Castilho, Ricardo
Direitos humanos / Ricardo Castilho. – 5. ed. – São Paulo : Saraiva Educação, 2018.
1. Direitos humanos – Brasil I. Título.
17-1387 CDU 347.121.1(81)
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Sumário
Prefácio
Apresentação
Nota à 5ª edição
Nota à 4ª edição
Nota à 3ª edição
Nota à 2ª edição
Parte 1 - Introdução
2. O constitucionalismo, primórdios
3. Constitucionalismo na Idade Média
CARTAS FORAIS
A MAGNA CARTA
PERSONAGENS ENVOLVIDOS COM A MAGNA CARTA
A REPÚBLICA DAS DUAS NAÇÕES
5. Constitucionalismo contemporâneo
ANTECEDENTES TEÓRICOS DA REVOLUÇÃO FRANCESA
Antecedentes Práticos da Revolução Francesa
O Levante Popular de 1789
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
CRUZ VERMELHA, A PRIMEIRA AÇÃO HUMANITÁRIA EM
GUERRAS
ESTADOS UNIDOS MEXICANOS
A Constituição Mexicana de 1917
A PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
O BRASIL NA PRIMEIRA GUERRA MUNDIAL
O TRATADO DE VERSALHES
A República de Weimar
A Constituição DE WEIMAR DE 1919
ANTECEDENTES DA REVOLUÇÃO RUSSA
A BASE TEÓRICA DA REVOLUÇÃO RUSSA
Cai a Monarquia
O NERVOSO PERÍODO ENTRE GUERRAS
A SEGUNDA GUERRA MUNDIAL
A CONVENÇÃO DE GENEBRA
Direito Internacional Humanitário
1. Pena de morte
PENA DE MORTE NO MUNDO
PENA DE MORTE NO BRASIL
REFUTAÇÃO PEREMPTÓRIA DA PENA DE MORTE: MAIS
ARGUMENTOS
A HISTÓRIA DO ESCRAVO FRANCISCO
OS PAÍSES E A PENA DE MORTE
2. Prisão desumana
Os PROBLEMAS DO SISTEMA CARCERÁRIO
O ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL:
POSICIONAMENTO DO STF
O ENCARCERAMENTO EM MASSA COMO FENÔMENO
POLÍTICO
NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DO ENCARCERAMENTO
EM MASSA – PROPOSTAS DA COMISSÃO
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
O PACTO DE SAN JOSÉ DA COSTA RICA
A COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS
A CORTE INTERAMERICANa DE DIREITOS HUMANOS
O BRASIL NA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS: A LEI DE ANISTIA (LEI N. 6.683/79)
PRIMEIRA CONDENAÇÃO DO BRASIL NA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS POR
VIOLÊNCIA POLICIAL
3. Tortura
A aUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMO INSTRUMENTO PARA
COMBATE À TORTURA
4. Discriminação e racismo
TRIBUNAL EUROPEU DE DIREITOS HUMANOS
DISCRIMINAÇÃO E PRECONCEITO
PROGRAMA “BRASIL, GÊNERO E RAÇA”
RACISMO
LEI CONTRA A DISCRIMINAÇÃO NO EMPREGO
RELAÇÃO DE TRABALHO: DIFERENTES FORMAS DE
DISCRIMINAÇÃO
GÊNERO, A BUSCA DA IGUALDADE
SOLUÇÕES PARA A desiGUALDADE DE GÊNERO
1. Introdução
Fundamentação constitucional da eficácia dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares
O artigo 5º, § 1º, da Constituição Federal: “aplicação” imediata dos
direitos e garantias fundamentais
Modelos da aplicabilidade dos direitos fundamentais às relações
entre particulares
O modelo direto
O modelo indireto
O não modelo: negação de quaisquer efeitos dos direitos
fundamentais sobre a relação entre particulares
Outros modelos: state action
Modelos teóricos existentes no Brasil
Referências
Pós-Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina – UFSC.
Doutor em Direito das Relações Sociais pela PUC-SP. Professor
de Filosofia e Direitos Humanos nos programas de Mestrado e
Doutorado da FADISP e EPD. Presidente da Comissão de
Estudos da Cidadania do Instituto dos Advogados de São
Paulo – IASP. Diretor-Presidente da Escola Paulista de Direito
– EPD.
Esta obra é dedicada a um grande homem, que se eternizou
em nossas lembranças pela dedicação, amizade, caridade,
respeito incondicional. Ao meu companheiro das horas
difíceis, parceiro dos bons momentos, orgulho da minha
vida, que norteou sua existência em função da família e do
próximo, Osvaldo Castilho, meu pai e inesquecível amigo.
Prefácio
Introdução
1.
O processo histórico de
reconhecimento
dos direitos humanos
fundamentais
Em Antropologia, um dos fatores que definem o nível de
civilização de um povo é a sua capacidade coletiva de seguir
regras.
A simplicidade da frase não evidencia a complexa relação de
fatores envolvidos na assertiva. Vamos analisar a sentença por
partes. Antropologia, falando genericamente, é a ciência social
que estuda os povos. E, como se pode pressupor, é um estudo
de altíssima complexidade, porque envolve cultura, língua,
símbolos, traços de identidade, tradição oral e escrita, usos e
costumes, rituais. Ou seja, a vida dos indivíduos em
coletividade, com todas as nuanças decorrentes das relações
sociais que as pessoas deverão compreender, introjetar e
praticar, caso contrário a relação social se desfaz. Regras são
convenções, decorrentes dos costumes ou da lei (ou da mistura
de ambos), que uma sociedade aceita, pela conveniência ou até
mesmo pela imposição, para permitir tratamento – em tese –
justo para todos os indivíduos. Essas regras determinam
condutas aceitáveis e inaceitáveis, sanções, prêmios e punições.
Regras primárias tratam do comportamento individual, e
regras secundárias regem o comportamento social. Mesmo as
sociedades primitivas acumulam um repertório de regras que,
de uma forma ou outra, devem ser seguidas pelos integrantes
do grupo. Essas regras envolvem alguns conceitos importantes,
não apenas para a antropologia, mas para o próprio Direito:
primeiro, são oriundas de quem detenha a autoridade;
segundo, são mantidas por meio do poder (por vezes
coercitivo), e, terceiro, tiveram que ser legitimadas pelo grupo.
A autoridade, que em países civilizados é exercida pelo Estado,
pelo governo ou pelo juiz, em sociedades primitivas é exercida
pelo cacique, o pajé ou o sacerdote. O poder, que cabe à polícia,
como representante do governo ou do judiciário, tem seus
representantes equivalentes em sociedades menos organizadas.
E a legitimação se dá, pelo voto, nos grupos avançados, ou pela
liderança e até pela força, em outros grupos. Mas, em resumo,
o que queremos dizer é que, ainda que não haja uma lei escrita,
o grupo primitivo seguiu na prática os mesmos procedimentos
para estabelecer-se como núcleo social. O conceito é o mesmo,
embora às vezes possa faltar método.
Foi contatada, recentemente, pelo Departamento de Índios
Isolados da Funai, a tribo dos índios corubos, na barra do Rio
Javari, no sudoeste do Amazonas, perto da divisa com o Peru e
a Colômbia. Os pesquisadores da Funai observaram, na rotina
de trabalhos desses índios, um comportamento curioso: para
limpar peixes, estendiam a mão e apanhavam o mais próximo,
sem a menor preocupação com método. Ora pelo rabo, ora pela
cabeça, procediam à limpeza, aleatoriamente, sem ordem.
Podemos inferir um conceito a partir dessa observação
aparentemente simples: se há desordem no trabalho,
possivelmente haverá desordem em todo o grupo social. E a
melhor prática de convivência, em qualquer grupo, é o respeito
à pessoa do outro.
Não se trata de esperar que os corubos sigam o pensamento
de Aristóteles (384 a.C.-322 a.C.), que, em seu livro Política1,
conceitua a natureza desta maneira: “a reunião das condições
da existência, das faculdades e dos meios, é o objetivo dos seres
e determina o modo e o último grau de desenvolvimento que
eles são destinados a atingir”. Mas trata-se de trazer, para
reflexão, questões fundamentais daquilo que modernamente
entendemos como civilização. É preciso lembrar que os
estoicos, antes de Aristóteles, colaboraram com o
reconhecimento de direitos inerentes à própria condição
humana, ao defenderem uma liberdade interior inalienável,
que é a liberdade de pensamento. Cícero, em Roma, retomaria
essa ideia, mais tarde.
ORDEM E ORDENAÇÃO
A ordem social está intimamente ligada à ordem moral, que
indica o sistema de valores e normas que governam o
comportamento social em um grupo. Normas e valores são
preocupações dos sociólogos desde Auguste Comte. O
pesquisador R. C. Angell (1958), por exemplo, diz que ordem
moral é “o modo pelo qual o dever é organizado”2. Note-se
que o autor fala em dever, e não em direito. A síntese do
pensamento desse pesquisador é que os grupos são
organizados primeiramente de acordo com as tarefas, com os
deveres, ou seja, com o aspecto utilitário que cada integrante
representa para o grupo. Portanto, primeiro os deveres, depois
os direitos. Um ponto de vista platônico. A própria igreja
católica vem se preocupando com a questão, tanto que o papa
Pio IX promulgou, em 1931, a encíclica “No quadragésimo
ano”, sobre a reconstrução da ordem social.
A ordem pública, que, por sua vez, resulta necessariamente
da ordem normativa, é, nesse sentido, eminentemente
negativa, porque nela estão incluídas normas que têm como
característica geral a proibição. Reforçando a ideia de Angell, a
sociedade livre corre o risco de sofrer crise moral. É preciso
permitir que a liberdade individual seja relativamente tolhida
para que a ordem seja alcançada. O pensador britânico Thomas
Hobbes, um dos mais importantes teóricos absolutistas,
descreveu em Leviatã – obra publicada em 1651 – a seguinte
representação: o cidadão abre mão de parte de sua liberdade,
que é total no estado de natureza, em prol de uma autoridade
que lhe dê em troca a segurança assegurada pela lei, na vida
em sociedade. Isto porque, dizia ele, “o homem é o lobo do
homem”. Não se pode esquecer que Hobbes viveu em um
período histórico em que reinavam, por causa de um vácuo de
poder, constantes guerras e malfeitorias. O Estado absoluto era
a alternativa que Hobbes enxergava para colocar ordem nesse
caos. Era a figura do soberano que, incorporando, em si
mesmo, a figura do Estado, visava conferir segurança ao reino.
Em sendo assim, defendia a noção de que um Estado forte e
absoluto é condição necessária à paz e ao progresso da
sociedade, de tal forma que deveria ser considerada como
dever básico do poder político a busca pelo bem-estar do povo.
Era a doutrina do pacto associativo (pactum associationis), que
também podemos ver em Locke, no Tratado do governo civil, e
em Rousseau, em O contrato social. Ou seja, uma sociedade não
é de fato política enquanto o poder estatal não garante os bens
públicos, como justiça, saúde e educação. Somente com essa
garantia, aí sim, estará configurado o pacto social.
Mas voltemos um pouco no tempo, porque, como numa
colcha de retalhos, foram múltiplas iniciativas em todas as
partes do globo que contribuíram para a formulação, ao longo
do tempo, dos direitos humanos.
O JUSNATURALISMO MODERNO
O pacto associativo é o alicerce do jusnaturalismo moderno.
Esta é a opinião, por exemplo, de Norberto Bobbio, que o
batizou “jusnaturalismo hobbesiano”.
A doutrina dos direitos do homem percorreu longo caminho
até chegar a ser o que é hoje. Foi sendo formulada, aos poucos
e cumulativamente, por vários pensadores. No começo das
civilizações, a ordem era definida por um sistema de normas
fixado pelo Estado, que constitui o chamado direito positivo,
sem dependência a referências ou valores éticos. Já na Roma
Antiga, Cícero, no seu livro Da república3, formulava a doutrina
do direito natural, segundo a qual existiam leis estabelecidas
pelos deuses e que se antepunham à vontade dos governantes.
Assim, o direito natural seria eterno, imutável, superior e mais
válido do que o direito positivo – de natureza eminentemente
política. Simplificadamente, o direito natural define o que é
justo por natureza, enquanto o direito positivo define o que é
justo por lei. Cícero defende, em uma passagem, a existência de
uma lei verdadeira, que deve, esta sim, ser obedecida, porque é
da natureza humana e não muda quando mudam os
governantes nem quando o tempo avança.
“VIII. Se fosse inata a justiça, todos os homens sancionariam o nosso
direito, que seria igual para todos, e não utilizariam os benefícios de
outros em outros tempos nem em outros países. Pergunto, pois: se o
homem justo e bom deve obedecer às leis, a quais deve obedecer? Não
será a todas sem distinção, porque a virtude não admite essa
inconstância, nem a natureza essa variedade, comprovando-se as leis
com a pena e não com a nossa justiça. Não há direito natural e, por
conseguinte, não há justos por natureza. Direis, talvez, que, se as leis
mudam, todo cidadão verdadeiramente virtuoso nem por isso deve
deixar de seguir e observar as regras da eterna justiça, em lugar das de
uma justiça convencional, posto que dar a cada um seu direito é
próprio do homem bom e justo. Mas quais são, então, os nossos
deveres para com os animais? Não varões vulgares, mas doutos e
esclarecidos, Pitágoras e Empédocles, proclamam um direito universal
para todos os seres vivos, ameaçando com terríveis penas aquele que se
atreve a violar o direito de um animal qualquer. Prejudicar os animais
é, pois, um crime”. (Cícero, Da república, Livro III)
Norberto Bobbio4 elencou, para efeito didático, os principais
componentes históricos dos direitos humanos. Em primeiro
lugar, o individualismo, segundo o qual o homem vive em um
estado de natureza, sem lei e sem autoridade, que precede a
criação do Estado; nesse estado de natureza, o homem tem
direitos naturais atávicos: o direito à vida, à propriedade, à
liberdade, à igualdade e à segurança. Em suma, a essência do
constitucionalismo está na liberdade individual, erigida sobre
dois fundamentos básicos: o Estado afastado de interferir na
vida privada do indivíduo e a propriedade privada
assegurada. Hobbes previa a necessidade de um pacto
associativo (que depois evoluiria para a noção de contrato
social) entre indivíduos, livres por natureza, para a formação
da sociedade civil e consequentemente do Estado; nele, os
indivíduos renunciam (em parte ou totalmente) à própria
liberdade e permitem que o rei dirija seus destinos, mas
respeitando-lhes os direitos naturais.
John Locke coloca, em sua teoria, no lugar do rei absolutista,
o monarca parlamentarista. Rousseau, mais tarde, entregaria
esse papel à Assembleia Geral, no seu modelo republicano e
democrático. Todos esses pensadores imaginavam o pacto
associativo como documento escrito que servisse para garantir
os direitos fundamentais do homem.
Hobbes colocava, como primordial, o direito à vida – ainda
assim, a primeira constituição a declarar o direito inalienável à
vida surgiria apenas um século depois nos Estados Unidos da
América. Locke preferiu colocar o direito à propriedade como
o mais sagrado. E Kant, afinal, optou pela liberdade5.
Novamente, repete-se aí a essência do constitucionalismo
liberal: a rejeição ao poder estatal centralizador e o respeito à
propriedade privada.
Mas, mesmo antes de Kant, as teorias surgidas nos séculos
XVII e XVIII, no período de ascensão da burguesia, já
reivindicavam maior liberdade de ação e de representação
política do povo diante da nobreza e do clero. Essas teorias
forneciam justificativa ideológica para os movimentos
revolucionários que levariam progressivamente ao
esboroamento do feudalismo e à constituição do mundo
moderno. A construção dos direitos humanos, na tradição
jusnaturalista clássica, se baseia grandemente no livro De jure
delli ac paces (Sobre o direito da guerra e da paz, de 1625) do
filósofo Hugo Grócio. Esse pensador e jurista holandês é
considerado o fundador do Direito Internacional Moderno, ao
formular a teoria da guerra justa.
O jusnaturalismo moderno – sobretudo com o apoio teórico
dos iluministas – teve importante influência sobre as grandes
revoluções liberais dos séculos XVII e XVIII: a inglesa, a norte-
americana e a francesa. Todas elas revoluções burguesas,
movidas primordialmente por interesses comerciais e
econômicos.
Sem pender para a análise político-partidária, de esquerda,
de direita ou anárquica, mencionamos a questão de teoria
sociológica apenas para apoiar a razão aparente de os direitos,
em especial os direitos fundamentais do homem, serem
deixados, historicamente, para uma posição secundária.
A discussão é antiga. Na Bíblia, São Paulo diz, numa das
Cartas aos Coríntios, algo como: “aquele que não trabalha, que
não coma”.
A base constitutiva das sociedades primitivas era a divisão
de tarefas entre os seres que habitavam o mesmo local. Quem
dividia as tarefas era o mais forte, ou o mais apto – como
queria Charles Darwin na sua tese sobre a seleção natural na
evolução das espécies. Não havia normas, a não ser o direito de
defesa da sobrevivência. Em Direito, este é o método chamado
de autotutela – primeira forma de resolução de conflitos nas
sociedades primitivas.
Nesses primórdios não havia concessão, como deve ocorrer
no método da autocomposição. E também não havia líder, nem
árbitro, nem tribunal (como frequente nas sociedades mais
evoluídas). Na luta pela obtenção de bens necessários à
sobrevivência, os homens enfrentavam-se, às vezes até a morte.
Atualmente, a autotutela é figura admitida somente em casos
especialíssimos, como a legítima defesa da vida, a legítima
defesa da posse e o direito de greve.
Saltando pelos séculos, verificamos que o ser humano
entendeu aos poucos que a necessidade de viver em grupo
exigia a existência de regras e condutas predeterminadas. Essa
consciência deu início às primeiras sociedades organizadas,
mas organização não pressupõe reconhecimento de direitos.
Voltando a Angell, a organização precípua tem base em
deveres. De fato, era o mais forte que assumia o comando. As
primeiras sociedades deixavam-se subjugar por déspotas e
tiranos, que arbitravam, julgavam, sancionavam, puniam e
executavam. Estudiosos como Ferrajoli (2002) afirmam que, nas
sociedades medievais, a ideia dominante era a de que a
autoridade dos governantes se fundava num contrato com os
súditos, num verdadeiro pacto de sujeição (pactum
subjectionis)6. Em outras palavras, o povo aceitava o soberano
na crença de que o governo seria exercido com equidade; se o
governante violasse as regras do bom governo, seria legítimo o
direito de rebelião popular. Mas as rebeliões populares eram
escassas, porque o povo era famélico e desarmado. E também
porque os líderes o conduziam pela força e pelo terror, com
poder autônomo. Não reconheciam regras para si próprios,
mas apenas para os súditos.
A MAGNA CARTA
Na Europa feudal, a população era dividida em três
categorias: guerreiros, sacerdotes e trabalhadores.
Os guerreiros eram os nobres. Estes, como o próprio nome
indica, promoviam a guerra. A pretexto de reparar injustiças
ou espalhar a cristandade, invadiam países para anexar terras,
pilhar os inimigos e saquear quem estivesse pelo caminho –
como se vê, motivos econômicos levados ao extremo pela força.
Os sacerdotes interpretavam a intenção da divindade, quase
sempre emprestando aos deuses palavras que representavam
aquilo que os governantes desejavam que estes tivessem dito.
E os trabalhadores esfalfavam-se para sustentar os guerreiros
e os sacerdotes.
Essa divisão de responsabilidades era, portanto, oficial.
Chamava-se estamento e assemelhava-se a um estatuto
jurídico, estabelecendo direitos e obrigações. Talvez a Idade
Média tenha sido a mais completa era da desigualdade social
oficial. Quem nascia em um estamento permanecia nele. Não
havia ascensão social, como não havia descenso social.
Quem definiu os estamentos foram o clero e a nobreza,
espertamente reservando para si algumas prerrogativas. Os
representantes do clero mantinham-se constantemente
ocupados em garantir a salvação das almas, mereciam ser
sustentados e protegidos, sem precisar pagar impostos. Os
representantes da nobreza, por sua vez, como passavam a vida
ocupados em proteger a todos dos inimigos, também mereciam
ser sustentados não lhes competindo, igualmente, o pagamento
de impostos. Quem restava, então, para sustentar o clero e a
nobreza e pagar os impostos? O chamado Terceiro Estado: o
povo.
Era muito clara a noção de que os homens não eram iguais
entre si; portanto, não podiam ser regidos por leis iguais. Essa
era, por exemplo, a situação em que vivia a Inglaterra no século
XII.
Entretanto, um novo panorama social se avizinhava de tal
forma a estabelecer as bases de novos contornos para a
questão.
No ano de 1213, o papa Inocêncio III convocou o Quarto
Concílio de Latrão para, entre outras medidas, combater a
heresia de seitas politeístas – como a dos cátaros – e convidou,
para isso, autoridades laicas. Presentes ao sínodo, os barões
ingleses aproveitaram para debater as prerrogativas do rei João
I11. Apoiados pelo pontífice, exigiram que o rei renunciasse a
direitos, os quais consideravam exagerados, que prometesse
respeitar a lei e que admitisse que a vontade do soberano não
era mais forte do que estas. Os barões o ameaçaram, alertando-
o para a possibilidade de os aldeões medievais exercerem o seu
legítimo direito de rebelar-se, previsto no pactum subjectionis.
Assim pressionado, João Sem-Terra foi obrigado a editar a
Magna Carta em 1215, com o título solene de “Magna Charta
Libertatum Concordiam inter regem Johannen at barones pro
concessione libertatum ecclesiae et regni angliae” (Carta magna das
liberdades, ou Concórdia entre o Rei João e os Barões para a
outorga das liberdades da Igreja e do rei inglês).
Nicola Matteucci12 lembra que o princípio da primazia da lei
– a afirmação de que todo poder político tem de ser legalmente
limitado – é a maior contribuição da Idade Média para a
história do constitucionalismo. “Contudo”, diz ele, “na Idade
Média, ele foi um simples princípio, muitas vezes pouco eficaz,
porque faltava um instituto legítimo que controlasse,
baseando-se no direito, o exercício do poder político e
garantisse aos cidadãos o respeito à lei por parte dos órgãos do
Governo”.
Tinha razão o pesquisador italiano, porque o documento
nunca pretendeu ser uma declaração duradoura de princípios
legais. Foi apenas uma solução prática para uma crise política e
serviu exclusivamente aos nobres e religiosos que queriam
limitar o comportamento despótico do rei.
Eficaz ou não, a Magna Carta de 1215 foi um marco na
história, tornando--se o início da monarquia constitucional
inglesa e um primeiro passo para o constitucionalismo no
mundo ocidental. Foi redigida em latim medieval (chamado
latim bárbaro), em pergaminho, e outorgada no dia 15 de junho
de 1215. Mas o documento que o rei João I selou com o sinete
real na campina de Runnymede, no condado de Surrey, não foi
a única cópia da Magna Carta. Ao contrário, os escribas, no
gabinete real, imediatamente produziram pelo menos 13 cópias
para serem distribuídas e, assim, divulgaram para todo o reino
o que havia sido acordado. Hoje, apenas quatro dessas cópias
ainda existem: duas delas estão na British Library, em Londres,
uma em Lincoln e outra em Salisbury.
E durou muito. A declaração solene do rei João I da
Inglaterra, dito João Sem-Terra, perante o alto clero, os condes
e os barões do reino atravessou séculos. Foi confirmada seis
vezes por Henrique III; três vezes por Eduardo I; catorze vezes
por Eduardo III; seis vezes por Ricardo II; seis vezes por
Henrique IV; uma vez por Henrique V; e uma vez por
Henrique VI. Três das suas 63 cláusulas ainda vigoram na
Inglaterra, com força de lei. Uma delas é a cláusula n. 1, que
assegura a liberdade e os direitos da Igreja inglesa. A outra é a
cláusula n. 13, que defende os costumes da cidade de Londres e
de outras cidades.
Mas a mais conhecida é a cláusula n. 39:
“Nenhum homem livre será preso, encarcerado ou privado de uma
propriedade, ou tornado fora da lei, ou exilado, ou de maneira alguma
destruído, nem agiremos contra ele ou mandaremos alguém contra ele,
a não ser por julgamento legal dos seus pares, ou pela lei da terra”.
Ela significa que o rei devia julgar os indivíduos conforme a
lei, seguindo o devido processo legal, e não segundo a sua
vontade, até então absoluta. Temos aqui, então, o aparecimento
da judicialidade como um dos princípios do Estado de
Direito13.
O artigo 40 complementa essa intenção e interessa de perto
aos propósitos deste livro, porque dispõe que “a ninguém
venderemos, nem a ninguém recusaremos ou atrasaremos o
direito ou a justiça”.
A ESCRAVIDÃO NO BRASIL
Nesse cenário de conflitos e de aventuras de longo curso, os
governantes escolheram ser duros. Não houve rei da época que
encontrasse a serenidade para preocupar-se com os súditos.
Tanto era essa a menor das preocupações, que foi no século XV
que a Europa iniciou o tráfico de pessoas para servirem como
escravas nas colônias. Veremos, adiante, o que se passou nos
Estados Unidos, em relação aos negros da África. No Brasil, os
primeiros contingentes de negros foram trazidos
possivelmente a partir de 1538, num processo de tráfico que
duraria três séculos inteiros e que somaria um vergonhoso
número de mais de 6 milhões de pessoas contrabandeadas para
o País até 1860. Os dados são de Darcy Ribeiro (2005), citando
pesquisa de M. Buescu22.
A escravidão já existia na Antiguidade, quando os
conquistadores levavam povos inteiros para servir de lacaios.
O próprio Aristóteles considerava a escravidão uma
consequência natural da relação dominação-submissão e
definia o escravo como uma “posse viva”. Um discurso de todo
contraditório no contexto do seu pensamento filosófico.
O Direito Romano, mais tarde, também não se referiria ao
escravo como pessoa, mas apenas como instrumento dos
objetivos do senhor.
A escravidão, especialmente a praticada pelos europeus na
Idade Média, encontrava leniência no discurso religioso.
Diziam os poderosos que a escravidão era uma forma de retirar
pessoas do barbarismo, porque eram trazidas para uma cultura
superior e favorecidas pela salvação da Igreja. (Não foram
colocadas aspas em todas as palavras e expressões aqui
mencionadas apenas para não tornar este parágrafo mais
ridículo.) Por mais absolutamente irracional que possa parecer,
havia senhores, nos Estados Unidos, em pleno século XX, que
defendiam até a ideia da inferioridade biológica dos escravos23.
A escravidão está entre as principais causas da desigualdade
social, permanecendo, infelizmente, até a atualidade na forma
de trabalho em condições análogas à de escravo. Seu antônimo
natural é a liberdade – da qual trataremos adiante, na Parte 2
deste livro.
ILUMINISMO E INDEPENDÊNCIA
Por ocasião da Guerra dos Sete Anos, estava em voga o
pensamento filosófico de John Locke. Em síntese, pregava que
a busca do conhecimento deveria ocorrer por meio das
experiências, e não por deduções ou especulações.
Esse empirismo filosófico rejeitava as explicações baseadas
na fé, por isso defendia a separação da Igreja e do Estado, o
que lhe valeu feroz oposição da Igreja católica. Segundo este
autor, o homem nascia em um estado de pureza e tudo o que
adquiria ao longo da vida advinha da sua convivência em
sociedade. Portanto, era a base do ideal iluminista, mais tarde
defendido por Rousseau, por exemplo, de que todos os homens
nascem bons – a sociedade é que os corrompe ou aperfeiçoa.
Apesar de ter servido à monarquia – ou, talvez, justamente
por isso – Locke tinha ideias muito particulares a respeito do
poder divino dos reis, defendido por Thomas Hobbes. Para
Locke, a soberania devia ser exercida pela população,
representada pelo Poder Legislativo, e não pelo Estado. A este
cabia apenas fazer aplicar as leis, naturais e civis. Está clara,
portanto, a limitação que uma tal teoria impõe ao poder
estatal34. É dele a frase que serviu de mote para a eclosão do
movimento de independência norte-americano: “Não se
revolta um povo inteiro a não ser que a opressão seja geral”.
Mas a frase foi apenas mote, porque as causas foram mais
financeiras do que filosóficas.
Algumas leis inglesas iam cumulativamente reprimindo a
liberdade comercial das colônias norte-americanas, como a Lei
do Açúcar, de 1764, que taxava pesadamente o açúcar que não
fosse comprado das Antilhas inglesas. A mais intolerável, para
os colonos norte-americanos, no entanto, foi a chamada Lei do
Chá, de 1773, que entregava o monopólio do comércio de chá
para a Companhia das Índias Orientais.
Em resposta à imposição da lei, os habitantes fizeram
manifestação contra o governo inglês. Em retaliação, a Corte
interditou o Porto de Boston, nomeou novo governador para a
colônia de Massachusetts e mandou tropas para vigiar as
colônias. Os colonos iniciaram então o movimento separatista,
boicotando produtos ingleses.
LIBERALISMO
Os colonos norte-americanos, ao se rebelarem contra o
governo britânico, usaram como argumento a mesma filosofia
que norteava os dominadores desde a Magna Carta: a
concepção liberal de que o povo não deve ficar sujeito a um
governo arbitrário, mas, sim, ser protegido pela lei e controlar
o Poder Executivo por meio do Poder Legislativo livremente
eleito.
Essencialmente, a declaração americana de 1776 tinha por
base a crença de que os homens são dotados de direitos
inalienáveis, entre eles a vida e a liberdade. Locke sustentava
que havia um estado natural e uma lei natural que ordenavam
que nenhum homem deve prejudicar outro homem na sua
vida, liberdade, saúde e propriedade. O conceito de estado de
natureza havia sido idealizado por Thomas Hobbes, que o
caracterizava como um estado de guerra. John Locke alterou a
sua definição para um estado instável de paz. Rousseau, por
sua vez, considerava-o um primitivo estado de liberdade
plena.
Foi o próprio Império britânico que levou para os Estados
Unidos, em sua corrida expansionista, a concepção do
liberalismo. Do ponto de vista religioso, o pensamento liberal
permitia que o homem seguisse a sua consciência na escolha da
orientação religiosa que deveria seguir ou, mesmo, de não
seguir orientação religiosa alguma. No século XIX, ser liberal
era ser defensor da liberdade de culto e da separação de
poderes entre Igreja e Estado35.
No Brasil foram os liberais os responsáveis por fazer incluir
na Constituição de 1891 a definição do Brasil como um Estado
laico, o que determinou a separação dos poderes.
Afonso Arinos de Mello Franco relata que foi o movimento
liberal que impôs a reforma da Constituição brasileira de 1834:
“No Brasil, como nos EUA, o liberalismo nasceu estreitamente
vinculado ao federalismo e pelas mesmas causas, nas quais se
amalgamavam interesses econômicos e políticos. Manifesta-se pelo
menos desde o século XVIII, com a Inconfidência Mineira, provoca
crises no Brasil-Reino, intervém no movimento da independência,
ensanguenta o Primeiro Reinado e a Regência, sempre desfraldando a
bandeira liberal”36.
Para explicar o pensamento de Mello Franco, vamos lembrar
que, quando cidadãos livres escolhem viver sob uma
constituição, esperam certo grau de autonomia local e
oportunidades econômicas e sociais iguais para todos. Uma
das possibilidades de sistematização dessa distribuição de
poderes é o federalismo, uma forma de organização do Estado
em que o poder e a tomada de decisão são compartilhados
entre os governos locais, estaduais e federal livremente eleitos,
com autoridade sobre as mesmas pessoas e a mesma área
geográfica. Municípios e Estados administram a coisa pública
em parceria com o governo nacional, para a resolução de
problemas.
O Partido Liberal destacou-se, no Império brasileiro, entre
1830 e 1840. Nessa época, a civilização do café fez crescer a
riqueza agrícola do Brasil. Afonso Arinos de Mello Franco, no
mesmo estudo, diz: “Formou-se então um grupo poderoso de
interesses econômicos, fundados na lavoura cafeeira e
escravocrata, e este movimento ascensional da economia vai
mandando à Câmara deputados de índole conservadora e mais
voltados para as realidades econômicas do que para as teorias
liberais, ou vai mudando a posição de alguns representantes
sensíveis à transformação que se operava”. Era o início do
Partido Conservador. Assim, mesmo a primeira Constituição
republicana do Brasil, de 1891, também é liberal.
José Luiz Magalhães anotou em seu livro a seguinte
consideração:
“A partir do constitucionalismo liberal, o cidadão pode afirmar que é
livre para expressar o seu pensamento, uma vez que o Estado não
censura sua palavra; o cidadão é livre para se locomover, uma vez que
o Estado não o prende arbitrariamente; o cidadão é livre, uma vez que
o Estado não invade sua liberdade; a economia é livre, uma vez que o
Estado não regula ou exerce atividade econômica. Lembramos que o
Estado que os liberais combatiam era o Estado absoluto”37.
Em questões econômicas, o liberalismo aplicava-se como a
teoria que sustentava que o Estado não podia controlar a
economia nem restringir a produção e a distribuição de
riquezas. Mas, como o conceito de liberdade é de certo modo
subjetivo, prestar-se-ia, mais tarde, a ser manipulado por
regimes extremistas, como o fascismo e o comunismo.
Organizações liberais chegariam inclusive a lutar contra a
regulamentação do trabalho nas fábricas no início do século
XIX. Por isso, a teoria liberal seria revista, transformando-se na
democracia social38.
SOCIALISMO
Outra corrente de pensamento que concorreu para o
estabelecimento da noção moderna de direitos humanos foi o
socialismo, teoria política que defende a posse ou o controle
dos meios de produção pela comunidade em conjunto e a sua
administração pelo interesse de todos. Friedrich Engels, um
dos teóricos do socialismo, considerava que os meios de
produção que deviam ser socializados, e não explorados pelas
empresas privadas, eram os commanding heights (alturas
dominantes), entre outros, o capital, a terra e a propriedade. O
socialismo pretende ser uma forma de democracia social ou
econômica.
Empregado inicialmente para designar seguidores de
sistemas de cooperativas, o termo socialismo popularizou-se na
Europa e nos Estados Unidos por volta de 1832. Em essência,
preconizava a organização da sociedade de modo a garantir
aos trabalhadores direitos políticos e segurança econômica pela
via do pleno emprego, considerado inatingível no sistema
capitalista do livre mercado. Também preconizava a existência
de um Estado assistencial (o Welfare State) e distribuição de
renda que eliminasse as distinções de classes sociais.
A obra mais importante do socialismo, O capital, seria
publicada em 1867. Uma condensação dessa obra foi produzida
em 1893 pelo genro de Marx, Paul Lafargue, sob orientação de
Engels, para difundir o pensamento marxista entre os operários
franceses.
Mas o socialismo ainda estava longe, quando os colonos
norte-americanos começaram a se mobilizar contra o jugo da
metrópole britânica.
A DECLARAÇÃO DE VIRGÍNIA
Em 12 de junho de 1776 o povo da colônia de Virgínia
divulgou um documento, escrito por Thomas Jefferson, que
seria precursor da Declaração de Independência, esta
divulgada em 4 de julho do mesmo ano, data em que se
comemora o Dia da Independência dos Estados Unidos da
América. Nessa declaração de independência surge pela
primeira vez a afirmação do “direito à vida”, que só voltaria a
aparecer no século XX. Também está nela o mandamento de
que o poder deve repousar sobre o consentimento dos
governados.
É importante notar que a Declaração de Virgínia traz o
reconhecimento de direitos inatos de toda pessoa humana e
também o princípio de que todo poder emana do povo e em
seu nome é exercido. Além disso, afirma os princípios da
igualdade de todos perante a lei, rejeitando privilégios e
hereditariedade dos cargos públicos.
O documento marca historicamente a transição dos direitos
de liberdade legais ingleses para os direitos fundamentais
constitucionais, mormente após a sua incorporação pela
Constituição de 1791 e o início do funcionamento da Suprema
Corte, o que resultou em sua supremacia normativa e na
garantia da justiciabilidade com base nos preceitos nela
firmados39.
Os dois primeiros artigos da declaração, abaixo transcritos,
constituem, nas palavras de Comparato, o registro de
nascimento dos direitos humanos na História40, além de
expressarem os fundamentos da democracia.
Declaração dos Direitos da Virgínia41 (Williamsburg, 12 de junho de
1776)
(Declaração de direitos formulada pelos representantes do bom povo
de Virgínia, reunidos em assembleia geral e livre; cujos direitos que
pertencem a eles e à sua posteridade, como base e fundamento do
governo)
Artigo 1º
Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e
independentes e têm certos direitos inatos, dos quais, quando entram
em estado de sociedade, não podem por qualquer acordo privar ou
despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da liberdade com os
meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter
felicidade e segurança.
Artigo 2º
Que todo poder é inerente e, consequentemente, deriva do povo; que
os magistrados são seus mandatários e seus servidores e, em qualquer
momento, perante ele responsáveis.
CAI A MONARQUIA
No entanto, o maior movimento político e social já ocorrido
em todo o mundo foi a Revolução Francesa, que encerrou na
Europa a sociedade feudal e inaugurou a Idade Moderna. Sob a
bandeira “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” (Liberté,
Egalité, Fraternité), a revolução ganhou dimensão universal e
transformou-se em inspiração para toda a humanidade.
O sonho dos revolucionários era promover um conjunto de
reformas políticas que melhorassem a condição jurídica e
econômica de todos os franceses, iguais perante a lei. Com a
divisão dos poderes, ficando o executivo fiscalizado pelo
legislativo e arbitrado pelo judiciário, todos independentes
entre si, esperava--se que fosse eliminada a tentação do
despotismo. O Estado, separado da Igreja, ofereceria educação,
saúde e segurança para a população. E a esta se faria
representar por representantes eleitos.
5.
Constitucionalismo
contemporâneo
O TRATADO DE VERSALHES
Mesmo depois da capitulação, a Alemanha recusava-se a
assinar o acordo internacional que determinava os termos da
paz e que lhe foi apresentado em 7 de maio de 1919. O acordo
era considerado extremamente rigoroso e elemento de
humilhação para o derrotado. Foi necessário um embargo
naval para que, afinal, a 28 de junho, o representante alemão
comparecesse à Sala dos Espelhos do Palácio de Versalhes, na
França, para assinar o documento de 440 artigos que se
chamou Tratado de Versalhes. Esse tratado deu origem à Liga
das Nações (ou Sociedade das Nações), que seria uma
prefiguração do que hoje é a Organização das Nações Unidas.
Entre as principais penalidades impostas à Alemanha pelos
países aliados, consubstanciadas nesse tratado, estavam a
obrigação de desmontar a aviação militar e a marinha (esta só
operaria navios mercantes de no máximo 10 mil toneladas) e de
limitar o exército a um contingente máximo de 100 mil
homens. Como indenização de guerra, devia pagar US$ 33
bilhões (equivalente a 270 milhões de marcos-ouro) aos países
aliados.
O acordo puniu a Alemanha com a perda de mais de 13% do
seu território, porque teve que abrir mão das colônias na África
e na Ásia, além de ser obrigada a devolver a Alsácia e a Lorena
para a França, bem como o porto de Dantzig e a província de
Posen para a Polônia (era o chamado corredor polonês).
Também foi obrigada a reconhecer a independência da Áustria
e perdeu territórios para a Bélgica, Lituânia e Dinamarca.
A configuração mundial mudou muito com a assinatura do
Tratado de Versalhes. O Império austro-húngaro foi
desmantelado e surgiram quatro países: Tchecoslováquia,
Hungria, Polônia e Iugoslávia. Também os países aliados
tiveram que abrir mão de protetorados, com o fim do Império
turco-otomano: o Iraque, a Jordânia e a Palestina deixaram de
ser parte do poderio dos britânicos, e a Síria e o Líbano, dos
franceses.
Há questões políticas decorrentes do Tratado de Versalhes
que ainda hoje, em nosso mundo contemporâneo, causam
incômodos mais ou menos sérios em diversos países. Por
exemplo, o conflito entre israelenses e árabes tem raízes nas
decisões do tratado que definiram as respectivas fronteiras,
com o realinhamento geográfico de países depois da extinção
do Império Otomano.
Tomemos como exemplo o Iraque. Na sua origem, equivale à
região onde se localizava a antiga Mesopotâmia, onde a
história afirma ter sido iniciada a primeira civilização do
mundo, a Suméria, há mais de cinco mil anos. Na antiguidade,
local fértil entre dois rios, o Tigre e o Eufrates, era cobiçado por
todos os povos e tribos que habitavam regiões secas e
desérticas. Por isso, foi acossado por elamitas, amoritas,
egípcios, hititas e assírios. Mais tarde, atraiu a atenção de
europeus, como gregos e romanos. Com tantas invasões,
acabou sendo fragmentado como nação. Não mais como país,
mas como área geográfica, foi ocupado e pertenceu ao Império
Otomano, desde o século XI. Em 1453, o Império Otomano, já
então um dos estados mais poderosos do mundo, conquista
Constantinopla, muda o nome da cidade para Istambul e
inaugura a Era Moderna. Entre 1715 e 1718, tentou dominar a
Áustria, mas foi derrotado. Entre 1853 e 1856, ganhou o apoio
da Inglaterra e da França e travou com a Rússia a Guerra da
Crimeia; venceu, conquistando a área onde estão hoje a
Romênia e parte da Ucrânia. No final do século XIX, tinha
relações comerciais importantes com dois países rivais entre si:
Alemanha e Inglaterra. Mas quando, por fim, eclodiu a
Primeira Guerra Mundial, a Turquia, principal país do império
otomano, estava aliada à Alemanha, que ajudava a modernizar
o império – estavam os turcos impressionados com a evolução
dos alemães e pensaram que fariam bom negócio. Apesar de
não ter atuado nos combates, a Turquia estava do lado alemão.
Por isso, durante o conflito, a Inglaterra enviou tropas para a
região e dominou uma extensa área ao redor de Bagdá, que
incluía territórios de países vizinhos. Encerrado o conflito e
vencida a Alemanha, a Inglaterra declarou a região sob seu
domínio e a transformou no país que hoje se chama Iraque e
que tem 28 milhões de habitantes. As fronteiras do território de
400 mil km² foram definidas, com Turquia, Irã, Kuwait, Arábia
Saudita, Jordânia e Síria.
Os iraquianos falam o árabe e o curdo – uma região do país é
o Curdistão, região federal autônoma a quem foi prometido,
pelo Tratado de Versalhes, o direito à autodeterminação, o que
até hoje não foi concedido.
Até na África os efeitos geográficos da Primeira Guerra se
fizeram sentir. Ruanda e Burundi foram criados pelo Tratado
de Versalhes (desmembrados da antiga colônia alemã da África
Oriental e entregues aos belgas porque estes, apesar de terem
se declarado neutros no conflito, foram invadidos pelas tropas
alemãs).
Com o fim da Primeira Guerra Mundial, o mapa geográfico e
político da Europa foi profundamente alterado. O império
alemão foi substituído pela República de Weimar; o império
austro-húngaro deixou de existir; o império otomano foi
extinto e os países que o compunham divididos entre as nações
aliadas; e o império russo foi transformado na União das
Repúblicas Socialistas Soviéticas. Países como Polônia, Estônia,
Letônia, Lituânia, Finlândia, Hungria e Tchecoslováquia
declararam independência. E surgiu um novo Estado: a
Iugoslávia, que resultava da fusão da Sérvia com Montenegro.
É preciso fazer constar que o presidente Woodrow Wilson,
dos Estados Unidos, apresentou em janeiro de 1918, antes
mesmo do fim da guerra, uma proposta de paz fundada em 14
pontos. Eram os seguintes:
1. Abolição da diplomacia secreta
2. Liberdade dos mares
3. Eliminação de barreiras econômicas alfandegárias
4. Redução dos armamentos em todos os países
5. Revisão da política colonialista, ouvindo as opiniões dos povos
colonizados
6. Retirada dos exércitos de ocupação da Rússia
7. Restauração da independência da Bélgica
8. Restituição da Alsácia-Lorena à França
9. Reformulação das fronteiras italianas
10. Reconhecimento da autonomia dos povos da Áustria-Hungria
11. Restauração de Romênia, Sérvia e Montenegro, e direito da Sérvia
de acesso ao mar
12. Reconhecimento de autonomia do povo da Turquia e abertura
permanente dos estreitos que ligam o Mar Negro ao Mediterrâneo
13. Independência da Polônia
14. Criação da Liga das Nações
A história se encarregou de mostrar que a maior parte dessas
sugestões não foi acatada.
Mas havia muito que ser reconstruído. Não apenas as
cidades bombardeadas, mas os sistemas de saúde para
contenção de epidemias, as estruturas agrícolas para a
produção de alimentos, e as próprias divisões internas dos
países. Quem sofreu mais foi a Alemanha, submetida a
pesados encargos e punições e obrigada a pagar indenizações
incalculáveis, além de perder territórios e colônias. O país,
degradado e derrotado, enfrentou, nas décadas seguintes,
inflação galopante e desemprego. Emergiram revoltas e
descontentamentos de vários grupos. A quebra da bolsa de
Nova York em 1929 precipitou efeitos devastadores sobre a
economia alemã. Estava desenhado o cenário para o
surgimento de grupos radicais e a consequente deflagração de
um novo conflito.
A REPÚBLICA DE WEIMAR
Com a queda da monarquia, alguns grupos alemães de
esquerda tentaram implantar o socialismo, liderados por Karl
Liebknecht e Rosa Luxemburgo. Foram impedidos por outros
que defendiam a democracia parlamentar. Philipp
Scheidemann proclamou a República de Weimar, assim
chamada por causa da cidade onde se reunia a Assembleia
Nacional Constituinte. O social-democrata Friedrich Ebert,
encarregado de formar o governo de transição, convocou
eleições em 1919, as primeiras em que as mulheres foram
autorizadas a votar, e tornou-se o primeiro presidente,
liderando três partidos republicanos que detinham a maioria
na Assembleia Nacional. Enquanto perdurou a República de
Weimar, a Alemanha foi um Estado federal democrático, numa
forma mista de sistema de governo presidencial e parlamentar.
Mas não perdeu de vista a noção de império – o presidente
detinha tanto poder quanto um monarca54.
Porém, os acontecimentos da década de 1920 conspiraram
contra a democracia alemã. Sufocada sob as condições do
Tratado de Versalhes, a Alemanha estava em péssima situação
econômica – em 1923 a inflação era tão alta que um dólar valia
mais de 4 bilhões de marcos. Sem dinheiro, não conseguiu
pagar reparações de guerra à França e à Bélgica, que retaliaram
mandando exércitos ocuparem a região do rio Ruhr. A
confiança da população na República esmorecia. Enquanto
isso, grupos radicais tentavam dar golpes para assumir o
poder. Um deles foi o Partido Nacional-Socialista, cujo chefe
era Adolf Hitler. Mas a manobra não deu certo.
Em 1924, foi nomeado ministro das Relações Exteriores o
chanceler Gustav Stresemann, um moderado. Graças à sua
influência pessoal, obteve empréstimos estrangeiros para
reconstrução e modernização da indústria. Pediu apoio aos
Estados Unidos para a elaboração de um plano (Plano Dawes)
que permitisse à Alemanha pagar as obrigações de guerra sem
comprometer a sustentabilidade. Em 1925, depois da morte de
Friedrich Ebert e a eleição do Marechal Hindenburg como
presidente, Gustav Stresemann conseguiu, pelo Tratado de
Locarno, a promessa de que a Alemanha não seria reocupada
pelas tropas aliadas. No ano seguinte, 1926, conseguiu fazer
com que a Alemanha ingressasse na Liga das Nações – embrião
da futura ONU. Até 1929 a República prosperou, ganhou
prestígio internacional, evoluiu na educação, nas ciências e nas
artes.
Mas, em 1929, Stresemann morreu. Logo em seguida, a crise
da Bolsa de Valores de Nova York causou um terremoto
econômico no mundo inteiro, só comparável à crise econômica
de setembro de 2008. Só na Alemanha, quase 5 milhões de
pessoas ficaram desempregadas. Prato cheio para os radicais
do Partido Nacional-Socialista, que tentaram a eleição de 1930.
Hitler perdeu para Hindenburg, mas já se tornava uma força
nacional. Em 1931, os efeitos da crise norte-americana levaram
à quebra dos bancos alemães e ao aumento do desemprego.
Em 1933, Hindenburg chamou Hitler para ser o chanceler,
em substituição a Von Papen, para ajudar a constituir o novo
governo. A primeira coisa que fez como chanceler foi
enfraquecer o Reichstag, o Parlamento. A política de Hitler
estava baseada em algumas crenças que povoavam a
consciência dos alemães: o país não era responsável pela
deflagração da Primeira Guerra Mundial, o Tratado de
Versalhes era injusto e o antigo Reich (o Império alemão)
precisava renascer. Assim, Adolf Hitler preparou a Alemanha
para disciplinar a Europa contra duas forças que considerava
nocivas: a democracia ocidental e o bolchevismo soviético.
Era o fim da democracia parlamentar da República de
Weimar, uma breve experiência do Estado Social no período
entre guerras.
É desnecessário lembrar os horrores causados pelo
radicalismo dos nazistas, mas fique registrado que foi com o
final da Segunda Guerra Mundial que ocorreu o fenômeno
social da multiplicação e da universalização dos direitos do
homem, consolidados na Declaração Universal proclamada
pela ONU em 1948.
CAI A MONARQUIA
Para explicar com mais detalhes, vamos lembrar que, em
1905, a insatisfação em relação ao regime czarista explodiria,
pela primeira vez. A derrota da Rússia para o Japão agravou a
situação econômica interna e desencadeou manifestações
populares, amplamente apoiadas pelo proletariado. A data
emblemática de 9 de janeiro, o Domingo Sangrento de São
Petersburgo, ganhou esse apelido porque os trabalhadores que
reivindicavam melhores condições de trabalho foram
reprimidos duramente. Soldados do czar fuzilaram quase mil
pessoas e deixaram feridas outras milhares. O episódio levou
os trabalhadores a definitivamente perder a confiança no
regime. Cresceram as greves e as manifestações. Saíram
fortalecidos os bolcheviques, uma vez que a burguesia apoiou
a repressão aos trabalhadores. Do lado do governo, a repressão
aos socialistas e inimigos do regime tornou-se ainda mais dura.
Em pouco tempo já se contabilizavam cerca de 15 mil mortes.
Várias lideranças foram exiladas, entre elas Lênin e Trótski.
Confiante, o czar acreditava que havia recuperado o controle
político da nação.
Mas eis que explode a Primeira Guerra Mundial, e a Rússia
integra a Tríplice Entente. O czar imaginava ganhar prestígio, e
para isso empenhou-se pessoalmente no comando das tropas,
mas o que conseguiu foi esgotar quase completamente os
recursos que ainda lhe restavam, além de fazer perderem a
vida mais de 4 milhões de soldados. O esforço de guerra
mobilizou 15 milhões de homens e as divisões internas foram
acentuadas. Uma das razões era que os russos combatiam sem
o necessário aparato. Não tinham botas, nem armas, nem
alimentos. A economia russa, já então em quase depressão,
afundou de todo. A produção agrícola quase desapareceu. E o
fim da guerra tornou-se o novo e urgente motivo das
manifestações.
Havia mais. Ocupado com o exército, Nicolau II deixara o
governo nas mãos de seu conselheiro, o monge Rasputin, um
místico tido como louco, devasso e de maus costumes. Era
odiado, tanto pelo povo quanto pelos nobres, mas protegido
pela czarina Alexandra Feodorovna. Acusaram-no de
espionagem. Por duas vezes tentaram envenená-lo, mas ele
sobreviveu e, com isso, ganhou uma aura de
sobrenaturalidade. Consta que tenha sido assassinado por Félix
Yussupov.
A monarquia estava prestes a cair. E cairia justamente pelas
mãos das pessoas mais carentes, a camada mais explorada do
proletariado: as mulheres. No dia 8 de março de 1917, as
tecelãs iniciam uma manifestação que rapidamente se
propagou por vários bairros de Petrogrado (antigo nome da
atual São Petersburgo, que também se chamou Leningrado
entre 1924 e 1991). Em poucos dias a mobilização avançou para
o status de greve geral. E, dessa vez, os próprios soldados –
que seriam os responsáveis pela repressão – aderiram ao
movimento, entregando suas armas aos manifestantes. Os
acontecimentos se precipitaram rapidamente. Prédios públicos
foram incendiados e instalações estatais foram tomadas pelos
manifestantes. Os revoltosos também libertaram presos
políticos, e o caos tomou conta de Petrogrado e também de
outras importantes cidades russas. Na medida em que
ganhavam força, os manifestantes depunham autoridades e o
estabeleciam sovietes, os conselhos locais que representavam
operários, soldados e camponeses.
O movimento foi um rastilho de pólvora. Não levou uma
semana para que a família Romanov, a dinastia que reinava
sobre a Rússia desde 1613, fosse deposta (todos os seus
membros seriam executados em 1918). A queda do rei permitiu
que um grupo de nobres conservadores, liderados por Georgy
Lvov, instalasse um governo provisório, uma espécie de
câmara baixa que se chamava Duma – enquanto os sovietes
constituíam a câmara alta, configurando o que a história
chamou de “duplo poder”. O governo provisório, todavia,
tomou medidas que desagradaram profundamente os
proletários, como o adiamento da reforma agrária, a recusa em
convocar uma Assembleia Constituinte, e, pior do que tudo, a
decisão de manter a Rússia na guerra. Em julho de 1917,
Alexander Kerensky substituiu Lvov no posto de primeiro
ministro do governo provisório, mas a mudança não surtiu
efeito.
Os sovietes continuavam a exercer enorme pressão sobre o
governo provisório. E o descontentamento desses conselhos foi
aproveitado por Lênin, que liderou um movimento com o
seguinte slogan: “paz, terra e pão”. E com isso fortaleceu o
Partido Bolchevique, que foi responsável por iniciativas que
abalaram a Rússia – a expropriação das terras dos proprietários
rurais para serem distribuídas entre os camponeses, e a
passagem do controle das fábricas para os operários.
Paralelamente, Trótski tratava de preparar um exército, a
Guarda Vermelha, para a eventualidade de ter que combater o
novo regime. Não foi necessário. No dia 25 de outubro de 1917,
um grupo de revolucionários encabeçado por Wladimir Lênin
e Grigori Zinoviev cercou a sede do governo provisório e
estabeleceu o regime socialista soviético, representado pelo
Partido Comunista.
Lênin, escolhido Chefe dos Conselhos dos Comissários do
Povo, ordenou a imediata retirada da Rússia da guerra.
Um dos livros mais abrangentes sobre a revolução soviética
foi escrito pelo jornalista norte-americano John Reed, com o
título Dez dias que abalaram o mundo. Amigo de Lênin, esse
jornalista esteve muito perto dos principais acontecimentos e,
como testemunha, relatou para o mundo detalhes do
movimento. Um trecho do seu livro dá um retrato do líder
revolucionário:
“Eram apenas 8h40 quando uma trovoada de aplausos anunciou a
entrada do comitê de presidência, com Lênin – o grande Lênin – entre
eles. Uma personagem de baixa estatura, com cabeça grande enterrada
nos ombros, careca e saliente. Olhos miúdos, largo nariz esnobe, boca
generosa e queixo pesado barbeado, mas onde já despontavam fios da
conhecida barba do seu passado e do seu futuro. Vestia roupas
surradas, a calça longa demais para a sua altura. Pouco impressionante
para quem seria ídolo da multidão, amado e reverenciado como talvez
poucos líderes na história tenham sido. Um estranho líder popular –
um líder puramente pela virtude do intelecto; sem cor, sem humor,
descompromissado e apartado, sem idiossincrasias pitorescas – mas
com a força de explicar ideias profundas em termos simples, de
analisar uma situação concreta. E, combinada com a sua sagacidade, a
grande audácia intelectual”58.
No dia 17 de janeiro de 1918, Lênin promulgou a primeira
Constituição soviética, a Declaração dos Direitos do Povo
Trabalhador e Explorado, da qual destacamos três artigos do
Capítulo II:
1º A fim de se realizar a socialização do solo, fica extinta a propriedade
privada da terra; todas as terras passam a ser patrimônio nacional e são
confiadas aos trabalhadores sem nenhuma espécie de reembolso, na
base de uma repartição igualitária em usufruto. As florestas, o subsolo,
e as águas que tenham importância nacional, todo o gado e todas as
alfaias, assim como todos os domínios e todas as empresas agrícolas-
modelo, passam a ser propriedade nacional.
2º Como primeiro passo para a transferência completa das fábricas, das
usinas, das minas, dos caminhos de ferro e de outros meios de
produção e de transporte para a propriedade da República Operária e
Camponesa dos Sovietes, o Congresso ratifica a lei soviética sobre a
administração operária e sobre o Conselho Superior da Economia
Nacional, com a finalidade de assegurar o poder dos trabalhadores
sobre os exploradores.
3º O Congresso ratifica a transferência de todos os bancos para o
Estado operário e camponês, como uma das condições de libertação
das massas operárias do jugo do capital.
Lênin iniciou medidas sociais, entre elas a criação de comitês
agrários para administrar grandes propriedades agrícolas
tomadas dos proprietários e comitês de trabalhadores para
controlar as fábricas, também confiscadas. Essas medidas
deram início a uma guerra civil que duraria três anos entre o
Exército Branco, formado por tropas ainda leais ao czar
Nicolau II, e o Exército Vermelho, formado por tropas leais a
Lênin e por operários armados. Trótski era o comandante desse
exército. Durante a guerra, houve tamanha escassez de
alimentos que se acredita que a maior parte dos mortos – mais
de um milhão – pereceu de fome.
A recuperação econômica foi iniciada em 1921, com o fim da
guerra civil. Houve modernização da agricultura e da
indústria, mas sempre sob a tutela do Partido Comunista. Em
1922, a Rússia encabeçou a formação da União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas (URSS), uma federação com quinze
países. Lênin morreu, exilado na Suíça, em 1924, depois de ter
sido derrotado por Josef Stalin para o cargo de secretário-geral
do Partido Comunista.
A União Soviética entraria, então, numa das mais negras
eras, no que diz respeito às liberdades individuais e aos
direitos humanos. Stalin capitaneou os “grandes expurgos”
depois de encontrar resistência dos camponeses contra a
coletivização da produção agrícola. Milhões de pessoas foram
fuziladas ou mandadas para os campos de trabalhos forçados
na Sibéria. Em 1940, Leon Trótsky foi caçado por um agente de
Stalin e assassinado no México, onde estava exilado.
Nesse momento já estava em cena o teatro de horrores da
Segunda Guerra Mundial.
O NERVOSO PERÍODO ENTRE GUERRAS
Logo após a Primeira Guerra Mundial, a Conferência de Paz
realizada em Paris, em abril de 1919, redigiu o Tratado de
Versalhes. A primeira parte desse tratado previa a criação da
Liga das Nações, ou Sociedade das Nações. Foram 32 os
primeiros países integrantes, e outros 13 convidados. Não
puderam participar, no início, a Alemanha, a Turquia e a
URSS. E os Estados Unidos, embora o presidente Woodrow
Wilson tivesse feito esforços para que o país participasse, não
conseguiu autorização do seu Congresso, sob o pretexto de que
estaria se afastando da sua política internacional e abdicando
de seu poder de decisão. E, assim, os Estados Unidos jamais
participaram da Liga das Nações.
Embora a noção de proteção internacional dos direitos
humanos não estivesse ainda na consciência das nações, por
essa época, algumas previsões da Conferência de Paz
apontavam para certos avanços nessa direção. O Direito
Internacional dos Direitos Humanos começava a ganhar
contornos, com iniciativas como o sistema de mandatos, o
padrão internacional do trabalho e o sistema de minorias.
O sistema de mandatos, por exemplo, foi a determinação de
tutelar, em caráter transitório, as populações de ex-colônias
pertencentes aos países derrotados, até que tivessem condições
materiais, morais e culturais para sua emancipação. O padrão
internacional do trabalho foi a orientação sobre condições
justas e humanas de trabalho para homens, mulheres e
crianças, criando organizações internacionais para fiscalizar o
cumprimento das determinações – foi a origem da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), atualmente uma agência da
ONU. O sistema de minorias foi outro avanço no campo
internacional, atendendo e impedindo a discriminação de
novos Estados constituídos por variados grupos étnicos,
linguísticos e religiosos.
Na década de 1920, a Liga das Nações ajudou a recuperar a
economia austríaca e deu andamento a uma política
internacional de desarmamento. E interveio em vários conflitos
entre países, principalmente nos Bálcãs, onde duas guerras já
haviam ocorrido entre a Liga Balcânica (Sérvia, Montenegro,
Grécia e Bulgária) e o Império Otomano, este bastante
enfraquecido na época. A Liga Balcânica conquistara as
províncias europeias da Albânia, Macedônia e Trácia,
remanescentes do reino turco, e crescia a possibilidade de novo
confronto, que a Liga das Nações logrou prevenir. Mas as
conjunturas da época não permitiram que a entidade tivesse
sucesso em todas as intervenções.
Na década de 1930, o Japão agrediu a China, ocupando a
Manchúria, a Itália invadiu e anexou a Etiópia, que na época se
chamava Abissínia, e a Alemanha ocupou a Finlândia, que
pretendia sua independência do Império Alemão. Todos esses
conflitos contribuíram para originar a Segunda Guerra
Mundial. A incapacidade da Liga das Nações em evitar a
guerra revelou seu progressivo enfraquecimento. Aliás,
durante todo o período do conflito, nem uma reunião sequer
da entidade foi realizada. Havia ficado claro que a Liga das
Nações era competente para resolver litígios entre potências
menores, mas não conseguia lidar com a força dos países mais
importantes.
Porém, o mundo reconhece o papel que a Liga das Nações
desempenhou na assistência econômica a países atingidos pela
guerra, na proteção a refugiados (só na Rússia, havia quase três
milhões de ex-prisioneiros de guerra sem ter para onde voltar),
no combate à escravatura, nas iniciativas de saúde pública –
prevenindo, por exemplo, a epidemia de tifo na Rússia –, na
supervisão do sistema de mandatos coloniais e na
administração de territórios livres (como foi o caso da cidade
de Dantzig, na Polônia, hoje chamada Gdansk, onde nasceu o
partido Solidariedade, na década de 1980). Também já se
preocupava com a questão das drogas, tendo implantado o
Conselho Central Permanente do Ópio. E chegou a ter um
comitê para estudar o Estatuto Jurídico da Mulher, que durou
apenas meses e não teve resultado algum.
Seu principal braço político foi o Tribunal de Justiça
Internacional.
O Brasil participou da Liga das Nações entre 1919 e 1926.
Como país signatário do Tratado de Versalhes, foi eleito
membro rotativo do conselho executivo de organização da
entidade por dois mandatos consecutivos. Os presidentes
Delfim Moreira, brevemente, e Epitácio Pessoa, foram os
governantes que representaram o Brasil na Liga das Nações.
Artur Bernardes, eleito presidente do Brasil em 1922,
perseverou na pretensão de que tivéssemos assento no
Conselho de Segurança da Liga das Nações – desiderato que o
país persegue desde então, mesmo com a mudança da Liga das
Nações para Organização das Nações Unidas, e que jamais
conseguiu. Na verdade, Artur Bernardes pretendia obter uma
vitória diplomática, no campo internacional, para ganhar
prestígio no cenário doméstico. Não conseguiu.
A saída do Brasil da Liga das Nações teve razões fundadas
na política externa do país. Em 1926, o Conselho da Liga
pretendia acolher a Alemanha como membro permanente. O
Brasil aproveitou o momento para se lançar candidato pelas
Américas ao Conselho de Segurança, alegando ter sido o único
país da América do Sul a participar da Primeira Guerra. O
pleito causou irritação nos outros países do continente,
principalmente os Estados Unidos, e o Brasil teve que
abandonar a pretensão e a Liga das Nações para não piorar as
relações diplomáticas e comerciais com os vizinhos.
Mas havia as questões internas, também. As decisões dos
últimos presidentes da chamada República Velha eram, de
certo modo, conduzidas pelos dois principais partidos
estaduais – o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido
Republicano Mineiro (PRM), dominados pela elite cafeeira, os
“senhores do café”, e pelos grandes produtores de leite. O
mundo do pós-guerra precisava dos produtos brasileiros, e os
produtores abusaram da sua condição econômica privilegiada
e mandavam e desmandavam na política, muitas vezes
passando por cima da própria Constituição. Foi o período que
na República Velha se chamou de “política do café com leite”,
que, por um lado positivo, levou ao desenvolvimento da
indústria brasileira. (Delfim Moreira e Epitácio Pessoa, por
exemplo, eram membros do PRM, e Artur Bernardes e
Washington Luís, do PRP.)
O governo de Artur Bernardes enfrentou a instabilidade
política desde o primeiro dia. Tomou posse e governou, até o
último dia, com o país em estado de sítio. No Rio Grande do
Sul, estalava a Revolução de 1923, entre chimangos e
maragatos, uma verdadeira guerra civil na qual se destacou
Borges de Medeiros, que seria candidato à Presidência da
República, disputando e perdendo para Getúlio Vargas. A
Revolta Paulista de 1924, chamada segunda revolta tenentista,
liderada por Eduardo Gomes, foi o maior conflito armado na
história da cidade de São Paulo – Artur Bernardes mandou
bombardear a cidade, matando 503 pessoas e deixando quase 5
mil feridos. Além disso, a Coluna Prestes, entre 1925 e 1927,
insatisfeita com a subserviência do presidente às oligarquias,
enfrentou as tropas federais, numa marcha pelo Brasil. Toda a
queixa se dirigia ao coronelismo, que manobrava as eleições
por meio de “voto de cabresto” e que conseguia apoios com
base na troca de favores. Enquanto isso, o povo enfrentava
inflação, as férias remuneradas eram de apenas 15 dias e não
havia políticas sociais.
Mas o mundo também enfrentava urgências. A França estava
devastada. A Inglaterra, dona do império mais poderoso da
época, perdia mercado por causa do crescimento dos Estados
Unidos. Nos dois países, com a indústria destruída ou, o que
restava dela, ociosa, a inflação e o desemprego eram altíssimos.
Por outro lado, nos Estados Unidos, com a euforia da vitória e
a grande aceleração econômica, houve uma superprodução
agrícola e industrial. Suas iniciativas de proteção do mercado
interno, por exemplo com a Lei Smoot-Hawley de Tarifas de
Importação, levaram a uma crise econômica sem precedentes –
que explodiria em 1929, com a quebra da Bolsa de Valores de
Nova York.
Ainda na Europa, o descontentamento das populações
facilitou o caminho para a ascensão de regimes totalitários,
como o comunismo na Espanha (que na década de 1930 daria
lugar aos direitistas e mais tarde ao franquismo), o salazarismo
em Portugal, o fascismo na Itália e o nazismo na Alemanha. O
movimento de migração de grandes parcelas da população
para países das Américas intensificou-se.
O Japão também tinha as suas razões para desavenças.
Primeiro, já vinha de uma guerra com a Rússia, entre 1904 e
1905. Segundo, tinha problemas com os países que havia
anexado no final do século XIX, como Coreia e parte da China.
Ademais, tendo participado da Primeira Guerra Mundial em
defesa dos países aliados, tentou, em 1919, introduzir uma
cláusula de igualdade racial na convenção da Liga das Nações.
Os países do ocidente rejeitaram a proposta e não deram
atenção ao pedido japonês. Por causa disso, suspendeu a
Aliança Anglo-Japonesa em 1923. (Isso explica, em parte, a
decisão do Japão de apoiar a Alemanha, quando eclodiu a
Segunda Guerra Mundial.)
A CONVENÇÃO DE GENEBRA
A invasão da Polônia pelas tropas alemãs não foi apenas um
aviso de força da Alemanha que ressurgira pelas mãos de
Adolf Hitler. Foi mais que isso. Foi o alerta de que uma nova
espécie de guerra seria travada, com uma potencialidade letal
ainda não vista. Enquanto a Primeira Guerra Mundial fora
combatida em trincheiras, exclusivamente pelos soldados, a
guerra que começava, e que forçosamente teria que envolver
muitos países, veio montada em tanques mecânicos, blindados
e mortíferos; veio a bordo de aviões carregados de bombas
cegas que não enxergavam se os alvos eram militares ou civis.
Aos primeiros embates, o mundo percebeu que as trágicas
dimensões do conflito seriam intercontinentais.
Ironicamente, os horrores de brutalidade praticados contra
civis, pelas tropas de ocupação do Eixo, foram mais tarde
imitados pelas próprias tropas aliadas. Alberto Morávia, no
livro “La Ciociara” (“Duas Mulheres”, em português),
publicado em 1957 e que em 1960 Vittorio de Sica
transformaria em filme estrelado por Sofia Loren (ganhadora
do Oscar de melhor atriz), conta que as mulheres italianas
temiam os exércitos aliados. A história da ocupação da Itália
não foi tão heroica e bonita quanto em geral se pensa: os
soldados ingleses e americanos ocuparam o país em 3 de
setembro de 1943, e praticaram roubos, assassinatos e estupros.
A Grécia, entre outros países, passou fome. A inflação era
altíssima. Não havia emprego. Pessoas separadas de suas
famílias perambulavam, perdidas. Ocorriam saques e roubos.
Não havia solidariedade.
O bombardeio das cidades japonesas de Hiroshima e
Nagasaki, pelos norte--americanos, em agosto de 1945, marcou
não somente o fim da Segunda Guerra Mundial, mas talvez o
massacre mais assustador de populações civis do mundo
contemporâneo. O mundo estava atônito com a ameaça
nuclear. Era preciso negociar a paz duradoura, a qualquer
custo. Ou a humanidade inteira poderia perecer.
Por iniciativa do Comitê Internacional da Cruz Vermelha,
que como já vimos foi responsável pela edição da primeira
Convenção de Genebra, em 1864, o texto da convenção foi
revisto algumas vezes para incluir novas proibições de atos que
pudessem atentar contra a humanidade. Em 1907, em Haia, na
Holanda, os princípios da convenção foram estendidos para
conflitos marítimos, não previstos originalmente, para proteger
os doentes, feridos ou náufragos de forças armadas no mar. Foi
a II Convenção de Genebra. Em 1929, uma nova revisão
determinou o tratamento humanitário a ser dado a prisioneiros
de guerra. Foi a III Convenção de Genebra.
Uma revisão mais abrangente foi acordada em 12 de agosto
de 1949, um ano depois da criação da ONU, entre os países que
participaram da Segunda Guerra Mundial. A intenção era
definir o escopo da proteção às populações civis, e realizar uma
atualização de todos os principais instrumentos aplicáveis em
caso de conflito armado internacional. Foi a IV Convenção de
Genebra73. E assim a Convenção de Genebra deu origem ao
Direito Internacional Humanitário e ao Direito Internacional
dos Direitos Humanos.
Os termos da Convenção de Genebra74 não se aplicam,
modernamente, apenas a conflitos armados em guerras
declaradas. Há casos em que operações militares de um país,
dentro do território de outro país (por exemplo, no caso das
tropas brasileiras apoiando a população do Haiti depois do
terremoto) exige regulamentação para o eventual uso de força
em caso de saques ou motins. Também é o caso das forças
multinacionais deslocadas para prevenir conflitos ou manter e
consolidar a paz. Do mesmo modo, existem casos de países que
não têm condições próprias de atender sua população civil, e a
ajuda de tropas estrangeiras pode ser necessária para ações
humanitárias. Revoltas e insurreições de grupos armados
hostis aos governos também são situações que podem
demandar interferência externa.
E há, ainda, os casos ainda não catalogados. Exemplo é o
pretexto de chamar de “terrorista” qualquer atitude que vá
contra conceitos ou políticas de um país. É o que os Estados
Unidos têm feito seguidamente, após o trágico evento de 11 de
setembro de 2001.
PRECEDENTES
O século XX foi pródigo em guerras civis, principalmente
aquelas ocorridas em colônias, que objetivavam a
independência em relação às metrópoles, como Angola,
Moçambique e Timor Leste, para mencionar apenas os países
lusófonos. O envolvimento de dois países, às vezes três, num
conflito, não justificava que fosse acionado o sistema global de
proteção aos direitos humanos, pela simples razão de que um
sistema regional podia ser mais ágil e mais eficaz no
recebimento de denúncias, investigação, verificação e resolução
de violações ao pacto. Por esse motivo, a ONU estimulou a
criação de sistemas regionais – que são três: o interamericano, o
europeu e o africano. O sistema árabe ainda é incipiente, e
sobre a criação de um sistema asiático tudo não passa de
proposta, por enquanto.
Obter a concordância de tantos países a respeito de questões
que envolvem tradição, cultura, traços religiosos e diferenças
políticas e ideológicas é tarefa extremamente difícil. Por isso, a
evolução dos acordos multilaterais referentes a direitos
humanos tem sido lenta. Mas progride. Historicamente, o
ponto de partida foi a Declaração Universal dos Direitos do
Homem, de 10 de dezembro de 1948, focada em aspectos
conceituais, voltados exclusivamente para os indivíduos, para
a pessoa. Quase simultaneamente, no mesmo ano, a Convenção
para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio tratou
de entrar em questões mais objetivas, mas ainda atrelada aos
efeitos da Segunda Guerra Mundial – a ONU contava, nessa
época, com 58 países-membros. Somente em 1965, a
Assembleia Geral da ONU logrou promover a Convenção
Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial. Em 1966, a ONU adotou o Pacto
Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, no mesmo ano, o
Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais. Já eram 122 os países-membros, na ocasião, e deve-
se lembrar que os pactos são acordos dirigidos para os Estados,
e não para os indivíduos. Nas décadas seguintes, houve ainda
dois protocolos complementares a esses dois pactos.
Considerados em conjunto, esses textos constituem a chamada
“Carta Internacional dos Direitos do Homem”.
A evolução demorou ainda vários anos. Em 1979, a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres. Em 1982, a Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar. Em 1989, a Convenção
sobre os Direitos da Criança. Em 1996, o Tratado de Proibição
Completa de Testes Nucleares. Em 1999, a Convenção
Internacional para a Supressão do Financiamento do
Terrorismo. E, em 2006, a Convenção sobre os Direitos das
Pessoas com Deficiência.
A esfera suprema do Sistema Global de Direitos Humanos é
o Tribunal Penal Internacional. Foi criado pelo Estatuto de
Roma, em julho de 1998, e entrou em vigor no dia 1º de julho
de 2002. Tem competência para julgar pessoas por crimes
gravíssimos, de transcendência internacional, como os
observados em Ruanda e nos países da antiga Iugoslávia, a
exemplo do que foi realizado pelo Tribunal de Nuremberg. O
Brasil já ratificou o Estatuto do Tribunal Penal Internacional.
No entanto, os Estados Unidos já comunicaram que não
pretendem ratificá-lo.
A ideia de criar sistemas regionais começou na Europa.
O SISTEMA EUROPEU
Criado pela Convenção Europeia de Direitos Humanos, em
1950, tem como aparelho jurídico o Estatuto do Conselho da
Europa da Corte Europeia de Direitos Humanos (esta criada
em 1959, na cidade de Estrasburgo, França). O artigo 3º do
Estatuto do Conselho da Europa determina que todo membro
reconheça o princípio da preeminência do Direito e o princípio
em virtude do qual toda pessoa sob sua jurisdição deve gozar
dos direitos do homem e das liberdades fundamentais. É uma
composição evidente dos direitos individuais e com a
necessária vinculação ao Estado democrático. Funciona como
uma espécie de alerta aos países nos quais o Estado atuava
ditatorialmente e que, embora admitidos ao Conselho da
Europa, são instados a progredirem no sentido da democracia.
São exemplos desses países: Armênia, Azerbaijão, Bielorrússia,
Bósnia-Herzegóvina e Geórgia. A aceitação de países do leste
europeu, após os conflitos iniciados em 1989, perturbou a
credibilidade e os processos do sistema europeu, que passou
por grandes crises e sofreu profundas modificações.
Ainda assim, o sistema europeu é o mais desenvolvido dos
que integram o Sistema Global de Direitos Humanos. Há um
fundamento histórico para isso, visto que a Europa foi o
continente mais atingido pela ameaça nazifascista na Segunda
Guerra Mundial.
A Convenção, juntamente com seus protocolos adicionais,
trata dos direitos individuais, dos direitos econômicos, sociais e
culturais, do direito de dignidade e igualdade em matéria de
trabalho, do direito dos idosos, do direito a moradia, além da
proteção contra a pobreza e a exclusão social. Seu grande
diferencial é a criação de órgãos encarregados de fiscalizar e
julgar as violações aos direitos humanos dentro de cada Estado
da União Europeia.
A Corte Europeia de Direitos Humanos está acima dos
tribunais nacionais. Indivíduos que considerem não haver
recebido justiça em seus países têm a possibilidade de acionar a
Corte, a qual pode também ordenar o pagamento de
indenizações às vítimas.
Atualmente, a Corte é composta de 47 juízes, o número de
Estados-partes.
Mais de 10 mil queixas já foram recebidas pela Corte desde a
sua criação. No entanto, vários governos europeus ignoraram
as decisões proferidas pela Corte, especialmente países em
conflito no Leste Europeu, na década de 1990.
Vamos lembrar que o Tratado de Amsterdam, de 1997, criou
e organizou a Comunidade Europeia. Um dado importante é
que, para um país ser admitido como membro filiado da União
Europeia, precisa ser aprovado pela Corte Europeia de Direitos
Humanos.
A jurisdição da Corte estende-se aos que estiverem no
território dos Estados-partes, e não apenas aos seus nacionais.
Entre os direitos e garantias previstos na Convenção estão:
• Direito à vida;
• Direito ao devido processo legal;
• Direito à privacidade;
• Direito à liberdade de expressão, de pensamento, de consciência e de
religião;
• Direito à propriedade;
• Proibição da tortura, de tratamentos e punições desumanos ou
degradantes;
• Proibição do trabalho forçado;
• Proibição de prisões arbitrárias e ilegais.
A União Europeia tem colaborado, através de respostas a
importantes questões, com outras organizações internacionais
para assegurar a proteção dos direitos humanos universais.
O SISTEMA INTERAMERICANO
O Sistema Interamericano foi instituído por meio da Carta da
Organização dos Estados Americanos – OEA. A Carta, que leva
o nome oficial de Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem, foi aprovada na Nona Conferência Internacional
Americana, em Bogotá, Colômbia, em 1948. Foi depois
reformada e atualizada pelo Protocolo de Buenos Aires de
1967, pelo Protocolo de Cartagena das Índias de 1985, pelo
Protocolo de Manágua de 1993 e pelo Protocolo de Washington
de 1997.
O americano foi o segundo continente a regionalizar os
direitos humanos, no âmbito da OEA e dos tratados de
cooperação interamericana. O mecanismo de proteção adotado
é inspirado no modelo europeu. A qualidade do discurso de
proclamação contrasta – deve-se afirmar –, singularmente, com
a situação real dos Direitos Humanos na América Central ou
na América do Sul.
No preâmbulo da Carta, estão sintetizados os seus princípios:
“Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e
direitos e, como são dotados pela natureza de razão e
consciência, devem proceder fraternalmente uns para com os
outros.
O cumprimento do dever de cada um é exigência do direito
de todos. Direitos e deveres integram-se correlativamente em
toda a atividade social e política do homem. Se os direitos
exaltam a liberdade individual, os deveres exprimem a
dignidade dessa liberdade.
Os deveres de ordem jurídica dependem da existência
anterior de outros de ordem moral, que apoiam os primeiros
conceitualmente e os fundamentam.
É dever do homem servir o espírito com todas as suas
faculdades e todos os seus recursos, porque o espírito é a
finalidade suprema da existência humana e a sua máxima
categoria.
É dever do homem exercer, manter e estimular a cultura por
todos os meios ao seu alcance, porque a cultura é a mais
elevada expressão social e histórica do espírito”.
E, visto que a moral e as boas maneiras constituem a mais
nobre manifestação da cultura, é dever de todo homem acatar-
lhes os princípios.
A Convenção Americana relativa aos Direitos do Homem, de
22 de novembro de 1969, adotada pelos Estados-membros da
OEA em São José da Costa Rica, entrou em vigor em 1978.
Apenas Canadá e Estados Unidos ainda não ratificaram a
convenção, mas como os norte-americanos não comunicaram
intenção de não fazer parte do tratado, ficam sujeitos à
Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, ou seja,
devem reconhecer e cumprir os termos do pacto.
A OEA é a mais antiga organização regional do mundo. Foi
concebida na Primeira Conferência Internacional Americana,
realizada em Washington, Estados Unidos, entre outubro de
1889 e abril de 1890, ocasião em que foi aprovada a União
Internacional das Repúblicas Americanas. Foi efetivada,
todavia, somente em 1948, em Bogotá, na Colômbia, quando foi
assinada a Carta da OEA. Depois das ratificações, entrou em
vigor em dezembro de 1951.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é um
órgão autônomo da OEA. Tem como função principal
promover o monitoramento, a defesa e a promoção dos direitos
humanos. Compõe-se de sete membros. A Corte, por sua vez, é
composta também por sete membros.
Atualmente, a OEA conta com 35 Estados-membros. Além
disso, a Organização concedeu o status de observador
permanente a 62 Estados e à União Europeia.
O SISTEMA AFRICANO
Foi o terceiro sistema a entrar em vigor (21 de outubro de
1986, por meio da chamada Carta de Banjul, que havia sido
assinada naquela cidade de Gâmbia seis anos antes).
O continente africano, devido à sua excepcional diversidade
ambiental, é cenário de exuberantes riquezas naturais, do
diamante ao petróleo. Por isso mesmo atrai, desde que Vasco
da Gama fincou pés portugueses nas costas africanas, quando a
caminho das Índias fez parada naquele continente, a atenção e
a cobiça de diversos povos.
Sua vulnerabilidade, decorrente de disputas tribais e
circunstâncias de heterogeneidade que impediram o seu
desenvolvimento nos padrões europeus, principalmente,
tornou-a presa fácil de potências que ali instalaram colônias.
Nessas colônias, os nativos eram tratados como animais,
chegando a ser considerados equiparáveis a esses. Embora a
situação tenha evoluído muito ao longo da história, o africano
ainda é tratado como inferior por algumas nações (inclusive
dentro da própria África), o que dificulta a eficácia da Carta de
Banjul.
A principal contingência ocorreu após a Segunda Guerra
Mundial, em decorrência do processo de independência das
colônias (principalmente durante as décadas de 1960 e 1970),
que conduziu uma importante alteração na organização
regional da África.
Por ocasião da assinatura da Carta das Nações Unidas, em
1945, apenas quatro países africanos eram independentes:
África do Sul, Egito, Etiópia e Libéria. Atualmente, existem
outros 49 países independentes no continente africano.
Em 1963, foi criada em Adis Abeba, capital da Etiópia, a
OUA – Organização da Unidade Africana, entidade
diplomática internacional.
A Carta de Banjul teve por princípio a reconstrução dos
sistemas políticos e a implementação dos direitos humanos
vilipendiados, como liberdade de associação, liberdade de
imprensa, eleições regulares, direito à vida etc. No entanto, o
escopo jurídico da OUA não contemplava os direitos humanos.
Foi necessário, então, que o continente se integrasse ao
Sistema Global de Proteção, criando o Sistema Africano de
Proteção aos Direitos Humanos. Foi o que aconteceu na
Conferência de Lagos na Nigéria, em 1961, da qual
participaram representantes de 23 países africanos e de 9 países
de fora do continente. Mas foi somente em 1978, com um
pedido oficial da Nigéria, na Assembleia Geral da ONU, de
assistência para o estabelecimento de instituições regionais de
direitos humanos, que o assunto entrou definitivamente em
pauta. No ano seguinte, a Carta Africana de Direitos Humanos
foi esboçada e começou a ser negociada.
A Comissão Africana dos Direitos do Homem e do Povo foi
criada em 2001 como órgão competente para promover e
assegurar a tutela dos direitos fundamentais do povo africano.
A denúncia sobre a violação dos direitos enunciados na Carta
Africana será interestatal e, na hipótese em que a situação
denunciada se refere a várias violações, os chefes de Estado
entrarão em conferência para examinar o caso concreto e
deliberar sobre a medida a ser tomada. A questão central é a
luta contra o colonialismo e o racismo, mas faz referências
diretas ao direito à independência, aduzindo que não incentiva
o direito à secessão, porque a União Africana parte do
pressuposto de que fronteiras são intangíveis, em nome da
integridade territorial.
A Carta Africana criou a Comissão Africana do Homem e
dos Povos. Vem a ser órgão técnico independente, com 14
membros, que tem a tarefa de promover e proteger os direitos
do homem. A Comissão pode ser acionada em caso de
atentado de um Estado ou de pessoas às disposições
convencionais. Adotado em 1998 e em vigor a partir de 2004, o
Protocolo adicional da Carta Africana institui a Corte Africana
de Direitos Humanos, com jurisdição estendida a todas as
causas e controvérsias concernentes à interpretação e à
aplicação da Carta Africana de Direitos Humanos. Suas
decisões têm caráter de coisa julgada definitiva.
Do ponto de vista normativo, o caráter da Carta Africana de
Direitos Humanos é dúbio, pois conflita em muitos casos com
legislações internas, as quais não sobrepuja.
O SISTEMA ÁRABE
Os países árabes criam, em 1945, a Liga das Nações Árabes
com a finalidade de promover uma teoria de direitos e
adotando medidas específicas de proteção aos direitos
humanos na nação árabe. Destacando-se uma vontade regional
mais próxima das declarações adotadas nos outros sistemas
regionais de proteção aos direitos humanos, os países árabes
objetivam reforçar suas políticas de interesses e participar do
processo de regionalização dos direitos humanos, inserindo no
sistema jurídico árabe, a adoção de uma série de documentos
que intensificam e caracterizam as diferentes correntes
jurídicas que influenciaram a relação entre os países árabes e os
direitos consagrados universalmente.
A partir da Declaração Islâmica Universal dos Direitos do
Homem, adotada pelo Conselho islâmico em 1981, na cidade
de Paris, configura-se a tentativa do povo islâmico de
reivindicar e afirmar, em nível internacional, a sua identidade
cultural. A Declaração afirma que os direitos têm como fontes
principais o Alcorão e a Sunnah, bases das leis islâmicas. Isso
porque a comunidade muçulmana esforçou-se por buscar uma
alternativa à Carta Universal dos Direitos Humanos de 1948,
elaborando outra Carta menos leiga e mais em linha com os
princípios da religião islâmica. A intenção foi dar aos direitos
humanos um fundamento confessional, uma vez que os
muçulmanos acreditam que todo direito provém de Deus.
Em seu preâmbulo, a Declaração afirma:
“Os direitos do homem no Islã não dependem da generosidade de um
rei ou de um governo, nem das decisões emanadas de um poder local
ou de uma organização internacional. Se trata, na verdade, dos direitos
obrigatórios em virtude da sua origem divina, que não podem ser
suprimidos, invalidados, violados ou negligenciados”.
Em 1990, a Organização da Conferência Islâmica adota, no
Cairo, a Declaração dos Direitos do Homem no Islã. Reafirma
as mesmas orientações enunciadas na Carta precedente,
confirmando o direito à vida, à liberdade e à igualdade entre os
gêneros, dando ênfase aos direitos das mulheres, além do
direito de liberdade religiosa, de pensamento e de crença,
desde que estabelecidos na lei.
Entre os direitos garantidos pela Declaração adotada no
Cairo estão a garantia dos direitos dos povos contra a
exploração e o colonialismo; o direito à liberdade e à
autodeterminação dos povos; o uso das riquezas e recursos
naturais e a proibição da usura como meio de vida e o direito
de propriedade limitado pelo interesse social.
A Carta Árabe dos Direitos do Homem de 1994 foi a última
Declaração adotada na área árabe-islâmica pela Liga das
Nações Árabes. Apresenta uma orientação diversa das
declarações precedentes, caracterizando-se por sua laicidade e
por seu fundamento no reconhecimento dos direitos, cabendo
aos Estados árabes a implementação dos princípios da
igualdade e da fraternidade entre o povo. Cria uma Comissão
Permanente dos Direitos do Homem, com o objetivo de
examinar relatórios periódicos apresentados a cada três meses
pelos Estados membros, em respeito à observação dos direitos
elencados na Declaração.
No preâmbulo da Declaração estão configuradas as bases do
sistema árabe de proteção aos direitos humanos universais
quando assegura a fé da nação na dignidade da pessoa
humana. Afirma, como seus valores humanos mais altos, o
direito a uma vida digna fundada na liberdade, na justiça e na
igualdade, refutando qualquer forma de racismo ou sionismo
que constituem uma violação dos direitos humanos e uma
ameaça à paz mundial.
Seus artigos consagram, dentre outros direitos, o direito
inerente ao ser humano à vida, a proibição da tortura física ou
psicológica ou de tratamento cruel, degradante, humilhante ou
desumano, a proibição da escravidão e do tráfico de seres
humanos em todas as formas. O sistema árabe de proteção aos
direitos humanos é moderno e em muito se aproxima dos
sistemas regionais ocidentais, porém não se chegou, ainda, a
um número suficiente de adesão por parte dos Estados-
membros para que a Declaração entre em vigor.
O SISTEMA ASIÁTICO
A Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN) foi
fundada em 1967, através da Declaração de Bangkok. Liderada
pela Tailândia, tinha como escopo a promoção e a assistência
econômica, social e cultural, assegurando a estabilidade
política e acelerando o desenvolvimento da região sudeste
asiática (Indonésia, Malásia, Filipinas, Cingapura, Brunei,
Vietnã, Mianmar, Laos e Camboja). Somente na década de
noventa, a ASEAN começou a contemplar as questões
referentes aos direitos humanos.
Em 1998, a ASEAN adota a primeira declaração asiática de
direitos humanos. Trata-se de um documento sem força
jurídica vinculante, contudo foi somente após esta declaração
que se falou de um mecanismo regional asiático de tutela dos
direitos humanos. Em seu artigo 14, a Declaração afirma que
“Conforme os objetivos e princípios da Carta da ASEAN
relativos à promoção e proteção dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais, a ASEAN instituirá um órgão para os
direitos humanos”. Institui-se então, em 2008, a Comissão
Intergovernamental de Direitos Humanos da ASEAN com a
incumbência de analisar, cooperar e confrontar a tutela dos
direitos humanos, promovendo e protegendo os direitos e
liberdades dos povos do sudeste asiático.
A Declaração, inspirada nas outras cartas internacionais de
proteção aos direitos humanos, inicia-se com um elenco de
princípios gerais de direito; dentre eles, sanciona a
inviolabilidade da dignidade e dos direitos humanos que são
inerentes a cada pessoa. Apresenta, também, no decorrer de
seu texto, a proteção aos direitos civis e políticos, como direito
de liberdade de expressão, de reunião e de associação, direito à
família, direito de propriedade, entre outros. Traz, ainda, um
rol de direitos sociais e o direito à paz.
Os membros da ASEAN adotaram em 2012, na cidade de
Phnom Penh, capital do Camboja, uma plataforma comum de
direitos humanos, uma Declaração de Direitos Humanos de
caráter não vinculativo que apela pelo fim das violações dos
direitos humanos, entre os quais figura o fim da tortura e das
prisões arbitrárias. Tal Declaração recebeu várias críticas da
Organização das Nações Unidas, a qual considerou a
insuficiência do texto, solicitando à cúpula da ASEAN um
aperfeiçoamento para posterior aprovação do documento.
Mesmo sendo um documento sem valor normativo, representa
um marco importante no reconhecimento das questões
inerentes aos direitos humanos no continente asiático.
7.
Tratados internacionais de
direitos
humanos no ordenamento
jurídico pátrio
Nos últimos anos, o Brasil vem ratificando uma série de
tratados internacionais relativos a direitos humanos,
incorporando-os ao ordenamento jurídico pátrio.
Importa-nos, então, descrever a forma pela qual se dá essa
incorporação, bem como o status que tais tratados ocupam em
nosso sistema jurídico.
Trata-se de um campo de interação entre Direito
Constitucional e Direito Internacional dos Direitos Humanos,
infelizmente um tanto desprestigiado pela doutrina nacional.
O relativamente recente interesse por parte de alguns autores
deve-se principalmente à redemocratização, à preeminência
conferida aos direitos humanos pela Constituição Federal de
1988 e à progressiva estruturação de um sistema internacional
de proteção do ser humano.
Com efeito, a dignidade da pessoa humana – vetor axiológico
máximo de todos os direitos humanos – é um dos fundamentos
de nosso Estado Democrático de Direito (artigo 1º, III, da
Constituição Federal); todos os objetivos da República
Federativa do Brasil pressupõem também uma busca pela
efetivação dos mais variados direitos humanos (artigo 3º da
Constituição Federal); e as relações internacionais do Estado
brasileiro são regidas, entre outros princípios, pela prevalência
dos direitos humanos (artigo 4º, II, da Constituição Federal).
Por outro lado, como vimos ao tratar das diferentes fases por
que passou o constitucionalismo, as atrocidades cometidas
durante a Segunda Guerra Mundial evidenciaram a
insuficiência dos ordenamentos nacionais em conter disfunções
surgidas no interior dos Estados em decorrência de fatores
eminentemente internos. Ficou claro, então, que o ser humano
não estava protegido de modo suficiente e que a soberania
estatal, também ela, era um óbice à implementação e ao
respeito dos direitos humanos até então reconhecidos.
São esses os pressupostos de fato e de direito que norteiam
nossas considerações neste capítulo.
CONSTITUIÇÃO DE 1824
Foi a primeira Constituição do País, outorgada pelo
imperador D. Pedro I163. A outorga é o ato administrativo
mediante o qual o poder público faculta o uso de um recurso
que regulamentou, por um determinado prazo e nos termos e
nas condições expressas. Ou seja, foi uma constituição sem
participação popular, fosse via representação, fosse via direta.
Na verdade, D. Pedro I havia convocado uma Assembleia para
redigir a Constituição, instalando-a em 3 de maio de 1823. Mas,
vendo que os constituintes tentavam restringir seus poderes de
imperador, fechou a Assembleia e chamou dez cidadãos de sua
confiança para escrever a carta. A Constituição de 1824
manteve os princípios do liberalismo moderado, doutrina que
admite a intervenção do governo em determinados assuntos –
foi esta a base para a implantação da figura do poder
moderador (acima dos poderes executivo, legislativo e
judiciário), que no fundo apenas servia para fortalecer o poder
pessoal do imperador. Os conservadores, que se opunham à
política liberal do imperador, foram grandes críticos dessa
constituição.
Principais medidas da Constituição de 1824 − As províncias
passavam a ser governadas por presidentes nomeados pelo
imperador. Também definiu que as eleições fossem indiretas e
censitárias, com o voto restrito aos homens livres e
proprietários, desde que tivessem renda. Já trazia dispositivos
sobre a educação. No artigo 179, no item 32, garantia a
gratuidade da educação primária; no item 33, mandava criar
colégios e universidades.
Reformas da Constituição de 1824 – Uma única: o Ato
Adicional de 1834, que criou as Assembleias Legislativas
provinciais, resultado de ampla negociação entre as elites
políticas. Essas assembleias tinham competência para fixar
despesas municipais e das províncias, criar certos impostos,
nomear e demitir funcionários públicos. Foi o ápice de uma
série de medidas descentralizadoras desde o período da
Regência, no 1º Império, tendo sido uma delas a criação da
Guarda Nacional em 1831 (que deu título de coronel aos
principais proprietários de terras do País, uma forma de
agradar à burguesia). O ato suprimiu o Conselho de Estado,
órgão de assessoramento do imperador, e estabeleceu a
Regência Una, eletiva e com mandato de quatro anos, enquanto
durasse a menoridade de D. Pedro II.
CONSTITUIÇÃO DE 1891
Foi a primeira Constituição do período republicano, tendo
vigorado por toda a chamada República Velha. Com a
Proclamação da República, o Marechal Deodoro da Fonseca,
chefe do governo provisório, convocou o Congresso Nacional
Constituinte de 1890 para elaborar o documento. Esse
congresso foi presidido por Joaquim Saldanha Marinho, e dele
participaram, entre outros, Américo Brasiliense, Francisco
Rangel Pestana e Ruy Barbosa. A Carta foi promulgada em 24
de fevereiro de 1891. Uma de suas disposições transitórias
tratava de, excepcionalmente, eleger o primeiro presidente e o
primeiro vice-presidente da República do Brasil. As eleições
para os dois cargos eram feitas separadamente, por isso
Deodoro da Fonseca não teve o vice que queria (almirante
Wandenkolk), mas um concorrente, Marechal Floriano Peixoto.
A Constituição de 1891 teve espírito liberal. Sua elaboração
sofreu bastante influência da Constituição norte-americana e
da Constituição argentina, mas vários dos direitos individuais
foram suprimidos por causa de pressões dos grandes
latifundiários.
Principais medidas da Constituição de 1891 − Estabeleceu o
presidencialismo, eliminando o poder moderador. Conferiu
maior autonomia aos estados da Federação. Garantiu a
liberdade partidária. Instituiu eleições diretas para a Câmara, o
Senado e a Presidência da República, com mandato de quatro
anos. Estabeleceu voto universal e não secreto para homens
acima de 21 anos – vetando o direito de voto a mulheres,
analfabetos, soldados e religiosos. Determinou a separação
oficial entre o Estado e a Igreja católica, marcando a
transformação do Brasil em um Estado laico. Trouxe em seu
bojo, também, declaração de direitos (Seção II do Título IV), em
que constam basicamente apenas os direitos e garantias
individuais.
CONSTITUIÇÃO DE 1934
Descontentes com o governo do mineiro Washington Luiz, os
paulistas lançaram a candidatura de Júlio Prestes à Presidência
da República, contra a do gaúcho Getúlio Vargas. Prestes
venceu as eleições, mas foi impedido de tomar posse por um
golpe armado, pelas tropas de Minas Gerais e Rio Grande do
Sul. Getúlio Vargas foi empossado num governo transitório,
com a promessa de convocar uma Assembleia Constituinte
para redigir uma nova constituição. Mas foi preciso que os
barões do café do Estado de São Paulo se rebelassem contra o
governo federal em 1932 para que a promessa fosse cumprida.
Os paulistas perderam, mas as pressões acabaram por fazer
com que a Assembleia Constituinte fosse convocada. A nova
Constituição, também com espírito liberal, e de caráter
democrático, foi promulgada em 16 de julho de 1934. Foi
baseada na Constituição alemã.
Principais medidas da Constituição de 1934 – Conferiu
maior poder ao governo federal. Estabeleceu o voto obrigatório
e secreto a partir dos 18 anos e o direito de voto às mulheres, já
instituídos pelo Código Eleitoral de 1932. Previu a criação da
Justiça Eleitoral e da Justiça do Trabalho. Havia nela também o
título “Declaração de Direitos”, no qual constavam não apenas
os direitos e garantias individuais, mas, também, de modo
inovador, os direitos de nacionalidade e os políticos.
CONSTITUIÇÃO DE 1937
Com a promulgação dessa constituição no dia 10 de
novembro de 1937, Getúlio Vargas institucionalizava a
ditadura do Estado Novo. Foi uma constituição autoritária,
embora disfarçada de democrática, e seu principal objetivo era
o de manter as condições de poder de Getúlio Vargas. Foi
apelidada de “Constituição Polaca”, por ter sido inspirada na
Carta da Polônia, um dos modelos fascistas europeus da época.
Não teve participação popular, e foi redigida pelo ministro da
Justiça de Getúlio Vargas, Francisco Campos, vigorando
apenas por três anos. O Brasil passou a se chamar Estados
Unidos do Brasil.
Principais medidas da Constituição de 1937 – Instituiu a
pena de morte, suprimiu a liberdade partidária e anulou a
independência dos poderes e a autonomia federativa. Permitiu
a suspensão de imunidade parlamentar, a prisão e o exílio de
opositores. Estabeleceu eleição indireta para presidente da
República, com mandato de seis anos.
CONSTITUIÇÃO DE 1946
O fim da Segunda Guerra Mundial em 1945 mudou o
panorama da política mundial. Os países alinhados com o
nazifascismo, governados por ditadores, foram derrotados. A
ditadura de Getúlio Vargas também foi pressionada, e o Estado
Novo foi encerrado, com a deposição de Getúlio Vargas. Para
ocupar a presidência, foi chamado, pelas Forças Armadas, o
presidente do Supremo Tribunal Federal, José Linhares, que
ficou no cargo durante apenas três meses (outubro de 1945 a
janeiro de 1946). Foi o responsável pela realização das eleições,
nas quais venceu Eurico Gaspar Dutra. Este foi eleito,
curiosamente, com apoio do próprio Getúlio Vargas, que ele
havia ajudado a derrubar. A Assembleia Constituinte redigiu a
nova Constituição e a promulgou em 18 de setembro de 1946.
O Brasil mudou outra vez de nome, passando a se chamar
República dos Estados Unidos do Brasil. Participaram da
Assembleia Constituinte nomes como o do jurista Gustavo
Capanema e o do escritor e sociólogo Gilberto Freyre.
Principais medidas da Constituição de 1946 –
redemocratizou o país, fazendo voltar ao texto constitucional
as liberdades expressas na Constituição de 1934, que haviam
sido suprimidas em 1937. Os principais dispositivos básicos
regulados pela Carta de 1946, com relação aos direitos
individuais, foram estes: igualdade de todos perante a lei;
liberdade de manifestação de pensamento, sem censura, a não
ser em espetáculos e diversões públicas; inviolabilidade do
sigilo de correspondência; liberdade de consciência, de crença e
de exercício de cultos religiosos; liberdade de associação para
fins lícitos; inviolabilidade da casa como asilo do indivíduo;
garantia de prisão somente em flagrante delito ou por ordem
escrita de autoridade competente e a garantia ampla de defesa
do acusado. Outras medidas importantes: extinguiu a censura
e a pena de morte; devolveu a independência dos três poderes,
a autonomia dos estados e municípios; e estabeleceu a eleição
direta para presidente da República, com mandato de cinco
anos.
Reformas da Constituição de 1946 − Em 1961 uma reforma
fez com que fosse adotado o regime do parlamentarismo. Essa
reforma foi anulada pelo plebiscito de 1963, que restaurou o
regime presidencialista.
CONSTITUIÇÃO DE 1967
O golpe militar que derrubou o presidente João Goulart em
1964 foi coordenado pelos comandantes das três armas
brasileiras: Exército, Marinha e Aeronáutica. Os três chefes
militares editaram o Ato Institucional n. 1 em 9 de abril,
destituindo o governo e institucionalizando a ditadura do
regime militar que duraria 21 anos. Humberto de Alencar
Castelo Branco foi nomeado presidente. Em 1965 editou o Ato
Institucional n. 2, que declarou extinto o pluripartidarismo,
permitindo o funcionamento de apenas dois partidos: Aliança
Renovadora Nacional (Arena) e Movimento Democrático
Brasileiro (MDB). Em 1966, Castelo Branco fechou o Congresso
Nacional, como forma de coação para que os congressistas
aprovassem a Constituição de 1967, que instituía oficialmente o
regime militar. A Constituição foi imposta, dessa maneira, em
15 de março de 1967. Foi uma das constituições mais
autoritárias da história. De novo o Brasil mudou de nome e
passou a se chamar República Federativa do Brasil.
Principais medidas da Constituição de 1967 − Mantém o
bipartidarismo criado pelo Ato Adicional n. 2 e estabelece
eleições indiretas para presidente da República, com mandato
de quatro anos.
Reformas da Constituição de 1967 − A Emenda
Constitucional n. 1, de 17 de outubro de 1969, outorgada
(imposta) pela Junta Militar, determina o recesso do Congresso
Nacional e dá plenos poderes à junta militar para agir como
poder executivo, legislativo e judiciário. Essa emenda
incorporou nas suas Disposições Transitórias as decisões e os
dispositivos do Ato Institucional n. 5 (AI-5), de 1968, dando
poder ao presidente para, entre outras coisas, fechar o
Congresso, cassar mandatos e suspender direitos políticos.
Além disso, deu aos governos militares liberdade irrestrita
para legislar em matéria política, eleitoral, econômica e
tributária. Houve ainda a Emenda Constitucional n. 2, de 9 de
maio de 1972, decretada para regular a eleição de governadores
e vice-governadores de Estado no pleito de 1974. Mais tarde, na
década de 1980, período da abertura política, outras emendas
prepararam o restabelecimento de liberdades e instituições
democráticas.
CONSTITUIÇÃO DE 1988
Conhecida como Constituição Cidadã, porque valoriza os
princípios democráticos e de cidadania, é a carta constitucional
em vigor desde 5 de outubro de 1988. Foi elaborada por uma
Assembleia Constituinte legalmente convocada e eleita. Foi a
primeira a permitir a incorporação de emendas populares.
Uma grande parte dos dispositivos ainda depende de
regulamentação.
Principais medidas da Constituição de 1988 − Mantém a
tradição republicana brasileira do regime representativo,
presidencialista e federativo. Amplia e fortalece os direitos
individuais e as liberdades públicas que haviam sofrido
restrições com a legislação do regime militar, garantindo a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade. Permite ao Poder Executivo editar
medidas provisórias com força de lei – vigoram por um mês e
são reeditadas enquanto não forem aprovadas ou rejeitadas
pelo Congresso. Estende o direito do voto facultativo a
analfabetos e maiores de 16 anos. Estabelece a educação
fundamental como obrigatória, universal e gratuita. Enfatiza a
defesa do meio ambiente, transformando o combate à poluição
e a preservação da fauna, flora e paisagens naturais em
obrigação da União, estados e municípios. Reconhece também
o direito de todos ao meio ambiente equilibrado e a uma boa
qualidade de vida. Determina que o poder público tenha o
dever de preservar documentos, obras e outros bens de valor
histórico, artístico e cultural, bem como os sítios arqueológicos.
Reformas da Constituição de 1988 − Começaram a ser
votadas pelo Congresso Nacional a partir de 1992. Até o
momento da edição deste livro, 68 emendas constitucionais já
haviam sido propostas. Algumas das principais medidas
abrem para a iniciativa privada atividades antes restritas à
esfera do Estado. Essa desregulamentação é feita com o
objetivo de adequar o País às regras econômicas do mercado
internacional. Para isso é liberada a navegação pela costa e
interior do País (cabotagem) para embarcações estrangeiras. O
conceito de empresa brasileira de capital nacional é eliminado,
não havendo mais distinção entre empresa brasileira e
estrangeira. A iniciativa privada, tanto nacional quanto
internacional, é autorizada a explorar a pesquisa, a lavra e a
distribuição dos derivados de petróleo, as telecomunicações e o
gás encanado. As empresas estrangeiras adquirem o direito de
exploração dos recursos minerais e hidráulicos.
Na política, o mandato do presidente da República é
reduzido de cinco para quatro anos. Em 1997, é aprovada a
reeleição do presidente da República, de governadores e
prefeitos. Candidatos processados por crime comum não
podem ser eleitos, e os parlamentares submetidos a processo
que possa levar à perda de mandato e à inelegibilidade não
podem renunciar para impedir a punição. A Constituição
também passa a admitir a dupla nacionalidade para brasileiros
em dois casos: quando estes têm direitos à outra nacionalidade
por ascendência consanguínea e quando a legislação de um
país obriga o cidadão brasileiro residente a pedir sua
naturalização.
O JUSNATURALISMO
O jusnaturalismo apresenta-se como uma corrente de
pensamento que se estendeu por vários séculos, com diferentes
orientações. Não constitui nossa intenção aqui descrever-lhe os
pormenores199, até porque já o abordamos, rapidamente, no
Capítulo I deste livro.
Basta, para os nossos fins, apontar as duas grandes premissas
que caracterizaram o pensamento jusnaturalista: a primeira é a
distinção entre direito natural e direito positivo; a segunda, a
ideia de que aquele é superior a este.
Direito natural seria o conjunto de regras universais,
emanadas, como faz inferir o nome, da própria natureza. Tal
ordenamento consubstanciaria valores e princípios ínsitos à
razão humana e, portanto, de validade inconteste, acima de
qualquer indagação. A existência do direito natural relaciona-
se intimamente com a noção de justiça.
Por sua vez, direito positivo seria o conjunto das normas
jurídicas postas pelo homem. Seria o fenômeno jurídico em
concreto, na forma como manifestado pelas diferentes
sociedades – via de regra, emanado de órgãos estatais. O
parâmetro para elaboração e posterior avaliação das normas
positivas – e aqui tratamos já da segunda premissa acima
aventada – seria o direito natural.
Para o jusnaturalismo, justo é o que se identifica com o
direito natural. Este, portanto, constitui o modelo de aferição
da legitimidade do direito positivo.
É possível dizer que para o jusnaturalismo o direito positivo
deveria ser a revelação, tanto quanto possível, do direito
natural (uma identificação completa entre ambos seria
impossível, dada a imperfeição da natureza humana).
Não são necessários maiores esforços para perceber os
grandes entraves gerados por essa corrente de pensamento.
No preciso dizer de Kelsen, há, em toda construção teórica de
inspiração jusnaturalista, certo teor religioso. Com efeito, os
valores inspirados do direito natural aparecem como revelação,
como algo imanente à razão humana. Sua fonte seria
precisamente a natureza, a qual, com o tempo, passa a se
identificar com seu criador, Deus200.
A grande crítica do positivismo jurídico à concepção acima
descrita refere--se à diferença essencial entre as leis da natureza
e as chamadas leis éticas ou da jurisprudência. Enquanto para
as primeiras vige a relação de causalidade, para as segundas o
traço marcante é o da imputação201.
Com efeito, na natureza, a ligação característica entre uma
condição e a sua consequência é a causalidade. Essa é a lei
ontológica maior: que uma consequência sempre possui uma
causa, estando ambas no mesmo plano, o plano do ser.
Já no campo jurídico, em que a nota característica é a
atribuição de determinados significados a dadas condutas, a
relação entre a condição ou causa (a conduta) e sua
consequência (a resposta oferecida pelo direito) não é regida
pela causalidade – tal resposta é atribuída –, é estipulada de
modo artificial, o que significa não decorrer automática, ou
melhor, naturalmente da causa.
A norma jurídica (como também a ética) imputa a uma causa,
dado valor. Em verdade, a rigor, permite que se faça um juízo
de valor ao se comparar a conduta efetivamente realizada com
a conduta reputada por ela – norma jurídica ou ética – como a
desejável, ou correta.
Diz-se, assim, que determinada conduta é correta se estiver
de acordo com o que estipula a norma, e incorreta se houver
contrariedade. O que a imputação estabelece, portanto, é uma
relação de dever ser.
Esses apontamentos são de extrema importância para
esclarecer os equívocos do jusnaturalismo: este não estabelece
de modo claro a distinção entre os planos do ser e do dever-ser.
Em verdade, os confunde. A lição kelseniana é aqui mais uma
vez oportuna: “O valor não é inerente ao objeto julgado como
valioso, é a relação desse objeto com uma norma pressuposta.
(...) O valor não é imanente à realidade natural. Portanto, o
valor não pode ser deduzido da realidade”202.
Não obstante, é precisamente isso que o jusnaturalismo faz:
atribui às leis naturais, como fruto de uma vontade divina,
valores que existiriam independentemente de qualquer ser
humano, de qualquer subjetividade. Valores universais,
atemporais, autoevidentes, aos quais, portanto, só resta à
humanidade se submeter.
Preconiza o direito natural, em suma, que há na realidade
ontológicas normas que indiquem o dever-ser.
Ocorre que a construção teórica de uma ordem superior de
valores não preenche o conteúdo da noção de justiça.
Permanece, pois, a abstração e a generalidade, o que é também
afirmar que a definição de “justo” resta ainda por ser
alcançada, ou seja, como fonte de legitimação do direito posto,
o direito natural não cumpre, em verdade, a função a que se
destina.
O cerne do problema está em que o jusnaturalismo não é
capaz de superar – ou estabelecer balizas categóricas – o
subjetivismo do observador.
O jusnaturalismo acolhe, também, a ideia de uma justiça
atemporal e imutável, universalmente válida. A evolução do
pensamento jurídico revelou ser esse posicionamento uma
falácia, pois cada sociedade, cada cultura, reconhece
determinados valores como justos.
Há, ainda, a confusão entre legitimidade e validade: para o
jusnaturalismo, o direito positivo só é válido na medida em
que atenda aos ditames daquela ordem superior de valores,
cujo conteúdo, como já apontado, é incerto. A insegurança
jurídica que advém dessa assertiva é evidente.
Seria mesmo de indagar a necessidade de haver um direito
positivo, considerando-se que deva ele ser construído à
imagem e semelhança do direito natural, o qual, por sua vez,
pode ser deduzido da natureza humana, o que nos remeteria à
discussão da qualidade da índole de nossa espécie – se boa ou
má –, como, de resto, amplamente desenvolvido por diversos
autores na época do jusnaturalismo racionalista203.
Também remanesce o problema, não menos relevante, acerca
da definição do que seja ou não compatível com o direito
natural. Quem teria legitimidade para apontá-lo? O príncipe?
O povo? Dessa dificuldade, especificamente, resulta a
frequente identificação do direito positivo com o direito
natural, o que mais uma vez demonstra a inutilidade da
dicotomia.
Como se vê, faz-se difícil a análise da eficácia dos princípios
sob o manto do pensamento jusnaturalista, que aponta, sim, a
existência deles, mas deixa inconclusa a tarefa de lhes definir
os respectivos conteúdos e de estabelecer os pressupostos de
sua aplicação.
Afirma-se que a dignidade da pessoa humana existe e deve
ser respeitada. Contudo, deixa-se de defini-la. Passemos, então,
à análise do positivismo jurídico, que buscou superar as
limitações do jusnaturalismo moderno.
O POSITIVISMO JURÍDICO204
Existem diversas vertentes do positivismo jurídico. Todas
elas, entretanto, têm como certo que o único direito verdadeiro
é o que está na lei posta, criada pelos homens.
O surgimento do positivismo jurídico está intrinsicamente
atrelado ao nascimento do Estado moderno e à ascensão social
da burguesia.
Com o Estado moderno, veio também o monopólio da
produção de normas jurídicas, por ele encabeçado. À
coercitividade ínsita à norma jurídica agregou-se o poder de
coação estatal, ente que passou a ser o artífice exclusivo não
apenas da produção do direito, mas também de sua aplicação.
Interessava ao Estado, portanto, o discurso segundo o qual
apenas seus atos, corporificados na forma de normas jurídicas,
pudessem criar Direito. Direito, nessa visão, seria Direito
apenas se criado pelo Estado.
Por sua vez, a ascensão social da burguesia foi fruto de
séculos de acumulação de capital. Com o poder econômico em
mãos, era necessário um sistema de normas estável e seguro
para proporcionar maior fluidez nas relações comerciais e
maior previsibilidade no sistema econômico em geral205.
Vê-se, portanto, que o positivismo jurídico é elaboração
teórica plenamente condizente com as condições históricas em
que surgiu. É mesmo despiciendo afirmá-lo, na medida em que
todo conhecimento ou sistema de ideias surge de determinadas
condições históricas e culturais. No caso, o que queremos
enfatizar é o fato de que o positivismo jurídico, como corrente
teórica, atendia cabalmente à manutenção do status quo que
forjara seu aparecimento.
O maior representante dessa corrente de pensamento – pelo
menos o mais citado – é, sem dúvida, o austríaco Hans Kelsen,
criador da chamada Teoria Pura do Direito, que procura retirar
da análise de seu objeto – o direito – qualquer elemento
valorativo ou ético. Daí dizer-se “pura”.
Há, na teoria de Kelsen, uma autorreferência: o direito
somente é direito se for válido, e a validade é relação a ser
perquirida no interior do próprio ordenamento jurídico
posto206. Já não há, então, o crivo do Direito natural, a
comparação com valores universais, imutáveis e atemporais.
Surge, assim, a figura da norma fundamental, fundamento de
validade de todo o ordenamento. Diz Kelsen:
“Uma norma jurídica não vale porque o seu conteúdo pode ser
deduzido pela vida e um raciocínio lógico do de uma norma
fundamental pressuposta, mas porque é criada por uma forma
determinada – em última análise, por uma forma fixada por uma
norma fundamental pressuposta. Por isso, e somente por isso, pertence
ela à ordem jurídica cujas normas são criadas de conformidade com
esta norma fundamental. Por isso, todo e qualquer conteúdo pode ser
Direito”207.
A norma fundamental não é constituição em sentido jurídico-
positivo, mas constituição em sentido lógico-jurídico – ela não
é posta, mas pressuposta: é o comando, ou, se preferirmos, a
disposição lógica segundo a qual devemos obedecer ao que for
convencionado ou produzido de determinada maneira (a
maneira reconhecida como legítima pela norma
fundamental)208.
É, em suma, o fundamento último de validade de
determinado ordenamento jurídico.
Ao aplicador da norma jurídica cabe apenas realizar um juízo
de subsunção, tomando a norma como premissa maior e o fato
como premissa menor, subsumindo-o, então, à hipótese
prevista naquela, para reconhecer a consequência também nela
prevista.
Como se vê, dessa construção teórica resulta uma extremada
formalização da concepção de direito e, como consequência,
partindo-se dela, pouco ou nada se pode dizer do que seja
justo209, ou, no nosso caso, do que integre necessariamente o
conteúdo da dignidade da pessoa humana.
Pode-se até chegar à conclusão de que a dignidade da pessoa
humana somente há que ser protegida se assim o determinar
alguma norma jurídica. Abre-se, assim, margem para que esta
seja mitigada pelo Estado, como, aliás, já aconteceu em mais de
uma oportunidade histórica210.
Aliás, a construção da primazia jurídica da dignidade da
pessoa humana sobre todo o ordenamento, verificada
sobretudo no pós-guerra, foi justamente uma reação ao
positivismo jurídico e às consequências que, fazendo uso dessa
corrente de pensamento, os totalitarismos geraram211.
Devemos aqui salientar, todavia, que, conforme esclarecido
pelo próprio Kelsen, o positivismo jurídico não deve se prestar
a legitimar esta ou aquela corrente político-ideológica.
Considerações desse jaez escapam à verdadeira ciência
jurídica. A esta cabe tão somente descrever o funcionamento e
as características do Direito, sem apontar-lhe, contudo, um
rumo ético-valorativo a ser seguido212.
A questão, nesse ponto, é se há, de fato, possibilidade
gnosiológica para a construção de uma tal teoria. Afinal, a
construção do conhecimento – qualquer que seja ele – é feita
por seres humanos e da visão destes é inafastável, por maior
que seja a objetividade, a aptidão para juízos valorativos. A
própria objetividade, como condição e propósito, é um valor,
uma tomada de posição.
O PÓS-POSITIVISMO
De um modo geral, identifica-se o positivismo jurídico com a
época histórica da Modernidade, pois, como já mencionado,
seu surgimento é, em grossas linhas, concomitante ao do
Estado moderno.
Em tempos atuais, não são poucos a falar em pós-
modernidade, em uma superação da conjuntura que forjou a
existência do Estado como viemos a conhecê-lo. Fala-se, então,
em crise da modernidade e do paradigma que a embasou: o
paradigma da razão213.
A abstração de todas as sistematizações formuladas na idade
da razão, desde o Iluminismo, conquanto tenha sido útil na
medida em que conferiu eficiência e, até certo ponto, coerência
ao conhecimento produzido a partir de então, passou, com o
pós-positivismo, a ser vista com diversas ressalvas ante o
caráter fragmentário da sociedade.
Começa-se a questionar se, de fato, toda a evolução havida
na tecnologia e no conhecimento em geral a respeito da
natureza e do homem em si contribuiu para a construção da
felicidade dos seres humanos – individual e coletiva.
Em suma, e esse parece ser o nó da questão, indaga-se se
toda a regulação advinda do racionalismo dos tempos
modernos favoreceu a emancipação humana. Mais: passa-se ao
reconhecimento de que não há regulação neutra, de que o
projeto lógico-racional empreendido desde o Iluminismo
restou eivado pelas influências políticas e econômicas próprias
do capitalismo, o que coloca em xeque sua pertinência e sua
utilidade para a construção da emancipação214.
Em termos históricos, já mencionamos que o positivismo
jurídico deu margem – e, em verdade, constituiu mesmo parte
do arcabouço teórico – ao nascimento dos grandes
totalitarismos existentes na época da Segunda Guerra Mundial.
A rígida separação entre Direito e Moral propiciou uma
aplicação de normas jurídicas sem referencial axiológico
algum, o que permitiu, por sua vez, a aniquilação de milhares
de seres humanos sem que houvesse, pelo menos nas
sociedades em que tais atrocidades foram praticadas, grande
comoção popular.
No campo jurídico, então, essa crise que estamos a vivenciar
também vem deixando suas marcas215. Importa-nos destacar
aqui quatro delas, que constituem o cerne do que se
convencionou designar por pós-positivismo.
A primeira é resultado direto da complexificação da
sociedade e do crescente pleito pela efetivação dos numerosos
direitos já reconhecidos: trata-se da consideração do
ordenamento jurídico como um sistema aberto, e não mais
hermético, estático – sistema aberto em que a Constituição
encontra-se no centro. Assim, já não mais se ignora que tanto a
produção como a aplicação da norma jurídica estão
necessariamente marcadas por fortes influxos axiológicos e
mesmo volitivos do legislador e do aplicador. O estudo do
Direito passa, então, a levar em conta os valores subjacentes a
toda norma jurídica, de tal sorte que a ciência jurídica tem
como seu objeto não apenas as normas abstratamente
consideradas, mas, também, a finalidade a que se destina sua
aplicação e o contexto cultural em que tal se dá216.
Por óbvio, essa mudança também alterou os eixos da
intepretação das normas jurídicas. À atividade interpretativa é
também atribuído conteúdo de normatividade, na medida em
que tem lugar o reconhecimento de que a norma jurídica
somente se completa ao ser aplicada e tal aplicação pressupõe
necessariamente o ato de interpretar.
Assim, desenvolvem-se, e em larga escala, novas técnicas de
interpretação, bem como teorias a respeito do próprio papel
desta nos diferentes campos do conhecimento.
Essa preeminência da atividade interpretativa implica, sob
outra ótica, reconhecer o papel do sujeito cognoscente na
construção do conhecimento217. Este já não pode mais ser tido
como algo abstrato, desprovido de valor, objetivamente
aferível em sua totalidade. O conhecimento é, em essência, algo
a ser construído, um processo de que faz parte quem o tenta
apreender218.
Há, em suma, uma reaproximação entre direito, ética e
moral, numa superação da “pureza” do positivismo jurídico,
ocasionando, também, uma desformalização da lógica jurídica,
donde a ênfase, a partir de então, nas teorias da
argumentação219. Essa a primeira grande transformação
característica do chamado pós-positivismo.
Em segundo lugar, podemos apontar a crescente
normatização da Constituição, ou, como muitos preferem, o
reconhecimento progressivo da força normativa da
Constituição. Surge o chamado neoconstitucionalismo.
Ocorre que era de nossa tradição dogmática considerar
normas constitucionais como proposições destituídas de
imperatividade, e não como verdadeiros comandos dotados de
juridicidade. A Constituição era vista como mera carta de
intenções, documento veiculador de um sem-número de
normas chamadas programáticas, isto é, desprovidas de
exigibilidade. Era, em verdade, tida como um documento
essencialmente político – um convite à atuação dos Poderes
Públicos220.
O pós-positivismo alterou esse panorama ao reconhecer a
força normativa da Constituição, que, então, espraia efeitos
sobre todo ordenamento jurídico, vinculando o legislador e o
aplicador da norma. A preocupação com a efetividade da
Constituição faz com que progressivamente sejam
reconhecidos verdadeiros direitos subjetivos com base direta
em disposições constitucionais.
Paralelamente, também observamos o reconhecimento da
normatividade dos princípios. Essa a terceira grande mudança
característica do pós-positivismo221.
Princípios são tidos como uma espécie de norma jurídica, ao
lado das regras, e não mais como disposições puramente
axiológicas, éticas, sem eficácia jurídica222.
Temos, então, até aqui: reconhecimento do caráter
eminentemente axiológico do direito, com reaproximação deste
da ética e da moral; reconhecimento da força normativa da
Constituição; e atribuição de normatividade aos princípios.
São todas superações do positivismo jurídico no sentido de se
evitar a automatização propiciada pelo formalismo
característico deste.
Em última análise, podemos apontar, no pós-positivismo,
uma procura irrefreável pela finalidade do direito – o
ordenamento jurídico não existe apenas para solucionar
conflitos intersubjetivos, para, do ponto de vista sociológico,
garantir a coesão da sociedade. Não basta, portanto, descrever
suas características e seu modo de aplicação. É necessário que
se aponte a finalidade a que se destina, pois todo agir humano
é também finalista.
Chegamos, assim, à quarta mudança de relevo: o
protagonismo assumido pelos direitos fundamentais perante as
normas constitucionais e perante todo ordenamento jurídico223.
Doutrina e jurisprudência assumem papel propositivo, com
vistas à consubstanciação de valores e direitos até então tidos
como meros apontamentos, simples indicações de caminhos a
seguir.
Nesse contexto, o princípio da dignidade da pessoa humana
ocupa uma posição central. Constitui marco necessário e
inafastável do neoconstitucionalismo, de que passamos a
tratar.
O NEOCONSTITUCIONALISMO
A expressão “neoconstitucionalismo” é utilizada para
designar a nova concepção de Direito Constitucional, sob a luz
do pós-positivismo, e representa uma superação do
jusnaturalismo e do positivismo. É também chamado de
“constitucionalismo avançado”, ou, ainda “constitucionalismo
de direitos”. Trata-se de corrente surgida após a Segunda
Guerra Mundial224, período em que também foram construídas
as bases do chamado “Direito Internacional dos Direitos
Humanos”, sistema normativo internacional erigido com a
finalidade de limitar o poder do Estado e assegurar os direitos
fundamentais por meio de um aparato internacional225.
No Brasil, o marco histórico foi a Constituição Federal de
1988226.
Como já adiantado acima, a ideia central do
neoconstitucionalismo é a força normativa da Constituição,
que, de carta de intenções, passa a ser tida como fonte de
normas jurídicas227 – ainda que programáticas –, de tal sorte
que suas disposições vinculam os órgãos estatais e os
particulares e conferem a estes a pretensão de ver o conteúdo
de tais normas devidamente implementado, do que resulta um
protagonismo do Judiciário, com o papel de assegurar e
promover os direitos fundamentais ali consagrados.
A ação de inconstitucionalidade por omissão, o mandado de
injunção e a arguição de descumprimento de preceito
fundamental ganham relevo, eis que verdadeiros instrumentos
de controle das omissões estatais.
Em outras palavras, passa-se a se admitir a influência direta
da Constituição sobre as atividades legislativa e jurisdicional.
Assim, a atuação do legislador submete-se às determinações
constitucionais de modo automático, o que também se dá com
o julgador – no caso específico deste, a consequência imediata é
a substituição do modelo de subsunção lógico-formal, típico do
positivismo então em voga, pelo paradigma da operação
argumentativa de ponderação, visando, sempre, à
concretização dos princípios constitucionais228.
Veja-se que esse estado de coisas gera permanente conflito
entre a democracia e o constitucionalismo, eis que está no cerne
daquela a escolha livre dos representantes em âmbito político,
esfera que necessariamente se submete aos ditames
constitucionais. Há, então, evidente primazia do Poder
Judiciário, responsável pela resolução dos eventuais (e
constantes) atritos.
Diante desse quadro, o conflito em tela pode ser assim
descrito: ou se opta por um neoconstitucionalismo robusto, o
que significa conferir primazia aos preceitos constitucionais,
mormente aos princípios ali contidos, e, por consequência,
implica admitir-se o ativismo judicial, com interferência real e
significativa do Poder Judiciário na atuação dos demais
Poderes, ou se escolhe colocar em primeiro plano a
legitimidade democrática do legislador229.
Reconhecer a força normativa da Constituição traz também
outras consequências. Uma delas, da maior importância, é a
criação de métodos próprios de interpretação constitucional.
Surgem os princípios (na terminologia da doutrina, enfatize-se)
da supremacia da Constituição, da presunção de
constitucionalidade das normas e atos do Poder Público, da
interpretação conforme a Constituição, da unidade, da
razoabilidade e da efetividade – todos eles acrescentados aos
critérios hermenêuticos tradicionais230.
Também consequência do reconhecimento da força
normativa da Constituição é a incorporação, no ordenamento
jurídico positivo, de temas até então pertencentes ao
jusnaturalismo.
Há, nesse sentido, uma superação do positivismo jurídico,
mormente no que diz respeito ao papel atribuído à ciência
jurídica – a esta cabe, segundo o neoconstitucionalismo, não
apenas descrever o ordenamento, delimitando com precisão a
área de estudo do saber jurídico, mas, também, perquirir as
possibilidades de intervenção axiológica, considerada sempre a
realidade em que se insere o aplicador da norma231.
As noções de distanciamento e neutralidade descritiva
restam, assim, superadas. Em verdade, o grande traço
distintivo de todas as teorias neoconstitucionalistas está
precisamente em aproximar a aplicação do direito aos valores
sociais, o que ocasionou, por sua vez, um amplo
desenvolvimento das teorias da argumentação e da
ponderação, mormente porque em face da força normativa da
Constituição as colisões entre normas constitucionais
tornaram-se cada vez mais comuns e evidentes232. Confere-se,
desse modo, natureza política à atividade do jurista233.
O problema que tem se observado, nesse ponto, é que no
Brasil, sob a pecha de neoconstitucional, abriu-se a brecha para
um subjetivismo exacerbado, com aplicação da norma não à
luz dos preceitos maiores da Constituição e sob o crivo
rigoroso da argumentação, mas vazada em termos genéricos,
sem qualquer rigor científico ou lógico.
Muito oportuna, nesse sentido, a lição de Ricardo Maurício
Freire Soares, ao apontar que o neoconstitucionalismo,
diferentemente do positivismo, não olvida que já o Direito é
também uma construção essencialmente axiológica e
teleológica234, de sorte que podemos afirmar, sem maior
circunlóquio, a impossibilidade e o contrassenso de se evitarem
juízos valorativos ao analisá-lo.
Assiste-se, em suma, à incorporação, no texto constitucional,
de conteúdos materiais indeterminados, de forte carga
valorativa, elevados a categorias de direitos, princípios e
diretrizes – são, por exemplo, os conceitos expressamente
acolhidos de liberdade, dignidade e justiça.
Há, por assim dizer, uma materialização da Constituição, que
assume o papel de pauta axiológica do ordenamento e da
sociedade235. Os valores constitucionais constituem, então,
parâmetros para aferição da validade, da eficácia e da
legitimidade das normas jurídicas236.
Nesse contexto, o princípio da dignidade humana revela toda
sua força. Como fundamento de nosso Estado Democrático de
Direito (artigo 1º, III, da Constituição Federal), ele serve de
substrato às formulações legislativas e como baliza para o
julgador.
Antes de passarmos à análise do modo pelo qual esses efeitos
devem ser produzidos, vejamos a construção histórica do
conceito.
LIBERDADE DE IMPRENSA
A livre manifestação do pensamento, como direito
inalienável, representa um dos pilares das sociedades
democráticas.
Como tal, vem inicialmente assegurada por nossa
Constituição pelos termos do inciso IV do artigo 5º e reiterada
através do caput do artigo 220, ao proibir qualquer restrição à
manifestação do pensamento, à criação, à expressão e à
informação.
Nessa direção, focando especificamente a liberdade de
imprensa, determina que nenhuma lei poderá conter qualquer
regra que cause embaraço à plena liberdade de informação
jornalística em qualquer meio de comunicação social (artigo
220, § 1º).
Demais disso, considerando que a censura quanto à
expressão decorre do comando de regime ditatorial, a
Constituição de 1988 assegura a livre expressão da atividade
intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença (artigo 5º, inciso IX),
vedando, igualmente, qualquer censura de natureza política,
ideológica e artística (artigo 220, § 2º).
Entretanto, sendo certo que a censura em muito se distancia
da regular fiscalização sobre os meios de comunicação e, em
especial, quanto aos veiculados pela televisão, o texto
constitucional prevê o controle administrativo (artigo 21, inciso
XVI), judicial (artigo 5º, inciso XXXV, e artigo 223, § 5º), social
(artigo 224) e a autorregulação de tais atividades.
Portanto, frente ao passo inovador introduzido pelo texto
constitucional, o Supremo Tribunal Federal, em 2009, entendeu
afastada de nosso sistema jurídico a Lei de Imprensa n.
5.250/67, que, editada em decorrência da ditadura militar que
comandava o país, estabelecia regras invasivas que ameaçavam
o exercício de tal direito.
Em decorrência de tal decisão, atualmente, a liberdade de
imprensa não se encontra amparada por qualquer lei ordinária.
Destarte, tal anomia não restringe a garantia que fora
constitucionalmente estabelecida.
De toda maneira, os aplicadores do Direito e especificamente
a Associação Nacional de Jornais permanecem em alerta no
sentido de evitar qualquer comprometimento à liberdade de
informar.
Nesse sentido, foi redigida uma carta de princípios por 100
especialistas, a pedido da Sociedade Interamericana de
Imprensa, e adotada pela Conferência Hemisférica sobre a
Liberdade de Expressão, realizada em Chapultepec.
Chefes de Estado, inclusive o Brasil, assinaram o documento
que rechaça a censura prévia e a violência contra jornalistas,
por entender que a liberdade de imprensa, ao propiciar o
conhecimento de ideias divergentes, pode conduzir a
produtivos debates e, como tal, representa o principal impulso
para que as sociedades conheçam e resolvam seus conflitos,
além de promoverem o bem-estar.
Com efeito, o documento dispõe, expressamente, que “não
há pessoas nem sociedades livres sem liberdade de expressão e
de imprensa. O exercício dessa não é uma concessão das
autoridades, é um direito inalienável do povo”.
Demais disso, a todos deve ser assegurado o direito de
buscar e receber informações, expressar e, bem assim, divulgar
livremente suas opiniões. Igualmente se opõe à liberdade de
imprensa qualquer restrição à circulação dos meios de
divulgação das informações ou à movimentação dos
jornalistas.
Dada sua amplitude, o documento prevê ainda, como fator
limitador à liberdade de imprensa, as políticas tarifárias e
cambiais, as licenças de importação de papel ou equipamento
jornalístico, a concessão de frequências de rádio e televisão.
Acentua, ainda, que a credibilidade da imprensa está ligada a
princípios éticos e profissionais, como o compromisso com a
verdade, a busca de precisão, imparcialidade e equidade e são
de responsabilidade dos jornalistas e dos meios de
comunicação. Portanto, não precisam ser impostos.
Por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de Imprensa,
centrado no tema “Novas vozes: a liberdade da mídia
ajudando a transformar sociedades”, o Secretário-Geral da
ONU e a Diretora Geral da UNESCO firmaram Mensagem
Conjunta, enfatizando que “a liberdade de expressão é um dos
nossos direitos mais preciosos. Sustenta toda a liberdade aos
outros e fornece uma base para a dignidade humana”.
Em suma, a liberdade de imprensa constitui um dos pilares
dos direitos individuais, uma base para sociedades saudáveis e
uma força de transformação social.
Mas, para ser livre, a imprensa necessita emitir opiniões com
liberdade, comunicar e compartilhar informações e
conhecimentos recebidos por quaisquer meios e
independentemente de fronteiras, como previsto no artigo 19
da Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Nessa mesma ocasião, foi ressaltado que, mundialmente, a
liberdade de imprensa enfrenta pressões de toda ordem.
Registros indicam que, em 2011, a UNESCO condenou o
assassinato de 62 jornalistas que morreram em decorrência do
exercício da função.
Demais disso, acentuou-se que a utilização da mídia virtual,
na qual estão incluídos os “blogues” (espécies de sites pessoais
de publicação de notícias e informações), está sofrendo
perseguição, sendo os responsáveis, frequentemente, atacados
e mortos. Assim, também esses meios de comunicação
merecem a mesma proteção dispensada aos jornalistas
tradicionais.
Entretanto, alertam que, para o desenvolvimento de tais
proposições, os Estados, os meios profissionais e as
organizações não governamentais em todos os lugares devem
estar aliados com as Nações Unidas para promover a liberdade
on--line e off-line de expressão, de acordo com princípios
internacionalmente aceitos.
Oportunamente, os “Repórteres sem fronteiras” indicam que
o Brasil está postado no 99º lugar entre os países consultados
quanto à questão de defesa à imprensa livre.
Ainda por ocasião do Dia Mundial da Liberdade de
Imprensa – 3 de maio de 2012 – recordou-se que aos 13 e 14 de
setembro de 2011 foi realizada, na UNESCO, a primeira
reunião interinstitucional das Nações Unidas sobre a segurança
dos jornalistas e a questão da impunidade, que redundou na
elaboração de um plano de ação da ONU para construir um
ambiente mais livre e seguro para os jornalistas e profissionais
de mídia em todos os lugares.
Por tais elementos, a referida Mensagem Conjunta propôs-se
a não medir esforços no sentido de fortalecer as bases legais
para a mídia livre, pluralista e independente, especialmente em
países submetidos à transformação ou à reconstrução após
conflito.
Como resultado, esperam desenvolver nos jovens maior
habilidade crítica e um melhor conhecimento de mídia.
Salientando os mesmos objetivos, o ministro presidente do
Supremo Tribunal Federal (STF), Ayres Britto, encerrou no dia
12 de junho de 2012 o seminário “Liberdade de Expressão –
Imprensa e Independência do Judiciário”, promovido pela
Associação dos Juízes Federais do Brasil (AJUFE) e as
Organizações Globo, em Brasília, defendendo a existência de
um vínculo essencial entre a democracia e a liberdade de
imprensa.
Nessa oportunidade, importantes temas foram abordados,
como as relações entre liberdade de expressão, democracia e
justiça, reparação de dano moral em razão da publicação de
matérias jornalísticas e a proteção do direito autoral em tempos
de internet.
Em todos os debates restou enfatizado que a Democracia
expressa a unidade material da Constituição Federal.
Nesse sentido, a própria Constituição assegurou a liberdade
de imprensa como instrumento hábil para tal realização, eis
que permite, através do pensamento crítico, a formação de
opinião pública, como contraponto à versão oficial dos fatos.
Os limites dessa atuação, como já acentuado, devem decorrer
da autorregulamentação e do controle social e não do controle
estatal.
De outro lado, na mesma ocasião, o Ministro Gilmar Mendes
apresentou precedentes de direito comparado, para sustentar
que, em casos especiais, a liberdade de imprensa pode ser
limitada. Nesse sentido, sustentou a criação de um novo marco
legal para a imprensa no Brasil, especialmente quanto ao
direito de resposta. Tal se dá porque, em seu entendimento, o
Superior Tribunal Federal, ao declarar a inconstitucionalidade
da Lei de Imprensa, não impediu o legislador ordinário de
disciplinar sobre a matéria, desde que lastreado pelos
princípios democráticos.
A LIBERDADE DA NACIONALIDADE
É um dos componentes fundamentais da cidadania. É
oficializado com a certidão de nascimento, que é obrigação do
pai ou do responsável providenciar logo após o nascimento. A
primeira via da certidão de nascimento é inteiramente gratuita.
Qualquer cartório de registro civil é obrigado a cumprir esse
direito a todo cidadão, independentemente de sua situação
financeira ou idade.
São considerados brasileiros natos: pessoas nascidas no
Brasil, ainda que de pais estrangeiros (desde que estes não
estejam a serviço do seu país); pessoas nascidas no estrangeiro,
de pai ou mãe brasileira, desde que qualquer um deles esteja a
serviço do Brasil; pessoas nascidas no estrangeiro, de pai ou
mãe brasileira, desde que venham a residir no Brasil e façam
opção, a qualquer momento, pela nacionalidade brasileira.
Também existe a figura do brasileiro naturalizado, que se
configura quando a pessoa adquire a nacionalidade brasileira
após residência ininterrupta de um ano no País, tendo
comprovado idoneidade moral. A nacionalidade brasileira é
exigida aos originários de países de língua portuguesa,
respeitadas as condições acima.
Com a Constituição de 1988, pela primeira vez, reconhece-se
aos índios no Brasil o direito à diferença; isto é, de serem índios
e de permanecerem como tal indefinidamente. É o que reza o
caput do artigo 231 da Constituição:
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que
tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e
fazer respeitar todos os seus bens.
Note-se que o direito à diferença não implica menos direito
nem privilégios. Daí por que a Carta de 1988 tenha assegurado
aos povos indígenas a utilização das suas línguas e processos
próprios de aprendizagem no ensino básico (§ 2º do artigo 210),
inaugurando, assim, um novo tempo para as ações relativas à
educação escolar indígena.
Além disso, a Constituição permitiu que os índios, suas
comunidades e organizações, como qualquer pessoa física ou
jurídica no Brasil, tenham legitimidade para ingressar em juízo
em defesa de seus direitos e interesses.
O Serviço de Proteção ao Índio foi criado em 1910, pelo
marechal Cândido Mariano da Silva Rondon, para proteger as
227 etnias indígenas do Brasil. Hoje, segundo o Instituto
Socioambiental (ISA), existem no Brasil 600 mil pessoas
indígenas (que falam 180 línguas diferentes e ocupam 825
terras), o correspondente aproximado a 0,2% da população
total do País323, distribuído da seguinte forma:
• 61 povos (28,2%) têm uma população de até 200 indivíduos;
• 50 (23,1%), entre 201 e 500;
• 37 (17,1%), entre 501 e 1.000;
• 43 (19,9%), entre 1.001 e 5.000;
• 9 (4,1%), entre 5.001 e 10.000;
• 5 (2,3%), entre 10.001 e 20.000;
• 1, entre 20.001 e 30.000;
• 2 com mais de 30.000.
Mas a luta pela terra – e consequentemente pelo direito de
nacionalidade –, nas comunidades indígenas, começou
realmente em 1936, quando Getúlio Vargas criou a reserva de
Caramuru, com 54 mil hectares, em Itabuna, Bahia, para os
índios pataxós. A luta na região foi ferrenha, porque os brancos
invadiram a reserva, pouco tempo depois, para implantar
fazendas de cacau. Expulsos, os pataxós foram se espalhando
pelo Brasil. A Fundação Nacional do Índio (Funai) foi criada
em 1967324, quando o governo começou a se organizar para
defender as tribos remanescentes. Mas somente em 1973 foi
promulgado o Estatuto do Índio. Os índios expulsos da reserva
Caramuru só em 1982 puderam voltar. Mas o conflito foi
inevitável. Nas batalhas que ocorreram na região, morreram 17
índios e um soldado. Hoje, os índios recuperaram apenas
14.700 hectares da reserva que originalmente tinha sido
garantida pelo governo federal. Pior: a Funai ainda teve que
indenizar os brancos pelas benfeitorias realizadas na área
durante o período. A própria Funai admite que 85% das 560
terras indígenas sofrem algum tipo de intrusão.
Segundo relatório recente da Anistia Internacional, existem
quase 12 milhões de pessoas apátridas no mundo. O número
equivale à população dos maiores conglomerados urbanos do
planeta, como São Paulo ou Nova York.
LIBERDADE POLÍTICA
Norberto Bobbio afirma que “tudo é política, mas a política
não é tudo”.
Política é o direito que cada cidadão de plena consciência
mental recebe de participar da política de seu país, tendo em
vista o direito de votar e ser votado.
Para ser votado, o cidadão precisa:
• Ser brasileiro, estar em pleno gozo de seus direitos políticos.
• Ter título de eleitor.
• Ter se filiado a um partido político um ano antes das eleições.
• Ter idade mínima de 18 anos (vereador), 21 anos (prefeito e
deputados), 30 anos (governador) e 35 anos (senador e presidente da
República).
• Ter domicílio eleitoral na localidade onde pretende pleitear o cargo.
O artigo 17 da Constituição Federal garante às pessoas o
direito de se organizarem em partidos, de participarem deles,
de votarem nas eleições, nos plebiscitos, nos referendos e de se
candidatarem, como também de exercerem a “iniciativa
popular”.
Art. 17. É livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos
políticos, resguardados a soberania nacional, o regime democrático, o
pluripartidarismo, os direitos fundamentais da pessoa humana e
observados os seguintes preceitos:
I − caráter nacional;
II − proibição de recebimento de recursos financeiros de entidade ou
governo estrangeiros ou de subordinação a estes;
III − prestação de contas à Justiça Eleitoral;
IV − funcionamento parlamentar de acordo com a lei.
§ 1º É assegurada aos partidos políticos autonomia para definir sua
estrutura interna, organização e funcionamento e para adotar os
critérios de escolha e o regime de suas coligações eleitorais, sem
obrigatoriedade de vinculação entre as candidaturas em âmbito
nacional, estadual, distrital ou municipal, devendo seus estatutos
estabelecer normas de disciplina e fidelidade partidária325.
§ 2º Os partidos políticos, após adquirirem personalidade jurídica, na
forma da lei civil, registrarão seus estatutos no Tribunal Superior
Eleitoral.
§ 3º Os partidos políticos têm direito a recursos do fundo partidário e
acesso gratuito ao rádio e à televisão, na forma da lei.
§ 4º É vedada a utilização pelos partidos políticos de organização
paramilitar.
LIBERDADE E IGUALDADE
Numerosos pensadores debruçaram-se, ao longo dos tempos,
sobre a noção de liberdade. Pensar a liberdade implica,
necessariamente, pensar a situação das sociedades dentro do
seu contexto histórico, ou seja, uma avaliação sociológica. Com
isso, relatividade é uma expressão inteiramente embutida em
qualquer análise. Basta lembrarmos de Aristóteles, discípulo de
Platão e de Sócrates que, embora defensor da liberdade dos
cidadãos, aceitava como natural a escravidão. Essa menção
remete a Hans Kelsen, jurista austríaco nascido em Praga, que
determinava, na sua Teoria pura do direito326, que o papel do
Direito não é discutir o que é certo ou errado, bom ou mau.
Segundo ele, isto cabe à disciplina da Ética. O Direito deve, no
pensamento de Kelsen, determinar o que é lícito ou ilícito,
conforme a lei. Posto assim, o chamado direito positivo (aquele
que é estabelecido pelo legislador dentro de um sistema
jurídico e validado pelas condições formais) pode até ofender
algum mandamento da justiça, mas continua sendo válido.
Justiça e moral são questões vinculadas à conduta e ao tempo
histórico – vamos voltar ao exemplo da tolerância de
Aristóteles em relação à escravidão. Decorre daí que, de acordo
com Kelsen, podemos pensar em liberdade como algo
igualmente relativo, como a justiça. Justiça e liberdade,
portanto, devem ser analisadas não à luz do Direito, mas à luz
da Ética.
O filósofo italiano Norberto Bobbio, um dos mais
importantes pensadores do Direito contemporâneo, de certo
modo contraria a noção positivista estrita de Kelsen ao
raciocinar, no seu livro Igualdade e liberdade, sobre os conceitos
de liberdade negativa e liberdade positiva327.
Bobbio teoriza que liberdade significa a eliminação de
opressão. Opressão, no sentido que o filósofo utiliza, é
qualquer tipo de constrangimento, e isso pode variar de acordo
com a sociedade, a cultura dessa sociedade e o tempo histórico
em que ela está inserida. Ou seja, um valor de hoje pode ser
considerado diferentemente no futuro. As situações levam à
definição de novos valores. Portanto, do mesmo modo que o
conceito de justiça e de opressão pode variar, pode variar o
conceito de liberdade.
O inciso II do artigo 5º da Constituição brasileira de 1988 diz
que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma
coisa senão em virtude de lei”.
Essa é a liberdade negativa, segundo Bobbio; a situação em
que o indivíduo não sofre constrangimentos nem
impedimentos para as suas ações. Portanto, para Bobbio,
liberdade (negativa) é a possibilidade de fazer tudo o que a lei
permite e tudo o que a lei não proíbe. É uma atitude
egocentrada, voltada para o individual.
A liberdade positiva, ao contrário, é a situação em que o
indivíduo pode fazer o que quer, sem precisar ser movido
pelos mandamentos da lei. É, segundo Bobbio, quando a
pessoa “tem a possibilidade de orientar seu próprio querer no
sentido de uma finalidade, de tomar decisão, sem ser
determinado pelo querer dos outros”. Portanto, a liberdade
positiva é uma atitude de vontade, autônoma, política, voltada
para a coletividade.
2.
Aspectos nacionais e
internacionais
A Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e
proclamada por Resolução da Assembleia Geral das Nações
Unidas, em 10 de dezembro de 1948, estabelece, em seu artigo
26, que toda pessoa tem direito à instrução gratuita pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. Ou seja, a educação
elementar deve ser obrigatória, a educação técnico-profissional
deve ser acessível a todos e a educação superior baseada é
baseada no mérito.
Esse direito universal tem por princípio o pleno
desenvolvimento da personalidade humana, o fortalecimento
do respeito pelos direitos humanos e pelas liberdades
fundamentais. Demais disso, deve promover a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou
religiosos e contribuir com atividades das Nações Unidas em
prol da manutenção da paz.
Ademais, ressaltando a importância da família, a Declaração
reconhece que os pais têm prioridade na escolha do gênero de
instrução que será ministrada a seus filhos.
Na mesma direção, o Pacto Internacional dos Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966328, detalhando alguns
dos direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos do
Homem, deixou expresso, em seu artigo 13, que os Estados-
partes devem fomentar e intensificar, na medida do possível, a
educação de base para os que não receberam educação
primária ou não concluíram o ciclo completo de educação
primária. Devem, também, prosseguir ativamente no
desenvolvimento de uma rede escolar em todos os níveis de
ensino, implementando um sistema de bolsas de estudo e
melhorando continuamente as condições materiais do corpo
docente.
De toda maneira, restou vedada qualquer interpretação de
suas disposições tendente a restringir a liberdade de
indivíduos e de entidades no sentido de criar e dirigir
instituições de ensino, desde que respeitados os princípios que
as fundamentam.
A Constituição Federal do Brasil, estabelecendo entre os
objetivos da República a construção de uma sociedade
verdadeiramente livre, justa e solidária (artigo 3º), seguiu o
alinhamento do movimento de internacionalização dos direitos
fundamentais, intensificado a partir da Segunda Guerra
Mundial. Em tal conformidade, ressalta a educação como
direito de todos e dever do Estado e da família, incumbindo à
sociedade o dever de provê-la e incentivá-la (artigo 205).
Deve, de acordo com o poder constituinte originário, visar ao
alcance de três metas: o pleno desenvolvimento da pessoa, seu
preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o
trabalho (conforme o caput do artigo 205).
Isso significa, veja-se, que o sistema educacional pátrio deve
ser construído de tal forma a permitir que a pessoa tenha
ampla percepção do contexto em que se situa, sendo-lhe
ministrados conteúdos idôneos à realização de sua
personalidade no interior da sociedade e perante si mesma – o
que, vale dizer, implica acatar o ideário de uma educação
crítica e preocupada com os rumos da nação. Assim é que, pela
educação, a pessoa deve se tornar pronta a exercer uma
profissão e a atuar politicamente na comunidade em que esteja
inserida, cônscia de seus direitos (formação cidadã)329.
Com efeito, edificada entre os direitos sociais330, a educação
mereceu amplo e detalhado tratamento de ordem
eminentemente democrática (artigo 206), expressos pela: a)
igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
b) liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o
pensamento, a arte e o saber; c) pluralismo de ideias e de
concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas
e privadas de ensino; d) gratuidade do ensino público em
estabelecimentos oficiais; e) valorização dos profissionais da
educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de
carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de
provas e títulos, aos das redes públicas; f) gestão democrática
do ensino público, na forma da lei; g) garantia de padrão de
qualidade; h) piso salarial profissional nacional para os
profissionais da educação escolar pública, nos termos de lei
federal.
Há, ainda, no texto constitucional, forte pretensão de
universalização do ensino no âmbito da educação básica, como
faz ver, aliás, a alteração promovida pela Emenda
Constitucional n. 59, de 2009, que ampliou a faixa etária da
obrigatoriedade da referida educação: atualmente, a educação
básica é obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete)
anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para
todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria (artigo
208, I).
Ainda, nesse sentido, há previsão expressa da progressiva
universalização do ensino médio gratuito (artigo 208, II). A
educação infantil, em creche e pré-escola, está prevista para
crianças até 5 (cinco) anos de idade (artigo 208, IV). O acesso ao
ensino superior dependerá da capacidade pessoal de cada um
(artigo 208, V)
Para fazer frente a toda essa demanda, criou-se, para a
organização dos sistemas de ensino, um regime de colaboração
entre a União, estados e municípios, através de distribuição de
competências exclusivas ou concorrentes, sejam executivas ou
legislativas com vistas à universalização do ensino obrigatório
(artigo 211, § 4º)331, sendo que a educação básica pública
atenderá prioritariamente ao ensino regular (artigo 211, § 5º).
A essa repartição de responsabilidades na organização do
sistema corresponde uma distribuição de competências
legislativas, é dizer, no ordenamento pátrio, são diversas as
instâncias normativas em se tratando da matéria educação: à
União compete privativamente legislar sobre diretrizes e bases
da educação nacional (artigo 22, XXIV, da Constituição
Federal), mas é de competência concorrente da União, dos
Estados e do Distrito Federal legislar sobre educação, cultura,
ensino e desporto (artigo 24, IX, da Constituição Federal).
Além disso, ciente das limitações inerentes à máquina estatal,
o Constituinte estabeleceu que o ensino é livre à iniciativa
privada, desde que cumpridas as normas gerais da educação
nacional, segundo os termos de prévia autorização e avaliação
de qualidade pelo Poder Público332.
Para atender a esses objetivos, a União aplicará, anualmente,
nunca menos de 18% (dezoito por cento), e os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, 25% (vinte e cinco por cento),
no mínimo, da receita resultante de impostos, compreendida a
proveniente de transferências, na manutenção e
desenvolvimento do ensino (artigo 212 da Constituição
Federal). Entretanto, a distribuição dos recursos públicos
deverá obedecer aos objetivos de universalização, garantia de
padrão de qualidade e equidade do ensino obrigatório, nos
termos do plano nacional de educação333.
A Emenda Constitucional n. 59/2009, responsável pela
redação atual do artigo 214 da Constituição, veio atrelar ao PIB
os recursos públicos destinados à educação. Trata-se de
importante inovação que exige esforços dos poderes públicos
no sentido de buscar a excelência da educação. Para tanto, o
plano nacional de educação deverá definir diretrizes, objetivos,
metas e estratégias de implementação com vistas a assegurar a
erradicação do analfabetismo, a universalização do
atendimento escolar, a melhoria da qualidade do ensino, a
formação para o trabalho e a promoção humanística, científica
e tecnológica do País. Ademais, as cotas estaduais e municipais
da arrecadação da contribuição social do salário-educação
serão distribuídas proporcionalmente ao número de alunos
matriculados na educação básica nas respectivas redes públicas
de ensino.
A par de outras disposições que permeiam o nosso texto
constitucional, a atenção para com a educação de seu povo
levou o Brasil a se apresentar como signatário de diversos
pactos internacionais coordenados pela ONU.
A base é a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que
trata particularmente da educação no seu artigo 26:
“1. Toda pessoa tem direito à instrução. A instrução será gratuita, pelo menos
nos graus elementares e fundamentais. A instrução elementar será obrigatória.
A instrução técnico-profissional será acessível a todos, bem como a instrução
superior, está baseada no mérito.
2. A instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da
personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e
pelas liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a
tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e
coadjuvará as atividades das Nações Unidas em prol da manutenção da paz.
3. Os pais têm prioridade de direito na escolha do gênero de instrução que será
ministrada a seus filhos”.
Submete-se, assim, o Brasil, ao Alto Comissariado da
Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e
como integrante do Comitê da ONU sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais defende a ideia de que a
educação é um direito em si mesmo e também um meio
indispensável para a realização de outros direitos.
Em suma, a educação, sob o prisma internacional e nacional,
é o primeiro veículo pelo qual adultos e crianças
marginalizados social e economicamente podem sair da
pobreza e conseguir maneiras de participar plenamente de
suas comunidades. De acordo com o Comitê, “a educação em
todas as suas formas e em todos os níveis deve oferecer os
seguintes e essenciais traços: viabilidade, acessibilidade,
aceitabilidade e adaptabilidade”.
Ademais, ao ratificar o Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais, o Brasil se dispôs a
reconhecer, respeitar e proteger os direitos educacionais, bem
como a avaliar o progresso dessas medidas e a promover
medidas corretivas para os casos de violação. Assumindo esse
comprometimento, a nossa Constituição agregou tais
princípios aos termos do mencionado artigo 206.
Alinhado, ainda, com os compromissos internacionais, o
Brasil sediou, em Belém do Pará, a VI Conferência
Internacional de Educação de Adultos da Unesco em maio de
2009 – CONFITEA334. Essa Conferência tem por objetivo um
exame global da situação da educação e da aprendizagem de
jovens e adultos (EJA). Na de 2009, foram discutidas novas
questões políticas, culturais, sociais e econômicas vinculadas à
educação e ao desenvolvimento internacionais, como a
Educação para Todos, os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio, a Década das Nações Unidas para a Alfabetização, a
Iniciativa de Alfabetização para o Empoderamento e a Década
da Educação para o Desenvolvimento Sustentável.
Representantes brasileiros têm participado de outros
encontros e acordos, dentre eles a Conferência Internacional de
Educação para Todos (Jomtien, Tailândia, 1990), a Declaração
de Nova Délhi (Índia, 1993), a Conferência Internacional sobre
População e Desenvolvimento (Cairo, Egito, 1994), a Cúpula
Mundial de Desenvolvimento Social (Copenhague, Dinamarca,
1995), a IV Conferência sobre a Mulher (Beijing, China, 1995), a
Afirmação de Aman (Jordânia, 1996) e a 45ª Conferência
Internacional da Unesco (Genebra, Suíça, 1996).
ENSINO A DISTÂNCIA
Em apressada síntese, é possível afirmar que são dois os
principais objetivos consignados na Constituição, no que toca à
implementação da educação: universalização e aprimoramento
de sua qualidade (artigos 211, § 4º, e 212, § 3º).
Entretanto, essas duas finalidades, nobres em sua essência,
encontram entraves para serem integralmente cumpridas por
razões que abrangem desde questões estruturais a
circunstâncias práticas observáveis no cotidiano social.
Nesse sentido, a sociedade vem de longa data reclamando a
implantação de novo processo de aprendizagem,
essencialmente diverso da consolidada transmissão estática,
dogmática, de conteúdos fechados. Tal se dá porque a
complexidade de relações que envolve o mundo atual em
muito se distancia dos parâmetros que nortearam o
estabelecimento dos mecanismos educacionais até hoje
vigentes.
Ademais, a frenética dinâmica dos acontecimentos mundiais
exige a atualização constante de informações, por vezes em
tempo real, o que invalida qualquer projeto de prévio
estabelecimento de conteúdo às disciplinas educacionais.
Surge, pois, a ideia de educação a distância (EAD) como meio
passível de resolver muitos dos problemas relacionados ao
método tradicional de educação e, ao mesmo tempo, atende
aos princípios de universalização e aprimoramento da
qualidade de ensino, como apregoa a Constituição.
Nessa linha, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei n.
9.394, de 20 de dezembro de 1996) constitui o primeiro diploma
legal a embasar juridicamente a implementação do ensino a
distância341. O seu artigo 80 determina que o Poder Público
mobilize esforços no sentido de incentivar o desenvolvimento e
a veiculação de programas de ensino a distância, em todos os
níveis e modalidades de ensino, e de educação continuada.
Atualmente, tal dispositivo está regulamentado pelo Decreto
n. 5.622, de 20 de dezembro de 2005, que em seu artigo 1º
caracteriza a educação a distância como modalidade
educacional na qual a mediação didático-pedagógica nos
processos de ensino e aprendizagem ocorre com a utilização de
meios e tecnologias de informação e comunicação, com
estudantes e professores desenvolvendo atividades educativas
em lugares ou tempos diversos.
Compõem o arcabouço legal da EAD, ainda, as Portarias
Normativas n. 1 e 2, de 11 de janeiro de 2007, expedidas pelo
MEC.
Pelos mesmos fundamentos, a Secretaria de Educação a
Distância – SEED – foi oficialmente criada pelo Decreto n.
1.917, de 27 de maio de 1996342, tendo como principal objetivo
promover a inovação tecnológica nos processos de ensino e
aprendizagem, fomentando a incorporação das tecnologias de
informação e comunicação (TICs) e das técnicas de educação a
distância aos métodos didático--pedagógicos.
A EAD343, modalidade de ensino que se vale amplamente
das conquistas advindas da tecnologia da informação e do
conhecimento em tempos recentes, atende diretamente, além
dos mencionados princípios constitucionais, à liberdade de
aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e
o saber (artigo 206, II, da Constituição Federal) e ao pluralismo
de ideias e de concepções pedagógicas, igualmente previstos
em nossa Constituição (artigo 206, III, da Constituição
Federal)344.
Também não se pode ignorar nessa questão a democratização
do acesso à educação, uma vez que preserva as realidades
regionais, ainda que se conformando às regras gerais
existentes.
Demais disso, o ensino a distância propicia a otimização
econômica na medida em que diminui sobremaneira, ao menos
a longo prazo, os gastos com instalações físicas e até mesmo
com pessoal. Sob outro enfoque, confere maior autonomia ao
processo de aprendizado no sentido de atender à volatilidade
do conhecimento observada no mundo contemporâneo.
É de salientar, entretanto, a obrigatoriedade de momentos
presenciais especialmente em avaliações. Tal significa que o
controle da qualidade desses cursos, sob o viés do resultado
estampado no desempenho dos alunos, ainda está atrelado à
tradicional concepção de aferição do conhecimento in loco345.
Considerando a existência de certa desconfiança em relação
ao aprendiz a distância, a Secretaria de Educação a Distância
do Ministério da Educação, respaldada em documento
intitulado “Referenciais de qualidade da educação superior a
distância”, divulgado em agosto de 2007, apresenta os
delineamentos desse tipo de aprendizagem, particularmente no
que toca aos processos de regulação, supervisão e avaliação.
Em outras palavras, procura exercer função indutora na
organização do sistema de EAD no Brasil.
Consigne-se que, nos âmbitos do ensino superior e do ensino
profissional--técnico, a EAD tem se mostrado de maior
importância, haja vista o exíguo número de vagas presenciais
existentes na estrutura da educação pública. De outro lado,
estão sendo criados programas para facilitar o acesso ao ensino
superior como o PROUNI e o FIES.
Além disso, figuram entre os referenciais de qualidade do
ensino superior os princípios da interação e da interatividade,
através do uso das tecnologias de informação e comunicação
(TIC) para garantir amplo contato e intensa comunicação entre
professores, tutores e estudantes346.
Observa-se, na EAD, um rompimento na tradicional
sincronicidade na relação de aprendizado, em que professor e
aluno necessitam estar no mesmo local, ao mesmo tempo, para
que o conteúdo a ser apreendido seja transferido. De seu turno,
a limitação do ensino tradicional, nesse aspecto, é óbvia e não
necessita de maiores explanações.
De todo modo, em um país de dimensões continentais os
desafios impostos à EAD são também de grande monta e sua
utilização é ainda incipiente e eivada de muitos dos vícios
observados no ensino tradicional. Daí a premência de normas
reguladoras competentes, pois a EAD representa hoje o
principal ponto de atração no sentido de garantir a educação a
uma grande parcela da população.
NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DO
ENCARCERAMENTO EM MASSA – PROPOSTAS DA
COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS
O último levantamento feito pelo CNJ aponta que ao menos
34% da população carcerária é de pessoas que ainda não foram
julgadas em definitivo: os presos provisórios. Destes, 29%, sim,
1/3 está preso por tráfico de drogas, o que apenas corrobora o
apontamento de que se trata o encarceramento em massa de
verdadeira política estatal para controle da pobreza.358
Visando superar esse quadro de adoção da prisão preventiva
como regra, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos
lançou o Guia prático para reduzir a prisão preventiva.359
A Comissão aponta a inexistência de evidências empíricas
para demonstrar que o incremento da restrição ao direito de
liberdade tenha influído na diminuição da criminalidade ou da
violência.
O documento traz recomendações aos Estados e se estrutura
basicamente em quatro eixos:
i) medidas de caráter geral relativas a políticas estatais;
ii) medidas alternativas à prisão preventiva;
iii) outras medidas destinadas a reduzir o uso da prisão
preventiva;
iv) mulheres e outras pessoas pertencentes a grupos em
situação especial de risco.
Ali se explicita que, diante da presunção de inocência, em um
Estado democrático de direito a prisão preventiva se guia pelos
princípios da excepcionalidade, legalidade, necessidade,
proporcionalidade e razoabilidade. Vejamos.
Excepcionalidade: a regra, em virtude da presunção de
inocência, é que a pessoa responda ao processo em liberdade.
Legalidade: apenas nos estritos termos da lei a prisão poderá
ser decretada.
Necessidade: somente se poderá decretar a prisão cautelar
quando não houver outra forma de se resguardarem os
resultados esperados com o processo.
Proporcionalidade: a prisão no curso do processo não pode
se revelar mais gravosa do que a pena que será obtida ao final.
Razoabilidade: o prazo da segregação cautelar não pode ser
extenso. Excedido o razoável, a pessoa deve ser colocada em
liberdade.
A Comissão aponta como legítimos apenas dois fundamentos
para a decretação da prisão preventiva:
i) perigo de fuga (no Brasil, o equivalente à necessidade de se
assegurar a aplicação da lei penal, nos termos do art. 312 do
CPP);
ii) risco de obstrução (no Brasil, o CPP fala em conveniência
para a instrução criminal).
Importante notar que não se faz referência à garantia da
ordem pública, expressão genérica contida no art. 312 do CPP e
que serve de arrimo para a ampla maioria das decretações no
Brasil. O fundamento é de nítida inconstitucionalidade, por
abstrato e, portanto, por ferir a legalidade em sentido estrito.
Aliás, a própria Comissão recomenda que se afastem
apontamentos genéricos como “alarme social”, “repercussão
social” ou “periculosidade”.
O que a Comissão aponta é a necessidade de se humanizar o
processo de tomada de decisão, com consideração da pessoa
como titular de direitos. Assim, acaso o Estado não seja capaz
de garantir condições compatíveis com a dignidade da pessoa
humana da pessoa processada, outra medida cautelar diversa
da prisão deverá ser decretada.
Recomenda-se ao Judiciário que analise exaustivamente o
caso e fundamente concretamente a decretação da prisão,
ponto esse que efetivamente é o maior problema no caso
brasileiro, como revela o expressivo número de habeas corpus
em todos os tribunais a apontar a ausência de fundamentação
da decisão combatida.
Além disso, deverá estabelecer claramente a data do
vencimento do prazo da prisão preventiva. Também aqui
vigora no Brasil grande insegurança jurídica, pois a lei não
prevê prazo máximo para a custódia cautelar e os juízes
simplesmente fazem uso da expressão “razoável” para manter
toda sorte de prisão preventiva. A estipulação, ex ante, de prazo
máximo significaria grande avanço.
A parte mais importante das recomendações da Comissão,
entretanto, consiste na proposta de fortalecimento dos serviços
da Defensoria Pública.
É sabido que a Emenda Constitucional n. 80/2014 trouxe
substancial avanço ao conferir maior autonomia à Instituição e
ao fazer incluir o art. 98 no ADCT, que determina que no prazo
de 8 anos, União, Estados e Distrito Federal deverão contar
com defensores públicos em todas as unidades jurisdicionais.
Uma realidade, contudo, ainda longe de ser alcançada e cuja
implementação, do ponto de vista jurídico, é de difícil
exigibilidade, pois se trata de norma programática.
Oportunamente, a Comissão sugere que, por meio da
Defensoria Pública, seja proporcionada a defesa desde o
momento da apreensão policial, algo de suma importância,
considerando-se a colossal quantidade de condenações com
base em elementos de informação coligidos apenas no
inquérito policial, o qual, dada sua natureza inquisitória,
permite toda sorte de constrangimento ao investigado a título
de se manter a regularidade das investigações.
No caso brasileiro, importante alteração veio com a
modificação do Estatuto da OAB trazida pela Lei n.
13.245/2016, que incluiu o inciso XXI no art. 7º, ao tratar dos
direitos do advogado:
“XXI – assistir a seus clientes investigados durante a apuração de
infrações, sob pena de nulidade absoluta do respectivo interrogatório
ou depoimento, e, subsequentemente, de todos os elementos
investigatórios e probatórios dele decorrentes ou derivados, direta ou
indiretamente, podendo, inclusive, no curso da respectiva apuração:
a) apresentar razões e quesitos”.
Tal determinação legal, em observância ao princípio da
igualdade, deve ser igualmente aplicável às pessoas que, por
não terem condições de contratar um advogado, são assistidas
pela Defensoria Pública. Entendimento diverso implicaria
admitir subtração de direitos fundamentais em razão tão
somente do estado de pobreza, o que não condiz com os
objetivos constitucionais.
Assim, todo e qualquer interrogatório policial realizado sem
a presença de um Defensor Público ou advogado é nulo de
pleno direito, como expressamente estabelecido no Estatuto.
A Comissão aponta que a atuação da Defensoria desde o
momento da prisão garante defesa mais efetiva, reduz os
períodos de duração da prisão preventiva e previne a prática
de maus-tratos de tortura durante a detenção.
Para tanto, propõe que se atribua à Defensoria a capacidade
para apresentar e produzir provas, além do direito ao acesso
aos autos e aos elementos obtidos durante as investigações –
quanto a esse último ponto, a despeito de já existir previsão
legal a respeito, o cotidiano revela inúmeros óbices à
observância da norma legal.
Em um segundo eixo, a Comissão propõe que se implemente
efetiva supervisão de medidas cautelares diversas da prisão,
algo de suma importância considerando-se que o descrédito
daquelas previstas no art. 319 do CPP se deve à percepção de
juízes de que, na prática, tais medidas não são fiscalizadas.
A estipulação de medidas alternativas ao cárcere, de fato,
apresenta uma séries de vantagens. Entre elas, pode-se
mencionar:
• implica direta redução da superlotação carcerária, e, com isso, alivia
os gastos estatais, que podem ser realocados para efetiva integração
social da pessoa detida;
• evita a estigmatização ocasionada pela prisão;
• diminui os índices de reincidência;
• confere ao sistema de justiça utilidade social.
Entre as outras medidas propostas pela Comissão, merece
destaque a realização de audiências nas prisões para superar
entraves como a falta de transporte ou a limitação de
servidores para escoltas, além do perigo de fuga.
A imprescindibilidade da audiência de custódia também é
mencionada.
Por fim, o último eixo diz respeito à necessária incorporação
de perspectiva de gênero na análise da prisão, com olhar mais
cauteloso para o encarceramento de mulheres e outras pessoas
pertencentes a grupos em situação especial de risco.
A cautela se justifica diante da fragilidade inerente a tais
grupos ou ao gênero feminino, por razões históricas e culturais,
o que os torna indefesos e sujeitos a práticas e violações que
tendem a ficar impunes. A prisão para tais pessoas se mostra
muito mais gravosa.
No caso das mulheres, em especial, o encarceramento gera
repercussão gravosa no seio da família, muitas vezes
monoparental e desestruturada já na origem, causando uma
cadeia de violência secundária a considerável número de
pessoas.
Daí a necessidade de se enfocar o interesse superior da
criança.
No Brasil, até houve um esforço legislativo nesse sentido com
a edição da Lei n. 12.403/2011, que trouxe a previsão de
substituição da preventiva por prisão domiciliar quando o
agente for (art. 318 do CPP):
• maior de 80 anos;
• extremamente debilitado por motivo de doença grave;
• imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 anos de
idade ou com deficiência.
Já a Lei n. 13.257/2016 inovou ao estabelecer novas hipóteses,
a saber:
• gestante;
• mulher com filho de até 12 anos de idade incompletos;
• homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até
12 anos de idade incompletos.
O CPP é claro e não estabelece requisitos outros para a
substituição. Não obstante, parte expressiva da jurisprudência
vem exigindo a demonstração de que a mãe ou o pai é
imprescindível à criação da criança. Trata-se de entendimento
contra legem e que, portanto, não pode ser admitido.