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esde que a ministra da Mu- cumã, tio da menina, quem teve a ideia de
lher, da Família e dos Direitos deixar a criança aos cuidados da avó pater-
Humanos, Damares Alves, as- na, Tanumakaru, uma senhora de pele cra-
sumiu uma cadeira no pri- quelada, cega de um olho. Lulu cresceu nos
meiro escalãodo governo do braços da anciã. A avó, que virou mãe afeti-
presidente Jair Bolsonaro, va, não tinha leite no peito. Eram tempos di-
uma ferida de 15 anos atrás voltou a arder no fíceis. A aldeia sofria com escassez de remé-
Xingu. A aldeia Kamayurá, no centro da re- dios e alimentos, e a menina chegou a ficar
serva indígena no norte de Mato Grosso, é o desnutrida. Os kamayuráslembram que a
berço de Kajutiti Lulu Kamayurá, de 20 anos. avó atravessava as madrugadas cozinhando
Damares a apresenta como sua filha adotiva. polvilho para tentar matar a fome da neta.
A adoção, porém, nunca foi formalizadale- Os indígenas se referem a Piracumã co-
galmente.A condição em que a menina, en- mo pai de Lulu. Sua mulher, Kamaiulá, é ti-
tão com 6 anos de idade, foi retirada da al- da como mãe "oficial"de Lulu no registro.
deia é motivo de polêmica entre os índios. Kamaiulá estava longe da aldeia fazendo um
Em depoimentos registrados em vídeo por tratamento médico quando ÉPOCA a pro-
ÉPOCA, os kamayurás afirmam que Damares curou na semana passada. Piracumã acom-
levou a menina irregularmenteda tribo. Al- panhou a mulher na viagem. A reportagem
guns detalhes se perdem na memória dos ín- tentou fazer contato com os pais de Lulu por
dios, mas há um fio condutor que une o rela- intermédio de outros membros da aldeia,
to de todos eles. Lulu deixou a aldeia sob pre- mas não obteve resposta. Na quarta-feira,
texto de fazer um tratamento dentário na ci- depois de já ter avisado a ministra sobre o
dade e nunca mais voltou. A história de Lulu teor da reportagem, ÉPOCA recebeu a in-
é lembrada no Xingu de diferentes formas. Os formação de que o casal estava a caminho
kamayurásnão têm a mesma relaçãocom o de Brasília.Eles não se manifestaram até a
calendário do homem branco. Contam que conclusão desta edição.
Lulu deixou a aldeia "há muito tempo", mas "Nessas comunidades, as irmãs de sua
não sabem o ano. A maioria indica a altura mãe são meio sua mãe, e os irmãos do pai são
da menina com a mão para marcar sua idade. meio que o pai também", explicou a antropó-
Lembram que estava "grandinha". Contam Ioga Marina Vanzolini, professora da Univer-
que Damares e Márcia Suzuki, amiga e braço sidade de São Paulo (USP) especializada em
direito da ministra, se apresentaramcomo índios do Xingu. "As crianças sabem quem é
missionárias na aldeia. Disseram-se preocu- o pai e quem é tio, claro,mas é uma passa-
padas com a saúde bucal da menina. "Márcia gem tranquila. Também é muito comum que
veio no Kuarup (festa tradicional em homena- avós peguem filhos rejeitados para criar e le-
Tanumakaru,avó gem aos mortos), olhou os dentes todos estra- vem para outra aldeia, como foi feito, mesmo
de Lulu,conta que gados e falou que ia levar para tratar", contou quando a mãe não está de acordo."
criava a pequena índia
com dificuldades. Mapulu, pajé kamayurá e irmã do cacique.
Um tratamentodentário Lulu nasceu em 20 de maio de 1998,se- H oje quase octogenária, com a saúde frágil,
na cidade grande teria gundo seu registro. Na história contada pe- Tanumakaru não consegue enxergar nem
sido a razão
da viagem da neta, 10skamayurás, sua mãe biológica,Parawai- andar sem ajuda. No fim de uma tarde nubla-
que nunca maisvoltou ru, não tinha condiçõesde criá-la. Foi Pira- da, na semana passada,surgiu na porta da
FOTODORGEWILLIAM,'AGCNCIAOGLOBO
20 LAÇOS DE FAMÍLIA
oca apoiada em uma bengala, auxiliadapor retornaria, foi direta: "Nunca". Ela é a "ver-
uma de suas netas, para se sentar em frente à dadeira" mãe de Lulu, afirmaram os índios.
oca do cacique, onde estava a reportagem de No início da décadapassada, a então as-
ÉPOCA. Falava em tupi, com pouca articula- sessora parlamentar Damares Alves e sua
ção, e era traduzida pelos demais índios fa- amiga Márcia Suzuki, da Igreja Metodista,
miliarizados com o português. Contou que a fundaram a organizaçãonão governamental
única menina que criou como se fosse sua fi- Atini, declaradamentevoltada para assistên-
lha foi Lulu. Era uma recém-nascidafrágil e cia a populações indígenas. Quando foi esco-
magra que chegou a ser levada de avião para lhida para ser ministra, Damares descreveu
um tratamento pelos servidores que cuidam sua filha como uma "sobrevivente"e contou
da saúde dos indígenas na região. que adotou Lulu com 6 anos de idade. Da-
Um desses funcionários,que não quis se mares sempre se definiu como uma amiga
identificar,disse à reportagem que a criança dos índios que criaram a menina.
"fechava a boca", não conseguia comer e teve Ao contar sua história com Lulu, porém,
de receber soro. Atendida por profissionais, em diversas ocasiões descreveu de forma
a menina superou a fragilidadedos primei- sombria os índios. "Minha filha foi salva do
ros anos. Pelo uso regular de mamadeira, sacrifício",disse a um canal evangélicono
porém, acabou crescendo com os dentes tor- YouTube."No povo dela, quando Lulu nas-
tos. Foram esses problemas de dentição que ceu, mãe solteira não podia criar filhos e ti-
uniram os destinos de Lulu, Damares e os nha de matar o bebê." Lulu acabou "sendo
kamayurás, lembra a anciã, mudando de abandonada".A família que havia pegado
semblante. "Chorei, e Lulu estava chorando Lulu para criar "não estava dando conta", o
também por deixar a avó. Márcia levou na que, embora ela não conclua, teria justifica-
marra. Disse que ia mandar de volta, que do a adoção. "Lulu tinha muitas dores físicas
quando entrasse de férias ia mandar aqui. e emocionais",disse na gravação.
Cadê?" Questionada sobre se sabia, no mo- Em 2013,em um culto, Damares fez um
mento da partida de Lulu, que ela não mais relato ainda mais dramático da infância de sua
filha. Além de ter sido salva do infanticídio e
JORGEWILLIAM,'AGÊNCIA
O GLOBO
maltratada pela miséria dos kamayurás, a me-
nina seria escravado próprio povo. "Quero À esquerda,a pajé
mostrar para vocês uma menina de 6 anos, Mapulu. Ela diz que os
índios no Xingu querem
que foi escravizadaem sua aldeiae tem uma a volta de Lulu para
história terrível. Mas eu não vou contar a his- ajudara cuidar da avó,
tória, não, porque esta é minha filha. Eu quero cega e com dificuldade
de locomoção
mostrar como está minha filha hoje: a cara da
mãe", disse, projetando fotos de Lulu, depois
de enumerar diversos casos de crianças que
teriam sido salvas do sacrifício.
Os parentes das crianças exigiram o retor- xirianas, registradas pelo distrito existente
no delas à tribo, e em 2008 0 Ministério Pú- nos ianomâmis; duas nos kaingangs, re-
blico Federal foi informado da situação. Em gistradas no distrito Interior Sul; duas nos
2009, todos eles foram encontrados na cháca- kaiowás, em Mato Grosso do Sul; uma nos
ra da Atini — a mesma visitada por ÉPOCA. barés, registradas no distrito de Manaus; e
Por mais de uma vez, os relatóriosda Funai uma nos guajajaras,no Maranhão.
citam que a comunidade não se conformou A nota técnica lembra que o Código Pe-
com a ausência das crianças e que não houve nal prevê o infanticídio como o ato de "ma-
consentimento para a saída do grupo. tar, sob a influência do estado puerperal, o
A Funai concluiu naquele ano de 2011ser próprio filho, durante o parto ou logo após".
necessário pedir uma "busca e apreensão de "No caso indígena, a escolha de não deixar o
incapazes", de forma que a guarda fosse de- neonato sobreviver existe desde antes do
volvida à aldeia. Em setembro de 2013,num contato com os costumes brasileiros não in-
relatório de quatro páginas enviado à Justiça dígenas e não é considerado, por eles, como
Federal, o delegado da Polícia Federal Ma- crime ou um ato condenável", continua.
noel Vieira da Paz Filho, com atuação em Ainda segundo o documento, "questões so-
Brasília,concluiu que não foram confirma- ciais" levam a mãe indígena a essa decisão:
das as informações sobre retiradas de indí- falta de alimentos, comunidades desestrutu-
genas de suas tribos sem o conhecimento de radas, falta de apoio do pai, nascimento de
servidores da Funai e dos líderes das tribos. gêmeos. "Para os indígenas, o neonato que
Para chegar a essa conclusão, o delegado ainda não recebeu a primeira amamentação
A aldeiados kamayurás ouviu uma integrante da Jocum e Muwaji Su- ainda não possui pessoalidade", cita a nota.
fica à beira de um ruwahá. A mãe disse que estava "incerta" so- A secretaria vinculada ao ministério lem-
enormelago. À noite,
os índiosse reúnem bre ter interesse em voltar a viver em sua al- bra que a prática é mais comum entre os ia-
para assistir ao deia e que necessitava continuar em Brasília nomâmis e que também "há casos relatados"
Jornal Nacional para o tratamento da filha. entre os suruwahás, povo com "pouquíssimo
contato" com não indígenas. As mães ia-
nfanticídio é um termo evitado pelo Minis- nomâmis têm partos sozinhas, na floresta, e
tério da Saúde.A pasta prefere neonaticí- escolhem pela não sobrevivência dos bebês
dio. Em uma resposta a questionamentos de em situações de dificuldades extremas. Os
ÉPOCA, a assessoria deu a dimensão da po- casos citados no relatório são falta de saúde
lêmica envolvendo o assunto: "Por definição, da mãe, falta de apoio do pai, malformação e
o neonaticídio é um fenômeno complexo que deficiência do bebê. A etnia ianomâmi aceita
desafia os paradigmas dos sistemas de saúde a prática e dá autonomia de decisão à mãe.
não indígenas, seus códigos morais e jurídi- Depois da primeira nota técnica, a Secreta-
cos e exige uma adequada compreensão do ria Especial de Saúde Indígena produziu um se-
contexto sociocultural onde ocorrem . gundo documento,em 2016,para dizer que os
O ministério chamou de "suposição" consi- primeiros dados tinham equívocos. Os casos de
derar como neonaticídios as mortes por agres- neonaticídios se restringiam a três etnias, e não
são de indígenas de até 1 ano de idade registra- a sete, segundo a secretaria. Teriam sido, na ver-
das pelo sistema de saúde. Em 2012, foram 57 dade, 39 mortes entre os ianomâmis, uma nos
mortes por agressão, e 37 em 2016,segundo da- sanumás e uma nos xirianas em 2014.Em 2015,
dos da própria pasta, que não detalhou em foram 41 nos ianomâmis.
quais etnias esses óbitos foram registrados. Tanto o MPF em Roraima, onde estão os
ÉPOCA obteve, porém, duas notas técni- ianomâmis, quanto o MPF no Rio Grande do
cas produzidas em 2015e em 2016pela Se- Sul, onde estão os kaingangs, investigaram em
cretaria Especialde Saúde Indígena, do Mi- inquéritos civis públicos se a Funai foi omissa
nistério da Saúde, que detalham a extensão na adoção de políticas públicas para coibir in-
da prática do neonaticídio — ou infanticídio fanticídios em comunidades indígenas. Os pro-
— no Brasil,por etnia. O primeiro docu- curadores da República não encontraram indí-
mento produzido pela secretaria do Minis- cios de omissão e arquivaram os inquéritos, o
tério da Saúde afirma terem ocorrido 40 que foi confirmado pelo colegiado responsável
mortes em 2014,assim distribuídas: 32 nos por avaliar os arquivamentos, no âmbito da
ianomâmis, uma nos sanumás e uma nos Procuradoria-Geral da República (PGR).
26 LAÇOS DE FAMÍLIA
o mesmo culto em que mencionou a his- nas aldeias. Várias delas puderam retornar para
N tória de sua filha Lulu, em 2013,Damares a aldeia ou para o entorno da mesma, quando o
disse, sem citar fontes, que 450 crianças indí- risco diminuiu." Miranda afirmou que a Atini
genas são enterradas por ano e que de 30 a 40 nunca fez encaminhamentos para adoção.
etnias mantêm a prática do infanticídio."Lá A advogada reiterou que o relatório sobre
no Xingu, quando nascem crianças gêmeas, os índios suruwahás concluiu que "não foram
os índios enterram as duas criançasíndias", confirmadas as informações sobre retiradas
afirmou sem ser contestada. Uma das bandei- de indígenas de suas tribos sem o conheci-
ras de Damares, que contou com sua atuação mento de servidoresda Funai e dos líderes
direta no Congresso,é o Projeto de Lei que das tribos. A Atini jamais cometeu qualquer
criminaliza eventual leniência de autoridades tipo de ato ilícito contra qualquer povo indíge-
com o infanticídio. No culto em 2013,ela de- na. Muito pelo contrário, a entidade sempre Iu-
fendeu a aprovação da lei. "A Igreja Evangéli- tou a favor dos direitos dos povos indígenas e
ca brasileirapode dizer para eles o seguinte: da promoção de sua cultura e práticas tradicio-
você não consegue criar essa criança paralíti- nais, desde que não violem os direitos huma-
ca? A gente cria. Dá para nós. A gente cuida, nos universais e seu bem maior: a vida!".
a gente quer ficar com ela." À época, segundo A ministra Damares Alves procurou
ela, a Atini já havia "resgatado" 37 crianças. ÉPOCA quando a reportagem ainda estava
O Projeto de Lei encampado por Dama- no Xingu. Disse que estava "à disposição
res, bem antes de ela ser uma ministra de Es- para responder às perguntas (...) sobre nos-
tado, considera "nocivas" as práticas de in- sas crianças, sobre minha filha e sobre as fa-
fanticídiode crianças indígenas. A proposta mílias". "Não temos nada a esconder. Mas
elenca casos de "homicídios de recém-nasci- insisto: tratem tudo com o olhar especial pa-
dos" e obriga a comunicação dos casos às ra estes povos, para as mães e crianças que
autoridades. Se isso não ocorrer, pode confi- sofrem", afirmou, via WhatsApp.
gurar-se omissão de socorro, com pena de Em Brasília,no entanto, ela se recusou a
prisão de um a seis meses, conforme o proje- dar entrevista e respondeu apenas parcial-
to. Constatada a intenção de neonaticídio, as mente a 14 questionamentos da revista. "To-
crianças devem ser retiradas das comunida- dos os direitos de Lulu Kamayuráforam ob-
des e ser colocadas em abrigos. O projeto foi servados. Nenhuma lei foi violada. A família
aprovado em 2015na Câmara e encaminha- biológica dela a visita regularmente. Tios, pri-
mos e irmãos que saíram com ela da aldeia
do ao Senado. Levou o nome de Lei Muwaji,
o nome da mãe suruwaháque foi retirada residem em Brasília. Todos mantêm uma ex-
da tribo com sua filha pelas ONGs Jocum e celente relação afetiva.A ministra Damares
Atini. Defensores de povos indígenas preveem Alves não integra a ONG Atini desde 2015.
que a lei abriria margem para uma punição Portanto, todas as perguntas relacionadasà
indevida de agentes da Funai. entidade devem ser direcionadas para lá."
A reportagem procurou a ONG Atini e Perguntamos por que Damares não de-
questionou se todos os indígenas atendidos volveu a criança à aldeia após o tratamen-
enfrentavam,de fato, risco de morte. A advo- to. "Lulu Kamayurájá retornou à aldeia.
gada da organização, Maíra de Paula Miranda, Ela deixou o local com a família e jamais
disse que a chácara acolhe hoje seis crianças e perdeu contato com seus parentes biológi-
outras cinco crianças vivem com a família em cos." A questão sobre não ter adotado formal-
outro endereço no Gama, no Distrito Federal. mente Lulu foi ignorada.
Duas foram "vítimas ou ameaçadas de tentati- Lulu Kamayurá apagou sua conta no Face-
va de infanticídio", segundo a advogada. Ou- book desde que Damares virou ministra. Em
tros dois têm doenças para as quais não há re- seu perfil, porém, vinha defendendo a mãe
cursos nas aldeias. A advogada não forneceu adotiva de polêmicas recentes. Hoje com 20
informações sobre as demais crianças. anos, estuda para o vestibular. Segundo pesso-
Segundo Miranda, todas as crianças estão as ligadas a Damares ouvidas por ÉPOCA, a
na companhia de seus pais, sendo essa a po- ministra e a filha têm uma relação muito pró-
lítica da Atini. Ao todo, a ONG já atendeu 51 xima. Lulu frequenta a igreja evangélica com a
crianças, disse a advogada. "Elas eram crianças mãe, trabalhou na Atini com ela e tem sentido
que sofriam risco de morte ou de maus-tratos falta de Damares depois que virou ministra.—