações do pensamento


que permitem a metáfora e a metonímia:

<<Não há trinta e seis sentidos que se descubram no extremo do


inconsciente: é o sentido sexual, quer dizer muito precisamente o non-sens[...]

35
Seminário XXIII, Le Sinthome, op. cit.,lição de 13/01/76.
36
Seminário XX, op. cit., p.174.
37
Seminário XXII, RSI, op. cit. , lição de10/12/74.
38
“Conferencia en Ginebra sobre el Sintoma” (04/10/75), Intervenciones e textos 2, Buenos
Aires, Manantial, 1988.
31

este sentido sexual só se define por não poder se inscrever. [...]E a linguagem
é feita assim. É alguma coisa que o mais longe que vocês cultivarem o
ciframento não chegará jamais a abandonar o que é do sentido, porque ele
está lá neste lugar. É o que faz com que a relação sexual não possa se
escrever...>>39 (grifos meus).

O equívoco ou o tropeço que a linguagem permite jogam contra este


gozo de sentido que a linguagem também permite.
A opacidade do sentido se deve a sua função de substituição à falta e,
nesta medida de suplência, o sentido responde pelo real,

<<o próprio do sentido é que aí se nomeia alguma coisa e isso faz


surgir a diz-mansão, a diz-mansão dessa coisa vaga que são as coisas, e que
tomam seu assento no Real>>40.

Na inibição, ocorre o estancamento do funcionamento imaginário em que


o sentido se torna uma exterioridade ao corpo.

- FUNÇÃO DO GOZO FÁLICO: no cruzamento R e S. A extensão do


Gozo fálico faz sintoma (esse efeito do Simbólico no Real que é signo de algo
que não vai bem no Real) [RSI,1974-5,10/12/74] O estatuto da noção de saber
(dependente da continuidade fomentada pelas gerações e que domina desde a
antiguidade) é interpelado por Lacan, a partir da consideração do modo de
saber do inconsciente como emergência de um saber próprio a cada um. Para
Lacan, tocamos em uma forma completamente distinta de saber no Real. O
saber que aparece no buraco definido pela consistência do Simbólico, não se
apresenta sob a forma de saber imanente ao Real, ou seja, de que o Real
saberia o que fazer. O saber do Real se define sob a forma da onipotência e
sabedoria de Deus41. Por isso o buraco suportado pela consistência do
Simbólico. Um saber supõe, necessariamente, a relação com o Simbólico.
Pode-se figurar o sintoma refletindo o Real: é algo que não funciona mas se

39
Seminário XXI , Les nons-dupes errent, op. cit., lição de 20/11/73.
40
Seminário XXII, RSI, lição de 11/03/75.
41
Cabe lembrar que a visão de universo construída pela ciência moderna, com Copérnico,
Kepler, Galileu e Newton, parte do princípio que o universo teve um grande arquiteto e
engenheiro – Deus – que o criou como uma máquina perfeita, dotada de leis precisas que
comandam seus movimentos, que podem ser descoberts utilizando-se procedimentos
32

mantém da linguagem. O sintoma é definido pelo gozo que o inconsciente de


cada um determina. Para Lacan, a noção de sintoma foi estabelecida por Marx,
ao analisar os efeitos do capitalismo: despojamento do homem que reduz sua
essência a nada, produzindo a crença de ser o messias do futuro.
Considerando incontestável a relação do sintoma com a fé do homem, Lacan
substitui a crença do homem em veicular um futuro ideal, pelo homem crente:
determinado pelo modo singular de seu inconsciente gozar. O neurótico
testemunha escapar à noção divina de trinidade desejando o inferno.
Perversão falha, a neurose se caracteriza por insistir sempre na miragem de
uma satisfação que jamais atinge. Portanto, a religião, recalcando não ser
verdade que Deus seja, é mais verdadeira que a neurose. A religião diz que
Deus ex-siste, ele é a ex-sistência por excelência, ele é o recalcamento em
pessoa. Deus é o que o faz com que, a partir da linguagem, não se possa
estabelecer relação entre os sexuados. Deus comporta o conjunto dos
efeitos da linguagem. Assim, para Lacan a despeito de Freud não crer em
Deus ele perpetua a religião consagrando-lhe como neurose ideal. (RSI, 1974-
5[18/02/75]).
Acredita-se nas tradições religiosas porque elas tem o gozo em seu
horizonte. Para Lacan, o ponto ideal do gozo é o falo. Elidido, um real do
gozo ex-siste com esse falo, pois o falo consiste valendo-se de sua ausência.
Devido ao gozo que aí ex-siste, o falante o acentua tanto. Tudo que o falante
conhece do dois é a potência, aparência pela qual o real se mantém apenas
um: real que ex-siste, real como real, real em segunda potência. E um elevado
a segunda potência é igual a um. (RSI, 11/03/75).
O afeto de ex-sistir que define o inconsciente é suportado pelo sintoma.
A função do sintoma é cifrar aquilo que pode ser escrito do inconsciente. O
sintoma, racionalização de cada sujeito, não cessa de se escrever. O sintoma
se define nesse algo que roça com o inconsciente: acredita-se, crê que pode
dizer alguma coisa. [21/01/75]. Sintoma é o signo de alguma coisa que não vai
bem no Real. A capacidade do analista operar sobre o sintoma deve-se ao fato
de o sintoma ser efeito do Simbólico no Real.

experimentais e matemáticos. CF.: Köche, J.C. , Fundamentos de Metodologia Científica,


Vozes: Petrópolis, RJ, 1977,p.54.
33

O campo do gozo fálico (GΦ ) incide na experiência da apropriação


desta significância fálica:

<<Um corpo, isso se goza. Isso só se goza por se corporizar de maneira


significante>>42.

O ser se perde em sujeito por um significante e para um outro


significante, inscrevendo o desejo nesta contingência corporal suportada
pela função fálica. A relação entre dois significantes faz surgir um sujeito
na sua configuração, algo se subtrai e o significante é disso o substituto,
tomado ao próprio gozo fálico. Este significante-mestre é a ordem
significante que permite a subsistência de toda a cadeia simbólica, onde a
significância fálica diferencia-se do efeito de sentido por designar a
relação do simbólico com o real.
Em sua modulação privilegiada, o gozo fálico se impõe a toda
modulação da experiência.

<<a relação [do simbólico com o real] é o suporte de um certo número


de hiâncias; ele[o gozo] constitui os objetos que o ocupam. [...]É por isso que
no sujeito que se suporta do fala-ser, no sentido de que está aí o que eu
designo como inconsciente - e é nesse campo que o gozo fálico se inscreve -
há o poder, o poder, em suma, chamado, suportado o poder de reunir isso que
é de um certo gozo que, do fato dessa própria palavra, reúne um gozo
experimentado, experimentado do fato do fala-ser, como um gozo parasitário e
que é aquele dito do falo >> 43. (grifos meus)

O sintoma, ao conjugar o gozo com sua proibição, corresponde à


função paterna, é efeito do simbólico no real que simboliza o gozo fálico
e protege o sujeito do desejo do Outro44.

- FUNÇÃO DO GOZO OUTRO: no cruzamento I e R. A extensão do


Gozo Outro produz angústia ao ampliar a intrusão do Real no Imaginário. A
angústia é algo que parte do Real, é isso que, do interior do corpo, ex-siste

42
Seminário XX, Mais, ainda, op. cit., p.35.
43
Seminário XXIII, Le Sinthome, op. cit., lição de 16/12/75.
44
<<o sofrimento do sintoma diz respeito ao gozo fálico. A escrita sintomática[...]expõe o
irrepresentável do falo. O sintoma pratica um ato de violência, tenta recuperar um gozo já
perdido um dia, usando os intrumentos de sua perda. Essa tentativa em si é sofrimento, e esse
sofrimento equivale ao gozo que ela busca>> (Gerard Pommier, A ordem sexual, op. cit. ,
p.215.
34

quando há alguma coisa que o desperta, que o atormenta. A angústia dá seu


sentido à natureza do Gozo que se produz entre o Real e do Imaginário.
Um outro corpo é sempre o signo do mais extremo embaraço. O que se pode
fazer, afora despedaça-lo? Se buscamos o que pôde ser bordeado esse gozo
do outro corpo, enquanto ele seguramente faz buraco, encontramos a
angústia. Portanto, além do sentido, que faz buraco no simbólico e da ex-
sistência, que se metaforiza pelo gozo fálico que faz buraco no Real, a chave
do buraco é o gozo do Outro, o gozo que interessa não ao Outro do
significante, mas ao Outro do corpo, o Outro do outro sexo. Um corpo é o
que resiste, o que consiste antes de se dissolver. O Outro corpo é signo do
mais extremo embaraço, só se pode despedaçá-lo. Por isso, é a angústia que
bordeia o gozo do Outro corpo, que faz buraco. A angústia é o que ex-siste do
interior do corpo, quando algo o atormenta, o desperta. .[RSI1974-5, inédito,
17/12/74]. O gozo do Outro (GA), localizado na intersecção do Real com o
Imaginário, refere-se ao gozo para além do falo, gozo imaginado pelo
sujeito como pertencente ao Outro, posto que nada confere aval ao gozo
do corpo do Outro. Um solitário que se conta sem ser, que não se soma a
nenhum Outro numa relação de pleno gozo. É o que implica que a função do
Outro só possa ser situada como uma diferença que participa do Um sem
adicioná-lo a si, ou seja o Outro é o Um-a-menos.
A impossibilidade real que extorque o gozo fálico é suposta pelo sujeito
como parasita que faz prevalecer o obstáculo que irrompe à plenitude do gozo
fálico, onde se distingue uma referência de gozo como pertencente ao Outro:

<<ao se marcar de que distância ele [o gozo] falta, aquele de que se


trataria se fosse isso, ele não somente supõe aquele que seria isso, ele suporta
supor, com isso, um outro>>45.

Acrescenta-se, portanto, ao gozo fálico, o gozo que se situa alhures,


gozo do Outro, ou seja, gozo que está fora do corpo, sendo-lhe sempre
anômalo.
<<O Outro do Outro real, ou seja, impossível, é a idéia que temos do
artifício, na medida em que ele é um fazer, F-a-i-r-e , não escrevam f-e-r, um

45
Seminário XX, Mais, ainda, op. cit., p.152.
35

fazer que nos escapa. Ou seja, um saber que transborda muito o gozo que
podemos ter>>46.

Na angústia, a incidência da indeterminação (real) de um outro gozo


que invade imaginariamente o sujeito, o reduz a ser seu objeto.
Lacan acentua o buraco que faz frente ao simbólico, grafando GA, gozo
do Outro. Comenta que trata-se aí do uso gramatical do genitivo (gozo que
pertence ao Outro), não do subjetivo (é enquanto Outro que se goza), nem do
objetivo (gozar do Outro como objeto), corrigindo assim a noção freudiana de
eros como fusão ou união. Apontando a necessidade de fazer não
equivalências, mas correspondências, Lacan afirma:

<<Isso que as mulheres sabem, que não se enquadra muito nas


categorias masculinas de saber ou de poder, elas sabem pelo simples fato de
ser uma mulher; elas sabem melhor tratar o inconsciente, ocupem-se ou não
elas disso e sem que seja às custas de algo. A categoria delas para o
inconsciente tem uma maior força, elas ficam menos atoladas. Tratam isso com
uma selvageria, enfim, uma liberdade muito impressionante [....] Se eu fosse
localizar em algum lugar a idéia de liberdade, eu a encarnaria numa mulher.
Uma mulher, não forçosamente qualquer uma[...]>> [1974-5, RSI, 11/02/75].
(grifos meus)

Na elaboração dada por Lacan ao Real, ao Simbólico e ao Imaginário,


Deus é a mulher tornada toda. É uma aspiração do Homem de que ex-sistam
mulheres que ordenem a castração. O problema é que não há, a mulher não
ex-siste, o que não implica que haja quem ordene a castração:

<<uma por uma, elas ex-sistem. Elas são terrivelmente reais. Elas são
só isso. Elas só consistem enquanto o simbólico ex-siste, ou seja, o
inconsciente. É enquanto elas ex-sistem como sintoma cuja consistência o
inconsciente provoca, isto aparentemente no campo planeado do Real: em
nome do que se imagina do Real, no qual se imagina no Real o efeito do
Simbólico.>>(RSI, 1974-5[11/03/75])

Lacan afirma que a idéia da suplência da mulher irreal que não ex-
siste, é a errância que remete a trilha do Nome-do-Pai, pai como
nomeante.

46
Seminário XXIII, Le Sinthome, op. cit., lição de 13/01/76.
36

<<O Deus tribal é o significante um sem furo. Lhe é permitido se servir,


corpo de homem assexuado que dá ao partenaire o que lhe falta, por ser
afligido por um falo que lhe barra o gozo do corpo do Outro. Seria preciso a ele
um Outro do Outro para que o corpo do Outro não seja semblante para o seu,
para que ele não seja tão diferente dos animais por não poder fazer da mulher
o Deus de sua vida. Há, para o mental do homem, ou seja, para o Imaginário, a
aflição do Real fálico devido a que ele se sabe nascer apenas semblante de
poder. O Real é o sentido branco pelo qual o corpo faz semblante do falo.
Semblante que funda todo discurso, e primeiramente o discurso do mestre que
faz do falo, significante índice um. Isso não impede que o inconsciente tenha
uma multidão de significantes a copular entre eles, a se indexarem-se
fundindo-se de dois em dois, sem o que não haveria nenhuma chance da idéia
de um sujeito, de um patema do falo cujo significante é o um que lhe divide
essencialmente. O sujeito vem à tona ao se dar conta de que há saber
inconsciente, ou seja, a copulação inconsciente, donde a idéia desse saber
fazer semblante, em relação ao partenaire que é o produto disso que se produz
numa copulação cega. Pois apenas os significantes copulam entre eles no
inconsciente, mas os sujeitos patemáticos que resultam sob a forma de corpo
são conduzidos a trepar. Qualquer coisa os adverte que eles não podem fazer
melhor que chupar o corpo significado outro apenas pelo registro civil. Para
gozar como tal, seria preciso o colocar em pedaços>>(RSI, 1974-5,
[11/03/75])

As estruturas subjetivas são orientadas singularmente pela


especificidade da nominação paterna com a qual o sujeito se sustém:

<<vocês são todos e cada um de voces tão inconsistentes quanto os


seus pais, mas é justamente pelo fato de tanto estarem inteiramente suspensos
neles que vocês estão no estado presente>>47.

O sujeito pode constituir invenções para o atamento borromeano em


suprimento aos pontos de fracasso do enodamento, em que a função da
metáfora paterna não teve incidência, nas versões (pére-versions) que
amarram RSI para suportar a modalização subjetiva. Como testemunham o
autismo, as psicoses ou a debilidade, contingências do percurso do
trançamento borromeano explicitam modalidades que escapam à condição
borromeana da estrutura.
O estabelecimento do quarto elo (o sinthome) distinto de R, S, I , que
suporta a nominação paterna aponta que este quarto elo pode ser
considerado como a possibilidade de suplência à estrutura borromeana
de três elos e, ao mesmo tempo, a condição de estruturação já que esta

47
Seminário XXII, RSI, op. cit., lição de 11/02/75.
37

depende da versão paterna que o sujeito constitui na passagem


adolescente. O quarto elo promove o enodamento borromeano por
contingência de toda modalização neurótica capaz de sustentar uma
estruturação subjetiva. Assim, Brancion (1996) generaliza a análise de Joyce,
feita por Lacan, e considera que o sinthome é o modo particular de
inscrição da função do Nome, reparação de um ponto fraco da estrutura
em qualquer sujeito48.
Efetivamente, o engate dos três elos no nó borromeano admite o
acréscimo de um quarto elo que se ata as três dimensões, repetindo uma
delas e, ao mesmo tempo, mantendo borromeana toda a cadeia. Este quarto
elo imita a função que o matemático Peano designou como Zero, ou seja, este
um que não é sucessor de nenhum, estruturando a série de números
inteiros n+1. Esta função do mais-um que, quando suprimido desfaz a
série, pois todos os outros se libertam, poderá, talvez, ter sua suplência
por meio do acréscimo do mais-um, o sinthome, desde que repita sua
função no nó. Acrescentado como quarto elemento a série borromeana de
três, o sinthome permite a retirada do primeiro, mantendo as mesmas
condições borromeanas. Esta constatação feita a partir da manipulação do nó,
permite alçar a afirmação de Lacan no Seminário RSI (14/01/1975) de que
qualquer abordagem do Real é tecida pelo número. Afinal, a abstração relativa
à consistência de RSI é, para Lacan, feita dessa mesma consistência nada
natural do número.
Inventando a realidade psíquica, afirma Lacan. Freud fez um nó com
quatro a partir do seu três. E ela tem nome: Complexo de Édipo, que ata e
assim sustenta a corda do Simbólico, do Imaginário e do Real. Sem o
Complexo de Édipo, nada da maneira como ele se atém ao Real, ao Simbólico
e ao Imaginário se sustentam. Se Freud elide a redução ao Imaginário, ao
Simbólico e ao Real como atados todos três entre si, ele instaura o Nome-do-
Pai, idêntico à realidade psíquica, realidade religiosa, enlaçando R, S e I. O
Complexo de Édipo, para Lacan está aí implícito.

48
CF. Chatel de Brancion “Haverá um irredutível do Sintoma?”, em: Do sintoma... ao sinthoma,
Rio de Janeiro, Letra freudiana, ano XV, n.17-8, pp.168-175.1996). Cabe ressaltar que a
concepção de sinthome abre uma importante via para o tratamento das psicoses e,
especialmente, para o tratamento das psicoses não decididas da infância.
38
39

Como vimos, Lacan considera que Freud teria mantido a conjunção do


Simbólico, do Imaginário e do Real pela amarração da realidade psíquica, fruto
de duas sobreposições do Real no Simbólico.
Das operações em jogo no Complexo de Édipo, estas duas sobreposições
do Real no Simbólico podem ser localizadas em sua mediação imaginária. Na
primeira, recalque primário, a condição que mantém o filho no gozo pleno da
vida parasitando a linguagem maternante, é sobreposta pela impossibilidade
real que o obriga a entrar nas leis da língua; na segunda, recalque
propriamente dito, a posição em que o filho se encaixa permitindo supor-se
equivalente ao falo imaginário, encarnando e suprindo o que falta à mulher, é
rompida pela impossibilidade real de sustentar o acasalamento ao agente da
função materna, que o força a identificar-se ao pai
A importância do Pai é sua função de modelo da exceção. É preciso que
qualquer um possa ser exceção para que a função da exceção se torne
modelo. O pai cumpre sua posição sendo apenas um modelo da função de
exceção, o que implica que jamais seja a própria exceção proferindo a lei
sobre tudo, pois nesse caso a filiação que ele engendra produz sua forclusão.
O pai intervém excepcionalmente junto ao filho, por meio da virtude de
sustentar um justo meio-dizer que mantém a sua própria versão de pai.
Quaisquer que sejam seus sintomas, ele só fará função de pai desde que a
esses acresça a função de sintoma da pérè-version: ter feito de uma mulher
objeto a que causa seu desejo e com ela fazer filhos, dirigindo-lhes cuidado
paternal. O direito ao amor e ao respeito de seus filhos são produtos desta
orientação pai-versa.
A importância da mãe, para além de ocupar-se de seus objetos a - seus
filhos é a de sustentar sua posição de mulher, objeto a que se suporta no
desejo de um outro, condição para que o filho não encontre aval no gozo do
corpo do Outro materno. A mulher, enquanto objeto a, ex-siste. Ela é sintoma
do homem que nela crê, mesmo que esse acreditar seja sempre frágil e, como
vimos, o sintoma é algo que roça com o inconsciente, acreditando-se que
pode dizer alguma coisa. [21/01/75]
A consideração d´Os nomes do Pai no plural traz a ressonância das
possíveis suplências este campo toma. Não que se possa abrir mão do nome
40

do pai, mas Imaginário, Simbólico e Real talvez estejam num estado de


suficiente dissociação para que só o Nome do Pai faça nó borromeano e
mantenha juntos, enodados, R.S.I.
Por isso Lacan reafirma que quando diz Nome do Pai quer dizer que
pode haver, como no nó borromeano, um número indefinido. Esse é o ponto
vivo. Esses números indefinidos, estando atados, repousam todos sobre o um.
Enquanto buraco, ele comunica sua consistência a todos os outros.
A concepção de identificação de Freud é, para Lacan, genial porque
refere-se à identificação com o grupo. E o ponto de partida para o
estabelecimento de qualquer identificação se constitui do buraco da
impossibilidade da relação sexual. Isso implica a necessária identificação
não a dois, mas pelo menos três. Mesmo que sejam só três, isso faz
quatro, donde a expressão lacaniana mais-um. Retirando uma, real, o grupo
se desata. Em três não se sabe nunca qual das três é real, por isso é
necessário que sejam quatro, pois o quatro é o que suporta o Simbólico
daquilo por que ele é efetivamente feito: Nome do Pai. Apenas a
nominação confere a certeza de fazer buraco, por isso o número quatro é
o mínimo, mesmo considerando um certo jogo sobre aquilo que ex-siste.
Assim, talvez, seja possível especificar que não é só o Simbólico que tem o
privilégio desses Nomes do Pai, ou seja, que não obrigatoriamente a
nominação estaria conjunta no buraco do Simbólico.
Lacan recorre ao enunciado de Freud de que na identificação ninguém
vê o suporte, o alcance, só havendo amor por identificação incidindo nesse
quarto termo, o Nome-do-Pai. Freud enuncia três identificações e nessas três
há todo o necessário para que se leia o nó borromeano, em que a consistência
designada por Freud está em todos os lugares. Fazendo buraco ou não, a
consistência é a base, a saber, o triskel que não é um nó mas só se inscreve
com a consistência. Foi o que Freud chamou de traço unário. É o que
compõe o nó, tendo em mente que não há amor senão àquele que, do Nome
do pai, faz anel do três do triskel. Afinal, Freud acrescentou a identificação
mínima para que esse termo de identificação se suporte por relação ao nó
borromeano, pois é enquanto o nome do pai é o que faz nó e em se tratando
de triskel, o nome do pai faz nó, pois o triskel ex-siste que pode haver
41

identificação ao que em todo nó é o centro. O desejo se situa, desejo que é


também uma possibilidade de identificação, no lugar do objeto a, aquele que
domina o que Freud torna a terceira possibilidade de identificação: o desejo da
histérica.
Nomear é um ato, afirma Lacan. E o dizer é um ato porque acrescenta
uma dimensão de planeamento no nó único orientado.
Ao identificar o Outro Real com seu Imaginário, tem-se a
identificação histérica com o desejo do Outro, que passa no ponto central.
Identificando o Outro Real com o Simbólico, tem-se a identificação
com o traço unário, Eiziger-Sug.
Identificando o Outro Real com o Real, encontra-se o Nome do Pai
onde Freud designa o que a identificação tem relação com o amor.
Portanto, as três formas de Nome do Pai, nomeiam o Imaginário, o
Simbólico e o Real. O nó está nesses nomes. (18/03/75)
Propondo situar a nominação imaginária não como o que nomeia,
apesar de ser do Imaginário, mas o que faz barra, Lacan explicita que a
nominação imaginária imita a manipulação de tudo que é demonstrativo, de
tudo que, articulado como Simbólico, faz barra no próprio nível da
imaginação e devolve aquilo de que se trata no corpo. O que interessa ao
corpo é o corpo enquanto orifício. Aquilo pelo que o corpo se ata a algum
Simbólico ou a algum Real é justamente a evidencia de um círculo, e é de
um orifício que o Imaginário é constituído. Essa nominação completa o
falso buraco, visto não bastar um orifício para fazer buraco, sendo cada
um deles independente dos outros.
Entre Real e Imaginário, pode ser situada a nominação índice do
Simbólico, enquanto no Simbólico surge algo que nomeia. A idéia de
criação se deve a que seja do Simbólico que surja o Real. Logo no início da
Bíblia, o “Fiat lux” inaugural não é uma nominação. Essa a idéia de criação
nada tem a ver com o fato de, num segundo momento, o mesmo Deus dê
nome a cada um dos animais que habitam o paraíso. A nominação N índice s
é a nominação de que se trata no que nos é miticamente contado. Tem a
ver com um sentido que, em cada caso é diferente. Á nominação de cada
42

um que é um nome comum (não no sentido de Russell), a nominação de


cada uma das espécies representa uma nominação limitada ao Simbólico.
Lacan se pergunta se essas localizações bastam para suportar o que
vem na elementação com quatro do nó que se suporta pelo Nome do Pai. O
Pai é aquele que deu nome às coisas? Ou deve esse pai ser interrogado
enquanto Pai no nível do Real? Será que devemos por o termo nominação
como atado nesse círculo que suporta a função do Real?
Analisando esses três termos, quanto ao que convém dar como
substância ao Nome do Pai, Lacan situa a Nominação do Imaginário como
inibição, a Nominação do Real como acontece de ela se passar de fato, que
quer dizer angústia e a Nominação do Simbólico, implicado na fina flor do
próprio Simbólico, ou seja como se passa efetivamente na forma do sintoma.

Considerando que, para Freud, a realidade psíquica que gira em torno


do Nome do pai, o esforço de Lacan foi o de reduzir o Nome do Pai a sua
função radical de dar nome às coisas com todas as conseqüências que
isso comporta, aí incluído o gozo. Lacan sustenta assim que a realidade
psíquica é declaradamente realidade religiosa, pelo fato de o sujeito
acreditar no ser, pelo fato de falar. Ele acredita que, porque fala, está
salvo. Para Lacan esta é a errância, a deriva, o êrro (“erre”), do pensamento
humano.
Mesmo considerando as possíveis controversas da conjunção de RSI
pelo Nome do Pai, e afirmando não querer profetizar a possibilidade de se
abrir mão do Nome do Pai, Lacan o considera sempre no plural – Os
nomes do Pai – por supor indispensável constituir a suplência de sua
operação:
<<Nosso Imaginário, nosso simbólico e nosso Real estão talvez para
cada um de nós ainda num estado de suficiente dissociação para que só o
Nome do Pai faça nó borromeano e mantenha tudo isso junto, faça nó a partir
do RSI [...] Vocês são todos e cada um de vocês tão inconsistentes quanto
seus pais, mas é justamente pelo fato de tanto estarem inteiramente suspensos
neles que vocês estão no estado presente>>>>[1974-5, RSI, 11/02/75, grifos
meus].
43

Bibliografia:

Köche, J.C., Fundamentos de Metodologia Científica: Teoria da Ciência e


Iniciação à Pesquisa, Vozes, Petrópolis, 1997.
Lacan, J., O Seminário (1972-3) LIVRO 20, Jorge Zahar, Rio de Janeiro, 1975.
_____, (1974-5) RSI, Seminário 22, Inédito.
_____, O Seminário(1975-6), Livro 23, O Sinthome, Jorge Zahar, Rio de
Janeiro, 2007.
Vorcaro, A., A criança na clínica psicanalítica, Cia de Freud, Rio de Janeiro,
1997.
______. Crianças na Psicanálise, Clínica, Instituição, Laço social, Cia de Freud,
Rio de Janeiro, 1999.

Obs: os quadros das páginas 28 e 38 foram retirados ou construídos a partir do


Seminário XXIII, O Sinthome, Zahar, Rio de Janeiro, 2007. O quadro da página
29 foi retirado da estenografia do Seminário XXII.

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