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Traficando conhecimento
Jéssica Balbino
aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
www.aeroplanoeditora.com.br
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá-
vel dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores
nas práticas que atualmente se desdobram no pano-
rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria-
tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu-
ral, sua história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse
novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-
tiva ao direito da periferia de contar sua própria história.
Para
Meus pais, pelos pequenos gestos e grandes demonstrações
diárias de carinho e afeto.
Agradecimentos
Heloisa Buarque de Hollanda, por acreditar que o projeto poderia
virar livro.
Prefácio
Sérgio Vaz
Poeta da Cooperifa
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Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop
Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop
O início
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Ao voltar para a escola, dividi com professores e cole- Conseguimos poucos resultados, afinal, em uma escola
gas de classe meu desejo de escrever e me tornar jor- onde o único objetivo pregado pela direção e pelos edu-
nalista. Fui ridicularizada. Pobre não pode ter esse tipo cadores é a conquista de um diploma, não importando
de profissão, me diziam. como, os alunos não davam muito importância ao grêmio.
Por que meu desejo, assim como o das demais garotas Leitura. Muita leitura. Entre todas estas atividades,
da minha classe não era terminar o 2° grau, arrumar um minha vida continuava marcada por muitos livros e tex-
marido e ter filhos? tos. A aquisição de um computador e o acesso à inter-
net, naquela época, ainda eram coisas raras e, com
Não, não era. Não naquele momento. Eu queria aprender muito sacrifício dos meus pais, conseguimos isso.
coisas novas a cada dia. Queria estudar. Queria escre- No universo gigante que a internet mostrava, come-
ver. Não poderia falar mais sobre isso em sala de aula cei a pesquisar novos textos e, diante do computador,
e demorei para perceber, pois, todos os dias, repetia o escrevi minhas primeiras linhas, desconexas, mas que,
mesmo sonho para toda a classe. Queria ser jornalista. mesmo assim, achava que formavam literatura. Mas
Gostava de escrever. Continuei lendo e juntando os tro- não importa. Foi o primeiro passo.
cados da mesada que meu pai me dava, com base no
salário de aposentado do ramo da metalurgia, para com-
prar alguns livros que me chamavam atenção.
Pouco tempo mais tarde, por ter sempre estudado na
mesma escola e militar em causas para o bem-estar
dos alunos, um grupo de alunos me convidou para mon-
tarmos um grêmio estudantil. Inspirados pela parti-
cipação dos meus pais no colegiado, que sempre ten-
taram melhorar o ambiente estudantil, consolidamos
nossa ideia inicial.
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morro vizinho. Os que tinham mais de 16 anos, e uma Acho que meus pais nunca entenderam esse gosto, esse
família um pouco mais ordeira e trabalhadora, abando- desespero por conhecer mais dessas culturas popula-
navam os estudos ou migravam para o período noturno e res. Com o tempo, passaram a aceitar e acompanhar,
passavam a trabalhar, quando conseguiam um primeiro afinal, era melhor estar vivendo isso do que aliando aos
emprego com carteira registrada. Outros deixavam de problemas e às ofertas perigosas da periferia.
lado os estudos e partiam para atividades informais
Outro sonho, atuar nos palcos de teatro, já tinha ficado
como serventes de pedreiros, babás e diaristas.
na infância, mas, mesmo assim, na ânsia de saber e
Foi também neste período, que, não pela falta de infor- aprender cada vez mais sobre tudo, me matriculei em
mação, constante em atividades do governo e pales- um curso de teatro do Conservatório Municipal. Apren-
tras, mas pela falta de oportunidades e de ousadia por der a falar em público, articular melhor os movimentos
uma vida diferente, muitas garotas da minha classe e corporais e perder a vergonha diante da plateia. Estas
de toda escola, todas com idades entre 12 e 16 anos, foram as matérias mais proveitosas do curso.
ficaram grávidas.
Apresentei uma peça no fim do ano e, no ano seguinte,
Sem estrutura em casa, com pais e mães separados ou me dediquei à produção e à atuação em outra peça,
já falecidos e namorados, quase sempre, ligados à ati- sobre os problemas cotidianos de uma família tipica-
vidades ilícitas, elas ostentavam as barrigas e carre- mente brasileira.
gavam no ventre não apenas os bebês, mas o sonho de
uma vida diferente, com casa própria, marido e carro do
ano. Todas elas, também, deixaram os estudos e as que
tiveram mais sorte foram viver com os companheiros. A
maioria continuou vivendo na mesma casa e, hoje, cria os
filhos sozinhos, sem reconhecimento ou apoio paterno.
Meu sonho de ser jornalista continuava e muito deste
retrato cotidiano, formado pelos acontecimentos da
escola, se transformaram em crônicas na própria escola,
durante as aulas de português, geografia e literatura.
Estava escrevendo a nossa própria história e caminhando
rumo ao meu sonho: ser jornalista.
Desde cedo me incorporei à contracultura, à cultura
negra, aos movimentos populares. Não sei de onde sur-
giu tamanha paixão e nem o porquê, mas o fascínio que
ela exerce sobre mim é incrível. Naquela época já não me
imaginava sem estes sonhos, sem estes engajamentos.
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Com uma voz forte, a moça, que não teria mais que 18
anos, chamava a atenção de todos os presentes ao
embalar-se no ritmo e na poesia da música feita pela
cultura nascida nas ruas. Ao lado dela, o marido, dava
sentido ao rap, relatando os fatos cotidianos do lugar e
incrementando com um pouco do amor que sentia pela
esposa. Nasceu então, acompanhando a paixão do casal
e o amor dos garotos pela dança e pela cultura de rua, o
meu envolvimento com o hip-hop.
A magia do evento podia ser sentida diante da cena real
vista por centenas de jovens reunidos com um único
objetivo comum, descoberto depois, de promover paz,
amor, diversão e união, como profetizou o criador da cul-
tura Afrika Bambaataa, nos anos 1970, nos guetos nova-
iorquinos. Mais tarde, este mesmo casal ficaria conhe-
cido como Os tios do hip-hop.
Tentei encontrar alguma forma de contribuir com aquilo
que deu um novo sentido a minha vida: a cultura hip-hop.
Devagar, alguns garotos que moravam próximos a mim,
começaram a levar os passos para a escola e, alheios ao
que as gangues pregavam, passaram a disputar as dife-
renças através dos passos de break.
Diariamente, comentava com duas das minhas amigas
— Juliana e Karina — que me apresentaram, mesmo
que involuntariamente, à arte do hip-hop, tão próxima da
minha realidade, que mais de uma opção sempre existia
nas nossas vidas e entre o tráfico, o sexo tão aflorado
e as culturas populares, ficamos com a terceira opção.
Rapidamente, os intervalos de aula sangrentos e cheios
de medo foram substituídos pelo som que ecoava dos
micro-systems e faziam dançar.
Era hora de fazer alguma coisa.
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Transmitindo muita paz e energia positiva, seguindo os Entre tantos quilômetros percorridos quase todo final
princípios de paz, amor, diversão e união pregados por de semana, eles contam, aos risos, uma aventura que
Afrika Bambaataa, o casal dispõe de um bom acervo e o viveram uma vez, indo para a cidade de Lavras (MG),
disponibiliza para consulta. Assim que os conheci, tam- que fica mais ou menos 220 km de distância de Poços
bém me diriji à casa deles e me encantei com o acervo de Caldas. O casal e mais quatro amigos foram fazer
bem organizado e montado em pastas. uma apresentação em um evento de hip-hop e perde-
ram a condução que os levaria. Foram pedindo carona
Não diferente da maioria das casas dos guetos, o casal
pela estrada, durante a madrugada. Os seis amigos via-
mora em um canto simples, sem muito luxo ou conforto,
javam um pedaço de carona e andavam outro tanto a pé,
em um bairro a dez quilômetros de distância do centro da
pela beira da estrada, sem iluminação e sem conhecer
cidade. Mas possui, na sala de estar, um moderno com-
o caminho. “Gastamos muita sola de sapato para fazer
putador, junto da aparelhagem de som. Contrastando o
aquele show, mas temos histórias para contar”, diz Lu
luxo eletrônico à humildade carinhosa, eles se sentam
Afri, lembrando o ocorrido. “Nós não tínhamos dinheiro
para trocar ideias com quem quer que esteja em busca
para pegar ônibus, nada. O Sidão, um amigo que estava
de informações sobre hip-hop. “Estamos sempre pro-
conosco, conseguiu sacar tudo que ele tinha no banco e
curando nos informar, e tentar levar a cultura adiante,
pegamos algumas conduções picadas até lá”, diverte-se
mudar alguma coisa na sociedade, tirar as crianças da
Suburbano, aos risos, lembrando da história.
rua, ensinar”, diz Suburbano, lembrando de um projeto
que ele desenvolveu junto ao G do Gueto, um MC amigo Eles caminharam toda a madrugada e, quando chega-
do grupo, no qual participam em músicas juntos. Espe- ram ao local do show, estava amanhecendo. O único
lhados por King Nino Brown, eles têm a intenção de, um grupo que faltava era o UClanos, que, mesmo com toda
dia, disponibilizar o acervo de hip-hop em Poços de Cal- correria, se apresentaram, recebendo muitos aplausos.
das ao estilo Casa do Hip-Hop, em Diadema (SP). Ao término do show, entretanto, como eles voltariam
para Poços de Caldas novamente, sem dinheiro, sem
Além de MC, Suburbano se arrisca no graffiti já tendo
carona, com fome e muito cansados? Fizeram amizade
exposto seus desenhos nos muros de duas escolas públi-
com alguns moradores da cidade que os hospedaram, e
cas do subúrbio onde mora. Sempre bem-humorado e
Lu Afri lembra, com saudade, do tempo que passou lá:
disposto, o casal divide atenção entre o trabalho, os ami-
“O Suburbano e eu estávamos em lua-de-mel e a dona
gos e o pequeno Jeam. Suburbano trabalha como auxiliar
da casa cedeu a cama dela para gente”, diz. Durante
em uma empreiteira e Lu Afri é tosadora em um pet-shop.
uma semana eles ficaram na casa dos amigos recém-
No restante do dia, ela cuida da casa e deixa Jeam na
conquistados, tentando arrumar algum dinheiro para
escola, onde ele fica por todo o dia. Na maioria das vezes,
voltar. “O nosso amigo, o b.boy Dinho, arrumou até um
para economizar dinheiro e ajudar no orçamento mensal,
relacionamento lá. Uma namorada que não queria deixá-
eles caminham quase 13 quilômetros para ensaiar com
lo ir embora”, conta Suburbano. Com o dinheiro empres-
o grupo, na casa de Bebeto — que depois de inserido no
tado pelos amigos, eles conseguiram voltar para Poços de
grupo, se transformou em MB2 — do outro lado da cidade.
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Caldas uma semana depois, mas, quando chegaram, sen- as atenções estão voltadas para os trabalhos com novas
tiram saudades da vida diferente que tiveram em Lavras. músicas e eles pretendem inovar o cenário interiorano,
compondo um rap misturado com reggae, ambos ritmos
Hoje eles são orgulhosos por terem vivido histórias como
com raízes afro.
essas, conhecido gente famosa. Eles são considerados
os tios do hip-hop na região, e sempre são convidados Entre aventuras e desventuras, o casal pretende levar,
para vários eventos em cidades vizinhas, em parceria com por muito tempo, a bandeira do hip-hop, e representar
um grupo K2, uma banda da cidade que toca o estilo ska. o sul de Minas. Suburbano tem projetos para criar um
jornal sobre hip-hop, ao estilo dos “zines”, informativos
Junto com o grupo, o casal sempre se esforça para mos-
e independentes, com distribuição gratuita e ilustrado
trar o lado positivo da cultura e acreditam que o hip-
com grafites feitos por ele mesmo. Cheios de sonhos,
hop, pode sim, resgatar as pessoas. “Quando eu come-
expectativas e disposição, os tios do hip-hop continuam
cei, queria mostrar o que tinha dentro de mim, na minha
trabalhando na divulgação do movimento enquanto cul-
cabeça, o que pensava. Queria mostrar para as pessoas
tura, e resgate, para o povo da periferia.
que o hip-hop veio para não termos preconceito, para
lutarmos pelo certo, fazermos nossa correria. Para os
jovens trabalharem, estudarem. É isso que queremos
dentro do hip-hop, ver os jovens, as crianças apren-
dendo coisas legais que o hip-hop proporciona”, diz Lu
Afri, defendendo seu envolvimento com o hip-hop.
Suburbano acredita na expansão das informações e ati-
tudes positivas, e conta que eles sempre realizam even-
tos beneficentes de hip-hop, onde recolhem alimentos
e doam para entidades carentes. Desta forma, preten-
dem dar um bom exemplo à sociedade, além de contri-
buir com os mais necessitados: “Sem o hip-hop isso não
seria possível, ele veio para resgatar todo mundo. Esses
quatro elementos vieram para tirar os jovens da rua, das
drogas, do álcool, da prostituição, do crime. Veio para
ocupar a cabeça das pessoas, para incentivar a prática
do bem”, diz Lu Afri.
Ainda na memória, eles trazem as lembranças dos pri-
meiros eventos realizados na periferia, quando muitos
quilos de alimentos eram arrecadados e distribuídos
para creches e entidades da região. Mas, atualmente,
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Reuníamo-nos todas as tardes para discutir como o Tal qualidade era medida pela quantidade de tempo que
evento seria montado, que nome teria, como recebería- cada uma treinava e a que realizava o evento, por se
mos os convidados, onde encontraríamos troféus, e cada considerar acima dos que se apresentavam, ficou como
um ficou responsável por uma parte. A falta de dinheiro jurada e apresentação final. Feliz por estar lá, mesmo
da condução para ir até o centro da cidade, a concilia- sem saber qualquer passo do break, continuava encan-
ção da escola e do trabalho com a organização do evento, tada pelos passos, pelas gírias, pelos discos riscados
tudo isso, se transformava em entraves e, justamente por pelos DJs e pelas competições de gírias.
isso, é que o desejo de fazer uma grande festa crescia.
Como nada é perfeito, para um evento montado por
Decidimos que o nome seria apenas Hip-Hop Sul, por jovens que não tinham 18 anos ainda, até que estáva-
estarmos na Zona Sul e por ser simples, fácil de ser mos muito bem, quando alguns gritos do lado de fora
assimilado. atraíram a atenção de quem estava do lado de dentro.
Dois grupos, vindos de fora, se desentenderam e distan-
A notícia correu entre os amigos da região e, logo, todos
tes da proposta do evento, queriam resolver a diferença
aguardavam ansiosos o domingo, dia escolhido porque a
com violência. Proibidos, pelos garotos da crew local,
presença poderia ser maior.
um deles mudou o foco e queria briga com ele, naquele
O poliesportivo se transformou, então, em palco de uma momento. A apreensão por ter o evento finalizado com
das maiores festas da periferia, com as competições de brigas corporais fez a roda aumentar ainda mais em
break e os shows e batalhas de rap. torno dos dois, quando ficou resolvido que uma racha de
O brilho nos olhos de cada um da organização, inclu- dança tiraria a diferença.
sive nos meus, que, naquele dia, trancei o cabelo liso ao Uma observação positiva é que os grupos de fora trou-
estilo rasta para tentar incorporar um pouco da cultura xeram garotas junto com as crews, o que significava
negra no staff do evento. uma presença maior do grupo feminino na cultura e um
Claro que o amadorismo deixou algumas falhas e algumas fortalecimento desta parte na região. Abstraí o pre-
pessoas acabaram entrando sem deixar como ingresso o conceito da família e de alguns colegas de escola, que
quilo de alimento, mas, nem por isso, o evento deixou de diziam que os b.boys estavam lá apenas para encerar
ser um sucesso, tanto pelos sons novos, que foram apre- o chão – que era, obviamente, liso e apropriado para
sentados, quanto pela constatação de que foram feitos dança – do poliesportivo.
com a mão de obra mais preciosa da periferia: a dificul- Foi apenas o primeiro evento e as creches da região
dade do dia a dia. comemoraram a chegada de 500 Kg de alimentos, arreca-
Sem qualquer briga ou desentendimento, as rachas de dado como cobrança de ingresso para o evento. Naquele
break se seguiram por horas, com jurados e premiação domingo voltei para casa leve e feliz: as manifestações
em troféus, que mesmo simples, imprimiam a quali- encheram minha alma e a sensação de realização me
dade de algumas crews, tanto da cidade como de fora. trouxeram a certeza de que, com muito trabalho e desejo
de construções positivas, tudo era possível.
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Da segunda vez que uma festa foi organizada, consegui- nível nacional. Sem internet ou divulgação televisiva, o
mos convidar outros grupos de rap e break de outras que- acesso a novas informações surgia pelas experiências
bradas da cidade. A escolha da data para acontecer foi a de quem viajava aos grandes centros ou pelas revistas
mesma, um domingo durante a tarde, e o Centro Comuni- segmentadas da época.
tário se tornou palco de um grande encontro.
Não demorou para que a literatura marginal entrasse em
Com a experiência da outra vez, o evento foi batizado nossas vidas por meio das revistas, “zines” e publica-
como Hip-Hop Sul II, mas trouxe os mesmos entraves, ções acerca do hip-hop. Os primeiros textos de identifi-
como crews que tinham desejo de tirar a diferença com cação chegaram alguns anos depois, pelo lendário escri-
brigas e não com rachas. Resolvido o problema, o clima tor Ferréz. Uma revista encontrada, ao acaso, por alguém
lembrava os bailes Black da década de 1970 e a chegada do grupo. A atenção despertada por um texto escrito de
do break ao Brasil. Ao redor das rodas observavam-se forma diferente. Uma linguagem nova despontava na
garotos, garotas e desta vez, alguns pais, que foram periferia e trazia temas recorrentes na nossa realidade.
convidados a assistir a apresentação dos filhos, e tam-
Longe de qualquer ligação criminosa, o termo literatura
bém algumas crianças no local.
marginal refere-se apenas à condição em que, não só a
Conseguimos, mesmo que, na época, sem idealizar isso, literatura, mas o hip-hop se encontram. À margem da
trazer para a nossa quebrada uma opção de lazer aos sociedade e à beira de mudanças positivas, os textos
domingos à tarde que não fossem os programas televisi- dos poetas do gueto, denunciam, de uma forma “roman-
vos como Faustão e Sílvio Santos. ceada”, a violência e a miséria experimentas na perife-
ria. Começa assim uma nova fase na cultura marginal
Não fomos atrás e, também, não recebemos nenhum
poços-caldense, envolta de conhecimento e sabedoria.
tipo de apoio ou incentivo do poder público ou privado.
Além da cessão do local, que tínhamos direito a usar, As letras de rap se tornaram mais conscientes e o número
não pedimos mais nada e, mesmo assim, fizemos uma de grupos foi aumentando. Os locais onde as festas bene-
grande festa. Devagar, ambulantes trouxeram os car- ficentes aconteciam foram se alternando, ora aconte-
rinhos para a porta do local e tiveram uma renda dife- cendo no poliesportivo, ora no centro comunitário, loca-
rente naquele domingo. lizado à poucos metros de distância. Nos bolsos das
calças largas, vários manos traziam em papéis amassa-
Além dos benefícios para os jovens das periferias de
dos, encontrados ao acaso, espalhados pela casa, novas
toda cidade, as creches ficaram, novamente, felizes por
letras de rap e alguns arriscavam até mesmo alguns con-
conta dos alimentos recebidos. Não foram 500 kg como
tos, textos e crônicas, que entoavam a lembrança de tan-
da outra vez, mas representaram que, além do resgate
tas tardes passadas no poliesportivo em meio aos treinos
na vida de cada um daqueles jovens, poderiam ser, tam-
de break, as batalhas e os sonhos da juventude.
bém, revertidos em prol da comunidade e assim foram.
Poesias românticas eram escritas em pedaços de folhas
Novos eventos nos mesmos moldes foram realizados,
de cadernos e os mais ousados tratavam dos problemas
além dos treinos diários e incessantes, na tentativa de
competir em outras cidades da região ou mesmo em
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sociais e da própria realidade. Tínhamos descoberto Começava então, uma produção textual na roda, mesmo
uma nova forma de externar nossos pensamentos ao por aqueles que não frequentavam mais a escola ou que
mundo: a palavra. A revista Rap Brasil se tornou, tam- escreviam precariamente. Todas as tardes, ao término
bém, uma referência de conhecimento sobre a cultura dos treinos, quando nos sentávamos para conversar,
e a cada mês, um somava as pequenas economias e ia contar os acontecimentos cotidianos, os textos eram
até o centro da cidade para comprar um exemplar, que lidos. Pena que alguns eram ridicularizados, mas, nem
trazia sempre o que havia de mais novo no cenário do rap por isso, deixavam de ser feitos.
e algumas pinceladas dos demais elementos da cultura.
Hoje, entre as poucas lembranças que guardei daquela
Líamos tudo que podíamos sobre o assunto e quem época, um texto sobreviveu às várias limpezas no
podia viajar para São Paulo ou Rio de Janeiro trazia sem- guarda-roupa todos estes anos. Inspirado no que eu lia,
pre um som novo, um passo diferente e novos textos. via e observava.
Dos poucos que tinham acesso à internet, e eu era um
deles, visitava sites em busca das novidades e de mais Homem do Gueto
informações sobre qualquer coisa que estivesse ligada à Hoje o hip-hop chora, o homem do gueto foi embora.
cultura. Saber mais significava melhorar a comunidade e Cantou, pregou, tentou. Não conseguiu. Cansou, não
trabalhávamos, mesmo sem pretensão, para isso. aguentou. Se matou.
Sons de Racionais MC´s, Thaíde e DJ Hum e Sampa Crew Mas não se matou assim, de repente, como quem dá um
eram os mais ouvidos e serviam como inspiração. O tiro na cabeça, puxa uma corda no pescoço, se atira dum
conhecimento sobre novos passos, novos sons, a existên- prédio e pronto! Não... O homem do gueto morreu aos
cia de uma liga de DJs e o despontar da literatura e pro- poucos, como bom brasileiro que era, pensava que seu
dução cultural feitas no gueto vieram, então, da revista. lema era, “não desistir nunca”.
Arrisquei-me, também, a produzir alguns pequenos tex- Com 10 anos de idade, quando o homem do gueto ainda
tos com as cenas que observava diariamente no local. era um menino, viu o pai se separar da mãe e fugir como
um covarde. Alguns anos depois, tomou um tiro de ras-
Escrevia e apresentava aos garotos que treinavam.
pão do padastro e carregou a mãe, baleada pelo padas-
Comigo, levava duas das garotas que me levaram até lá
tro, até o hospital. Viu a coroa morrer. Chorou, cansou,
pela primeira vez, onde conheci todo universo mágico da
mas não desistiu.
cultura de rua.
Se lembrou das madrugadas em que levantava sob a
Dos textos, lembro que descrevia a segurança que
geada, para apanhar café com a coroa e ajudar a sustentar
sentia em estar no poliesportivo observando os trei- o lar. Chorou. Mas não desistiu. Aguentou. “Mãe, fique na
nos e guardando as lembranças. Todos gostavam e me paz, pois seu filho, aqui na terra, te ama demais...”, cantou.
incentivavam a escrever mais. O sonho era, e continua
sendo, ter as sacadas parecidas com as do Ferréz e a Pensou que fazer umas letras de rap e cantar para a
juventude amenizaria a dor e ajudaria na construção de
produção, também.
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um país melhor, afinal, o homem do gueto era brasileiro e brada, eram as ideias que martelavam na cabeça do
não poderia, em hipótese alguma, desistir. homem do gueto, agora, homem feito, maior de idade.
Queria respeito, dignidade, cantar um rap que abalasse “Periferia mano, é bem diferente, só mano linha de
toda a cidade. Não deu. Se fodeu. Leu num livro que não frente”, dizia.
devia se meter com as drogas, mas foi numa balada, uma
Se enganou. Quando mais precisou de ajuda para botar
noite qualquer, cantando um rap, que ficou de barato
os projetos do bem pra frente, não conseguiu. Em cada
com a primeira “bola” que deram.
porta que batia, era um “não” que recebia. “Por que é tão
O homem do gueto, apesar de ser ele mesmo, também caiu difícil correr pelo certo?”, pensava.
em tentação. Rodou na mão dos “homi”. Acontecia com
E foi assim, sem emprego, vendo a mina com outro, o pai
todos os manos mesmo, por que com ele seria diferente?
bebendo como o padastro e quase todos os amigos mor-
Desistiu. Não de viver, mas da maconha. Continuou can- tos, por conta das drogas e do crime, que ele morreu. Dia
tando. Trabalhando. Acordava toda madrugada. “Não após dia, com a barriga vazia. Morreu fraco. A fraqueza
sabem como faz frio aqui no gueto dessa cidade de desa- da fome o consumiu e todos que o admiravam, hoje, cho-
certo”, pensava. Mas nem pensava no dia que passava, ram, o homem do gueto foi embora!
apenas trabalhava.
O interessante é o que aconteceu nos eventos e encon-
Quanto tinha 16 anos, o homem do gueto, que ainda era tros que se seguiram a essa época. Mesmo mais espa-
um garoto, arrumou uma garota, conhecida como “mina çados e com menos gente, um novo movimento surgiu. O
de fé”, que o acompanhava nas baladas de hip-hop, apro- movimento daqueles que escreviam. Por várias vezes, o
vava o rap, e não fazia cara feia para as novas composi- apresentador da festa, ou mesmo o MC, antes de anun-
ções. Uma mina que o chamava de homem do gueto. ciar atrações ou mandar as rimas, lia algum trecho de
Mas a mina de fé, assim como a mãe do homem do texto ou mesmo declamava, deixando a plateia um
gueto, se apaixonou. Não por ele, mas pelo “vida loka” pouco confusa quanto à novidade e, ao mesmo tempo,
que morava na esquina da mesma rua. Ele era melhor excitada, com a existência de uma literatura que falava
e tinha o “carro do ano”, sem falar que não pagava um a língua deles, algo que eles podiam entender.
veneno no trampo.
A falta de dinheiro e apoio nunca permitiram que levás-
O homem do gueto chorou de novo. Se cansou, mas não semos cópias dos textos nos eventos para distribuir
desistiu. No trampo, resolveu chutar o balde, não aguen- entre os participantes. Mas, certa vez, pedi a um amigo,
tava mais inveja, cara feia e bronca do patrão. Mesmo Elton, um b.boy, que se apresentava em shows no Cen-
com as contas pra acertar, deixou de trabalhar.
tro Comunitário do Cohab, para ler o meu texto “Homem
Se jogou no hip-hop. Letras de rap, viagens para São do Gueto”. Mesmo querendo ser jornalista e tudo mais,
Paulo. “O berço da cultura do gueto no Brasil”. Decepção. tive vergonha de me arriscar no palco. Coisas da idade,
Histórias, mais letras. Trabalhos sociais, voluntários, medos infundados, sei lá. Só sei que imprimi o texto em
ajudar a molecada mais nova, da rua, da mesma que- casa e pedi que ele lesse. No início, houve um certo medo,
um certo receio, mas insisti e ele acabou concordando.
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A ideia de fazer isso surgiu de um filme, daqueles exibidos a abertura dos eventos ou intervalos, porém, a falta de
todas as semanas na sessão da tarde, quando estudan- experiência não permitia que fossem coisas organizadas
tes têm um problema, um caso de amor e alguma batalha e, portanto, sempre se tornavam dispersivas ou o inte-
para vencer até os 120 minutos finais daquela fita. Obser- resse dava lugar a alguma outra coisa, como uma música
vando em um filme, que eu não me recordo o nome, mas ou um grupo novo. Mais tarde tomei conhecimento de
que um garoto interrompia a performance de uma banda que outros escritores, poetas e até mesmo músicos,
e lia um poema no palco, pensei que, de repente, pudesse usavam o mesmo artifício para divulgar o que escreviam
imitar a ação para as nossas festas, entretanto, de forma de maneira não escrita.
mais sutil. Assim, usei o hip-hop para divulgar meus tex-
Entretanto, a necessidade de expressão, que acompa-
tos e contos e acho que a fórmula deu certo.
nha o homem desde os primórdios, com as inscrições
Entre uma música e outra o meu amigo, Elton, pediu rupestres nas paredes das cavernas, trouxe, junto com
licença e leu, não da forma como alguém que declama, os textos produzidos na periferia, algumas pequenas
mas melhorou a qualidade de leitura a medida que ia pichações nas paredes do poliesportivo, para a grande
colocando sentimento nas palavras ali escritas. tristeza de quem estava esclarecido pela cultura. A boa
notícia é que bairros vizinhos também passaram a pro-
O zumzumzum foi desfazendo e as pessoas passaram
mover competições de dança com troféus como prêmio,
a prestar um pouco mais de atenção, fazendo silêncio
e a cultura se consolidava na região.
e acompanhando o que ele dizia. Aos poucos, a histó-
ria narrada pelas minhas palavras se desenhou e todos O centro comunitário de outro bairro serviu como palco
pareceram gostar. Alguns sorriam, outros estavam emo- para uma das batalhas de break mais acirradas da
cionados. Eu não aguentei e desabei a chorar. Pelo texto, região, além da apresentação dos grupos de raps locais,
por ter escrito algo e tê-lo visto ser lido em público e pela que, a cada evento, se mostravam mais profissionais e
realidade da história, que acontece todos os dias em traziam novas técnicas, novas rimas e também novos
todas as periferias do Brasil. figurinos, compondo um cenário único naquelas peri-
ferias. Curioso observar que todo movimento acontecia
Não ficou na primeira vez. Sempre que havia qualquer
independente de qualquer ajuda, apoio ou mesmo incen-
pequena manifestação envolvendo o hip-hop, lá estava
tivo de órgãos públicos ou iniciativa privada. Diferente
eu, com meus textos, sempre pedindo para alguém ler
do colégio, onde o objetivo era estudar e não brigar, o
em público para mim.
hip-hop promovido em eventos fazia o papel inverso e
Aos poucos, a coragem de outros colegas foi surgindo e transformava as disputas em educação por meio das
eles também passaram a ler alguns de seus textos nos manifestações artísticas.
eventos. Arrependo-me de não ter feito cópias de todos,
mas, basicamente, as histórias seguiam a mesma linha.
Baseadas em acontecimentos na vida de todos eles,
surgiam pequenos contos e textos que incrementavam
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Nossas preferências eram brigadeiro de panela, tareco De forma sutil, esses pequenos acontecimentos que eu
e bolo. Às vezes um macarrão ou batatas fritas faziam acompanhava, tão de perto, fizeram crescer a minha von-
parte do cardápio, mas somente quando a situação tade de escrever ao mundo as misérias humanas e coti-
estava boa. Entretanto, na hora de bater o bolo ou o dianas. A vontade de ajudar também foi crescendo e foi
tareco sempre faltava leite, ou açúcar ou, ainda, os ovos. por meio do hip-hop que eu encontrei as maneiras, mesmo
Era uma correria boa para buscar na casa dos vizinhos, que pequenas, de iniciar um movimento para fazer isso.
contar as moedas para poder comprar e por aí vai.
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Marcando vidas
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Vindo de uma infância pobre, Valdair sempre trabalhou, dentes da frente. Foi zoado por quase todos. O traba-
ora como servente de pedreiro, ora como ajudante em lho era de ajudante de coveiro, no cemitério próximo à
oficinas e, naquele momento, como chapeiro em um comunidade. Ele não ligou e só chegava para partici-
trailer de lanches do bairro, ao lado de um parceiro, par dos treinos nos fins de semana nos quais estava de
Charles, também do hip-hop. folga ou quando eles aconteciam durante a noite. Mais
tarde, com o dinheiro ganho como coveiro, ele conse-
O dinheiro suado, ganhado durante seis noites em claro
guiu arrumar os dentes, encontrou outro emprego e Val-
toda semana iam para as mãos da mãe, que comprava
dair foi quem assumiu o cargo de ajudante de coveiro.
alimentos e leite para os dois sobrinhos dele. Muitas
vezes, tendo que cuidar das crianças enquanto a irmã Certa vez, perguntei a eles se a profissão de enterrar as
e a mãe trabalhavam, Valdair ensinava a eles os primei- pessoas e ficar no cemitério não os incomodava ou se
ros passos de sapateado. Feliz. Completo. Assim ele se não achavam um pouco mórbido. Ambos concordaram
resumiu com a vida que levava e acrescentou: graças ao que não era a coisa mais prazerosa e que preferiam viver
hip-hop e, também, por organizar eventos beneficentes de uma renda obtida com rap ou break, mas, já que não
para a comunidade. era possível nas condições da comunidade, era melhor
garantir o sustento por isso do que aliados ao tráfico.
Como a história dele, a dos outros garotos se asseme-
Concordei e nunca mais toquei no assunto.
lhava em quase tudo e o movimento era fortalecido, no
entanto, não eram raras as vezes em que éramos sur- Tempos mais tarde surgiu um texto sobre isso na roda.
preendidos pela ausência daqueles que tinham mais de Foi ignorado. Trabalho honesto e mórbido, mesmo, era ver
16 anos. Muitos conseguiam o primeiro emprego, mesmo uma porção de gente que havia crescido junto conosco
sem a carteira assinada, e passavam a garantir uma fazendo corre como aviõezinhos do tráfico que se instala
renda maior dentro de casa. devagar na região.
Certa vez ele também comentou que, muitas vezes, era
duro trabalhar em prol do hip-hop, arrecadar tantos
quilos de alimento e não ter alimento em abundância
em casa. “Por várias vezes pensei em levar um saco de
farinha ou de feijão para casa, mas não estaria sendo
honesto com o evento e nem comigo mesmo”, comentou
em um certo momento.
Mas, de repente, entendi que a fome, a vontade de comer
algo diferente era de mudar a própria realidade: de fazer
o povo da periferia ser mais consciente.
A história de Digo era diferente. Ele conseguiu um emprego
com registro na carteira. Coisa rara, ainda mais para ele
que, mesmo com a pouca idade, não tinha vários dos
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Andam dizendo por aí que é antiético roubar ideias e pla- leitor não pode perder tempo, só a informação, prazer da
giar redações. Um exemplo disso é o livro de Luiz Maklouf, leitura e do conhecimento.
“Cobras Criadas”, que relata casos escabrosos e ditos
Daqui a pouco, o jornalista não mais precisará se deslocar
como “antiéticos” de nosso país. Só há um defeito no livro,
das redações para as ruas em busca de notícias quentes,
é que o Maklouf esqueceu de citar ali o caso da “operação
de furos. Os jornais já se aliaram. Daqui a pouco, vão ape-
mela PT”, no qual ele esteve envolvido e foi abafado. Neste
nas comprar de um publicitário bem criativo, um texto
episódio, que renderia uma ótima história nas páginas de
que seja curto e objetivo. Neste texto existirão lacunas a
“Cobras Criadas”, Maklouf plagiou uma matéria inteira
serem preenchidas, e o repórter terá, então, que passar o
de um jornal de pequeno porte em Campinas, escrita por
tempo apurando no texto de três parágrafos dos releases
duas jornalistas recém-formadas, na época. As jornalis-
as seguintes informações:
tas abstiveram-se do caso, mas o jornal em que elas tra-
balhavam moveu uma ação, que deu em nada. Quem?
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Uma brasileira Mais dia. Menos dia. A mesma coisa sempre. A falta de
mistura era motivo de briga. O casal que se amava, pas-
Lavando roupa, limpando a casa, dando banho no filho,
sava a se insultar. A barriga vazia trazia a desesperança
esquentando a janta, pensando no trabalho do próximo
e a fraqueza, impedia que a caneta se movesse sob forma
dia, aguardando o amanhã...
de letras e novas composições de rap.
“Será que algum dia será diferente?”
Como milhares de outros casais, esse era só mais um,
Na cabeça, algo além do lenço que prende o cabelo que, durante a brava guerra da sobrevivência, tinha que
chama atenção. Talvez seja o sonho. A esperança. Ou a optar por continuar ou por sonhar.
nova rima que está tentando compor para gravar mais
Tão iguais e tão diferentes, cada um resolveu seguir seu
uma música de rap.
caminho. De comum eles continuaram compartilhando
Assim é Maria Lúcia, uma brasileira, mais uma, do tipo somente a cama.
mais comum que existe. Morena, bonita e de cabelo
Maria Lúcia quis continuar sonhando e, de tanto sonhar,
crespo. Pobre.
se esqueceu de trabalhar, de buscar alguma forma de se
Foi criada pela avó na periferia de uma cidade do inte- alimentar e deixou o filho para o marido cuidar.
rior de Minas Gerais. Uma criança comum, brincava na
Já o marido, que não sabia como era o preconceito do
rua e cantava na igreja, onde todos diziam que tinha
racismo, mas sentia o da pobreza, desistiu de sonhar
uma voz linda.
para poder continuar vivendo.
Ficou mocinha e casou-se por amor. Apaixonou-se por
Ambos morreram. Não que eles tenham sido sepultados
um homem branco, pobre, humilde e cantor de rap.
ou algo parecido. É que um já não sonha mais para con-
Em comum? Eles tinham um sonho. Cantar rap e levar tinuar vivo e outro de tanto sonhar se esqueceu de viver.
uma mensagem positiva aos jovens do gueto. “Eles pre- E assim eles prosseguem. Mais um casal, com filho para
cisam de palavras de incentivo para seguir suas vidas criar, e uma vida que passa distante do verbo em ação.
correndo pelo certo”, diziam.
Contudo, apenas escrevi. Já não encontrava mais espaço
Mas correr pelo certo nem sempre era fácil. Assim sen- para divulgar os textos nos eventos, embora o desejo
tia-se o casal, com um filho de três anos para criar. de gritar para o mundo minhas palavras continuasse
Acordar às 4h da manhã e, na hora de ir para cama, sentir cada dia maior.
que o dia não passou é coisa de gente pobre, do gueto,
que se sente um nada quando chega o final do mês, nada
para comer. Palavras de incentivo alimentavam, dentro
da pequena casa nos fundos de um quintal, cômodos
pequenos, apertados, aconchegantes, como só as casas
da periferia têm.
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escrevia alguns textos no computador da livraria. O meu tração total, sempre recheados com muitas músicas,
remorso foi não ter salvo em algum outro lugar e ter per- que eram de vários estilos.
dido todos em uma pane do computador.
Foi, durante a faculdade, que aprendemos a confec-
Lembro que eram textos sobre o cotidiano, sempre mes- cionar o jornal laboratório – Entrelinhas – e minha pri-
clando o jornalismo e a literatura marginal, tentando meira matéria foi sobre grupos musicais independentes.
dar estilo à minha maneira de escrever. Como eu estava Claro que, no meio, apareceu os grupos de rap da minha
quase terminando meu curso de inglês e, para chegar região. Época em que o UClanos se fortalecia e progra-
até o fim da faculdade com ele concluído, mudei de horá- mava a gravação de novas músicas.
rio passando a frequentar as aulas na hora do almoço.
A volta para Poços de Caldas acontecia às 23h, quando
Acho que foi a época mais tumultuada, em questão saíamos de São João. A van me deixava na porta de casa
de tempo, que já vivi. Acordava às 7h, tomava banho, por volta de 00h50. Neste horário tomava outro banho e,
pegava o ônibus — torcendo para achar um banco vazio por muitas vezes, fiquei estudando ou fazendo trabalhos
e me sentar para ler durante todo o trajeto, ou mesmo, da faculdade. Dormir era considerado um período muito
anotar as ideias, que não paravam de surgir — e chegava raro, contudo, o desejo de aprender, de viver, de me entre-
na livraria pouco antes das 9h. gar à época e ao que eu poderia fazer eram mais fortes.
Fazia a limpeza matinal diária, cuidava da parte dos Sem tempo para organizar os eventos, buscava, em
livros vendidos, comprados e, pouco antes do almoço, alguns domingos, eventos espalhados em partes dife-
me sentava para ler um pouco, alternando entre um rentes da cidade e ia curtir um pouco do hip-hop, afi-
cliente e outro. Devagar, algumas amizades foram sur- nal, minha paixão tinha voltado com tudo e não poderia
gindo e sempre algumas pessoas passavam pela manhã mais abrir mão de me encontrar com a minha verdadeira
na loja me deixando cafés, pães de queijo e algumas essência: a periferia e a cultura produzida dentro dela,
palavras de bom dia. do povo para o povo.
Na hora do almoço, voltava para casa, almoçava e já saía
correndo novamente para a livraria. Às terças e quintas
meu pai levava uma marmita e me levava até a escola de
inglês, comia rapidamente, assistia a aula e voltava para
a livraria. O horário de saída era às 18h20 e eu ia direto
pegar a van que me levaria até São João da Boa Vista.
Muitas vezes lamentei ter de ir para a faculdade sem
banho. Comer antes de viajar já não era um problema
e tudo que gostaria era de poder tomar um banho e
mudar a roupa. Os momentos na van eram de descon-
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Fui embora feliz, mas nem por isso consegui me afas- nessa?” e foi exatamente assim que eu falei e vi os olhos
tar do meu cotidiano. A faculdade, de certa forma, “dis- dela brilhando. “Sim. Hip-hop rola demais como TCC, fala
tante” dos problemas periféricos, me deixava algumas de pessoas, é super social e jornalismo puro no relato
poucas horas por dia longe da minha quebrada, mas, do cotidiano.” Essa foi a resposta dada por ela. Poucas
todos os dias ao voltar para casa eu era obrigada a des- palavras que soaram como alívio após meses de discus-
pertar do mundo “universitário”, ao qual apenas 1% da são sobre qual tema poderíamos fazer para o TCC – tra-
população brasileira tem acesso, e enfiar o pé no barro balho que assombra todos os alunos de jornalismo e que
quase todas as noites, ao descer da van, passar pelos decidimos, desde o segundo ano, que faríamos juntas e,
moradores de rua que sempre buscam abrigo na mar- caso isso não desse certo, faríamos sozinhas.
quise de um comércio na porta da minha casa e ouvir os
Convicta. Assim eu estava. Certa de que abordar o
barulhos de tiro se confundirem com as letras dos livros
hip-hop no meio acadêmico de uma cidade do interior
que eu lia antes de pegar no sono para repor as energias
era novidade e falar dele na região seria inédito. Abra-
e enfrentar mais um dia lotado de afazeres e sonhos.
cei a causa e sozinha, ou com a Anita, eu decidi pelo
Para completar, mesmo cursando o nível “superior” de livro-reportagem que traria elementos como DJ, MC,
ensino, não deixava de pegar o ônibus cheio e enfrentar Break, Grafite e Conhecimento.
o massacre diário que todos os trabalhadores são obri-
gados a tolerar no transporte público e foi justamente no
“aperto do busão” que dias depois da aula com os textos
da literatura marginal me bateu o estalo: “Vou fazer um
livro-reportagem sobre o hip-hop.”
Com as lembranças da melhor fase da minha adolescên-
cia, de quando eu conheci a crew de break e todo o uni-
verso mágico do hip-hop é que eu cheguei a pensar no
que poderia fazer como projeto experimental. Naquela
manhã, dentro do ônibus, enquanto pensava na prova
que faria à noite, em que os textos de Ferréz seriam
objetos de interpretação antropológica, senti que minha
vida estava ali e que não poderia ser diferente.
Após a prova, comuniquei à Anita, pessoa fundamental
durante meus quatro anos de faculdade, de altos e bai-
xos, brigas, momentos de paz e muita troca de conheci-
mento. A melhor amiga que tive na vida. A pessoa com
quem melhor trabalhei até hoje. “Vou fazer um livro-
reportagem sobre hip-hop, decidi. Você vem comigo
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acrescentar ao livro. Mais do que isso, com um novo Não conseguiu. O único jeito era trabalhar no assunto e
olhar — talvez o de uma jornalista em processo de for- definir a linha de pesquisa. Resolvemos que Anita faria
mação —, passei a notar mais do que um simples grupo a parte do relatório técnico, que é semelhante a uma
reunido para curtir uma música, uma dança ou uma arte. monografia, com a coleta de dados e referências teóri-
Percebi que cada uma daquelas pessoas trazia histórias cas e eu ficaria responsável pela parte das entrevistas e
únicas e que se fundiam em um ponto comum, que era escrita do texto que entraria no livro.
a marginalização dos que vivem nas periferias e guetos.
Já cansada das baladas universitárias, do forró e de
O desejo de conhecer a fundo o movimento foi ao encon- outros estilos, me envolvi novamente com as leituras e
tro da vontade de fazer algo para, na prática, promover procurei saber mais sobre cultura popular. Nesse embalo,
mudanças nos guetos onde estava acostumada a fre- passei a fichar tudo que encontrava referente ao tema, ou
quentar. Na semana seguinte, um novo evento de dança mesmo, à cultura popular e, por mais que já estivesse,
marcou meu calendário e o contato com novos grupos desde a adolescência, inserida no contexto da cultura,
– que surgiram durante o tempo em que estive distante descobri novos aspectos e vertentes que me fizeram
– foi sendo firmado. mudar um pouco o pensamento e despertar a vontade de
mudar a realidade em que vivia.
A volta às aulas foi marcada pela divisão dos grupos e
a definição oficial dos temas. Ao explanarmos o nosso
objeto de pesquisa e o tema que seria praticado no livro-
reportagem, fomos tolhidas pelo coordenador do curso,
que achou ser algo que não dizia respeito à proposta
acadêmica da universidade.
Como não? O tema era livre, desde que rendesse uma
boa reportagem e, muito antes do ano letivo começar, já
estávamos empenhadas nas pesquisas. Outro ponto: se
o assunto já havia sido debatido em sala de aula, como
poderia fugir da proposta acadêmica?
Como sempre, fomos teimosas e persistentes, batemos
o pé e não recuamos. O nosso tema seria o livro-reporta-
gem sobre hip-hop, seria o TCC e pronto.
Uma nova briga começou com a escolha do professor
orientador. O designado pelo orientador do curso não
gostou. Tentou, mais uma vez, nos fazer mudar de ideia
e trocar de tema. Sem sucesso. Tentou junto ao coor-
denador que outro orientador assumisse o trabalho.
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estava fazendo a diferença. Descobri outro estilo de rap. E, quando eu menos esperava, o primeiro semestre termi-
Voltei a aprender e fazer parte. nou, o livro continuava sendo feito e a tão esperada via-
gem a São Paulo – berço do hip-hop no Brasil – aconteceu.
Ansiosa e um pouco receosa, entrei no teatro munici-
pal da cidade, que estava lotado de gente vinda de toda
circunscrição. Pessoas ocupavam os assentos, o chão
e se apoiavam na parede em volta. Todos muito estilo-
sos, aguardando o início das apresentações. Cacei um
lugarzinho bem na frente e me sentei. Do meu lado, um
garoto de São Paulo puxou conversa e me contou um
pouco sobre o grupo do qual ele fazia parte. Com um
nome diferente – Silêncio Crewativo – ele me contou
como funcionava. Por coincidência foi o primeiro grupo a
se apresentar e, embora não tenham sido os campeões,
apresentaram uma coreografia com uma proposta bas-
tante diferenciada.
Grupos de cidades como Caconde (SP), Campestre (MG),
Vargem Grande do Sul (SP) e Cabo Verde (MG) também
se apresentaram, além dos tradicionais de Poços de Cal-
das. Ao término das apresentações procurei fazer mais
contatos e algumas primeiras entrevistas.
Por incrível que pareça, tive a sensação incrível de me
sentir muito bem enquanto estava cercada pelas mani-
festações culturais da periferia. Como se uma espécie
de paz diferente me invadisse e me fizesse sonhar com
coisas melhores, me injetasse ânimo para lutar e me
fizesse ver que coisas boas ainda eram possíveis e que
pessoas boas ainda existiam.
Tive vontade de, novamente, entregar alguns textos
a conhecidos e pedir que eles lessem antes do evento
ou durante os intervalos, mas, como estava voltando
naquele momento, não poderia ir com tanta sede ao
pote. Talvez depois do livro pronto.
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Personagens como um DJ que deixou as drogas para se crime e de resgate me fizeram ter um objetivo: traba-
dedicar a arranhar os discos na Zona Oeste de Poços lhar com hip-hop e levar o projeto do livro adiante.
de Caldas que, tão logo percebeu que poderia ser feliz
Mesmo sem saber como, a emoção que sentia quando
sem estar muito louco, recebeu um convite para tocar
ouvia todas aquelas histórias que desenham a cultura
junto ao grupo UClanos. Também como o professor e
como ela é, foi o que me fez ser parte integrante da cul-
arte-educador, Éder, que deixou os empregos com car-
tura novamente e de uma forma muito mais ativa. Vale
teira assinada para ensinar break e dança de rua para
lembrar que isso se deu mesmo sem que eu soubesse
as crianças da cidade, ocupando também a Fonte do
cantar, dançar, riscar discos e tampouco grafitar.
Leãozinho e mantendo a tradição de unir os patrimônios
materiais e imateriais da cidade.
As lágrimas nos olhos de Stephanie, com 13 anos na
época, me fizeram segurar o choro enquanto a entre-
vistava. Indo ao encontro da proposta de Éder, que era
tirar as crianças e jovens das ruas, evitando que eles
se envolvessem com o crime, ela me contou que optou
por aprender a dançar e preencher as noites de sábado
com as aulas para se ver livre das drogas e da saudade
do irmão que morreu, após uma parada cardíaca provo-
cada por uma overdose. “Meu irmão é exemplo. Eu acho
que se ele fosse envolvido com hip-hop, estaria com a
cabeça ocupada.”
Mais uma vez senti a certeza do caminho certo pulsando
no meu coração. E eu? Se não estivesse trabalhando com
hip-hop e cultura, estaria fazendo o quê? Se não tivesse
sido seduzida pelos livros e por uma cultura popular, o
que estaria fazendo?
Relatos como os de um grupo que arrecadava cada cen-
tavo para ajudar as crianças e jovens que estavam nas
ruas e como espaço usavam uma sala de uma casa de
repouso onde viviam idosas em fase terminal ou como
as de King Nino Brown ao tentar cuidar para que o hip-
hop fosse retransmitido de forma certa são parte do
livro e que me emocionam muito. Bem como a histó-
ria de André Du Rap, que sobreviveu ao massacre do
Carandiru e encontrou no hip-hop um caminho longe do
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um salário mínimo. E quase sempre estão cansados ao Desta forma, as situações de exclusão transformam-se
anoitecer, quando é hora de ir para a escola. em indignação, em um grito preso na garganta, oprimido,
triste, sofrido. Um berro prestes a explodir. Os morado-
No fim do dia, os moradores da favela preferem conver-
res dos guetos necessitam encontrar um espaço para
sar na porta de suas casas, namorar, ir a eventos próxi-
expor toda a indignação.
mos – a maioria de hip-hop ou samba –, igrejas e bares.
Antropologicamente, todos os autores discutem isso em O hip-hop é uma destas saídas. Ele reúne manifestações
livros, teses e dissertações e as atitudes aqui retrata- culturais expressivas. É um movimento que nasceu da
das são as mais típicas dos guetos, e deles, o país está necessidade do povo em expressar sua arte.
repleto. De repente, é isso que faz com que as periferias
sejam tão mágicas, mas, ao mesmo tempo, faz com o
que o povo seja cada vez mais miserável, principalmente
no que diz respeito à parte cultural.
O livro foi, então, tomando forma e ganhando corpo. Cada
fonte foi trabalhada de forma individual, e em um con-
junto, constatamos, pelas histórias, que grande parte
nunca foi a uma biblioteca e nem sabe onde elas ficam,
uma vez que as mais próximas, ficam a quilômetros de
distância, assim como as demais opções de lazer, que
terminam, mais uma vez, restritas aos bares, biqueiras
e televisão.
Desta forma eles desenvolvem uma cultura própria, que
inclui linguajar, vestimenta, comportamento. São as
subculturas ou a cultura popular, visto que este povo,
excluído e humilhado, ainda sente na pele a mesma coisa
que os escravos. O gueto é apenas a senzala moderna e
eles vendem a mão de obra por um prato de comida, ou,
muitas vezes, nem isso. A dignidade fica esquecida, a
identidade perdida.
Vítimas dos constantes descasos governamentais, aos
moradores das periferias restam apenas uma válvula
de escape: a confiança em suas próprias forças. Bus-
car dentro deles as afirmações culturais, as ideologias e
uma saída para tantos problemas sociais que os afligem.
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HIP
Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,
vontade, luta e marginalidade.
Hip-hop é um terno que vai além. Significa cultura, mas para preparar a apresentação, as roupas, a decoração.
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor, Finalmente, consegui fazer um acordo na livraria e ter
soluções, lutas e igualdade de direitos. pouco mais de uma semana para finalizar o trabalho.
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de Lembro-me desta época como a única da minha vida em
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta que eu não estava lendo absolutamente nada, apenas
proteger os que já nascem condenados à morte. Perso- escrevendo. Não havia tempo. Era preparar o material da
nagens reais, cercados pela miséria, fome, desinforma- apresentação. Revisar. Fazer os convites. Revisar. Ajus-
ção, violência, crueldade, desemprego, drogas, descaso, tar o detalhes. Revisar. E tentar controlar a ansiedade
desabrigo, armas de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio até o dia 31 de outubro de 2006, quando apresentaría-
a tantas armas que eles podem escolher no jogo real do mos o trabalho. Seria o último de toda turma. Fecharía-
“matar ou morrer”, o hip-hop escolhe a maior de todas mos as apresentações daquele ano. Anita se tornou jor-
as armas: a cultura. Uma cultura marginal, mas que não nalista. Eu me tornei jornalista!
é propriedade dos grandes, não é da elite nem da bur-
guesia. É a cultura de quem foi capaz de criá-la e levá-la
adiante. É a cultura das ruas, do povo.
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Finalizada a apresentação, as considerações da banca. Já não cabia mais em mim de tanta felicidade por ter
Algumas pequenas observações e pedidos de esclareci- feito a apresentação, por ter chegado ao fim desta etapa
mentos sobre trechos do livro vieram de uma professora e por saber que eu continuaria. Abracei meus pais e os
que, durante todo o tempo também, nos apoiou, direta e agradeci, por terem dividido comigo os quatro anos da
indiretamente, sobre a escolha do tema. Da outra pro- faculdade e por terem apresentado o trabalho ao meu
fessora, a antropóloga Rosa Helena, apenas uma per- lado, além de terem passado várias noites perguntando
gunta. A que deu início a todo este capítulo e que, talvez, o que poderiam fazer para me ajudar a terminar o livro.
deu sentido a todos os projetos envolvendo literatura e
Claro que fizeram por mim muito mais, começando pelo
conhecimento que existem hoje.
sacrifício em poupar durante dezessete anos e deposi-
A banca pediu que nos retirássemos para decidirem a tar para que eu pudesse cursar a faculdade, por terem
nota. Por normas da universidade, as notas não pode- me incentivado a escrever, a ler, a ser a pessoa que sou e
riam mais ser divulgadas para os alunos durante a por acreditar naquela que eu gostaria de me tornar.
banca, somente após o fechamento oficial do ano letivo.
Por fim, respondendo a pergunta da professora: o livro
Fim. A apresentação terminou. Fomos aprovadas. Hora mudou tudo e na vida ficou a vontade de mudar, de fazer
dos parabéns, dos abraços, dos cumprimentos, de tirar diferente, de construir projetos, de ajudar quem nos
as últimas fotos da turma toda reunida. Estávamos ajudou, de abrir nosso coração e nossa mente cheia de
todos formados. Agora seria a vida profissional. O mer- ideias para aqueles que abriram suas vidas e portas de
cado de trabalho. O mundo lá fora. suas casas para nos receber e nos deixaram conhecer
um pouco mais do hip-hop e desta cultura marginalizada.
Posei para as fotos e cumprimentei todos. Com a certeza
de que continuaria trabalhando com hip-hop e ansiosa O choro de Rosa foi justificado quando eu e Anita disse-
para pôr todas as minhas ideias em prática. Ainda não mos, em coro, que nossa vontade era fazer pós ou mes-
sabia como faria para executar tudo o que eu tinha von- trado em antropologia, para dar sequência. Pude então
tade, mas a certeza na alma me mantinha apaixonada e usar a frase que mais me marcou durante toda a trajetó-
ligada à cultura negra, ao hip-hop e a literatura. ria: o hip-hop também salvou a minha vida.
Hora de voltar para Poços de Caldas. Suburbano me
olha nos olhos e dispara: “Foi a melhor apresenta-
ção que já fiz com o UClanos.” Emocionada, pergunto:
“Por quê?” E ele: “Porque antes de tudo foi trabalhado
o conhecimento. Você explicou o que é a cultura, sem
falar que nos apresentou como os tios do hip-hop. Foi
muito gratificante”, disse.
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No ar: o hip-hop
Cap.04
No ar: o hip-hop
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— Como assim?
Salvando vidas — Ela morreu esta noite. Teve uma parada cardíaca. Ainda
não sabemos direito. Será enterrada em Mogi Mirim, mas
ainda não sei o horário do enterro.
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Não acreditei que ela estivesse morta. Durante muito livro e não sabia como fazer. Ele não era mais da forma
tempo fiquei em estado de negação e quando soube a como concebemos. Faltava um pedaço. No livro, na minha
causa, me senti uma comunicadora muito impotente. vida, na da família dela e nas minhas lembranças da vida
Diante de tantas informações, como ela poderia ter mor- universitária, que eram só nossas e nunca mais puderam
rido inalado gás propano butano de uma daquelas buzi- ser compartilhadas.
nas barulhentas usadas durante o Carnaval?
Resolvi escrever um texto para ela. Publiquei no jornal
Ouvi relatos de que o gás, quando inalado, provoca um onde trabalhava, no jornal de Serra Negra, cidade onde
barato ao estilo do lança-perfume, entretanto, com ris- ela morreu e resolvi que seria uma espécie de dedicatória
cos imensos, sendo que, um deles leva, a pessoa à morte. no livro. As pessoas que receberam a segunda remessa
Lancei-me em campanhas sobre o assunto, fiz matéria dos exemplares puderam conhecer um pouco do que ela
para o jornal, procurei entender e orientar as pessoas. Até representou para mim. Senti, novamente, o meu rosto
a data — 19 de fevereiro de 2007 — cinco pessoas, con- molhado pelo meu choro. Senti o hip-hop chorando por
tando com a Anita, haviam morrido da mesma maneira ter perdido mais uma pessoa para o mundo das drogas
no país. Vi ainda algumas matérias televisivas que divul- e mais uma vez foi ele que me salvou, que deu rumo e
garam o caso, os perigos e tudo mais, mas as notícias de sentido a minha vida. Foi nas manifestações artísticas e
morte pela mesma causa continuam chegando. culturais que senti força para seguir adiante.
Durante muitas noites, que passei em claro tentando Por que ela se foi?
entender como faria para seguir adiante, sozinha, sem
ela para me dar conselhos sobre como poderia enrique- “Ela tinha acabado de se formar, cheia de vida, cheia
cer uma matéria, um título. Sem ela para ouvir minhas de planos, cheia de sonhos. Tudo era perfeito: famí-
lia, amigos, ia começar a trabalhar naquela semana.
histórias pessoais, compartilhar os raps recém-lança-
Aconteceu, injustamente, mas aconteceu. Fazer o quê?
dos, tirar fotos dos grafites pelas cidades afora, divulgar
Ela se foi, e como diz a música, cedo demais. Ela não
o livro, me perguntei como poderia usar o hip-hop e a cul-
poderia ir assim, sem dizer adeus, sem escrever os livros
tura marginal para impedir que mais pessoas morressem
que queria, sem conhecer os lugares que havia prome-
de uma forma tão estúpida. Questionei-me por que tan-
tido, sem realizar tudo que pretendia. Ela simplesmente
tas pessoas morrem e nós perdemos a batalha da vida não poderia deixar para trás tantos sonhos... Mas deixou!
para o mundo das drogas. Não compreendi como ela,
uma jornalista com um livro tão rico sobre uma cultura Por mais que tentemos explicar a vida, ela tem seus
mistérios que só o outro lado pode nos fazer entender.
marginal, pôde esquecer todo conhecimento e embarcar
Quero me lembrar de uma menina de olhos azuis, que
num prazer momentâneo que lhe roubou a existência.
me olhava nos olhos quando falava, que ria de tudo, que
Ainda procuro a resposta, mas me consolei por saber que me abraçava quando as coisas não estavam bem, que
ainda tenho a cultura onde posso me amparar e também me passava cola nas provas e que, assim como eu, tinha
desenvolver tudo que me faz doer a alma. Naquela mesma um sonho: ser jornalista.
época, precisei imprimir alguns poucos exemplares do
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Valeu a pena!!!
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É um livro gostoso de ler, com conteúdos específicos, poe- a um pedido mútuo de desculpas e nos tornamos amigos.
sias, histórias e curiosidades únicas. Um material que é, Trocávamos mensagens diárias a respeito da cultura, dos
com certeza, um registro histórico-cultural, daquele que nossos projetos e de nossas vontades.
é o maior movimento social dos últimos 30 anos. Esta
obra, contribui, inegavelmente para dar mais visibilidade
a uma cultura que carrega em sua face, o olhar do pre-
conceito, da ignorância, da desigualdade e da exclusão a
partir daqueles que desconhecem, rotulam ou ignoram.
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O hip-hop é uma cultura desde o dia 12 de novembro de o hip-hop escolhe a maior de todas as armas: a cultura.
1974, quando o DJ Afrika Bambaataa o batizou, no bairro Uma cultura marginal, mas que não é propriedade dos
do Bronx, gueto de Nova Iorque, na tentativa de congre- grandes, não é da elite, nem da burguesia. É a cultura de
gar os negros do local para atividades artísticas, subs- quem foi capaz de criá-la e levá-la adiante. É a cultura
tituindo as brigas entre as gangues pelas rachas entre das ruas, do povo.
as crews (grupos) de break ao som do DJ, da voz do MC,
O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente
sob os grafites nos muros. Quando Bambaataa resolveu
no gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e,
batizar o hip-hop (termo em inglês que, na tradução lite-
hoje, auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta
ral, significa saltar movimentando os quadris, mas que,
cultura marginal traz de volta os sonhos daqueles que
na prática, vai muito além disso), o fez na esperança de
carregam o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva
disseminar: “Paz, amor, diversão e união”, segundo as
a autoestima daqueles que antes eram forjados de
palavras do mesmo.
estorvo pela sociedade.
Quem sabe, se antes de julgar, sejam jornalistas ou
Através de expressões artísticas intensas, o povo da peri-
hip-hoppers, as pessoas pensassem, observassem,
feria encontrou no hip-hop a vontade de viver, motivação e
pesquisassem e praticassem as palavras de quem criou
a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop pro-
uma cultura?
põe com suas manifestações e expressões que mudam e
“Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconcei-
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais tos”. Texto retirado do livro “Hip-Hop - A Cultura Marginal”.
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega
O que mais dizer senão minhas próprias palavras no
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,
capítulo de abertura do meu livro, resultado de mais de
vontade, luta, marginalidade.
um ano de trabalho árduo para concluir, com muita difi-
A força que vem do lado negro, pobre, inferiorizado. culdade o curso de jornalismo. Fugindo da generalização
Atinge toda sociedade com sua forma, sua arte e sua cor. de que os jornalistas são elitizados, cá estou, militando
O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho, deba- pelo hip-hop e gritando, com ardor, o que eu penso sobre
ter as questões controversas de uma sociedade que se o texto da jornalista Bárbara Gancia.
finge de surda para este grito de protesto.
Salve!
Hip-hop é um termo que vai além. Significa cultura, mas
Paz, amor, diversão e união.
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor,
soluções, lutas e igualdade de direitos. Jéssica Balbino
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de O número de comentários sobre o texto foi expressivo e o
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta de amizades e contatos que fiz, também. A jornalista da
proteger os que já nascem condenados à morte. Persona- Folha continuou com a mesma opinião e eu, com os mes-
gens reais, cercados pela miséria, fome, desabrigo, armas mos sonhos. Entre a polêmica, me dedicava ao jornal
de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio a tantas armas que estava trabalhando. Ralava, no mínimo, dez horas
que eles podem escolher no jogo do “matar ou morrer”, por dia e tinha pavor de perder o emprego.
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Para me especializar, fiz a inscrição em um curso de exten- Grande mercado, que, quando emprega, escraviza. Tem
são universitária na faculdade existente na cidade. Seria gente que trabalha dez, doze horas por dia, sem falar do
durante quatro sábados das 12h às 18h. Empolgada com horário em que levanta, para pegar as conduções e che-
a possibilidade de aprender um pouco mais sobre antro- gar cedo no trabalho, antes que o patrão olhe feio.
pologia, a disciplina que era carro-chefe do curso, me ins- A capa da revista “Carta Capital” (que pouca gente lê,
crevi e aguardei com total ansiedade o início das aulas. porque é cara, linguagem culta, não fala para o povão) –
e as revistas de fofoca são mais interessantes, nos tiram
Combinei com a editora do jornal que trabalharia até 12h e
da rotina maçante – deste mês traz jovens diplomados
voltaria após às 18h, além de adiantar algumas matérias
que não conseguem emprego. Em determinado trecho da
frias para não deixar ninguém na mão. Mas, no sábado
reportagem, alguns jovens da classe média, atualmente
marcado, logo no terceiro mês de emprego, me descobri
em crise, dizem que não farão estágio, tampouco vão
uma escrava moderna. Com uma raiva que não cabia em trabalhar por um salário de R$ 1 mil. “Isso seria o mesmo
mim e me fazia lembrar e recitar mentalmente trechos que prostituir a minha profissão.” É o que dizem, porque
do livro “Manual prático do ódio” do Ferréz, eu, que já pensar, ninguém pensa mesmo.
havia escrito seis matérias naquele dia para deixar o tra-
Já na capa da “Caros Amigos”, que menos pessoas leem,
balho adiantado e não pude ir no curso por pura impli-
traz a reportagem “Como é a cabeça dos estudantes de
cância e jogos de poder, escrevi para o site Ciranda o
jornalismo”. A resposta está dentro da reportagem. É uma
seguinte texto:
cabeça vazia, alienada e na maioria das vezes, elitista.
Queria me qualificar. Paguei um curso que poderia fazer, Gosto bastante do texto porque foi um dos primeiros em
quatro sábados à tarde. Mas eu trabalho no sábado à que pude misturar jornalismo e literatura marginal numa
tarde. Talvez se eu ficasse doze horas por dia durante a mesma fórmula e que deu certo. Eu podia imaginar, mas
semana, adiantando as minhas matérias e mais umas não tinha a certeza de que, mais adiante, muitos textos
quatro horas no sábado, eu conseguiria ir para o curso e construções semelhantes me aguardavam.
sem que meu patrão percebesse ou me xingasse. Arris-
quei. Paguei o curso, relativamente caro, perto do que Poeta do gueto
ganho. Animei-me em conhecer um pouco mais sobre
um determinado assunto. É na área que eu pretendo Hip-Hop, literatura marginal e o sistema são discutidos
mestrado. Fodeu. Meu patrão está descontente. Quer pela escritor da periferia Alessandro Buzo.
um jornal feito só para ele. Estrutura? A gente tem que se Palavras... pedras... duras palavras que mais parecem
virar, no final do dia ele quer matéria polêmica. Sábado à pedras e que ecoam dos lugares mais distantes, lá da
tarde... Fiquei sem o curso, sem a grana e frustrada. Na favela, como um grito ensurdecedor, sem ligar para
cabeça dos estudantes de jornalismo não passa muita regras gramaticais, a poesia da periferia transforma
coisa. Na minha, que já me formei, milhões de questiona- as letras em desabafo, em poesia e recria um estilo: a
mentos, dúvidas, incertezas e uma imensa tristeza, por literatura marginal.
não conseguir sair do lugar, dentro do nosso sistema. Se
“É um tapa na cara do sistema”, afirma o escritor Ales-
estiver animada, à noite vou a um evento de hip-hop, bus-
sandro Buzo, 34 anos, ao se referir ao estilo de escrita
car na minha cultura, marginal, algo que ainda me faça
dos poetas do gueto.
sonhar... E se estiver animada, escrevo uma matéria.
O escritor, que teve seu primeiro contato com a cultura
O texto continua no ar e recebe comentários até hoje. É
hip-hop quando esta chegou ao Brasil, há mais de vinte
normal que pessoas que frequentam o site tenham opini-
anos, é autor de quatro livros independentes no país. O
ões parecidas, sobre luta, desigualdade e escravidão men-
primeiro deles é intitulado “O Trem - Baseado em fatos
tal. Naquele dia entendi que não há parto sem dor e que o
reais”. O segundo, traz o nome que Buzo usa na sua marca
descaso é a melhor arma para que saiam bons textos. e no blog no qual relata seu cotidiano e as indignações
Fui convidada pelos moderadores da “Ciranda” a escre- contra o sistema: “Suburbano Convicto - O Cotidiano do
ver textos com uma periodicidade maior. Topei. Afinal, Itaim Paulista”.
era meu trabalho sendo reconhecido. A partir daí, per- Em 2005, Buzo lançou seu terceiro livro, chamado “O Trem
cebi que havia voltado a escrever como deveria ser. Com - Contestando a versão oficial”. Em 2007, lançou “Guer-
a alma, com o coração, com a experiência da quebrada. reira”, o primeiro romance de uma série de fatos reais e,
por último, em 2008, o “Favela Toma Conta”. Quando ques-
Como uma manifestação de amizade ao Buzo, após as
tionado sobre a maior dificuldade em ser um escritor mar-
brigas por conta da entrevista numa revista, resolvi fazer
ginal, Buzo afirma: “Minha maior luta é conseguir vender
uma matéria com ele e soltar no blog, no “Ciranda” e muito
os livros de mão em mão, de mano em mano.”
tempo depois ela também entrou no jornal como parte de
uma série especial que criei.
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No entanto, ele conta, feliz, que o livro “Guerreira” será blogs ligados ao hip-hop e atuo, também, como repórter
relançado no meio deste ano por uma editora grande, colaborador para a revista Rap Brasil. Tento ajudar de
com distribuição nacional nas livrarias. Fora os trabalhos várias formas”, conta.
independentes da literatura, Buzo participou de coletâ-
neas como “Rastilho de Pólvora - Antologia poética do E no dia a dia...
Sarau da Cooperifa” e “Literatura Marginal - Talentos da “Meus contos são ficção, mas sempre relatam histórias
escrita periférica”, organizado por Ferréz. que poderiam ter acontecido. Vejo acontecer parecido na
minha quebrada”, informa Buzo, quando questionado a
Informação é fundamental
respeito de como é a literatura marginal que ele produz,
“Hoje, 90% do que eu ouço em casa é rap nacional, desde e diz ainda: “Me baseio no meu cotidiano, passo para o
que me envolvi mais com a cultura, passei a promover papel as dificuldades do dia a dia”. Para o escritor, a lite-
eventos, vender shows de grupo, só depois de pesquisar ratura marginal assusta o sistema, porque segundo ele:
e me informar sobre o movimento através de jornais e “A elite pensava que não sabíamos nem ler e, agora, esta-
revistas é que eu virei escritor”, conta Buzo, lembrando mos escrevendo livros. Só tem conhecimento quem pisa
que a boa informação dentro do hip-hop é fundamental. no barro, quem sobe e desce o morro, quem atravessa
suas vielas. Acho que a literatura marginal é importante,
Ao referir-se ao real significado da cultura, o escritor,
porque a cena está forte e não é só modinha.”
que dedica-se a vários eventos e projetos sociais,
afirma que a palavra que lhe vem primeiro a mente é ati- Buzo, atualmente, tem uma rotina tranquila, um pouco
tude. “Quem é do hip-hop não fica rebolando a jaca nem diferente até do que da maioria dos moradores do Itaim
ouvindo modinhas, são jovens mais instruídos”, afirma. Paulista. “Acordo cedo, passo a manhã com minha esposa
e meu filho de sete anos, pois gosto de tomar café em
Dentre os trabalhos atrelados ao hip-hop, Buzo conta
casa, tranquilamente, com eles. Depois vou trabalhar
que promove o evento “Favela Toma Conta”, que já teve
na DGT Filmes, uma produtora de vídeos, onde faço o
11 edições, em que grupos de rap, famosos da cena pau-
horário de 12h às 19h. No meio tempo, escrevo minhas
listana como o extinto RZO, De Menos Crime, Thaíde,
colunas, atualizo meus blogs e faço palestras e oficinas.
DMN, Expressão Ativa, Tribunal MC’s, Cabal, entre outros.
Assim é meu dia a dia”, relata o autor, que diz adorar
“Geralmente são festas na favela, sem cobrar ingressos. O
música, cinema e leitura, mas “detesto orkut, programas
objetivo é promover o entretenimento para a periferia”, diz.
de fofoca, novelas, reality shows, falsidade e gente que
Através do conhecimento, o 5º elemento do hip-hop, só reclama”, desabafa.
incorporado na cultura posteriormente, pela Universal
Zulu Nation, Buzo montou uma biblioteca comunitária no Dos problemas e soluções
bairro onde mora, a fim de levar informação e entreteni- “A elite precisa entender que não dá para se morar em um
mento, através da literatura, para as crianças e jovens palácio ao lado de uma favela, então, é utopia acreditar
carentes do Itaim Paulista, Zona Leste da cidade de São no fim da desigualdade social”, afirma Buzo, convicto. O
Paulo, onde vivem 320 mil habitantes. “Pelo 5º elemento escritor não vê o fim da desigualdade social no Brasil,
eu também participo como colaborador de vários sites e alegando que ela sempre existiu, mas acredita em uma
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voz alta no meu quarto. Nenhum murmúrio. Propus uma alguns textos do livro e alguns materiais colhidos nas
roda e um bate-papo. Cansei de ouvir minha própria voz. pesquisas, como textos em revistas, letras de musica e
A sensação era de que os garotos queriam testar minha histórias de personagens reais do hip-hop.
vontade e disposição de voluntária para lhes apresentar
Quando passei a falar a linguagem deles fui aceita de
à literatura feita nas quebradas.
forma melhor e quando lhes mostrei o texto “O homem
Com a persistência nata de quem vem do gueto, man- do gueto”, muitos passaram a se interessar. A oficina
tive o sorriso no rosto e a mesma garra com a qual ide- era básica. Líamos, numa roda formada, os textos que
alizei utilizar o hip-hop para mudar vidas. Mudei a abor- levava e discutíamos alguns aspectos. Na sequên-
dagem e contei uma história pessoal. Notei uma leve cia, lhes passava algumas atividades e perguntas para
mudança de expressão. O tempo da oficina daquele serem respondidas em casa e levadas na próxima vez.
mês estava acabado.
Mesmo com as dificuldades do espaçamento das ofici-
Foi assim que comecei e, logo na primeira vez, me senti nas, o saldo estava sendo positivo. Pelo menos comigo,
não exatamente triste, mas decepcionada, porque os todos eles mudaram a postura e se mostraram mais
estudantes não se mostraram exatamente empolga- interessados. Claro que isso aconteceu de forma grada-
dos. Não tive muito tempo para chorar e, tampouco, tiva, quando fui mostrando que já havia enfrentado as
alguém para me consolar. No meu universo de conví- mesmas dificuldades financeiras, os preconceitos, mas
vio, as pessoas que estava lidando achavam loucura eu sempre com uma diferença: a de gostar de ler e escre-
perder o pouco do tempo livre que tinha com garotos ver. Algum tempo depois um garoto trouxe um pequeno
que, segundo elas, não tinham qualquer futuro, e tam- texto. Devia ter umas oito linhas e falava sobre o pai
pouco interesse pela literatura, mesmo que ela fosse bater na mãe, mas escrito de uma forma bem sutil, então
ligada a uma cultura marginal. o incentivei a escrever mais e, exceto pelos erros grama-
ticais, que até eu tenho, aos montes, ele estava escre-
Como vim de onde eles estavam julgando e talvez, em
vendo muito bem.
algum momento, tenha sido também uma estatística ou
alguém que, para eles, não deveria estar estudando ou Sem que eu, os professores ou mesmo aqueles jovens
mesmo apreciando a leitura, dei a cara para bater e con- percebessem, a literatura já havia tomado parte na vida
tinuei, sem esmorecer. deles e o velho estigma de que o brasileiro não gosta
de ler estava sendo deixado de lado. Por serem inician-
Na segunda vez, passei a notar que o motivo da falta de
tes, além dos textos que distribuía, sempre retirados de
interesse era muito além das oficinas que eu propunha.
livros do Ferréz, Sérgio Vaz, do blog do Buzo ou ainda que
A escolha de quem iria participar era feita de acordo
eu mesma havia escrito, gostaria que eles lessem muito
com aqueles que se recusavam a assistir as aulas e cau-
para as próximas oficinas e fiquei bem feliz por ver que
savam algum tipo de transtorno na escola, então eram
a sugestão que dei, adequada para a idade deles, foi a
obrigados a ir, uma vez por mês, no período noturno,
coleção do Pedro Bandeira, autor brasileiro que trazia
assistir a uma oficina. De forma simples, comecei com
a história de um grupo de adolescentes aventureiros e
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acostumados a resolver problemas incríveis, chamados No jornal, em curtos períodos, matérias sobre volunta-
“Os Karas”, que tinham uma garota como parte do grupo, riado e pessoas que praticavam o bem em comunidades
foi bem aceita. carentes eram frequentes e foi durante uma entrevista
que descobri uma associação em outra parte da minha
Quase todos conseguiram pegar, na biblioteca da pró-
quebrada.
pria escola, os livros do Pedro Bandeira e pela história
ser também próxima da realidade, passaram a discutir No Jardim Kennedy II, uma senhora mantinha uma sede
entre si e, assim, chegaram com a novidade: onde mães aprendiam tricô, crochê e pintura em panos
— Olha, dona. Você falou que ler é bom e, realmente, é mesmo.
de prato, tendo a chance de aprender algo e ampliar a
Estamos nos sentindo os Karas dos livros, tem mais alguma renda familiar, ao mesmo tempo em que os filhos fica-
indicação, é? vam como monitores, recebendo aulas de capoeira ou
dança. Propus a ela um evento pequeno de hip-hop, tal-
Puxa, já não cabia mais nos meus 100 quilos, de tanto
vez em um domingo – quando tinha mais tempo – e as
orgulho e felicidade. Eles, que nunca haviam tido inte-
opções de lazer e ocupação para as crianças eram nulas.
resse por qualquer tipo de leitura, estavam me pedindo
sugestões. O bacana mesmo era observar que aqueles Organizei, junto com os amigos da antiga, um evento
jovens, até então sem qualquer perspectiva de futuro, pequeno. Apenas um minishow dentro da sede com
estavam adquirindo senso crítico através da leitura, for- alguns textos lidos e distribuídos. O ponto alto foi quando
mando a própria vida com caráter e humildade, além de dois dos garotos da oficina apareceram no local, con-
muita coragem para seguir adiante, vencendo as dificul- ferindo o que estava acontecendo e me reconheceram
dades diárias do submundo periférico. nessa ação. De repente, senti que um resultado, mesmo
que pequeno, estava surgindo, sem qualquer exigência.
A vida é mesmo engraçada. Nestes momentos que eu
lembrava de palavras de agitadores culturais que sempre
me incentivaram. Eles diziam que, com pouco, podemos
fazer toda a diferença e bastaram poucas oficinas para
que aquela meia dúzia de garotos com comportamento
ruim estivessem dedicando boa parte do tempo à leitura.
Em outro encontro um deles veio me contar que tinha
encontrado um livro do Ferréz na biblioteca da região,
onde ele havia feito uma ficha para empréstimo, e que
estava tentando ler e entender mais. Percebi que a lite-
ratura tinha ganhado a quebrada e ambas nunca mais
seriam as mesmas. Pequenas conversas como estas me
faziam ter mais ânimo de prosseguir e, por ser uma pes-
soa do bairro, talvez tenha facilitado também as coisas.
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almoço e ainda tinha que almoçar em restaurante, o que estar envolvidas com outras atividades e ele não atra-
descontrolava o orçamento, mas, mesmo assim, era palha em nada, além de ser super dinâmico – é possível
muito bom poder falar para um grande número de pes- entrar ao vivo, pelo telefone ou celular, de qualquer local
soas e fazer parte do programa mais ouvido da rádio. e passar uma informação em tempo real – e ter uma lin-
Durante a segunda participação também pude falar guagem coloquial, entendível por qualquer pessoa, seja
mais sobre os projetos sociais das oficinas, eventos de ela alfabetizada ou não. Enquanto ele é tudo isso, o jor-
hip-hop e mais sobre o livro, a experiência de vivenciar e nal impresso é mais profundo, mais detalhista, com uma
reportar esta cultura marginal e também, como era ser notícia mais apurada, mais firme, mais consistente: um
repórter recém-formada e tudo mais. Eram duas horas documento.
que passavam tão rapidamente que eu ansiava por
Foi uma época de muito encanto, quando podia me
novos convites.
envolver com as duas atividades e me deliciar com
O pessoal da rádio gostou das minhas participações e cada uma delas. Eram dias de muito trabalho e super
apenas alguns dias depois a Neusa me convidou para lotados de afazeres, entretanto, eu tinha de fazer tudo
fazer parte de um programa matinal da AM que tinha o naquela época. Várias vezes, no Mix, o Francis me dei-
nome de “Debates Populares”, quando assuntos daquele xou ler textos meus, feitos recentemente, ao vivo, além
dia eram postos em pauta e discutidos com jornalis- de divulgar textos em blogs, sites, no jornal e sempre
tas, políticos, apresentadores, populares. Tinha quinze comentar das oficinas.
minutos de duração e era apresentado pelo Ricardo Luiz,
Pelo MSN, onde mantínhamos contato direto, sugeria
locutor, ex-dançarino de street dance – começou no hip-
entrevistados e pautas e sempre puxava sardinha para o
hop no início dos anos 1990, assim que ele chegou na
lado do hip-hop, claro, como quando pude levar, pela pri-
cidade – e, também, gerente geral da rádio. Pelo ponto
meira vez, o UClanos para participar do programa e tocar
em comum – a cultura hip-hop – também nos tornamos
ao vivo algumas das novas composições do grupo. Outra
colegas e eu passei a participar, ao menos uma vez, dos
vez foi quando Francis me ligou desesperado pedindo
“Debates Populares”.
que eu participasse do programa que iria um grupo novo
Com participações simultâneas na AM e FM da rádio, de rap na cidade e que ele queria alguém que entendesse
fiquei um pouco mais conhecida na cidade, o que faci- para entrevistá-los.
litou as minhas incursões em outras escolas, centros
Após este programa, a dona de uma autoescola que fica
comunitários e bairros para pequenas oficinas, mesmo
em frente ao estúdio da rádio conseguiu meu telefone
com um único dia ou período de duração, mas que, pelo
pessoal no jornal e me ligou pedindo o contato do grupo,
que podia observar, transformavam a realidade daque-
que fez uma música que se trata de um alerta sobre
las crianças e jovens.
o trânsito e a direção perigosa e ainda fez questão de
Sempre acreditei – e já mencionei aqui – que vejo o rádio comprar um livro, me fazendo prometer que quando eu
como o veículo de comunicação mais democrático que lançasse um segundo, guardaria um exemplar para ela.
existe, pois enquanto as pessoas ouvem o rádio podem
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O reconhecimento do rádio também era uma coisa que Quando eu ia sozinha, no período da tarde, entrevistar
me deixava bastante feliz. Por ser tão abrangente, muita alguém, no outro dia passava esta entrevista ao Edu e
gente ficava se perguntando como eram as pessoas que elas iam ao ar, com as minhas perguntas, intervenções
atuavam lá. O Francis, a Neusa, outros apresentado- e com a minha voz.
res e até eu mesma e quando descobriam orkut, MSN,
Outro fator positivo era a popularidade concedida pelo
e outras ferramentas virtuais, não paravam de escrever
rádio, que me impulsionava ainda mais a buscar outros
querendo ver pessoalmente e tudo mais. Aí então per-
trabalhos voluntários e sempre ligados à cultura marginal.
cebi o valor e a responsabilidade das informações.
Minha parceria com o Edu continuou, estávamos sempre
juntos, fazendo as matérias pela manhã e tentando pra-
ticar um jornalismo responsável no município, quando,
numa segunda-feira bem cedo, meu telefone toca.
— Alô.
— Jéssica. Bom dia. (reconheci a voz bem impostada de
locutor de rádio).
Interrompi:
— Fala Francis! O que você manda?
— Você pode me salvar? A Neusa está doente e não
vem trabalhar hoje. Estou desesperado, não sei fazer o
programa sozinho.
— Claro, pode contar comigo. Às 11h, estarei aí.
Será mesmo uma ironia? Do lado de lá, no asfalto, a “burguesia” delicia-se com o
fato irônico, tentando explicar como ele foi descoberto,
Casas sem reboco, dependuradas nos morros e encostas,
contanto piadas acerca da situação. A imprensa adora,
vielas sujas e abandonadas, o mau cheiro dos esgotos a
é mais sangue estampado na primeira página. É uma
céu aberto misturam-se com o mau cheiro da violência.
branda denúncia ao sistema?!
Milhares de crianças estão sem escola, envolvidas com o
tráfico de drogas. A violência é generalizada. Exploração A solução? Ninguém conhece. Se conhece, desconhece.
do trabalho. Subemprego, ônibus, trens e metrôs. Chaci-
O menino que queria o campo de futebol prometido sonha
nas e invasões policiais.
a noite, com uma bola nova, um par de chuteiras, e um
Este é o retrato da senzala moderna, mais conhecida campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de espe-
como favela, periferia ou gueto. Crianças estão jogadas, rar, crescer para poder virar ladrão, traficante e respei-
largadas por todos os cantos, tentando fazer do duro e tado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele não
sofrido dia a dia algo mais leve e alegre. Os campinhos de morrer e cair na cova de mais um cemitério que poderia
futebol estão presentes em toda parte, na terra batida, virar quadra esportiva.
com traves improvisadas e bolas roubadas.
E mesmo contra a vontade de alguns, eu pulei para o
“— Aqui não era para ser um campo de futebol?” pergun- lado de dentro do muro. O próximo passo era aguardar
tam alguns garotos ao se depararem com um cemitério a impressão e acompanhar os passos por e-mail. O fei-
clandestino no meio da favela. tio da capa. Cada autor também deveria responder uma
Sim, a sociedade promete, a elite ironiza, e a guerra con- entrevista para o Buzo, que iria para o site Buzo Entre-
tinua. A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco vista e em uma das principais perguntas, sobre como
de quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo, estava sendo participar da coletânea, eu disparei: “Só
como indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas é positivo” e ainda pontuei ser por conta dos amigos fei-
desesperadas, de quem já previa o futuro do filho. tos, a chance de praticar a profissão e também de fazer
bons e grandes amigos. E foi justamente isso que ficou,
A cena é típica em qualquer “submundo” brasileiro. E, por
até porque os 30 exemplares recebidos por cada autor
mais que os habitantes dos morros gritem por socorro, a
resposta vem como um tiro de fuzil, disparado por poli-
acabariam rapidamente, mas as portas abertas e os
ciais, toda semana na quebrada. contatos feitos seriam por toda jornada.
Aliás, a polícia e a sociedade matam mais do que a AIDS. E assim foi. No dia 25 de setembro de 2007 – data do
Uma situação irônica? Acho que mais triste e desespera- aniversário do Buzo – estava marcada a festa de lan-
dora do que qualquer outra coisa. çamento na Ação Educativa, em São Paulo. Tudo era
novidade. Embora os autores marginais estivessem lan-
Que futuro tem a criança que dribla a bola em meio aos
çando livros com uma frequência cada vez maior, ainda
corpos caídos na favela? Pelos becos e vielas também
não era semanalmente e o lançamento fez um pouco de
há outros, esperando uma vaga no novo “cemitério” que
está sendo construído.
barulho e chamou atenção.
234 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 235
236 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 237
Antes de ir comuniquei aos garotos das oficinas e todos anos e uma amiga que conhecia pela internet há exatos
ficaram muito orgulhosos, afinal, o que eu falei logo nos dez anos, com quem já havia trocado todo tipo de confi-
primeiros encontros estava realmente acontecendo e dências, mas nunca tinha visto pessoalmente.
era época de colher os frutos e um trabalho bastante
Em uma noite cheia de primeiros encontros e também
árduo. Para faltar ao emprego, tive de deixar matérias
reencontros, me lancei ao fundo de mim mesma e reen-
frias prontas e pedir, meses antes e com muito jeitinho
contrei minha essência, meus sonhos, minhas verda-
ao meu patrão, que eu sabia, não gostaria que eu fosse.
des. Nos olhos de cada um dos participantes que sei que
Não havia como não ir.
estavam ali após um dia duro de trabalho e que, mesmo
Emoção. Assim pode ser resumido, seguramente, um assim, estavam produzindo literatura, e falavam de suas
dos dias mais felizes da minha vida. Entre muitos livros, vidas por meio dos livros. Registravam com palavras,
revistas e publicações de todos os cantos do Brasil, eu poesias e lançamentos de livro nossa história de guerra
deixei a sede da ONG Ação Educativa mais de 0h, acom- urbana, civil, de opressão e descaso. Encontrei-me com
panhada pela minha família e com a alma leve. Eu havia o povo que quero ao meu lado e em que acredito. Per-
conseguido e o livro “Suburbano Convicto” estava publi- cebi o tipo de trabalho que queria fazer e a urgência com
cado, pronto para ganhar as várias periferias brasileiras. que isso precisava acontecer na minha quebrada. Fiquei
emocionada com cada autor que Buzo chamou ao palco
Este dia tão importante começou na terça-feira pela
e antes de entregar o microfone, falou um pouco da “bio-
manhã. Fiz uma extravagância para o meu salário e
grafia” e da quebrada da pessoa. Não senti meus pés no
fui ao salão de cabeleireiro. Tingi e fiz escova. Pintei
chão quando foi a minha vez, mas não me esqueço da
as unhas. Poucas foram as vezes em que fiz isso fora
cena. Embaixo do palco, meus primos me fotografavam.
de casa. A verba curta não permitia, mas para o lança-
Minha amiga-irmã que era de Poços de Caldas e estava
mento de um livro era obrigatório.
morando em São Paulo para tentar “ganhar a vida” me
Durante a viagem até São Paulo me deixei chorar por olhava cheia de ternura. Minhas sobrinhas se deslum-
um longo trecho, principalmente quando passamos por bravam com toda a cena e meus pais e irmã sorriam
Mogi Mirim, cidade onde vivia a Anita. Lamentei de ver- orgulhosos. Os espectadores se expressavam curiosos e
dade o fato dela não estar mais viva e não poder parti- atentos. Estavam ali porque queriam, ninguém os tinha
lhar da minha felicidade. forçado a nada e era o nosso sarau, o nosso lançamento,
Seguimos e o tempo voou até o horário do lançamento, às a nossa poesia e a nossa vida.
19h, no centro. Levei toda a família — pais, irmã e sobri- O Buzo sempre fez questão de frisar que nosso livro
nhas gêmeas, na época com seis anos — além de con- deveria ser o livro e não apenas mais um livro que falasse
vidar alguns amigos que nunca tinham ouvido falar em sobre periferia. Não sei para os outros 12 autores, mas
literatura marginal, primos que cruzaram toda cidade para mim foi exatamente o que aconteceu. Chegou para
apenas para me ver e prestigiar o lançamento, além de somar e mudou tudo, para melhor.
um amigo de muito tempo — do litoral — que não via há
238 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 239
Jéssica és bela
Suas palavras te cercam
Seu sorriso se preza
É uma linda guerreira aqui na terra.
242
244 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 245
Poços, pedindo carona e hoje eu moro na rua. Durante mal, mas não acho serviço. Quero sim, poder trabalhar e
o dia eu guardo os carros e à noite eu fico embaixo de alugar uma casa”, reforça.
alguma ponte ou cobertura.”
O psicólogo residente em Poços de Caldas, Fábio Rimens-
O garoto, que usa roupas e sapato folgados para o corpo chneider, acredita que o que faz a criança ou adolescente
e tem o cheiro de quem não toma banho há bastante abandonar o conforto do lar, por mais humilde que seja, e
tempo, diz que com as moedas que ganha olhando os car- viver na rua são um grupo de fatores como a questão eco-
ros, compra comida. Os banhos são tomados em postos nômica e a questão das relações interpessoais. “Ao lidar
de gasolina e as roupas foram ganhas na rua. com menores carentes e infratores, ao checar a história,
descobrimos um lar absolutamente caótico, rompendo
Para suportar as baixas temperaturas do inverno poços-
com o equilíbrio familiar e, se esse cuidado básico não
caldense o garoto diz que tem um cobertor e que deixa
vem, a criança tende a comportamentos delinquentes ou
guardado embaixo dos trailers que vendem lanches na
vai às ruas, buscar algum reconhecimento, e isto leva a
praça.
uma perversidade e estas crianças acabam sendo víti-
Para os moradores da cidade, como o motorista particu- mas de organizações e facções criminosas. Surpreende-
lar Wellington Silva Alves, encontrar crianças moradoras me que isto tenha chegado em Poços. É duro sermos tão
de rua em Poços de Caldas é uma situação estranha. “Eu fatalistas, mas quando uma criança sai às ruas e tem de
me surpreendi muito ao ser abordado por este garoto, sobreviver ali, já há um rompimento com o futuro dela.
porque eu sempre trago meu patrão aqui na praça e esta Não estou generalizando, mas na maioria das vezes é
é a primeira vez que eu vejo alguém na situação dele. assim que acontece”, pontua.
Infelizmente a desigualdade social está no Brasil todo e
a gente pode ver que a tendência é piorar cada vez mais. Assistência Social
Poços de Caldas sempre foi vista como uma das cidades A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas)
com o maior Índice de Desenvolvimento Humano e agora tem um trabalho chamado Atendimento Cidadão, que
está recebendo este tipo de coisa, vemos muitas pes- recolhe as pessoas em situação de risco das ruas da
soas por aí andando de carros importados, mas também cidade e as encaminha para centros de tratamento e de
vemos que a pobreza está cada vez mais intensa aqui na Desenvolvimento Humano.
cidade, infelizmente”, diz.
Por intermédio de telefones emergenciais, a Semas
Ao ser questionado sobre a vida na rua, Lucas diz que é presta o serviço de recolher as pessoas. No entanto,
feliz com a vida que leva e conta que nunca foi agredido nesta manhã, o número de telefone divulgado pela Semas
por outras pessoas, nem pela polícia. “Acho que a polí- foi chamado para prestar atendimento ao garoto, no
cia até ficou feliz em saber que estou aqui olhando os período de uma hora, nenhuma mobilização ocorreu por
carros, porque, antes, os garotos murchavam os pneus, parte da Semas.
riscavam, eu não, fico só olhando mesmo, este é o meu
trabalho”, defende. Procurada pela reportagem, a coordenadora do setor emer-
gencial da Assistência, Rosa Fleming, informou que desco-
Ele conta também que já usou drogas, como maconha, nhece o fato. “É muito estranha esta história. Não chegou
mas que parou há algum tempo. “Hoje não uso mais nada, ao meu conhecimento este fato. Estou surpresa”, afirma.
também não estudo. Já tentei procurar um emprego nor-
246 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 247
Ela diz ainda, que, em casos semelhantes, envolvendo enquanto lugar-comum, passa despercebido aos olhos
menores de idade, o Conselho Tutelar é acionado e de toda a população e se ninguém gritar ao mundo que
procura entrar em contato com a família e cidade de estes seres tratados como invisíveis existem, eles vão
origem da criança ou adolescente, buscando o melhor realmente se tornar ocultos no corre-corre do dia a dia e
encaminhamento. nada será feito, fazendo com que as cidades do interior
O Conselho Tutelar do município também disse desconhe- se transformem, mesmo que em pequenas proporções,
cer o fato e informou que, em situações como esta, o Con- em abrigos de problemas, como as capitais.
selho Tutelar da cidade de origem é procurado e enquanto
Para tentar defender isso e garantir não apenas ao Lucas,
as informações são levantadas, a criança ou adolescente
mas a outros menores que enfrentem a mesma situação,
é mantida em abrigos. “Por isso estamos lutando por uma
tentamos fazer algo.
casa de passagem para crianças e adolescentes aqui na
cidade. Fatos como este não são frequentes, mas já acon- Há muito tempo eu já me espelhava em profissionais
teceram e a nossa instrução é para que o Atendimento como a Eliane Brum, que enxergava, enquanto jorna-
Cidadão seja chamado”, diz Sandra de Fátima dos Santos lista, além do óbvio e sempre retratava histórias comuns
Lapa, coordenadora do Conselho Tutelar. de uma forma recheada de poesia e transformava a rea-
A Guarda Municipal, que é o órgão que recebe as ligações lidade, nos fazendo enxergar mais do que uma pessoa
através do plantão de emergência da Assistência Social inserida em uma estatística ou problema social. Sempre
afirma que apenas recebe as ligações e as encaminha busquei trabalhar como ela e ir além da pauta, além do
para a viatura do atendimento social que fica pelas ruas que todos vão dizer, além do que todos já sabem, além
da cidade realizando o patrulhamento. da situação visível.
“O que observamos é que os chamados aumentam durante Esta foi uma primeira tentativa e dar voz a um ser margi-
o inverno, pois muita gente fica penalizada de ver pessoas nalizado e me deixou extasiada. A repercussão também
na rua com o frio que faz na cidade. Porém, um dado inte- foi boa e, no dia seguinte, enquanto Edu e eu enfrentá-
ressante que temos aqui em Poços é que não há moradores vamos mais um dia frio em Poços de Caldas, ouvíamos
de rua. Existem, sim, pessoas morando na rua, mas em
o rádio onde um ex-vereador da cidade apresentava um
todos os casos, são pessoas que têm famílias e que por
programa matinal e discutia a manchete do jornal, que
algum desentendimento acabam indo para a rua”, conta o
havia sido a reportagem do garoto e chamava a atenção
inspetor Marcelo Bastos, da Guarda Municipal.
das autoridades para o problema.
Contudo, a Assistência Social disse que irá averiguar
A matéria foi também tema no “Debates Populares” e,
a situação de Lucas e encaminhá-lo ao melhor trata-
mento possível. desta vez, o Francis não aceitou o horário de almoço
do Edu como desculpa e praticamente exigiu que par-
Apesar da reportagem não ser nenhuma novidade nos ticipássemos do Mix. O que era para ser uma simples
grandes centros urbanos do país. No centro da cidade de matéria de rádio AM se transformou quase em um mini-
Poços representou uma cena pouco comum. Mais além, documentário, com trilha sonora e tudo, que o próprio
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Cap.05
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Cap.05
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O que ouvi foi “da próxima vez que eu for à lan house vou Periferia adentro
visitar o site” e também “vou deixar de jogar country
Quarta-feira, uma hora da tarde. O trem para. Estação
strike e ler um pouco mais”. Frases como estas, soltas Jaraguá, Zona Oeste, São Paulo, capital. Para sair do
em meio às oficinas me fazem crer que as transforma- trem é um sofrimento já que ele está parado muito longe
ções são possíveis. da plataforma e é preciso pular. É mês de julho, inverno.
Com o recurso audiovisual dos documentários e da con- Mas o sol está muito quente. Passa dos 30°C. É preciso
fiança em cada um dos garotos para emprestar os meus caminhar um quarteirão e tomar um ônibus para a Praça
Panamericana. Uma praça bonita, porém, sem muito
materiais e deixá-los circulando na roda, de mão em
verde. Tem uma pista de skate toda grafitada, denun-
mão, ficou mais fácil, também, verbalizar um pouco do
ciando a presença do hip-hop por ali.
contexto. Trabalhar com tudo isso em um horário tão
ingrato como o que eu tinha de tempo disponível era Em frente ao supermercado Panamericano também há
como um brinde, uma promoção incrível, um número vários muros e fachadas de estabelecimentos comerciais
acertado na loteria. exibindo seus grafites. Subindo uma ladeira íngreme dá
para entrar em uma viela, cheia de casas próximas. É
A maioria dos garotos que participava tinha entre 9 e 13 uma quase-favela. O real retrato do gueto, da periferia.
anos e todos pediam mais clipes de rap, mais vídeos e em Aliás, estas são as palavras que mais aparecem na lite-
um dos encontros um pedido inusitado mexeu comigo, ratura ou em qualquer coisa relacionada ao hip-hop e são
chamou minha atenção. Um dos garotos me lembrou que quase endeusadas pelos autores e ativistas.
fazia tempo que não trazia um texto novo, feito por mim.
Mas o gueto é ali mesmo, naquelas casas, com seus
Um conto talvez. Eu já havia lido “O homem do gueto”,
“muros” de madeira pichados e grafitados, com seus
“Uma brasileira”, os que estavam no “Suburbano” e algu-
aparelhos de som “top de linha”, contrastando com a
mas partes do livro-reportagem, sem falar nos textos do pobreza do lugar, e tocando rap no último volume. O rap é
Elo da Corrente, do Sacolinha e do Buzo. a trilha sonora deste pessoal, que encontra nas letras de
O questionamento me fez reparar que eu estava tão protesto uma forma de gritar para o mundo, de chamar
embalada no Jornal de Poços, cobrindo a editoria de polí- atenção da sociedade para seus problemas cotidianos.
É nessa poesia urbana que eles encontram uma forma de
cia que eu havia assumido no Carnaval e que não gostava
extravasar tudo que lhes oprime.
nem um pouco, que não tinha mais tanta disposição para
atualizar o blog ou mesmo escrever meus contos da lite- Saindo dessa rua, uma escadaria enorme tem de ser
ratura marginal. Percebi também que o tempo estava enfrentada e os moradores locais reclamam diariamente
passando e que eu precisava, com urgência, me dedicar deste percurso. No topo do morro tem um portão branco e,
mais ao hip-hop. Reformulei o blog, fiz um layout dife- descendo vários degraus, está à casa de Pow, 28 anos, inte-
rente e soltei na rede textos novos. Produzi o conto “Peri- grante de um grupo famoso na cena do hip-hop paulistana.
feria Adentro”, inspirado em uma realidade que observei Ele anda o mais rápido que pode, vai se encontrar com o
durante as pesquisas do TCC e cheguei na oficina do mês MC Eduardo, do grupo de rap e vão compor alguns sons
seguinte toda feliz, mostrando o texto: para tocar no próximo baile da quebrada.
Em foco 269
peitado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele “Falcão e os Meninos do Tráfico”, acompanhado do livro,
não morrer e cair na cova de mais um cemitério que pode- algo que também se tornou importante para as oficinas e
ria virar quadra esportiva. passou a ser trabalhado em salas de aulas de todo Brasil.
Após enfrentar o morro e chegar em casa, Pow desembrulha Outros projetos com hip-hop e literatura passaram a usar
a carne que comprou e no jornal vê o corpo do MC Eduardo. os exemplos também para promover mudanças nas vidas
dos jovens locais, e mostrar, com a clareza existente no
O grito, em forma de rap, ecoa por todas as vielas e chega
documentário, o quão ruim é a vida do crime e o destino
ao ouvido dos mais desatentos: “Falta alimento em nos-
quase único que ela leva.
sas mesas e o país é culpado.”
Sucesso pela linguagem utilizada pelos autores e ide-
Surpreendi-me ainda mais quando aquele mesmo garoto
alizadores. A mesma falada em qualquer roda de ami-
me trouxe um texto feito por ele. Era mais uma redação e
gos de qualquer bairro de qualquer periferia de qualquer
dizia sobre o que ele gostaria para a vida dele no futuro.
cidade de qualquer estado de todo este Brasil. Diante
Desinibido e diferente de todos que eu já havia trabalhado
da empolgação desta turma, convidei o grupo anterior
até então, não teve objeções quando disse a ele para ler
também, para voltar no mês seguinte e apreciar um dos
o texto em voz alta. Com a voz impostada, Rodrigo con-
encontros, reunindo as informações e vivências.
tou ao grupo que, antes das oficinas, tinha vontade de ser
músico e depois, a vontade havia aumentado. Tinha von- Para incrementar, usei da experiência no jornal para
tade de ser músico e escritor. sugerir que produzíssemos algumas matérias sobre
nossa própria quebrada. Nem que fossem apenas notas
Como eu me senti? Não preciso nem relatar que absurda-
e fizéssemos uma espécie de folheto, um minijornal,
mente feliz e lisonjeada. Embora ele tivesse alguns erros
apenas para exercitar a arte da escrita e também da
de português e uma construção ainda um pouco precária,
apuração. Alguns gostaram, outros preferiam continuar
era ótima para a idade dele e pela falta de leitura também.
nos textos e documentários. Fizemos uma experiência,
A exemplo da oficina anterior, sugeri que ele passasse mas como tudo tinha de sair do meu bolso e do meu salá-
a ler um pouco de Pedro Bandeira, que tinha tudo a rio de miséria, não deu muito certo, mas, valeu pela ten-
ver com a realidade e, novamente, o formato deu certo. tativa e experiência.
Outra sugestão que resolvi trabalhar com os meninos
Não precisava ser um projeto perfeito. Bastava que fosse
foi o “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus.
feito e vivido de todo coração e que acrescentasse algo
Sempre considerei uma grande obra e levei alguns tre-
àquelas vidas. Era suficiente que um encontro mensal
chos. Nas mãos dos garotos senti maior firmeza quando
despertasse nos jovens – nem que fosse um deles – a
eles revelaram a identificação com a autora.
vontade de driblar o péssimo ensino e a desinformação,
Outro texto fundamental e que pode ser atrelado ao mudando as consequências e os planos já traçados pela
audiovisual foi “Cidade de Deus”, de Paulo Lins. Pri- elite, que se interessa pela ignorância do povo, que sem-
meiro o livro e, por último, a exibição do filme. Um pouco pre plantou frases feitas como “o pobre não tem vez”, “o
antes havia também estourado no Brasil o documentário pobre não tem estudo”, “o pobre nasceu para sofrer” e
272 Traficando conhecimento Em foco 273
“brasileiro não gosta de ler”, “esse povo não tem nem o 3...2...1... gravando! Gaguejando de vergonha e felici-
que comer como vai comprar livros”. A elite esqueceu-se dade, ele parou, se recompôs e como um poeta em um
que a fome é um ingrediente a mais na inspiração e que o sarau daqueles movimentos do início do século, sendo
sofrimento é doce para o poeta que transforma a própria revivido atualmente pela Cooperifa, Elo da Corrente,
desgraça em revolução. entre outros, ele declamou tudo que havia escrito com
naturalidade surpreendente. A equipe de reportagem
E as mudanças — mesmo que pequenas como árvores
me fitou e como quem não acredita que um estilo literá-
que começam a florescer bem antes de dar frutos —
rio e o incentivo a leitura tenham feito aquilo, pergunta-
eram inspiradoras para que o fantasma da desistência
ram a ele o motivo do texto.
passasse bem longe do desejo de comer a fruta no pé,
debaixo da árvore frondosa em tarde quente de verão. A resposta: “A dona nos incentiva a ler e a escrever o que
estamos sentido igual a ela mesma e aos autores que ela
Assim se seguiram as oficinas de 2008, com mais faci-
traz os textos. Pensando nisso em casa eu resolvi tentar
lidade e experiência que as de 2007, e a expansão para
e saiu esse texto aí.”
outros bairros tornou-se um projeto a ser pensando,
contudo, eu precisava trabalhar e fazer pelo menos o
dinheiro das cópias dos textos e da condução para os
eventos de hip-hop.
Por outro lado, o trabalho no jornal me favorecia em con-
tatos e amizades com os colegas da imprensa, que sem-
pre me prestavam favores, como a gravação de matérias
sobre os livros e desta vez sobre as oficinas.
No encontro preparado entre o grupo de 2007 e o de 2008
recebemos a visita de uma equipe de reportagem da TV
local. Para driblar a vergonha e excitação dos garotos,
fizemos um laboratório prévio em que expliquei que esta
era a oportunidade que tínhamos — e muito rara — na
nossa existência de falar num microfone, através de
uma reportagem que seria exibida no “horário nobre” da
cidade sobre os problemas do nosso bairro e da nossa
tentativa de melhorá-los com a produção literária.
Convidei Rodrigo, autor do texto sobre o que ele gostaria
para o futuro, para ler, em frente às câmeras, a produção
que ele havia feito. Foi preciso cortar e começar de novo.
Em foco 275
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Lavar, passar e cozinhar – Empregada Doméstica Atualmente, Mary se levanta às 7h, entra no serviço às
9h e trabalha até às 17h. Apesar da violência no ônibus,
Vidas que se cruzam nos ônibus, elevadores — de prédios
prefere usar este meio de transporte, na ida e na volta, a
pobres e residenciais chiques —, supermercados, venda,
caminhar até o serviço. No entanto, anteriormente a isso,
feira e pelas estradas da vida. As empregadas domésticas
quando trabalhava como vendedora de roupas usadas,
são muitas e algumas trazem o ofício na história da famí-
aceitando inclusive doações, fazia disso seu ganha pão e
lia, com a profissão passada de mãe para filha.
a pé, caminhando trechos longos por dia, economizava o
Tema de muitas discussões, histórias e estórias, as dinheiro da passagem para comprar comida.
empregadas domésticas já viraram filmes, documentá-
Aos 15 anos, Mary foi mãe do primeiro filho, Eduardo, que
rios, textos e personagens de um Brasil real, que não foge,
hoje tem 30 anos. Também é mãe de Adriana, 25 anos.
seja onde for, capital, interior, cidade de médio porte,
Relata que sempre trabalhou para poder sustentar os
praia, montanha, sertão, riacho, as domésticas sem-
filhos, visto que o primeiro casamento não deu certo.
pre existiram, promovendo a limpeza e o bem-estar dos
patrões, em um ofício insubstituível e, quem sabe, eterno. “Eu sempre trabalhei, saía cedo com as roupas para ven-
der e só voltava à noite, quando conseguia trazer algo de
Apesar do corre-corre da profissão e do dia a dia, muitas
comer para meus filhos. Saí de casa quando vi que meu
empregadas domésticas exercem a função além das oito
casamento não daria certo e trabalhei com fome, a base
horas diárias e não são aquelas que moram no emprego,
de feijão e polenta no estômago, para aguentar. Nesta
são as que saem dele e voltam para casa, onde são ainda
época, eu ainda trabalhava com roupas usadas e dormia
“donas de casa” ou “do lar”, e realizam o mesmo serviço
em um casebre, no chão, até ganhar uma cama. Digo isso
por duas vezes no mesmo dia.
para as outras mulheres, para que elas saibam como é a
É um trabalho difícil e, por estas e outras, as empregadas força de uma mina com vontade de vencer. Temos que ter
domésticas vêm sendo, cada vez mais, valorizadas hoje uma conexão com a vitória. O que eu gostaria de colocar
em dia. Com isso, conseguem fazer valer seus direitos. A é que, mudanças são necessárias, e é assim que eu vejo,
recente conquista do depósito do Fundo de Garantia por nosso país está precisando de gente corajosa para fazer
Tempo de Serviço — FGTS — mesmo que opcional para o grandes mexidas”, relata.
empregador, é sinal de que os tempos mudaram.
Ela diz, ainda, que, hoje em dia, chega a ganhar R$ 30 por
dia, o que dá para o seu sustento porém, fala com tris-
Guerreira
teza que a patroa reduziu os dias de serviço na semana,
Parece título de livro. E é neste ramo mesmo que ela quer fazendo, consequentemente, a renda diminuir. “Eu ia
trabalhar. todos os dias, agora, vou trabalhar apenas três vezes por
Um exemplo de uma vida corrida de empregada domés- semana e não sei como vai ser. Tenho muitas contas para
tica é o caso de Marilice Bagesteiro, conhecida como pagar, colocar comida em casa, coisas do tipo. Pretendo
Mary, 45 anos, que trabalha há dois como diarista, continuar trabalhando como doméstica, mas a renda
depois de ter deixado de comercializar roupas usadas está curta até para sair e procurar emprego”, conta.
de porta em porta.
282 Traficando conhecimento Em foco 283
Mary afirma também desconhecer que exista um dia outros locais, aumentando o orçamento, visto que cobra
no calendário nacional que comemore a profissão que R$ 30 por diária em apartamentos e casas.
ela exerce, mas, deixa como mensagem, que as mulhe-
Satisfeita com a profissão escolhida, Dita relata que há
res devem lutar para alcançar os objetivos e lugares na
sete anos está trabalhando na mesma casa e diz que a
sociedade, independente da profissão.
patroa sempre foi muito boa com ela.
“Eu quebrei muitas barreiras, aquelas que são impostas
“Gosto muito de onde eu trabalho. Eu que determino
na vida das mulheres. Eu tenho um filho que tem a idade
como será o meu dia de serviço. Quando eu chego, a
do cara que eu vivo hoje, o Bagé, de 30 anos, e eu quero
primeira coisa que faço é tomar café, depois, começo o
dizer que funciona cheio de moralismos e falsos valores
meu serviço normal, mas, em um dia eu lavo, no outro eu
que não nos levam a nada. Impedindo as mulheres, prin-
passo e assim por diante”, diz.
cipalmente as domésticas e diaristas, de serem livres
e felizes. Nós temos que ter, hoje, uma livre expressão Desconhecendo o dia instituído para comemorar a profis-
do corpo, da alma e, ainda mais, do pensamento, para são, Dita garante que é feliz na profissão escolhida. “Sinto
podermos nos expressar e lutar pelos nossos sonhos e prazer em ser doméstica. Me acostumei, embora exista o
direitos”, acrescenta. preconceito, eu gosto bastante do que faço. As pessoas
sempre me dizem ‘Você não tem cara de doméstica!’, e eu
Além de trabalhar como doméstica, Mary escreve letras
retruco ‘E para ser doméstica, precisa de cara?’”, destaca.
de rap e participa de sites e blogs — diários virtuais —
que difundem a literatura marginal.
Da história...
Há vinte anos na profissão, com prazer Uma outra história, de uma também guerreira não apenas
“O preconceito é frequente, muita gente torce o nariz poços-caldense, mas do Brasil, é a vivida por Laudelina
quando digo a minha profissão”, é o que afirma a domés- Mello, que nasceu em Poços de Caldas, em 12 de outubro
tica Maria Benedita Marcondes de Lima, 56 anos, conhe- de 1904 e começou a trabalhar com 7 anos de idade em
cida como Dita, que trabalha como empregada domés- casas de família, como era típico na época.
tica e diarista há mais de vinte anos. Aos 16, inicia a militância em organizações de mulheres
“Por vestir-me bem e estar sempre arrumada, as pessoas negras e atua, principalmente, em atividades de lazer
não acreditam que sou doméstica. Ainda tem aquela visão e cultura. Para ela, essa era a porta de entrada para a
de que empregada está sempre malvestida, o que não é consciência de classe, gênero e raça.
verdade”, destaca. Na década de 1930 muda-se para Santos (SP) e começa
Para criar os quatro filhos e ajudar a pagar, inclusive a a atuar em movimentos populares e reivindicatórios,
faculdade de um deles, Dita, sempre trabalhou como filiando-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1936,
doméstica, sendo registrada em um serviço e fazendo funda a primeira Associação de Trabalhadores Domésti-
alguns bicos após o expediente. cos do país, na qual foi presidenta até 1949. No mesmo
período ajuda a fundar a Frente Negra Brasileira, a maior
Ela levanta-se todos os dias antes das 6h, enfrenta o ôni- organização da história do movimento negro, que chega
bus lotado da manhã em um trajeto de 10 quilômetros e a ter 30 mil filiados.
trabalha até às 15h. Dali, sai e trabalha como diarista em
284 Traficando conhecimento Em foco 285
Alguns anos depois, muda-se para a cidade de Campinas Elizabeth afirma ainda desconhecer o dia de comemora-
(SP), e participa, também, do movimento negro e de ativi- ção da empregada doméstica, mas diz sentir-se bem em
dades culturais e recreativas. Sua liderança, consciência ser doméstica, apesar das dificuldades.
de classe e disposição para a luta a levam a organizar e
“Com a minha filha, de 7 anos, é que as coisas se compli-
incentivar o surgimento de diversos sindicatos da cate-
cam em razão do horário. Eu tenho que deixar café pronto,
goria, projeto interrompido em 1964 com o golpe militar.
arrumar alguém para dar almoço para ela, tenho que sair
Instalada a ditadura, Laudelina é presa, entra para a
do serviço e pegá-la na escola, tudo é mais difícil”, relata.
clandestinidade e, posteriormente, passa a atuar em
comunidades eclesiais de base, formadas pela ala pro- A única coisa da qual Elizabeth reclama é de ter de fazer
gressista da Igreja Católica. o serviço no emprego, para a patroa e depois fazer o
serviço em casa.
Por conta de problemas de saúde e disputas políticas,
afasta-se, durante os anos 1970, do movimento das “São duas vezes a mesma coisa e, às vezes, é bastante
empregadas domésticas, mas volta à direção do, hoje, cansativo, mas é a luta pela sobrevivência. O que importa
Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Campinas, em para mim é o meu crescimento pessoal”, conclui.
1982. Nesse período, entra para o Partido dos Trabalhado-
res e incentiva a filiação de seu sindicato à recém-fundada No cinema
Central Única dos Trabalhadores. Existentes por todas as partes, as domésticas, que
Laudelina morre em 12 de maio de 1991, tendo como sempre fizeram um papel de pano de fundo no cinema,
único patrimônio uma casa em Campinas, que deixa de passaram às telonas, em “Domésticas - O Filme”, como
herança para o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos. protagonistas da própria história, deixando de ser as
Ali é fundada a sede a entidade. figurantes de bandeja na mão, como as donas dos con-
flitos e tramas.
Na batalha do dia a dia
O filme se passa em São Paulo na capital, centrado
Na luta diária pela vida e sobrevivência está Elizabeth no cotidiano, nos anseios e nas expectativas de cinco
Camilo, 47 anos, trabalhando há dois anos como empre- profissionais do lar. E, na mão dela, não só o cafezinho,
gada doméstica, após ter se separado do marido. mas o cardápio completo: humor, tragédia e poesia.
O fato é que, nas telonas, ou na tela diária da vida real,
Para garantir o sustento, Elizabeth acorda todos os dias
as empregadas domésticas são peças fundamentais do
também antes das 6h e vai para o trabalho, além de ter
dia a dia brasileiro, seja para uma fonte de renda, para
que se dividir entre o emprego e os cuidados com a filha
a família, ou para quem elas prestam serviços. Guerrei-
caçula, de 7 anos.
ras, ou não, as empregadas domésticas assumem suas
“Eu me separei e tive que arrumar um serviço e como a formas, seus lugares e merecem destaque, neste dia
idade não facilita, de emprega doméstica fica mais fácil dedicado à profissão.
e como eu era do lar, já tinha prática, acabei me tornando
Encontrei, mais uma vez, nas mazelas humanas, a força
empregada doméstica”, conta.
para abandonar o meu próprio limbo e voltar a lutar
286 Traficando conhecimento Em foco 287
pela minha vida, a “correr pelo certo”, como quem é do acabando, morrendo aos poucos”, relata, soluçando e
hip-hop costuma falar. com os olhos inchados de tanto chorar.
Para a segunda edição da série, preparei uma reporta- Lucas usa drogas há sete anos, ou seja, desde os 13 e
gem sobre as mães que têm filhos presos, dependentes a mãe não sabe dizer o que levou o filho a enveredar-se
de drogas e que, nem de longe, passam um dia feliz no pelo caminho tortuoso dos tóxicos.
segundo domingo do mês de maio. “É estranho e ao mesmo tempo intrigante, porque além
do Lucas, tenho um outro filho de 18 anos, porém, o outro
Infeliz Dia das Mães sequer bebe. Não consigo encontrar onde eu possa ter
A história única das mães que amam, sofrem e choram falhado na educação ou criação dele que o levou a usar
com os filhos por problemas com drogas e dependên- drogas. Na infância ele sempre foi um bom filho, muito
cia química. carinhoso, mas, ao entrar na adolescência, mudou um
pouco o comportamento, e eu demorei a perceber que
Nesta data, a reportagem traz histórias de mães des- ele estava usando drogas. É difícil, porque não sei onde
conhecidas. Mães como todas as outras, que só querem falhei com ele”, comenta a mãe.
o maior bem do mundo para seus filhos, mas que nem
sempre ouvem um “Feliz dia das mães” na data de hoje. Atualmente, Lucas não trabalha, porque perdeu o emprego
que tinha, como entregador de mercadorias para um
Em uma guerra diária pela vida, são alvos de precon- supermercado. Passa o dia todo dormindo ou ouvindo
ceito ou, até mesmo, descaso por parte da população, música e, assim que a noite cai, vai às ruas, em busca
mães que têm filhos desconhecidos e sofrem, pelo amor de drogas. Quando não as consegue, volta para casa e
que têm neles. conta histórias mirabolantes à mãe, para convencê-la
Os nomes das fontes foram preservados, portanto, alte- a dar-lhe dinheiro.
rados para nomes fictícios. “Geralmente eu choro muito, não sei o que fazer e acabo
dando o pouco do dinheiro que ganho, fazendo faxinas.
Mãe do vício
No grupo que frequento, com ajuda psicológica para
“Lágrimas, medo, sobressaltos e cansaço”, isto é o que mães que têm filhos dependentes químicos, já fui ins-
marca a rotina de Marta P., 52 anos, nome fictício da mãe truída para não dar mais, mas, quando vejo meu filho
de Lucas P., 20 anos, e que vive o drama de ter um filho sofrendo, desesperado, acabo dando a droga. Sei que
dependente químico em casa. A família mora na Zona Sul estou financiando pequenas doses de morte para ele e
da cidade e, chorando, ela conta como é o dia a dia de um isso me deixa muito deprimida”, conta Marta.
usuário de drogas e de como a família fica comprometida
Sem conseguir dormir enquanto o filho não chega, Marta
em razão do vício do filho.
passa quase todas as noites acordada, temendo o pior
“Uma mãe sempre quer o melhor para seu filho, mas, para Lucas. “Não adianta, é coração de mãe. Sempre fico
chega em um ponto em que o cansaço é tremendo, fica- pensando que vou receber uma má notícia. Já pedi até
mos sem saber o que fazer. Não aguento mais ver meu que desligassem o telefone da nossa casa, porque fico
filho usando drogas, devendo para outras pessoas, se sempre achando que vão me ligar dizendo que meu filho
foi preso, morto”, desabafa, chorando.
288 Traficando conhecimento Em foco 289
“Eu sei que meu outro filho sofre por me ver assim,
mas ele nem comenta nada. Eu não tenho mais ânimo
para nada. Trabalho porque devo trabalhar. O pai deles
também sofre bastante com isso e sente-se culpado de
alguma forma”, diz.
290 Traficando conhecimento Em foco 291
Olga destaca ainda que é bastante humilhante ter um protegê-lo, como eu gostaria de fazer, afinal, mãe é mãe
filho preso, ter de ir visitá-lo na cadeia, passar por revis- e não deixa de ser porque o filho está preso, usa drogas,
tas e todo o procedimento exigido. tentou matar alguém, sempre vou amar meu filho. Não
posso dizer que nunca fiquei decepcionada com ele,
“Eu fico muito envergonhada, até mesmo para andar na
senão, estaria mentindo, mas o amo da mesma maneira,
rua, pegar um ônibus, parece que todos me apontam
mesmo ele errado”, desabafa.
como mãe de um marginal. Meu filho não é marginal, ele
errou, sei disso, mas eu também errei com ele e me sinto Para o Dia das Mães, Olga diz que não está totalmente
tão culpada por tudo isso. Não sei nem de onde eu tiro feliz, por saber que Pedro passará longe dela, na cadeia,
forças para continuar vivendo, vir aqui na prisão vê-lo, mas, pretende fazer um almoço para os outros três filhos
trazer coisas para ele, é tudo muito triste”, relata, já com e a família deles. “Vamos almoçar em casa, fico feliz
lágrimas nos olhos. pelos meus outros filhos, mas, no fundo do coração,
sempre tem aquela dor, aquele desespero, porque eu
Na pesada sacola que Olga carrega, em direção à cadeia,
queria que o Pedro estivesse conosco”, lamenta.
ela leva alimentos, sabonetes e toalha para o filho e diz
que, mesmo sabendo que ele errou, ora todas a noites e Ouvir e relatar histórias como estas me fizeram deixar o
pede que Deus tenha piedade dele, além de tentar, com esgotamento pela rotina de lado e voltar com tudo para
pouco, zelar pelo bem-estar de Pedro, dentro da cadeia. as oficinas. Percebi que poderia fazer jornalismo e lite-
Com um olhar triste, Olga comenta que espera ansiosa ratura ao mesmo tempo, trabalhar com as ferramentas
pelo dia em que o filho sairá da cadeia, e faz planos para do jornalismo literário nos meus textos, produzir lite-
poder sentar e conversar com ele. Ela destaca, tam- ratura marginal por meio dos fatos reais que assolam
bém, que pretende procurar alguma ajuda, para tratar a nosso povo, cercados pelo preconceito, pelas situações
dependência química dele. limite, pela linha invisível do tráfico, pelo desejo de liber-
dade e pelo descaso social.
“Sou sozinha, as coisas são difíceis, mas espero conse-
guir tratar a dependência química do meu filho. Vou bus- Levei os dois primeiros textos produzidos para a oficina
car ajuda, e quando ele sair da cadeia, penso em procurar e bolei, mentalmente, oficinas futuras, além de voltar a
um serviço e ter uma vida normal. Sei que não é fácil, mas atualizar o blog e colaborar com o Literatura Periférica,
se eu não sonhar, fica ainda mais difícil”, diz. mantido pelo amigo Buzo.
Ela fala ainda sobre o preconceito que enfrenta, até Voltei, mesmo que ainda endividada, a comprar livros
mesmo para encontrar emprego, ou no bairro onde
de literatura marginal. Primeiro para alimentar a minha
reside, na Zona Leste da cidade, onde, segundo Olga, os
alma e segundo para usar no trabalho com as crianças
vizinhos, ao saberem das mazelas do filho, lhe viraram as
e adolescentes da oficina fixa e também do projeto iti-
costas e a julgaram.
nerante que eu estava pensando em criar. Com um novo
“Muitos nem sabem como foi difícil criar meus filhos e layout, o Cultura Marginal voltou a fazer jus ao nome,
dar pelo menos o que comer a eles, sem pedir nada a nin- e ao projeto, e a receber textos quase diários, além de
guém. Julgam-me e isso é fácil, mas só eu sei a dor que matérias semanais, sempre reproduzidas na coluna Às
é ter um filho preso, não poder vê-lo sempre, ou mesmo Margens da Sociedade.
294 Traficando conhecimento Em foco 295
juntos, mas, por fim, ele acabou indo para São Paulo Por cada estado e cidade que passou, Osmar guarda
comigo”, relata. uma passagem ou alguma coisa. Por não saber ler, nem
escrever, ele diz que se perde muito pelo caminho e
Durante anos, os dois viveram juntos e se ajudando.
ainda esclarece que prefere andar a pegar carona com
Fazendo bicos em troca de comida e caminhando a pé.
caminhoneiros ou viajantes. “Eu gosto mesmo é de cami-
Osmar, já não se recorda de quanto tempo levou para
nhar, como não tenho um destino certo, vou parando.
chegar a São Paulo, mas ele acredita que caminhou por
Sempre peço um pouco de comida, como, levo um tanto,
mais de um ano.
esquento em fogareiros que eu mesmo improviso e pro-
“Era difícil, porque não conseguíamos ir muito longe curo me abastecer com água, assim, vou caminhando,
ou caminhar por muito tempo, por falta de comida e observando cada paisagem, que é diferente por cada
tudo mais. Tínhamos receio de pegar muitas caronas. lugar que eu passei e isso me dá uma paz de espírito e me
Às vezes íamos até determinado ponto de carona com sinto mais perto de Deus”, destaca.
alguém que conhecíamos nos postos ou bares que ficá-
Questionado sobre a fé, Osmar ressalta que crê bastante
vamos parados”, conta.
em Deus e que se sente próximo a ele enquanto caminha
A amizade com Pernilongo durou até pouco tempo, quando pelo país afora. “Enquanto ando, vou rezando, conver-
no Rio de Janeiro, este faleceu. Osmar acredita que foi sando com o criador deste mundo tão grande e bonito,
uma vítima da dengue. que apesar das desigualdades, também tem belezas.
Basta saber enxergá-las.”, acredita.
“Ele ficou bem doente, achamos que foi dengue. Tentei
levá-lo para um albergue, mas ele faleceu. Também, já
Em Poços de Caldas
estava velho, mesmo assim, sinto falta de ter um com-
panheiro para caminhar comigo”, diz. Osmar diz que chegou até Poços após vir caminhando
pelo interior de São Paulo e conversando em bares, onde
Seguindo viagem adquiriu um gosto especial por tomar pelo menos uma
pinga por dia em cada local que passa. Assim ele desco-
Mesmo com a morte de Pernilongo, Osmar continuou
briu que aqui é uma cidade com águas termais e veio até
peregrinando pelo Brasil afora e conta que já esteve em
aqui, conhecer.
estados como a Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito
Santo, Paraná e, atualmente, em Minas Gerais. “Parado em um bar no estado de São Paulo, passou um
caminhoneiro que disse que viria para Poços e que a
Porém, desde que saiu de casa, nunca mais teve notícias
cidade era bonita, com águas quentes e tudo mais e eu
da família ou mesmo retornou para Pernambuco. “Sinto
senti vontade de conhecer, peguei carona com ele e aqui
saudade, me pergunto como minha família pode estar,
estou, acho que já tem umas duas semanas, porém,
mas não tive como retornar. Nunca tive trabalho fixo ou
pretendo ir embora semana que vem rumo a Belo Hori-
residência. Permaneço, há mais de trinta anos nesta vida
zonte”, conta.
de andarilho. Já passei em albergues e tudo, mas é difícil
me acostumar, ou ficar muito tempo num mesmo lugar, Em Poços, ele conta que se alimentou, nos primeiros
penso que o meu propósito de vida é andar até chegar a dias, com o caminhoneiro que o trouxe, depois, fez ami-
minha morte”, acrescenta zade com outros moradores de ruas e passou a comer
com eles, do alimento que os mesmos pediam em resi-
298 Traficando conhecimento Em foco 299
Por amor: bandeira arco-íris “Não demorou um mês e estávamos morando juntos no
nosso apartamento”, comentam.
Na linha entre o amor e o preconceito, casal de gays
conta como vive e relata as particularidades da vida O casal vive em um apartamento pequeno, porém muito
entre dois homens. bem decorado, por Caio, que gosta bastante de explorar
o próprio lado artístico. “É para fazer jus. Dizem que todo
“Eu amo ser homossexual e quero é pregar a felicidade,
gay se dá bem com decoração”, se diverte.
porque eu sou feliz assim. Eu respeito, mas também
quero ser respeitado”, é o que afirma Daniel Sampaio Em uma sala bem decorada e limpa, eles contam as par-
(nome alterado), personagem desta edição da série Às ticularidades de um mundo que nem sempre é exposto
Margens da Sociedade que fala sobre a vida de um casal e, poucas vezes, é compreendido. Falam de preconceito,
gay, preconceito e orgulho da causa que abraça, que vai aceitação e felicidade.
em defesa de homossexuais.
O primeiro momento
Aos 27 anos, Daniel vive com um outro homem, Caio Pas-
choal*, 26 anos. Ele conta que eles se conheceram em Para ambos, é difícil falar do momento em que se acei-
uma boate voltada ao público gay na cidade de São Paulo taram e assumiram como homossexuais e cada um tem
e não se desgrudaram mais. uma história diferente.
“Eu não gostava muito de sair e ir à boates gays, mas Daniel relata que sempre teve a famosa “tendência” e
naquele dia, há quase cinco anos, resolvi sair da toca e nunca se deu muito bem com os garotos de sua idade em
fui nessa boate. Assim que botei os olhos no Caio e ele época escolar. “Eu não gostava de jogar bola, brincar na
em mim, nos aproximamos. Ficamos a noite toda conver- rua e coisas desse tipo, mas não entendia o porquê. Na
sando e bateu, ficamos amigos já com terceiras inten- pré-adolescência, eu me forçava a fazer estas coisas
ções”, brinca, ao lembrar. e, até mesmo, namorei garotas, para me enquadrar nos
padrões sociais. Quando fiquei adulto, percebi o grande
Quem continua a narração do primeiro encontro é Caio, erro que cometi comigo mesmo. Eu não era feliz”, comenta.
que lembra que, logo de cara, se deram bem. “Eu sempre
fui muito reservado e a empatia que surgiu com o Daniel Já Caio relata que desde muito novo, assumiu a homos-
foi incrível. Na primeira noite, contei toda a minha vida a sexualidade. “Eu era garoto e contei, inocentemente para
ele e ele me contou muita coisa também. Combinamos de minha mãe, que gostava de outro garoto. Claro que foi
nos encontrarmos no outro dia para caminhar e estamos um choque para toda a família. Passei pelos psicólogos,
juntos, caminhando, até hoje”, conta. terapeutas, psiquiatras, familiares, irmão mais velho e
nada adiantou. Aceitei-me e meus pais tiveram de fazer o
Daniel é funcionário público e Caio cabeleireiro. O casal mesmo. Não adianta lutar contra algo que é da natureza,
conta que na ocasião em que se conheceram, Daniel sabe? Nunca namorei mulheres. Claro que já estive com
estava passando um feriado em São Paulo com amigos. algumas, mas acho que foi mais para desencargo de cons-
Antes mesmo do fim de semana chegar ao final, os dois ciência, para constatar que eu gosto mesmo é de homens.
já estavam de volta a Poços, para que Caio conhecesse a Hoje, gosto do homem que é o Daniel”, diz, bem-humorado.
cidade e talvez se mudasse.
302 Traficando conhecimento Em foco 303
que podemos lutar contra o preconceito utilizando nossa jando Brasil afora, vendendo bijuterias ou biojoias (bijute-
maior arma, que é o amor. Mesmo, muitas vezes, sendo rias feitas com materiais naturais como pedras, folhas de
taxados de marginais pela sociedade, o amor nos forta- árvores secas, sementes) como são conhecidas e sobrevi-
lece e obriga a lutar contra este preconceito gritante”, vendo, ou como eles dizem, vivendo o real sentido da vida.
desabafa Daniel.
A história do casal se confunde com a da maioria dos
Iniciativa brasileiros, porém, com o diferencial de que ambos
abandonaram o conforto da vida contemporânea para
Discretamente, pois onde Daniel trabalha, nem todas as viver na estrada. Aos 30 anos, Pivô já fez curso de tor-
pessoas sabem de sua vida com Caio, o casal se orga- neiro mecânico pela escola profissionalizante, SENAI e
niza em manifestações e campanhas contra a homofo- abandonou tudo isso para ser hippie, vivendo já há dez
bia e o preconceito. anos na estrada.
“Quando vamos a São Paulo visitar a família do Caio, “O que me levou a ser hippie foi a busca pela liberdade.
nos engajamos em ONGs e buscamos o conhecimento Viajar, conhecer, não ter patrão. Ganhar meu dinheiro
para aplicá-lo em Poços também. Claro que é mais difí- honestamente e curtir a vida, como os hippies de anti-
cil, pois tenho que manter a discrição que meu cargo gamente”, conta. Com um sotaque de paulistano, ele
público exige, mas não estou impossibilitado. Através conta ainda que sofre até hoje os preconceitos de viver
da Internet trocamos ideias, informações e agitamos às margens da sociedade. “É o rapa, a galera, a falta de
uma campanha virtual”, conta. cultura, tudo isso é muito, somos muito discriminados
Caio afirma também que sua afinidade com a arte vai porque queremos ser felizes”, afirma.
além dos fantásticos cortes de cabelo e da decoração do Já Tamayra conta que vivia em Manaus (AM), quando
apartamento onde vivem. conheceu Pivô em um bar, onde ele fazia bijuterias e se
“Estou desenvolvendo um projeto. Pretendo ir às peri- encantou pela história e estilo de vida do mesmo. “Na
ferias, me encontrar com jovens carentes e que tam- verdade eu abri mão de tudo, do sistema. Eu tinha uma
bém são taxados de marginais e com eles, montar uma vida totalmente diferente da que eu levo agora, mas
peça teatral para tratar justamente da homofobia e do estou satisfeita. No início, larguei tudo por amor e arran-
preconceito, da invisibilidade social e gritante desamor. jei um outro, que é o amor pela estrada. Estou viajando
Ainda não tenho nada pronto, mas posso garantir que direto e sou realizada do jeito que estou”, destaca.
assim que conseguir implantar e desenvolver este pro- Antes de se tornar hippie, Tamayra cursou até o 5° perí-
jeto, muitas pessoas conhecerão o amor e os milagres odo da faculdade de administração de empresas, traba-
que ele é capaz de fazer”, pontua. lhou no banco HSBC e conseguiu, inclusive, comprar um
carro com o próprio dinheiro. “Eu abri mão pela felicidade
Vida contemporânea x vida nas estradas mesmo, fora do sistema”, acrescenta.
“Pela estrada da vida”, assim vive o casal de hippies, Mar- Ambos definem o dia a dia como uma correria, não muito
celo Pivovarte Camargo, 30 anos, e Tamayra de Andrade, diferente dos milhões de brasileiros que se adequaram
22 anos, conhecidos como Pivô e Tayta, que passam via- às normas da sociedade.
306 Traficando conhecimento Em foco 307
“Contudo, continuamos sempre firmes. Nem pensamos O hippie conta, também, que já passou por 16 capitais
em desistir. Nosso ganha pão são nossos “trampos”, que brasileiras, o que o torna um ser humano feliz e cheio de
fazemos com muito amor e cada um tem uma história”, histórias vividas em locais diferentes do país.
conta Tamayra.
Mesmo vivendo, aparentemente, sem regras ou controles,
Ao serem indagados sobre a quantia adquirida mensal- os hippies buscam conhecimento e se interam de fatos atu-
mente com a venda dos trabalhos artesanais, os hippies ais do país, não somente os culturais, mas também política
ressaltam que não têm noção, uma vez que assim que o e democracia e, contudo, tecem críticas ao sistema.
dinheiro entra, já é gasto com comida e bebida.
“É muita discriminação, burocracia e ninguém respeita
“Um dia é maré alta, outro dia maré baixa, mas, investi- as leis, porque temos o livro da constituição que traz
mos o dinheiro em nossa história, além de alimentação, que quem faz seu trabalho honestamente, artesanal,
temos um dinheiro guardado, para ser investido numa tem direito a um metro quadrado em cada terra, só que
terra em Manaus.”, diz Pivô. a lei municipal passa por cima da federal e continuamos
nessa luta. É Brasil, né mano?”, acrescentam.
Desmistificando
Um misto entre lucidez e doideira, esta é a impressão cau-
Apesar de viverem pelas estradas, acampando nos sada por quem conversa com o casal ou fica perto durante
campings, praças e locais públicos, o casal destaca que algum tempo. Com garrafas de vinho tinto na mão, logo às
também tem casas, como a dos pais, onde passam algum 9h, eles dizem que bebem para suportar o frio que é estar
tempo quando a saudade aperta. nas ruas durante os meses mais gelados do ano.
Atualmente, em razão de uma cirurgia na hérnia, Pivô não Além das garrafas, eles têm nas mãos os apetrechos
tem viajado grandes distâncias, ficando concentrado no necessários para confeccionar bijuterias, que podem
sudeste, com paradas regulares na casa da mãe, que vive ser do gosto do cliente, feitas na hora, ou as que já estão
em São Paulo, na capital. prontas, nos mostruários.
“Minha mãe mora no Ipiranga, eu fico por lá, mas sei Ao abordar as pessoas, eles sempre ressaltam que o
lá, de repente é como se não estivesse, porque ela não dinheiro pago é para ser investido em mais uma garrafa de
admite o meu jeito, a minha vida. Mas, eu tô vivendo a vinho. “É para fortalecer o vinho da manhã”, dizem. Da con-
minha vida, honestamente”, destaca. cepção social e do senso comum de que os hippies estão
Contudo, o casal faz questão de ressaltar que não tem às margens da sociedade, Tamayra adquire uma postura
planos ou mesmo rotina e afirmam que a vida é o dia a dia. concisa e forte a respeito disso. “É coisa de gente leiga,
estão por fora, são sem cultura. Hippie é só alto astral, só
“Não tenho grandes ambições como o carro do ano, uma felicidade. Aprendi a viver fora da cultura do sistema, vivo
TV de Plasma, eu só quero curtir a vida. Se eu tiver um bem, não passo fome, bebo o quanto quero, curto o quanto
pedaço de terra onde morrer, já é válido. Eu armo minha quero e tento passar isso adiante”, acrescenta.
barraquinha no meio do terreno e já era”, comenta Pivô.
308 Traficando conhecimento Em foco 309
A cultura e movimento hippie nasceu e teve o maior Maquiagem, salto alto, vestido curto e bolsa pequena,
desenvolvimento nos Estados Unidos da América (EUA), estes são apenas alguns acessórios de Flávia Oliveira,
com uma juventude rica e escolarizada que recusava 18 anos, que adotou este nome fictício ao tornar-se
as injustiças e desigualdades da sociedade americana, travesti e começar fazer o famoso ponto, nas ruas de
nomeadamente a segregação racial. Poços de Caldas.
Na sua expressão mais radical, os jovens hippies abando- Conhecida como Flavinha, ela conta que se tornou tra-
navam o conforto dos lares paternos e rumavam para as vesti e prostituta há um ano porque quis. “Ninguém me
cidades, principalmente São Francisco. Viviam em comu- obrigou a nada, desde pequena eu queria isso e somente
nidade com outros hippies; noutros casos se estabeleciam agora eu tomei esta postura para me assumir mesmo,
em comunas rurais. Dois valores defendidos: a “paz” e o entendeu? É uma coisa que quero mesmo”, dispara.
“amor”. Opunham-se a todas as guerras, incluindo a que Por sempre ter tido uma convivência no meio de mulhe-
o seu próprio país travava no Vietnã. Defendiam o “amor res, Flavinha conta que nunca levou jeito para ser hétero,
livre”, quer no sentido de “amar o próximo”, quer no de então começou a tomar remédios e tornar-se mais femi-
praticar uma atividade sexual bastante libertária. Podia- nina, além de brincar mais com mulheres.
se partilhar tudo, desde a comida aos companheiros. A
palavra de ordem que melhor resume este sentimento foi “Eu fui criada por mulheres, sempre convivi nesse meio.
a famosa “Make love, not war” (Faça amor, não guerra). Os homens da minha casa trabalhavam, então eu sempre
vivi em meio às mulheres. Então, para tornar-me o que
Os hippies apreciavam a “filosofia oriental”, o que signi- sou hoje, comecei a tomar certos tipos de remédios, usar
ficava alguns aspectos da religião hindu misturada com coisas mais femininas, desde os meus 12 anos e, até
doutrina da “não violência” de Gandhi. Em uma das ações
310 Traficando conhecimento Em foco 311
hoje, me sinto evoluindo. Então, aos 17 anos eu decidi ser Contudo, ela detalha, também, os maus tratos, vindos do
travesti, mas uma travesti de programa”, detalha. preconceito e de pessoas que não assimilam situações
como a que Flavinha vive.
Ao ser indagada sobre o momento em que descobriu ser
homossexual e se decidiu pela prostituição, Flavinha “Claro que existem pessoas maldosas, que me xingam
lembra que teve a primeira experiência sexual aos 10 na rua, mas eu passo de cabeça baixa, não respondo,
anos. “Mas eu ainda tinha medo e a incerteza de querer porque a melhor a resposta é o silêncio. Mas tento ser
realmente aquilo para minha vida. Aos 12 anos, quando normal, aliás, eu sou uma pessoa normal”, destaca.
cheguei em Poços, vinda da Bahia com a minha família,
vi como é a vida aqui, encontrei-me com pessoas mais O programa
evoluídas e passei a me travestir”, diz. Ao assumir que realiza programas sexuais por dinheiro,
Flavinha fala também, com certa tristeza, que os pais Flavinha faz questão de ressaltar que é por opção e que
não aceitaram de imediato o fato de ela ter começado a faz isso simplesmente porque gosta e sente prazer.
se travestir, aos 12 anos. Nas proximidades do Complexo Cultural da Urca, conhe-
“Demorou alguns anos para eles entenderem que eu cido como “paredão”, é onde Flavinha costuma ficar
havia assumido. Isso aconteceu há uns dois anos ape- durante as noites, em busca de dinheiro atrelado à satis-
nas, mas foi uma grande batalha”, afirma. fação sexual e pessoal.
Sobre praticar sexo por dinheiro, ela conta que os pais “Eu costumo ficar ali perto, mas já tenho vários clien-
sabem do fato, mas ainda não assimilam com clareza a tes. Espero eles me buscarem em casa, pois, como sou
situação. independente, moro sozinha, eles me pegam em casa
ou, aqueles fixos, que eu já conheço há tempos, costu-
A vida em Poços de Caldas mam entrar”, conta.
“Minha vida é ótima”, conta Flavinha. Vinda da Bahia há O preço estipulado por ela vai de acordo com a hora.
quase oito anos, Flavinha atualmente mora sozinha, no Quando o programa é feito em casa, Flavinha cobra R$ 100.
centro da cidade. Os pais também moram em Poços, mas E quando é na rua, o preço costuma ser de R$ 50 por meia
não dividem a mesma casa com a travesti. hora, que geralmente é gasta em motéis.
Com uma rotina diferente, até mesmo pelo tipo de vida “Ás vezes chega a acontecer no carro ou mesmo em
escolhida, durante o dia Flavinha arruma os objetos e alguns outros lugares que eu já conheço, ou que nos
pertences em casa. levam, mas que já temos referências”, diz.
“Minha mãe tem um estabelecimento em casa e às vezes Ela conta, também, que não são todos os dias da semana
vou para o local, que prefiro não citar, como travesti em que programas são feitos. A frequência maior é no
mesmo e as pessoas que entram no estabelecimento me final de semana. “Tem dias que eu não vou ao ‘paredão’
aceitam, me tratam muito bem, da mesma forma que eu pois não estou com cabeça mesmo”, comenta.
as trato”, enfatiza.
Há também horários pré-determinados pelos travestis e
garotas de programa que frequentam os locais famosos
312 Traficando conhecimento Em foco 313
por oferecer prostituição. De acordo com Flavinha, o Defendendo a classe em que trabalha, Flavinha não
movimento se intensifica após às 21h de sexta-feira e vai acredita que as ações policiais sejam exclusivamente
até antes do amanhecer, por volta das 5h. Nestes locais, para zelar pela ordem pública e bem-estar da sociedade,
muitas amizades são feitas entre as outras prostitutas. mas classifica tais atividades como abuso de poder.
“Tenho muitas amigas ali, sim, somos bastante unidas, já
“Tem muita gente em Poços que pensa que a prostituição
passamos por vários desentendimentos anteriormente,
nas ruas é uma coisa sobrenatural, sabe? São reações
mas isso era quando uma não conhecia a outra e gerava
superpreconceituosas, mas, estas pessoas que pensam
aquela confusão, agora, somos bastante unidas”, relata.
assim, por trás disso, são os que vão nos procurar mais
O inusitado tarde. Na calada da noite, eles mostram a verdadeira
cara. Porque durante o dia, são um tipo de pessoas, à
Ao ser questionada sobre situações ou programas inu- noite, são outro e isso é o que eu não aceito”, desabafa.
sitados, Flavinha conta que já saiu para fazer programa
com dois casais heterossexuais. “O que eu observo é que Sobre a procura por programas, Flavinha acredita que o
as mulheres querem ter uma relação sexual com uma que leva um homem ou mesmo mulher em busca de um
travesti. Já saí com dois casais. Porém, da primeira vez, travesti na rua é a busca pelo prazer. “Muita gente tem
não fiz nada com a mulher. Já na segunda vez, eu fiz por- vontade, mas nem todos têm coragem. Eu acho que é
que fiquei com vontade, aí aconteceu. Foi a primeira vez uma fantasia sexual”, destaca.
que eu tive relações com uma mulher”, detalha. Já para ela, o maior prazer da profissão é ser reconhe-
Sobre os programas feitos com homens, ela garante que cida entre os homens. “Eu gosto da propaganda do boca
não existe mais os estereótipos de travesti passivo ou a boca, os homens dizem que eu sou boa e indicam, para
ativo. “Depende do que os homens querem ou pagam, que outros saiam comigo. Isso é o que me dá prazer”,
mas, no meu caso, o que eles querem, eu faço”, garante. afirma. Além disso, Flavinha não deixa de citar o dinheiro,
que, de certa forma, vem fácil por meio da prostituição.
O “paredão” por ser um local antigo e bastante conhe-
cido, por muitos moradores da cidade, como um ponto de Os perigos da prostituição
prostituição, é também alvo de muitos preconceitos por
Por semana, Flavinha consegue ganhar em média R$ 350,
parte da sociedade e, algumas vezes, até mesmo da polí-
ou seja, um pouco menos que um salário mínimo. Porém,
cia, como conta Flavinha. “Já sofremos algumas amea-
vários fatos tristes também fazem parte da história, pouco
ças de cidadãos e também vários policiais já pediram
comum, de Flavinha. Ela conta que no Carnaval de 2007,
para que deixássemos o local, mas eu não entendo, tam-
saiu com um rapaz da cidade vizinha de Caconde (SP).
bém, o porquê disso. Não é a primeira cidade de Minas
Gerais que tem profissionais do sexo nas ruas, todas as “Ele começou a passar de carro, que também tinha
cidades têm. Muitas vezes tentam nos tirar de lá, nos dão as placas de Caconde (SP) e eu não estava na Urca. Na
‘gerais’ desnecessárias e ficamos inclusive constrangi- terceira vez que ele passou, parou. Contudo, ele estava
das, porque as pessoas passam, olham, eles reviram com uma cara um pouco suspeita, aparentando estar
nossa bolsa, jogam nossas coisas no chão, pedem-nos bêbado”, conta.
para tirar a roupa, às vezes”, descreve.
314 Traficando conhecimento Em foco 315
Com isso, alertada por uma amiga, Flavinha fotografou Na capital paulista, fato semelhante já aconteceu com ela,
uma das placas, como uma espécie de garantia. Dali, o cara recusou-se a pagar o programa, lhe apontou uma
Flavinha e o rapaz foram para um local já conhecido por arma e a deixou no meio da rua. “Ele me deixou no meio do
ela, próximo à Avenida João Pinheiro. nada, eu nem sei onde desci, mas graças a Deus eu tinha
dinheiro na bolsa, liguei para um táxi e ele foi me buscar,
“Eu já conhecia e quis ir para aquele local, justamente,
mas foi um dia em que eu senti bastante medo”, lembra.
por isso, pensando que se algo acontecesse, eu saberia
para onde correr, fugir ou mesmo pedir socorro”, relata. O preconceito
Daí em diante, um programa entre os dois foi feito e na
hora de acertar o prazer recebido, o rapaz não quis efe- “Tem muitas pessoas que nos apontam nas ruas. Acham
tuar o pagamento, sacando uma faca. que somos alvo de zombaria”, diz, ao referir-se ao precon-
ceito existente da sociedade com os travestis e, também,
“Ele disse que não me pagaria, puxou esta faca, porém, com as prostitutas. Contudo, Flavinha destaca que pre-
eu também estava com uma navalha e tentei me defender. fere ignorar o preconceito e levar a vida como está acostu-
Descemos do carro, começamos discutir e o resultado é mada, sem se deixar abater com o julgamento alheio.
que eu tenho uma cicatriz nas costas, onde ele passou a
faca em mim. Porém, eu também passei a faca nele. Ele “Eu prefiro esquecer isso tudo, embora alguns falem, eu
disse que iria registrar um boletim de ocorrência e eu vou levando a vida, pois, para conseguir o que quero, eu
garanti que quem teria a temer era ele, pois todos sabe- devo passar por isso”, afirma. Quando diz que quer chegar
riam com quem ele havia saído e eu explicaria para a polí- a algum lugar, Flavinha refere-se ao ideal que criou para si
cia que ele não quis pagar meu programa. Porque, neste mesma, que é colocar mais silicone no corpo e mais próte-
caso, eu acho que a polícia deve ir atrás”, narra Flavinha. ses e ela enxerga, como única alternativa para alcançar o
sonho, se prostituir.
Após estes fatos, Flavinha começou a correr e gritar ao
rapaz que estava com ela que havia tirado foto das pla- Relacionamento
cas do carro. Quando chegou no centro da cidade, pró-
Além dos sonhos já citados por Flavinha e dos planos
ximo ao “paredão”, o mesmo rapaz parou Flavinha, pediu
para o futuro, Flavinha conta que possui um namorado
que ela não fizesse nada e lhe deu o dinheiro devido pelo
em Poços. “Ele é muito bacana comigo, acho que ainda é
programa. “Naquele momento aceitei, mas foi um apuro
a única coisa que realmente me prende na cidade”, conta.
pelo qual passei”, diz.
Os dois se conheceram na rua e segundo relatos dela, ele
Ela relata ainda que nem sempre anda como armas bran-
a aceitou enquanto prostituta. “Mesmo não querendo,
cas como facas, estiletes ou navalhas e diz que naquela
ele tenta entender isso”, afirma.
noite, por sorte, estava com uma navalha.
“Aqui em Poços eu não me armo mais, porque a polícia O dia de hoje... O futuro...
já me parou, porque tinham pessoas denunciando que
Diferente dos relatos comuns de prostitutas, que iniciaram
estávamos armadas, mas só pode ser quem sai com a
na profissão por falta de recursos financeiros, Flavinha
gente”, comenta. Porém, Flavinha afirma que, quando
nunca passou por nenhuma necessidade e conta que os
vai para a cidade de São Paulo fazer programas, arma-se
pais sempre lhe proporcionaram bem-estar dentro de casa.
com medo de sofrer alguma coisa.
316 Traficando conhecimento
Caminho de pedras Após usar cocaína e maconha por anos, Toquinho conhe-
ceu o crack há pouco mais de um ano e, deste então,
É uma manhã ensolarada de sábado. Os termômetros
diz que raras foram as vezes em que ele não fez o uso
marcam algo em torno de 22° C e, apesar da época ser
da droga. “Antigamente usava com um maior espaço de
considerada fria, faz um dia agradável.
tempo. Agora, acordo fissurado, como hoje, levantei e já
Sentado, na porta de casa, Augusto Caetano* (nome fumei. Parece que foi ontem mesmo, mas vejo que minha
alterado), 19 anos, conhecido como Toquinho, pela baixa vida mudou”.
estatura, conta à reportagem que naquela mesma manhã,
Neste momento, Toquinho abaixa a cabeça e mostra
assim que se levantou, por volta das 9h30, já havia usado
sinais de estar levemente emocionado. Em seguida, conta
crack, droga derivada da mistura da cocaína ao bicarbo-
que, antes de usar o crack, saía todos os fins de semana,
nato de sódio, geralmente fumada em cachimbos e bas-
namorava e sentia mais prazer em viver. “Como eu contei,
tante comum nos locais mais pobres das comunidades.
sempre usei drogas, mas agora parece que é pior. Eu me
Por ser mais barato que a cocaína, o crack chega mais sinto em função do crack. Uma parte de mim diz que não é
facilmente às mãos dos jovens e casos como o de Toqui- viciado e outra me mostra que sou totalmente dependente
nho são mais raros, visto que os jovens começam a fumar do cachimbo para estar feliz ou mesmo vivo”, declara.
o crack com idades entre 10 e 12 anos. “É uma droga que
Antes de conhecer o crack, Toquinho, apesar de morar em
tem um efeito legal, embora dure pouco tempo. Uma
um bairro pobre da cidade, trabalhava e levava uma vida,
pedra de crack custa R$ 10”, conta, timidamente o rapaz.
aparentemente natural, como outros rapazes da idade
Estudos acerca da droga mostram que este é um vício dele e que também fumam maconha e cheiram cocaína.
bastante caro e que de pedra em pedra, os usuários Ao conhecer o crack, se viciou quase instantaneamente
passam a quantidades maiores, tentando obter o mesmo e revela que perdeu o emprego, a namorada e com isso,
efeito das primeiras vezes consumidas. muito da vontade de viver.
O crack chega a ser até seis vezes mais potente que a Sustentando o vício
cocaína, contudo, provoca dependência física e pode
levar à morte por ter uma ação fulminante sobre o sis- Segundo o Departamento Estadual de Investigação sobre
tema nervoso central e cardíaco. Narcóticos (Denarc), o crack é a droga com um dos mais
altos poderes viciantes e uma pessoa, apenas de experi-
O antes e o depois mentar, já se torna um viciado.
“Lutei muito tempo para me assumir como um depen- O efeito do crack passa muito depressa, e o sofrimento
dente de crack”, conta Toquinho. “Quando eu era mole- pela ausência do mesmo no corpo vem em 15 minutos, ou
que, fumava muita maconha e achava o máximo, até que seja, o usuário, a cada dia que passa, faz uso de quanti-
com uns 16 anos, fiquei amigo do pessoal que repassa dades maiores e aumenta, com isso, os gastos.
a droga e entre um repasse e outro, junto com eles,
Surge então a fase em que a pessoa faz qualquer coisa
treinando para ‘aviãozinho’ — pessoa que leva a droga
para obter a droga. Isto é confirmado por Toquinho, que,
de um local a outro — eu experimentei cocaína e gostei
ao perder o emprego de auxiliar mecânico, passou a atuar
bastante. É estranho a gente falar que gostou de uma
como “aviãozinho” onde mora, para obter um pouco mais
coisa que faz mal, né?”, comenta.
320 Traficando conhecimento Em foco 321
da droga. “Eu sempre tenho que entregar a pedra, algu- mento de culpa e depressão, daí a tendência dele usar
mas vezes, vender e, com isso, ganho algumas. Depende de novo, para não enfrentar o desconforto que a droga
do meu desempenho. As que eu ganho, posso vender por provoca”, explica.
conta própria, ou usar. Como eu uso, fico com elas para
Contudo, a sensação do crack é muitas vezes ilusória,
mim. Mas, cada dia que passa, me vejo obrigado a entre-
como relata Toquinho. “Ao mesmo tempo em que me
gar ainda mais pedras para usar mais”, conta.
sinto muito bem usando o crack, vejo que perco muita
Toquinho revela, também, que, para comprar drogas, coisa. Antigamente eu me preocupava com o tipo de
muitas vezes, furtou pequenos objetos em casa ou pediu roupa que usava e a forma como me vestia. Hoje, não ligo
dinheiro para a mãe. “Minha mãe trabalha como domés- mais para isso. Meu único interesse é obter a pedra e
tica, então, por várias vezes, peço dinheiro para ela. Ela usá-la da melhor forma possível”, conta.
sabe que é para drogas, me xinga, pede que eu procure
Para Luciana, esta posição denota o processo de “suicí-
um novo emprego, mas eu não quero, quero só a pedra,
dio inconsciente”, em que grande parte dos usuários foge
fumar o crack, sozinho em paz”, diz.
das responsabilidades e nem cogitam a ideia de deixar o
Outras vezes, para comprar droga, Toquinho furtou CDs, crack. “É mais fácil se entregar a isso, não querer ficar
um par de tênis e blusas do irmão mais velho. “Como ele adulto, esperar que a morte venha, de uma forma ou de
trabalha o dia todo, quando bate a fissura, tenho que outra. Pode ser pelo uso prolongado da droga e da dege-
fazer isso. Mas não sou um monstro. Eu me arrependo neração do organismo, ou através da polícia, das dívidas
depois. Conto para ele. Peço desculpas”. com os traficantes”, afirma.
Para Toquinho, o crack é ao mesmo tempo um alívio e um Toquinho conta que em uma única noite, já chegou a fumar
peso. Como fuga da realidade, ele embrenha-se, cada diz até sete pedras de crack. Número considerado alto, até
mais, no uso da substância e não tem intenções de parar, mesmo entre os usuários. “Foi durante uma festa. Eu
porém, não sabe o que faz para manter o vício. “Não tive várias alucinações. Não sabia se era dia, noite, quem
vejo sentido em continuar, mas não quero parar. Queria estava a minha volta, mas, foi uma sensação muito boa
apenas uma forma de poder ter quanto crack eu preciso. também. Se eu pudesse, fumaria tudo novamente”, afirma.
A sensação que ele me causa é ótima. Não faz sentido
parar”, dispara, se contradizendo. Medo
Ao ser questionado sobre ter medo da morte ou mesmo da
Sensação
polícia ou de traficantes, Toquinho hesita e diz que o medo
A contradição de Toquinho é comum em usuários de varia.“De morrer eu não tenho medo. Mas, por outro lado,
crack, conforme afirmam muitos psicólogos e pessoas tenho dó da minha mãe, sabe? Ela faz tudo por mim. Vejo
que lidam com situações semelhantes, como é o caso que errei na vida. Sinto-me fraco e sem vontade de parar.
de Luciana Marques, estudante de psicologia e estagiá- É mais forte do que eu. Só quem já fumou crack entende o
ria em centros de reabilitação. “O crack gera um prazer que digo. Mas é uma coisa que me comanda. Ao invés de
imediato, então, em cerca de dez segundos, o usuário eu mandar em mim, quem manda é a droga. Imagino que
se sente um super-homem e toma coragem para fazer tentar parar dá mais trabalho do que continuar fumando.
abordagens. Mas o fim do efeito vem repleto de senti- Agora, da PM ou dos traficantes eu não tenho medo. Não
322 Traficando conhecimento Em foco 323
fico dando bobeira. Fumo crack em casa. Ando com pouca Em seguida, o Corpo de Bombeiros foi chamado e após
quantidade. Os caras que passam a droga, também, são muitas perguntas e confirmação de nome, endereço e
meus amigos. É só ficar esperto e não fazer dívidas, mas telefone do solicitante, a reportagem foi informada que
sobre isso eu ainda tenho controle”, revela. uma Unidade de Resgate (UR) estava a caminho do local.
O relógio marcava 12h19. A vítima, ainda caída ao solo e
Futuro? imóvel, abriu os olhos e murmurou “eu estou morrendo,
Não existe um tempo estimado de vida para os usuários eu fui atropelada” e expressava dor por estar ali, daquela
de crack, mas é sabido que grande parte deles, se não maneira, sem poder ser removida.
deixam a droga, morrem por motivos já citados, como Alguns carros que passaram pelo local pararam para ofe-
dívidas, presos ou por degeneração do organismo. recer ajuda. Um deles, de uma empresa da cidade parou.
Toquinho afirma que não acredita em um futuro para ele, Uma moça desceu, foi em direção a Neusa, começou a
uma vez que não pretende abandonar a droga.“Quando medir seus batimentos cardíacos, contatando que ela
eu era criança, tinha muitos sonhos. Pensava em jogar estava com vida, quando esta afirmou mais uma vez que
futebol, em ter uma casa grande, com piscina, em com- estava morrendo.
prar um carro, uma moto. Conforme fui crescendo, per- O homem que acompanhava a moça ligou para o Samu,
cebi o trabalho que eu precisaria fazer para ter tudo isso desta vez, conseguindo informar o local onde a vítima
e desisti. Assumo que sou fraco e optei pelo lado mais estava. No movimento cotidiano pela rodovia, passou
fácil. Se você me perguntar, qual é o meu maior prazer, uma viatura da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), que
vou te responder ‘fumar crack’, certo? Minha vida é isso. reduziu a velocidade para observar a cena, uma mulher
Nem quero pensar em futuro”. caída às margens da rodovia, e foi embora, sem parar no
local para realmente confirmar o que aconteceu.
Às Margens da Rodovia
Poucos minutos depois, para uma Kombi velha, prati-
São 12h15 de uma sexta-feira. É dia 16 de maio de 2008 e camente caindo aos pedaços e descem alguns homens,
Neusa Bastos, aproximadamente 35 anos, está estendida acompanhados por uma criança. Um desses homens
às margens da rodovia L-MG 877, rodovia Geraldo Costa apresenta-se como Joaquim, companheiro de Neusa.
Martins, conhecida também como rodovia do Contorno. Os outros são vizinhos deles e informam que Neusa está
daquele jeito, pois bebeu cachaça com uma amiga, no
Parcialmente consciente, Neusa está imóvel, caída, com
bairro vizinho, Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade.
metade do corpo na estrada e metade no acostamento,
sem conseguir se mexer. É neste momento que ela abre os olhos novamente e
murmura que foi atropelada. Todos os presentes na cena
Passando pelo local, a reportagem quer saber o que houve
param para observar se existe alguma marca de sangue,
com aquela pessoa, para ela estar ali, daquela maneira.
que não é encontrada, mas, marcas de freio podem ser
Ao averiguar que a pessoa ali estendida estava viva, a observadas próximas ao local.
reportagem telefonou para o Serviço de Atendimento
Estes homens acompanhando Joaquim afirmam, tam-
Móvel de Urgência (Samu) e pediu auxílio e socorro, con-
bém, que Neusa tem alguns distúrbios mentais e talvez
tudo, devido a localização em que se encontrava, a ligação
tenha tido uma convulsão, por ter bebido. Joaquim se diz
foi cortada por falta de sinal no celular.
324 Traficando conhecimento Em foco 325
preocupado com a companheira estar caída ali, porém, Após longos vinte minutos, chega uma viatura do Corpo
em uma conversa com a reportagem, informa que vive de Bombeiros, com as luzes ligadas e as sirenes desli-
com ela há apenas um mês e que eles não são casados. gadas. Assim que se aproximaram de Neusa, o militar do
“A gente só mora junto”, diz. Corpo de Bombeiros foi verificar se havia sangue em sua
cabeça, momento em que esta despertou e novamente
E, a partir daí, ele começa a contar um pouco sobre a
resmungando, disse que havia sido jogada por um carro
vida. Diz que mora em uma casinha, tipo chácara, em um
às margens da rodovia.
terreno às margens da rodovia e também, às margens
da sociedade. Ele conta que não sabe a idade exata de Cerca de dois minutos após a chegada do Corpo de Bom-
Neusa, mas desconfia que ela tenha 35 anos. Diz, ainda, beiros, o Samu chegou e em conjunto, fizeram o aten-
que nenhum dos dois trabalha e que apenas ela recebe dimento de Neusa. Enfermeiros do Samu, ao descerem
aposentadoria. da UR afirmaram que não estavam encontrando o local
descrito na ligação e, por isso, a demora para chegar e
“Ela é aposentada, mas a mãe dela pega todo o dinheiro
fazer o resgate.
que ela recebe”, relata. Joaquim diz também que não tra-
balha porque tem problemas de saúde, uma hérnia. “Eu não O nível de glicose no sangue de Neusa foi medido, cons-
posso trabalhar. Então, moro aqui nesta casa que é de um tando sim, que ela estava alcoolizada. Porém, nenhum
daqueles rapazes da Kombi. Eu cuido da criação de gansos comentário sobre atropelamento foi feito. Joaquim ficou
que ele tem. Não pago nada para morar aqui”, conta. em volta dos bombeiros e dos enfermeiros do Samu,
aguardando um resultado ou diagnóstico de Neusa.
Aparentando ter bastante idade, Joaquim contou, também,
que, em razão da hérnia, está tentando aposentar-se. “Eu Ao ver as viaturas do Corpo de Bombeiros e do Samu para-
já separei meus documentos e a resposta que tive é que das no local, uma terceira viatura da PM passou e parou,
foi para Brasília. Acho que não vou conseguir”, lamenta-se. estacionando o veículo e querendo informar-se sobre o
acontecido. Neusa foi colocada na maca de emergência do
Enquanto aguarda a chegada de um socorro, Joaquim
Corpo de Bombeiros e, segundo os militares, seria levada
fica em volta de Neusa, dividido entre saber se ela bebeu,
para a Policlínica Central, onde deveria ser medicada com
realmente, se foi atropelada e quando ela afirma que foi
glicose e posteriormente liberada.
atropelada, em um tom de quem sente dor, ele afirma a
ela que é por conta da bebida. Com isso, com bastante Uma das enfermeiras do Samu, antes de ir embora,
esforço e a respiração forte e ofegante, Neusa mexe-se comentou que Neusa teria tido uma convulsão, mas,
da posição em que encontra e vira, no acostamento, com nada comprovado. Joaquim foi solicitado para acompa-
o peito para cima, tombando a cabeça para o lado. nhar Neusa até o pronto socorro, porém, ele disse que
não poderia, alegando ter muitos afazeres, como guardar
Contudo, Joaquim permaneceu a seu lado, ora em pé, ora
algumas ferramentas. No entanto, foi convencido pelo
sentado em uma pedra a beira da porteira, que dá acesso
Corpo de Bombeiros, o que não foi muito fácil, mas aca-
a casa em que ele reside. Outros carros passaram pelo
bou cedendo e informou que guardaria apenas algumas
local e ofereceram ajuda. Uma viatura da Polícia Militar
coisas que havia deixado ali, às margens da rodovia.
também passou e, assim como a viatura da PRE, diminuiu
a velocidade, observou a cena e sequer parou.
326 Traficando conhecimento Em foco 327
A Polícia Militar aguardou, esperou o Samu ir embora, o em São Paulo, apesar do desrespeito, a mente não parava
Corpo de Bombeiros, e não registrou nenhuma ocorrên- nem para dormir de tanta vontade de fazer tudo. Porém,
cia. Neusa foi na ambulância afirmando ter sido jogada diante da situação de opressão encontrada no local,
por um carro. As marcas no asfalto apresentavam frea- escrevi o texto abaixo, que circulou toda internet e virou
das. Nenhum carro. Nenhuma prova. Nenhuma ocorrên- notícia em todos os sites ligados ao hip-hop e à literatura.
cia. Mais um ser humano jogado, às margens da rodovia,
às margens da sociedade. Opressão e desrespeito com o hip-hop na
Entre outras reportagens estas foram as que mais cha- Virada Cultural 2008
maram minha atenção. Não acho que foram as melho- Revista policial, abuso de autoridade e distanciamento
res, jornalisticamente falando, mas, sem dúvida, foram marcam o Baile Chique, palco destinado ao hip-hop, na
as histórias que mais me envolveram durante a execu- 3ª edição do evento Virada Cultural
ção e foram as que fortaleceram a minha inspiração para
Após viajar 280 quilômetros de ônibus, depois de ter
trabalhar com a literatura atrelada ao jornalismo.
trabalhado 12 horas seguidas, cheguei para a Virada Cul-
Sei que não devemos escolher personagens pela pro- tural. Fui porque várias atrações prometiam, entre elas,
fissão e sim pela história, mas desobedecer esta regra, grandes nomes no palco do hip-hop, como os precurso-
muitas vezes, foi inevitável. As profissões e ocupações, res Thaíde, Dj Hum e o pai de toda esta cultura, Afrika
além de estereótipos sempre reservaram bons relatos e Bambaataa, como atração de encerramento.
como a intenção era praticar o jornalismo literário e, ao Mesmo sem nunca ter ido a uma Virada Cultural, espe-
mesmo tempo, dar voz aos que estão às margens, penso rava um evento bem organizado e estruturado, com poli-
que fiz as escolhas certas. ciamento para garantir a segurança do público e não para
constranger. Ao chegar, me deparei com vários palcos,
Do ouvido atento a estes relatos o movimento só amadu-
entre eles o principal, onde marcava atrações como Gal
receu. Por intermédio de grandes experiências de vidas
Costa, Zé Ramalho, Teatro Mágico e Marcelo D2, citando
captadas num único lugar: a quebrada. este último como rapper.
Havia, também, a intenção de reunir material suficiente Agora eu questiono. Se ele é um rapper, o que estava
para transformar em livro, ou em revista, ou em qualquer fazendo no palco principal do evento? Por que não
que seja o tipo de publicação, apenas para distribuir de estava no palco do hip-hop, ao lado de tantos outros
outra maneira que não o jornal circulando aos domingos. nomes bons? E reafirmo questionamentos já feitos.
Qual é a representatividade do Marcelo D2, dentro
Mas, para continuar fazendo valer, resolvi, mais uma vez,
da cultura hip-hop, para ocupar o palco principal? E o
embarcar no mundo dos eventos de hip-hop e promover
Afrika Bambaataa? São indagações longe, ainda, de
um ao melhor estilo do Hip-Hop Sul de antigamente.
serem o problema principal deste artigo.
Após economizar, ir e voltar do “Baile Chique”, palco des-
Em um mapa distribuído em vários pontos da Virada Cul-
tinado ao hip-hop, na 3ª edição do evento Virada Cultural tural, os palcos de shows eram mostrados, qual não foi
Em foco 329
direitos de jornalista formada por uma cabo, que não torno de seis mil pessoas, contra as 50 mil que foram aos
sabia nem falar, mas, abusando da autoridade, me fez shows do palco principal, na Avenida São João. Quando o
apagar a imagem, me impedindo, não apenas de curtir criador de toda a cultura subiu no palco, ficou por mais de
meu estilo musical preferido em paz, como de trabalhar meia hora regulando o som, que estava mal sintonizado,
e exercer minha profissão, com todos os direitos previs- ou seja, outra vergonha para o público do hip-hop.
tos pela lei. Nos shows, meia dúzia de gatos pingados,
Em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário de Cultural
isolados, discriminados e julgados tentavam curtir o
Carlos Augusto Calil justificou o local escolhido. “Houve
rap, com uma aparelhagem de som desregulada, o que
uma certa inocência em colocar, no ano passado, o palco
denota ainda mais o descaso da organização do evento,
de hip-hop na Praça da Sé, que passa por um processo
e também da sociedade, com a cultura hip-hop. Contudo,
de urbanização.” Segundo o secretário, para evitar novos
mesmo sofrendo com as mazelas impostas pela socie-
incidentes, os espaços foram melhor distribuídos e
dade, o público do “Baile Chique” comportou-se como
adequados ao público. “Criamos condições para que o
deveria, ou seja, como sempre, civilizadamente, porém,
público de hip-hop, por exemplo, que tem um comporta-
com a dispersão deste, os policiais fizeram questão de
mento diferenciado, possa curtir a festa deles.”
aproximar-se do palco, alvoraçados, como se os negros
e pobres, ali presentes, pudessem, a qualquer momento, Eu pergunto, que condições? Que público? O que este
atacar alguém, como animais mitológicos. Não aguentei secretário entende de hip-hop para fazer isso? Não subes-
e fui embora logo. Fiquei decepcionada por ter viajado e timando, mas creio que não entenda mais do que o pre-
investido em um evento no qual meu estilo fora despre- conceito criado acerca da nossa cultura, pois referir-se ao
zado em último grau. Em outras partes da Virada Cultural, “comportamento diferenciado” como se fôssemos bichos
com público estimado de quatro mil pessoas. No palco agindo por instinto, foi demais. Durante a semana que se
da dança, no Vale do Anhangabaú, onde público tinha até seguiu a Virada Cultural, minha caixa de e-mails fervilhou
cadeiras, um garoto de uns 12 anos cheirava cola livre- de mensagens debatendo o assunto. Vários sites também
mente em frente aos policiais que faziam a “ronda” por publicaram artigos, matérias e indignações. Cada um
ali e, não satisfeitos pela ronda, faziam também vista mantém a sua opinião acerca dos fatos acontecidos.
grossa para isso. Um pouco mais adiante, um grupo
Na minha? Culpa dos dois lados. O primeiro, da falta de
fumava maconha livremente na cara dos policiais, coisa
comprometimento do hip-hop com ele mesmo. Cadê as
natural, e ninguém tomou geral por isso, foi impedido de
lutas? A prática da pregação de Bambaataa por “paz,
fotografar, ou ficou isolado em suas comemorações, em
amor, diversão e união”. Quem é que luta por isso? Quem
um parque ‘enjaulado’ e à parte do evento. No outro dia,
tenta mudar nossa situação de escravidão moderna? O
voltei para o show do Afrika Bambaataa e fiquei em um
que o hip-hop, ou seja, nós mesmos, fazemos por isso?
evento, no qual, não havia constatado na noite anterior,
não havia barracas vendendo comes e bebes e, para Só escrever um texto adianta? Publicar várias opiniões
tomar uma água, tínhamos de sair do pátio feito pela dispersas resolve?
organização da Virada Cultural. O pai do hip-hop chegou
para tocar para o maior público daquele palco, algo em
334 Traficando conhecimento Em foco 335
Firmeza!
Valeu, Jéssica. O que precisar pode conta conosco, pode
crer? Admiro muito o seu trabalho. Essa conexão é muito
importante.
PAZ guerreira
Elemento.S
Em foco 339
338
340 Traficando conhecimento Em foco 341
Estas foram algumas das frases que os participantes ambulantes com carrinhos de cachorro-quente e pipoca
puderam ler quando encontraram as caixinhas espalha- encostaram-se à calçada. Todas as pessoas que, de
das por todo poliesportivo. Claro que havia um número alguma forma, estavam ou estiveram ligadas ao hip-hop
suficiente para todos participantes, mas provocar a sur- foram convidadas e os amigos da antiga crew, aquela
presa em quem chegava primeiro era uma forma de brin- mesma que conheci quando ainda desconhecia a cultura
car com as palavras. Pelas paredes liam-se pequenas foram chamados para compor a banca de jurados para
frases, poemas e poesias, afixadas como um jeito de dar as batalhas de break e de rimas.
um charme no evento.
Após algumas horas espremidas nos espaços curtos de
Os integrantes das oficinas, tanto das de literatura vans e ônibus, pessoas das cidades vizinhas deram colo-
como das de dança seriam parte do staff e deveriam rido especial ao poliesportivo. Com figurinos feitos ape-
nos auxiliar com som, controle de entrada, arrecada- nas para as apresentações de dança e roupas sempre
ção de alimentos, além de, claro, participar das apre- chamativas, deixaram o quilo de alimento com a portaria
sentações nas respectivas áreas. O comprometimento improvisada e seguiram o som vindo das pickups do DJ.
e o empenho dos garotos das oficinas no evento chama-
Figurinos, músicas, dança. Além do clima de paz natural,
ram atenção. Quando propus que eles fossem inseridos
o encontro traz a lembrança dos bailes black do início da
em oficinas e tomassem gosto pela leitura não imagi-
década de 1980, propagados por Gerson King Combo. A
nava que o desenvolvimento da cidadania, do respeito
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima
e da responsabilidade seria desenvolvido e aflorado em
entre os afrodescendentes e registra, também, uma
tão pouco tempo. Cumprindo horários e prazos, eles
nova fase da história da cultura hip-hop.
apresentavam textos lidos, trechos escritos e sempre
propunham mudanças em tais trechos, em um dado “Respeite o próximo, também é nosso, se você pode eu
momento da apresentação, além de colaborar firme na também posso... hip...hop... hip...hop”, assim o show é
arrecadação de papel reciclado para as caixinhas. aberto na marcante voz de Lu, que, no palco se trans-
forma em Lu Afri e exibe, diferente das outras vezes,
Quanto ao evento, era impossível saber quando e, se,
um penteado black power que lembra a força do movi-
aconteceria outro, então era fundamental fazer deste o
mento nos anos 1970.
melhor possível. Cinco exemplares do “Suburbano Con-
victo” estavam separados para serem sorteados no Levanto-me de onde estou e, emocionada, começo a
evento. O objetivo era entregá-los a quem se manifes- tirar fotos do grupo e cantar junto. Observo um grupo de
tasse no sarau. Pequenos e simples troféus seriam entre- garotas que cantam junto no refrão e dançam, tentando
gues aos vencedores das batalhas. acompanhar as rimas. Do outro lado, um grupo de garotos
também parece bastante animado. Mais de 300 pessoas
Não foi preciso montar uma lanchonete no local como
já estavam dentro e mães com filhos pequenos resolve-
fora sugerido na tempestade de ideias da primeira reu-
ram sair de casa acompanhando o som e chegaram até o
nião. Assim que ônibus e vans com grupos das cidades
poliesportivo. Sem o quilo de alimento para poder doar,
vizinhas encostaram próximos ao ginásio, vendedores
342 Traficando conhecimento Em foco 343
lamentaram não poder participar do encontro e em uma Paralelo ao show, b.boys dançam e alguns MC’s se pre-
pequena reunião entre a organização ficou decidido que param para o confronto em batalhas de rimas, lem-
elas poderiam entrar, afinal, o objetivo era promover a brando os primórdios e resgatando a ancestralidade
inclusão e 10 ou 20 pessoas a mais não mudariam os afro, levanto para todos os presentes o valor da cultura
rumos. Era justo que todos pudessem participar. Todos negra, dos quilombos. O meu estado é de euforia total.
entraram e era nítido que aquele era o primeiro contato Superemocionada circulo por todo o espaço e me lem-
com a cultura. Crianças se encantam com os dançarinos bro que a prática oral de expressão acompanha a evolu-
de break e suas roupas largas e coloridas. Imitam os tre- ção da humanidade e que, naquele momento, estávamos
jeitos dos MCs ao cantar e correm soltas pelo ginásio. todos vivendo a nossa história.
Vou ao encontro de algumas das mães com crianças Em um bairro periférico e em um espaço nada consa-
que entraram e ouço falarem: “Que legal, é bem da paz! grado, raps da nossa realidade, pessoas próximas e
As crianças estão adorando.” Mas é claro que o evento o hip-hop puro, transformando as atividades em paz.
era da paz e que a intenção era de que as crianças ado- “Evento muito fera”. “Sem dúvida, animal”. Estas são
rassem. Que todos presentes saíssem dali diferente do algumas frases de um diálogo que ouço próximo a mim.
que quando entraram e com um sentimento bom, com a
“Muito bom o som deste grupo”, é o que escuto em uma
mesma vontade que tínhamos de fazer acontecer e de
outra roda. Vale destacar que, desde os primórdios, a
mudar a realidade.
prática oral de expressão acompanha a evolução da
Aprendi durante os contatos com outras pessoas, tam- humanidade e, até hoje, continua sendo um importante
bém da literatura, que o grande barato não é mudar da meio de comunicação entre as periferias. Para Subur-
periferia e sim mudar a periferia e acho que, por meio do bano, MC do grupo, o rap feito na Zona Sul de Poços tem
evento e das oficinas, era exatamente isso que estava elementos próprios, no entanto, traz na essência, a prá-
acontecendo. Nada melhor do que a letra criada pelo tica de antigos quilombos. “Os africanos e escravos tra-
grupo ocasionalmente para refletir e registrar o momento. zidos ao Brasil utilizavam a expressão verbal e o canto
Reviver os bailes black faz parte do encontro, do evento e para transmitir crenças e valores comportamentais atra-
da união das almas naquela noite, através do hip-hop. vés das gerações, o nosso rap de hoje tem a mesma fun-
ção”. A afirmação do rapper vai ao encontro da situação.
Pela fisionomia de todos, penso em como aquele
momento é importante. Revejo, mentalmente, toda a Elas são negras, bem vestidas, de salto alto, mineiras e
trajetória do grupo, cheia de dificuldades, desencon- de ancestralidade no sangue, daí a química entre os gru-
tros e agora uma vitória. O CD quase pronto e prestes pos. Elas correm e abordam os integrantes do UClanos,
a ser gravado. Incrível. Assim pode ser descrita a cena fazem perguntas, pedem para tirar fotos e requisitam um
do grupo sobre o palco, cantando o cotidiano poços-cal- CD. “Então vocês gostaram da apresentação?”, pergunto.
dense para gente de toda a região. “Sim, diz muito sobre a gente”, me respondem. São garo-
tas de um grupo de rap da cidade vizinha de Lavras, que
junto com uma equipe de dança vieram conferir o evento.
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348 Traficando conhecimento Em foco 349
O primeiro show termina e classificadas como azul e anteriores somadas a esta, as ações passam a ser cada
amarela, as crews enfrentam-se em grandes dispu- vez mais fundamentadas.
tas. Os olhos dos competidores não negam a emoção
Entregues todas as caixinhas, li pela primeira vez em um
de estarem sendo julgados pela melhor crew de break
evento o conto “Periferia Adentro” e aproveitei o embalo
brasileira. Na roda, eles colocam todo o nervosismo do
do silêncio em sinal de aprovação do público e li um texto
momento e a disputa segue acalorada. A plateia delira
do Ferréz e outro do Sérgio Vaz. A intenção foi mostrar
a cada movimento feito. A vencedora da competição é
que Brasil afora estão produzindo e que também pode-
uma crew de Lavras, interior de Minas Gerais. Chamada
mos fazer isso.
de Action Break, é a crew mais eclética e tem a partici-
pação de uma garota dançando e entrando na roda com Incentivado pelos textos, Rodrigo, um dos garotos das
os homens. Ela é Poliana, 20 anos, que dança break há oficinas me chamou no canto e disparou: “Oh, dona, fiz
quatro. Especialista no freeze – congelamento do movi- mais um texto e queria ver o que você acha e se eu posso
mento – ela se orgulha de ter vencido os preconceitos de ler hoje aqui. É que eu quero muito mostrar para a minha
ser mulher e dançar break. mãe o que eu tô aprendendo.” Como eu poderia negar a
ele esta oportunidade de ler, para um público bacana
Além de ter a única mulher na crew, a Action Break tam-
e para a genitora, um texto feito por ele mesmo e que
bém levou ao evento o mais novo b.boy competidor.
falava, justamente, sobre o amor de mãe, outro tema
Rodrigo, 11 anos, que entra na roda com segurança e
recorrente da literatura marginal.
consegue intimidar a crew adversária, além de ser bas-
tante aplaudido pelo público. Mesmo tremendo – medo e ansiedade – ele empunhou o
microfone ao melhor estilo de MC e disparou um salve para
A empolgação frenética deu lugar ao silêncio pedido para
a galera, que na mesma hora simpatizou com o garoto.
o início do sarau, ainda novidade. Apesar de textos lidos
Tirou do bolso uma folha de caderno amassada e, olhando
em eventos e de um elemento caminhar com o outro com-
para a mãe, que devolvia a expressão terna, declamou:
pondo a cultura marginal, muitos visitantes de outras cida-
des não estavam acostumados com aquilo. Porém, como Quem é essa mulher que na quebrada é bastante respeitada?
no hip-hop o respeito prevalece, todos se calaram quando Quem é ela que não tem parada, nos dá de tudo e não nos
cobra nada?
o silêncio foi pedido e aguardaram o que viria a seguir.
Sempre disposta a nos ajudar
Enquanto aguardavam, caixinhas com poesia dentro Ela tira comida da própria boca para nos alimentar.
foram entregues de mão em mão, como um presente Quem é essa mulher que está sempre tão disposta?
para a periferia. Expressões das mais variadas tomaram E que, no gueto, sempre banca a nossa aposta
conta dos rostos dos presentes e como da primeira vez Pode ser herói, ladrão, bandido ou mocinho
Para todos ela sempre tem um colinho
em que espalhei caixinhas aleatoriamente, pude sentir a
Veio ao mundo com a missão de nos cuidar e dar educação
emoção em espalhar a cultura, dialogando com os pre-
Sem você, mãe, não dá para encarar este mundão.
sentes através da literatura. O interesse era promover
a formação crítica para a juventude. De experiências
350 Traficando conhecimento Em foco 351
Apesar de ainda ser um texto cru, o jovem teve a cora- enquanto comunicadora era fazer algo que mudasse, de
gem que as oficinas buscavam estimular e o leu. Pediu alguma maneira, a forma das crianças e adolescentes de
licença e, ainda com o microfone na mão, leu um texto encarar as dificuldades.
do livro “Cabeça de Porco”. Arrancou muitos aplausos
Falei sobre o conhecimento, que sempre nos foi negado.
do público. Convidei algumas pessoas para declamar.
Os pobre já nascem nas quebradas excluídos do mundo
Devagar o MC de um grupo de rap da cidade de Vargem
e muito cedo tem que se incursionar numa guerra diária
Grande do Sul foi até lá. Declamou uma letra de rap.
pela vida, lutando para manter os costumes, as origens
Válido. Mais um quis falar. Mandou uma rima.
e as tradições, ao mesmo tempo que brigamos para ser-
Não foram bem poesias. Subi de novo e li um trecho do mos melhores, produzirmos mais e limparmos o limbo
“Quarto de Despejo”. Propus um debate acerca da infor- cultural dos guetos. As pessoas não têm acesso à cul-
mação fora do palco. Enquanto o próximo grupo de rap tura e o grande barato era justamente esse, direcionar
a se apresentar se preparava, formamos uma roda e ao as palavras a estas pessoas que só estão acostumadas
som das batidas vindas das pickups comentamos sobre a uma tela colorida que mostra a vida em preto e branco.
o que acabara de acontecer. Muitas pessoas queriam
Feito: o protesto é contra a massificação da informação
mais caixinhas e doamos todas que tínhamos feito para
reduzida às periferias. Os pobres e marginalizados tam-
o evento. Outros queriam aprender a fazer e muitos tro-
bém têm direito ao conhecimento e o evento tinha esta
cavam as poesias que continuam dentro.
proposta: descentralizar a informações, propagando-a
Embriagados com o conhecimento, celebramos, real- até as margens invisíveis da cidade.
mente, a cultura marginal pela vida, por meio da difí-
Com a literatura e as palavras guerreamos contra as bar-
cil existência na periferia. Homenageamos escritores,
reiras impostas ao conhecimento, discorri rapidamente
sugerimos títulos, sorteei meus volumes do “Suburbano
sobre a falta de informações nas periferias e o quanto a
Convicto” e lembramos toda literatura marginal como
elite trabalha duro para nos privar da sabedoria. Minhas
Carolina Maria de Jesus, que iniciou a literatura perifé-
palavras ecoaram como um grito há muito tempo repre-
rica ao ser traduzida e publicada no mundo todo, para 13
sado e era a minha maneira de dizer a todo aquele público
outros idiomas, as mazelas do povo que vive nas favelas
que podemos fazer acontecer e mudar a realidade, basta
brasileiras. E ainda, alertar a todos aqueles jovens que
nos organizarmos e trabalhar ainda mais pesado para
estavam ali e como nós, algum dia tiveram um exemplo,
transformar a nossa própria maneira de pensar e inserir o
algo para fazer em uma tarde de domingo e um objetivo:
conhecimento no dia a dia das casas e barracos.
se envolver com o hip-hop e praticar o bem.
O objetivo é romper as correntes que nos aprisionam às
Como quem vive na quebrada não tem outra opção senão
telas da televisão e libertar do salário de fome pelo qual
se drogar, seja pelos entorpecentes como crack, cocaína
todos lutam tanto e sequer conseguem comer. Imagino
e maconha ou pelas drogas servidas nas bandejas das
como uma semente jogada ao vendo que corta os barra-
TVs abertas, principalmente aos domingos, minha tarefa
cos e casas mal acabadas da periferia.
352 Traficando conhecimento Em foco 353
Em foco 355
está lendo? consegui que grande parte dos garotos do bairro fosse.
Consequência das oficinas. Todas as partes da cidade
estiveram presentes e o melhor é que cada um doou um
livro pelo incentivo a leitura para poder estar ali.
Para MV Bill, rapper, natural da Cidade de Deus, uma
das comunidades com os mais altos índices de violên-
cia do município carioca, inclusive já retratada no livro
“Eu não gosto de ler.” De repente, com a propagação dos de Paulo Lins e no filme de Fernando Meireles, em casos
eventos em todas as regiões e o surgimento de novos gru- como o festival literário, o hip-hop representa salvação.
pos, bandas e escritores, essa frase foi apagada da boca “O hip-hop, neste caso, é um agente que promove a paz.
da juventude que vive nos mais bairros mais afastados. Não acontece em todos os eventos, mas quando temos
Não como quem apaga com borracha algo escrito a lápis, um criado com o ponto central de entretenimento em
mas como quem arranca e põe fogo numa página ditada paralelo tem educação, inclusão e inserção, criamos um
pelos coronéis da elite. Cópias de autores e poetas mar- evento que tem esta aura de paz. Já é um encontro com a
ginais passaram a circular entre rodas de eventos e gru- paz intensificada, um ambiente diferente”, coloca.
pos de rap e de dança do hip-hop. Novamente a internet, Tal frase é complementada pelo estudante e aspirante
blogs e sites foram ferramentas que difundiram o ele- a escritor Felipe Paulo de Assis. “Palestra com um
mento conhecimento. cara como MV Bill é diferente. Dá vontade de ler o livro,
Um balanço feito pela Divisão de Cultura de Poços mos- saber mais, conhecer mais sobre nossa própria cultura.
tra que 2007 para 2009 as bibliotecas mostram um Aumentou minha vontade de ser escritor”, acrescenta.
aumento de 24% no número de empréstimos de livros, Com letras conscientes e de muito sucesso há quase dez
sendo que a maior parte é retirada na biblioteca da Zona anos, o rapper, também carioca, Gabriel, o Pensador, traz
Sul, no Cohab, onde as oficinas e eventos do projeto Cul- uma linguagem um pouco diferente. Embora nunca tenha
tura Marginal acontecem com mais frequência. vivido na periferia, sempre foi politizado e teve uma infân-
Não é mais uma cena gritante ver um jovem lendo dentro cia recheada por acontecimentos divertidos, tristes e de
do ônibus, pelas ruas e ainda comentando que pretende ensinamentos, como todos os jovens que ali estavam.
editar os próprios livros, sempre contando a própria his- Autor de um livro em forma de diário e um infantil, o
toria. Nesta mesma cena, muitos deles rumaram para a músico improvisa e manda a rima ao melhor estilo
3ª Feira Nacional do Livro e Festival Literário de Poços, Freestyle e se revela conhecedor da realidade nacio-
para palestras-show de MV Bill acompanhado de Nega nal. Bastante aplaudido, os jovens tentam somar as
Gizza e Gabriel, o Pensador.
354
356 Traficando conhecimento
Cap.06
Estatística
Estatística 365
364
366 Traficando conhecimento Estatística 367
Há ainda as variações, onde os usuários esfarelam a com os olhos perdidos e os dentes da frente amarela-
pedra feita com a pasta-base e misturam o crack com a dos, pelo uso constante do crack.
maconha, improvisando cigarros conhecidos como mes-
Em uma fase de fissura, ele conta que, para obter a droga,
clados ou brazuca.
atua como “vapor” na região onde mora e o que “recebe”,
O lucro na venda do crack é representado pela grande pega em pedra, para consumo próprio. Na primeira
quantidade da pedra que o traficante consegue obter entrevista, Toquinho ainda era “aviãozinho”, ou seja,
com cada grama de cocaína, visto que com um grama é apenas entregava a droga. Atualmente, vende pequenas
possível fazer de três a quatro pedras. quantidades e o que recebe, consome em pouco tempo.
“Como eu uso, fico com o pagamento todo para mim, mas
Vidas queimadas em cachimbos cada dia que passa me vejo obrigado a vender mais, rece-
Ouvir o relato de dependentes químicos e de mães que ber mais, fumar mais”, diz.
lutam para que os filhos abandonem o vício é como um cas- Um outro usuário de crack ouvido pela reportagem é
tigo. Tido como a pior das drogas pela fulminante depen- Wallace Rafael de Oliveira, 18 anos, conhecido como Buiú
dência que cria e pela brutalidade que provoca no viciado, da Barão, por ser morador da rua Barão do Campo Místico,
traz, cada vez mais, violência para dentro das famílias. no centro da cidade, e que é acusado de ter cometido
Há cerca de três meses, entrevistado pela reportagem vários furtos na área central da cidade. Ele relata que já
do Jornal de Poços, Augusto Caetano (nome alterado), furtou e continua furtando diversas residências para sus-
19 anos, conhecido como Toquinho, já estava magro tentar o vício e em um apelo, pede uma internação. “Quero
e com semblante acabado, em razão do uso do crack. que alguém arrume um lugar para eu ficar internado, tran-
Em um segundo encontro, para realização desta maté- quilo e parar de atormentar a população”, pede.
ria especial, o jovem já está bastante consumido pela O tráfico de drogas é um crime que repercute nos demais
droga. Aparenta ter bem mais idade do que o registro crimes e, por ser o crack, o que mais atrai os usuários e
de nascimento marca e já não tem mais a mesma vitali- daí uma dependência maior, embora antigamente con-
dade para falar. siderado como uma droga barata, ele custa tudo que o
Com uma baixa estatura, que parece ainda mais afe- viciado tem e ainda aquilo que obtém de outras pessoas.
tada em razão dos efeitos da droga, Toquinho, bas- Os crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e rela-
tante sonolento, comenta que os últimos dias, os que cionados à violência doméstica são frequentes em Poços
se lembra, foram divididos entre dormir e fumar crack. de Caldas e atribuídos a popularização da droga.
“Estou fumando cada dia mais. Antes eu pensava em No caso de Buiú, ele comenta que não pode ver uma janela
parar algum dia. Agora, evito esse tipo de pensamento. A aberta, que entra para furtar. Embora não cometa roubos
única coisa que penso é em como vou conseguir a droga. e nunca tenha utilizado de violência contra as vítimas, ele
Minha mãe já não me dá mais dinheiro. Eu não trabalho. confessa ter feito inúmeros furtos. “Faço isso para sus-
Estou tendo que furtar alguns estabelecimentos. Não tentar meu vício, para comprar a pedra. Eu dou preferên-
quero pensar nisso. Quero fumar minha próxima pedra cias às carteiras, mas furtava, também, outros produtos
em paz”, diz, encostado na mureta do portão de casa, como computador, tela de computador, capacete, celular,
enfim, o que tem pela frente eu levo embora”, relata.
368 Traficando conhecimento Estatística 369
Ele frisa que o que mais deseja é uma internação em Já chorando, com o coração partido, a mãe do jovem
uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. conta que, no início, quando ele tinha ainda 12 anos e
“Quero ficar longe das drogas”, deseja. A mãe do jovem, começou a trabalhar como engraxate e cheirar cola, ela
Lúcia Regina de Oliveira Gonçalves, 44 anos, faxineira, relutou em ver o vício do filho e só reconheceu quando
conta o martírio que é ter um filho dependente do crack este tomou grandes proporções e ele passou a trilhar o
dentro de casa. Com a expressão cansada de quem já caminho das pedras de crack.
não sabe mais o que fazer ou para que lado correr, ela
“Recentemente ele foi preso e eu vi pela televisão, a
revela que não tem tempo para si mesma e que, embora
quantidade de coisas que ele furtou. Eu não imaginava
tenha outros filhos, uma moça já casada e uma garota de
que meu filho era capaz de furtar tudo aquilo. Eu que
8 anos, têm vivido em função do Buiú e na busca de um
sustento a casa, trabalho quatro vezes por semana e
tratamento de desintoxicação para o mesmo.
ganho R$ 30 a cada vez que faço faxina. Não temos muita
Para controlar as crises de abstinência do filho, ela revela coisa, mas ele começou furtando meus cremes, perfu-
que, por contra própria, lhe dá remédios que atuam como mes, mas eu não imaginava que ele tivesse capacidade
calmantes, como Diazepan e Rivotril. “Eu faço isso para de pegar tudo aquilo.”
ele dormir, para tentar segurá-lo dentro de casa, para
No último dia 9 de setembro, Buiú foi localizado pela
ver se ele não sai para comprar drogas, para furtar, para
Polícia Civil e levado para a 25ª Delegacia Regional de
mexer nas coisas dos outros”, conta.
Segurança Pública para prestar esclarecimentos. No
Assombrada pelo medo de receber uma notícia ruim, local, ele informou quem são os receptadores do mate-
assim como vivem os pais de usuários de drogas, Lúcia rial por ele furtado. Segundo Lúcia, ele já esteve preso
afirma que não dorme durante a noite e que passa longos por vinte dias, quando ainda era menor de idade e afirma
períodos atrás do filho, chamando-o pela casa e pelo que, na cadeia, passou por coisas que nunca imaginou
quintal, desejando que ele volte logo. passar. Na cabeça da mãe, o tratamento policial com o
filho deve ser agressivo. “Ele tem muito medo da polícia,
A rotina de Buiú é semelhante com as dos demais usuá-
então eu não acho que a polícia trate ele bem”, acredita.
rios de crack. Durante a noite, ele consome a droga.
Dorme durante o dia e, no final da tarde, sai para tentar Com o baixo salário, ela não consegue bancar um trata-
encontrar um meio de conseguir mais crack.“Minha vida mento de desintoxicação que busca há quatro anos para
com ele dessa maneira tem sido muito difícil. Todos os o filho, embora ele já tenha tentado o que é oferecido pelo
dias tenho uma reclamação na minha porta. A polícia Sistema Único de Saúde (SUS), no programa de Álcool e
vêm até minha casa atrás do meu filho e, muitas vezes, Drogas, dentro do programa de Saúde Mental, mas que
quem atende é minha filha de 8 anos e tenho medo que ele se recusou a continuar a frequentar as consultas psi-
ela possa se envolver nesse caminho também. Dentro quiátricas e a tomar os remédios necessários.
de casa, Buiú é um amor de pessoa. Ele não briga, não
“Eu consegui junto a ONG Poços de Luz para interná-lo,
xinga e nos trata super bem. Talvez por isso que eu tenho
mas eu não tenho recurso financeiro para isso. A interna-
vontade de ajudá-lo”, comenta.
ção mais barata fica em torno de R$ 420, mais dez cestas
básicas e eu não tenho condições de dar esse dinheiro,
370 Traficando conhecimento Estatística 371
porque se eu fizer isso, como vou pagar minha água, luz Organismo em pedras
e fazer compras, se eu tenho uma menininha de 8 anos
O programa de Álcool e Drogas do município também
para criar?”, argumenta.
recebe, diariamente, várias pessoas acometidas pelo uso
Lúcia fala, também, com saudade, de quando o filho de drogas, principalmente do crack. O médico responsável
não fumava crack, trabalhava e tinha força e energia de pelo atendimento clínico, Walter de Abreu, destaca que o
vida.“Desde que ele passou a fumar esse tal de crack, o acompanhamento dos pacientes vai desde a parte psiqui-
comportamento dele mudou. Ele deixou de comer, emagre- átrica, com acompanhamento psicológico, com terapeuta
ceu muito, está só pele e osso. Passa a noite toda fumando ocupacional para poder desvincular o paciente daquele
crack, quando levanta, umas 15h, pede um prato de comida ritmo de vida que ele vem levando.
e larga tudo pela metade. Ele está muito acabado.”
Quanto aos efeitos do crack, ele destaca que existem
Ainda em relação ao uso do crack, a mãe conta que o filho várias maneiras para ser analisado. “Os efeitos que vejo
consome a droga dentro de casa, com o consentimento como médico e os que o usuário pensa. Os que eu penso
dela. “Eu deixo ele usar no quintal, dentro de casa. Faço são os mais graves, que podem levar à morte, os efei-
isso para evitar que ele faça na rua, com outras pessoas, tos que os usuários pensam são porque ele pensa que
e se envolva ainda mais com coisas que não deve”, diz, está fazendo bem. Outro dia mesmo, eu estava ouvindo
chorando novamente. um rapaz falar, na Zona Rural, que todos os funcioná-
rios dele estavam usando o crack, porque estavam
Durante a entrevista, ela relata, também, que o pai do
desenvolvendo um trabalho muito melhor, trabalhando
jovem já foi usuário de drogas e passou um longo período
assustadoramente, não precisavam se alimentar, não
preso. Atualmente, pai e filho não têm nenhum tipo de
comiam, não bebiam água, o sol não era motivo de afas-
contato ou relacionamento, e toda sobrecarga dos pro-
tamento do trabalho, não precisavam de sombra, chuva
blemas acarretados pelo crack ficam por conta da mãe,
não os impedia. Por quê? O rapaz fica confuso, não sabe
que mostra, claramente, sinais de esgotamento.
o limiar de dor dele, ferimentos, estas coisas ele não
Para ela, já cansada da situação, a internação em uma sente, para ele, aquilo não faz diferença.
clínica seria a única coisa que talvez pudesse salvar
Ele adquire uma maior virilidade para o trabalho, fica
Buiú, que ela considera muito jovem, aos 18 anos. “Eu
mais rápido, ágil no raciocínio, enfim, tudo isso leva o
sei que meu filho ainda vai ser um grande homem, por-
leigo a pensar que é uma droga boa. As consequências, a
que ele sempre trabalhou e tem boa vontade. Quero
longo prazo, são letargia, o indivíduo começa a ficar apá-
ver ele recuperado e me ajudando em casa, financei-
tico, diminui o ritmo de trabalho, começa a apresentar
ramente e cuidando um pouco de mim. Até o momento,
taquicardia, batimento rápido do coração. O aumento da
ele concorda com a internação, demonstra vontade de
velocidade do batimento do coração pode diminuir a oxi-
parar de usar a droga. Meu maior sonho é ver ele recu-
genação cerebral e o indivíduo começar a ficar confuso,
perado. Eu acredito em Deus e sei que Ele vai me ajudar.
agitado, agressivo, com ideias suicidas e, até mesmo,
Sei que vou vencer. Falo isso para meu filho todos os
homicidas. Ele pode ter, ainda, colapsos ou infarto pela
dias, quando me pergunto se agi errado, tentando ver
própria frequência cardíaca, visto que as irrigações das
onde errei, mas não estou conseguindo saber”, encerra
coronárias no coração não são benfeitas”, considera.
a entrevista, chorando muito.
372 Traficando conhecimento Estatística 373
O tratamento clínico consiste em uma desintoxicação ini- Por atuar no Conselho Tutelar, muitos casos chegam até
cial, em que o médico procura afastar o usuário do meio de ele como apelos e urgentes pedidos de ajuda. Um dos
convívio que ele se encontra. Walter afirma, também, que casos mais chocantes, que ele diz sentir até mesmo dor
o crack é uma droga em que a pessoa fica viciada quase no coração ao se lembrar e relatar, é o de um adolescente
que instantaneamente após o uso da mesma. “A pedra, o cuja digital dos dedos já se tornou imperceptível, por ter
usuário pode se tornar viciado em cinco ou dez minutos e a sido queimada pelo contato da pele com o cachimbo uti-
cocaína vai matá-lo lentamente, já o crack pode fazer isso lizado para fumar o crack.
rapidamente, visto a agressividade do mesmo”, comenta.
“E vejo o crack inserido no mundo atual onde nossa
Uma das causas do vício é a rapidez do efeito da droga, juventude deixou de sonhar. A perspectiva de mundo, de
que dura, no máximo, 15 minutos. Inicialmente, a droga, transformação, foi um pouco perdida. E nossos jovens,
por ser aspirada pelas mucosas, que fica toda queimada, e hoje, estão muito preocupados com o presente e um
por ser inalatória, há uma maior rapidez de atingir as célu- presente não muito agradável faz com que a gente queira
las neuronais. Ele impede as mensagens que são enviadas fugir desse presente. A droga é um subterfúgio mais fácil
de um neurônio para o outro no cérebro, começa a cortar para sair dessa realidade, que, muitas vezes, não é o que
como se fosse um curto circuito, bloqueia as mensagens, a TV nos vende. Em relação a Poços de Caldas existe um
o que causa um estado de confusão no usuário da droga. surto, hoje, de uso de crack. Até cinco anos atrás, não
Por ser inalatória, fumada por um cachimbo, a droga pode tínhamos esse problema tão grave”, considera Lenon.
comprometer o pulmão também, visto que torna frágeis
Para ele, a droga assume o papel à frente de tudo, por-
os alvéolos, que são as extremidades terminais dos pul-
que o tudo que deveria estar à frente, na verdade, está
mões, o que deprime as defesas do organismo, causando
atrás. Em uma comparação confusa e simples ao mesmo
pneumonias de repetição ou, até mesmo, tuberculose.
tempo, ele garante que isso seria a garantia dos direitos
Problema social básicos, feridos de todas as maneiras quando se fala de
crianças e adolescentes envolvidos com o crack e, até
Embora o crack esteja diretamente ligado apenas aos con- mesmo, o tráfico.
sumidores, ou seja, viciados e as pessoas ao redor dele,
toda sociedade fica comprometida pelos problemas que a Como forma de amenizar os inúmeros problemas gera-
droga traz. Além do comprometimento da saúde dos usu- dos pelas pedras, ele acredita que uma reorientação
ários, os problemas sociais também ficam em destaque. orçamentária e investimentos pesados nas políticas de
prevenção, nos programas sócio-educativos, na geração
Para falar sobre o assunto, o cientista social e, também, de empregos e na garantia de habitação seriam ideais.
conselheiro tutelar, Diney Lenon, garante que a dissemi- “Daria uma anestesiada.”
nação do crack está intimamente ligada com os concei-
tos pregados pela mídia e pela sociedade como um todo. Já em longo prazo, Lenon é mais pretensioso e crê em
O individualismo é fortalecido de todas as formas, gera- uma discussão e mudança na educação que existe
se a busca pelo prazer imediato por parte dos jovens, o hoje. “O que leva a uma consciência individualista,
que os atrai rapidamente ao universo das drogas e, mais utilitarista e imediatista. Temos que garantir sonhos
precisamente, ao esfumaçado mundo do crack, onde a para nossa juventude, por meio de um novo modelo de
cor predominante é o cinza, sem vida. educação, novos valores, para que o jovem venha a ver
374 Traficando conhecimento Estatística 375
a droga como algo chato e não como algo legal. Muitas que as mesmas viciam com mais rapidez e, dessa forma,
vezes, o bandido é o que é apresentado como referên- degeneram, também com mais rapidez o usuário, o dele-
cia e isso contribui muito. As crianças sonham em ser gado acredita que em razão do crack ser um subproduto
bandidas, traficantes, usuárias de droga, e seria impor- da cocaína, o lucro pode ser maior e consequentemente,
tante mudar este desejo, esta visão”, ressalta. em razão dos usuários serem ainda mais viciados, as
vendas crescem. “Se entendermos que com cada grama
Trabalho policial de cocaína pode-se fazer três ou quatro pedras de crack
Diariamente, usuários ou traficantes são presos portando e, se cada uma é vendida por R$ 10, o traficante alfere um
drogas e o que, antigamente, era maconha ou, até mesmo, lucro bem maior”, acredita.
papelotes de cocaína, hoje, foi substituído pelo crack. Para ele, o que faz com que o número de apreensões
Nesta semana, a Polícia Militar da cidade apreendeu cresça é somente a procura pela droga. “Em geral o crack
crack todos os dias em pontos diferentes do município, é encontrado com pessoas de mais baixa renda, muito
mostrando que a droga, não atinge somente as pessoas embora o papelote de cocaína e a pedra de crack custem,
de baixo poder aquisitivo, como também as pessoas das a princípio, a mesma coisa, em geral, são pessoas de
castas mais elevadas da sociedade. menor poder aquisitivo e as pessoas que são pegas, com
Não diferente, na Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, o cocaína, com um poder aquisitivo um pouco maior, mas
crack, sem dúvida, é o responsável pelas maiores apreen- acredito que a forma como as pessoas estão se viciando,
sões. Ainda não existem levantamentos sobre o quanto de vá se alastrar aos poucos nas classes mais altas”, diz.
crack foi apreendido, porém, destaca-se que as apreen- O delegado acredita também que a Polícia seja a última
sões ficam em torno da droga. Para falar sobre o assunto, medida no que se referente ao combate às drogas e critica,
o delegado Carlos Eduardo Galhardi Di Tommaso destaca também, a Lei nº 11.343, conhecida como Lei de Tóxicos e
que nos últimos anos, o crack vêm assumindo o papel que que, recentemente, completou dois anos.“A cocaína vem
a maconha e a cocaína tinham. “Antigamente, elas eram do sul ou dos países fronteiriços e, para chegar aqui, bas-
drogas muito difundidas, hoje o crack, que é um subpro- tante gente já falhou, né? E a polícia é o último caminho.
duto da cocaína, assume este papel. Nós percebemos A rigor, teria que ter um apoio aos dependentes químicos
que a maioria das apreensões ultimamente de drogas é de mais intenso. Seriam lugares destinados para eles se
crack. Sejam grandes porções, sejam pequenas porções, livrarem dos vícios. Infelizmente, o que podemos perceber
já destinadas à venda, ou mesmo o pessoal que é pego é que é muito rara, muito difícil, uma vaga, especialmente
com porte para uso, a maior quantidade é de crack que em estabelecimentos públicos. Existem clínicas particu-
assumiu, roubou o espaço da cocaína, que, hoje, vemos lares, mas, em geral, boa parte da população que é aco-
com menos frequência. Em geral, quando apreendemos metida pelo vício não tem possibilidade de pagar, então a
cocaína hoje em dia, ela é apreendida em grandes volu- minha visão é que deveriam existir novos e maiores esta-
mes, que provavelmente não se destinariam, a princípio, à belecimentos para recepção desses dependentes. Esta
venda, mas para fazer o crack.” seria a saída que cumpriria a Lei por efetivo, para tentar
Questionado sobre as razões de um traficante comercia- diminuir a procura pela droga. Mas nós continuamos com
lizar as pedras de crack, mesmo com a consciência de as apreensões de forma estoica”, considera.
376 Traficando conhecimento Estatística 377
A sugestão de leitura do livro “Crack – O Caminho das rança Pública, chefiada pelo delegado Carlos Eduardo
pedras” feito pelo jornalista, já falecido, Marco Antônio Galhardi Di Tommaso, recebe em média três denúncias
Uchôa também pode ser trabalhado e difundido entre os por dia relacionadas ao tráfico de drogas.
jovens, que pareciam poucos, mas que, como multipli- O último levantamento feito pela Polícia Civil em 2008
cadores de informações positivas, eram muitos. Assim, aponta que 14 adolescentes foram autuados por envolvi-
poderia parecer clichê ou repetição, mas achei neces- mento direto com o tráfico e que tiveram 83 ocorrências
sário falar sobre o problema e surgiu o texto da matéria de menores que fazem uso de drogas. Além dos adoles-
no Jornal Mantiqueira, onde estreava minha temporada centes, no último ano, um menino de 11 anos foi condu-
com a estatística. zido pela Polícia Militar até a 25ª DRSP, por estar com
drogas dentro de um saquinho de salgadinho na Cadeia
Envolvimento de menores com o tráfico aumentou 277% Pública, acompanhado pela mãe, que para fugir do fla-
no último ano grante, fez com que o filho segurasse a droga. O menor,
conforme manda a lei, foi encaminhado a programas de
Levantamento feito pela Polícia Militar mostra o aumento
apoio através do Conselho Tutelar.
significativo de crianças e adolescentes que se envolve-
ram com o comércio de drogas em 2008. “O que percebemos dos adolescentes é que eles são
facilmente seduzidos pelas pessoas mais velhas a fim
Jéssica Balbino
de ganharem um dinheiro fácil e terem acesso a algumas
Poços de Caldas (MG) – Repetitivo, porém assustador, o mordomias, ou bens de consumo, que a mídia expõe como
número de crianças e adolescentes envolvidos com o trá- coisas muito interessantes e, então, eles acabam acredi-
fico de drogas aumenta diariamente e sem mecanismos tando que tem de ter de qualquer forma, daí o tráfico”,
de recuperação ou punição se torna impossível contê-los. avalia Tommaso, delegado de Tóxicos e Entorpecentes.
rencial paterno positivo, sem referencial materno e que o auto da apreensão em flagrante. Mas, geralmente, eles
começam muito cedo na rua, se agrupam com outras são postos em liberdade aos cuidados dos familiares, para
crianças entram muito precocemente nas drogas, sendo que respondam um processo na Vara da Infância e Juven-
influenciadas por adultos muito cedo”, comenta. tude por aquele ato infracional. “Via de regra, mesmo após
aplicação de reprimenda final que no máximo é o encami-
Por não existir um centro de reabilitação em Poços de
nhamento a uma instituição de recuperação, estes jovens
Caldas, o envolvimento dos menores no tráfico fica
são orientados a prestar algum serviço comunitário ou
favorecido e de certa forma, impune. “Quando a Lei dis-
encaminhados a alguma outra instituição para que sejam
põe de forma tão diversa da censura aos menores, tem
atendimentos por psicólogos, mas não sofrem nenhuma
como objetivo a ressocialização, independentemente da
repressão mais intensa”, enfatiza Tommaso.
imposição de uma pena. Só que, para isso, é preciso de
uma estrutura que corresponda a essa expectativa de Questionado sobre o fato de terem crianças apreendi-
reestruturar a pessoa e a maioria das cidades não tem das em razão do tráfico, ele esclarece que os menores
isso. Nós observamos que não podemos prender estas de 12 anos não deveriam sequer ser levados à Delegacia e
crianças e adolescentes, então eles retornam para as a Polícia, e que nesses casos, não se pode fazer nada.“A
ruas e repetem o ato infracional”, queixa-se o delegado. única coisa que se faz é não constranger, de maneira
nenhuma a criança e não tomar nenhuma medida poli-
De acordo com a psicóloga, tal comportamento por parte
cial. Apenas contatar, imediatamente, os familiares e na
dos menores pode ser atribuído a uma psicopatologia
impossibilidade de contato, o Conselho Tutelar”, revela.
chamada delinquência. “Ao contrário do que as pessoas
pensam, a delinquência não é apenas um comporta- Opção
mento, é também um desvio de caráter considerada uma
doença como esquizofrenia ou psicose e ela faz com que Para reverter o quadro cada vez mais alarmante, Mariân-
os jovens e adolescentes busquem esta vida mais fácil e gela pensa que um trabalho social e de conscientização
isso, somado às influências familiares, contribui para o feito com as crianças, os adolescentes e os pais poderia
ingresso destes menores no tráfico”, explica. ser uma opção.
Mariângela compartilha ainda da mesma opinião que “É um caso complexo. Uma falta de tudo. Precisaríamos
Tommaso em relação à influência da mídia no comporta- de um trabalho muito benfeito que envolva saneamento
mento dos jovens que ingressam no tráfico.“Acredito na básico, alimentação, escola e educação. Talvez institui-
influência social na questão do ter. Isso contribui, além ções que fazem estes trabalhos podem ter algum resul-
da falta de instrução e de carinho”, diz a psicóloga. tado”, diz. Tommaso acredita que locais para recepção
destes menores pode ser uma opção de ressocialização
Procedimento e que talvez reverta o quadro: “Um local para que eles
ficassem mais ocupados, fossem reeducados e que não
A máxima punição aos menores envolvidos com o tráfico
fossem novamente presas fáceis aos traficantes mais
de drogas é a internação em algum estabelecimento de
velhos. Em relação às crianças, eu não sou um defen-
reintegração social, no entanto, como a cidade não possui
sor da redução da maioridade penal. As pessoas jovens
um, em geral, quando os adolescentes são apreendidos, há
mesmo não tem essa capacidade de discernimento, de
384 Traficando conhecimento Estatística 385
Literatura, pedras
e sementes
386
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392 Traficando conhecimento Estatística 393
Não há dados científicos ou computados quanto aos O filme trata, também, sobre as origens e os antepas-
resultados, mas o fato é que, por meio de uma pesquisa sados, tema que os adolescentes passam a respeitar
empírica com a arte-educadores e instituições que, de desde que ingressaram no projeto.
alguma maneira, nos últimos dois anos tinha traba-
Por meio de incentivos assim, muitos que eram ausen-
lhado com hip-hop ou literatura, mais de 1000 jovens já
tes na escola voltaram a frequentar a sala de aula pela
tinham passado de oficinas itinerantes, onde também
manhã, com melhora no comportamento, na concentra-
estive presente com textos da literatura marginal, ora
ção e nas notas. Sou convidada para um dia específico
feitos por mim, ora feitos por estudantes e, também,
levar um pouco das oficinas até eles. Combino e marca-
do cenário nacional. Com lares desfeitos ou abalados
mos uma noite. Chego e o clima de sarau toma conta do
pelo crack, por pais adictos, familiares dependentes do
ambiente. Os garotos chegam e o acontecimento – ficar
álcool, todos os jovens integrantes do projeto Chico Rei
horas longe de casa, da televisão e não estar fazendo
são vitimas do desemprego, da humilhação e da falta
algo reprovável, é quase inédito – os mobiliza a ajuda-
de saúde e educação.
rem a arrumar cadeiras, mesa e telão.
Com a mesa desfeita e a barriga vazia, grande parte
Aos poucos o salão lota. Mães, pais, avós e vizinhas.
estava ali, inicialmente, para receber o lanche ofere-
Muitos vêm saber o que vai acontecer ali. Abro uma
cido pelos responsáveis pelo programa que mais do
pasta e retiro um caderno do Jornal Mantiqueira. O que
que o estômago, encheu a alma. Completaram-na com
estou trabalhando atualmente e que me permite, vez ou
sonhos, com palavras, com arte, cultura e poesia. Em
outra, publicar textos de amigos da literatura marginal.
pouco tempo estavam apegados aos livros e com o senso
Começo a ler o texto e só depois que termino, explico.
crítico fortalecido. Minha visita aconteceu em uma tarde
em que pude fugir do jornal. Com trabalhos feitos a partir A presença da mulher na sociedade de hoje
de notícias ocorridas no próprio bairro deles envolvendo
Por Renato Vital
polícia e, não raras vezes, pessoa conhecidas, eles apren-
deram a gostar de ler o jornal e entender a importância de Qual seria sua reação, ao se deparar com uma mulher
estar por dentro dos acontecimentos da cidade. dirigindo um ônibus há vinte anos atrás? Muitas pessoas
ficariam, no mínimo, assustadas com a cena, por não
Com iPods, MP3 e outros tocadores de músicas, eles
se tratar na época de um fato comum. Ao compreender
mostram, entre si, durante o intervalo, raps nacionais
o assunto, podemos notar a evolução das mulheres na
novos e, quando pergunto algumas coisas básicas sobre sociedade e no mercado de trabalho. Pois, hoje em dia,
o conhecimento do hip-hop, eles não hesitam em me res- é normal nos depararmos com mulheres ao volante,
ponder sobre a origem dos ritmos, da dança e da música. mulheres escritoras, jornalistas, policiais, bombeiras,
Pergunto quanto à produção literária e a coordenadora médicas, jogadores de futebol etc.
do projeto mostra algo escrito por eles. A volta do inter-
Especialistas afirmam que elas se destacam por serem
valo acontece quando eles podem assistir um filme
ágeis, organizadas, sensíveis e detalhistas. Outras pes-
exibido num telão conseguido para o centro cultural.
soas dizem apenas que essa evolução feminina se deve
394 Traficando conhecimento Estatística 395
pelo quesito boa aparência. Quer dizer que as empresas, supermercado e que passa os mesmos venenos diários
em vez de contratarem mão de obra masculina, utilizam- que todos nós a publicar o texto no jornal.
se da beleza e exuberância da mulher, afim de causar boa
impressão em seus clientes, sócios, associados etc. Mostro que não apenas o Jornal Mantiqueira tem este
espaço, como todos da cidade podem abrir a coluna
Mas as mulheres, por sua vez, alegam que a presença Opinião ou Espaço do Leitor para que jovens, adultos e
maciça no mercado de trabalho foi causada pelas diversas
idosos publiquem o que pensam sobre tudo que os leva
manifestações e piquetes, que aconteceram no decorrer
a refletir. Ato contínuo, leio outro texto de Vital, tam-
dos anos. Como sabemos elas conseguiram, na base de
bém publicado no jornal.
lutas e conquistas, os direitos de voto, atendimento espe-
cial nos hospitais e postos de saúde, a Lei Maria da Penha
Não aponta o dedo
(que as protege da violência machista), entre outras.
Por Renato Vital
Podemos dizer que a ousadia delas é, na grande maio-
ria dos casos, motivo pelo qual ocupam esse espaço na Madrugada fria, e não tem desculpa, não tem choro, não
sociedade, que, em alguns anos, poderá ser ainda maior. tem pelo amor de Deus, ou levanta para trabalhar ou vai
É uma pena que muitas consigam destaque apenas com se ver com o patrão. O patrão também acorda cedo, se
apelo sexual, ao posarem nuas em revistas masculinas ele, que é patrão, levantou cedo, você não pode fazer
ou mostrarem o corpo de maneira explícita na televisão, diferente. O trabalhador não tem escolha, o patrão às
em variados programas (muitos deles dominicais). vezes também não tem escolha, o presidente, muitas
vezes, não tem escolha, e quem escolhe então? O patrão
É lamentável, também, que muitas delas confundam:
acorda cedo, porque sabe que tem pagar os funcioná-
“espaço e direitos iguais” com “liberdade sexual e des-
rios, ele sabe que tem que pagar imposto, ele sabe que
valorização ideológica e de seus próprios corpos”, como
se não pagar as contas os agiotas vão ligar para ele, o
acompanhamos em bailes funks entre outras festas de
patrão sabe que precisa vender, o patrão às vezes não
apelação sexual feminina. É bom nos apegarmos aos
queria, mas é obrigado a pagar pouco, porque é pouco
bons exemplos de mulheres de coragem e firmeza, para
que lhe sobra, mas, muitas vezes, o patrão também fica
que possamos assimilar bem essa evolução, pois daqui
com a parte mais gorda do lucro. O empregado sai de
há alguns anos, será comum irmos a um estádio de fute-
casa todo dia, rumo ao trabalho, seu descanso é tempo-
bol e assistir a jogos de futebol feminino.
rário, o tempo menor, talvez o sábado e domingo, ou só o
Escrito pelo rapper e escritor Renato Vital, da Zona Sul domingo, ou uma folga por semana, ou cinco folgas por
de São Paulo, o texto traz muito do que vivemos aqui, mês. Hora extra quase não existe mais, é só banco de
onde todos andam sujos, como a mente da sociedade, e horas, tudo controlado pelo sindicato. O patrão chega
trazem — ora no corpo, ora na alma — sequelas de uma em casa e liga a televisão, o empregado chega em casa
e liga a televisão, um assiste futebol, o outro também, o
vida miserável. Comento como é possível se expressar
empregado pega sua camisa pirata do time do coração,
por meio da literatura periférica e como isso pode che-
o patrão pega sua camisa oficial do time do coração,
gar a um veículo de comunicação. Conto que convidei
mas que comprou na promoção. Ninguém aponta o
o jovem de pouco mais de 20 anos, funcionário de um
396 Traficando conhecimento Estatística 397
dedo para ninguém, no mundo social assim é melhor, na Para não deixar cansativo, no telão, exibi o documentá-
sociedade em que vivemos nada se pode apontar, nem o rio “Hip-Hop: A Revolução que vem das ruas”, produzido
lápis que o menino não quer usar, o futebol é mais atra- pela jornalista Érica Guimarães, em 2007, pela Unip de
ente que a prova de matemática. Na televisão algumas Campinas. Sem narração, os próprios personagens con-
pessoas são apontadas como culpadas, temos obras tam a história desta cultura e conforme o Zulu King, Nino
superfaturadas, temos “big luxo”, casas na praia, a pro-
Brown – representante da Zulu Nation no Brasil – define,
paganda de turismo pro empregado soou como piada,
não há hip-hop sem conhecimento, sem saber dos ante-
enquanto a mulher do patrão interrogou o esposo:
passados, sem voltar no tempo e percorrer as próprias
Pra qual praia vamos no próximo recesso? raízes, sem a leitura e sem a escrita.
O patrão pensa sozinho “Não vou para praia, se julho for Nos olhos dos garotos que queriam tudo e não tinham
lucrativo”. A patroa adivinha o pensamento do patrão quase nada, pude ver um rastro de esperança, rondando
e solta uma exclamação: “Pensando em trabalhar nas aquelas pequenas mentes com corpos tão sofridos.
férias de novo? Não cansa não?”. O patrão tenta dizer Senti, novamente, que algo havia mudado. Entretanto, a
algo, mas é novamente abduzido pela propaganda que maior transformação acontecia dentro de mim, que não
mostra cerveja e praia. Quem abre livros para ler no país
deixava uma escola, um centro cultural, uma quebrada,
do carnaval? O patrão se preocupa com o lucro, o empre-
sem ter lágrimas nos olhos por ter plantado, mesmo que
gado com o salário no fim do mês, e o livro fica dando
bem pequena, a sementinha do conhecimento na vida de
sopa para quem? Algum estudante quer saber de Dante,
crianças e adolescentes que até então só tinham rece-
enquanto mal sabe da sua origem? Os livros vão se empo-
eirando em alguma estante, empregaram o espanador e
bido as pedras da ignorância.
o aspirador de pó e só, ou será que eles, um dia, vão ser
percorridos, com suas páginas já amareladas, mas que
trazem palavras claras e precisas sobre o mundo que
vivemos? Deixa para lá. Se alguém apontar o dedo, dedos
serão apontados, mas o que a gente sabe é que o lucro
virá novamente e as contas, também, e o empregado
ficará com o quê? Não sei lhe dizer!
de pesquisa, que sei, ainda vai levar anos, até que seja
Do verbo produzir admitida em um mestrado de comunicação e possa tra-
balhar a produção literária vinda das quebradas.
Através de questionários, muitos escritores e afins da
literatura, frequentadores de saraus e agitadores cultu-
rais me contaram mais sobre o universo e toparam fazer
parte da pesquisa. Sem parar, me lancei novamente em
oficinas, desta vez em outras regiões e sem a obrigatorie-
dade de ser com estudantes. Bastava que quem estivesse
a fim aparecesse, até porque quem não quisesse não iria
Mudar de emprego foi a melhor opção feita por mim se dispor a receber dicas de livros, textos e filmes.
desde que ingressei na vida “dos que tem carteira assi- Jovens apegados aos livros para o fortalecimento do
nada”. Estava ganhando a mesma coisa, entretanto, senso crítico. Esse era meu objetivo com as oficinas.
havia deixado o tronco e as chibatadas para a liberdade Fazer com que eles parassem de achar que porque eram
de produção e qualidade de textos. Profissionalmente o pobres, muitos deles negros e moradores da periferia
salto foi incrível. Ingressei em um jornal maior, com mais não tinham muito alimento nas mesas, precisavam ser
estrutura, onde posso aprender, até hoje, diariamente, acomodados e conformados com a existência de miséria
as artimanhas do fechamento, da edição e do direciona- que o sistema nos oferece.
mento das matérias.
Como exemplo, passei a usar a minha própria vida e traje-
Tenho ainda mais espaço para divulgar os eventos de tória. Encontrar um emprego não é fácil. Ganhar bem é o
hip-hop, os escritores, os movimentos literários Brasil mesmo que acertar seis números na loteria. Mas frequen-
afora e, ainda, a coluna das opiniões, onde vários ami- tar, mesmo firme, a escola pendenga. Comer, mesmo fria,
gos já puderam participar com textos e crônicas da lite- a marmita amassada e procurar, mesmo com uma enorme
ratura marginal. Sem ser obrigada a produzir inúme- coleção de nãos. Nunca desisti de me encontrar e conti-
ras matérias por dia – incumbida de fazer apenas uma, nuava, de alguma forma, lutando por aquilo que acredito.
desde que fosse boa – pude pensar mais no que poderia
Não é pecado ter a barriga vazia, mas a mente sem ide-
fazer em relação às oficinas, em relação à própria vida,
ologia é quase um crime, se não te leva para o mundo do
além de ter mais tempo para ler e assistir documentá-
mesmo. A minha pequena trajetória passou a ser exem-
rios e filmes relacionados com a periferia.
plo, citada com a de outros parceiros que também tive-
A ideia antiga de trabalhar, antropologicamente, a lite- ram caminhos parecidos, mas que sempre foram firmes
ratura produzida nos guetos voltou à mente e mais uma ao dizer não para os convites às drogas e sim para o con-
vez, com ajuda de amigos e através da internet, entrei vite às leituras. Dispor ideais escritos por mim nem sem-
em contato com vários autores e comecei um trabalho pre era uma tarefa fácil. Muitos passavam para uma fase
400
402 Traficando conhecimento Estatística 403
comparativa do tipo: “Mas na sua casa tem tal coisa. de lixo para encher a barriga. Orgulha-se de nunca ter
Mas você pode fazer tal coisa. Mas você tem apoio”. usado drogas e de ter parado de fumar, vício que adqui-
Optei, então, por usar e casar, textos e relatos meus riu por achar “chique”, ainda adolescente.
com os de outros escritores que tem a mesma situação.
Cuidou/cuida dos familiares, até hoje. Tentou a sorte em
Pareceu funcionar e, através de blogs e mesmo do orkut,
São Paulo no ramo da metalurgia, vivendo no caos do
que não gosto, mas acho uma ferramenta de inserção e
transporte público, nas horas intermináveis trabalhando
até mesmo de divulgação, os jovens, e até as garotas,
feito máquina e botando brioche na mesa do patrão,
que, como nas crews, passaram a aparecer um tempo
retornou a Poços e nem tanta coisa mudou. Assim como
depois, formaram uma integração e listas de discus-
meu pai, cursou até o 4° ano primário e, nas horas vagas,
sões sobre os textos.
quando termina de cuidar da casa e preparar a minha
Citar MV Bill e Racionais MCs, rapper e grupo dos quais marmita, se senta e lê tudo que encontra pela frente.
todos tinham bastante afinidade por conta das letras
Diante das pequenas passagens, que faço questão de
também se tornou uma ferramenta importante, até por-
contar para que todos os jovens saibam que as dificul-
que, ambos já participaram de saraus, livros, prefácios
dades existem na vida de todo mundo e que os caminhos
e tudo mais. A literatura e a leitura, até então vistas
somos nós mesmos que traçamos. Basta termos força
como chatas, se tornavam coisas importantes porque
de vontade e discernimento para mudar a própria peri-
os “espelhos” também estavam praticando.
feria e as oficinas caminham de forma mais produtiva.
Algo que sempre fiz questão de ressaltar foi um pouco
Por falar em produção, após dois anos de trabalho com
da vida e luta dos meus pais. Aposentado no ramo da
as oficinas, somente quando elas se tornaram itinerantes
metalurgia, meu pai começou a trabalhar aos seis anos,
e através da internet foi possível ver o empenho e desejo
quando levava marmitas, vendia bucha de aço na feira e
dos garotos em produzir textos. Com o ingresso de garotas
ajudava os pais com o orçamento doméstico. Nas horas
nas oficinas e encontros, a produção ficou ainda maior.
vagas, catava balas de goma descartadas ao lado de
Não sei se são mais sensíveis, mas o fato é que passaram
uma fábrica. Nunca teve qualquer luxo. Estudou até o 4º
a escrever ainda mais. Muitos questionam, perguntam,
ano primário e fez de tudo para me dar estudo. Sempre
especulam: “O que pode virar conto, texto, notícia?”
gostou de ler, fazer palavras cruzadas e tem uma mente
incomum para resolver problemas e praticar a hones- Respondo que as cenas inéditas no papel e cansati-
tidade. Enfrentou problemas na capital paulista como vas na vida são ótimos começos: a goteira que pinga na
qualquer pessoa pobre enfrenta. Hoje, continua vivendo cama, o vizinho que ninguém quer ter, o invisível que nin-
em um local pobre, não tem plano de saúde e com diver- guém quer ver, o mendigo que todos tropeçam e as crian-
sos problemas, enfrenta horas para ser atendido. ças que já não sorriem. O pessoal quer saber se relatar
a própria vida funciona... Não existe fórmula e, pelo fato
Já minha mãe cresceu sem mãe. Criada pela avó anal-
da literatura estar às margens, tudo vale.
fabeta até os 13 anos, ficou sozinha no mundo. Também
trabalha desde os 6 anos. Passou fome. Comeu restos
404 Traficando conhecimento Estatística 405
Alguns, que já desistiram da escola, passam a ler bas- Transforma-se em uma pessoa inválida de guerra, mas
tante e pensando em escrever, ignoram o analfabetismo é uma guerra urbana e social, que deixa sequelas de
e pensando bem, ler e escrever são brindes em um país variados tipos. Ela se transforma em uma aleijada, tipo
de estatísticas. O último levantamento feito pela Secre- aqueles que se arrastam pelas ruas da cidade com seus
taria de Promoção Social mostra que a cidade tem cerca passos incertos queixando-se dos muros invisíveis, que
os impedem de serem pessoas – seres humanos.
de 500 analfabetos. Menos de 1% da população. E esta é
mais uma estatística, que me inspira um texto. Bem real: A maior tristeza que me invade repentinamente, várias
vezes ao dia, é a lembrança de vê-la olhando o jornal e
Invisibilidade tentando compreender quais eram as notícias que aque-
Por Jéssica Balbino las folhas impressas com letras, fotografias e infográ-
ficos traziam e que, para ela, fazia parte de um mundo
O cheiro da sujeira misturada com a pobreza é insupor- ainda mais distante.
tável. Permanecer poucos minutos nos dois cômodos da
casa é sufocante. As garrafas pet, sapatos velhos, peda- Entristeço-me cada vez que lembro de como deve ser
ços de madeira, de ferro e muito papel ficam empilhados duro o dia a dia de quem não entende as letras. Penso
e obstruem a passagem para os demais cômodos e dão à que seria, então, um desperdício não incentivar a leitura
casa um aspecto de aterro sanitário. daqueles que podem ler e não o fazem.
Quando é questionada sobre o porquê de tanta sujeira Todas as vezes que me deparo com esta realidade,
acumulada, ela tenta se defender e, enrolando a língua, lembro-me da história contada por meu pai. Cheio de
tropeçando nas palavras, diz que não vai se desfazer de emoção e, também, de angústia ele sempre relata que a
“suas coisas”, que, para quem observa do lado de fora mãe dele – a avó que não tive a oportunidade de conhe-
(tanto da casa como daquele mundo), não passa de um cer – certo dia estava folheando uma revista de cabeça
monte de lixo e um convite para focos de dengue. É quase para baixo. “Foi duro ver aquilo”, ele sempre comenta,
incompreensível o que ela quer dizer. Ela é surda. E, por quando conta a passagem.
ter nascido assim, não aprendeu a se comunicar. Por E voltando à dona de toda a bagunça – lixo – acumu-
causa disso é analfabeta e, dentro desta situação, se lada em uma pequena casa, por se encaixar em tantas
transforma em mais uma estatística. Ou em muitas. estatísticas e ao mesmo tempo ficar do lado de fora dos
Brasileiros que recebem benefício por incapacidade de padrões impostos pela sociedade, foi despejada do local
trabalhar. Brasileiros que vivem em situação de risco. Bra- onde vive sem direito à defesa. Foi atropelada. Não há
sileiros que são completamente analfabetos. Brasileiros quem queira cuidar até que ela se recupere.
que ganham apenas um salário mínimo. Brasileiros que Nunca fez mal para ninguém. Nunca teve desejo de rique-
pagam aluguel. Brasileiros que não podem se alimentar zas materiais. Nunca desejou ter mais do que tinha. Nunca
de forma decente. Que vivem sem higiene. Que tem pro- conseguiu expressar sua indignação diante de um mundo
blemas mentais. Que se transformam em mais um ou são “injusto”, que escraviza quem já nasce condenado, por
divididos em vários, por categorias, deixando de pensar, nascer no meio de pobres e da pobreza. Nunca conseguiu
sentir e, até mesmo, de existir. Vira apenas um número. construir uma identidade. Nunca conseguiu comer carne
todos os dias. Nunca conseguiu se desgarrar da cultura
406 Traficando conhecimento Estatística 407
Pela primeira vez conseguiram cobertura de todos os veí- Por ser um evento tradicional na capital, mais de 150 pes-
culos locais e chamaram ainda mais atenção por serem soas frequentam o sarau toda semana e saber que o texto
um grupo de rap, estilo pouco apreciado em competições chegou a todo este público foi um ponto bastante impor-
e, mesmo assim, terem alcançado uma boa colocação. tante. Objetivos alcançados. Disseminação de conheci-
Com as portas abertas por conta da participação, fica- mento e de informação. Lembro do primeiro contato com
ram em primeiro lugar no Festival Rap Popular Brasileiro o Bruno, quando ele pediu o livro, disse que o que estava
de Belo Horizonte, como em uma seletiva para o Festi- escrito estava mudando a vida dele, que ele queria ler e
val Hutúz no Rio de Janeiro. Para fortalecer, não apenas conhecer, cada vez mais, sobre a própria história. Como
o profissionalismo como a amizade, me apresentei como um filme rápido, enquanto eu assistia a apresentação,
assessora de imprensa deles e todos ganhamos. repensava em toda trajetória e enfim, sorri realizada.
408
412 Traficando conhecimento Estatística 413
Como uma maneira de fortalecer o trabalho, fiz uma trarem sua literatura marginal como: Blitz (Crime Verbal),
matéria que consegui publicar no Mantiqueira e, tam- Leo (Comando Rap Mineiro), Arte Favela, Coletivo Voz,
bém, no blog. Confira: Gen (Retrato Radical), Black W, Kadu (S3M). E teve, tam-
bém, uma apresentação do Artista “Novato”, um grande
Literatura Marginal entra pela porta da frente no Palá- nome na literatura marginal em Minas Gerais.
cio das Artes em BH Jéssica Balbino - Como foi a performance feita pelo
por Jéssica Balbino seu grupo?
Budog - Olha, foi muito louca a performance, mas vou
Na última semana o MC Budog, 25 anos, do grupo de rap
avaliar de uma forma geral. Seguinte, Ice band abriu o
mineiro Elemento .S participou do evento Terças Poéticas
espaço para todos nós, como disse anteriormente, e em
no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Com os integran-
cima disso ele montou um único espetáculo com todos
tes Pquena e Rapper Julim, o texto “Olhar para o hip-hop
os grupos, vestidos como marginais. “Assim a sociedade
que...”, escrito por mim, do livro “Suburbano Convicto”
julga, né? Apenas pela aparência.” Mas então, estávamos
foi lido pelo grupo, que caracterizados e em uma perfor-
a maioria de touca cobrindo a face, outros de óculos escu-
mance singular, fizeram uma cena impossível de deixar o
ros, jaqueta, alguns sem camisa, pois estava amarrada
público calado, ou alheio.
em seu rosto cobrindo toda a face. A ideia foi causar um
Jéssica Balbino - Como funciona o evento? impacto no público e mostrar que o marginal que eles jul-
Budog - O evento se chama Terças Poéticas, é realizado gam, também tem talento, e que não deve ser julgado pela
todo ano nos jardins internos do Palácio das Artes, em aparência e sim, pelo caráter e pela sua atitude. Enfim, a
Belo Horizonte, local de grande nome e difícil acesso performance, em geral, foi um sucesso, foi mil grau!
aos eventos da cultura hip-hop, mas graças a Deus e ao
Jéssica Balbino - Parece que rolou uma homenagem
esforço dos artistas, as portas para a cultura estão se
aos nomes da cultura hip-hop e literatura marginal que
abrindo! Os artistas passam por uma seleção e tem um
já se foram? Como foi?
espaço para estar divulgando seu trabalho, lembrando
Budog - A apresentação foi um tributo feito aos artistas
que está é a primeira vez que a cultura marginal, ou
da cultura hip-hop que já se foram. Cada poeta ao finalizar
melhor, a literatura marginal teve seu espaço e conti-
a literatura, poesia, prestava a sua homenagem aos mes-
nuaremos batalhando para conquistar cada vez mais.
mos, vitimas do descaso, do sistema, do crime etc. “Acho
Como disse a jornalista Janaina C. Melo (Mina Jana) e
que o motivo da morte não importa, são todos guerreiros.”
Ice band: “O hip-hop entrou nos jardins do palácio pela
Alguns citados foram: Anita Motta, Duke (Retrato Radical),
porta da frente, da próxima vez, estaremos no Teatro do
Sabotagem, Alex F(Sistema Negro), Chacrinha(Decreto
Palácio e seremos convidados a entrar.”
Verbal) e vários outros artistas importantes que, com cer-
Jéssica Balbino - Foi a primeira vez que vocês partici- teza, estão no coração de todos nós!
param do evento?
Jéssica Balbino - Como o público reagiu?
Budog - Sim. Através do rapper Ice Band e de sua esposa,
Budog - Eu achei que o público iria reagir de uma forma
a jornalista Mina Jana, que abriram esse espaço não só
preconceituosa, mas não! Fomos recebidos com palmas
para o grupo Elemento. S, mas para vários artistas mos-
414 Traficando conhecimento Estatística 415
e bastante barulho. Ao final de cada literatura, o público Como o projeto Cultura Marginal tem tudo a ver com a ora-
aplaudia, alguns gritavam “Bravo! Bravo!” Por incrível lidade, o registro do 5º elemento em uma música foi ao
que pareça, fomos muito bem recebidos no Palácio das encontro da ousadia de Suburbano, que fez questão de
Artes, alguns podem pensar assim ao ler essa entrevista: cantar a história do hip-hop e ainda teve a sensibilidade de
“Que bosta, no palácio das Artes, até parece!” Mas para me agradecer, sendo que eles é que sempre me ajudaram.
todos nós é mais uma vitória, também para a cultura
hip-hop, são mais portas se abrindo para a periferia e, “Obrigado Jéssica, pelo seu trabalho, com o hip-hop, meu
com certeza, isso é muito importante. pit stop, onde eu me abasteço (...)”, assim canta Subur-
bano na canção “É tudo nosso”, parte de um projeto, tam-
Jéssica Balbino - Como você avalia sua experiência?
bém do grupo.
Budog – Nossa, sem palavras. Primeira vez que recito um
poema, que participo deste tipo de evento apesar de já A Cultura Marginal em versos, de Poços para todo o país.
estar envolvido no rap que também é poesia, mas dessa Assim aconteceu a divulgação. Em uma outra música,
forma sem beat, sem DJ, foi a primeira e confesso que cantando, o grupo defende a história do hip-hop e pede
gostei! Recitei, junto com meu parceiro Rapper Julim, a respeito. “Respeite o próximo, também é nosso, se você
sua poesia “Olhar para o hip-hop que...”, eu a gravei com pode, eu também posso”, cantou durante o show do
base, com melodia, mas recitar foi diferente. Comecei a UClanos no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
recitar, aí, do nada, me deu uma vontade de falar cada
vez mais alto, às vezes suspirava, falava mais baixo, é Escolhidos para abrir o show de MV Bill e Racionais MCs,
inexplicável, foi ótimo. Muito interessante! o clã de suburbanos se deixa levar pela magia existente
debaixo da lona do Circo Voador. É fácil ser sentida e
Jéssica Balbino – Tem algo que não foi perguntado, mas
vários grupos conseguem curtir os embalos da noite. A
que você acha importante destacar?
Budog - Agradeço à você, Jéssica, e também à Anita
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima
Motta (in memorian), pelo apoio e por ter confiado no entre os afrodescendentes e a utilização de um espaço
nosso “trampo”, por ter cedido a sua literatura para gra- “nobre” no centro da cidade registra também uma nova
varmos como introdução do nosso CD e por permitir que fase da história da cultura hip-hop.
nós, do grupo Elemento. S, possamos recitá-la pelas ruas, “Soul, black, funk, afro... Sou da beleza negra”, assim o
palácios, periferias etc. Agradeço ao Centro de referência
show é aberto na marcante voz de Lu, que, no palco, se
Hip-Hop Brasil pelo apoio e pela oportunidade e, ainda, à
transforma em Lu Afri e exibe, diferente de outras vezes,
coordenação do evento Terças Poéticas. “Não julgue pela
um penteado black power que lembra a força do movi-
aparência, julgue pelo caráter.” Aos guerreiros in memo-
mento nos anos 1970. Pela fisionomia de todos, penso
rian: “Perde-se um homem na Terra, mas ganha-se um anjo
em como aquele momento é importante. Revejo, mental-
no Céu.” Descansem em paz, sua missão foi cumprida!!!
mente, toda a trajetória do grupo, cheia de dificuldades,
Sem parada, o contato firmado com grupo UClanos per- desencontros e, agora, uma vitória. Quando o Flávio, que
mite que eu vá a vários eventos e fique sempre próxima no palco se transforma em Suburbano, exibindo inclu-
do público que trabalho em oficinas e encontros literários. sive o pseudônimo em uma tatuagem, pega o microfone
Estatística 417
nossa história. No centro do Rio de Janeiro, um bairro hip-hop, com textos sobre a periferia de Poços de Cal-
boêmio, em um espaço consagrado artisticamente, raps das, me pediu uma cópia, que, prontamente, lhe enviei
da nossa realidade, pessoas próximas e o hip-hop puro por e-mail. Na época, em 2007, trocávamos e-mails quase
transformam as atividades em paz. diariamente, quando ele me dizia o que estava achando
do livro e o mais emocionante, comentava que a literatura
“Respeite o próximo, também é nosso, se você pode, eu
e o hip-hop estavam mudando a vida dele para melhor.
também posso”, canto durante o show. Quando abro os
olhos, após ter dançado sozinha e embalada na letra, Em determinado momento ele me pediu permissão para
me deparo com um garoto na minha frente. Sei que já vi usar o texto de abertura do livro, que, posteriormente, foi
o rosto dele em algum lugar, mas levo alguns segundos usado em uma coletânea de textos de autores periféri-
para me lembrar de onde o conheço. cos, para fazer a abertura do CD que ele preparava junto
com o grupo. Permissão dada. Mais de um ano depois
É ele. Parto para um abraço sincero e carinhoso, que
recebo via MSN um arquivo em mp3 com a música, que
parece de saudade. Mas, como podemos sentir sau-
marca a introdução do álbum demo do grupo.
dade de alguém que nunca vimos pessoalmente? Nesse
caso é normal. Trata-se de Bruno Eustáquio, conhecido Extasiada pela noite de hip-hop, só consigo chorar,
como Budog MC. Importantíssimo na minha vida por ter quieta no meu canto, pois uma balada precedida por
gravado um texto meu como introdução do CD Demons- uma viagem de quase oito horas, um passeio pelo Rio
trativo do grupo Elemento.S, é uma grande satisfação de Janeiro histórico e um encontro com a essência da
encontrá-lo pessoalmente. cultura nascida nas ruas e que faz parte do meu dia a
dia periférico, é inesquecível.
Ganho um CD, com dedicatória, e uma homenagem para
Anita Motta (em memória) no encarte do álbum. Fico Um tempo depois, que não sei precisar quanto, enxugo
extremamente feliz por saber que ele está distribuindo as lágrimas, procuro o Bruno, agradeço de forma decente
as cópias no Hutúz. Ele pede licença e se afasta para dis- e recito, mentalmente, o texto, que foi escrito às pres-
tribuir outras cópias. Afasto-me de choro sozinha. Feliz, sas, em uma noite chuvosa do mês de outubro de 2006,
completa, realizada. Neste instante, lembro e canto quando precisava de algo como introdução para o livro e o
mentalmente “tua ausência fazendo silêncio em todo diagramador precisava terminar aquele trabalho.
lugar”, música do Teatro Mágico que, embora não seja
Na sequência, me sento na escadaria que dá para o palco
gravada sobre bases de rap, também mistura ritmo e
e apenas ouço o show do MV Bill e um trecho do show do
poesia. Apesar de todo o som rolando, sinto o silêncio da
Racionais MC’s, feliz pelo momento, pela conquista e pela
ausência dela, que poderia estar ali, naquele momento,
experiência que posso levar para a minha quebrada e tra-
somando e curtindo conosco, se emocionando, também,
balhar lá, reunindo os elementos do hip-hop, que buscam
por ouvir um texto transformado em música.
congregar os perifericamente excluídos de todo país.
A “conquista” surgiu naturalmente. Assim que Bruno leu,
Com a gravação da música, mais uma prática oral pode
em um site, que eu era uma das autoras de um livro sobre
ser incorporada a oficinas e encontros com jovens.
420 Traficando conhecimento Estatística 421
Resultados. Apresento-a como o resultado de um traba- das favelas e o colorido do grafite, que vem, de alguma
lho de tantos anos. Viver, conviver, me inspirar, escrever forma, colorir a vida periférica.
um texto, publicar, divulgar e posteriormente, vê-lo gra- Aí está a identidade dos excluídos, com suas expressões
vado como música. artísticas marcantes, que refletem as expressões desen-
Quer orgulho maior? A quebrada de Poços de Caldas já volvidas a cada dia, atrás da vontade de mudança que
ecoa dos becos e vielas.
tinha chegado em Belo Horizonte e, agora, estava inva-
dindo o Rio de Janeiro. Com vários CDs demo na bolsa, A alma do povo que arde nos locais mais pobres, cla-
Bruno distribuiu todos eles entre pessoas de diversas mando por socorro, vem do lado negro e inferiorizado,
partes do Brasil. Mesmo sendo uma cópia demons- batendo de frente com uma sociedade que se faz de
trativa fiquei absurdamente feliz por ver meu trabalho morta para esta identidade que movimenta-se em seus
circulando. contrastes a cada dia, fazendo vibrar o grito desespe-
rado que vem dos guetos.
Fiz questão de reportar a gravação da música no jornal
e, como os contatos são tudo na vida... A Kaká Soul, irmã Sonhos embalados com som de tiros e barulho de fome,
de hip-hop, de TCC e de ideais, me pediu um texto para roncando no estômago, registram a identidade, sofrida,
da periferia.
o marido dela, Alemão. Ele estava entrando em estúdio
para gravar o CD Identidade e queria uma introdução. Saiu Seja onde for, marcada pelo tráfico, pelo medo e pelo
o texto abaixo, que entrou para o CD e desta vez circulou desrespeito. Ritmada por letras de rap refletem a violên-
no centro-oeste brasileiro, na cidade de Goiânia (GO). cia, as drogas e o domínio dos que se julgam mais forte.
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426 Traficando conhecimento Estatística 427
pessoas refletirem naquilo que acontecia na realidade O público presente no evento começa a sair pelas laterais
deles. Nós estamos fazendo a mesma coisa. A gente do ginásio, e a festa chega ao fim com meia dúzia de pes-
passa a informação a fim de fazer as pessoas refleti- soas. Os viajantes, que acompanharam o grupo Manus-
rem naquilo que nós vivemos. O que nós vivemos? Uma critos, fazem pose em frente ao grafite recém-pintado.
vida diferente, com Cristo (...). A gente usa o hip-hop para
Um dos jovens que se converteu há poucos minutos vem
falar do amor de Cristo, para pregar o evangelho, é basi-
querendo tirar uma foto, em uma mão ele segura um
camente isso.”
cigarro aceso e, na outra, a bíblia. Parece estar bêbado e
Ao mesmo tempo, enquanto os organizadores do evento sem coerência no que diz, mas promete, com a voz elevada,
vibram por verem jovens convertidos, do lado de fora do que daquele momento em diante, será uma nova pessoa,
ginásio alguns deles estão bebendo “tubão”, uma famosa seguidora de Deus. O grupo aplaude, e sai contente por ter
bebida entre os jovens da periferia, resultado da mis- conseguido tocar o coração de alguém que estava ali.
tura de pinga com refrigerante. Estes jovens entornam a
Do lado de fora, a festa continua, ainda com muita
bebida, falam muito palavrão misturado às gírias e sequer
bebida, “tubão” e drogas. Os viajantes sobem no ônibus
param para admirar o grafite que está sendo finalizado.
e deixam o bairro periférico, os vizinhos voltam para suas
A festa prossegue, as rachas de break continuam entu- casas, e os policias continuam empunhando armas, ron-
siasmando. Os moradores do bairro achegam-se para dando toda redondeza.
“dar uma olhada” no evento. Do lado de fora do portão
Aquele sábado frio continua sendo apenas mais um
do ginásio os policiais “guardam” a segurança com as
sábado frio, sempre com rap, mesmo que, desta vez, um
armas de fogo em punho.
rap convertido, mas a trilha sonora é a mesma, a falta
O grafite fica pronto, o MC Chicão e o DJ Scooby finali- de sonhos, maior. É, justamente, nesta falta de sonhos
zam a mensagem, mandando muita paz e fé em Deus. que a Cultura Marginal trabalha. Por meio do hip-hop –
Assim como o hip-hop convencional, o gospel também seja gospel ou não – e da literatura, promove a autoes-
é baseado em protesto e resistência, mas é transmitido tima destes jovens que para aquecer o corpo e a alma
de uma forma diferente, por outros canais, utilizando a usam bebidas alcoólicas. O intuito é que eles usem as
linguagem bíblica, pregando o evangelho. letras, os poemas, o conhecimento e a sabedoria para
aquecer os sonhos, em fogueiras que queimem apenas
MC Chicão conta que, antes de se converter, ele era
os desafetos, o preconceito e o comodismo. Que das cin-
“do mundo”, como os evangélicos costumam dizer, ele
zas renasça a vontade de mudança, o caminhar rumo à
fumava, bebia e tinha uma vida como a de muitos outros
positividade e forças para realizar desejos.
hip-hoppers. “Pude ouvir a voz de Deus falando comigo
‘o que você tá fazendo aí?’ Então, percebi que podia usar Desta vontade surge, então, um novo projeto dentro do
o dom que Deus me deu para louvar o nome Dele como Cultura Marginal. Um subprojeto que, talvez, tenha mais
forma de agradecimento. Para mim o hip-hop é isso, alcance e se destaque até melhor.
expressa minha vida em versos e melodias.”
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Estatística 433
Em vez de oferecer esmolas, oferece livros. Exemplares Com uma sacola cheia de livros, pela primeira vez que
de romances, clássicos, históricos, livros-reportagens saí às ruas para distribuí-los, parei no local e para brin-
e técnicos são distribuídos gratuitamente a quem quis car, comecei a espalhar alguns livros, que na quarta
receber uma história ou informação nova. Na cidade, capa trazem a mensagem:
a ideia foi colocada em prática pela pedagoga Angela “Olá, cuide bem deste livro e após desfrutar desta leitura,
Caruso, que em uma das manhãs mais frias do mês ofereça-o a alguém, aqui mesmo onde o recebeu. Não deixe
de julho de 2009, quando o termômetro localizado em que esta história fique aprisionada novamente na estante.
frente ao prédio da Thermas Antônio Carlos marcava 10 Permita que outros possam ter a mesma oportunidade que
você. Faça as histórias circularem pela praça.”
graus, ela se dispôs a carregar uma pilha de livros sobre
temas diversos pela praça Pedro Sanches e foi, lenta- Pelas muretas, bancos e orelhões do Terminal comecei
mente, abordando várias pessoas e entregando a elas, a deixar alguns livros. Com a experiência das caixinhas
gratuitamente, os exemplares que incluíam todo tipo de poéticas, resolvi brincar um pouco e observar a reação
estórias e também histórias. das pessoas. O primeiro senhor que avistou o exemplar
sobre o apoio do orelhão, escolhido, propositalmente, por
ser o do meio, entre outros dois, se dirigiu ao da direita,
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olhando desconfiadamente para o livro, como se, de contido naquele livro a outras pessoas e promover, tam-
repente, ele deixado ali, fosse uma brincadeira ou ame- bém, o acesso à leitura, que, ainda hoje, é deficiente no
aça. Na sequência, uma mulher também olhou para o país, segundo dados da pesquisa Retratos da Literatura
livro e se dirigiu para o orelhão da esquerda. Então, uma no Brasil, que mostra que entre 95 milhões de pessoas
terceira pessoa olha para o livro e se aproxima. Trata-se entrevistas, 45% não são leitores.
de outro senhor que, finalmente, vê a mensagem colada
A intenção foi expandir o projeto a bairros e comunida-
na primeira página. Ele segura o exemplar alguns poucos
des também carentes, e assim está acontecendo. Quero
segundos e o entrega a uma senhora, que rapidamente
mudar o cenário da falta de leitura e integrar os livros
entra em um dos ônibus. Já o artesão Eduardo de Lima
a quem não está nas oficinas e também não tem afini-
Pereira ficou intrigado quando viu o livro em um dos ban-
dade/interesse com o hip-hop. O intuito é levar os livros
cos, folheou, olhou para os lados e então começou a ler
a quem não tem acesso, não conhece ou não frequenta
um pouco. “No início eu pensei que se tratava de uma
as bibliotecas por medo, vergonha, ignorância e pessoas
brincadeira, uma pegadinha e depois gostei da ideia de
que tampouco podem comprar exemplares.
ganhar um livro. Vou ler e passar adiante”, comenta.
Enquanto arrecado os livros, lembro de Carolina Maria
Ao lado dele, a vendedora Ana Paula Rodrigues já tinha
de Jesus, que viveu a máxima pobreza no Brasil, sendo
notado o livro, mas, por vergonha, não pegou. Quando viu
obrigada a revirar os livros para comer, mas que nunca
a distribuição, foi até as jovens que estavam distribuindo
deixou de pegar, junto com os restos de comida, miga-
e pediu um exemplar. “Vou embora feliz porque ganhei
lhas de livros e revistas para ler em casa e mesmo sem
uma edição. Gostei do projeto, incentiva quem não tem
dominar a gramática escreveu um relato singular sobre
acesso aos livros”, declara. Já o operador de hidroelé-
a favela e fez história no país e fora dele por conta disso.
trica Paulo César Alexandre, ao receber das mãos da
jornalista um livro, perguntou se poderia escolher um Penso que, se as donas de casa que são viciadas em
exemplar e prometeu: “Tenho vários livros empoeirados televisão, substituíssem algumas horas do dia pela lei-
na estante de casa. Vou doá-los ao projeto e, como você tura poderiam mudar a própria realidade periférica que
tem o dom de conversar com as pessoas e entregar os as circunda. Penso ainda que ganhar um livro assim,
livros, vou ficar feliz com a ação.” sem mais nem menos, como um ato de gentileza em um
dia chuvoso, em um horário qualquer, pode transformar
Enquanto ele escolhia um volume, outras pessoas, entre
o dia das pessoas apenas pela atitude. Se for atrelada
elas professoras, mães ou apenas passantes se aglome-
ao conteúdo e à forma de repassar estas histórias pode
ram e, em pouco menos de três minutos, os livros foram
sim ser um incentivo.
distribuídos. Teve gente que quis mais de um exemplar.
Outros saíram felizes, já lendo as primeiras páginas. Logo na primeira vez distribuí mais de cem exemplares
e continuei arrecadando mais. Quero que as pessoas
Passar os volumes literários apenas aos moradores da
façam os livros circularem, tirem a poeira e os ácaros da
cidade vai ao encontro da real proposta, que é dar conti-
estante e coloquem o saber nas praças e comunidades.
nuidade ao processo de ler e transmitir o conhecimento
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Não acho difícil fazer isso. Acho que falta vontade e incen- ganham livros toda semana e que ela gostaria muito que
tivo, portanto, a minha parte está sendo feita. E o mais a mãe dela tivesse dinheiro para comprar histórias colo-
bacana é o prazer em poder servir, em poder distribuir os ridas para ela. Na mão, não havia nenhum livro infantil
livros, em ver a expressão de surpresa nas crianças. que eu pudesse dar a ela. Limitei-me a dizer que um dia
ela teria os livros que tanto quer.
Em pouco tempo o projeto ganhou as ruas centrais, onde
um grande número de pessoas circula diariamente. Não imagino o que ela pensou em nos ver entregando os
As abordagens se inverteram e durante a distribuição, livros à outras pessoas e não à ela, uma vez que tínha-
sempre que alguém nos pede esmolas, oferecemos um mos uma quantia razoável naquele dia.
livro, que raramente são recusados. Os bairros também
Quando eu cheguei em casa, olhei para a minha estante
já fazem parte do itinerário por onde as histórias circu-
e vi os meus primeiros livros de história e pensei em
lam e a intenção é continuar arrecadando cada vez mais
levar para ela, mas como ela queria um colorido, aque-
livros e fortalecendo a corrente de conhecimento.
les desbotados já não serviriam mais. No dia, estava
Sempre peço que alguém vá comigo, seja a minha amiga dura, mas prometi a mim mesma que no pagamento,
Juliana, algum artista local para realizar intervenções passaria na livraria e compraria uma história bacana
urbanas, como entregar o livro a alguém recitando uma para aquela garotinha.
poesia ou pintando poesias com giz na rua e nas praças,
Quando fui procurar, encontrei uma educativa, sobre
para que sejam apagadas apenas com a chuva. No rosto
medos. Como o preço era acessível, resolvi levar. Na
de quem recebe as histórias pode se notar a expressão
dúvida sobre como entregar, decidi que a surpresa dela
de surpresa, afinal, por muito tempo, os livros foram
e o mistério seriam mais interessantes. Embalei o livro
considerados produtos das elites.
em um plástico transparente e deixei na porta da casa
Assim, a ideia de que livro na estante só tem vida quando dela. Posicionei-me do outro lado da rua, onde há uma
manuseado e lido por alguém é colocada em prática. O pracinha com bancos e passei a ler o meu livro, ansiosa
fato mais marcante foi de uma garotinha, de não mais do pela reação dela quando encontrasse a história. Algum
que oito anos, em um dos bairros da região onde moro. tempo depois, ela saiu acompanhando a mãe. Por um
Ao nos ver com os livros nas mãos, começou a nos acom- minuto, pensei que ela não tivesse notado o embrulho,
panhar, discretamente, e, depois de algum tempo, nos mas, discretamente, exatamente como quando chorou
observando enquanto entregávamos os livros aos pas- por não ter histórias coloridas, ela se abaixou, pegou o
santes e à outras crianças, começou a chorar baixinho, livro e ficou uns bons segundos olhando o presente, até
um pouco distante. que se sentou na beira da porta e começou a admirá-lo.
Intrigada, me aproximei e perguntei o que estava acon- Não tenho como saber o que ela pensou quando encon-
tecendo. Com vergonha, ela tentou enxugar os olhos trou o livro, nem se ela imagina quem pode ter dado à
e relutou até começar a falar, que na casa onde a mãe ela, mas tenho certeza que consegui fazer mais uma
dela trabalha como doméstica, os dois filhos da patroa criança gostar de ler e ter amor pelos livros com este
pequeno presente.
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O sr. Élio está, a maneira dele, promovendo o resgate des- Mas gostoso mesmo é ver o empenho de outras pessoas,
tas crianças. Sugeri oficinas do Cultura Marginal a elas, de quem já passou pelas oficinas, de quem já conheceu o
mas a falta de horários na sede da SAB é um fator que universo do Cultura Marginal, que já esteve ligado ao hip-
complica, entretanto, não desisti. Da forma que pude, hop por meio de algum elemento, enfim, todos que se dis-
separei as palavras cruzadas e, no mesmo dia em que puseram a ajudar a captar livros, a entregar e a recitar e
elas ganharam uniformes doados por uma ONG para pra- fazer poesias e textos.
ticar a capoeira, levei as revistinhas.
Extasiadas por ganhar duas coisas em um mesmo dia,
elas correm de um lado para o outro e, eufóricas, per-
guntam sobre as palavras cruzadas, pegam, pedem aos
irmãos e mostram aos pais, loucas para começar a fazer.
Mais uma vez, uma garotinha, de não mais que 8 anos,
chama a minha atenção. Ela me pergunta como fazer
as palavras cruzadas e dispara: “Você pode me dar um
gibi?”. Como eu responderia que não? Claro que posso.
“Eu quero um da Turma da Mônica.”
Não disse nada, mas já comecei a fazer as contas do
quanto vou precisar ter e desembolsar para levar gibis a
eles. Perguntei se ela gostava de ler e a resposta foi afir-
mativa. Já separei os livros infantis também.
Apesar do Passa Livros ser uma biblioteca itinerante e
circulante com mais impacto do que um simples local
para empréstimos de livro, com as chuvas de verão, já
estava ficando com muitos exemplares doados acu-
mulados, sem ter para onde levar os livros que já esta-
vam empoeirando em sacolas e caixas. Por isso, resolvi
doá-los para a sede da SAB do bairro. Não são tantos,
cerca de 50, mas servem para empréstimos sem prazo,
como o Passa Livros, e ficam dispostos em uma mesinha
existente no local. Quem quiser ler passa por lá, pega um
livro, lê e, quando terminar, coloca no mesmo local. Penso
que é a forma mais democrática de disponibilizar os volu-
mes quando não é possível entregá-los de mão em mão.
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Estatística 453
quebradas respondo.
— Tenho vergonha.
— Não tenha, enfrente, me mande, é a sua expressão.
Dias depois...
— Posso enviar o texto?
— Claro!
— Então vou digitar.
— Ok.
Por mais que um estado esteja separado do outro por
fronteiras geográficas, regionais, culturais, a internet, a Horas depois...
comunicação e o conhecimento provam que elas podem
— Aí está meu primeiro texto.
ser quebradas. — Tudo bem, vou ler e depois comento.
“Pensar, refletir, escrever, sentir e digitar.
Um texto sobre a saudade do pai, já falecido, trazia as
Escrevo o que sinto, sinto o que escrevo e depois, é digitar.
expressões dele. Ainda um pouco imaturo no que se refere
Reflito para entrar em uma concordância e aí as palavras
vêm em abundância.” à escrita, mas com vontade de melhorar. Na semana
seguinte, a mesma história e um novo texto, falando jus-
Este é um trecho de um dos primeiros textos escritos tamente sobre o novo do ano novo.
pelo baiano Danilo Henrique. Aos 21 anos, por um chat
onde nos conhecemos, sacamos logo de cara nossa afi- Alguns dias depois:
nidade com o hip-hop e a minha paixão pela Bahia, mas — Comprei um livro – revela Danilo.
nos estranhamos no que é literatura. Já disparei a con- — Como? Por quê? Você nem gosta de ler. — provoco.
tar do Cultura Marginal e do Passa Livros e ele revelou — Vou tentar. De tanto te ver lendo, falando e escrevendo
que não gostava de ler. sobre literatura, vou arriscar.
“Não vamos ter assunto”, pensei. E, diariamente, pela Aplausos internos e singulares. Mesmo há quase dois
internet ele me perguntava o que eu estava lendo, o que mil quilômetros de distância, por meio de um chat e de
estava escrevendo, começou a frequentar os blogs, des- uma tela de computador eu tinha conseguido incentivar
cobriu que um rapper que ele admira – Gog – era um dos a leitura. Batizei a iniciativa, para mim mesma, como
autores do “Suburbano” e passou a tomar gosto pelo Literatura em Incentivo Amplo (Leia). Foi apenas uma
tema, mesmo que de uma forma lenta. ideia de usar a internet para isso, mas a longo prazo.
Não fiz nada ainda, mas sei que ele comprou um livro de
autoajuda que leu inteiro.
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também nascida no local e habitante da Zona Sul, manter viva a cultura hip-hop e na sequência, desmis-
palavras empregadas por mim também fazem parte do tifico, esclarecendo que ela não tem nada a ver com a
vocabulário que todos utilizam. bandidagem e que o Afrika Bambaataa, quando resolveu
criar o movimento, o fez na esperança que ele gerasse
Com todos ambientalizados, uma pergunta é jogada no
“paz, amor, diversão e união”.
ar: “De que forma as culturas populares podem bene-
ficiar quem vive nas comunidades?” e a interrogação é Diante desta informação, mais da metade dos alunos se
visível na fisionomia de todos os alunos. Acostumados sensibiliza e consigo ver, mesmo incutido na face deles,
a se sentirem inferiores, ninguém encontra a resposta as expressões de “ooohhh”, se questionando, então, o
rapidamente e, conforme coloca o professor de comuni- porquê da cultura hip-hop, ser, até então, vista como
cação de uma turma, Guilherme Dore, por serem pobres algo ruim. Entretanto, consigo perceber também que
e viverem em periferias, todos têm mania de se auto- muitos não acreditam no que digo e têm até uma certa
desprezar. “Eles não acreditam neles mesmos, não têm resistência, mas faz parte de qualquer informação nova.
confiança no próprio potencial. Muitos não se acham
Conto, também, que o hip-hop não é música estrangeira,
capazes. Quando o programa começou, a maioria tinha
como a maioria acredita e sim, movimento e cultura.
vergonha de falar o próprio nome”, conta.
Esclareço que o rap é que é o som ouvido e cantado den-
Entretanto, ele coloca, também, que, diante de uma tro da cultura, exaltando os problemas sociais e as his-
pessoa que tem a mesma linguagem dos estudantes, as tórias de cada um pelas batidas ritmadas e entrecorta-
informações fluem com mais facilidade. “É bom porque das pelos DJs, um dos outros elementos da cultura.
você é do bairro deles e eles gostam de se reconhecerem
Alguns ficam entusiasmados com as informações, prin-
assim. Serviu para provar a eles que construir as coisas
cipalmente sobre os parâmetros iniciais do hip-hop, que
na vida só depende deles”, enfatiza.
são mostrados diferentes daquilo que sempre acredita-
Dando sentido às observações do professor, eu, que ram que fossem. Ouço alguns comentários entre eles, se
também sou jornalista e escritora, continuo, mostrando perguntando como podem, de repente, conhecer mais
aos alunos que, mesmo diante destas posições, perma- sobre isso e já me adianto, contando que posso mandar
neço morando na periferia, andando de ônibus e a pé o texto do meu primeiro livro “Hip-Hop – A Cultura Margi-
todos os dias para chegar ao trabalho, comendo de mar- nal” por e-mail e percebo vários interessados.
mita e ganhando pouco, mas, nem por isso, desisto de
Na sequência, sempre que conto alguma coisa sobre o
sonhar, escrever e batalhar em causas sociais, como a
hip-hop, a história e a cultura popular, tento manter a pro-
transformação por meio das culturas sociais e principal-
ximidade da realidade e sempre citar algum fato aconte-
mente do hip-hop.
cido comigo. Procuro lembrar que, durante as pesquisas
Conto como tento me beneficiar por meio da cultura para fazer o livro, praticamente abdiquei da minha vida
marginal e como palestras deste tipo me fazem bem, em nome da causa e cito minha rotina, que era levantar às
tanto por poder compartilhar conhecimento como para 7h, ir para o trabalho, fazer algumas coisas relacionadas,
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almoçar correndo, aula de inglês durante o horário de Quando começamos a conversar, ele me contou, com
almoço, voltar para o trabalho, escrever a mão porque todo receio do mundo, que gostava de escrever e que,
não tinha mais energia onde eu trabalhava — em razão de repente, escreveria um texto para me mandar. Levou
da falência do local —, sair correndo, pegar a van, viajar quase duas semanas para que eu recebesse um texto
40 quilômetros, assistir aula, voltar para Poços, pegar pequeno, simples, mas que, mesmo com erros grama-
um ônibus no centro da cidade e ainda andar um quilô- ticais, tão comuns na literatura marginal, conseguiu
metro para chegar em casa. Aí sim, ler o que faltava e expressar tudo aquilo que ele sentia no momento: sau-
escrever algumas coisas do livro, para compor o traba- dades do pai que já se fora.
lho apresentado a eles.
Ainda me refazendo da emoção de ler um texto dele, que
Noto que eles se sentem próximos da vivência, até por- nunca tinha deixado ninguém ver os textos, ele me con-
que 90% trabalha durante o dia, mal almoça, também tou que tinha saído e comprado um livro, hábito que, até
anda longas distâncias e, enfim, podem estudar e veem então, ele desprezava e que já estava lendo. Emocionada,
no programa a chance de um diploma do Ensino Funda- contei esta história aos alunos e acredito que, por toda
mental, além de uma melhor oportunidade de trabalho. simplicidade dela, consegui sensibilizá-los também. Fui
Sei que muitos estão ali unicamente para isso, enquanto interrompida pela professora, que me contou que alguns
outros querem aproveitar cada minuto e reverter o já gostam de escrever e que de repente, histórias como
tempo perdido, tentando aprender sobre tudo em ape- estas são um incentivo para que eles comecem a produ-
nas dezoito meses, que é o tempo total do curso. zir os próprios textos. Neste momento, outros me per-
guntam como editar um livro e quais as dicas para escre-
Nesse misto, eles se perdem, entretidos nas imagens do
ver melhor. Sugiro que sempre leiam, cada vez mais.
datashow e no mundo do hip-hop e alguns, menos tími-
dos, iniciam algumas perguntas. Querem saber o porquê Falo, ainda, dos livros produzidos nas periferias e
de eu me interessar por hip-hop e dão risada quando dos assuntos abordados, que sempre são do interesse
digo que eu nunca soube cantar, dançar, grafitar e que deles e têm temas relevantes aos jovens da periferia,
nem me arrisquei a arranhar os discos, por isso me com crônicas cotidianas. Cito, ainda, algo que li há tem-
dedico ao 5° elemento, que é o conhecimento. pos em blogs pela internet, dizendo que os novos livros
são os raps escritos e encadernados. Acho esta analogia
Neste ponto, ingresso no assunto da literatura peri-
bacana e compartilho. Alguns alunos, que antes da pales-
férica e da ascensão que ela tem no cenário nacional,
tra estavam ouvindo rap, se mexem ansiosos na cadeira,
principalmente nos grandes centros e capitais e noto
talvez pensando em transformar os rascunhos em livros.
olhos mais brilhantes quando conto experiências pes-
Conto, ainda, que existe no Brasil uma Casa do Hip-Hop,
soais ligadas ao assunto, como o garoto de 21 anos que
em defesa das produções literárias e acadêmicas sobre o
vive em Salvador e que conheci, por acaso, pela internet.
tema e também uma organização universal Zulu Nation,
Ele tem o mesmo problema dos alunos. A mania de se
que cuida do hip-hop em todo o mundo, preservando para
achar inferior por ser pobre e morador da periferia. Rela-
que a cultura seja disseminada de forma correta.
tei que, em minhas conversas com ele, sempre via MSN,
consegui despertar o interesse dele pela escrita.
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Divido com estes alunos histórias de escritores brasilei- No Carnaval de 2007, quinze dias após nossa colação
ros de que eles nunca ouviram falar, mas que, ao con- de grau, ela morreu de parada cardíaca após inalar gás
trário dos clássicos, despertam um interesse maior para propano butano que vem naquelas buzinas a gás. Fez
que eles leiam, visto que trazem uma linguagem comum, isso para ter “barato” como os provados pelo lança per-
que eles podem acompanhar e histórias que eles se fume e, de uma vez, faleceu, abandonando os sonhos,
identificam, como a de “Graduado em Marginalidade”, o legado do livro e muitas lembranças incompletas de
do Sacolinha, os textos reunidos de Ferréz, e, ainda, quem poderia caminhar ao meu lado e estar, naquele
“Noite Adentro”, de Robson Canto, entre tantas outras momento, palestrando. A este ponto, me encaminho
coletâneas dos autores que despontam no cenário lite- para o fim da palestra, deixando aberto o espaço para
rário nacional e estão ganhando mais público a cada dia. as perguntas e concluindo como uma cultura popular
mudou a minha vida, a das pessoas à minha volta e que,
Neste espaço, comento, também, a necessidade de
mesmo sem recursos, consigo praticar ações benefi-
conhecer mais sobre a própria cultura, os antepassados
centes, como o projeto Passa Livros e, também, oficinas
e a história das coisas. Lembro aos alunos que isso deve
sobre hip-hop com crianças carentes.
acontecer não apenas com o hip-hop, mas com qualquer
que seja a cultura popular produzida na periferia, que Novamente, olhares mais atentos e curiosos, querendo
tem sempre uma história riquíssima, que merece ser saber como é meu trabalho social. Uma breve explica-
conhecida e divulgada. Percebo que todos ficam aten- ção, um slide com frases de pessoas de vários locais do
tos a isso, com exceção daqueles que já foram vencidos país e de várias atividades contextualizando o hip-hop e
pelo cansaço e que, nesta hora, se apoiam sobre livros o quão bom ele é para este ou aquele indivíduo e ainda
e mesas para cochilar enquanto falo. A postura não me para esta ou aquela coletividade.
incomoda, afinal, já fui estudante e, muitas vezes, extre-
Pronto. Gosto de encerrar exibindo no telão a mesma
mamente cansada, cochilei durante aulas, debates,
imagem com que comecei. Talvez seja pelas cores, tal-
palestras. Não há como recriminar.
vez porque foi um MC famoso – na comunidade e Bra-
Dentro disso, procuro sempre atrelar a minha experi- sil afora – que fez, com todo carinho, para o meu tra-
ência e fazer com que todos conheçam um pouco mais balho ou, talvez, porque represente o hip-hop tal como
sobre a minha vida e trajetória, então, separo um slide ele é, uma mescla de elementos que propõe somente
com uma foto minha, do Nino Brown na casa do hip-hop e coisas positivas. Tentando trabalhar neste positivismo,
de Anita Motta, a jornalista que escreveu o “Hip-Hop – A encerro e aguardo as perguntas, que são poucas e tími-
Cultura Marginal” comigo. Até os mais desatentos param das. Entendo o receio que todos têm de falar alto, levan-
e prestam atenção. Conto que ela nunca foi da perife- tar a mão e se dirigir a um palestrante. O medo de serem
ria e que o primeiro contato com o hip-hop foi durante ridicularizados supera o medo de permanecerem igno-
o processo de execução do livro e que, infelizmente, no rantes em alguma questão.
caso dela, a cultura não representou uma salvação como
ouvimos em todas as entrevistas.
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vai poder entrar na creche”, conta. Questionada sobre a “Em alguns momentos, os bebês choram, se mexem, gri-
maior dificuldade, ela diz que é a distância que percorre, tam, querem andar e isso pode desviar a atenção, então
diariamente, para estudar. Somente de ônibus ela per- prefiro sair da sala e voltar depois”, revela Andreza.
corre cerca de 10 quilômetros e ainda anda do terminal Por outro lado, levar os bebês para a aula tem algo de
de linhas urbanas até o colégio municipal – aproximada- positivo. O carinho que elas recebem de outros alu-
mente 1000 metros – a pé, com o bebê no colo. “É ruim nos. “A Giovana ganhou muitas fraldas e roupinhas e a
porque tenho que sair com ela na chuva, no frio, andar empresa do ProJovem nos dá toda a assistência. Como
a pé, carregar as coisas dela e as minhas, mas, mesmo eu tive problemas em casa com o pai dela, fui enca-
assim, compensa, porque estou estudando.” E assim ela minhada para o Centro de Referência em Assistência
segue, enquanto tenta anotar o que o professor fala e Social (Creas) e estudar não apenas me qualificou como
ao mesmo tempo amamentar a Antonela no seio. O pro- mudou minha vida pessoal. Fiquei com a autoestima ele-
fessor Guilherme Dore comenta que, inicialmente, não vada e tomei rumo. Foi a melhor coisa dos últimos anos.
soube como reagir a situação, entretanto, compreen- Foi tudo”, acrescenta. E, assim, segue a rotina destas
deu que aceitar as crianças na sala, após analisar caso a mães até o próximo dia 22, quando as aulas do curso de
caso, foi a única maneira de fazer com que as mães não Comunicação Social e Marketing são encerradas e elas
abandonassem o curso. “Para mim isso é o mais impor- recebem o diploma de conclusão e partem para o mer-
tante”, diz. Desafio. Assim pode ser definido o fato de cado de trabalho. Sempre acompanhadas pelos bebês,
participar de uma sala de aula onde os bebês também carregando-os no colo, assim como carregam os sonhos
se tornam alunos e carinhas vistas diariamente no local. de conquista profissional.
É difícil, tanto para as mães, como para as crianças e
A palestra segue e a participação dos alunos é de 100%,
para os educadores, que veem na realidade algo que, de
transformando o momento em um bate-papo, como eu
repente, possa comprometer o rendimento. Já os bebês,
havia previsto e desejado inicialmente. A cada tema,
por serem fofos, por chorarem fora de hora e por cabe-
manifestações e perguntas surgem, principalmente por
rem no colo e precisarem de tanta proteção materna,
dois estudantes, que conforme o professor me descre-
dividem a atenção das mães e dos alunos, mas, para o
veu anteriormente, gostam muito de escrever e têm pre-
professor, isto é algo que pode ser superado por meio da
tensões de criar livros.
criação de formas para deixar as aulas mais atrativas.
O mais bacana é observar as reações do professor que,
Como o professor coloca, a única coisa que ele não
por coincidência, foi o diagramador do meu livro para a
tolera são pessoas acomodadas e, de repente, a história
faculdade. Éramos amigos antes, quando viajávamos
das mães se torna um exemplo de vida. “Compreende-
juntos os 40 quilômetros diários para ir e vir da facul-
mos a situação e fazemos de tudo para que elas consi-
dade, enfrentando as mesmas dificuldades, já citadas.
gam acompanhar o restante da sala e, no futuro, este-
jam bem inseridas no mercado de trabalho”, ressalta. No meio da explanação de um assunto sobre o que pode-
As alunas-mães comentam que percebem muitas vezes mos mudar em nossa comunidade, ele me interrompe
que o professor perde a paciência, mas elas entendem. para dizer, de forma alegre e descontraída, que não aceita
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professor, preparei, também, um pequeno material sobre feliz da vida, acompanhada pelos meus pais e pelo meu
jornalismo. Ao término do assunto hip-hop, poderia falar amigo Luciano Santos – que fez as fotos da ocasião —,
sobre a profissão. Como o eixo do curso é Comunicação caminhei com os passos leves e a alma sem tocar o chão,
Social e a área de formação dele é Publicidade e Propa- satisfeita porque fiz a minha parte: contextualizei minha
ganda, me pediu uma passada rápida sobre jornalismo – vida e sonhei com as mãos, colocando em prática o que
como pautar, como desenvolver um tema e dicas de texto. é o hip-hop, em poucas e intensas horas permeadas de
“paz, amor, diversão e união”.
Surpreendi-me com o interesse dos alunos e, também,
comigo mesma. Tenho pouco tempo de formação e como
o jornalismo é uma profissão muito ampla, fiquei com
medo de não conseguir responder todos os questio-
namentos. Graças a Deus, tudo que foi perguntado eu
sabia como elucidar e foi muito bacana observar a curio-
sidade deles pela profissão, especialmente pelo jorna-
lismo impresso, já tão condenado por alguns teóricos.
Todos demonstraram interesse em como saber mais
sobre o ofício e o que me chamou mais atenção e valeu
pela palestra foi o entusiasmo de uma garota, a mesma
que já participou de um grupo de dança e reconheceu
boa parte das pessoas nas fotos dos slides. Anotando
tudo que eu falava e fazendo inúmeros questionamen-
tos, ela me perguntou como poderia fazer um estágio
não remunerado no jornal, sem receber nada, apenas
para acompanhar de perto o nosso trabalho.
Outro garoto, participativo, comentou que fizeram uma
visita ao jornal, mas que não viram a redação e quer
conhecer, visitar, saber também como é de perto. Ambos
escrevem textos para a escola e publicam em um blog
criado especialmente para divulgá-los. Ambos querem
se tornar escritores. Ambos me pediram dicas de livros e
prometeram me escrever.
Encerrei a palestra e apenas uma experiência se repe-
tiu. Vários deles me cercaram e pediram e-mail, deixa-
ram e-mail, querem o livro, querem vídeos, dicas e tro-
cas de ideias. Ainda com uma chuva forte, saí da sala,
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Para ficar, realmente, em dia com a leitura, naquele Por isso, jurei a mim mesma que passaria o veneno que
momento, revi toda a trajetória. Todos os sonhos, quase fosse, mas não deixaria meus pais na mão. Fácil não é,
interrompidos, quando a Anita morreu e me deixou com e faço muita coisa errada, estou aprendendo, mas já
o livro, com uma bagagem bem pesada de coisas para adianto que não vou parar. Cada dia que passa tenho
realizar e sem tê-la por perto para me ajudar a conti- mais vontade de lutar, trabalhar e fazer em prol da cul-
nuar, a sonhar. Lembrei ainda de todas as vezes que tura do gueto na minha quebrada.
pensei em desistir, em largar tudo, porque era massa-
Na última semana participei da Confraria das Ideias
crada no emprego do Jornal de Poços que pagava mal,
para a V Feira do Livro e Festival Literário na cidade, a
tinha um assédio moral absurdo, sugava todas as ener-
mesma que indiquei o Sérgio Vaz para participar ao lado
gias e não deixava tempo, sequer, para eu dar um beijo
de Ferréz, e introduzir, ainda mais, a cultura marginal em
na minha mãe.
Poços. Como sugestões pedidas, penso que descentrali-
Sem falar das inúmeras críticas de quem sempre esteve à zar as ações e usar os artistas locais para irem aos bair-
volta, passando os mesmos perrengues e pagando de elite, ros convidar a população para conhecer a feira, partici-
dizendo que cultura marginal é coisa de bandido e que, par das oficinas e palestras, estar em meio aos livros é o
bom mesmo, é estar “nas paradas do sucesso”, o que, para que de melhor há para democratizar o evento.
mim, não é nada mais do que puxar saco de político falso.
Fico feliz por ser reconhecida pelo trabalho que faço
Engraçado que o evento me fez pensar e rever tudo isso. como jornalista e, também, na área cultural. No último
Rever gente que lutou e desistiu na primeira queda e resolvi que reportagem nenhuma vai mais me sugar
guerreiros que não abandonam o barco. Gente que faz como acontecia anteriormente. Vou dar o sangue por
muito e gente que carrega um título e nem sempre faz o todas elas e fazer o meu melhor, pois amo estar na rua
que precisa para evoluir. Saquei que queria, sim, o pro- e reportar, porém, tudo tem limite e o meu tempo diá-
gresso, que queria continuar e que desistir não seria rio para dedicação à cultura e literatura, escrita, blogs e
mais nem pensado. afins vai continuar sendo respeitado.
Minha mãe estava lá comigo, como sempre, acompa- Não vou deixar de escrever, de captar livros, de distribuir,
nhando e apoiando as ações. Nunca me deixou cair, assim de fazer o que gosto. Espero mudar a consciência das
como meu pai. E, talvez, justamente por isso, eu nunca pessoas e fazê-las ver que, por meio da arte e do conheci-
tenha desistido. Entretanto, não deixa de ser difícil. Lem- mento, podemos conquistar o que queremos. Ainda ando
brei que, em 2008, quando meu pai ficou doente e quase de ônibus e os quarenta minutos na ida e mais quarenta
morreu, o meu desespero em não ter de onde tirar grana minutos na volta são preenchidos com muita literatura
para levá-lo no médico particular, pagar um tratamento nacional. E as oficinas devem se tornar, em breve, mais
bom e vendo gente, que, como minha irmã — funcioná- organizadas e acontecer também em escolas, como ativi-
ria pública — nadava no dinheiro do Estado e não podia, dades extracurriculares, paralelas às aulas.
sequer, pagar a ele um tratamento ou um convênio médico.
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Ainda naquela tarde bem quente do final do ano pensei, “Paz, amor, diversão e união”, a ideologia criada por
revi minha vida e tive uma única certeza: o projeto Cul- África Bambaataa quando ele batizou o maior movi-
tura Marginal vai continuar existindo. Como diz Sérgio mento social dos últimos trinta anos – o hip-hop – e que
Vaz, “a arte que liberta não vem da mão que escraviza” permanece presente. Mesmo entre uma realidade que
e estamos juntos, pelas periferias brasileiras, lutando e em um primeiro momento consegue colocar fim a tantos
quebrando as correntes e amarradas invisíveis da socie- sonhos. O hip-hop, atrelado à arte e à literatura, conti-
dade. Um brinde ao saber, ao conhecimento, à arte, à nua se opondo às opressões raciais e sociais.
literatura e ao hip-hop, que salvou a minha vida e a de
Muitas vezes sinuosa e controversa, não deixa de ser
tantos outros parceiros Brasil afora. Um brinde àqueles
fascinante. Mesmo estando à margem da sociedade,
que sempre gostaram de ler e um maior ainda àqueles
não deixa de ser uma cultura. Uma cultura guerreira, que
que diziam “não gosto de ler” e, hoje, fazem questão de
caminha sobre pedras, mas, mesmo assim, não deixa de
gritar: “Literatura é minha vida.”
sonhar, fazer música, poesia, arte, dança e pintura.
Esta cultura carrega consigo a força do protesto e da
Em um caldeirão de misturas, a Cultura Marginal é um
indignação. Ela sobrevive, se opõe ao obscuro mundo da
marco de pessoas, filosofias e ideais. Posteriormente, o
criminalidade e enfrenta uma guerra diária de precon-
discurso poderá mudar, ser substituído por outro, mas
ceitos. Mas se rebela contra a exclusão e inclui, mesmo
a essência do movimento continuará marcando povos e
que ainda na marginalidade, toda uma nação, em um
fazendo história, afinal é o hip-hop, a cultura marginal.
misto de alegria e tristeza, a cultura hip-hop. Sobrevive,
marca e faz história para quem se sente maravilhado
por tudo que a Cultura Marginal proporciona.
As pessoas podem parar. Uma cultura, jamais. O hip-hop e
a literatura não param nunca. Vários livros, teses e repor-
tagens foram escritos sobre o assunto, e terminaram
sempre no ponto final da última página, mas as produ-
ções culturais do gueto continuam independente deles.
Desta vez não será diferente.
Enquanto tiver uma cultura marginal, sempre haverá o
que ser estudado e reportado. Qualquer tema acerca da
periferia nunca será esgotado. Até o momento o gueto
refletiu estilos de vida e comportamento, marcou gera-
ções, mudou radicalmente muitas pessoas, salvou mui-
tas vidas. Continua carregando consigo uma enorme
força de protesto, vontade de progresso.
P.90-91 Evento “Casa da Imprensa”
foto: Luciano Santos
P.54-55 Back Spin Crew como jurados de batalhas de break P.143 Jéssica Balbino nas pick-ups do DJ Pow, na Zona Oeste de
em Pouso Alegre, sul de Minas São Paulo durante as pesquisas do livro
foto: Jéssica Balbino foto: Anita Motta
P.56-57 Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco P.147 Garoto na Casa do Hip-Hop em Diadema (SP)
foto: Jéssica Balbino foto: Acervo pessoal
P.166-167 Comemoração após o término de todas apresentações P.253 Periferia de Poços de Caldas
de TCCs em 2006 foto: Márcio Pinto
foto: Acervo pessoal
P.260 Grafite no Hip-Hop Em Foco e Leopac no Hip-Hop Em Foco
P.168-169 Professores da banca examinadora e alunas foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.263 Espetáculo de dança no Hip-Hop Em Foco
P.175 Gravação de programa sobre Hip-Hop nas aulas foto: Wagner Alves
de radiojornalismo
foto: Acervo pessoal P.268 Gueto de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.179 Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto P.277 Jéssica Balbino no Jornal de Poços de Caldas em 2007
foto: Michele Miyake
P.185 Anita e Jéssica no encerramento das aulas no
4º ano de faculdade P.288 Jéssica Balbino durante entrevista para o livro-reportagem
foto: Acervo pessoal foto: Acervo pessoal
P.189 Grafite no centro de São Paulo P.299 Entrevista com King Nino Brown durante as pesquisas
foto: Acervo pessoal para o TCC
foto: Acervo pessoal
P.192-193 Grafite no centro de São Paulo exaltando a cultura de rua
foto: Elza Balbino P.317 Periferia de São Paulo, capital
foto: Jéssica Balbino
P.202-203 Lançamento do livro Suburbano Convicto —
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP) P.328 Palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008
foto: Acervo pessoal foto: Jéssica Balbino
P.209 Oficina de Hip-Hop e literatura na Zona Sul de P.332-333 Apresentação para o show do pai do Hip-Hop,
Poços de Caldas Afrika Bambaataa, na Virada Cultural
foto: Juliana Martins foto: Jéssica Balbino
P.214-215 Oficina de Hip-Hop em escolas públicas P.337 Grafite no palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008
foto: Jéssica Balbino foto: Jéssica Balbino
P.221 Jéssica Balbino na biblioteca pública em Poços de Caldas P.344-345 Cultura Marginal: Pela Vida
foto: Marcos Corrêa foto: Acervo pessoal
P.226-227 Participação no programa de rádio Mix na rádio 104+ P.346-347 Apresentação de break no evento Cultura Marginal: Pela Vida
foto: Acervo pessoal foto: Acervo pessoal
P.234-235 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas P.352-353 B.girl e MC durante o evento Cultura Marginal: Pela Vida
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP) foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.357 Gabriel, O Pensador lendo durante a Feira de Livros,
P.241 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas em Poços de Caldas
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP) foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.358-359 Jéssica Balbino entrevista MV Bill durante palestra na P.438-441 Projeto Passa Livros no Terminal de Linhas Urbanas de
Feira do Livro em Poços de Caldas Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto foto: Eduardo Correia
P.360-361 Jéssica Balbino e Nega Gizza durante palestra na Feira do P.445 Projeto Passa Livros na periferia de Poços de Caldas
Livro em Poços de Caldas foto: Elza Balbino
foto: Márcio Pinto
P.446-447 Projeto Passa Livros distribui palavras cruzadas na periferia
P.378-379 Jéssica Balbino lendo o Jornal Mantiqueira durante o evento
de Poços de Caldas
“Casa da Imprensa”
foto: Elza Balbino
foto: Juliana Martins
P.450-451 Rap educativo em escola pública de Poços de Caldas
P.385 Ensaio do grupo de break Silêncio Crewativo
foto: Anita Motta foto: Jéssica Balbino
P.387 Oficina de DJ na Casa do Hip-Hop P.455 Jovens fazem letras de rap na Casa do Hip-Hop
foto: Anita Motta foto: Acervo pessoal
P.388-389 Grafites na Casa do Hip-Hop P.462-463 Jéssica Balbino durante palestra/oficina para estudantes
foto: Anita Motta de Jornalismo
foto: Luciano Santos
P.390-391 Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto P.467 Alunos durante oficina sobre literatura marginal e Hip-Hop
foto: Luciano Santos
P.398 Jéssica Balbino e o escritor Renato Vital
foto: Acervo pessoal P.472-473 Palestra sobre literatura marginal e Hip-Hop em escola
pública para alunos do ProJovem
P.399 King Nino Brown no acervo da Casa do Hip-Hop foto: Luciano Santos
foto: Acervo pessoal
P.474 Professor entrega textos sobre literatura marginal
P.407 DJ Pow do grupo Império Z/O durante as entrevistas para para alunos
o livro-reportagem foto: Luciano Santos
foto: Acervo pessoal
P.480-481 Programa Repercussom com música negra na periferia
P.410-411 Lançamento do livro Suburbano Convicto — foto: Jéssica Balbino
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)
foto: Acervo pessoal P.484-485 Evento Hip-Hop em Foco 2
foto: Wagner Alves
P.416 UClanos durante show no Circo Voador no Hutúz 2009
foto: Jéssica Balbino P.488-489 Evento Sesc em Dia com a Leitura
foto: Elza Balbino
P.422-423 Encontro do grupo UClanos com MC Budog do grupo
Elemento.S P.494-495 Programa Repercussom
foto: Jéssica Balbino foto: Jéssica Balbino
P.428-429 Grafite no evento Beatz, Zona Sul de Poços de Caldas P.502 Jéssica Balbino
foto: Jéssica Balbino foto: Marcos Corrêa
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