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Traficando conhecimento
Jéssica Balbino

Programa Petrobras Cultural Apoio


Copyright © 2010 Jessica Balbino A ideia de falar sobre cultura da periferia quase sem-
COLEÇÃO TRAMAS URBANAS (LITERATURA DA PERIFERIA BRASIL)
pre esteve associada ao trabalho de avalizar, qualificar
organização
HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA ou autorizar a produção cultural dos artistas que se
consultoria encontram na periferia por critérios sociais, econômi-
ECIO SALLES cos e culturais. Faz parte da percepção de que a cul-
produção editorial
CAMILLA SAVOIA
tura da periferia sempre existiu, mas não tinha oportu-
projeto gráfico nidade de ter sua voz.
CUBICULO
No entanto, nas últimas décadas, uma série de traba-
TRAFICANDO CONHECIMENTO
lhos vem mostrar que não se trata apenas de artistas
produtor gráfico
SIDNEI BALBINO procurando inserção cultural, mas de fenômenos orgâ-
designer assistente nicos, profundamente conectados com experiências
DANIEL FROTA
sociais específicas. Não raro, boa parte dessas histórias
revisão
CAMILLA SAVOIA
assume contornos biográficos de um sujeito ou de um
LETÍCIA BARROSO grupo mobilizados em torno da sua periferia, das suas
revisão tipográfica condições socioeconômicas e da afirmação cultural de
CAMILLA SAVOIA
suas comunidades.
B145t Essas mesmas periferias têm gerado soluções originais,
Balbino, Jéssica
criativas, sustentáveis e autônomas, como são exem-
Traficando conhecimento / Jéssica Balbino. - Rio de Janeiro : Aeroplano,
2010. il. - (Tramas urbanas) plos a Cooperifa, o Tecnobrega, o Viva Favela e outros
ISBN 978-85-7820-041-1 tantos casos que estão entre os títulos da primeira fase
desta coleção.
1. Balbino, Jéssica. 2. Projeto Cultura Marginal. 3. Hip-hop (Cultura
popular) - Poços de Caldas, MG. 4. Rap (Música) - Aspectos sociais.
5. Música e juventude - Aspectos socias - Poços de Caldas, MG. Viabilizado por meio do patrocínio da Petrobras, a con-
6. Movimento da juventude - Poços de Caldas, MG. 7. Movimentos sociais -
Poços de Caldas, MG. 8. Jornalismo. I. Programa Petrobras Cultural. II.
tinuidade do projeto Tramas Urbanas trata de procurar
Título. III. Série. não apenas dar voz à periferia, mas investigar nessas
10-1574. CDD: 305.2350981512
experiências novas formas de responder a questões
CDU: 316.346.32-053.6(815.12)
culturais, sociais e políticas emergentes. Afinal, como
12.04.10 20.04.10 018538 diz a curadora do projeto, “mais do que a internet,
a periferia é a grande novidade do século XXI”.
TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
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LEBLON – RIO DE JANEIRO – RJ
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TEL: 21 2529-6974
TELEFAX: 21 2239-7399

aeroplano@aeroplanoeditora.com.br
www.aeroplanoeditora.com.br
Na virada do século XX para o XXI, a nova cultura da
periferia se impõe como um dos movimentos culturais
de ponta no país, com feição própria, uma indisfarçá-
vel dicção proativa e, claro, projeto de transformação
social. Esses são apenas alguns dos traços inovadores
nas práticas que atualmente se desdobram no pano-
rama da cultura popular brasileira, uma das vertentes
mais fortes de nossa tradição cultural.
Ainda que a produção cultural das periferias comece
hoje a ser reconhecida como uma das tendências cria-
tivas mais importantes e, mesmo, politicamente inaugu-
ral, sua história ainda está para ser contada.
É neste sentido que a coleção Tramas Urbanas tem como
objetivo maior dar a vez e a voz aos protagonistas desse
novo capítulo da memória cultural brasileira.
Tramas Urbanas é uma resposta editorial, política e afe-
tiva ao direito da periferia de contar sua própria história.

Heloisa Buarque de Hollanda


Dedicado a você.

A Deus, minha fé eterna.

Para
Meus pais, pelos pequenos gestos e grandes demonstrações
diárias de carinho e afeto.

Minha irmã e minhas sobrinhas.

Toda a equipe da redação do Jornal Mantiqueira e Mais Poços.

Os garotos do portal Central Hip-Hop/Bocada-Forte.

Agradecimentos
Heloisa Buarque de Hollanda, por acreditar que o projeto poderia
virar livro.

Camilla Savoia, pela paciência durante o processo de revisão e editoração.

Anita Motta (in memorian), Ademiro Alves (Sacolinha), Alessandro Buzo,


China Trindad, Coletivo Hip-Hop Mulher, CUB, Dina Di (in memorian),
DJ Cortecertu, DJ Mancha, DJ TR, Eduardo Herrera, Elemento.S, Ferréz,
“Quando vi a estrada pela primeira vez nem sequer sabia o quanto ia ter que
Guilherme Bryan, Juliana Martins, Kaká Soul, Leopac, Lu Afri, Mary do
caminhar pra chegar até aqui, e mal sabia que esse tipo de estrada não tem
Rap, Michel da Silva, Renan Inquérito, Renato Vital, Rúbia Fraga, UClanos,
fim, só paradas breves para que o coração possa registrar os momentos.
Sérgio Vaz, Tubarão DuLixo, Wakka Alves, Zulu King Nino Brown e a todas
A vida não para, nem aqui, nem hoje e talvez, nem nunca. Quem sabe o
as pessoas que colaboram para a viabilização de projetos como este.
futuro? Ninguém vence enquanto a luta não acaba (...)”
Um salve especial aos fotógrafos Luciano Santos, Márcio Pinto e Marcos
Sérgio Vaz Corrêa, pela paciência de sempre.
Citação do caminho certo
Do povo para o povo: “Hip-Hop –
A Cultura Marginal”

170 Cap.04 No ar: o hip-hop


Agora sim, profissão repórter!
Salvando vidas
Blog
Ciranda
Sumário O hip-hop não foi inventado
Oficinas
13 Prefácio Uma letra, um beat
14 Introdução Sacolinha, vídeo-documentário e TCCs
Mixando
16 Cap.01 Periferia adentro: o hip-hop Pelas periferias do Brasil
O início Do lado de dentro da periferia
Trajetória Plano B
Os interesses
Cultura Marginal
Tempo para leitura
Escola da vida
256 Cap.05 Em foco
Campo de batalhas
3... 2... 1 gravando!
Uai, hip-hop
Caixinhas poéticas
Os tios do hip-hop
Às margens da sociedade
Passo sincopado em direção ao futuro
Pela vida
Cotidiano
O que você está lendo?
Marcando vidas
“Crime desorganizado”
362 Cap.06 Estatística
Literatura, pedras e sementes
72 Cap.02 Passos pela vida
Do verbo produzir
Um zine diferente
Sem parada
Rap de dentro
Beatz
Jornalismo no zine
Passa Livros
Tempo de mudanças
Palavra cruzada: literatura e
Patrimônio cultural e histórico
conhecimento
Monitorando a infância e o futuro
Rap educativo
Do desemprego ao mais perfeito possível
Fronteiras quebradas
Entre livros
Profissão: transmissora de
Despejo no quarto
conhecimento
Palestrando: parte II
114 Cap.03 Concepção
Repercussom
Caldeirão de ideias
Querem nosso sangue
O despertar
Em dia com a leitura
Traficando informação
Preparando o terreno
Hip-hopeando 496 Imagens: índice e créditos
Um grito de emergência 503 Sobre a autora
13

Prefácio

Não confunda briga com luta. Briga tem hora para


acabar, e luta é para uma vida inteira. E a maior prova
disso é a história da guerreira Jéssica Balbino.
Ela é daquelas pessoas que nascem com tudo para
dar errado, mas por uma força estranha — que só as
pessoas que não se entregam sabem que têm, ela
está vencendo.
E insistentemente, quer através das suas oficinas
de literatura na periferia ou por intermédio de suas
matérias, ela faz questão que outras pessoas que
vieram do mesmo destino e lugar que ela, também
vençam. E para que isso aconteça, ela não des-
cansa sua caneta, e sua atitude vai muito mais além
do que palavras despencadas no papel.
Sua letra é forte sem ser arrogante, ela não bate, mas
revida, a doçura fica por conta de quem lê. Ela não
teve tempo pra isso. Aqui a verdade prevalece, por
isso acho que deve ter doído escrever esse livro, tal-
vez doa quando você ler, e como todos sabem viver
dói, e de onde ela vem, dói mais ainda.
Num dos primeiros parágrafos do livro, ela diz “O
hip-hop salvou a minha vida”, e é isso que você vai
encontrar nesse livro: uma sobrevivente.
Só que com os punhos cerrados, e um enorme sor-
riso no rosto.
As ruas agradecem.

Sérgio Vaz
Poeta da Cooperifa
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Introdução O interesse pela arte e pela cultura plantados na infân-


cia e na juventude produzem as árvores de um futuro
sem massacres cotidianos.
Nem sempre o tesouro está nos grandes centros urba-
nos. Pode ser encontrado um pouco mais longe, em
pequenas trouxas de conhecimento e em grandes invó-
lucros contendo uma substância de aparência cultural.
Nas bocas do conhecimento é que o tráfico da periferia
precisa se fundamentar.
É logo ali, onde termina a linha do trem e começa a cul-
tura marginal.
Prazer, conhecimento!
Da mesma maneira que salvou a minha vida, eu penso
Jéssica Balbino
que o hip-hop, o conhecimento e a literatura podem ser
Traficante de conhecimento
ferramentas de resgate dentro das periferias.
Como uma sociedade que quer evoluir dá as costas
para a periferia? Para alcançar propósitos é preciso
incluir os que são esquecidos.
O livro desvela a periferia de Poços de Caldas sem medo
de expor as chagas de uma gente subtraída.
Propõe um olhar livre de preconceitos para a perife-
ria. Imagine as pessoas cantando as letras mixadas em
forma de protesto sem julgá-las antes mesmo de ouvir.
As balas de borracha não vão parar a produção cultural
dos guetos.
Os quilombos modernos são grandes centros culturais.
Não existe mais utopia na periferia e sim gente que
sonha com as mãos e faz acontecer.
Os salários-misérias ainda são os mesmos, mas a cida-
dania exercida por meio do conhecimento e da litera-
tura são novos.

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Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop

Cap.01
Periferia adentro: o hip-hop
O início

“O hip-hop salvou a minha vida...”. É assim que começo a


falar da minha vida durante as minhas palestras e oficinas
sobre cultura marginal, mas, antes de contar esta história,
é preciso voltar no tempo e lembrar como tudo começou.
Sinônimo de voz, de atividade e de exteriorização de um
submundo. Assim é a literatura produzida na periferia
e acompanhada por projetos culturais que invadem as
casas sem reboco, arrebanha os jovens sem perspecti-
vas e tira as quebradas do limbo cultural.
Este é o projeto Cultura Marginal, que começou natu-
ralmente e sem que eu mesma percebesse, já existia
fazendo barulho e ecoando dos lugares mais distantes um
grito ensurdecedor de produção literária. Veio para fugir
do jargão periférico de tráfico, opressão e sofrimento,
presentes em qualquer periferia brasileira e daí a expres-
são de Gog: “periferia é periferia em qualquer lugar”.
No entanto, é impossível contar a história deste movi-
mento na periferia de Poços de Caldas sem, antes, con-
tar sobre a minha indignação diante do descaso e a minha
necessidade de expressão.

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Periferia adentro: o hip-hop 21

Aos três anos, aprendi a escrever meu nome e de meus


Trajetória familiares, em aulas intensivas nos dias de muito frio e
chuva, quando minha mãe, que cursou apenas até o 4°
ano primário e sempre trabalhou de forma assalariada,
me ensinava.
Para fugir das únicas referências culturais do bairro: a
novela das 20h da Globo e o programa do Sílvio Santos,
ficava com livros e papéis espalhados sobre a mesa,
cena que ainda não mudou no meu cotidiano.
Como em qualquer periferia, as opções para diversão são
Inverno de 1985. Época em que o frio na cidade de Poços nulas. A ausência de praças, centros culturais, atividades
de Caldas era constante e a temperatura sempre inferior que envolvam crianças e jovens se transformava em cria-
a 0° C. Neste mesmo período, o Brasil era governado por tividade enquanto as ruas ainda não eram tão movimen-
José Sarney após a morte de Tancredo Neves e o fim da tadas, e permitiam que, para o sossego das mães, ficás-
ditadura militar. Na periférica zona sul da cidade, sem semos brincando em grupos. Quando alguém ganhava
asfalto, saneamento básico adequado, posto de saúde uma bicicleta, um par de patins ou construía um carrinho
ou escolas eu nasci e cresci. de rolimã, as brincadeiras poderiam ser variadas.
Considerada a cidade com o melhor Índice de Desen- Para os adultos, entre as casas, muito próximas fisica-
volvimento Humano (IDH) do Estado e, segundo esta mente, as janelas e portas estão sempre abertas aos vizi-
mesma pesquisa, o 4° melhor município para se viver no nhos, que, como forma de lazer e contato com o mundo,
ranking nacional, Poços mascarava, como faz até hoje, estão sempre um dentro da casa de outro, formando uma
o sofrimento das quebradas. Mascara-se a existência grande família, à margem da sociedade, dita, elite.
de favelas e treme-se ao ouvir dizer periferia. Não pode
O alfabeto e as primeiras operações matemáticas foram
ter. Mas tem, e ela apresenta todos os problemas e
aprendidas em um prédio velho, em uma rua de terra,
encantos de qualquer outra.
cheio de goteiras. Mas era divertido ir à aula nos dias
Entre brincadeiras nas ruas e terrenos baldios do bairro chuvosos, tínhamos arrastar carteiras e nos sentarmos
mais distante do centro da cidade — o Jardim Kennedy em outro ambiente, o que sempre representava quebra
— cresci na linha entre a total falta de infraestrutura e de rotina.
a vontade real de mudar esta realidade. Além das típi-
Biblioteca, asfalto, posto de saúde, linhas de ônibus,
cas brincadeiras como pega-pega, esconde-esconde,
iluminação pública e saneamento básico eram secun-
amarelinha, elefante colorido e passa-anel, desenvolvi,
dários na região, afinal, as casas populares do bairro ao
muito antes de saber juntar as letras e formar palavras,
lado já haviam sido entregues. Justamente nesta época,
o gosto por folhear livros, gibis e revistas, fingindo ler.
aprendi a ler, no pré-primário e, de presente dos meus

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22 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 23

pais, ganhei um livro que havido sido deles: “Simbad, o


marujo”. Encantei-me pela história que se passava do
outro lado do mundo. A quantidade de papéis sobre a
mesa aumentou. Também ganhei, nessa época, minha
primeira Bíblia e arriscava pequenas leituras, acompa-
nhando as ilustrações. Devia ter uns sete anos quando
comecei a produzir os primeiros textos, que, hoje, se per-
deram em limpezas de armário e vontade de mudança.
Vim de uma família simples, entretanto, nunca faltou o
pão e a literatura. Os livros sempre foram parte da deco-
ração e da rotina. Muito cedo percebi que a literatura
mudava minha forma de visão e entendimento de mundo.
Sempre que me sugeriam um presente, pedia um livro
e a rotina continua a mesma, até hoje, no bairro. Brin-
cadeiras na rua, falta de infraestrutura básica para as
famílias e a obrigatoriedade em mudar de escola. Por
ainda não termos idade suficiente para cursar o primá-
rio na escola do bairro, eu e alguns outros companhei-
ros do pré-primário fomos obrigados a fazer uma prova
na superintendência de ensino, que nos garantiria uma
vaga em uma escola do Estado.
Passamos e fomos encaminhados. Ficava há uns 12 qui-
lômetros de distância e fazer o caminho era sempre um
transtorno. Carro, vans, ônibus e longas caminhadas a
pé. Assim foi resumido meu primeiro ano. Mais tempo
entre o trajeto do que dentro da escola e pouco tempo
para brincar, ou mesmo ler. Foi o tempo em que as res-
ponsabilidades, embora ainda pequenas, começaram a
surgir, tomando o lugar das farras nas ruas.
Periferia adentro: o hip-hop 25

mortos para sobreviver durante o tempo em que esti-


Os interesses veram nos destroços do avião, aguardando um, quase
impossível, resgate.
Não parei mais. Entre livros de adulto e de criança,
pouco tempo mais tarde, abri uma ficha na biblioteca da
cidade e comecei a ler sobre tudo. É difícil saber quan-
tos livros li na época, mas uma coisa nítida na lembrança
é que tinha dois interesses profissionais: escrever e me
tornar jornalista.
Dividida entre a escola e o pouco tempo de lazer, o cená-
Estudar fora do bairro sempre foi um problema pelo rio era sempre o mesmo: professores mal remunerados e
conflito de realidades. Alguns vinham de regiões mais com pouca vontade de transmitir conhecimento, alunos
nobres e, desde cedo, aprendi como é ser diminuída só agressivos que vandalizavam o pouco do espaço público
porque moro em determinada região. que tínhamos para estudar, um longo caminho de ida e
Minha vida, aos sete anos e meio se resumia em acor- volta para casa, que em 1996, quando eu estava no 5°
dar, me arrumar, ir para a escola, voltar, fazer as lições, ano do Ensino Fundamental, ficou ainda mais longe, com
tomar banho, comer e dormir. Devido ao longo trajeto, o a mudança do prédio da escola, que saiu do centro da
tempo para as diversões ficou apenas para os finais de cidade para a Zona Leste.
semana, quando alguns colegas iam para minha casa e Eu continuava morando na Zona Sul com a ânsia de fazer
ficávamos na rua, como sempre, brincando. algo mais do que simplesmente estudar.
Quando isso não acontecia, por ter crescido sozinha –
sem irmãos na mesma casa —, o tempo livre era para
fugir do ócio da televisão e acontecia com a leitura dos
clássicos infantis da série Vaga-Lume, os volumes de
Pedro Bandeira e os infanto-juvenis com histórias de
Sherlock Holmes, todos pegos na biblioteca da escola.
Aos nove anos eu já havia lido quase todos da sessão
infantil e, durante uma das greves do colégio — entre
as inúmeras que aconteceram —, sem nada para fazer
em casa, peguei o exemplar do meu pai de “Os Sobre-
viventes – A tragédia dos Andes” e, em três dias, li toda
a história dos jogadores de futebol que caíram de avião
na cordilheira e foram obrigados a comer pedaços dos

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Periferia adentro: o hip-hop 27

Parti, também, para leituras de infanto-juvenis como


Tempo para leitura “Confissões de Adolescente” e “Ensaio de um beijo”,
além de clássicos como “Iracema”, “O Guarani”, “Lucíola”
e “O Cortiço”. No fim do ano, fiquei com os pés recupera-
dos e a mente renovada, cheia de ideias.

Foi justamente nessa época que descobri um problema


crônico nos dois pés — a existência de um osso a mais
que me levava a uma dor insuportável e me impedia de
caminhar mais do que um quarteirão sem chorar por não
conseguir prosseguir — que me obrigou a ficar vários
dias afastada da escola e a viajar vinte vezes, no mesmo
ano, cerca de 180 quilômetros até a cidade de Campinas
(SP) para fazer uma cirurgia que removeria estes ossos.
Aos 11 anos, no trajeto e nas longas horas de espera,
o tempo era preenchido com livros, gibis (uma grande
paixão desde que aprendi a ler) e escrita aleatória em
folhas de caderno, que, tristemente, se perderam em
uma das limpezas de quarto, assim como os primeiros
textos da infância.
A falta de um local adequado para tratamentos desse
tipo em Poços de Calda me obrigava a ir para Campinas.
Creio ter lido uns 50 livros naquele ano. Na época passei
a me interessar por algo mais adulto, e conheci o uni-
verso de escritor que mais tarde se tornaria minha refe-
rência em estrutura textual, Marcelo Rubens Paiva, nos
textos de “Feliz Ano Velho” e “Blecaute”. Li também um
pouco de Shakespeare, nos clássicos adaptados para
infanto-juvenil como “Otelo”. Apaixonei-me pelo texto
de “Sonho de uma noite de verão”.

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Periferia adentro: o hip-hop 29

A falta de informações era tremenda, mas conseguimos


Escola da vida eleger uma chapa e criamos um pequeno grêmio, para
o qual fui nomeada assessora de imprensa. Achei lindo
o nome, afinal, tinha a palavra imprensa e eu poderia
considerar um trabalho jornalístico. Longe de qualquer
conhecimento sobre o que realmente era a profissão,
acho que não me saí tão mal, afinal, eu sempre divulgava
nossas ações em panfletos e fazia barulho junto com os
demais alunos, além de ter documentado boa parte das
nossas pequenas ações dentro do colégio.

Ao voltar para a escola, dividi com professores e cole- Conseguimos poucos resultados, afinal, em uma escola
gas de classe meu desejo de escrever e me tornar jor- onde o único objetivo pregado pela direção e pelos edu-
nalista. Fui ridicularizada. Pobre não pode ter esse tipo cadores é a conquista de um diploma, não importando
de profissão, me diziam. como, os alunos não davam muito importância ao grêmio.

Por que meu desejo, assim como o das demais garotas Leitura. Muita leitura. Entre todas estas atividades,
da minha classe não era terminar o 2° grau, arrumar um minha vida continuava marcada por muitos livros e tex-
marido e ter filhos? tos. A aquisição de um computador e o acesso à inter-
net, naquela época, ainda eram coisas raras e, com
Não, não era. Não naquele momento. Eu queria aprender muito sacrifício dos meus pais, conseguimos isso.
coisas novas a cada dia. Queria estudar. Queria escre- No universo gigante que a internet mostrava, come-
ver. Não poderia falar mais sobre isso em sala de aula cei a pesquisar novos textos e, diante do computador,
e demorei para perceber, pois, todos os dias, repetia o escrevi minhas primeiras linhas, desconexas, mas que,
mesmo sonho para toda a classe. Queria ser jornalista. mesmo assim, achava que formavam literatura. Mas
Gostava de escrever. Continuei lendo e juntando os tro- não importa. Foi o primeiro passo.
cados da mesada que meu pai me dava, com base no
salário de aposentado do ramo da metalurgia, para com-
prar alguns livros que me chamavam atenção.
Pouco tempo mais tarde, por ter sempre estudado na
mesma escola e militar em causas para o bem-estar
dos alunos, um grupo de alunos me convidou para mon-
tarmos um grêmio estudantil. Inspirados pela parti-
cipação dos meus pais no colegiado, que sempre ten-
taram melhorar o ambiente estudantil, consolidamos
nossa ideia inicial.

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Periferia adentro: o hip-hop 31

conseguiam conter. Várias vezes a polícia teve de inter-


Campo de batalhas vir e alguns alunos foram conduzidos à delegacia. Foi
então que uma viatura passou a fazer parte da paisa-
gem estudantil dos quase dois mil estudantes daquele
colégio. Para evitar as brigas frequentes, os policiais
circulavam pelo pátio e arredores.
Nem isso impediu que, sem qualquer motivo, um aluno da
minha sala fosse espancado até quase a morte enquanto
saía da escola apenas porque esbarrou em outro. A educa-
ção cedeu, facilmente, o lugar para a violência incontida.
Falta de informação, de atividades, de lazer conduzindo As ofertas de drogas fáceis na porta do colégio também
a um resultado comum e aterrador: violência dentro da eram uma realidade. Apesar da presença policial, da
escola. Foi por volta de 1999 que as gangues surgiram, Guarda Municipal, dos professores e diretores, o tráfico
dentro das escolas, com mais impacto. não deixava de acontecer, à luz do dia, e atingir todos os
Grupos da Zona Sul, onde vivo, rivalizavam com grupos alunos. Graças a Deus, eu tinha outros sonhos e ideais.
da Zona Leste, onde a escola estava situada, e as dis- Nunca me chamou atenção ficar “louca” por conta de
putas por espaço e poder dentro da instituição eram alguma substância. Preferia viajar pelos livros.
cada vez mais constantes. Um estrondo forte, de tre- O grêmio se desfez pelas ameaças e ridicularizações das
mer todo o prédio trouxe a notícia de que uma bomba gangues, que traziam personagens reais dos filmes de
caseira, fabricada por um aluno, fora colocada em um terror, colocando medo em todos os demais alunos que
dos banheiros. ousassem desobedecer às regras estabelecidas por eles.
O motivo? A imagem que a forma arquitetônica do prédio Era triste observar e não poder mais lutar pelos direi-
transmitia a alguns alunos, que passaram a chamá-la de tos dos alunos. Quase todos os jovens, com problemas
pavilhão 9, talvez pela semelhança física e pela existên- em casa e também na escola, não tinham mais sequer
cia de uma grade que separava as salas de aula do pátio o direito à merenda que era distribuída nos intervalos e
e do portão de saída. garantia a única refeição diária de muitos deles.
A inexistência de disciplina fomentou, cada dia mais, as Num tempo em que a única referência em educação é um
brigas entre os grupos e gangues, fazendo com que um campo minado de batalhas entre grupos rivais, apenas por
espaço onde a educação deveria acontecer se transfor- diferenças geográficas, o desenho de profissionalização
masse em um campo de batalhas. e curso superior passa longe dos sonhos das periferias.
Nesta mesma época, brigas eram formadas durante o A porta da escola, mesmo com a presença policial, foi
intervalo entre as aulas e nem mesmo os professores transformada em ponto de tráfico pelos moradores do

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34 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 35

morro vizinho. Os que tinham mais de 16 anos, e uma Acho que meus pais nunca entenderam esse gosto, esse
família um pouco mais ordeira e trabalhadora, abando- desespero por conhecer mais dessas culturas popula-
navam os estudos ou migravam para o período noturno e res. Com o tempo, passaram a aceitar e acompanhar,
passavam a trabalhar, quando conseguiam um primeiro afinal, era melhor estar vivendo isso do que aliando aos
emprego com carteira registrada. Outros deixavam de problemas e às ofertas perigosas da periferia.
lado os estudos e partiam para atividades informais
Outro sonho, atuar nos palcos de teatro, já tinha ficado
como serventes de pedreiros, babás e diaristas.
na infância, mas, mesmo assim, na ânsia de saber e
Foi também neste período, que, não pela falta de infor- aprender cada vez mais sobre tudo, me matriculei em
mação, constante em atividades do governo e pales- um curso de teatro do Conservatório Municipal. Apren-
tras, mas pela falta de oportunidades e de ousadia por der a falar em público, articular melhor os movimentos
uma vida diferente, muitas garotas da minha classe e corporais e perder a vergonha diante da plateia. Estas
de toda escola, todas com idades entre 12 e 16 anos, foram as matérias mais proveitosas do curso.
ficaram grávidas.
Apresentei uma peça no fim do ano e, no ano seguinte,
Sem estrutura em casa, com pais e mães separados ou me dediquei à produção e à atuação em outra peça,
já falecidos e namorados, quase sempre, ligados à ati- sobre os problemas cotidianos de uma família tipica-
vidades ilícitas, elas ostentavam as barrigas e carre- mente brasileira.
gavam no ventre não apenas os bebês, mas o sonho de
uma vida diferente, com casa própria, marido e carro do
ano. Todas elas, também, deixaram os estudos e as que
tiveram mais sorte foram viver com os companheiros. A
maioria continuou vivendo na mesma casa e, hoje, cria os
filhos sozinhos, sem reconhecimento ou apoio paterno.
Meu sonho de ser jornalista continuava e muito deste
retrato cotidiano, formado pelos acontecimentos da
escola, se transformaram em crônicas na própria escola,
durante as aulas de português, geografia e literatura.
Estava escrevendo a nossa própria história e caminhando
rumo ao meu sonho: ser jornalista.
Desde cedo me incorporei à contracultura, à cultura
negra, aos movimentos populares. Não sei de onde sur-
giu tamanha paixão e nem o porquê, mas o fascínio que
ela exerce sobre mim é incrível. Naquela época já não me
imaginava sem estes sonhos, sem estes engajamentos.
Periferia adentro: o hip-hop 37

Isso acontecia dentro do poliesportivo do bairro Con-


Uai, hip-hop junto Habitacional Pedro Afonso Junqueira (Cohab),
que já estava caindo aos pedaços no final da década de
1990 e, então, passou a ser o abrigo da cultura nascida
nas ruas do bairro.
A novidade da dança praticada por jovens com roupas
largas e uma música com batidas diferentes, trazia a
esperança de um estilo singular de vida. Para o grupo de
quatro garotas que passavam pelo local, até então, sem
qualquer esperança de encontrar algo fora da rotina, a
Era uma tarde qualquer de sexta-feira no ano de 2000 e surpresa pela cena vista era, talvez, a possibilidade de
a mesma cena, comum em todas as periferias do país, um mundo mais colorido e ritmado naquela periferia.
onde as casas não têm reboco, dependuradas nos mor- No dia seguinte, a mesma cena podia ser vista, no
ros e encostas. As vielas, sujas e abandonas, e o mau mesmo horário e a aproximação entre os grupos foi ine-
cheiro dos esgotos a céu aberto misturam-se com o mau vitável. Eu estava lá, entre outras três garotas, feliz por
cheiro da violência. ver, de forma próxima, algo que então fazia parte da dis-
Para contrastar, o hip-hop chegava naquela região, que é tante reprodução televisiva.
a mais pobre da cidade de Poços de Caldas, e propunha Era a época em que os programas de TV, aqueles dos
novos rumos à vida de tantos jovens do local. quais eu tentava fugir sempre, traziam um pouco da cul-
Em meio ao caos urbano dos que estão fora da escola, tura importada dos Estados Unidos e mostravam como
envolvidos com o tráfico e a violência generalizada, ela valorizava a periferia brasileira. Diante da magia exer-
porém, a cena vista era totalmente inesperada e envol- cida por aqueles passos sincopados e executados pelos
vente: um grupo de sete garotos dançava, numa roda garotos, senti que, de repente, era esta a oportunidade de
formada por eles próprios, ao som das batidas do rap. levar aquilo para as escolas e substituir o cenário violento
e sem perspectivas por uma dança colorida, uma música
A expressão em inglês hip-hop, na tradução literal, sig- envolvente e a vontade de mudar a realidade.
nifica saltar movimentando os quadris. Tão diferente
quanto possível desta analogia, a cultura propõe um Na semana seguinte, o mesmo poliesportivo deu lugar a
sem-número de outras manifestações. Na ânsia de um evento batizado apenas como Hip-Hop que invadiu o
conhecer mais sobre o movimento, desisti de seguir até a espaço e trouxe grupos de cidades vizinhas, tão ligadas
biblioteca montada recentemente naquela região – cerca à cultura de rua que era fascinante observar tudo.
de 1,5 quilômetros de caminhada distante da minha casa Um casal de pouca idade circulava pelo local exibindo
– e entrei no poliesportivo. os cabelos em estilo black power e as roupas típicas dos
adeptos do hip-hop daquela época.

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38 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 39

Com uma voz forte, a moça, que não teria mais que 18
anos, chamava a atenção de todos os presentes ao
embalar-se no ritmo e na poesia da música feita pela
cultura nascida nas ruas. Ao lado dela, o marido, dava
sentido ao rap, relatando os fatos cotidianos do lugar e
incrementando com um pouco do amor que sentia pela
esposa. Nasceu então, acompanhando a paixão do casal
e o amor dos garotos pela dança e pela cultura de rua, o
meu envolvimento com o hip-hop.
A magia do evento podia ser sentida diante da cena real
vista por centenas de jovens reunidos com um único
objetivo comum, descoberto depois, de promover paz,
amor, diversão e união, como profetizou o criador da cul-
tura Afrika Bambaataa, nos anos 1970, nos guetos nova-
iorquinos. Mais tarde, este mesmo casal ficaria conhe-
cido como Os tios do hip-hop.
Tentei encontrar alguma forma de contribuir com aquilo
que deu um novo sentido a minha vida: a cultura hip-hop.
Devagar, alguns garotos que moravam próximos a mim,
começaram a levar os passos para a escola e, alheios ao
que as gangues pregavam, passaram a disputar as dife-
renças através dos passos de break.
Diariamente, comentava com duas das minhas amigas
— Juliana e Karina — que me apresentaram, mesmo
que involuntariamente, à arte do hip-hop, tão próxima da
minha realidade, que mais de uma opção sempre existia
nas nossas vidas e entre o tráfico, o sexo tão aflorado
e as culturas populares, ficamos com a terceira opção.
Rapidamente, os intervalos de aula sangrentos e cheios
de medo foram substituídos pelo som que ecoava dos
micro-systems e faziam dançar.
Era hora de fazer alguma coisa.
Periferia adentro: o hip-hop 41

O primeiro encontro significou flertes e, com o pretexto


Os tios do hip-hop de cantarem juntos, iniciaram o namoro que, anos mais
tarde, resultaria no casamento e na união das vozes em
cima do palco. Com músicas sobre cotidiano, política,
problemas sociais e amor, eles fazem questão de dizer
que integram a nova escola do hip-hop, mas sempre
inspirados pela old school, mesclando elementos e for-
mando um grupo diferenciado.
Para se manterem e sustentar o filho, Jeam, sete anos,
o casal trabalha em tempo integral com as noites dividi-
Era o ano de 1991. Havia apenas um tape velho e uma fita das entre ensaios, gravações e composições. Mas, para
K7 vindos de São Paulo com os primeiros rappers nacio- chegar nisso, dividiram muitas histórias recheadas de
nais como: Thaíde e DJ Hum e Racionais MC´s. Esta fita vitórias e dissabores. “Nós tentamos sempre correr pelo
chegou nas mãos de um jovem idealista e sonhador que certo, e passar o que há de bom, formar uma juventude
tratou logo de espalhar o novo som para aquela periferia. cabeça”, afirma Lu Afri, quando questionada sobre as
propostas do grupo.
Quando o assunto ou referência é hip-hop, rap ou cultura
negra, eles são, automaticamente, lembrados e citados: Desta maneira, conquistaram a cabeça de Roberto
“Eles já são titios do hip-hop aqui em Poços”. É o que Moreira, conhecido como Bebeto. Assim que entrava na
dizem os adeptos da cultura na cidade, quando se referem adolescência, ele assistiu a um show do casal no polies-
a Suburbano, 30 anos, e a Lu Afri, 26 anos, os pioneiros do portivo da Zona Sul da cidade e se encantou. “Mexeu
rap e consequentemente da cultura hip-hop na cidade. É demais comigo o jeito que o Flávio fazia rap, rimava e a Lu
injusto contar minha história sem citar a do grupo. também.” Tempos mais tarde ele foi convidado para inte-
grar o clã de suburbanos, que dá origem ao nome UClanos.
Casados há dez anos, eles fazem rap há muito mais que
isso. Suburbano conheceu o hip-hop aos 10 anos, atra- Em uma casa simples, de quatro cômodos, nos fun-
vés do rap, em fitas que vinham até ele por meio de ami- dos da residência da mãe de Suburbano, eles recebem
gos que faziam a ponte entre São Paulo e o sul de Minas todos os amigos com muita simplicidade e hospitali-
Gerais. Desde muito novo ele se interessou por música e dade. Quem tem o primeiro contato com o hip-hop na
resolveu cantar rap. cidade logo procura o casal e num armário branco, meio
que caindo os pedaços no canto da sala, encontram as
Lu Afri cantava em um grupo chamado Valor Moral e informações que buscam sobre a cultura, desde o sur-
também dançava, quando um amigo em comum resolveu gimento desta no Brasil até os dias atuais, passando
apresentá-los. “Eu esperava encontrar um negão, can- por várias fases e vários artistas.
tor de rap. Encontrei o Suburbano (risos)”, diz Lu, brin-
cando, enquanto conta sobre como se conheceram.

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42 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 43

Transmitindo muita paz e energia positiva, seguindo os Entre tantos quilômetros percorridos quase todo final
princípios de paz, amor, diversão e união pregados por de semana, eles contam, aos risos, uma aventura que
Afrika Bambaataa, o casal dispõe de um bom acervo e o viveram uma vez, indo para a cidade de Lavras (MG),
disponibiliza para consulta. Assim que os conheci, tam- que fica mais ou menos 220 km de distância de Poços
bém me diriji à casa deles e me encantei com o acervo de Caldas. O casal e mais quatro amigos foram fazer
bem organizado e montado em pastas. uma apresentação em um evento de hip-hop e perde-
ram a condução que os levaria. Foram pedindo carona
Não diferente da maioria das casas dos guetos, o casal
pela estrada, durante a madrugada. Os seis amigos via-
mora em um canto simples, sem muito luxo ou conforto,
javam um pedaço de carona e andavam outro tanto a pé,
em um bairro a dez quilômetros de distância do centro da
pela beira da estrada, sem iluminação e sem conhecer
cidade. Mas possui, na sala de estar, um moderno com-
o caminho. “Gastamos muita sola de sapato para fazer
putador, junto da aparelhagem de som. Contrastando o
aquele show, mas temos histórias para contar”, diz Lu
luxo eletrônico à humildade carinhosa, eles se sentam
Afri, lembrando o ocorrido. “Nós não tínhamos dinheiro
para trocar ideias com quem quer que esteja em busca
para pegar ônibus, nada. O Sidão, um amigo que estava
de informações sobre hip-hop. “Estamos sempre pro-
conosco, conseguiu sacar tudo que ele tinha no banco e
curando nos informar, e tentar levar a cultura adiante,
pegamos algumas conduções picadas até lá”, diverte-se
mudar alguma coisa na sociedade, tirar as crianças da
Suburbano, aos risos, lembrando da história.
rua, ensinar”, diz Suburbano, lembrando de um projeto
que ele desenvolveu junto ao G do Gueto, um MC amigo Eles caminharam toda a madrugada e, quando chega-
do grupo, no qual participam em músicas juntos. Espe- ram ao local do show, estava amanhecendo. O único
lhados por King Nino Brown, eles têm a intenção de, um grupo que faltava era o UClanos, que, mesmo com toda
dia, disponibilizar o acervo de hip-hop em Poços de Cal- correria, se apresentaram, recebendo muitos aplausos.
das ao estilo Casa do Hip-Hop, em Diadema (SP). Ao término do show, entretanto, como eles voltariam
para Poços de Caldas novamente, sem dinheiro, sem
Além de MC, Suburbano se arrisca no graffiti já tendo
carona, com fome e muito cansados? Fizeram amizade
exposto seus desenhos nos muros de duas escolas públi-
com alguns moradores da cidade que os hospedaram, e
cas do subúrbio onde mora. Sempre bem-humorado e
Lu Afri lembra, com saudade, do tempo que passou lá:
disposto, o casal divide atenção entre o trabalho, os ami-
“O Suburbano e eu estávamos em lua-de-mel e a dona
gos e o pequeno Jeam. Suburbano trabalha como auxiliar
da casa cedeu a cama dela para gente”, diz. Durante
em uma empreiteira e Lu Afri é tosadora em um pet-shop.
uma semana eles ficaram na casa dos amigos recém-
No restante do dia, ela cuida da casa e deixa Jeam na
conquistados, tentando arrumar algum dinheiro para
escola, onde ele fica por todo o dia. Na maioria das vezes,
voltar. “O nosso amigo, o b.boy Dinho, arrumou até um
para economizar dinheiro e ajudar no orçamento mensal,
relacionamento lá. Uma namorada que não queria deixá-
eles caminham quase 13 quilômetros para ensaiar com
lo ir embora”, conta Suburbano. Com o dinheiro empres-
o grupo, na casa de Bebeto — que depois de inserido no
tado pelos amigos, eles conseguiram voltar para Poços de
grupo, se transformou em MB2 — do outro lado da cidade.
44 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 45

Caldas uma semana depois, mas, quando chegaram, sen- as atenções estão voltadas para os trabalhos com novas
tiram saudades da vida diferente que tiveram em Lavras. músicas e eles pretendem inovar o cenário interiorano,
compondo um rap misturado com reggae, ambos ritmos
Hoje eles são orgulhosos por terem vivido histórias como
com raízes afro.
essas, conhecido gente famosa. Eles são considerados
os tios do hip-hop na região, e sempre são convidados Entre aventuras e desventuras, o casal pretende levar,
para vários eventos em cidades vizinhas, em parceria com por muito tempo, a bandeira do hip-hop, e representar
um grupo K2, uma banda da cidade que toca o estilo ska. o sul de Minas. Suburbano tem projetos para criar um
jornal sobre hip-hop, ao estilo dos “zines”, informativos
Junto com o grupo, o casal sempre se esforça para mos-
e independentes, com distribuição gratuita e ilustrado
trar o lado positivo da cultura e acreditam que o hip-
com grafites feitos por ele mesmo. Cheios de sonhos,
hop, pode sim, resgatar as pessoas. “Quando eu come-
expectativas e disposição, os tios do hip-hop continuam
cei, queria mostrar o que tinha dentro de mim, na minha
trabalhando na divulgação do movimento enquanto cul-
cabeça, o que pensava. Queria mostrar para as pessoas
tura, e resgate, para o povo da periferia.
que o hip-hop veio para não termos preconceito, para
lutarmos pelo certo, fazermos nossa correria. Para os
jovens trabalharem, estudarem. É isso que queremos
dentro do hip-hop, ver os jovens, as crianças apren-
dendo coisas legais que o hip-hop proporciona”, diz Lu
Afri, defendendo seu envolvimento com o hip-hop.
Suburbano acredita na expansão das informações e ati-
tudes positivas, e conta que eles sempre realizam even-
tos beneficentes de hip-hop, onde recolhem alimentos
e doam para entidades carentes. Desta forma, preten-
dem dar um bom exemplo à sociedade, além de contri-
buir com os mais necessitados: “Sem o hip-hop isso não
seria possível, ele veio para resgatar todo mundo. Esses
quatro elementos vieram para tirar os jovens da rua, das
drogas, do álcool, da prostituição, do crime. Veio para
ocupar a cabeça das pessoas, para incentivar a prática
do bem”, diz Lu Afri.
Ainda na memória, eles trazem as lembranças dos pri-
meiros eventos realizados na periferia, quando muitos
quilos de alimentos eram arrecadados e distribuídos
para creches e entidades da região. Mas, atualmente,
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Periferia adentro: o hip-hop 49

Garotas com roupas largas, tênis grandes e um desafio:


Passo sincopado aprender a dançar como os meninos. Assim, neste ritmo,
crews, compostas apenas por garotas, começaram a

em direção ao futuro surgir no poliesportivo e, talvez, atraídas — assim como


eu e minhas amigas — por alguns garotos em particular
e, consequentemente, pela cultura, passaram a treinar o
break e descobriram que dava certo.
Inspiradas pelas rimas feitas por Lu Afri, passaram,
também, a cantar e, quando não estavam ensaiando o
sapateado no chão, mandavam as rimas de uma forma
Embalada pelo ritmo da poesia das letras de rap, que consciente, entretanto, por terem de ajudar em casa
eram cantadas e dançadas no poliesportivo, eu já não com as tarefas domésticas, a presença delas não era
passava um dia sequer sem ir ao poliesportivo e obser- tão constante, mesmo que abrilhantasse a cultura que,
var a explosão da cultura de rua. até aquele momento, havia sido, praticamente, mascu-
Contudo, longe de ter aptidão para cantar, dançar e, lina na comunidade.
quem dirá, grafitar, me contentava em apenas acom- Contudo, a exemplo de certas garotas da escola, algu-
panhar e pesquisar sobre o assunto. Comecei a ler tudo mas delas deixaram de treinar com tanta frequência e
que encontrava sobre a cultura e a guardar o material em passaram a namorar firme alguns rapazes, atitude que,
pastas. Porém, a vontade de integrar, fazer parte, e aju- posteriormente, lhes trariam filhos e uma distância
dar no fortalecimento da cultura era mais forte e junto ainda maior da cultura.
à crew, que dançava break, e ao grupo de rap UClanos
As que continuaram envolvidas com o hip-hop tiveram,
passei a fazer parte da organização dos eventos bene-
assim como eu, vontade de mostrar o trabalho, o que
ficentes que aconteciam regularmente na comunidade.
se concretizou com a proposta de organização de um
Fiquei com a parte da divulgação e cobrança dos ingres- evento. Mas, para ser um evento bacana, que chamasse
sos, que não era mais do que 1 kg de alimento, sempre atenção, precisava ser beneficente, que além de entre-
destinado à entidades e creches do próprio bairro. O ter trouxesse benefício à comunidade.
ano ainda era 2000 e o novo século prometia ser cultu-
Por intermédio de cartas e telefonemas rápidos, grupos
ralmente diferente. Novos estilos surgiam a cada dia
de outras cidades receberam convites para participar do
e, poder fazer música e dança, sem precisar de muito
evento. Os desafios do evento iam muito além de conhe-
investimento financeiro, trazia mais sonhos aos jovens
cer bastante gente e repassar convites. Era preciso arru-
que, até então, apenas carregavam suas fitas e seus
mar um som emprestado, autorização para que o evento
micro-systems ladeiras acima.
acontecesse e termos em mente a garantia de que não
teriam brigas e nem depredação do espaço público.

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50 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 51

Reuníamo-nos todas as tardes para discutir como o Tal qualidade era medida pela quantidade de tempo que
evento seria montado, que nome teria, como recebería- cada uma treinava e a que realizava o evento, por se
mos os convidados, onde encontraríamos troféus, e cada considerar acima dos que se apresentavam, ficou como
um ficou responsável por uma parte. A falta de dinheiro jurada e apresentação final. Feliz por estar lá, mesmo
da condução para ir até o centro da cidade, a concilia- sem saber qualquer passo do break, continuava encan-
ção da escola e do trabalho com a organização do evento, tada pelos passos, pelas gírias, pelos discos riscados
tudo isso, se transformava em entraves e, justamente por pelos DJs e pelas competições de gírias.
isso, é que o desejo de fazer uma grande festa crescia.
Como nada é perfeito, para um evento montado por
Decidimos que o nome seria apenas Hip-Hop Sul, por jovens que não tinham 18 anos ainda, até que estáva-
estarmos na Zona Sul e por ser simples, fácil de ser mos muito bem, quando alguns gritos do lado de fora
assimilado. atraíram a atenção de quem estava do lado de dentro.
Dois grupos, vindos de fora, se desentenderam e distan-
A notícia correu entre os amigos da região e, logo, todos
tes da proposta do evento, queriam resolver a diferença
aguardavam ansiosos o domingo, dia escolhido porque a
com violência. Proibidos, pelos garotos da crew local,
presença poderia ser maior.
um deles mudou o foco e queria briga com ele, naquele
O poliesportivo se transformou, então, em palco de uma momento. A apreensão por ter o evento finalizado com
das maiores festas da periferia, com as competições de brigas corporais fez a roda aumentar ainda mais em
break e os shows e batalhas de rap. torno dos dois, quando ficou resolvido que uma racha de
O brilho nos olhos de cada um da organização, inclu- dança tiraria a diferença.
sive nos meus, que, naquele dia, trancei o cabelo liso ao Uma observação positiva é que os grupos de fora trou-
estilo rasta para tentar incorporar um pouco da cultura xeram garotas junto com as crews, o que significava
negra no staff do evento. uma presença maior do grupo feminino na cultura e um
Claro que o amadorismo deixou algumas falhas e algumas fortalecimento desta parte na região. Abstraí o pre-
pessoas acabaram entrando sem deixar como ingresso o conceito da família e de alguns colegas de escola, que
quilo de alimento, mas, nem por isso, o evento deixou de diziam que os b.boys estavam lá apenas para encerar
ser um sucesso, tanto pelos sons novos, que foram apre- o chão – que era, obviamente, liso e apropriado para
sentados, quanto pela constatação de que foram feitos dança – do poliesportivo.
com a mão de obra mais preciosa da periferia: a dificul- Foi apenas o primeiro evento e as creches da região
dade do dia a dia. comemoraram a chegada de 500 Kg de alimentos, arreca-
Sem qualquer briga ou desentendimento, as rachas de dado como cobrança de ingresso para o evento. Naquele
break se seguiram por horas, com jurados e premiação domingo voltei para casa leve e feliz: as manifestações
em troféus, que mesmo simples, imprimiam a quali- encheram minha alma e a sensação de realização me
dade de algumas crews, tanto da cidade como de fora. trouxeram a certeza de que, com muito trabalho e desejo
de construções positivas, tudo era possível.
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Da segunda vez que uma festa foi organizada, consegui- nível nacional. Sem internet ou divulgação televisiva, o
mos convidar outros grupos de rap e break de outras que- acesso a novas informações surgia pelas experiências
bradas da cidade. A escolha da data para acontecer foi a de quem viajava aos grandes centros ou pelas revistas
mesma, um domingo durante a tarde, e o Centro Comuni- segmentadas da época.
tário se tornou palco de um grande encontro.
Não demorou para que a literatura marginal entrasse em
Com a experiência da outra vez, o evento foi batizado nossas vidas por meio das revistas, “zines” e publica-
como Hip-Hop Sul II, mas trouxe os mesmos entraves, ções acerca do hip-hop. Os primeiros textos de identifi-
como crews que tinham desejo de tirar a diferença com cação chegaram alguns anos depois, pelo lendário escri-
brigas e não com rachas. Resolvido o problema, o clima tor Ferréz. Uma revista encontrada, ao acaso, por alguém
lembrava os bailes Black da década de 1970 e a chegada do grupo. A atenção despertada por um texto escrito de
do break ao Brasil. Ao redor das rodas observavam-se forma diferente. Uma linguagem nova despontava na
garotos, garotas e desta vez, alguns pais, que foram periferia e trazia temas recorrentes na nossa realidade.
convidados a assistir a apresentação dos filhos, e tam-
Longe de qualquer ligação criminosa, o termo literatura
bém algumas crianças no local.
marginal refere-se apenas à condição em que, não só a
Conseguimos, mesmo que, na época, sem idealizar isso, literatura, mas o hip-hop se encontram. À margem da
trazer para a nossa quebrada uma opção de lazer aos sociedade e à beira de mudanças positivas, os textos
domingos à tarde que não fossem os programas televisi- dos poetas do gueto, denunciam, de uma forma “roman-
vos como Faustão e Sílvio Santos. ceada”, a violência e a miséria experimentas na perife-
ria. Começa assim uma nova fase na cultura marginal
Não fomos atrás e, também, não recebemos nenhum
poços-caldense, envolta de conhecimento e sabedoria.
tipo de apoio ou incentivo do poder público ou privado.
Além da cessão do local, que tínhamos direito a usar, As letras de rap se tornaram mais conscientes e o número
não pedimos mais nada e, mesmo assim, fizemos uma de grupos foi aumentando. Os locais onde as festas bene-
grande festa. Devagar, ambulantes trouxeram os car- ficentes aconteciam foram se alternando, ora aconte-
rinhos para a porta do local e tiveram uma renda dife- cendo no poliesportivo, ora no centro comunitário, loca-
rente naquele domingo. lizado à poucos metros de distância. Nos bolsos das
calças largas, vários manos traziam em papéis amassa-
Além dos benefícios para os jovens das periferias de
dos, encontrados ao acaso, espalhados pela casa, novas
toda cidade, as creches ficaram, novamente, felizes por
letras de rap e alguns arriscavam até mesmo alguns con-
conta dos alimentos recebidos. Não foram 500 kg como
tos, textos e crônicas, que entoavam a lembrança de tan-
da outra vez, mas representaram que, além do resgate
tas tardes passadas no poliesportivo em meio aos treinos
na vida de cada um daqueles jovens, poderiam ser, tam-
de break, as batalhas e os sonhos da juventude.
bém, revertidos em prol da comunidade e assim foram.
Poesias românticas eram escritas em pedaços de folhas
Novos eventos nos mesmos moldes foram realizados,
de cadernos e os mais ousados tratavam dos problemas
além dos treinos diários e incessantes, na tentativa de
competir em outras cidades da região ou mesmo em
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sociais e da própria realidade. Tínhamos descoberto Começava então, uma produção textual na roda, mesmo
uma nova forma de externar nossos pensamentos ao por aqueles que não frequentavam mais a escola ou que
mundo: a palavra. A revista Rap Brasil se tornou, tam- escreviam precariamente. Todas as tardes, ao término
bém, uma referência de conhecimento sobre a cultura dos treinos, quando nos sentávamos para conversar,
e a cada mês, um somava as pequenas economias e ia contar os acontecimentos cotidianos, os textos eram
até o centro da cidade para comprar um exemplar, que lidos. Pena que alguns eram ridicularizados, mas, nem
trazia sempre o que havia de mais novo no cenário do rap por isso, deixavam de ser feitos.
e algumas pinceladas dos demais elementos da cultura.
Hoje, entre as poucas lembranças que guardei daquela
Líamos tudo que podíamos sobre o assunto e quem época, um texto sobreviveu às várias limpezas no
podia viajar para São Paulo ou Rio de Janeiro trazia sem- guarda-roupa todos estes anos. Inspirado no que eu lia,
pre um som novo, um passo diferente e novos textos. via e observava.
Dos poucos que tinham acesso à internet, e eu era um
deles, visitava sites em busca das novidades e de mais Homem do Gueto
informações sobre qualquer coisa que estivesse ligada à Hoje o hip-hop chora, o homem do gueto foi embora.
cultura. Saber mais significava melhorar a comunidade e Cantou, pregou, tentou. Não conseguiu. Cansou, não
trabalhávamos, mesmo sem pretensão, para isso. aguentou. Se matou.

Sons de Racionais MC´s, Thaíde e DJ Hum e Sampa Crew Mas não se matou assim, de repente, como quem dá um
eram os mais ouvidos e serviam como inspiração. O tiro na cabeça, puxa uma corda no pescoço, se atira dum
conhecimento sobre novos passos, novos sons, a existên- prédio e pronto! Não... O homem do gueto morreu aos
cia de uma liga de DJs e o despontar da literatura e pro- poucos, como bom brasileiro que era, pensava que seu
dução cultural feitas no gueto vieram, então, da revista. lema era, “não desistir nunca”.

Arrisquei-me, também, a produzir alguns pequenos tex- Com 10 anos de idade, quando o homem do gueto ainda
tos com as cenas que observava diariamente no local. era um menino, viu o pai se separar da mãe e fugir como
um covarde. Alguns anos depois, tomou um tiro de ras-
Escrevia e apresentava aos garotos que treinavam.
pão do padastro e carregou a mãe, baleada pelo padas-
Comigo, levava duas das garotas que me levaram até lá
tro, até o hospital. Viu a coroa morrer. Chorou, cansou,
pela primeira vez, onde conheci todo universo mágico da
mas não desistiu.
cultura de rua.
Se lembrou das madrugadas em que levantava sob a
Dos textos, lembro que descrevia a segurança que
geada, para apanhar café com a coroa e ajudar a sustentar
sentia em estar no poliesportivo observando os trei- o lar. Chorou. Mas não desistiu. Aguentou. “Mãe, fique na
nos e guardando as lembranças. Todos gostavam e me paz, pois seu filho, aqui na terra, te ama demais...”, cantou.
incentivavam a escrever mais. O sonho era, e continua
sendo, ter as sacadas parecidas com as do Ferréz e a Pensou que fazer umas letras de rap e cantar para a
juventude amenizaria a dor e ajudaria na construção de
produção, também.
60 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 61

um país melhor, afinal, o homem do gueto era brasileiro e brada, eram as ideias que martelavam na cabeça do
não poderia, em hipótese alguma, desistir. homem do gueto, agora, homem feito, maior de idade.

Queria respeito, dignidade, cantar um rap que abalasse “Periferia mano, é bem diferente, só mano linha de
toda a cidade. Não deu. Se fodeu. Leu num livro que não frente”, dizia.
devia se meter com as drogas, mas foi numa balada, uma
Se enganou. Quando mais precisou de ajuda para botar
noite qualquer, cantando um rap, que ficou de barato
os projetos do bem pra frente, não conseguiu. Em cada
com a primeira “bola” que deram.
porta que batia, era um “não” que recebia. “Por que é tão
O homem do gueto, apesar de ser ele mesmo, também caiu difícil correr pelo certo?”, pensava.
em tentação. Rodou na mão dos “homi”. Acontecia com
E foi assim, sem emprego, vendo a mina com outro, o pai
todos os manos mesmo, por que com ele seria diferente?
bebendo como o padastro e quase todos os amigos mor-
Desistiu. Não de viver, mas da maconha. Continuou can- tos, por conta das drogas e do crime, que ele morreu. Dia
tando. Trabalhando. Acordava toda madrugada. “Não após dia, com a barriga vazia. Morreu fraco. A fraqueza
sabem como faz frio aqui no gueto dessa cidade de desa- da fome o consumiu e todos que o admiravam, hoje, cho-
certo”, pensava. Mas nem pensava no dia que passava, ram, o homem do gueto foi embora!
apenas trabalhava.
O interessante é o que aconteceu nos eventos e encon-
Quanto tinha 16 anos, o homem do gueto, que ainda era tros que se seguiram a essa época. Mesmo mais espa-
um garoto, arrumou uma garota, conhecida como “mina çados e com menos gente, um novo movimento surgiu. O
de fé”, que o acompanhava nas baladas de hip-hop, apro- movimento daqueles que escreviam. Por várias vezes, o
vava o rap, e não fazia cara feia para as novas composi- apresentador da festa, ou mesmo o MC, antes de anun-
ções. Uma mina que o chamava de homem do gueto. ciar atrações ou mandar as rimas, lia algum trecho de
Mas a mina de fé, assim como a mãe do homem do texto ou mesmo declamava, deixando a plateia um
gueto, se apaixonou. Não por ele, mas pelo “vida loka” pouco confusa quanto à novidade e, ao mesmo tempo,
que morava na esquina da mesma rua. Ele era melhor excitada, com a existência de uma literatura que falava
e tinha o “carro do ano”, sem falar que não pagava um a língua deles, algo que eles podiam entender.
veneno no trampo.
A falta de dinheiro e apoio nunca permitiram que levás-
O homem do gueto chorou de novo. Se cansou, mas não semos cópias dos textos nos eventos para distribuir
desistiu. No trampo, resolveu chutar o balde, não aguen- entre os participantes. Mas, certa vez, pedi a um amigo,
tava mais inveja, cara feia e bronca do patrão. Mesmo Elton, um b.boy, que se apresentava em shows no Cen-
com as contas pra acertar, deixou de trabalhar.
tro Comunitário do Cohab, para ler o meu texto “Homem
Se jogou no hip-hop. Letras de rap, viagens para São do Gueto”. Mesmo querendo ser jornalista e tudo mais,
Paulo. “O berço da cultura do gueto no Brasil”. Decepção. tive vergonha de me arriscar no palco. Coisas da idade,
Histórias, mais letras. Trabalhos sociais, voluntários, medos infundados, sei lá. Só sei que imprimi o texto em
ajudar a molecada mais nova, da rua, da mesma que- casa e pedi que ele lesse. No início, houve um certo medo,
um certo receio, mas insisti e ele acabou concordando.
62 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 63

A ideia de fazer isso surgiu de um filme, daqueles exibidos a abertura dos eventos ou intervalos, porém, a falta de
todas as semanas na sessão da tarde, quando estudan- experiência não permitia que fossem coisas organizadas
tes têm um problema, um caso de amor e alguma batalha e, portanto, sempre se tornavam dispersivas ou o inte-
para vencer até os 120 minutos finais daquela fita. Obser- resse dava lugar a alguma outra coisa, como uma música
vando em um filme, que eu não me recordo o nome, mas ou um grupo novo. Mais tarde tomei conhecimento de
que um garoto interrompia a performance de uma banda que outros escritores, poetas e até mesmo músicos,
e lia um poema no palco, pensei que, de repente, pudesse usavam o mesmo artifício para divulgar o que escreviam
imitar a ação para as nossas festas, entretanto, de forma de maneira não escrita.
mais sutil. Assim, usei o hip-hop para divulgar meus tex-
Entretanto, a necessidade de expressão, que acompa-
tos e contos e acho que a fórmula deu certo.
nha o homem desde os primórdios, com as inscrições
Entre uma música e outra o meu amigo, Elton, pediu rupestres nas paredes das cavernas, trouxe, junto com
licença e leu, não da forma como alguém que declama, os textos produzidos na periferia, algumas pequenas
mas melhorou a qualidade de leitura a medida que ia pichações nas paredes do poliesportivo, para a grande
colocando sentimento nas palavras ali escritas. tristeza de quem estava esclarecido pela cultura. A boa
notícia é que bairros vizinhos também passaram a pro-
O zumzumzum foi desfazendo e as pessoas passaram
mover competições de dança com troféus como prêmio,
a prestar um pouco mais de atenção, fazendo silêncio
e a cultura se consolidava na região.
e acompanhando o que ele dizia. Aos poucos, a histó-
ria narrada pelas minhas palavras se desenhou e todos O centro comunitário de outro bairro serviu como palco
pareceram gostar. Alguns sorriam, outros estavam emo- para uma das batalhas de break mais acirradas da
cionados. Eu não aguentei e desabei a chorar. Pelo texto, região, além da apresentação dos grupos de raps locais,
por ter escrito algo e tê-lo visto ser lido em público e pela que, a cada evento, se mostravam mais profissionais e
realidade da história, que acontece todos os dias em traziam novas técnicas, novas rimas e também novos
todas as periferias do Brasil. figurinos, compondo um cenário único naquelas peri-
ferias. Curioso observar que todo movimento acontecia
Não ficou na primeira vez. Sempre que havia qualquer
independente de qualquer ajuda, apoio ou mesmo incen-
pequena manifestação envolvendo o hip-hop, lá estava
tivo de órgãos públicos ou iniciativa privada. Diferente
eu, com meus textos, sempre pedindo para alguém ler
do colégio, onde o objetivo era estudar e não brigar, o
em público para mim.
hip-hop promovido em eventos fazia o papel inverso e
Aos poucos, a coragem de outros colegas foi surgindo e transformava as disputas em educação por meio das
eles também passaram a ler alguns de seus textos nos manifestações artísticas.
eventos. Arrependo-me de não ter feito cópias de todos,
mas, basicamente, as histórias seguiam a mesma linha.
Baseadas em acontecimentos na vida de todos eles,
surgiam pequenos contos e textos que incrementavam
Periferia adentro: o hip-hop 65

O bacana era que as tardes eram sempre embaladas


Cotidiano com muito rap e registradas em pequenos diários de
onde saíam alguns rabiscos de textos também. O ponto
alto era poder ver o Kaio, irmão da Juliana, quase 10
anos mais novo que eu, aprendendo tudo sobre hip-hop
e aprendendo a dançar break. A sensação boa era ver
que ele estava aprendendo a escrever e, entre as pri-
meiras palavras que rabiscava, estavam hip-hop, b.boy
e o próprio nome.
As lembranças daquelas tardes são incríveis e apesar
Ainda embalada pelo som do rap, nas tardes em que eu de conviver diretamente com a escassez de recurso do
não estava no poliesportivo, me reunia com algumas local onde a Juliana morava – sem asfalto, saneamento
amigas, principalmente as que me apresentaram o hip- precário, casa sem muro, sem portão, numa rua total-
hop, entre elas a Juliana, que tem papel fundamental na mente deserta, à beira de um rio nada cheiroso, éramos
minha curta existência. Quatro anos mais nova que eu, felizes naqueles momentos. Muitas vezes, nos peque-
nos conhecemos desde o dia que ela nasceu e cresce- nos cadernos que chamávamos de diários, escrevíamos
mos juntas, tendo nossas mães como amigas. como era sair de casa pisando no barro, enfrentando o
mau cheiro do rio ou, ainda, sem ter comido direito.
Sentadas em algum canto da casa dela ou da minha, nos
dedicávamos a falar sobre a vida, sobre sonhos, sobre Ela sempre ficava semanas sozinha, tomando conta do
as vontades e, também, para comer. O engraçado é que irmão, enquanto os pais trabalhavam em São Paulo. Com
era muito bom estar na casa dela por conta da liber- R$ 10 ou R$ 20, na época, era quase impossível passar a
dade. Como os pais dela nunca estavam, pois trabalha- semana, fazer comida e alimentar dois cães. A luz elétrica
vam fora, podíamos nos arriscar na cozinha livremente, estava sempre cortada pelo departamento de energia da
entretanto, a falta de recursos financeiros sempre nos cidade e os banhos eram sempre frios nestas ocasiões,
deixava com as receitas pela metade. mesmo com as baixas temperaturas da cidade.

Nossas preferências eram brigadeiro de panela, tareco De forma sutil, esses pequenos acontecimentos que eu
e bolo. Às vezes um macarrão ou batatas fritas faziam acompanhava, tão de perto, fizeram crescer a minha von-
parte do cardápio, mas somente quando a situação tade de escrever ao mundo as misérias humanas e coti-
estava boa. Entretanto, na hora de bater o bolo ou o dianas. A vontade de ajudar também foi crescendo e foi
tareco sempre faltava leite, ou açúcar ou, ainda, os ovos. por meio do hip-hop que eu encontrei as maneiras, mesmo
Era uma correria boa para buscar na casa dos vizinhos, que pequenas, de iniciar um movimento para fazer isso.
contar as moedas para poder comprar e por aí vai.

64
Periferia adentro: o hip-hop 67

Marcando vidas

Foi numa roda formada, depois dos treinos, que suados


e cansados conversávamos para contar os últimos acon-
tecimentos. Pela primeira vez e de forma aleatória, ouvi
a frase que mais me marcou na vida, e chama atenção
até hoje: O hip-hop salvou minha vida.
Valdair Ribeiro, na época com 17 anos, contava como
conheceu a cultura e os benefícios. Envolto por uma aura
de paz que, até hoje, acho que apenas o hip-hop propor-
ciona, ele disse, claramente, que enquanto dançava e
treinava não tinha tempo para pensar em outras coisas.
Assim, soubemos que ele ensaiava alguns raps e ris-
cava alguns discos, além de ter sido convidado, recen-
temente, para grafitar os muros do colégio do bairro,
onde grande parte estudava. A imagem mais marcante
que ainda vive, debaixo das várias demãos de tinta joga-
das por cima, é uma figura de Jesus Cristo com os traços
livres da arte contemporânea das ruas.
Em uma conversa das mais profundas e intensas que já
rolaram naquele espaço público, soube, também, que o
mesmo garoto, loiro, de olhos claros e muitos sonhos,
não conhecia o próprio pai e era criado pela avó, já de
bastante idade, a quem ele chamava de mãe.

66
68 Traficando conhecimento Periferia adentro: o hip-hop 69

Vindo de uma infância pobre, Valdair sempre trabalhou, dentes da frente. Foi zoado por quase todos. O traba-
ora como servente de pedreiro, ora como ajudante em lho era de ajudante de coveiro, no cemitério próximo à
oficinas e, naquele momento, como chapeiro em um comunidade. Ele não ligou e só chegava para partici-
trailer de lanches do bairro, ao lado de um parceiro, par dos treinos nos fins de semana nos quais estava de
Charles, também do hip-hop. folga ou quando eles aconteciam durante a noite. Mais
tarde, com o dinheiro ganho como coveiro, ele conse-
O dinheiro suado, ganhado durante seis noites em claro
guiu arrumar os dentes, encontrou outro emprego e Val-
toda semana iam para as mãos da mãe, que comprava
dair foi quem assumiu o cargo de ajudante de coveiro.
alimentos e leite para os dois sobrinhos dele. Muitas
vezes, tendo que cuidar das crianças enquanto a irmã Certa vez, perguntei a eles se a profissão de enterrar as
e a mãe trabalhavam, Valdair ensinava a eles os primei- pessoas e ficar no cemitério não os incomodava ou se
ros passos de sapateado. Feliz. Completo. Assim ele se não achavam um pouco mórbido. Ambos concordaram
resumiu com a vida que levava e acrescentou: graças ao que não era a coisa mais prazerosa e que preferiam viver
hip-hop e, também, por organizar eventos beneficentes de uma renda obtida com rap ou break, mas, já que não
para a comunidade. era possível nas condições da comunidade, era melhor
garantir o sustento por isso do que aliados ao tráfico.
Como a história dele, a dos outros garotos se asseme-
Concordei e nunca mais toquei no assunto.
lhava em quase tudo e o movimento era fortalecido, no
entanto, não eram raras as vezes em que éramos sur- Tempos mais tarde surgiu um texto sobre isso na roda.
preendidos pela ausência daqueles que tinham mais de Foi ignorado. Trabalho honesto e mórbido, mesmo, era ver
16 anos. Muitos conseguiam o primeiro emprego, mesmo uma porção de gente que havia crescido junto conosco
sem a carteira assinada, e passavam a garantir uma fazendo corre como aviõezinhos do tráfico que se instala
renda maior dentro de casa. devagar na região.
Certa vez ele também comentou que, muitas vezes, era
duro trabalhar em prol do hip-hop, arrecadar tantos
quilos de alimento e não ter alimento em abundância
em casa. “Por várias vezes pensei em levar um saco de
farinha ou de feijão para casa, mas não estaria sendo
honesto com o evento e nem comigo mesmo”, comentou
em um certo momento.
Mas, de repente, entendi que a fome, a vontade de comer
algo diferente era de mudar a própria realidade: de fazer
o povo da periferia ser mais consciente.
A história de Digo era diferente. Ele conseguiu um emprego
com registro na carteira. Coisa rara, ainda mais para ele
que, mesmo com a pouca idade, não tinha vários dos
Periferia adentro: o hip-hop 71

Desde que eu fosse parte integrante, estava feliz. Com


“Crime cenas leves, mas carregadas de realidade, fomos aplau-
didos pelo esquete do cotidiano com um assalto mal

desorganizado” sucedido e o aborto da juventude dos jovens da peri-


feria, que escolhem a vida do crime como única opção.
Como lição, até meio óbvia, a peça trazia a moral da his-
tória, incentivando a adesão ao hip-hop, ou às culturas
populares, como forma de resgate.
Mas, como em qualquer periferia, o crime crescia em
paralelo e levava consigo alguns dos adeptos, que, cansa-
Inspirados pela vida e as cenas assistidas diariamente dos da discriminação nas ruas e no mercado de trabalho,
pelas quebradas onde vivíamos, surgiu o convite para a por serem negros, morarem longe do centro da cidade e
montagem de uma peça de teatro a ser apresentada em se vestirem com roupas humildes, se renderam ao tráfico.
um evento no Teatro Municipal existente na cidade.
O senso comum leva a vida de todos a continuar envolta
O curso de teatro, a atuação e a produção de uma peça, pela cultura marginal.
que eu havia feito no ano anterior, foram fundamen-
tais para a montagem de “Crime Desorganizado”, uma
peça curta apresentada às escolas municipais de toda
a cidade, durante uma mostra de dança no Espaço Cul-
tural da Urca, o único de uso comum em toda a cidade,
localizado no centro. Com ensaios, todas as tardes no
poliesportivo, na hora de chegar até o local da apresen-
tação, o dinheiro da passagem foi rachado entre quem
tinha uns trocados a mais e quem não tinha nenhum.
Nervosismo antes de entrar em cena. Oração de mãos
dadas. Último repasse das falas. Conferir figurino, que
era muito pobre, com roupas já surradas e até remenda-
das, imprimindo, automaticamente, a realidade perifé-
rica da cidade apenas por isso.
Preferi não atuar por não saber os passos mínimos do
break que seriam usados para compor o espetáculo e
fiquei na montagem e direção de cena. Não que eu sou-
besse muito sobre isso, mas deu para auxiliar um pouco.

70
Cap.02
Passos pela vida
Passos pela vida 75

porta que representava uma mínima possibilidade de


emprego na cidade.
No ônibus cheio, tanto na ida como na volta, por cerca
de 40 minutos em cada viagem, continuava com minhas
leituras e passei a me interessar, também, por poesia.
Tudo que era autor eu passei a ler, com destaque para o
chileno, Pablo Neruda. Despertei também um interesse
pela história do revolucionário Che Guevara e tudo que
era comunicação sobre isso, eu lia.
Fiquei assim durante os nove primeiros meses da facul-
Encontrar um trabalho com carteira assinada. Essa era
dade, que vale explicar, era paga com uma poupança que
a esperança do ano de 2003, que começou promissor,
meu pai fez para mim desde que nasci – depositando a
com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva assumindo
parcela do auxílio natalidade – e mensalmente, guar-
o país e prometendo melhorar inúmeras coisas para as
dando um pouco de dinheiro lá. Ela permaneceu intocá-
classes menos favorecidas, principalmente, a questão
vel até o pagamento da primeira parcela da van, que me
do desemprego, que na época era aterradora.
levava até a cidade vizinha. Consegui uma bolsa de 30%,
O último ano tinha sido fechado com uma taxa de desem- o que, provavelmente, garantiria o pagamento dos qua-
prego de 11,7%, segundo o Instituto Brasileiro de Geo- tro anos do curso.
grafia e Estatística (IBGE), e todos jovens com mais de 16
Por já ter nascido em meio à guerra social travada entre
anos – como eu – queriam trabalhar registrados.
os ricos e pobres, me senti desafiando o sistema quando
Seguindo meu coração e instintos, no fim de 2002 pres- emergi da classe C (ou seria D?) direto para um banco de
tei vestibular para a faculdade de jornalismo. Fiz a prova universidade. Contrariando as estatísticas, não deixei que
em duas universidades particulares. A mais próxima estacionassem a minha mente e, apesar do sem-número
na cidade de São João da Boa Vista (SP) – há 40 km de de convites recusados para o uso de drogas, dentro e fora
Poços de Caldas – e a outra em São Paulo. da faculdade, tentei combater o dia a dia do pobre, sem-
pre sentindo na pele o que é ser uma excluída neste Brasil
Optei pela que fica em São João. Poderia continuar
que meu povo humilde construiu.
morando com meus pais, comer e dormir em casa e arru-
mar um emprego na minha cidade. A última opção foi a Apaixonei-me logo de cara pelo curso e pela chance de
mais difícil de ser alcançada. O número de desemprega- aprender, cada vez mais. Entretanto, devagar, deixei
dos crescia e o tempo de procura por uma vaga, também. o hip-hop um pouco de lado, envolvida pelos textos e
matérias jornalísticas, os trabalhos que tinha que fazer
Frequentar diariamente o poliesportivo já era mais
para o curso e a nova rotina.
complicado porque, grande parte do tempo, eu passava
confeccionando e distribuindo currículos em qualquer

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76 Traficando conhecimento Passos pela vida 77

Aos 17 anos e tomada pelas descobertas da juventude,


passei a me interessar, além da cultura marginal, pelo
rock’ n’ roll e por livros sobre magia e paganismo. Aban-
donei, de repente, a leitura dos clássicos e adolescentes
e frequentava a biblioteca e as livrarias, em busca de algo
mais obscuro. Nesta fase de transição e mudanças, dei-
xei de atuar com tanta frequência nos eventos de hip-hop
e até mesmo de ler tanta literatura nacional e revistas
sobre hip-hop e, para minha própria decepção, entrei em
uma de ler Paulo Coelho e ouvir Raul Seixas.
Não conseguia encontrar na paz do hip-hop a dose que
eu desejava de rebeldia para marcar, nem que fosse
ao final, a adolescência. Como tudo na adolescência
passa mais rápido, a fase durou pouco e, após uns dois
meses de faculdade, abri a cabeça novamente, aban-
donei as roupas pretas, o preconceito que o grupo de
“amigos” roqueiros nutria pelo hip-hop e voltei a ouvir
o bom e velho rap, que trazia nas letras a consciência
que eu necessitava para seguir adiante, em meio a tudo
isso, contudo, emprego ainda era um sonho distante e a
entrega de currículos era diária.
Os garotos e garotas da crew que eu frequentava inicia-
ram um processo de resgate da minha autoestima no
universo do hip-hop e, cheios de novidades, me procu-
ravam para contá-las e tentavam me levar, novamente,
aos eventos.
Novamente, uma fase que durou pouco.
Passos pela vida 79

local, durante uma tarde bem quente do mês de outu-


Um zine diferente bro e sem um gravador, sentei nos bancos de madeira
e fui anotando tudo que ele falava. Como sempre gos-
tei de perguntar e saber coisas novas, a minha primeira
“entrevista” durou mais de uma hora e fiz muitas outras
perguntas além das básicas que havia anotado.
Ficamos amigos e ele me deu um convite permanente
para entrar no bar quando eu quisesse. Voltei a curtir
as músicas black por conta dessa entrevista. Levei dias
para escrever uma página de matéria e fiquei extrema-
Meu primeiro emprego foi conquistado em setembro de mente frustrada com as correções feitas pelo “editor”,
2003. Não havia carteira assinada, mas a promessa de mas feliz porque na edição seguinte teria meu nome
uma renda própria e o trabalho em um jornal, mesmo que assinado.
fosse apenas um zine, era um novo horizonte. Comecei Como era um zine, a circulação entre roqueiros, rappers
no dia seguinte e seria vendedora de publicidade. Como e outros adeptos de vários estilos, era grande. Assim que
não havia uma sede para o Fãzine, eu deveria tomar uma chegou aos locais de distribuição gratuita, recebi alguns
condução até o centro da cidade, encontrar o “patrão” e telefonemas comentando o meu trabalho na área jorna-
sair para vender os espaços do jornal. lística. Como uma forma de encontro entre mim mesma, e
Descobri-me uma boa vendedora, porque os preços eram o que mais gosto de fazer, com a cultura hip-hop, passei a
exorbitantes e o impresso pouco conhecido. Muita sola fazer minhas primeiras reportagens sobre o tema.
de sapato foi gasta para fazer algumas poucas vendas, Na edição seguinte surgiu uma nova oportunidade. Uma
mas encarei seriamente, acordando super cedo todos matéria exclusiva sobre rap. Pesquisei, batalhei pela
os dias, mesmo indo dormir por volta de 1h da manhã – matéria e, novamente, assinei a pequena reportagem.
horário que a van me deixava em casa. Estava retornando ao meu mundinho de paz, amor, diver-
Por cada venda, eu tinha direito a 10% do valor do anúncio são e união quando o grupo de pessoas que ia comigo na
e, no primeiro mês, devo ter recebido uns R$ 100, o que van para a faculdade, cada um de um curso diferente,
na época, para mim, era bastante. Oportunidade. Ten- resolveu criar uma banda de forró.
tei encarar assim e partir para o segundo mês, quando o No auge do forró universitário no Brasil, descobri a
sócio do meu “patrão” abriu espaço para que eu fizesse chance de adquirir um pouco de ritmo e aprender a dan-
uma matéria sobre umas noites black que aconteciam çar, pelo menos o forró, que era bem menos compli-
em um pub da cidade. cado do que o break ou o street dance. Como sempre,
Animadíssima com a chance, abstraí a falta de expe- a rivalidade entre as tribos urbanas marcou também
riência e me encontrei com o dono do bar no próprio este período e me equilibrar entre universos musicais e

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80 Traficando conhecimento

ideológicos diferentes, era um desafio. A crew não acei-


tava me ver comentando sobre os forrós e reggaes novos
que havia conhecido e os forrozeiros se divertiam ao
tirar sarro da minha paixão pelo hip-hop.
Tentava, então, me dividir entre o forró, o hip-hop, o
trabalho e os estudos. Nesta época agitada, mais um
acontecimento me levou de volta a cultura marginal.
Um ponto importante é que, na faculdade, assim como
no colégio, eu era obrigada a conviver com o livre uso de
drogas na porta, dentro, fora, nas esquinas e a recusar
convites a todo o momento. Nunca tive a curiosidade
de saber como era fumar maconha, cheirar pó e, tam-
pouco, pedra. Mas via, num ambiente em que eu jurava
ser acadêmico, muita gente – cujo pai ralava para pagar
a faculdade – queimando o dinheiro investido nas aulas
em drogas para fugir da realidade.
É claro que, no meu bairro, o contato com as drogas arre-
banhava quase todos os jovens da minha idade, mas nem
isso me fez desistir da caminhada. Não quis saber. Disse
não e prossegui à minha maneira. Não achei tentador
trocar todos os sonhos por uma pequena viagem, que
segundo o que eu lia, duraria, no máximo, um minuto.
Conheci um rap, originalmente, poços-caldense e mais,
feito na Zona Sul, do ladinho da minha casa.
Surgiu, novamente, uma pequena reportagem no Fãzine.
Passos pela vida 83

A descrição é da casa dele, periferia de Poços de Cal-


Rap de dentro das, Zona Sul da cidade. Há quatro anos ele mora num
sobrado e tem seu quarto num cômodo acoplado. O dor-
mitório tem personalidade própria, mesmo sem qual-
quer luxo, é aconchegante e acolhedor.
Para fazer a divulgação, ele conseguiu criar uma “bola-
cha adesiva” com a própria foto estampada. Com o
disco caracterizado, encartaram de forma caseira e
distribuíram entre os amigos da região. Diariamente era
possível ver G no poliesportivo, distribuindo o CD. Ime-
Contradizendo sua história de vida, G do Gueto, o MC da diatamente, o micro-system da crew deixou de tocar as
região afirma: “Eu tinha aquela visão, assim, que fazer batidas próprias para dançar break e deu lugar às com-
rap em Minas não tem jeito, aqui não tem morte. Até posições do amigo.
então eu pensava que rap era só falar de morte, tiro, Em pouco tempo, as letras sobre os problemas locais e
treta, e aqui não dá. É uma cidade pacífica”, diz. com críticas ao cotidiano estavam na boca dos morado-
“Doa a quem doer”, é desta maneira que ele se lançou res dos bairros da região sul da cidade. A grande sacada
na cidade e se tornou conhecido pela faixa 8 do CD. Inti- foi quando G conseguiu espaço para vender em um tor-
tulada “Fatos Reais”, contando a história de um garoto, neio de golf, no Golf Club da cidade, onde ele fazia bico
que muito novo, trabalhou em lavouras e na sequência nos fins de semana como Ked – garoto que recolhe as
levou um tiro e perdeu a mãe, assassinada pelo padrasto. bolinhas. “O cara abriu espaço para eu vender lá, levei
os CDs e vendi a dez reais para os golfistas né, porque os
Com o álbum gravado dentro de casa, através de pro- caras têm dinheiro”, conta com entusiasmo. Com essas
gramas de computador e uma mesa de som, G fez as vendas, G conseguiu levar o rap até a alta sociedade e
próprias bases, contou com a participação de outros introduzir, quem não conhecia, no universo periférico do
rappers como Suburbano, Lu Afri e Leopac, que sus- hip-hop. Em mais ou menos três ou quatro meses, G con-
tenta esse apelido pela semelhança física com o rapper seguiu vender uma média de quinhentos CDs em Poços,
norte-americano. o que o deixa, até hoje, muito feliz e orgulhoso. Impossí-
Sábado, oito da noite, a rua está totalmente escura e vel não me sensibilizar com a história e as letras feitas
pouco habitada. Há casas somente de um lado. O outro por ele. O lançamento do álbum marcava um novo tempo
é ocupado por extenso matagal que prejudica a visão. no hip-hop da região sul da cidade.
A iluminação é precária e é necessário utilizar os faróis Os eventos continuavam a acontecer e, agora, além da
altos do carro para poder enxergar. É impossível sair do dança, que era o forte da região, contavam também
carro sem atolar o pé na lama da chuva que caiu à tarde. com shows de rap e as letras de G eram a sensação,
seguidos pelo UClanos, que sempre estavam dispostos
a cantar em nossos bailes.
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84 Traficando conhecimento Passos pela vida 85

Como eu continuava no Fãzine, soltei uma matéria sobre


o lançamento do CD do G, e a repercussão continuava.
Enciumados pela minha “atenção jornalística” ao rap, o
grupo de forró da minha van me pediu uma matéria, e eu
não tinha desculpas. Novamente, uma matéria sobre os
sons do meu cotidiano.
Ganhei uma coluna fixa no zine e fiquei relativamente
conhecida neste meio, no entanto, a grana que rolava
das propagandas ficou cada vez mais escassa e vender
se tornava ainda mais difícil.
Passos pela vida 87

O dicionário é superior ao mercado em muitos aspectos.


Jornalismo no zine Em primeiro lugar, porque no dicionário o preço das pala-
vras não cresce a cada dia – como ocorre com os legumes
no mercado – posto que todas são de graça. Ademais, os
dicionários podem ser guardados na estante da sala, o
que seria impossível fazer com um mercado – não por
sua forma, muitas vezes retangular como os dicionários,
mas devido ao tamanho (mais provável seria guardar a
estante da sala no mercado, mas isso seria inútil tendo
em vista que nosso objetivo não é dar cabo da estante e
sim, escrever um texto). Há uma diferença básica entre
os mercados e os dicionários: se nos primeiros os pro-
Além das pequenas matérias, ganhei um espaço para
dutos entram novos e saem assim que ficam velhos, no
publicar alguns artigos. Era bom poder expressar algumas
segundo não se encontra um só artigo novo, pois, ser
ideas e saber que existia um público, embora pequeno,
velho, é condição para estarem ali.
específico para ler minhas primeiras linhas.
Apesar das considerações anteriores, é impossível pro-
Tenho a clara consciência de que evoluí muito e, obvia- var logicamente a superioridade de um mercado sobre
mente, devo continuar em processo constante de apri- um dicionário ou vice-versa. Prova disso é que podemos
moramento, mas, na época, era o que eu conseguia. tanto encontrar dicionários em um bom mercado, como
Um dos primeiros que escrevi foi sobre o dicionário. mercado em um bom dicionário.

Assim sendo, deixemos de lado essas comparações inú-


O poder do dicionário teis e voltemos ao tema, o poder de um dicionário.
Poucas pessoas o sabem, muitas o desconhecem, somente Livre de qualquer comparação, ele é único, rico, culto,
algumas sabem manuseá-lo com eficácia. e faz questão de transmitir isso para quem quer que
Estou falando dele sim. Quem? Você também não o esteja interessado.
conhece? Sempre interessada em desbravar o jornalismo, ainda
Pois é, ele está bem ali. Poderoso e capaz de salvar mui- bem cru para mim naquela época, saiu isso:
tas vidas, trocando apenas algumas letras.
A pauta de hoje é a ECONOMIA
Ele é o dicionário. Em suas mais variadas formas e
cores, só recorrem a ele os inteligentes, que reconhe- As coisas mudaram de nome, segundo Mário Prata, aba-
cem sua ignorância. jur passou a ser luminária, e não vai demorar muito até
que jornalista seja jornaleiro.
Se vamos ao mercado quando precisamos de ingredien-
tes para uma sopa, para nós, jornalistas, quando vamos Dá mais lucro e credibilidade.
escrever um texto, vamos ao dicionário.

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88 Traficando conhecimento Passos pela vida 89

As redações estão se tornando multimídia, e os jornais


todos estão padronizados, presos a uma fórmula cha-
mada lead, em que todos os repórteres respondem as
mesmas perguntinhas básicas, e, nas bancas, encon-
tram-se todos os dias, as mesmas notícias, contadas
do mesmo jeito, sem novidades. O furo jornalístico foi
substituído pela igualação das redações.

A pauta do dia é economia, economia nos jornais. Cor-


tam-se os gastos, as notícias, e os profissionais. Ao
final sobram só as publicidades, às quais todos se ren-
deram para sobreviver. Daqui a pouco o repórter será
desnecessário, o computador fará todo o serviço dele.
As matérias serão apenas formulários a serem preen-
chidos com palavras claras que responderão com obje-
tividade a apenas cinco questões: quem, onde, quando,
como e por quê?

O diploma será descartado em breve, e com uma experi-


ência de cinco anos vendendo jornal, podermos fazê-lo,
inclusive.

Ou o jornalista passará a vender o jornal, ou morrerá à


míngua, soterrado pelas publicidades e pela economia.

Pela falta de criatividade no mundo jornalístico, saiu este.

Cadê a ideia que estava aqui???


— Cadê a ideia que estava aqui? – alguém berra, lá den-
tro na redação.

Acontece, todos os dias, toda hora, em todos os lugares.


Roubo?

Chacrinha já dizia que, na TV, nada se cria, tudo se copia.


Eu ousaria afirmar que na vida é assim, tudo é copiado.

As ideias são roubadas em toda parte. No jornalismo,


então, é de praxe. Além do roubo há o plágio de ideias,
matérias, programas, enfim. Uma rivalidade que não
acaba nunca.
92 Traficando conhecimento Passos pela vida 93

Andam dizendo por aí que é antiético roubar ideias e pla- leitor não pode perder tempo, só a informação, prazer da
giar redações. Um exemplo disso é o livro de Luiz Maklouf, leitura e do conhecimento.
“Cobras Criadas”, que relata casos escabrosos e ditos
Daqui a pouco, o jornalista não mais precisará se deslocar
como “antiéticos” de nosso país. Só há um defeito no livro,
das redações para as ruas em busca de notícias quentes,
é que o Maklouf esqueceu de citar ali o caso da “operação
de furos. Os jornais já se aliaram. Daqui a pouco, vão ape-
mela PT”, no qual ele esteve envolvido e foi abafado. Neste
nas comprar de um publicitário bem criativo, um texto
episódio, que renderia uma ótima história nas páginas de
que seja curto e objetivo. Neste texto existirão lacunas a
“Cobras Criadas”, Maklouf plagiou uma matéria inteira
serem preenchidas, e o repórter terá, então, que passar o
de um jornal de pequeno porte em Campinas, escrita por
tempo apurando no texto de três parágrafos dos releases
duas jornalistas recém-formadas, na época. As jornalis-
as seguintes informações:
tas abstiveram-se do caso, mas o jornal em que elas tra-
balhavam moveu uma ação, que deu em nada. Quem?

Portanto, a ética mesmo, só existe na teoria e na relativi- Onde?


dade individual, e enquanto isso não for mudado...
Quando?
- Êpa, cadê a minha ideia na linha acima???
Como?
E, por fim, algo sobre o vazio da vida, do jornalismo. O porquê ele não terá de responder, senão toma
muito tempo e não fica pronto para a gráfica antes do
(x . y) + z = vazio
fechamento.
Vazio. Sim, vazio jornalístico. É o que encontramos nos
Antigamente, estas cinco perguntas básicas eram
jornais, um total vazio.
nomeadas de lead, ou “cabeça da matéria”. Hoje é,
A investigação jornalística, o dito jornalismo investiga- simplesmente, coisa de jornalista que não tem cabeça e
tivo, sumiu de vez. Nas redações a única coisa que se que banalizou a profissão.
encontra são jornalistas indiferentes que apenas trans-
crevem releases prontos.

O gosto pela profissão vai se esvaindo ao encarar as fór-


mulas prontas, que são chamadas de objetivas.

Cujo objetivo é desinformar. O jornal apenas desinforma,


ou traz nas suas páginas assuntos que já conhecemos e
que não merecem destaque algum.

A novidade, o inusitado, ficou por conta dos veículos mais


rápidos, como a TV ou o rádio. O texto aprofundado é lite-
ratura, quando muito, revista muito centrada. No jornal
não, as coisas devem ser rápidas, práticas, factuais. O
Passos pela vida 95

A cena foi mudando e a montagem de grupos grandes


Tempo de mudanças de dança de rua se fortaleceu. O fim da época da crew
aconteceu poucos meses depois, quando o poliespor-
tivo foi fechado para uma reforma da prefeitura. Os
treinos, bem menos frequentes, aconteciam no centro
comunitário ou em um gramado existente na frente do
poliesportivo, mas era possível praticar apenas os sal-
tos e movimentos importados da capoeira.
A falta de um local fixo de encontro me afastou ainda
mais da cultura, que passou, de forma inédita, a con-
Como o tempo passava e nada parecia tão estável, a quistar a área central da cidade, quando grupos de
condição para que eu continuasse escrevendo no zine dança usavam uma fonte, em frente a um prédio tom-
era vender propagandas e o dinheiro que gastava com bado pelo patrimônio histórico, como local de treinos.
a condução era maior do que o lucro com as vendas. Alguns jovens da antiga crew migraram para lá, unindo o
Resultado: estava pagando para trabalhar. patrimônio cultural ao edificado da cidade e inovando a
história do hip-hop e das periferias locais.
Conversei com minha amiga de classe e parceira de pro-
fissão, Anita, de quem me tornei amiga logo no primeiro
dia de aula, e, depois de uma série de ponderações, resolvi
desistir do zine e continuar buscando um novo emprego.
Era final de 2003 e aquele ano tinha sido marcado por
descobertas. Continuava na linha entre o hip-hop, o forró
e o reggae. O rap me seduzia pelas letras e vinha acom-
panhado dos demais elementos que formavam a minha
cultura local. O forró me embalava pela dança, que eu
podia aprender e o reggae pelo sentimento de paz que
surgia nas músicas.
Entre as várias baladas que frequentava, percebi que
cada vez menos pessoas se interessavam pela organiza-
ção dos Hip-Hop Sul e mais jovens deixavam de frequen-
tar as reuniões diárias, porque, assim como eu, esta-
vam trabalhando ou em busca de um trabalho. Outros
já haviam entrado para a vida do crime e não apareciam
mais nos eventos ou no poliesportivo.

94
Passos pela vida 97

todas as crews de dança dos bairros migraram. Tanto


Patrimônio cultural os garotos como as garotas que praticam a dança nas
escolas, nos centros comunitários e nas ruas – tal como

e histórico no início da cultura hip-hop em Nova Iorque – resolveram


integrar o grupo, que trazia na ideologia, e também na
prática, a essência da cultura.
Com ensaios em uma praça de Poços de Caldas, um
ponto turístico, ao lado de uma fonte de água, o grupo
treina passos, se desenvolve e forma, assim, os dançari-
nos. A cada dia a crew ganha novos adeptos, que chegam
A união entre o local, tombado pelo patrimônio histórico de saias até o local do ensaio. Tempos depois, o grupo
e cultural da cidade, e a cultura hip-hop, marginal e pro- mudaria os ensaios para outro local, também público,
priedade do gueto, feita do povo e pelo povo, trouxe uma e passaria a competir dentro e fora da cidade, além de
nova marca na história local. promover anualmente o Poços Fest Dance, sempre com
São oito horas da noite de sábado. Tanto faz o sábado, o foco no hip-hop.
desde que não esteja chovendo. Lá estão deles, mistu- Os exemplos da cultura nos eventos despertam também
rados, compondo um espetáculo de dança que faz todas o interesse em outros jovens, que criaram uma nova
as pessoas que passam por ali pararem. Turistas ficam crew e passaram a treinar no antigo ponto do The Power
maravilhados com a cena observada. A mistura entre Dance, na fonte, conhecida como fonte do leãozinho.
um local histórico e os movimentos da dança nascida
Trazem no nome o que o grupo quer passar a quem os
nas ruas, ao som da música composta com as mazelas
assiste: Origens. E, por meio da comunicação, da infor-
do cotidiano, desperta a atenção de quem passa pela
mação e dos textos, tentam descobrir os primórdios da
cidade para uma nova visão.
dança e da cultura de rua. Minha participação se tornou
De São Paulo, a artista plástica, Sueli Magalhães Piva, esporádica e quando tinha algum evento, ou quando,
comenta com o marido que precisou viajar quase 300 qui- durante as noites de treino da crew, eu passava pelo
lômetros para reparar na arte urbana em contraste com local, parava para apreciar e voltar, mesmo que por
os locais históricos. “Eles estão escrevendo a própria pouco tempo, literalmente, às origens.
história por meio de uma que já existe e isso é magnífico.
Contudo, embora entre todas estas transições, voltei a
Vai muito além de ser apenas uma dança, uma música ou
escrever algumas coisas. Abaixo um dos textos escritos
um movimento. É parte da identidade escondida de uma
nessa época, como a verbalização de uma saudade:
cidade”, afirma enquanto observa e tira fotos.
Resgatando as origens da dança desde o início. Assim
teve início o grupo The Power Dance, para onde quase

96
100 Traficando conhecimento Passos pela vida 101

Uma brasileira Mais dia. Menos dia. A mesma coisa sempre. A falta de
mistura era motivo de briga. O casal que se amava, pas-
Lavando roupa, limpando a casa, dando banho no filho,
sava a se insultar. A barriga vazia trazia a desesperança
esquentando a janta, pensando no trabalho do próximo
e a fraqueza, impedia que a caneta se movesse sob forma
dia, aguardando o amanhã...
de letras e novas composições de rap.
“Será que algum dia será diferente?”
Como milhares de outros casais, esse era só mais um,
Na cabeça, algo além do lenço que prende o cabelo que, durante a brava guerra da sobrevivência, tinha que
chama atenção. Talvez seja o sonho. A esperança. Ou a optar por continuar ou por sonhar.
nova rima que está tentando compor para gravar mais
Tão iguais e tão diferentes, cada um resolveu seguir seu
uma música de rap.
caminho. De comum eles continuaram compartilhando
Assim é Maria Lúcia, uma brasileira, mais uma, do tipo somente a cama.
mais comum que existe. Morena, bonita e de cabelo
Maria Lúcia quis continuar sonhando e, de tanto sonhar,
crespo. Pobre.
se esqueceu de trabalhar, de buscar alguma forma de se
Foi criada pela avó na periferia de uma cidade do inte- alimentar e deixou o filho para o marido cuidar.
rior de Minas Gerais. Uma criança comum, brincava na
Já o marido, que não sabia como era o preconceito do
rua e cantava na igreja, onde todos diziam que tinha
racismo, mas sentia o da pobreza, desistiu de sonhar
uma voz linda.
para poder continuar vivendo.
Ficou mocinha e casou-se por amor. Apaixonou-se por
Ambos morreram. Não que eles tenham sido sepultados
um homem branco, pobre, humilde e cantor de rap.
ou algo parecido. É que um já não sonha mais para con-
Em comum? Eles tinham um sonho. Cantar rap e levar tinuar vivo e outro de tanto sonhar se esqueceu de viver.
uma mensagem positiva aos jovens do gueto. “Eles pre- E assim eles prosseguem. Mais um casal, com filho para
cisam de palavras de incentivo para seguir suas vidas criar, e uma vida que passa distante do verbo em ação.
correndo pelo certo”, diziam.
Contudo, apenas escrevi. Já não encontrava mais espaço
Mas correr pelo certo nem sempre era fácil. Assim sen- para divulgar os textos nos eventos, embora o desejo
tia-se o casal, com um filho de três anos para criar. de gritar para o mundo minhas palavras continuasse
Acordar às 4h da manhã e, na hora de ir para cama, sentir cada dia maior.
que o dia não passou é coisa de gente pobre, do gueto,
que se sente um nada quando chega o final do mês, nada
para comer. Palavras de incentivo alimentavam, dentro
da pequena casa nos fundos de um quintal, cômodos
pequenos, apertados, aconchegantes, como só as casas
da periferia têm.
Passos pela vida 103

Se eu não tinha um emprego formal, o jeito era me virar


Monitorando a como podia e, para bancar meus pequenos hobbies, o
esquema era esse.

infância e o futuro Das culturas musicais e urbanas eu estava distante. Até


mesmo do forró da banda da minha van. Com quase 19
anos, queria mesmo era um emprego fixo. Ainda não era
hora e fui chamada para trabalhar em um buffet infantil,
também como monitora. Não tinha carteira assinada,
mas era fixo. Quando tinha festas, eu era chamada.
Ganhava ao final de cada mês. A quantia era inferior a um
Sentada no ônibus, lendo um texto de Ferréz na revista salário mínimo, mas a diversão no trabalho era garantida.
“Caros Amigos”, tento encher a cabeça de novas ideias e
A curiosidade é que, na entrevista – e até para esta vaga
novos conhecimentos e, assim, conseguir um emprego.
havia disputa —, uma das perguntas foi decisiva para eu
O sonho de ter a carteira assinada ainda continua sendo
garantir o emprego. “Cite seus três livros favoritos”. Tive
apenas um sonho.
de pensar bastante, porque foram tantos. Citei “Feliz Ano
Para continuar comprando livros, CDs, estudando e Velho”, “Quarto de Despejo” e “Chatô – O Rei do Brasil”,
indo a algumas festas nos fins de semana não desisto inspirada pela faculdade. Não pude deixar de citar que
da busca. Nas poesias e contos que leio diariamente, diariamente eu lia revistas, outros livros e muita litera-
encontro um pouco de alimento para a alma, faminta de tura que começava a ser produzida na periferia. Já havia
saber e de vida de verdade. sido apresentada à Ferréz muitos anos atrás e não perdia
Sou chamada para um freela. Infelizmente, em uma área a paixão, tampouco deixava de frequentar o blog dele.
bem diferente da que eu estava estudando. Devo ser Mais tarde, fui informada de que, por conta disso, garanti
monitora infantil num hotel da cidade. A parte boa: estar o emprego que durou oito meses. Com a redução da pro-
em contato com as crianças, coisa que eu adoro, e poder cura por festas, os freelas ficaram mais espaçados e já
levá-las ao cinema e, assim, assistir o que há de novo nas não compensava mais ficar à disposição por tanto tempo
telas da cidade. Conversar com crianças de vários esta- sem saber se iria ou não trabalhar no dia seguinte. Saí
dos também significava conhecer mais sobre as diferen- fora e caí dentro de outras tentativas de sustento.
tes regiões, o que não deixava de ser aprendizado.
Quando não estava no hotel, fazia outros trabalhos
temporários e, desta vez, era para entregar panfletos
na principal rua da cidade. Por diversas vezes fui ques-
tionada por parentes e pessoas da faculdade se eu não
me sentia envergonhada de fazer isso. De jeito nenhum.

102
Passos pela vida 105

Chamou-me novamente para trabalhar com ele. Não


Do desemprego podia pagar nada. Nem tinha o esquema das propagan-
das, mas existia a chance de mexer diretamente com

ao mais perfeito jornalismo cultural, algo que eu gostava demais.


Jogo rápido. Aceitei. Esse era, também, o nome da mídia

possível distribuída em vários estabelecimentos da cidade, para


onde fiz várias matérias sobre exposições, mostras de
arte, lançamentos de livros e dicas culturais. Eram tex-
tos pequenos, mas que me permitiam a flexibilidade que
precisaria, mais adiante, ao mexer com jornalismo.
Entre reuniões, com muita comida, refrigerantes e bin- Foi durante esse período, de efervescência cultural
gos, topei vender tuppeware – aqueles potes que na por todos os lados, que comecei a ler Clarice Lispector,
década de 1980 faziam sucesso entre as donas de casa, Paulo Leminski e Charles Bukowski. Mesmo na busca por
mas que em 2005 eram impossíveis de comercializar. um emprego e diante de todas as dificuldades, a leitura
Competir com os plásticos úteis vendidos nas lojas de e a poesia continuaram fazendo parte do meu dia a dia.
R$ 1,99 parecia injusto e elitista, principalmente em um
bairro onde a maior ocupação das moradoras era como Estimulada por estas culturas, por frases sábias, pela
auxiliares de limpeza ou domésticas. descoberta de novos horizontes, descobri em mim mesma
a capacidade de produzir um texto mais livre, mais solto,
Sem ter sucesso com os potes mais caros do Brasil, mais com a minha cara, dentro daquilo que eu acredi-
fui chamada por uma vizinha para vender filtros d’água tava. Passei por assuntos variados e me apaixonei ainda
supermodernos, uma empresa japonesa se instalava no mais pelo jornalismo cultural e foi nessa fase, graças
Brasil e precisava de vendedores. Como sempre, os tra- à minha paixão por livros, que conquistei meu primeiro
balhadores entravam com o dinheiro da condução, dos emprego com carteira assinada.
telefonemas, do lanche, a cara e a coragem para tentar
vender algo fora da realidade do mercado. Tanto pelo
preço, quanto pela cultura dos consumidores.
Sem dinheiro e já desanimada, prestes a terminar meu
curso de inglês – pago pela minha irmã que estava em
uma situação boa, na época – e seguindo com a facul-
dade, já não sabia mais o que fazer, quando o cara que
trabalhava como meu “chefe” no Fãzine abandonou o
zine e resolveu montar uma toalha de mesa cultural.
Como aquelas do MC Donald´s, mas com dicas e agenda
cultural da cidade.

104
Passos pela vida 107

momentos mais interessantes eram as chegadas dos


Entre livros livros. Abrir a caixa dos lançamentos era como abrir um
presente.
Atender os clientes também estava entre o que eu mais
gostava de fazer. Sugerir leituras, presentes e trocar
informações sobre o universo literário se tornaram um
hobby e não apenas um trabalho com carteira assinada.
Logo na primeira semana, satisfiz minha curiosidade
sobre o nome da livraria — “Alfarrábios” — através dos
livros mesmo. O nome veio inspirado no filósofo Al-Farabi,
Imersa nas letras do livro que estava relendo — “Feliz que viveu em Bagdá no século IX e vivia absorvido no
Ano Velho” —, no ônibus, tentava pensar no que dizer estudo, além de trabalhar com os livros.
ou justificar meu interesse em trabalhar em uma livra-
O convite desse trabalho não poderia ter vindo em
ria. Encontrei a resposta na própria cena. Reconheci-
melhor hora e o contato com a literatura, de forma tão
me como uma leitora compulsiva e, naquele inverno de
íntima, fez surgir na minha mente prateleiras de ideias
2005, de férias da faculdade, fui admitida na Livraria
em volumes, feito a organização dos livros na loja.
Alfarrábios, de propriedade de uma amiga que sempre
ia comigo aos shows de MPB que aconteciam na cidade. Empolgada com os inúmeros livros que poderia ler e com
as amizades que poderia fazer no trabalho, fui pega de
Juntas, tínhamos certeza que trabalhar seria diversão e
surpresa, em um sábado de manhã, antes mesmo de ir
não obrigação. Eu poderia começar no outro dia. Deve-
trabalhar, com um telefonema me avisando que a Adeine
ria abrir, limpar e organizar a livraria. Quando não esti-
— patroa — tinha sofrido um acidente de carro e estava
vesse atendendo os clientes poderia ler alguns livros. Se
hospitalizada. Mesmo assim fui para a livraria, afinal, ela
fossem livros repetidos poderia levar para casa e ler no
não poderia ficar fechada no dia de maior movimento.
ônibus e antes de dormir. Logo na primeira semana li um
livro por dia e estava amando estar ali. Receosa por ser a primeira vez que eu iria fazer tudo
sozinha no local, fui acudida pelo irmã da minha patroa,
Em estilo europeu, com apenas uma portinha e um
que, logo cedo, me levou troco para o caixa e ficou me
espaço aconchegante, a livraria atraía diferentes pes-
fazendo companhia, ansiosa para receber notícias sobre
soas e muitos turistas que se hospedavam em um hotel
o estado da irmã.
bem próximo.
Por volta de meio-dia, quando a loja estava cheia, fica-
Demorei três anos para conseguir este emprego, mas,
mos sabendo que o estado era grave. Ela havia que-
como disse um amigo da época, “se eu tivesse que ima-
brado três vértebras e deveria passar por uma cirurgia
ginar um emprego perfeito para você seria exatamente
na manhã do dia seguinte. Até lá, não deveria se mexer
esse”. Perfeito e que me deixava imensamente feliz. Os
para não agravar o quadro.

106
108 Traficando conhecimento Passos pela vida 109

Desde esse dia, passei a tocar a livraria “sozinha”, ape-


nas com a ajuda do sobrinho da minha patroa, que fazia
serviço de office boy e me ajudava em várias coisas, além
de fazer companhia.
Uma semana depois, chegou a notícia de que o quadro de
saúde dela era bem mais grave do que parecia e que ela
deveria passar por outras cirurgias para operar as vér-
tebras, e ficar afastada por tempo indeterminado. Foi,
também, neste período, que o pai dela passou a ficar
mais tempo na loja, e, mesmo doente, me ajudava e tra-
balhávamos em um ambiente muito bom, sem falar que
era a chance que tinha de aprender muito.
Oportunidade. Assim eu encarava o meu emprego e, por
incrível que pareça, o hip-hop voltou à minha vida. Muito
por meio dos livros, de literatura marginal, que não para-
vam de chegar contando histórias de várias periferias de
toda parte do país.
A loja ao lado da livraria, que trabalhava com pijamas,
contratou uma das garotas que faziam parte da crew da
zona sul, assim que eu conheci o hip-hop. Passávamos o
tempo vago na porta da loja lembrando daquele tempo e
conversando sobre a cultura. Como eu comprava livros
com descontos, passei a oferecer a ela grande parte da
literatura que eu li na época, como: “Cabeça de Porco”,
“Literatura Marginal”, “Capão Pecado”, “Memórias de
um sobrevivente”, “O povo Brasileiro”, “O Invasor”,
entre tantos outros.
Com muita ânsia de conhecimento, nos primeiros seis
meses de trabalho li quase 60 livros. A preferência era
pelos que traziam alguma alusão à periferia ou à litera-
tura marginal, embora eu lesse de tudo e sobre tudo, o
que facilitava na hora de fazer uma sugestão ou venda.
Voltei a escrever e, quando cansava os olhos da leitura,
110 Traficando conhecimento Passos pela vida 111

escrevia alguns textos no computador da livraria. O meu tração total, sempre recheados com muitas músicas,
remorso foi não ter salvo em algum outro lugar e ter per- que eram de vários estilos.
dido todos em uma pane do computador.
Foi, durante a faculdade, que aprendemos a confec-
Lembro que eram textos sobre o cotidiano, sempre mes- cionar o jornal laboratório – Entrelinhas – e minha pri-
clando o jornalismo e a literatura marginal, tentando meira matéria foi sobre grupos musicais independentes.
dar estilo à minha maneira de escrever. Como eu estava Claro que, no meio, apareceu os grupos de rap da minha
quase terminando meu curso de inglês e, para chegar região. Época em que o UClanos se fortalecia e progra-
até o fim da faculdade com ele concluído, mudei de horá- mava a gravação de novas músicas.
rio passando a frequentar as aulas na hora do almoço.
A volta para Poços de Caldas acontecia às 23h, quando
Acho que foi a época mais tumultuada, em questão saíamos de São João. A van me deixava na porta de casa
de tempo, que já vivi. Acordava às 7h, tomava banho, por volta de 00h50. Neste horário tomava outro banho e,
pegava o ônibus — torcendo para achar um banco vazio por muitas vezes, fiquei estudando ou fazendo trabalhos
e me sentar para ler durante todo o trajeto, ou mesmo, da faculdade. Dormir era considerado um período muito
anotar as ideias, que não paravam de surgir — e chegava raro, contudo, o desejo de aprender, de viver, de me entre-
na livraria pouco antes das 9h. gar à época e ao que eu poderia fazer eram mais fortes.
Fazia a limpeza matinal diária, cuidava da parte dos Sem tempo para organizar os eventos, buscava, em
livros vendidos, comprados e, pouco antes do almoço, alguns domingos, eventos espalhados em partes dife-
me sentava para ler um pouco, alternando entre um rentes da cidade e ia curtir um pouco do hip-hop, afi-
cliente e outro. Devagar, algumas amizades foram sur- nal, minha paixão tinha voltado com tudo e não poderia
gindo e sempre algumas pessoas passavam pela manhã mais abrir mão de me encontrar com a minha verdadeira
na loja me deixando cafés, pães de queijo e algumas essência: a periferia e a cultura produzida dentro dela,
palavras de bom dia. do povo para o povo.
Na hora do almoço, voltava para casa, almoçava e já saía
correndo novamente para a livraria. Às terças e quintas
meu pai levava uma marmita e me levava até a escola de
inglês, comia rapidamente, assistia a aula e voltava para
a livraria. O horário de saída era às 18h20 e eu ia direto
pegar a van que me levaria até São João da Boa Vista.
Muitas vezes lamentei ter de ir para a faculdade sem
banho. Comer antes de viajar já não era um problema
e tudo que gostaria era de poder tomar um banho e
mudar a roupa. Os momentos na van eram de descon-
Passos pela vida 113

“Eu me alimentava com comida azeda”, é o que conta


Despejo no quarto minha mãe, todas as vezes que vê alguém torcendo o
nariz para um prato de comida. “Eu catava balas pisadas
e sujas ao lado de uma fábrica perto de casa”, diz meu
pai com frequência.
Até então, nunca tinha dado tanto valor as palavras
deles. Foi quando vi o desafio de uma mulher que trans-
formou a fome em inspiração para escrever e levou ao
mundo um pouco da própria história. Fez do pão duro a
Um livro pequeno e com um título que, a primeira vista, poesia do dia a dia.
não me chamava a atenção. Mas bastou uma folheada
Se ela, que não tinha o que comer, conseguiu transfor-
para eu ter vontade de não vender a encomenda de uma
mar — de alguma forma — a própria realidade, embora
cliente. “Quarto de despejo”, de Carolina Maria de Jesus,
alguns parentes e amigos meus ainda vivessem com
o primeiro livro no Brasil escrito por uma favelada me
fome, eu também tinha o direito e, sobretudo, o dever
abriu, um tanto mais, a mente e a vontade de produzir
de fazer o conhecimento chegar até quem nunca tinha
algo sobre e para a periferia.
sabido de sua existência, de alguma maneira.
Ressaltando a fome, a miséria que oprime e o que é
Passei a pensar em infinitos projetos que poderia desen-
viver numa favela, a guerreira Carolina brindou o mundo
volver relacionados aos livros, como criar minibibliote-
todo com o livro — traduzido para mais de 13 idiomas
cas, promover saraus, doar livros, imprimir textos e dis-
— recheado com histórias reais de quem cozinhava
tribuir para as pessoas.
ossos para fazer sopa aos filhos e quase não dormia
para poder sobreviver e, mesmo assim, mantinha um Infelizmente, no ano que se seguiu, quase nada foi pos-
sonho: transformar as letras que anotava em um livro sível, exceto uma pequena arrecadação de livros usados
que denunciaria todo o sistema. que promovi na própria livraria. Entre os clientes que
se tornaram amigos. Fui pedindo alguns exemplares,
Lançado pela primeira vez em 1960 o livro fez sucesso
ganhei outros do meu patrão e ainda tive de guardá-los
na minha vida quarenta e cinco anos depois, quando
durante um bom tempo antes de poder pôr em prática
constatei que os problemas continuaram os mesmos ao
tudo que eu tinha vontade de fazer.
longo de todo o período.
Lendo o que ela escreveu, lembrei de todas as histó-
rias contadas por meus pais, que foram tão pobres
quanto, embora nunca tenham vivido na favela, pas-
saram fome e foram obrigados a se alimentar com res-
tos deixados no lixo.

112
Concepção

CON
CEP ÇÃO
Cap.03
Concepção
Concepção 117

Quando recebi meus textos me reconheci na mesma hora.


Feliz por já ter lido a maioria deles há vários anos, quando
conheci a revista “Caros Amigos” e, na sequência, os tex-
tos da literatura marginal, além de acompanhar também
a nova cena editorial, com livros originais, de autores
naturais do gueto, com textos singulares sobre o tema.
Em discussão, foi a primeira vez que tive a oportunidade
de falar abertamente – e com quem tem entendimento –
em sala de aula sobre minha paixão pelo hip-hop, os even-
tos organizados anteriormente e a paixão pela literatura.
Um momento singular. Assim pode ser definido o tempo
Com os olhos apertados e enxugando as lágrimas, a pro- da aula em que os textos de Ferréz foram lidos em voz
fessora Rosa Helena Carvalho Serrano, responsável pela alta por alguns alunos e debatidos de forma acadêmica.
disciplina de Antropologia para o curso de Jornalismo, A periferia foi explorada e questionada por quem ainda
se desculpa pelo choro em plena banca examinadora de a desconhecia. Tomei a palavra por várias vezes e con-
um trabalho de conclusão de curso. tei parte das minhas experiências com o hip-hop, com a
literatura e com o local onde vivo. Novamente, a cultura
A emoção é justificada pela surpresa de sequer imaginar entrava na minha vida de forma sutil. Eu mal sabia que
que, algum dia, um tema tratado naturalmente em sala desta maneira, seria “para sempre”.
de aula poderia se tornar um livro-reportagem ou, ainda,
um trabalho junto à periferia e um caldeirão de eferves- Os textos fariam parte da prova no fim do ano e, em uma
cência cultural dentro e fora do curso. manhã, que parecia como qualquer outra, eu fui para o
trabalho estudando dentro do ônibus. Peguei-me quase
E a pergunta dela na banca examinadora foi: “Após o tra- perdendo o ponto em que teria de descer com lágrimas
balho, o que ficou e mudou na vida de vocês?”. nos olhos ao ler um texto do escritor paulistano.
Para chegar nesta cena, vale voltar no tempo a um Ele falava sobre hip-hop de uma forma tão natural que eu
ano antes. Na sala de aula, durante uma abordagem senti muita falta do universo que fez parte da minha vida
comum, esta mesma professora entregou aos 32 alu- no início desta década. Chorei por saudade, por vontade
nos um chumaço de folhas contendo inúmeros textos de fazer parte novamente, movida por um desejo enorme
do escritor Ferréz. de voltar a realizar eventos e beneficiar creches e insti-
A sugestão do assunto em sala de aula surgiu de um tuições da região. Naquela noite eu decidi. Meu Traba-
outro aluno que trabalhava com jovens de periferias e foi lho de Conclusão de Curso (TCC) seria sobre hip-hop e
apresentado aos textos produzidos pelo escritor, mora- eu voltaria a integrar a cultura, independente do que eu
dor do Capão Redondo. precisasse fazer.

116
118 Traficando conhecimento Concepção 119
120 Traficando conhecimento Concepção 121

Fui embora feliz, mas nem por isso consegui me afas- nessa?” e foi exatamente assim que eu falei e vi os olhos
tar do meu cotidiano. A faculdade, de certa forma, “dis- dela brilhando. “Sim. Hip-hop rola demais como TCC, fala
tante” dos problemas periféricos, me deixava algumas de pessoas, é super social e jornalismo puro no relato
poucas horas por dia longe da minha quebrada, mas, do cotidiano.” Essa foi a resposta dada por ela. Poucas
todos os dias ao voltar para casa eu era obrigada a des- palavras que soaram como alívio após meses de discus-
pertar do mundo “universitário”, ao qual apenas 1% da são sobre qual tema poderíamos fazer para o TCC – tra-
população brasileira tem acesso, e enfiar o pé no barro balho que assombra todos os alunos de jornalismo e que
quase todas as noites, ao descer da van, passar pelos decidimos, desde o segundo ano, que faríamos juntas e,
moradores de rua que sempre buscam abrigo na mar- caso isso não desse certo, faríamos sozinhas.
quise de um comércio na porta da minha casa e ouvir os
Convicta. Assim eu estava. Certa de que abordar o
barulhos de tiro se confundirem com as letras dos livros
hip-hop no meio acadêmico de uma cidade do interior
que eu lia antes de pegar no sono para repor as energias
era novidade e falar dele na região seria inédito. Abra-
e enfrentar mais um dia lotado de afazeres e sonhos.
cei a causa e sozinha, ou com a Anita, eu decidi pelo
Para completar, mesmo cursando o nível “superior” de livro-reportagem que traria elementos como DJ, MC,
ensino, não deixava de pegar o ônibus cheio e enfrentar Break, Grafite e Conhecimento.
o massacre diário que todos os trabalhadores são obri-
gados a tolerar no transporte público e foi justamente no
“aperto do busão” que dias depois da aula com os textos
da literatura marginal me bateu o estalo: “Vou fazer um
livro-reportagem sobre o hip-hop.”
Com as lembranças da melhor fase da minha adolescên-
cia, de quando eu conheci a crew de break e todo o uni-
verso mágico do hip-hop é que eu cheguei a pensar no
que poderia fazer como projeto experimental. Naquela
manhã, dentro do ônibus, enquanto pensava na prova
que faria à noite, em que os textos de Ferréz seriam
objetos de interpretação antropológica, senti que minha
vida estava ali e que não poderia ser diferente.
Após a prova, comuniquei à Anita, pessoa fundamental
durante meus quatro anos de faculdade, de altos e bai-
xos, brigas, momentos de paz e muita troca de conheci-
mento. A melhor amiga que tive na vida. A pessoa com
quem melhor trabalhei até hoje. “Vou fazer um livro-
reportagem sobre hip-hop, decidi. Você vem comigo
Concepção 123

as faces, passando pelas dificuldades enfrentadas pelos


Caldeirão de ideias militantes da periferia, com o descaso existente em qual-
quer gueto, com a ligação entre pobreza e cultura margi-
nalizada e com o prazer que cantar as próprias mazelas
produz em quem compõe as letras de rap e faz com que
muitos dancem ao som deste ritmo diferente.
Ao mesmo tempo, senti minha perspectiva mudar e, dia-
riamente, me sentava com a Anita para falar sobre isso,
comentar sobre o tema, discutir que rumos poderíamos
dar ao trabalho e de que forma, na prática, aplicaríamos
Outubro de 2005: o final do terceiro ano de faculdade o universo que estávamos descobrindo.
e a mente fervilhando de ideias. Saímos em disparada Após o término das provas e aprovadas para o 4° ano da
no preparo inicial do livro-reportagem. Ainda com a faculdade, ficamos os meses de dezembro e janeiro dis-
mesma ânsia por conhecimento que sempre me acom- tantes – ela morava em Mogi Mirim, estado de São Paulo
panhou, durante toda a vida, fiz uma lista com a biblio- e, assim como eu, viajava diariamente para estudar – mas
grafia que poderia ser útil para a execução do trabalho prometemos estudar e pesquisar ainda mais para o TCC.
e saí à captura de toda e qualquer informação técnica a
respeito da cultura.
Decidi: faria do livro a melhor reportagem da minha vida.
Troquei as comédias românticas e muitos livros técnicos
pela literatura brasileira e por toda aquela, que poderia
ser utilizada como forma de conhecimento no processo
de entendimento da cultura brasileira.
Por trabalhar em uma livraria, aproveitei para encomen-
dar vários livros e, assim, poder comprá-los com des-
conto – já descontados em folha. Por meio das leituras,
passei a me identificar ainda mais com as manifesta-
ções culturais e sociais vinda da periferia e, diferente de
quando eu tinha 15 e 16 anos, compreendi melhor como
tudo isso funcionava no país, em todos os termos.
Em pouco mais de um mês, senti despertar o desejo de
reportar o hip-hop nacional e local em um livro, com todas

122
Concepção 125

também mata. Mata de desgosto e tristeza aqueles que


O despertar querem compreender o que assinam, que querem ver um
filme, mas não compreendem as legendas, que passam
pela banca de jornal e não entendem como o homem
pode gastar dinheiro em algo que é de papel e que se
acaba rapidamente, sendo bom apenas por um motivo:
aquece as noites de frio.
Eu não poderia alfabetizar a todos e me sentia extrema-
mente mal porque nem todos poderiam ler o livro que eu
escreveria. Se eu falaria com o povo, como eles enten-
Nem tudo foi fácil nesta trajetória. Descobri, diariamente, deriam? Mas jornalismo não é apenas palavra escrita e
como é difícil crescer na vida. Como é complicado fazer eu encontraria uma forma de transmitir isso de alguma
uma faculdade quando saímos de um local pobre. Como outra maneira, qualquer que fosse.
é duro ter de contar cada centavo para poder tirar uma De desgosto agi da única forma que consegui naquele
cópia, comer um lanche na hora do intervalo e ainda assi- momento e com a única arma que tinha: o hip-hop para
milar isso tudo e se sentir no céu por fazer parte de uma reportar.
sociedade “elitizada” que nem mesmo a minoria de onde
Com o relógio marcando 20h e o horário de verão ainda
eu vim tem acesso.
deixando uma claridade, mesmo quando já é noite, saio
Ser jornalista num país como o Brasil é uma guerra diária. da livraria e vou até o ponto do ônibus. Já estava tra-
Ser estudante de jornalismo, assalariado, ainda mais. Vir balhando até mais tarde por ser mês de dezembro, por
de uma periferia e sentir a juventude vibrar no peito pela conta das vendas de Natal. Observo um grupo formado
vontade de mudança sem nada a fazer é duro. numa roda no ponto do ônibus e paro para observar. Sur-
Eu precisava fazer algo na prática. Ainda não sabia como preendo-me ao ver que é uma crew de break se apresen-
poderia aproveitar os livros que arrecadei na livraria, mas tando, como parte das comemorações natalinas, patro-
tinha uma certeza: queria fazer com que tantas histórias cinadas pela prefeitura.
chegassem até o meu povo. Ao menos, até aqueles que Interpreto como um sinal positivo para o bom andamento
soubessem ler. E foi neste ponto também que um deses- do projeto e me convenço, cada dia mais, de que o hip-
pero imenso tomou conta de mim: o analfabetismo. hop realmente é meu caminho. Foi neste tempo que me
Sei que, para os que estão do lado de fora, muito se julga lancei novamente nas reuniões das crews e nos shows
sobre o hip-hop e a literatura da periferia quanto à falta de rap em busca de personagens e representantes da
de normas cultas, de pontuação, de palavras escritas da cultura na cidade e também no sul do Estado.
forma correta. Entretanto, se esquecem de que milha- Tirei do arquivo as antigas Rap Brasil e listei quem eu
res de seres humanos não sabem ler. O analfabetismo poderia entrevistar, que teria algo interessante para

124
126 Traficando conhecimento Concepção 127

acrescentar ao livro. Mais do que isso, com um novo Não conseguiu. O único jeito era trabalhar no assunto e
olhar — talvez o de uma jornalista em processo de for- definir a linha de pesquisa. Resolvemos que Anita faria
mação —, passei a notar mais do que um simples grupo a parte do relatório técnico, que é semelhante a uma
reunido para curtir uma música, uma dança ou uma arte. monografia, com a coleta de dados e referências teóri-
Percebi que cada uma daquelas pessoas trazia histórias cas e eu ficaria responsável pela parte das entrevistas e
únicas e que se fundiam em um ponto comum, que era escrita do texto que entraria no livro.
a marginalização dos que vivem nas periferias e guetos.
Já cansada das baladas universitárias, do forró e de
O desejo de conhecer a fundo o movimento foi ao encon- outros estilos, me envolvi novamente com as leituras e
tro da vontade de fazer algo para, na prática, promover procurei saber mais sobre cultura popular. Nesse embalo,
mudanças nos guetos onde estava acostumada a fre- passei a fichar tudo que encontrava referente ao tema, ou
quentar. Na semana seguinte, um novo evento de dança mesmo, à cultura popular e, por mais que já estivesse,
marcou meu calendário e o contato com novos grupos desde a adolescência, inserida no contexto da cultura,
– que surgiram durante o tempo em que estive distante descobri novos aspectos e vertentes que me fizeram
– foi sendo firmado. mudar um pouco o pensamento e despertar a vontade de
mudar a realidade em que vivia.
A volta às aulas foi marcada pela divisão dos grupos e
a definição oficial dos temas. Ao explanarmos o nosso
objeto de pesquisa e o tema que seria praticado no livro-
reportagem, fomos tolhidas pelo coordenador do curso,
que achou ser algo que não dizia respeito à proposta
acadêmica da universidade.
Como não? O tema era livre, desde que rendesse uma
boa reportagem e, muito antes do ano letivo começar, já
estávamos empenhadas nas pesquisas. Outro ponto: se
o assunto já havia sido debatido em sala de aula, como
poderia fugir da proposta acadêmica?
Como sempre, fomos teimosas e persistentes, batemos
o pé e não recuamos. O nosso tema seria o livro-reporta-
gem sobre hip-hop, seria o TCC e pronto.
Uma nova briga começou com a escolha do professor
orientador. O designado pelo orientador do curso não
gostou. Tentou, mais uma vez, nos fazer mudar de ideia
e trocar de tema. Sem sucesso. Tentou junto ao coor-
denador que outro orientador assumisse o trabalho.
Concepção 131

preconceito, que era grande, por parte de professores e


Traficando muitos alunos.
A intenção foi mudar a visão destas pessoas através de
informação um retrato da realidade. Entre as entrevistas do pro-
grama estavam um b.boy que fazia parte da crew que
eu conheci no poliesportivo perto de casa e que se dis-
pôs a usar o horário de almoço para me dar a entre-
vista na livraria onde eu trabalhava. Outro caso era de
uma espectadora do movimento e também universitá-
ria, estudante de jornalismo, que, depois de fazer uma
Beats dos anos 1970 e 1980 foram escolhidos a dedo matéria sobre um festival, se apaixonou pelo tema.
para serem a vinheta de abertura do programa de rádio
Na sequência, uma visão antropológica da professora
que teríamos de montar para a disciplina de radiojorna-
Rosa Helena para amarrar o documentário. De forma
lismo. Como sempre, fiz dupla com a Anita e já dá para
simples, ela contextualizou o que queríamos dizer sobre
ter certeza de qual foi o tema escolhido para o programa.
a expansão do movimento no Brasil. “A desigualdade
É claro que falaríamos de hip-hop. Não poderia ser algo social é tão danada. É tão intensa, que não temos como
muito longo. Um pequeno documentário para o rádio, ver movimentos como este diminuindo. Temos mais
com entrevistas, músicas e vinhetas. O programa, Tra- de 50 milhões de pessoas vivendo abaixo da linha da
ficando Informação, levou a toda a universidade um pobreza, é natural que este tipo de movimento cresça.”
pouco de informação sobre o que é o hip-hop. Pela pri-
Esse era o início da mudança de realidade que levava
meira vez, sentimos o impacto disso. Primeiro diante do
histórias reais e marginais para pessoas que sempre
técnico de som do laboratório de rádio, na sequência
taparam o ouvido para isso. Em breve seriam as palavras
pelos alunos da nossa turma e depois, por todos que
documentadas em livro.
ouviram o documentário.
Algumas entrevistas já estavam sendo feitas e foram apro-
veitadas para abrir o programa, além de levar para dentro
da universidade elementos e manifestações da rua. A van-
tagem do programa de rádio era falar a todos, sem exceção.
O nome surgiu da música do rapper MV Bill, que tam-
bém foi escolhida como vinheta de algumas partes do
documentário. A alusão era ao tráfico de informações da
rua para dentro da universidade, sempre combatendo o

130
Concepção 133

ouvia diariamente, tanto durante as pesquisas como no


Preparando o ônibus, na livraria e na faculdade.
As dificuldades do povo que vive nos guetos, nas que-
terreno bradas, se revelaram dentro do hip-hop, contida nas
letras dos raps, na forma de dançar dos b.boys e b.girls,
na forma de se vestirem e nas linhas de vários escrito-
res brasileiros.
Li Ferréz novamente. Li Marçal Aquino. Li Plínio Mar-
cos. Li Luiz Eduardo Soares, Darcy Ribeiro, João Ubaldo
Ribeiro e até mesmo Gay Talese.
Em uma noite fria, típica em Poços de Caldas, em um final
de domingo, decidi ir até a casa de um dos b.boys que Minha vontade de mudar meu espaço e minha quebrada
tinha conhecido há mais de seis anos, numa tarde qual- ficava a cada dia maior, entretanto, eu sabia que traba-
quer, e que mudou tanto a minha concepção de mundo. lhando, fazendo faculdade, inglês, pesquisando e escre-
vendo o livro ficaria difícil elaborar algo ainda aquele ano.
Sentados na calçada em frente à casa dele ainda não
terminada, Valdair me contou que havia se afastado um Contudo, a cada entrevista que fazia – como uma que
pouco do hip-hop por ter que trabalhar para ajudar no sus- rolou com um b.boy e rapper dentro da livraria –, quando
tento da casa, onde ele vivia com a avó que o criou e a tia, eu precisava de depoimento para um programa de rádio
a quem ele chamava de irmã, junto com dois sobrinhos. da faculdade, me sentia mais inserida no movimento e
com mais vontade de permanecer e fazer acontecer.
Contou-me ainda como começou no hip-hop e os sonhos
que tinha, de montar oficinas e competições para ensi- O prazer em gravar as entrevistas era algo que alimentava
nar os garotos tomados pelo ócio do local. Aquela con- minha alma e me dava uma certeza: eu seria jornalista,
versa se transformou em uma matéria para a disciplina sim! Decupar as fitas e montar o texto também me faziam
de Técnicas de Reportagem II na faculdade. Mais tarde pensar muito e me deixavam inspirada a conhecer, ainda
entrou para o livro. mais, sobre esta cultura popular tão fascinante.
Esta foi a primeira entrevista que surgiu, de forma Sem perceber, havia voltado a fazer parte da cultura e
espontânea, como um bate-papo e definiu a linguagem frequentar os eventos por toda parte. Onde havia qual-
usada em todo livro — o new jornalism ou, como também quer vestígio de hip-hop, eu estava lá. Cacei todos os con-
é chamado, jornalismo literário — com a descrição de tatos e visitei todos os colegas da época do poliesportivo.
cenas, pensamentos e personagens que, como Valdair,
Shows de rap, apresentações de break, eventos benefi-
foram explorados e explanados em meio ao colorido de
centes e qualquer música nova composta eu fazia tudo
muitas histórias e o preto e branco de outras tantas. A
que podia para estar presente. Descobri que, durante o
trajetória dele me inspirou e foi se somando as que eu
tempo em que fiquei afastada, muita gente nova surgiu e

132
134 Traficando conhecimento Concepção 135

estava fazendo a diferença. Descobri outro estilo de rap. E, quando eu menos esperava, o primeiro semestre termi-
Voltei a aprender e fazer parte. nou, o livro continuava sendo feito e a tão esperada via-
gem a São Paulo – berço do hip-hop no Brasil – aconteceu.
Ansiosa e um pouco receosa, entrei no teatro munici-
pal da cidade, que estava lotado de gente vinda de toda
circunscrição. Pessoas ocupavam os assentos, o chão
e se apoiavam na parede em volta. Todos muito estilo-
sos, aguardando o início das apresentações. Cacei um
lugarzinho bem na frente e me sentei. Do meu lado, um
garoto de São Paulo puxou conversa e me contou um
pouco sobre o grupo do qual ele fazia parte. Com um
nome diferente – Silêncio Crewativo – ele me contou
como funcionava. Por coincidência foi o primeiro grupo a
se apresentar e, embora não tenham sido os campeões,
apresentaram uma coreografia com uma proposta bas-
tante diferenciada.
Grupos de cidades como Caconde (SP), Campestre (MG),
Vargem Grande do Sul (SP) e Cabo Verde (MG) também
se apresentaram, além dos tradicionais de Poços de Cal-
das. Ao término das apresentações procurei fazer mais
contatos e algumas primeiras entrevistas.
Por incrível que pareça, tive a sensação incrível de me
sentir muito bem enquanto estava cercada pelas mani-
festações culturais da periferia. Como se uma espécie
de paz diferente me invadisse e me fizesse sonhar com
coisas melhores, me injetasse ânimo para lutar e me
fizesse ver que coisas boas ainda eram possíveis e que
pessoas boas ainda existiam.
Tive vontade de, novamente, entregar alguns textos
a conhecidos e pedir que eles lessem antes do evento
ou durante os intervalos, mas, como estava voltando
naquele momento, não poderia ir com tanta sede ao
pote. Talvez depois do livro pronto.
136 Traficando conhecimento Concepção 137
Concepção 139

Em razão do tempo em que passei afastada, muita coisa


Hip-hopeando nova havia sido lançada e todo dinheiro que economizei
durante meses não foi suficiente para que eu comprasse
todos CDs e DVDs novos que iriam me ajudar no trabalho,
além de atualizar a indumentária e passar a ser reconhe-
cida, esteticamente, como alguém do movimento.
Com as entrevistas, passamos a entender mais como
uma cultura pode mudar a vida de muitas pessoas,
transformando-as sempre em ex-viciados, ex-crimino-
sos ou dando um sentido ao ócio. O engraçado foi que
essa, como algumas outras entrevistas, surgiram de
forma inesperada, enquanto tentávamos entender mais
Debaixo de uma forte chuva, que caía fora de época – em sobre esse universo. Caminhando entre as lojas, fomos
julho – embarcamos para São Paulo onde passaríamos abordadas por conta da camiseta que vestíamos, em
uma semana para apurar um pouco mais sobre a che- que se lia “Jornalista por formação”.
gada do hip-hop ao Brasil e as diferenças dos grupos da
maior cidade do país para os grupos do sul de Minas. Neste mesmo rolé encontramos o telefone de um DJ na
porta de uma loja. Ele procurava um back vocal. Talvez
Mesmo sem conhecer a metrópole e deslumbradas com fosse um sinal, pensamos. Ligamos naquele mesmo dia
a vida que, em São Paulo, não para nos lançamos em e marcamos uma entrevista para o dia seguinte. Sem
uma aventura pelo Largo São Bento, galeria 24 de maio nunca ter andado de trem, embarcamos em vários até
e outros locais famosos por terem sido “oficialmente” o cruzar a cidade e chegar na Zona Oeste. Um bairro agra-
berço da cultura. dável se revelou aos nossos olhos, embora muito pobre
Entre a Casa do Hip-Hop em Diadema, alguns rolés por e com vários barracos. A semelhança com o local onde
quebradas como Jaraguá na Zona Oeste, uma favela no moro foi detectada logo no início. Cenas que só podem
Morumbi e os ataques do Primeiro Comando da Capi- ser vistas na periferia. Nenhuma praça inteira, nenhum
tal (PCC), que retornaram justamente naquela semana, centro cultural, nenhuma biblioteca e o posto de saúde
entrevistamos muitas pessoas, anônimas ou renoma- mais próximo há muitos quilômetros de distância.
das, dentro da cultura e aprendemos tudo que podería- Crianças empinando pipas, correndo pelas ruas e vie-
mos naquele curto espaço de tempo. las, sempre em meio à falta de saneamento básico e de
Personagens como um vendedor de loja na galeria 24 de infraestrutura para abrigar diversas famílias. O som que
maio que trocou as drogas pelo hip-hop e passou a com- ecoa também é o mesmo: letras de rap que relatam o
por e cantar rap gospel nos fez avaliar um tanto do propó- cotidiano. O trabalho era incrivelmente prazeroso. Pare-
sito cultural e muito do propósito da vida. cia festa. Em todos os cantos, parávamos para tirar uma
foto, registrar tudo para botar no making of.

138
142 Traficando conhecimento Concepção 143

Personagens como um DJ que deixou as drogas para se crime e de resgate me fizeram ter um objetivo: traba-
dedicar a arranhar os discos na Zona Oeste de Poços lhar com hip-hop e levar o projeto do livro adiante.
de Caldas que, tão logo percebeu que poderia ser feliz
Mesmo sem saber como, a emoção que sentia quando
sem estar muito louco, recebeu um convite para tocar
ouvia todas aquelas histórias que desenham a cultura
junto ao grupo UClanos. Também como o professor e
como ela é, foi o que me fez ser parte integrante da cul-
arte-educador, Éder, que deixou os empregos com car-
tura novamente e de uma forma muito mais ativa. Vale
teira assinada para ensinar break e dança de rua para
lembrar que isso se deu mesmo sem que eu soubesse
as crianças da cidade, ocupando também a Fonte do
cantar, dançar, riscar discos e tampouco grafitar.
Leãozinho e mantendo a tradição de unir os patrimônios
materiais e imateriais da cidade.
As lágrimas nos olhos de Stephanie, com 13 anos na
época, me fizeram segurar o choro enquanto a entre-
vistava. Indo ao encontro da proposta de Éder, que era
tirar as crianças e jovens das ruas, evitando que eles
se envolvessem com o crime, ela me contou que optou
por aprender a dançar e preencher as noites de sábado
com as aulas para se ver livre das drogas e da saudade
do irmão que morreu, após uma parada cardíaca provo-
cada por uma overdose. “Meu irmão é exemplo. Eu acho
que se ele fosse envolvido com hip-hop, estaria com a
cabeça ocupada.”
Mais uma vez senti a certeza do caminho certo pulsando
no meu coração. E eu? Se não estivesse trabalhando com
hip-hop e cultura, estaria fazendo o quê? Se não tivesse
sido seduzida pelos livros e por uma cultura popular, o
que estaria fazendo?
Relatos como os de um grupo que arrecadava cada cen-
tavo para ajudar as crianças e jovens que estavam nas
ruas e como espaço usavam uma sala de uma casa de
repouso onde viviam idosas em fase terminal ou como
as de King Nino Brown ao tentar cuidar para que o hip-
hop fosse retransmitido de forma certa são parte do
livro e que me emocionam muito. Bem como a histó-
ria de André Du Rap, que sobreviveu ao massacre do
Carandiru e encontrou no hip-hop um caminho longe do
Concepção 145

pelo descaso, pela falta de informação, pela falta de


Um grito de acesso de cultura.
Descobri o hip-hop como uma ferramenta capaz de aju-
emergência dar na luta diária pela sobrevivência dos guetos e foi,
justamente, em cima disso que tentamos trabalhar no
texto e no relatório técnico.
Como um grito de dor, uma emergência. Assim descobri
a existência da Cooperifa. Um sarau poético, um movi-
mento da periferia, um local de uma energia singular e
capaz de mudar tantas vidas.
Retornei à Poços de Caldas e Anita ficou em Mogi Mirim.
Cheguei à cidade cheia de ideias e vontades para apli- Surgiu na Zona Sul de São Paulo como um desespero em
car e montar projetos locais. Toda experiência em São levar poesia e literatura até donas de casa, metalúrgicos,
Paulo e também em Poços me fizeram constatar que, estudantes e cidadãos. Cidadãos de qualquer raça, sexo
realmente, as periferias eram tratadas como “Quar- ou credo. Cidadãos “marginais”, que nunca haviam pego
tos de Despejo”, de acordo com o que relatou Carolina um livro ou lido uma poesia. Arte e cultura não existiam no
Maria de Jesus no primeiro livro brasileiro escrito por jargão periférico de tráfico, opressão e sofrimento.
uma favelada. Era para lá que eram jogadas as pessoas
Como um quilombo cultural foi criado o sarau que fun-
sem renda alta, sem grandes perspectivas, analfabe-
ciona no bar do Zé Batidão. Este movimento não poderia
tas, negras, feias, e tudo aquilo que a elite não queria
ficar de fora do livro e, por meio de uma apuração que
“sujando” a sociedade “bem organizada”.
me tomou bastante tempo, consegui traçar um pequeno
Perto disso tudo e louca de raiva, de fúria, senti o mesmo perfil do movimento, que, mais tarde, me inspirou total-
ímpeto de todos aqueles que usam o hip-hop como arma: mente na criação de projetos e na forma de colocá-los
gritar e mostrar ao mundo, de alguma maneira, o quão é em prática. Fazendo mais e pensando menos.
cruel tratar seres humanos como lixos. Como não sabe-
O que mais me chamou atenção na história do sarau é
ria fazer isso através de letras de rap, ou sequer can-
que muita gente, que nunca havia pego em um livro ou
tando, como inúmeros dos grupos que entrevistávamos
sequer sabia ler e escrever tinha voltado a estudar e
faziam, tampouco conseguiria dançando ou grafitando,
estava escrevendo a própria história através de reuniões
realmente a única forma era escrever. E assim foi, me
semanais em um bar onde a única exigência era o silên-
lancei a escrever tudo que vi, ouvi, vivenciei através do
cio em forma de prece e respeito ao poeta.
hip-hop para pôr no livro.
Dessa maneira, verbalizar a opressão e o descaso social
Cada palavra digitada, pensada, rascunhada, foi posta
se transforma em valorização das lutas que morado-
ali, com todo coração, numa tentativa de dar ainda mais
res da periferia vivem diariamente e a Cooperifa abre
voz àqueles que eram calados diariamente pela fome,

144
146 Traficando conhecimento Concepção 147

espaço para esta realização, funcionando como a aca-


demia de letras do subúrbio. Esta ideia inspira outros
saraus pelas periferias de São Paulo, a maioria em bote-
cos, com gente simples e humilde, e que transforma
todo conteúdo sofrido do dia a dia em poesia.
O principal da Cooperifa é a transformação social. Gente
que não sabia ler e, agora, já está escrevendo livros.
Fez-me acreditar que as mudanças podiam realmente
acontecer. A proximidade disso tudo com o hip-hop?
Total. Descobri o Sérgio Vaz ligado à cultura marginal,
à pessoas envolvidas com o hip-hop e, por conseguinte,
à literatura. E por ser também uma forma de manifes-
tação, um novo elemento da cultura.
Com esta história contada de forma tão real e citada
no pré-projeto do livro, um mês depois da viagem a São
Paulo, Anita e eu fomos aprovadas na pré-banca e bas-
tante elogiadas pelas professoras que analisaram o pro-
jeto. Na apresentação básica mostramos o que poderí-
amos contextualizar através do livro e durante a viagem
constatamos o que já vinha observando há tempos. Para-
fraseando Mano Brown, periferia é periferia em qualquer
lugar. Seja em São Paulo, em Poços de Caldas ou em qual-
quer outra cidade. Mudam as gírias, o sotaque e a locali-
zação geográfica, mas os moradores se assemelham da
mesma forma e carecem das mesmas coisas.
A falta de estudo e a desinformação acarretam diversas
consequências, bem como a falta adequada de condi-
ções de vida. Os jovens aliam-se às drogas, e, por não
conseguirem empregos dignos, passam para o tráfico,
quando o dinheiro vem fácil e rápido. As garotas são
mães muito cedo, e viram donas de casa e chefes de
família muito cedo. Os moradores da quebrada também
não costumam levar o estudo adiante devido às pesadas
jornadas de trabalho, na maioria das vezes, em troca de
148 Traficando conhecimento Concepção 149

um salário mínimo. E quase sempre estão cansados ao Desta forma, as situações de exclusão transformam-se
anoitecer, quando é hora de ir para a escola. em indignação, em um grito preso na garganta, oprimido,
triste, sofrido. Um berro prestes a explodir. Os morado-
No fim do dia, os moradores da favela preferem conver-
res dos guetos necessitam encontrar um espaço para
sar na porta de suas casas, namorar, ir a eventos próxi-
expor toda a indignação.
mos – a maioria de hip-hop ou samba –, igrejas e bares.
Antropologicamente, todos os autores discutem isso em O hip-hop é uma destas saídas. Ele reúne manifestações
livros, teses e dissertações e as atitudes aqui retrata- culturais expressivas. É um movimento que nasceu da
das são as mais típicas dos guetos, e deles, o país está necessidade do povo em expressar sua arte.
repleto. De repente, é isso que faz com que as periferias
sejam tão mágicas, mas, ao mesmo tempo, faz com o
que o povo seja cada vez mais miserável, principalmente
no que diz respeito à parte cultural.
O livro foi, então, tomando forma e ganhando corpo. Cada
fonte foi trabalhada de forma individual, e em um con-
junto, constatamos, pelas histórias, que grande parte
nunca foi a uma biblioteca e nem sabe onde elas ficam,
uma vez que as mais próximas, ficam a quilômetros de
distância, assim como as demais opções de lazer, que
terminam, mais uma vez, restritas aos bares, biqueiras
e televisão.
Desta forma eles desenvolvem uma cultura própria, que
inclui linguajar, vestimenta, comportamento. São as
subculturas ou a cultura popular, visto que este povo,
excluído e humilhado, ainda sente na pele a mesma coisa
que os escravos. O gueto é apenas a senzala moderna e
eles vendem a mão de obra por um prato de comida, ou,
muitas vezes, nem isso. A dignidade fica esquecida, a
identidade perdida.
Vítimas dos constantes descasos governamentais, aos
moradores das periferias restam apenas uma válvula
de escape: a confiança em suas próprias forças. Bus-
car dentro deles as afirmações culturais, as ideologias e
uma saída para tantos problemas sociais que os afligem.
Concepção 151

que vivíamos. Apesar de algumas poucas diferenças de


Citação do costumes, elaboramos algumas ações, como oficinas.
Kaká foi um anjo na minha vida. Com valores bem pareci-
caminho certo dos, me mandava mensagens dizendo para me acalmar
em meio ao caos que a minha vida estava, ela tinha cer-
teza que daria tudo certo. Aquelas simples mensagens me
faziam um bem enorme. Saber que meu trabalho poderia
ajudá-la me fazia pensar que ele não era, enfim, tão ruim.
Ela, como dançarina, reuniria os amigos e daria aulas
para crianças carentes, além de trabalhar a parte do
Recordo-me que, durante todo processo de feitio do
conhecimento, da leitura, das bibliotecas comunitárias.
livro, Anita e eu comentávamos que nosso sonho era
Eu deveria fazer o mesmo aqui, assim que 2007 invadisse
ver nosso trabalho citado em algum outro trabalho aca-
o calendário, e fomos seguindo, trabalhando, estudando
dêmico. Apesar de todo prazer da execução queríamos
e registrando um pouco mais sobre a cultura marginal.
também reconhecimento e se fôssemos referência em
algum trabalho, ficaríamos extremamente felizes. Eis E assim, diante de vários problemas financeiros, a livra-
que já quase no mês de outubro fui procurada, na inter- ria em que eu trabalhava estava prestas a falir. A luz foi
net, por uma garota de Goiânia-GO, conhecida como cortada. Poucos livros preenchiam as prateleiras e eu
Kaká Soul, que estava se formando em Relações Públi- estava, há um bom tempo, sem receber meu salário.
cas e fazendo uma monografia acompanhada de um
Na hora do almoço saía para procurar outros empre-
documentário como TCC.
gos. Ir para a faculdade diariamente já se tornara insu-
Ela queria algumas referências. Tornamos-nos amigas, portável, afinal, aguentar viajar durante quatro anos
trocamos livros, filmes e todos os materiais que tínha- seguidos em vans e chegar em casa super tarde não
mos sobre hip-hop. De tão parecidas, passamos a nos era mais tão divertido.
tratar como “mana”, como se fôssemos, realmente,
Escrever o livro era prioridade e a falta de tempo come-
irmãs perdidas e mesmo tanto tempo depois, permane-
çava a pesar. Sem energia elétrica na livraria – ou seja,
cemos irmãs de cultura, de hip-hop, de afinidade popu-
não podia usar o computador – e sem muito que fazer,
lar. Como o trabalho dela seria apresentado somente em
escrevia em folhas de caderno e, como era impossível
dezembro, deu tempo de enviar o nosso pronto a ela e
trabalhar até às 18h20, por conta da falta de luz, saía
vê-lo citado nas páginas da monografia que ela escreveu.
mais cedo, ia até uma lan house e digitava o que já tinha
Emoção completa. Lembro-me, também, que pela inter- escrito a mão. Trabalho dobrado. Por várias vezes pensei
net nos falávamos todos os dias e trocávamos ideais que não daria conta de terminar no prazo. Fiquei três
sobre projetos que poderíamos montar nas periferias noites inteiras acordada acompanhando a diagramação
– na companhia de Anita – e fiz os últimos acertos, como

150
152 Traficando conhecimento Concepção 153

introdução e legendas, na última hora. O diagramador,


publicitário e amigo, Guilherme Dore, que foi fundamental
durante toda minha trajetória profissional e sempre me
deu muita força na área pessoal, também, teve a dispo-
sição de ficar acordado nas madrugadas, mesmo tendo
de trabalhar no outro dia, para diagramar o livro comigo,
além de toda paciência quando resolvia mudar algum
detalhe e bagunçava toda ordem das páginas.
Com todo profissionalismo e amizade, ele conseguiu ter-
minar a diagramação, e começamos uma corrida contra
o tempo para encontrar uma gráfica e imprimir o traba-
lho, antes do prazo final de entrega. Na última noite, com
o livro quase pronto, descobri que não tinha ainda um
texto para a orelha e tampouco um texto de abertura.
Às pressas, mandei um e-mail para Mirella Domenich,
autora do livro “Hip-Hop - a periferia grita”, que nos ins-
pirou muito, e pedi uma orelha. Acho que meu tom deses-
perado e urgente surtiu efeito. Meia hora depois ela me
mandou uma orelha tão precisa que a sensação era de
que ela havia lido o livro inteiro naquela meia hora, real-
mente. Quanto ao texto de abertura, sentei, peguei uma
folha de rascunho e pensei: o que sair aqui será o texto.
Não dá mais tempo de mudar. E assim foi:

HIP
Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,
vontade, luta e marginalidade.

A força que vem do lado negro, pobre e inferiorizado e


atinge toda a sociedade com sua forma, sua arte e sua
cor. O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho,
debater as questões controversas de uma sociedade que
se finge de surda para este grito de protesto.
154 Traficando conhecimento Concepção 155

Hip-hop é um terno que vai além. Significa cultura, mas para preparar a apresentação, as roupas, a decoração.
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor, Finalmente, consegui fazer um acordo na livraria e ter
soluções, lutas e igualdade de direitos. pouco mais de uma semana para finalizar o trabalho.
O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de Lembro-me desta época como a única da minha vida em
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta que eu não estava lendo absolutamente nada, apenas
proteger os que já nascem condenados à morte. Perso- escrevendo. Não havia tempo. Era preparar o material da
nagens reais, cercados pela miséria, fome, desinforma- apresentação. Revisar. Fazer os convites. Revisar. Ajus-
ção, violência, crueldade, desemprego, drogas, descaso, tar o detalhes. Revisar. E tentar controlar a ansiedade
desabrigo, armas de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio até o dia 31 de outubro de 2006, quando apresentaría-
a tantas armas que eles podem escolher no jogo real do mos o trabalho. Seria o último de toda turma. Fecharía-
“matar ou morrer”, o hip-hop escolhe a maior de todas mos as apresentações daquele ano. Anita se tornou jor-
as armas: a cultura. Uma cultura marginal, mas que não nalista. Eu me tornei jornalista!
é propriedade dos grandes, não é da elite nem da bur-
guesia. É a cultura de quem foi capaz de criá-la e levá-la
adiante. É a cultura das ruas, do povo.

O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente no


gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e, hoje,
auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta cultura
marginal traz de volta os sonhos daqueles que carregam
o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva a autoes-
tima daqueles que antes eram forjados de estorvo pela
sociedade.

Através de expressões artísticas intensas, o povo da peri-


feria encontrou no hip-hop a vontade de viver, a motivação
e a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop pro-
põe com suas manifestações e expressões que mudam e
desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconceitos.

Livro diagramado. Às 18h40 consegui pegá-lo na gráfica


e estava sem a última página! “Ai meu Deus, serei repro-
vada”, pensei. E, desesperada, fizemos uma gambiarra na
própria gráfica e deu certo, imprimimos a última página,
que amarrava todo o texto, concluía todo o livro e o traba-
lho de mais de um ano.
Uma hora depois e ele estava entregue. Faltavam apenas
alguns dias para a banca final e era o tempo que tínhamos
Concepção 157

grafitado com o nome do livro e em poucos minutos, cha-


Do povo para o mamos atenção de quem passava pelo local. Pelo menos
no campus, falar de hip-hop de forma tão explícita era

povo: “Hip-Hop – A novidade. Uma boa sacada do coordenador do grupo foi


colocar nossa apresentação na sequência da apresen-
tação de uma colega de classe que produziu um livro-
Cultura Marginal” reportagem sobre congadas na região de Poços de Cal-
das. Ambos os trabalhos traziam cultura popular como
tema. Ambas as culturas produzidas do povo para o povo
e congregando os negros, excluídos socialmente.
Após tudo decorado, subimos para o banheiro mais sos-
São 22h. Preparo-me para dormir. Pela primeira vez na segado da faculdade para tomar um banho de gato, tro-
vida tomo um calmante. Na verdade é um remédio home- car de roupa, passar maquiagem e ensaiar uma última
opático, mas que eu engulo com fé e pensando que vai vez toda a apresentação. A ansiedade era quase palpá-
me fazer dormir mais tranquila. Esta é a véspera da vel. Sentimentos de alívio, medo e conquista eram visí-
apresentação do TCC. Tento pensar que está tudo certo. veis no nosso comportamento.
Que ninguém na banca sabe mais sobre o tema do que
Um último ensaio. Quem fala o quê. Quem dá boa noite
nós – Anita e eu – afinal passamos o último ano inteiro
para a banca. 21h. Hora de encarar o auditório, que
nos dedicando a ele.
estava movimentado por conta do intervalo, do término
Durmo a noite toda, mas acordo cedo. Seria querer da primeira apresentação e de quem aguardava a nossa.
demais dormir até tarde. Ainda faltam algumas coisas.
Vestidas como os hip-hoppers, nos posicionamos, coloca-
Como pouco. Quando fico ansiosa não consigo comer
mos o CD com a apresentação no computador e nos pre-
muito. Ainda falta um violão para o grupo que vai tocar
paramos para aquele que seria, sem dúvida, o momento
e dançar como show durante a apresentação. Ligo para
mais importante de toda nossa trajetória dentro da uni-
Anita. Ligo para todas as pessoas que conheço. Entro
versidade. Ainda muito nervosas, demos início a apre-
em desespero e, por fim, consigo três violões.
sentação e, aos poucos, conseguimos nos soltar, entrar
Por volta de 15h, saímos de casa. O casal Lu Afri e Subur- no tema e adentrar novamente no mundo que vivemos
bano, que integram o UClanos vão comigo e mais uma durante todo último ano, além de eu ter vivido durante
amiga. Minha mãe vai dirigindo. Meu pai fica em casa para um bom tempo na adolescência, diariamente.
ir mais tarde, levando o outro integrante que sai do serviço
Conforme fui falando, senti dentro de mim o desejo de
às 18h. Ele vai matar aula para estar na apresentação.
realmente ser parte de tudo aquilo, de continuar pesqui-
Chegamos a São João. Anita chega logo em seguida. sando, de permanecer estudando a cultura. Contamos
Montamos todo nosso cenário. Erguemos nosso painel de forma resumida toda a trajetória, como o livro foi con-
cebido, pesquisado, escrito e formatado.

156
158 Traficando conhecimento Concepção 159
160 Traficando conhecimento Concepção 161
164 Traficando conhecimento Concepção 165

Finalizada a apresentação, as considerações da banca. Já não cabia mais em mim de tanta felicidade por ter
Algumas pequenas observações e pedidos de esclareci- feito a apresentação, por ter chegado ao fim desta etapa
mentos sobre trechos do livro vieram de uma professora e por saber que eu continuaria. Abracei meus pais e os
que, durante todo o tempo também, nos apoiou, direta e agradeci, por terem dividido comigo os quatro anos da
indiretamente, sobre a escolha do tema. Da outra pro- faculdade e por terem apresentado o trabalho ao meu
fessora, a antropóloga Rosa Helena, apenas uma per- lado, além de terem passado várias noites perguntando
gunta. A que deu início a todo este capítulo e que, talvez, o que poderiam fazer para me ajudar a terminar o livro.
deu sentido a todos os projetos envolvendo literatura e
Claro que fizeram por mim muito mais, começando pelo
conhecimento que existem hoje.
sacrifício em poupar durante dezessete anos e deposi-
A banca pediu que nos retirássemos para decidirem a tar para que eu pudesse cursar a faculdade, por terem
nota. Por normas da universidade, as notas não pode- me incentivado a escrever, a ler, a ser a pessoa que sou e
riam mais ser divulgadas para os alunos durante a por acreditar naquela que eu gostaria de me tornar.
banca, somente após o fechamento oficial do ano letivo.
Por fim, respondendo a pergunta da professora: o livro
Fim. A apresentação terminou. Fomos aprovadas. Hora mudou tudo e na vida ficou a vontade de mudar, de fazer
dos parabéns, dos abraços, dos cumprimentos, de tirar diferente, de construir projetos, de ajudar quem nos
as últimas fotos da turma toda reunida. Estávamos ajudou, de abrir nosso coração e nossa mente cheia de
todos formados. Agora seria a vida profissional. O mer- ideias para aqueles que abriram suas vidas e portas de
cado de trabalho. O mundo lá fora. suas casas para nos receber e nos deixaram conhecer
um pouco mais do hip-hop e desta cultura marginalizada.
Posei para as fotos e cumprimentei todos. Com a certeza
de que continuaria trabalhando com hip-hop e ansiosa O choro de Rosa foi justificado quando eu e Anita disse-
para pôr todas as minhas ideias em prática. Ainda não mos, em coro, que nossa vontade era fazer pós ou mes-
sabia como faria para executar tudo o que eu tinha von- trado em antropologia, para dar sequência. Pude então
tade, mas a certeza na alma me mantinha apaixonada e usar a frase que mais me marcou durante toda a trajetó-
ligada à cultura negra, ao hip-hop e a literatura. ria: o hip-hop também salvou a minha vida.
Hora de voltar para Poços de Caldas. Suburbano me
olha nos olhos e dispara: “Foi a melhor apresenta-
ção que já fiz com o UClanos.” Emocionada, pergunto:
“Por quê?” E ele: “Porque antes de tudo foi trabalhado
o conhecimento. Você explicou o que é a cultura, sem
falar que nos apresentou como os tios do hip-hop. Foi
muito gratificante”, disse.
166 Traficando conhecimento Concepção 167
No ar: o hip-hop

Cap.04
No ar: o hip-hop
No ar: o hip-hop 173

— Sim. Claro que vou. Que horas preciso chegar?

Às 10h da manhã de sábado, subi a escadaria que me


levaria até o estúdio AM da emissora. Aline foi uma
colega de classe, também fã do hip-hop, que, inclusive,
usou alguns dos personagens do livro para uma matéria
do programa de televisão que o grupo dela produziu para
o TCC. Ao chegar no local, me lembrei do dia em que fui
lá pedir emprego ainda no segundo ano e recebi um não.
Pensei que, realmente, o mundo gira.
Uma senhora muito simpática me recebeu e disse que
A tênue linha entre o crime e os cidadãos de bem é cru-
seria mais um bate-papo o que não me tranquilizou nem
zada diariamente por milhões de jovens que vivem nos
um pouco. Não por falar no rádio ou num microfone,
guetos de todo país. Na minha quebrada não é diferente
porque isso, eu adorava, mas por saber que a emissora
e o livro “Hip-Hop – A Cultura Marginal” revelou-se uma
AM era uma das mais ouvidas na região, principalmente
arma. Diferente das empunhadas pelos soldados do
naquele horário e eu falaria sobre algo relativamente
tráfico, a munição veio em forma de palavras, que pas-
novo até então para aquele público.
saram a chamar a atenção dos jovens em oficinas pro-
movidas nas escolas, centros comunitários e sedes de Com uns três copinhos de água na minha frente, o ope-
Organizações Não-Governamentais (ONGs). rador da mesa de som me deu bom dia e pediu para ver o
livro. O sorriso no rosto dele me deixou mais confortável.
Assim, o desejo de voltar à cultura marginal e levá-la
Ele aprovou a capa e o design. Meio caminho andado.
adiante se tornou realidade. Não foi possível iniciar pós
ou mestrado em antropologia, mas dar sequência no que Três. Dois. Um. No ar. A entrevista começou e ela me apre-
tinha vontade, foi algo vital. sentou como uma jovem, recém-formada, com um livro
em mãos e me perguntou tudo sobre o trabalho. Pela pri-
Meu telefone toca.
meira vez tive a oportunidade de expressar, de forma tão
— Alô? simples – pelo meio de comunicação mais democrático –
— Oi Jéssica. Aqui é Aline Bertolli. Você pode participar a emoção que senti ao conhecer a cultura, ao me envolver,
do programa da Tereza no sábado de manhã aqui na Rádio
ao me distanciar e ao voltar, para fazer o livro.
Difusora, onde trabalho?
— Posso. Mas para falar o quê? Narrei várias aventuras em busca do produto final e li
— Sobre o seu livro. alguns trechos, acompanhada por ela, que de forma
Pensei um pouco. Um friozinho na barriga e na espinha muito sagaz, se declarou uma nova fã do movimento e
me fizeram hesitar por um breve momento. Claro que eu porque não dizer, uma nova adepta, segundo ela própria.
iria participar. Uma primeira oportunidade oficial para Quando recebi o convite, imaginei que duras horas em
divulgar o livro. Não teria porque recusar. uma rádio era tempo demais. A leveza da conversa me

172
174 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 175

fez perceber que o tempo foi ínfimo perto de tudo que


poderia ser dito. Para finalizar, li o texto de introdução e
ela fez questão de ler a poesia “Jorginho” de Sérgio Vaz,
que usei para destacar a Literatura Marginal no livro.
Ainda naquela manhã, quando deixei a rádio recebi vários
telefonemas de conhecidos e muita gente que sequer
sabia que estava envolvida com o movimento. Vibrei com
a repercussão e me senti realizada em poder, de alguma
maneira, levar o conhecimento através do hip-hop até
mesmo para quem não sabia ler ou escrever. Minha pai-
xão pelo rádio começou a crescer, também, neste dia.
No ar: o hip-hop 177

Logo de cara, marquei um estilo próprio, sempre aproxi-


Agora sim, mado do jornalismo literário, optava sempre pelas pau-
tas mais humanas e que lidavam com comportamento,

profissão repórter! regiões, problemas periféricos. Na primeira reunião de


pauta, sugeri uma série de reportagens nas comunida-
des. Dispus-me a visitar um bairro por semana e captar
todas as necessidades em cenas, palavras, expressões
e imagens.
Com um patrão durão e elitista, fiquei surpresa ao ver que
Novamente a busca por um emprego com carteira assi-
ele havia apoiado a ideia e colocado a minha disposição o
nada fez parte da minha rotina, entretanto, com muito
carro do jornal ou, em último caso o motoqueiro-faz-de-
mais seriedade. Agora eu estava formada e precisava
tudo, que também era fotógrafo. Iniciei a série pela Zona
encontrar algo na minha área para não enlouquecer.
Leste, do outro lado de onde eu residia, e só para confir-
Saí pela cidade munida com currículos e não me limitei.
mar o que já sabia, os problemas eram os mesmos.
Embora minha vontade fosse trabalhar com jornalismo,
procurei emprego em lojas, supermercados e restauran- Crianças soltas pelas ruas sem uma quadra, parque ou
tes. A única coisa que não queria era voltar a viver de fre- centro de lazer decente, nenhuma biblioteca e apenas
elas e não ter estabilidade. um posto de saúde em total deficiência. Isso sem falar
na pavimentação, inexistente em 80% das ruas. Com
Com o vento soprando a favor, pelo menos desta vez, con-
material suficiente para encher uma página de jornal,
segui um emprego na segunda semana do ano. Após um
batizei a série que acabava de ser lançada como “JP
teste de três dias, garanti a vaga para ganhar um pouco
Comunidade”, lembrando o nome do Jornal de Poços de
mais que um salário mínimo e trabalhar de segunda a
Caldas e dando voz aos moradores das quebradas.
sábado com horário de entrada e sem horário de saída.
Aceitei, pois era melhor do que nada, sem falar na chance Ficou combinado que as matérias sairíam toda quinta-
de aprendizado. Pela primeira vez vi o livro me proporcio- feira e minhas quartas ficaram lotadas. Passei a rece-
nara um retorno. Durante a entrevista, mostrei o que tinha ber ligações de vários outros bairros que pediam a visita
produzido de concreto e, no teste, a experiência com as da reportagem no local. Na segunda semana visitei
reportagens do livro foi fundamental para o desenvolvi- um bairro na Zona Sul. Não o que vivo, mas um vizinho
mento das reportagens para o jornal. e assim por diante, fui dando voz aos moradores que
sofrem com a dureza da vida, o mau cheiro dos esgotos,
Fui contratada no dia 16 de janeiro de 2007. A partir
a falta de asfalto, de saúde e do básico.
daí, com a rotina bastante mudada, precisei encontrar
algum tempo e forma de divulgar o livro, de implantar os Entre uma visita e outra aos bairros, durante as entre-
projetos na minha região, enfim, de fazer tudo aquilo que vistas com moradores, por diversas vezes, me depa-
havia prometido a mim mesma. rei com adeptos da cultura hip-hop e lamentei não ter

176
178 Traficando conhecimento

dinheiro suficiente para fazer diversas cópias do livro e


distribuir entre eles. Foi aí que a internet entrou como
peça fundamental para a divulgação do trabalho e para a
emissão de um outro tipo de voz: a que canta as mazelas
através do rap, que grita as injustiças nas cores que tin-
gem o muro e que relata a dureza cotidiana nas palavras
das poesias marginais.
No ar: o hip-hop 181

— Como assim?
Salvando vidas — Ela morreu esta noite. Teve uma parada cardíaca. Ainda
não sabemos direito. Será enterrada em Mogi Mirim, mas
ainda não sei o horário do enterro.

Tentei desligar o mais rápido possível.


Como a minha amiga, uma das pessoas mais importan-
tes da minha vida, poderia ter morrido? Ela tinha ape-
nas 25 anos, se formara oficialmente há apenas 15 dias
e tínhamos o livro e diversos outros projetos para cui-
dar. Sem falar que ela começaria um emprego novo no
Ainda não são 8h da manhã e me reviro na cama ao dia seguinte. Se eu não estivesse trabalhando, estaria
ouvir o toque do telefone. Terça-feira. É feriado. Pelo passando o Carnaval com ela.
menos até às 18h, quando vou sair de casa para cobrir Como ela estava morta? E todos os nossos sonhos, pro-
o desfile das Escolas de Samba campeãs do Carnaval jetos, planos? E as vontades dela, os pensamentos, o
de Poços de Caldas. talento para a escrita? Como eu seguiria sozinha? Éra-
Desejo que não seja para mim. Tinha planos de acordar mos amigas desde o primeiro dia de aula, quando toma-
umas 10h e dar sequência em um trabalho de decupa- mos o trote da faculdade juntas.
gem de entrevistas para uma prima da Anita. Ganharia Consegui pensar tudo isso enquanto desligava o telefone,
um dinheiro legal e, como tinha uma boa experiência com dava a notícia ao meu pai e começava a chorar de forma
isso, topei fazer o freela. Fui interrompida pela minha descontrolada. Quando tinha nove anos, uma amiga
tentativa de voltar ao sono. A ligação era para mim. Do minha, que na época tinha sete, morreu atropelada e a
outro lado da linha era a mãe da Dani, a moça para quem dor foi terrível. Conhecia a dor de perder uma pessoa tão
eu estava fazendo o trabalho. Estranhei. querida e tão próxima. Apesar de todas as nossas brigas e
— Alô? arranca-rabos diários, éramos amigas mesmo. O que faria
— Jéssica, desculpe te ligar tão cedo. É que tenho uma sem ela? Como prosseguiria com o livro, com os ideais de
notícia não muito boa para te dar... criar projetos sociais e jornalísticos?
Será que ela vai cancelar o trabalho? Foi meu único pen- Tentei responder tudo isso e chorei durante meses,
samento naquela hora, ainda entre o sono e o despertar. todos os dias. No mesmo momento, um amargo terrível
— É que a Nitinha se foi...
me subiu do estômago à boca e me lembrei da frase que
mais ouvi durante toda a trajetória: o hip-hop salvou a
Era assim que eles chamavam a Anita. Tomei um susto e minha vida. Infelizmente, não salvou a vida da Anita.
me obriguei a raciocinar. Talvez não a tenha cativado com tanta força, como me
cativou e salvou. Como atuou na vida de tantas outras
pessoas de quem colhi depoimentos ou convivi.

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182 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 183

Não acreditei que ela estivesse morta. Durante muito livro e não sabia como fazer. Ele não era mais da forma
tempo fiquei em estado de negação e quando soube a como concebemos. Faltava um pedaço. No livro, na minha
causa, me senti uma comunicadora muito impotente. vida, na da família dela e nas minhas lembranças da vida
Diante de tantas informações, como ela poderia ter mor- universitária, que eram só nossas e nunca mais puderam
rido inalado gás propano butano de uma daquelas buzi- ser compartilhadas.
nas barulhentas usadas durante o Carnaval?
Resolvi escrever um texto para ela. Publiquei no jornal
Ouvi relatos de que o gás, quando inalado, provoca um onde trabalhava, no jornal de Serra Negra, cidade onde
barato ao estilo do lança-perfume, entretanto, com ris- ela morreu e resolvi que seria uma espécie de dedicatória
cos imensos, sendo que, um deles leva, a pessoa à morte. no livro. As pessoas que receberam a segunda remessa
Lancei-me em campanhas sobre o assunto, fiz matéria dos exemplares puderam conhecer um pouco do que ela
para o jornal, procurei entender e orientar as pessoas. Até representou para mim. Senti, novamente, o meu rosto
a data — 19 de fevereiro de 2007 — cinco pessoas, con- molhado pelo meu choro. Senti o hip-hop chorando por
tando com a Anita, haviam morrido da mesma maneira ter perdido mais uma pessoa para o mundo das drogas
no país. Vi ainda algumas matérias televisivas que divul- e mais uma vez foi ele que me salvou, que deu rumo e
garam o caso, os perigos e tudo mais, mas as notícias de sentido a minha vida. Foi nas manifestações artísticas e
morte pela mesma causa continuam chegando. culturais que senti força para seguir adiante.
Durante muitas noites, que passei em claro tentando Por que ela se foi?
entender como faria para seguir adiante, sozinha, sem
ela para me dar conselhos sobre como poderia enrique- “Ela tinha acabado de se formar, cheia de vida, cheia
cer uma matéria, um título. Sem ela para ouvir minhas de planos, cheia de sonhos. Tudo era perfeito: famí-
lia, amigos, ia começar a trabalhar naquela semana.
histórias pessoais, compartilhar os raps recém-lança-
Aconteceu, injustamente, mas aconteceu. Fazer o quê?
dos, tirar fotos dos grafites pelas cidades afora, divulgar
Ela se foi, e como diz a música, cedo demais. Ela não
o livro, me perguntei como poderia usar o hip-hop e a cul-
poderia ir assim, sem dizer adeus, sem escrever os livros
tura marginal para impedir que mais pessoas morressem
que queria, sem conhecer os lugares que havia prome-
de uma forma tão estúpida. Questionei-me por que tan-
tido, sem realizar tudo que pretendia. Ela simplesmente
tas pessoas morrem e nós perdemos a batalha da vida não poderia deixar para trás tantos sonhos... Mas deixou!
para o mundo das drogas. Não compreendi como ela,
uma jornalista com um livro tão rico sobre uma cultura Por mais que tentemos explicar a vida, ela tem seus
mistérios que só o outro lado pode nos fazer entender.
marginal, pôde esquecer todo conhecimento e embarcar
Quero me lembrar de uma menina de olhos azuis, que
num prazer momentâneo que lhe roubou a existência.
me olhava nos olhos quando falava, que ria de tudo, que
Ainda procuro a resposta, mas me consolei por saber que me abraçava quando as coisas não estavam bem, que
ainda tenho a cultura onde posso me amparar e também me passava cola nas provas e que, assim como eu, tinha
desenvolver tudo que me faz doer a alma. Naquela mesma um sonho: ser jornalista.
época, precisei imprimir alguns poucos exemplares do
184 Traficando conhecimento

Vou me lembrar eternamente de uma amiga de verdade


e de quatro longos anos de cumplicidade dividida. Vou
me lembrar da gente brigando e discutindo sempre,
mas sem sair uma do lado da outra. Nunca nos aban-
donamos. Quero me recordar da melhor amiga que fiz
naquela faculdade, da grande pessoa que ela foi. Uma
menina corajosa, sonhadora, idealizadora, que, um dia,
sonhou com uma profissão que pudesse mudar algo e
deu o melhor de si por ela. Vou sempre me lembrar de
uma menina que me ensinou muito, não só profissional-
mente, mas sobre a vida.

Sempre terei no coração a lembrança de uma pes-


soa que lutou pelo hip-hop, “correu pelo certo” e que,
mesmo num curto período de tempo, fez história, como
grande jornalista que foi.

Anita, aqui não dá espaço para eu citar todas as coisas


boas que você representa, tudo que a gente viveu e
nem cabe em palavras o quanto eu te amo, os grandes
momentos que vivemos, as loucuras que dividimos e
tudo que construímos.

Tá doendo muito não poder mais dizer o quanto eu te amo,


saber que nunca mais vou ouvir sua voz me xingando ou
brigando comigo, saber que nunca mais vou te fazer ouvir
um rap diferente, ou tirar uma foto em um grafite. Saber
que nunca mais vou te pedir conselhos, contar meus
sonhos, discutir os caminhos do hip-hop ou planejar um
mundo melhor e mais humano.

Como você gostava de ser chamada e me chamava:


“Kbça, o hip-hop chora por você e sente sua falta. Des-
culpe por não ter conseguido te impedir de ir embora,
também acho que você se foi cedo demais. Tô com sau-
dade e tá doendo muito. Vai com os anjos, vai em paz.”

Valeu a pena!!!
No ar: o hip-hop 187

O prêmio era um livro novo, enviado gratuitamente pelo


Blog correio ao vencedor.
Resolvi participar e, ao resenhar o livro “Crack – o cami-
nho das pedras”, de Marco Antônio Uchôa, simples-
mente para ver se seria publicado, ganhei um livro novo.
O texto se tornou um boletim. Inspirada, resolvi divul-
gar o programa por meio dos meus amigos que gosta-
vam de ler e, também, pelo blog. Encontrei também no
site o escritor Sérgio Vaz, fundador da Cooperifa, e que,
durante o TCC, me inspirou muito. Entre os textos dele
Assim como a dureza do pão que alimenta milhares de e de outros escritores, fui desenhando, mentalmente, o
famílias nas periferias do Brasil, a vida também é rígida que gostaria de criar em Poços.
e não para. Mesmo com muita dor e saudade da Anita, Outras resenhas surgiram e me fizeram ganhar mais livros
deveria prosseguir e prometi a mim mesma que faria novos e inéditos. Era uma chance de ler e aprender mais
tudo que pudesse para divulgar nosso trabalho. sobre novos assuntos também. De presente, dei o livro a
Preciso de um nome para um blog. Foi o que pensei ao alguns conhecidos e ganhei um maior ainda. Uma resenha
perceber que não poderia usar meu espaço – diário vir- sobre a minha obra publicada no “Leia Livro”.
tual – pessoal para propagar o livro. Optei por Cultura Confira, abaixo, o que foi dito sobre meu trabalho naquela
Marginal. Soava tão semelhante ao livro e dava espaço época:
também a quem não era necessariamente ligado ao
hip-hop. Passei a escrever textos quase diários sobre Hip-Hop, esta cultura marginal
os assuntos que via, lia e ouvia falar, mas, sempre, com por Gabriel Barbosa Machado (ator)
um toque de opinião, impossível no meu trabalho como
repórter no Jornal de Poços de Caldas. “Paz,amor, união e diversão”, essa é a proposta do livro
“Hip-Hop – A Cultura Marginal”, que é, o tempo todo, fiel
Como já havia mantido blogs na internet, mas nem sem- à história do hip-hop no Brasil e no mundo.
pre sobre o assunto, não foi tão difícil divulgar e encon-
Com uma linguagem jornalística das grandes reportagens,
trar um público-alvo específico. Ao mesmo tempo, des-
clara, doce, dinâmica, eficiente, coloquial e informativa,
cobri o site “Leia Livro”, mantido pela Secretaria de
marcada por histórias singulares com uma riqueza de
Estado de Cultura de São Paulo, em que um programa de
dados surpreendente. Definitivamente é um livro que
incentivo à leitura chamou muito a minha atenção. traz o retrato de uma cultura urbana, emergente das
O leitor poderia enviar uma resenha de algum livro e se classes populares das metrópoles. Uma verdadeira aula
esta fosse inédita e bacana, poderia se tornar um boletim de hip-hop, que já começa no título, nos fazendo questio-
de rádio, divulgado em algumas emissoras conveniadas. nar, que cultura é essa? Que marginal é esse?

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188 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 189

É um livro gostoso de ler, com conteúdos específicos, poe- a um pedido mútuo de desculpas e nos tornamos amigos.
sias, histórias e curiosidades únicas. Um material que é, Trocávamos mensagens diárias a respeito da cultura, dos
com certeza, um registro histórico-cultural, daquele que nossos projetos e de nossas vontades.
é o maior movimento social dos últimos 30 anos. Esta
obra, contribui, inegavelmente para dar mais visibilidade
a uma cultura que carrega em sua face, o olhar do pre-
conceito, da ignorância, da desigualdade e da exclusão a
partir daqueles que desconhecem, rotulam ou ignoram.

Afirmo que é louvável a produção das jornalistas que se


lançaram a campo para registrar a voz de um movimento,
ritmo e cultura, certificando que, mesmo numa forma de
deficiência, a universidade ainda forma seres pensantes,
que estão à frente na análise das manifestações cultu-
rais e fenômenos sociais, muito antes do que qualquer
meio de comunicação. Elas dizem assim, no capítulo ini-
cial: “Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro
que emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais
mais pobres, o grito desesperado de quem vem da perife-
ria. Chega ao asfalto carregado de protesto, indignação,
carência, vontade, luta e marginalidade”. Para adentrar
no mundo do hip-hop e conhecer faces totalmente igno-
radas da hiphoptude, o livro “Hip-Hop – A Cultura Margi-
nal” é um bom começo.

Como não conseguia parar, peguei umas revistas Rap


Brasil emprestadas com a Lu Afri e em uma delas uma
entrevista com o Alessandro Buzo me fez tremer. Ele cri-
ticava os acadêmicos que escreviam teses e livros sobre
hip-hop e dizia que tais pessoas não tinham propriedade
para tratar do tema.
Descolei o e-mail dele, não lembro onde e nem com quem,
e mandei um texto até meio mal-educado, questionando a
postura e apresentando a minha versão. Eu havia escrito
um livro. Mas tinha toda propriedade que qualquer outra
pessoa, pois havia vivenciado tudo na pele. Recebi a res-
posta no mesmo dia, após uma troca de e-mails, chegamos
No ar: o hip-hop 191

federal para a cultura e questionou: “Desde quando isso


Ciranda é cultura?”. Como resposta, recebeu vários textos de
Sérgio Vaz, King Nino Brown e outros adeptos. As pes-
soas ligadas à cultura através do 5° elemento – conheci-
mento – puderam, então me conhecer, e, a partir daí, as
coisas começaram realmente a acontecer. Com um texto
para botar mais lenha na fogueira, consegui chamar
a atenção de vários adeptos e passei a receber alguns
convites para participar de outros blogs e publicações.

Como na música da brincadeira de roda infantil, desco-


bri um site que faria o saber circular e por intermédio da
“Ciranda Internacional de Informação Independente”,
consegui publicar alguns artigos com todas as opiniões
que tinha sobre o mundo, sobre as opressões, sobre o
hip-hop e sobre o jornalismo, que não podia ser prati-
cado em sua totalidade no órgão em que eu trabalhava.
Quando um jovem de 17 anos presta vestibular para jor-
nalismo, ele tem um sonho. Grande parte quer apare-
cer na televisão e ser famoso. O restante quer mudar o
mundo. Eu me enquadrava na segunda opção. Mas, na
prática, mudar o mundo com minha visão era bem mais
complicado e eu já sabia, claramente, que não seria
através do jornal que faria isso.
Já neste site poderia publicar meus textos de forma livre.
Escrevi alguns artigos e enviei, todos foram aprovados.
Era gratificante ver meu nome circulando na rede. Con-
segui, também, aprovação para colocar o livro disponível
para download no site “Overmundo” e, assim, várias pes-
soas puderam ter acesso a ele.
Mas foi cerca de um mês depois que uma bomba estou-
rou em todo universo do Hip-Hop. A jornalista da Folha de
São Paulo, Bárbara Gancia, criticou uma verba do governo

190
No ar: o hip-hop 195

trem lotado, não é porque estive em uma sala de aula de


O hip-hop não foi um curso superior e escrevo sobre política, arte e filoso-
fia que sou diferente ou elitizada. Não é porque carrego

inventado um diploma debaixo do braço que deixo de carregar a


marmita amassada na bolsa. Também estou nesse país
vendendo o almoço para pagar a janta, por mais contra-
ditório que isso pareça.

Para a “jornalista” (que envergonha a classe) Bárbara


Gancia, eu escrevo para enganar a fome e boto no papel
as indignações que é ser um “escravo moderno”. Res-
pondendo a sua pergunta, em seu próprio texto “Desde
Frente às discussões provocadas pela jornalista Bárbara
quando hip-hop, rap e funk são cultura?”. Desde que
Gancia e o escritor Sérgio Vaz, sinto-me na obrigação de
você deixou sua ignorância tomar conta e não se infor-
botar mais lenha na fogueira.
mou para escrever.
Além de fazer das palavras de Sérgio Vaz as minhas,
Em primeiro lugar, hip-hop é uma cultura. Uma cultura
gostaria de esclarecer algumas coisas. Estive lendo a
marginal, porque é feita pelo povo, vivida pelo povo e
declaração de Alessandro Buzo na revista Rap Brasil, em
difundida pelo povo. É marginal porque está à margem
que ele afirmava que era um escritor marginal porque era
da sociedade em todos os sentidos, porque é vítima do
marginalizado, mas agia preconceituosamente em rela-
preconceito, explícito ou velado, porque é excluída e con-
ção às teses acadêmicas sobre o hip-hop.
grega os excluídos, dando-lhes oportunidades.
No meio do fogo cruzado, postei no meu blog assim,
Portanto, o hip-hop é uma cultura marginal, nascida na
adaptando do texto dele: “Me considero uma escritora
periferia, como um grito ensurdecedor de protesto, que
marginal porque sou marginalizada. Se chegamos atra-
fere, machuca e atinge. Até então o hip-hop reflete o
sados no trampo, o patrão olha torto. Somos escravos
comportamento de uma classe social, uma grande par-
modernos. Hoje não existe escravidão, mas existe salá-
cela da população e por fim, de uma cultura com perso-
rio, que nunca dá para o que precisamos, o transporte é
nalidade própria, singular. Esta cultura carrega consigo
mó veneno. Essa vida é marginal. Se escrevo e vivo nessa
a força do protesto e da indignação. Ela sobrevive e se
vida, sou uma escritora marginal. É original porque vivo
opõe ao obscuro mundo da criminalidade, contra a exclu-
isso, apesar de ter feito faculdade e escrito uma tese
são e incluindo, mesmo que ainda na marginalidade, toda
sobre a periferia, esse é o meu dia a dia.”
uma nação, num misto de alegria e tristeza, a cultura hip-
Para os hip-hoppers, que acham que acadêmicos e estu- hop sobrevive, marca e faz história para quem se sente
diosos não podem ser da cultura porque não passam os maravilhado por tudo que o hip-hop proporciona.
mesmos venenos. Puro preconceito. Sou uma jornalista
Continuando, o rap é uma manifestação artística dentro
que vive o hip-hop no dia a dia e luta para preservar a cul-
da cultura hip-hop, através do MC (Mestre de Cerimô-
tura. Sou uma jornalista que foge à regra, ando de busão
nias), assim como o break, o grafite e o DJ.

194
196 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 197

O hip-hop é uma cultura desde o dia 12 de novembro de o hip-hop escolhe a maior de todas as armas: a cultura.
1974, quando o DJ Afrika Bambaataa o batizou, no bairro Uma cultura marginal, mas que não é propriedade dos
do Bronx, gueto de Nova Iorque, na tentativa de congre- grandes, não é da elite, nem da burguesia. É a cultura de
gar os negros do local para atividades artísticas, subs- quem foi capaz de criá-la e levá-la adiante. É a cultura
tituindo as brigas entre as gangues pelas rachas entre das ruas, do povo.
as crews (grupos) de break ao som do DJ, da voz do MC,
O hip-hop não foi inventado, ele nasceu naturalmente
sob os grafites nos muros. Quando Bambaataa resolveu
no gueto, recebeu a forma dos negros e excluídos e,
batizar o hip-hop (termo em inglês que, na tradução lite-
hoje, auxilia o povo a encontrar uma identidade. Esta
ral, significa saltar movimentando os quadris, mas que,
cultura marginal traz de volta os sonhos daqueles que
na prática, vai muito além disso), o fez na esperança de
carregam o sofrimento como estilo de vida. Ela eleva
disseminar: “Paz, amor, diversão e união”, segundo as
a autoestima daqueles que antes eram forjados de
palavras do mesmo.
estorvo pela sociedade.
Quem sabe, se antes de julgar, sejam jornalistas ou
Através de expressões artísticas intensas, o povo da peri-
hip-hoppers, as pessoas pensassem, observassem,
feria encontrou no hip-hop a vontade de viver, motivação e
pesquisassem e praticassem as palavras de quem criou
a consciência de cidadania. O mínimo que o hip-hop pro-
uma cultura?
põe com suas manifestações e expressões que mudam e
“Vem ardendo, sangrando e machucando. É o berro que desenvolvem-se a cada dia é um olhar livre de preconcei-
emana dos morros, guetos e favelas. Vem dos locais mais tos”. Texto retirado do livro “Hip-Hop - A Cultura Marginal”.
pobres, o grito desesperado que vem da periferia. Chega
O que mais dizer senão minhas próprias palavras no
ao asfalto carregado de protesto, indignação, carência,
capítulo de abertura do meu livro, resultado de mais de
vontade, luta, marginalidade.
um ano de trabalho árduo para concluir, com muita difi-
A força que vem do lado negro, pobre, inferiorizado. culdade o curso de jornalismo. Fugindo da generalização
Atinge toda sociedade com sua forma, sua arte e sua cor. de que os jornalistas são elitizados, cá estou, militando
O nome dela é hip-hop e está aí para fazer barulho, deba- pelo hip-hop e gritando, com ardor, o que eu penso sobre
ter as questões controversas de uma sociedade que se o texto da jornalista Bárbara Gancia.
finge de surda para este grito de protesto.
Salve!
Hip-hop é um termo que vai além. Significa cultura, mas
Paz, amor, diversão e união.
também significa movimento, arte, expressão, paz, amor,
soluções, lutas e igualdade de direitos. Jéssica Balbino

O hip-hop é ilustrado por personagens sobreviventes de O número de comentários sobre o texto foi expressivo e o
guerra. Uma guerra diária pela vida. Ele acolhe e tenta de amizades e contatos que fiz, também. A jornalista da
proteger os que já nascem condenados à morte. Persona- Folha continuou com a mesma opinião e eu, com os mes-
gens reais, cercados pela miséria, fome, desabrigo, armas mos sonhos. Entre a polêmica, me dedicava ao jornal
de fogo, tráfico e desrespeito. Em meio a tantas armas que estava trabalhando. Ralava, no mínimo, dez horas
que eles podem escolher no jogo do “matar ou morrer”, por dia e tinha pavor de perder o emprego.
198 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 199

Para me especializar, fiz a inscrição em um curso de exten- Grande mercado, que, quando emprega, escraviza. Tem
são universitária na faculdade existente na cidade. Seria gente que trabalha dez, doze horas por dia, sem falar do
durante quatro sábados das 12h às 18h. Empolgada com horário em que levanta, para pegar as conduções e che-
a possibilidade de aprender um pouco mais sobre antro- gar cedo no trabalho, antes que o patrão olhe feio.
pologia, a disciplina que era carro-chefe do curso, me ins- A capa da revista “Carta Capital” (que pouca gente lê,
crevi e aguardei com total ansiedade o início das aulas. porque é cara, linguagem culta, não fala para o povão) –
e as revistas de fofoca são mais interessantes, nos tiram
Combinei com a editora do jornal que trabalharia até 12h e
da rotina maçante – deste mês traz jovens diplomados
voltaria após às 18h, além de adiantar algumas matérias
que não conseguem emprego. Em determinado trecho da
frias para não deixar ninguém na mão. Mas, no sábado
reportagem, alguns jovens da classe média, atualmente
marcado, logo no terceiro mês de emprego, me descobri
em crise, dizem que não farão estágio, tampouco vão
uma escrava moderna. Com uma raiva que não cabia em trabalhar por um salário de R$ 1 mil. “Isso seria o mesmo
mim e me fazia lembrar e recitar mentalmente trechos que prostituir a minha profissão.” É o que dizem, porque
do livro “Manual prático do ódio” do Ferréz, eu, que já pensar, ninguém pensa mesmo.
havia escrito seis matérias naquele dia para deixar o tra-
Já na capa da “Caros Amigos”, que menos pessoas leem,
balho adiantado e não pude ir no curso por pura impli-
traz a reportagem “Como é a cabeça dos estudantes de
cância e jogos de poder, escrevi para o site Ciranda o
jornalismo”. A resposta está dentro da reportagem. É uma
seguinte texto:
cabeça vazia, alienada e na maioria das vezes, elitista.

Escravidão Moderna Agora eu pergunto, como é a junção da cabeça de um


estudante de jornalismo, com os baixos salários que
Hoje não existe mais escravidão. Será que não mesmo?
pagam aos recém-formados, somada a uma jornada de
Acredito naquilo que chamamos de “escravidão moderna”.
no mínimo dez horas de trabalho diários (isso inclui fins
Ela atinge a todas as raças, negros, brancos, índios ou
de semana), que mora na periferia???
amarelos. A escravidão foi substituída pelo salário, que
nunca dá para o que precisamos. Se chegarmos atra- É, sobreviver ao sistema é difícil. Sou jornalista, recém-
sados no serviço, o patrão olha torto. Com endereço da formada, ganho muito aquém do que eu paguei, com
favela ou da periferia, ninguém consegue emprego. Se muito esforço, por mês na faculdade, trabalho, em
o pé estiver sujo de barro da enchente da noite anterior média, dez horas por dia (sem horário de almoço), paro,
então... Esquece. no máximo, vinte minutos para comer a marmita esquen-
tada, que carreguei dentro da mochila, toda amassada,
As universidade formam milhares de analfabetos todos
no busão lotado. Fico com medo do patrão chegar e brigar
os anos e a mídia continua afirmando que “sobram vagas
porque esquentar a comida deixa todo o prédio do jornal
no mercado de trabalho, o que falta é qualificação profis-
cheirando. Não tenho a menor condição de fazer um curso
sional”. Como é que é mesmo?
de aperfeiçoamento da profissão. Preciso trabalhar, me
Um círculo vicioso. Se o negro está desempregado, não manter. Se for na área, pagam menos, mas gosto do que
consegue pagar para se “qualificar” e consequentemente, eu faço, preciso adquirir experiência no campo prático.
está cada dia mais, fora do mercado.
200 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 201

Queria me qualificar. Paguei um curso que poderia fazer, Gosto bastante do texto porque foi um dos primeiros em
quatro sábados à tarde. Mas eu trabalho no sábado à que pude misturar jornalismo e literatura marginal numa
tarde. Talvez se eu ficasse doze horas por dia durante a mesma fórmula e que deu certo. Eu podia imaginar, mas
semana, adiantando as minhas matérias e mais umas não tinha a certeza de que, mais adiante, muitos textos
quatro horas no sábado, eu conseguiria ir para o curso e construções semelhantes me aguardavam.
sem que meu patrão percebesse ou me xingasse. Arris-
quei. Paguei o curso, relativamente caro, perto do que Poeta do gueto
ganho. Animei-me em conhecer um pouco mais sobre
um determinado assunto. É na área que eu pretendo Hip-Hop, literatura marginal e o sistema são discutidos
mestrado. Fodeu. Meu patrão está descontente. Quer pela escritor da periferia Alessandro Buzo.
um jornal feito só para ele. Estrutura? A gente tem que se Palavras... pedras... duras palavras que mais parecem
virar, no final do dia ele quer matéria polêmica. Sábado à pedras e que ecoam dos lugares mais distantes, lá da
tarde... Fiquei sem o curso, sem a grana e frustrada. Na favela, como um grito ensurdecedor, sem ligar para
cabeça dos estudantes de jornalismo não passa muita regras gramaticais, a poesia da periferia transforma
coisa. Na minha, que já me formei, milhões de questiona- as letras em desabafo, em poesia e recria um estilo: a
mentos, dúvidas, incertezas e uma imensa tristeza, por literatura marginal.
não conseguir sair do lugar, dentro do nosso sistema. Se
“É um tapa na cara do sistema”, afirma o escritor Ales-
estiver animada, à noite vou a um evento de hip-hop, bus-
sandro Buzo, 34 anos, ao se referir ao estilo de escrita
car na minha cultura, marginal, algo que ainda me faça
dos poetas do gueto.
sonhar... E se estiver animada, escrevo uma matéria.
O escritor, que teve seu primeiro contato com a cultura
O texto continua no ar e recebe comentários até hoje. É
hip-hop quando esta chegou ao Brasil, há mais de vinte
normal que pessoas que frequentam o site tenham opini-
anos, é autor de quatro livros independentes no país. O
ões parecidas, sobre luta, desigualdade e escravidão men-
primeiro deles é intitulado “O Trem - Baseado em fatos
tal. Naquele dia entendi que não há parto sem dor e que o
reais”. O segundo, traz o nome que Buzo usa na sua marca
descaso é a melhor arma para que saiam bons textos. e no blog no qual relata seu cotidiano e as indignações
Fui convidada pelos moderadores da “Ciranda” a escre- contra o sistema: “Suburbano Convicto - O Cotidiano do
ver textos com uma periodicidade maior. Topei. Afinal, Itaim Paulista”.
era meu trabalho sendo reconhecido. A partir daí, per- Em 2005, Buzo lançou seu terceiro livro, chamado “O Trem
cebi que havia voltado a escrever como deveria ser. Com - Contestando a versão oficial”. Em 2007, lançou “Guer-
a alma, com o coração, com a experiência da quebrada. reira”, o primeiro romance de uma série de fatos reais e,
por último, em 2008, o “Favela Toma Conta”. Quando ques-
Como uma manifestação de amizade ao Buzo, após as
tionado sobre a maior dificuldade em ser um escritor mar-
brigas por conta da entrevista numa revista, resolvi fazer
ginal, Buzo afirma: “Minha maior luta é conseguir vender
uma matéria com ele e soltar no blog, no “Ciranda” e muito
os livros de mão em mão, de mano em mano.”
tempo depois ela também entrou no jornal como parte de
uma série especial que criei.
202 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 203
204 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 205

No entanto, ele conta, feliz, que o livro “Guerreira” será blogs ligados ao hip-hop e atuo, também, como repórter
relançado no meio deste ano por uma editora grande, colaborador para a revista Rap Brasil. Tento ajudar de
com distribuição nacional nas livrarias. Fora os trabalhos várias formas”, conta.
independentes da literatura, Buzo participou de coletâ-
neas como “Rastilho de Pólvora - Antologia poética do E no dia a dia...
Sarau da Cooperifa” e “Literatura Marginal - Talentos da “Meus contos são ficção, mas sempre relatam histórias
escrita periférica”, organizado por Ferréz. que poderiam ter acontecido. Vejo acontecer parecido na
minha quebrada”, informa Buzo, quando questionado a
Informação é fundamental
respeito de como é a literatura marginal que ele produz,
“Hoje, 90% do que eu ouço em casa é rap nacional, desde e diz ainda: “Me baseio no meu cotidiano, passo para o
que me envolvi mais com a cultura, passei a promover papel as dificuldades do dia a dia”. Para o escritor, a lite-
eventos, vender shows de grupo, só depois de pesquisar ratura marginal assusta o sistema, porque segundo ele:
e me informar sobre o movimento através de jornais e “A elite pensava que não sabíamos nem ler e, agora, esta-
revistas é que eu virei escritor”, conta Buzo, lembrando mos escrevendo livros. Só tem conhecimento quem pisa
que a boa informação dentro do hip-hop é fundamental. no barro, quem sobe e desce o morro, quem atravessa
suas vielas. Acho que a literatura marginal é importante,
Ao referir-se ao real significado da cultura, o escritor,
porque a cena está forte e não é só modinha.”
que dedica-se a vários eventos e projetos sociais,
afirma que a palavra que lhe vem primeiro a mente é ati- Buzo, atualmente, tem uma rotina tranquila, um pouco
tude. “Quem é do hip-hop não fica rebolando a jaca nem diferente até do que da maioria dos moradores do Itaim
ouvindo modinhas, são jovens mais instruídos”, afirma. Paulista. “Acordo cedo, passo a manhã com minha esposa
e meu filho de sete anos, pois gosto de tomar café em
Dentre os trabalhos atrelados ao hip-hop, Buzo conta
casa, tranquilamente, com eles. Depois vou trabalhar
que promove o evento “Favela Toma Conta”, que já teve
na DGT Filmes, uma produtora de vídeos, onde faço o
11 edições, em que grupos de rap, famosos da cena pau-
horário de 12h às 19h. No meio tempo, escrevo minhas
listana como o extinto RZO, De Menos Crime, Thaíde,
colunas, atualizo meus blogs e faço palestras e oficinas.
DMN, Expressão Ativa, Tribunal MC’s, Cabal, entre outros.
Assim é meu dia a dia”, relata o autor, que diz adorar
“Geralmente são festas na favela, sem cobrar ingressos. O
música, cinema e leitura, mas “detesto orkut, programas
objetivo é promover o entretenimento para a periferia”, diz.
de fofoca, novelas, reality shows, falsidade e gente que
Através do conhecimento, o 5º elemento do hip-hop, só reclama”, desabafa.
incorporado na cultura posteriormente, pela Universal
Zulu Nation, Buzo montou uma biblioteca comunitária no Dos problemas e soluções
bairro onde mora, a fim de levar informação e entreteni- “A elite precisa entender que não dá para se morar em um
mento, através da literatura, para as crianças e jovens palácio ao lado de uma favela, então, é utopia acreditar
carentes do Itaim Paulista, Zona Leste da cidade de São no fim da desigualdade social”, afirma Buzo, convicto. O
Paulo, onde vivem 320 mil habitantes. “Pelo 5º elemento escritor não vê o fim da desigualdade social no Brasil,
eu também participo como colaborador de vários sites e alegando que ela sempre existiu, mas acredita em uma
206 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 207

redução. “Precisamos de programas de distribuição de festivais de hip-hop, de dança, as batalhas, novamente


renda, de empregos com melhores salários”, reivindica. e sempre levando um pouco do meu trabalho. Os poucos
Durante a entrevista, Buzo é questionado sobre a notícia exemplares do livro que tinha, sempre pedia que anun-
publicada pelo jornal Folha de São Paulo que dizia que ciassem em sorteios ao final das competições. O bacana
mendigos da Praça da Sé serão retirados do local durante era ver a cara de espanto de muitos jovens da periferia
a visita do Papa Bento XVI ao Brasil e afirma: “Acho que de Poços de Caldas ou das cidades vizinhas, que vinham
deveriam tirar os mendigos não só da Praça da Sé, mas em excursões para as competições. Eles sempre excla-
de todo o Brasil e levá-los para lugares limpos, onde eles mavam: “Puxa! Existe um livro sobre hip-hop. Foi escrito
possam retomar suas vidas e não só tirar porque o Papa por alguém do nosso meio.”
vem, porque o Bush vem e depois devolvê-los para as
Toda lisonjeada eu fazia questão de parar para conver-
ruas, sem nenhuma perspectiva de vida”, reflete.
sar, cumprimentar, além de sempre acompanhar quando
Para ele, a saída dos problemas sociais seria mais estudo alguém subia no palco e lia um texto, sempre alguns dos
e leitura. “O povo tem que parar de se alienar através da antigos, dos produzidos na época na faculdade sobre
TV e ler mais, o hip-hop é uma porta para isso, pois é uma jornalismo e outros sobre periferia, dos que havia guar-
cultura que vive constantemente em movimento. É a cul-
dado. Diferente e inspirador. Assim eu via os textos
tura dos favelados e não vão tomar o hip-hop da gente,
sendo lidos e o pessoal, sempre na plateia, observando
ele é nosso”, diz.
e se perguntando de onde surgira aquela novidade.
Planos para o futuro Mesmo quando eram eventos pequenos, com pouco
Sem nunca parar, o escritor está abrindo uma loja, mais de 100 pessoas, eu ficava encantada por partici-
Suburbano Convicto, e diz que terá mais um “corre” no par. Por um lado eu gostava de estar rodeada pela cul-
cotidiano, além de estar se dedicando a um novo livro, tura e por outro porque era uma chance de divulgar o livro
com o título provisório de “Profissão MC” e a um outro, e alguns textos. Ainda sem um movimento específico,
praticamente pronto: “Do conto à poesia”. minha cabeça não parava de fervilhar de ideias.
Tudo isso sem deixar de lado as palestras e oficinas Mais rápido do que imaginava, minha pequena obra se
sociais, sempre disseminando a cultura hip-hop na tornou conhecida e alguns eventos beneficentes do
cidade de São Paulo e em todo país. Ao deixar uma men- bairro passaram a me convidar para aberturas e para
sagem, Buzo é direto: “Desligue a TV e leia um livro.” ler alguns textos, que sempre versavam sobre os menos
Era chegada a hora de procurar os eventos e iniciar o favorecidos socialmente. Conciliando com o trabalho no
que já estava planejando há tempos. Voltar a ler os tex- jornal, que, de alguma maneira, também rendia alguma
tos de literatura marginal nos intervalos dos shows. popularidade, eu podia frequentar os eventos e somar,
Com muito mais propriedade do que quando o meu apresentando sempre algumas pequenas frases rela-
primeiro texto foi lido em uma roda de amigos de uma cionadas à periferia.
crew ou em um evento de bairro, passei a frequentar os
Oficinas

Em roda, uma meia dúzia de alunos esperava, de forma


dispersa, que alguém começasse a lhes falar sobre lite-
ratura – talvez uma das matérias que eles menos gos-
tassem por ter de ler e escrever, hábito muito distante
da realidade na periferia.
Sem expressão de contentamento, eles me receberam
pela primeira vez, desde que propus ao diretor da ins-
tituição de ensino algumas oficinas voluntárias àque-
las crianças e jovens sobre literatura. Claro que, para
não assustá-lo e colocá-lo no pano do preconceito, não
revelei, logo no início, que era uma oficina sobre litera-
tura marginal/periférica.
Com o livro nas mãos, era impossível disfarçar o nervo-
sismo e tudo que havia pensado para falar parecia um
ponto distante naquele momento. Não sabia como enca-
rar, pela primeira vez, aqueles alunos que pareciam não
estar gostando nem um pouco de estar ali, aguardando
uma manifestação minha. O pior era quebrar o silên-
cio. Não havia nem um zunzunzum para eu esperar ou
mesmo relembrar a programação mentalmente.
Devagar e improvisando – como as melhores coisas
acontecem – me apresentei e expliquei o porquê de estar
ali. Li o texto de introdução do livro e me senti lendo em

208
210 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 211

voz alta no meu quarto. Nenhum murmúrio. Propus uma alguns textos do livro e alguns materiais colhidos nas
roda e um bate-papo. Cansei de ouvir minha própria voz. pesquisas, como textos em revistas, letras de musica e
A sensação era de que os garotos queriam testar minha histórias de personagens reais do hip-hop.
vontade e disposição de voluntária para lhes apresentar
Quando passei a falar a linguagem deles fui aceita de
à literatura feita nas quebradas.
forma melhor e quando lhes mostrei o texto “O homem
Com a persistência nata de quem vem do gueto, man- do gueto”, muitos passaram a se interessar. A oficina
tive o sorriso no rosto e a mesma garra com a qual ide- era básica. Líamos, numa roda formada, os textos que
alizei utilizar o hip-hop para mudar vidas. Mudei a abor- levava e discutíamos alguns aspectos. Na sequên-
dagem e contei uma história pessoal. Notei uma leve cia, lhes passava algumas atividades e perguntas para
mudança de expressão. O tempo da oficina daquele serem respondidas em casa e levadas na próxima vez.
mês estava acabado.
Mesmo com as dificuldades do espaçamento das ofici-
Foi assim que comecei e, logo na primeira vez, me senti nas, o saldo estava sendo positivo. Pelo menos comigo,
não exatamente triste, mas decepcionada, porque os todos eles mudaram a postura e se mostraram mais
estudantes não se mostraram exatamente empolga- interessados. Claro que isso aconteceu de forma grada-
dos. Não tive muito tempo para chorar e, tampouco, tiva, quando fui mostrando que já havia enfrentado as
alguém para me consolar. No meu universo de conví- mesmas dificuldades financeiras, os preconceitos, mas
vio, as pessoas que estava lidando achavam loucura eu sempre com uma diferença: a de gostar de ler e escre-
perder o pouco do tempo livre que tinha com garotos ver. Algum tempo depois um garoto trouxe um pequeno
que, segundo elas, não tinham qualquer futuro, e tam- texto. Devia ter umas oito linhas e falava sobre o pai
pouco interesse pela literatura, mesmo que ela fosse bater na mãe, mas escrito de uma forma bem sutil, então
ligada a uma cultura marginal. o incentivei a escrever mais e, exceto pelos erros grama-
ticais, que até eu tenho, aos montes, ele estava escre-
Como vim de onde eles estavam julgando e talvez, em
vendo muito bem.
algum momento, tenha sido também uma estatística ou
alguém que, para eles, não deveria estar estudando ou Sem que eu, os professores ou mesmo aqueles jovens
mesmo apreciando a leitura, dei a cara para bater e con- percebessem, a literatura já havia tomado parte na vida
tinuei, sem esmorecer. deles e o velho estigma de que o brasileiro não gosta
de ler estava sendo deixado de lado. Por serem inician-
Na segunda vez, passei a notar que o motivo da falta de
tes, além dos textos que distribuía, sempre retirados de
interesse era muito além das oficinas que eu propunha.
livros do Ferréz, Sérgio Vaz, do blog do Buzo ou ainda que
A escolha de quem iria participar era feita de acordo
eu mesma havia escrito, gostaria que eles lessem muito
com aqueles que se recusavam a assistir as aulas e cau-
para as próximas oficinas e fiquei bem feliz por ver que
savam algum tipo de transtorno na escola, então eram
a sugestão que dei, adequada para a idade deles, foi a
obrigados a ir, uma vez por mês, no período noturno,
coleção do Pedro Bandeira, autor brasileiro que trazia
assistir a uma oficina. De forma simples, comecei com
a história de um grupo de adolescentes aventureiros e
212 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 213

acostumados a resolver problemas incríveis, chamados No jornal, em curtos períodos, matérias sobre volunta-
“Os Karas”, que tinham uma garota como parte do grupo, riado e pessoas que praticavam o bem em comunidades
foi bem aceita. carentes eram frequentes e foi durante uma entrevista
que descobri uma associação em outra parte da minha
Quase todos conseguiram pegar, na biblioteca da pró-
quebrada.
pria escola, os livros do Pedro Bandeira e pela história
ser também próxima da realidade, passaram a discutir No Jardim Kennedy II, uma senhora mantinha uma sede
entre si e, assim, chegaram com a novidade: onde mães aprendiam tricô, crochê e pintura em panos
— Olha, dona. Você falou que ler é bom e, realmente, é mesmo.
de prato, tendo a chance de aprender algo e ampliar a
Estamos nos sentindo os Karas dos livros, tem mais alguma renda familiar, ao mesmo tempo em que os filhos fica-
indicação, é? vam como monitores, recebendo aulas de capoeira ou
dança. Propus a ela um evento pequeno de hip-hop, tal-
Puxa, já não cabia mais nos meus 100 quilos, de tanto
vez em um domingo – quando tinha mais tempo – e as
orgulho e felicidade. Eles, que nunca haviam tido inte-
opções de lazer e ocupação para as crianças eram nulas.
resse por qualquer tipo de leitura, estavam me pedindo
sugestões. O bacana mesmo era observar que aqueles Organizei, junto com os amigos da antiga, um evento
jovens, até então sem qualquer perspectiva de futuro, pequeno. Apenas um minishow dentro da sede com
estavam adquirindo senso crítico através da leitura, for- alguns textos lidos e distribuídos. O ponto alto foi quando
mando a própria vida com caráter e humildade, além de dois dos garotos da oficina apareceram no local, con-
muita coragem para seguir adiante, vencendo as dificul- ferindo o que estava acontecendo e me reconheceram
dades diárias do submundo periférico. nessa ação. De repente, senti que um resultado, mesmo
que pequeno, estava surgindo, sem qualquer exigência.
A vida é mesmo engraçada. Nestes momentos que eu
lembrava de palavras de agitadores culturais que sempre
me incentivaram. Eles diziam que, com pouco, podemos
fazer toda a diferença e bastaram poucas oficinas para
que aquela meia dúzia de garotos com comportamento
ruim estivessem dedicando boa parte do tempo à leitura.
Em outro encontro um deles veio me contar que tinha
encontrado um livro do Ferréz na biblioteca da região,
onde ele havia feito uma ficha para empréstimo, e que
estava tentando ler e entender mais. Percebi que a lite-
ratura tinha ganhado a quebrada e ambas nunca mais
seriam as mesmas. Pequenas conversas como estas me
faziam ter mais ânimo de prosseguir e, por ser uma pes-
soa do bairro, talvez tenha facilitado também as coisas.
214 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 215
No ar: o hip-hop 217

pesarosa por aqueles que não sabiam ler, que eram


Uma letra, um beat analfabetos e não entendiam o propósito do livro, não
acreditei quando recebi o convite. É claro que eu topei
na hora. Era mais uma oportunidade de divulgar o traba-
lho de uma forma não escrita e que daria a mais gente a
opção de entendimento.
Uma vez autorizado, ele me manteve informada sobre
o andamento do CD, da gravação, da escolha de outras
músicas e sempre contando episódios sobre a própria
vida e novas descobertas feitas através do hip-hop e
Vendendo meu próprio peixe, colocava tudo que podia da literatura, que ele começou a tomar gosto. Sem que
na internet e através de sites, blogs e comunidades do eu percebesse, ficamos amigos. Claro que apenas vir-
orkut, além dos amigos, fazia questão de propagar o meu tualmente, até aquele momento, mas um elo foi criado e
livro. Não me lembro como, mas ele chegou ao conheci- graças a essa cultura, que vem dos locais mais pobres,
mento de Bruno, um garoto da minha idade, que vive em que está sempre à margem e que congrega tanta gente.
Belo Horizonte que me pediu que lhe enviasse o texto O Bruno é um amigo entre os muitos que fiz ao longo da
em pdf. Assim o fiz e ele me escrevia todos os dias para estrada, sempre na cultura periférica.
dizer como o hip-hop era bom para ele e como ele estava
crescendo após ler um pouco mais sobre o surgimento e
propósito da cultura.
Os e-mails se tornaram mais longos ao passar dos dias
e, quando ele me perguntou sobre a outra autora —
Anita —, eu lhe contei de forma resumida toda a histó-
ria. Notei que ele se entristeceu e, mais uma vez, ouvi a
frase que pontua toda esta caminhada: o hip-hop salvou
a minha vida. E me disse que fez ele enxergar com outra
perspectiva o futuro e não se aliar às drogas, apesar dos
convites, que tanto ele como eu sabemos que chegam
aos montes e quase diariamente.
MC do grupo Elemento.S, que, na ocasião, estava come-
çando, ele me pediu autorização para gravar o texto
de abertura do livro. O objetivo era transformá-lo em
introdução para o CD do grupo. Como eu sempre ficava

216
No ar: o hip-hop 219

de tudo, trabalhar com literatura de forma voluntária e


Sacolinha, ainda, editar meu livro de forma independente. A troca
de ideias me trouxe mais um amigo de literatura, de

vídeo-documentário resistência, de movimento, de futuro.


O Sacolinha foi uma pessoa que me deu total apoio e

e TCCs em agradecimento, fiz uma resenha bem bacana sobre


o livro “Graduado em Marginalidade” e publiquei no site
“Leia Livro”. Ganhei um incentivo a mais, para me tor-
nar, quem sabe, crítica da literatura marginal, avaliando
talvez as histórias escritas por quem é massacrado nos
ônibus, em casa, nas bebidas, na panela vazia, no bolso
Ele era cobrador de lotação e, para passar o tempo, furado e na janela sem esperança. Pensei sobre isso e
começou a ler dentro do trem entre Suzano e São Paulo. continuei a ler , recebendo com enorme carinho os mate-
Com pouco mais de 20 anos já tinha o primeiro romance riais de Suzano que ele me mandava, como livros edita-
escrito e renovava, também, a cena da literatura peri- dos através de programas da cidade, revistas e mate-
férica do país. De codinome curioso, Sacolinha chamou riais de autores também iniciantes.
minha atenção através de um blog e de uma entrevista
Minha maior surpresa – e satisfação – é que eu já não
para uma revista. Embora não se considere como autor
tinha mais exemplares, dos poucos que fiz, do meu pró-
marginal ou periférico, despertou meu interesse pelos
prio livro para distribuir, doar, vender, enfim, fazer nada e
livros que ele mesmo escreveu.
mesmo assim, o trabalho era reconhecido e cada dia mais
Através do contato que alguém me conseguiu, escrevi pessoas chegam até mim em busca de informações sobre
para ele, que me passou o telefone e travamos contato hip-hop, ora para fazer trabalho, ora por curiosidade.
em tempo real. Ele me explicou como fez para editar o
Uma das pessoas que chegou até mim, também em
primeiro romance “Graduado em Marginalidade”, que
busca do livro para usar no TCC, foi a Érica Guimarães,
traz uma história de lugar-comum, mas de forma com-
na época, estudante de jornalismo em Campinas. Junto
pletamente diferente. Um dos críticos o considerou um
com uma turma ela estava fazendo um vídeo-docu-
enxadrista, pelas sacadas geniais do texto e o xeque-
mentário sobre hip-hop para o TCC e me pediu o texto
mate da narrativa. Assim o vi também, e me apaixonei
do livro para servir como referência bibliográfica. O
pelo texto, pelo blog, pela história de vida e pela ami-
mais engraçado é que, quando ela me mandou o texto
zade. Mais uma travada através da internet e que só veio
pronto, eu comecei a ler e reconheci uma frase, sem dar
a somar para as minhas vontades e iniciativas.
conta de que era minha mesma, retirada do livro, numa
Agitador cultural e disseminador da cultura no Brasil, atra- das contextualizações sobre o rap.
vés de e-mails e envio de materiais, Sacolinha me ensi-
nou como eu poderia, de repente, mesmo à contramão

218
220 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 221

Imensurável o tamanho do orgulho que senti, por ver


meu trabalho, mais uma vez, sendo utilizado de forma
positiva e acadêmica. A minha tristeza foi não ter mais a
Anita por perto para dividir o momento. Mas, como a vida
segue, logo na sequência, um outro grupo de estudan-
tes solicitou minha amiga para responder algumas per-
guntas sobre o hip-hop. Mandei o livro, mas não adian-
tou. Eles tinham pressa de montar um documentário e
queriam algo de forma mais resumida. Fiz isso para eles
e, daí em diante, os convites para gravações em novos
documentários e os pedidos de livros não pararam de
chegar. Era a revolução acontecendo, pelo menos, ainda
que de forma modesta, na minha vida.
No ar: o hip-hop 223

me ensinaram muito sobre a arte do radiojornalismo. O


Mixando Edu foi um grande professor e muito do que sei hoje na
prática, eu devo a ele.
Logo nas primeiras semanas da nossa parceria, fui com
ele até a rádio gravar uma entrevista e um dos apresen-
tadores do programa da FM estava atrás de um jorna-
lista para participar como convidado do dia. Como o pro-
grama durava até às 13h e invadia o horário de almoço do
Edu, ele passou a bola para mim e disse que eu me sairia
muito bem no programa – Mix 104+ – que reunia infor-
Um assunto bom, novo, que chame atenção, renda inte- mação e bom humor.
resse e se transforme em venda de jornal, de espaço Sempre dada aos desafios profissionais, topei no ato
publicitário na rádio e que nos deixe com a sensação de participar e a pauta ficou em torno do meu trabalho como
dever cumprido. Este é o desafio diário de ser jornalista. recém-formada e mais, a minha atuação com o hip-hop.
A notícia fica velha com uma rapidez incrível e encontrar Pude, em uma segunda vez, na mesma rádio, contar
coisas novas, a todo o momento, é uma tarefa incrivel- um pouco da minha trajetória, dos meus objetivos e do
mente árdua e absurdamente prazerosa. trabalho que desta vez estava ainda mais consolidado.
Com poucos meses de trabalho no jornal, fiz amizade Exemplos vividos nas oficinas, trechos do livro lidos
com grande parte da imprensa local. Algumas pessoas durante o programa e inúmeras perguntas marcaram
eu já conhecia da época da faculdade, então, somando a minha primeira participação no quadro. Enquanto eu
forças, formei uma parceria com o jornalista Eduardo dava a entrevista no programa de duas horas, o apre-
Correia, que trabalhava na Rádio Difusora e, também, sentador Francis, que mais tarde se tornou um grande
na TV Plan, duas empresas de um mesmo grupo e com amigo e incentivador, lia alguns textos e eu fiquei impres-
parceria com o jornal em que eu estava. Assim, saíamos sionada com o poder do rádio. O programa permitia par-
juntos no carro da rádio todas as manhãs para fazer as ticipações ao vivo e muita gente ligava querendo saber
matérias. O mínimo eram três matérias, algumas vezes onde comprar um exemplar ou como fazer para implan-
conseguíamos mais, outras menos. A união tornava a tar oficinas, conhecer mais, enfim.
prática do ofício ainda mais estimulante. Prometi outras participações e a Neusa, que trabalhava
Também, na mesma rádio, trabalhava a editora do jornal. lá e editava o jornal, disse que não me deixaria escapar
Pela manhã ela fazia produção na emissora e apresen- tão facilmente das programações. Na semana seguinte
tava um programa na FM e à tarde, editava o jornal. Como fui novamente convidada para participar do programa,
estava sempre com o Eduardo, quase todos os dias pas- desta vez para ajudar a entrevistar uma pessoa. Fiquei
sava pela rádio e foram momentos fundamentais, que bastante lisonjeada. Eu não ganhava nada para estar
lá e, na maior parte das vezes, sacrificava o horário de

222
224 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 225

almoço e ainda tinha que almoçar em restaurante, o que estar envolvidas com outras atividades e ele não atra-
descontrolava o orçamento, mas, mesmo assim, era palha em nada, além de ser super dinâmico – é possível
muito bom poder falar para um grande número de pes- entrar ao vivo, pelo telefone ou celular, de qualquer local
soas e fazer parte do programa mais ouvido da rádio. e passar uma informação em tempo real – e ter uma lin-
Durante a segunda participação também pude falar guagem coloquial, entendível por qualquer pessoa, seja
mais sobre os projetos sociais das oficinas, eventos de ela alfabetizada ou não. Enquanto ele é tudo isso, o jor-
hip-hop e mais sobre o livro, a experiência de vivenciar e nal impresso é mais profundo, mais detalhista, com uma
reportar esta cultura marginal e também, como era ser notícia mais apurada, mais firme, mais consistente: um
repórter recém-formada e tudo mais. Eram duas horas documento.
que passavam tão rapidamente que eu ansiava por
Foi uma época de muito encanto, quando podia me
novos convites.
envolver com as duas atividades e me deliciar com
O pessoal da rádio gostou das minhas participações e cada uma delas. Eram dias de muito trabalho e super
apenas alguns dias depois a Neusa me convidou para lotados de afazeres, entretanto, eu tinha de fazer tudo
fazer parte de um programa matinal da AM que tinha o naquela época. Várias vezes, no Mix, o Francis me dei-
nome de “Debates Populares”, quando assuntos daquele xou ler textos meus, feitos recentemente, ao vivo, além
dia eram postos em pauta e discutidos com jornalis- de divulgar textos em blogs, sites, no jornal e sempre
tas, políticos, apresentadores, populares. Tinha quinze comentar das oficinas.
minutos de duração e era apresentado pelo Ricardo Luiz,
Pelo MSN, onde mantínhamos contato direto, sugeria
locutor, ex-dançarino de street dance – começou no hip-
entrevistados e pautas e sempre puxava sardinha para o
hop no início dos anos 1990, assim que ele chegou na
lado do hip-hop, claro, como quando pude levar, pela pri-
cidade – e, também, gerente geral da rádio. Pelo ponto
meira vez, o UClanos para participar do programa e tocar
em comum – a cultura hip-hop – também nos tornamos
ao vivo algumas das novas composições do grupo. Outra
colegas e eu passei a participar, ao menos uma vez, dos
vez foi quando Francis me ligou desesperado pedindo
“Debates Populares”.
que eu participasse do programa que iria um grupo novo
Com participações simultâneas na AM e FM da rádio, de rap na cidade e que ele queria alguém que entendesse
fiquei um pouco mais conhecida na cidade, o que faci- para entrevistá-los.
litou as minhas incursões em outras escolas, centros
Após este programa, a dona de uma autoescola que fica
comunitários e bairros para pequenas oficinas, mesmo
em frente ao estúdio da rádio conseguiu meu telefone
com um único dia ou período de duração, mas que, pelo
pessoal no jornal e me ligou pedindo o contato do grupo,
que podia observar, transformavam a realidade daque-
que fez uma música que se trata de um alerta sobre
las crianças e jovens.
o trânsito e a direção perigosa e ainda fez questão de
Sempre acreditei – e já mencionei aqui – que vejo o rádio comprar um livro, me fazendo prometer que quando eu
como o veículo de comunicação mais democrático que lançasse um segundo, guardaria um exemplar para ela.
existe, pois enquanto as pessoas ouvem o rádio podem
226 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 227
228 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 229

O reconhecimento do rádio também era uma coisa que Quando eu ia sozinha, no período da tarde, entrevistar
me deixava bastante feliz. Por ser tão abrangente, muita alguém, no outro dia passava esta entrevista ao Edu e
gente ficava se perguntando como eram as pessoas que elas iam ao ar, com as minhas perguntas, intervenções
atuavam lá. O Francis, a Neusa, outros apresentado- e com a minha voz.
res e até eu mesma e quando descobriam orkut, MSN,
Outro fator positivo era a popularidade concedida pelo
e outras ferramentas virtuais, não paravam de escrever
rádio, que me impulsionava ainda mais a buscar outros
querendo ver pessoalmente e tudo mais. Aí então per-
trabalhos voluntários e sempre ligados à cultura marginal.
cebi o valor e a responsabilidade das informações.
Minha parceria com o Edu continuou, estávamos sempre
juntos, fazendo as matérias pela manhã e tentando pra-
ticar um jornalismo responsável no município, quando,
numa segunda-feira bem cedo, meu telefone toca.
— Alô.
— Jéssica. Bom dia. (reconheci a voz bem impostada de
locutor de rádio).
Interrompi:
— Fala Francis! O que você manda?
— Você pode me salvar? A Neusa está doente e não
vem trabalhar hoje. Estou desesperado, não sei fazer o
programa sozinho.
— Claro, pode contar comigo. Às 11h, estarei aí.

E assim foi. Cheguei na rádio também ansiosa, afinal,


eu sempre participava ajudando nas entrevistas, mas
nunca havia sido âncora. Tomei coragem e fomos para
o estúdio. No ar o programa fluiu tranquilamente e ao
término conseguimos arrancar elogios dos donos da
rádio. Embora eu não ganhasse um só centavo por estas
participações e tudo mais e muita gente me criticasse,
achando que eu deveria cobrar ou então abrir mão, eu
ganhava bem mais que isso. A experiência em traba-
lhar num programa de entretenimento ou de participar
de debates era algo incrível. Nenhum dinheiro pode-
ria pagar tudo que eu estava aprendendo. Aos poucos,
fui também arriscando algumas matérias para a AM.
No ar: o hip-hop 231

por ver que eu era a segunda mulher do livro. Além de


Pelas periferias mim, do sexo feminino havia apenas a Mary do Rap, do
Rio Grande do Sul.

do Brasil Curiosa por conhecer cada um dos outros 12 autores de


outros seis Estados do país, passei a responder alguns
e-mails e tentar firmar amizades. É incrível como a afi-
nidade virtual acompanha a da vida real e cada pessoa
reagiu de uma forma, mas todos me escreveram. Minha
maior curiosidade era saber, por meio dos textos, como
Entre pautas, e-mails, MSN, telefone tocando e gente
era a periferia e a vida de cada um. Alguns prazos foram
berrando, numa cena típica de qualquer redação de jor-
dados para envio dos textos e também das fotos (com
nal do Brasil é que eu recebi, de forma bastante natural,
qualidade) para compor o livro, uma vez que cada autor
o convite para participar da coletânea “Suburbano Con-
teria o rosto estampado antes dos textos.
victo – Pelas Periferias do Brasil”.
No prazo final, mandei os textos, paguei a pequena par-
Era o início do projeto e o Buzo me disse ter gostado de
ticipação de cada um e aguardei a resposta, quando veio
alguns textos meus que circulavam na rede e queria que
um e-mail do Buzo lamentando e dizendo que faria de
eu somasse ao livro. Quase sem reação – mas explo-
tudo, mas que outra parte da organização estava bar-
dindo de felicidade – aceitei no ato e pensei em como
rando meus textos. Fiquei tão desnorteada que nem
a vida é engraçada. Poucos meses antes eu estava tro-
lembro direito o motivo. Talvez fosse porque os meus
cando farpas com ele via internet e agora ele me con-
projetos sociais fossem espaçados e não tivessem ainda
vidava para participar de um livro que seria mais um
um nome específico. Apesar das oficinas e eventos que
ponto de mudança na minha existência. A regra para
eu participava como idealizadora e tudo mais, talvez não
participação era morar na periferia, estar envolvida, de
fosse suficiente para aprovação para ter o nome do livro.
alguma maneira, com a cultura marginal e ter ou parti-
cipar de algum projeto social, além de ser iniciante no Três dias depois – de pura agonia durante a espera – Buzo
mundo da literatura, ou seja, não ter nada publicado me mandou um novo e-mail, dizendo que havia batido o
por alguma editora grande. Inicialmente eu atendia os pé – e na mesa também – praticamente exigindo a minha
requisitos e estava dentro. participação e apoiado no meu texto “Olhar para o hip-
hop que ...”, feito para a introdução do livro-reportagem
O desafio era produzir ou usar textos já feitos, mas que
“Hip-Hop – A Cultura Marginal” e que ele havia gostado,
versassem sobre o tema que eram as periferias. Quanto
por isso, se tornou parte do Suburbano e, também, com
mais perto da realidade da própria quebrada, melhor.
o texto “Será mesmo uma ironia”, produzido com base
Aos poucos o Buzo montou uma lista de e-mails coletiva
numa charge do Angeli que toda a turma de jornalismo
que era praticamente um fórum, onde todos escreviam,
do 4° ano, isso na época da faculdade, devia analisar e
perguntavam e trocavam mensagens. Fiquei surpresa
escrever um texto sobre. Inspirada pelos textos da revista
“Caros Amigos” naquela época, produzi o seguinte:
230
232 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 233

Será mesmo uma ironia? Do lado de lá, no asfalto, a “burguesia” delicia-se com o
fato irônico, tentando explicar como ele foi descoberto,
Casas sem reboco, dependuradas nos morros e encostas,
contanto piadas acerca da situação. A imprensa adora,
vielas sujas e abandonadas, o mau cheiro dos esgotos a
é mais sangue estampado na primeira página. É uma
céu aberto misturam-se com o mau cheiro da violência.
branda denúncia ao sistema?!
Milhares de crianças estão sem escola, envolvidas com o
tráfico de drogas. A violência é generalizada. Exploração A solução? Ninguém conhece. Se conhece, desconhece.
do trabalho. Subemprego, ônibus, trens e metrôs. Chaci-
O menino que queria o campo de futebol prometido sonha
nas e invasões policiais.
a noite, com uma bola nova, um par de chuteiras, e um
Este é o retrato da senzala moderna, mais conhecida campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de espe-
como favela, periferia ou gueto. Crianças estão jogadas, rar, crescer para poder virar ladrão, traficante e respei-
largadas por todos os cantos, tentando fazer do duro e tado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele não
sofrido dia a dia algo mais leve e alegre. Os campinhos de morrer e cair na cova de mais um cemitério que poderia
futebol estão presentes em toda parte, na terra batida, virar quadra esportiva.
com traves improvisadas e bolas roubadas.
E mesmo contra a vontade de alguns, eu pulei para o
“— Aqui não era para ser um campo de futebol?” pergun- lado de dentro do muro. O próximo passo era aguardar
tam alguns garotos ao se depararem com um cemitério a impressão e acompanhar os passos por e-mail. O fei-
clandestino no meio da favela. tio da capa. Cada autor também deveria responder uma
Sim, a sociedade promete, a elite ironiza, e a guerra con- entrevista para o Buzo, que iria para o site Buzo Entre-
tinua. A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco vista e em uma das principais perguntas, sobre como
de quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo, estava sendo participar da coletânea, eu disparei: “Só
como indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas é positivo” e ainda pontuei ser por conta dos amigos fei-
desesperadas, de quem já previa o futuro do filho. tos, a chance de praticar a profissão e também de fazer
bons e grandes amigos. E foi justamente isso que ficou,
A cena é típica em qualquer “submundo” brasileiro. E, por
até porque os 30 exemplares recebidos por cada autor
mais que os habitantes dos morros gritem por socorro, a
resposta vem como um tiro de fuzil, disparado por poli-
acabariam rapidamente, mas as portas abertas e os
ciais, toda semana na quebrada. contatos feitos seriam por toda jornada.

Aliás, a polícia e a sociedade matam mais do que a AIDS. E assim foi. No dia 25 de setembro de 2007 – data do
Uma situação irônica? Acho que mais triste e desespera- aniversário do Buzo – estava marcada a festa de lan-
dora do que qualquer outra coisa. çamento na Ação Educativa, em São Paulo. Tudo era
novidade. Embora os autores marginais estivessem lan-
Que futuro tem a criança que dribla a bola em meio aos
çando livros com uma frequência cada vez maior, ainda
corpos caídos na favela? Pelos becos e vielas também
não era semanalmente e o lançamento fez um pouco de
há outros, esperando uma vaga no novo “cemitério” que
está sendo construído.
barulho e chamou atenção.
234 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 235
236 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 237

Antes de ir comuniquei aos garotos das oficinas e todos anos e uma amiga que conhecia pela internet há exatos
ficaram muito orgulhosos, afinal, o que eu falei logo nos dez anos, com quem já havia trocado todo tipo de confi-
primeiros encontros estava realmente acontecendo e dências, mas nunca tinha visto pessoalmente.
era época de colher os frutos e um trabalho bastante
Em uma noite cheia de primeiros encontros e também
árduo. Para faltar ao emprego, tive de deixar matérias
reencontros, me lancei ao fundo de mim mesma e reen-
frias prontas e pedir, meses antes e com muito jeitinho
contrei minha essência, meus sonhos, minhas verda-
ao meu patrão, que eu sabia, não gostaria que eu fosse.
des. Nos olhos de cada um dos participantes que sei que
Não havia como não ir.
estavam ali após um dia duro de trabalho e que, mesmo
Emoção. Assim pode ser resumido, seguramente, um assim, estavam produzindo literatura, e falavam de suas
dos dias mais felizes da minha vida. Entre muitos livros, vidas por meio dos livros. Registravam com palavras,
revistas e publicações de todos os cantos do Brasil, eu poesias e lançamentos de livro nossa história de guerra
deixei a sede da ONG Ação Educativa mais de 0h, acom- urbana, civil, de opressão e descaso. Encontrei-me com
panhada pela minha família e com a alma leve. Eu havia o povo que quero ao meu lado e em que acredito. Per-
conseguido e o livro “Suburbano Convicto” estava publi- cebi o tipo de trabalho que queria fazer e a urgência com
cado, pronto para ganhar as várias periferias brasileiras. que isso precisava acontecer na minha quebrada. Fiquei
emocionada com cada autor que Buzo chamou ao palco
Este dia tão importante começou na terça-feira pela
e antes de entregar o microfone, falou um pouco da “bio-
manhã. Fiz uma extravagância para o meu salário e
grafia” e da quebrada da pessoa. Não senti meus pés no
fui ao salão de cabeleireiro. Tingi e fiz escova. Pintei
chão quando foi a minha vez, mas não me esqueço da
as unhas. Poucas foram as vezes em que fiz isso fora
cena. Embaixo do palco, meus primos me fotografavam.
de casa. A verba curta não permitia, mas para o lança-
Minha amiga-irmã que era de Poços de Caldas e estava
mento de um livro era obrigatório.
morando em São Paulo para tentar “ganhar a vida” me
Durante a viagem até São Paulo me deixei chorar por olhava cheia de ternura. Minhas sobrinhas se deslum-
um longo trecho, principalmente quando passamos por bravam com toda a cena e meus pais e irmã sorriam
Mogi Mirim, cidade onde vivia a Anita. Lamentei de ver- orgulhosos. Os espectadores se expressavam curiosos e
dade o fato dela não estar mais viva e não poder parti- atentos. Estavam ali porque queriam, ninguém os tinha
lhar da minha felicidade. forçado a nada e era o nosso sarau, o nosso lançamento,
Seguimos e o tempo voou até o horário do lançamento, às a nossa poesia e a nossa vida.
19h, no centro. Levei toda a família — pais, irmã e sobri- O Buzo sempre fez questão de frisar que nosso livro
nhas gêmeas, na época com seis anos — além de con- deveria ser o livro e não apenas mais um livro que falasse
vidar alguns amigos que nunca tinham ouvido falar em sobre periferia. Não sei para os outros 12 autores, mas
literatura marginal, primos que cruzaram toda cidade para mim foi exatamente o que aconteceu. Chegou para
apenas para me ver e prestigiar o lançamento, além de somar e mudou tudo, para melhor.
um amigo de muito tempo — do litoral — que não via há
238 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 239

Numa festa com cerveja, refrigerante e amendoins, para- Jéssica Balbino


mos para conversar com todos, trocar informações sobre
por Renato Vital
as quebradas e nos conhecermos um pouco mais. Espan-
tei-me quando alguém pediu que eu assinasse o livro e, Seu sorriso encanta
ainda mais, para tirar uma foto comigo. Fiz toda a cena Sua coragem é tanta
conforme deveria ser e fiquei ainda mais emocionada Tem na mente e no coração
quando o Buzo veio comentar o fato de eu ter levado minha Armas para revolução
família, cheia de crianças, para conhecer mais a literatura.
Sua beleza é mais do que isso
Ele me disse “puxa, é superimportante ver as crianças Beleza inteligência no nível
tão à vontade num ambiente assim, em meio aos livros”. Com sua inteligência ativa
E foi realmente superimportante. Meu primo mais novo – Muda as pessoas a quem cativa
na época com oito anos – fez questão de conversar com
cada um dos autores e também tirar fotos, além de pedir Ama o Hip-Hop de coração
que todos autografassem o exemplar que ele comprou. Considera de verdade os irmão
Outra cena marcante, e também inspiradora, foi ver que Vive a vida na correria
um amigo do meu pai, convidado por ele, foi até o lan- Sempre batalhando no dia a dia
çamento. Os dois se conheceram aos 18 anos, enquanto
Cabelos longos
serviam o exército e quarenta anos depois se encon-
Longos como a jornada
travam para bater papo e acompanhar o lançamento. O Jornalista do Jornalismo
mais bacana é que o amigo do meu pai, um descendente Jornada imensa, imenso caminho
de japonês, nunca tinha ouvido falar em literatura peri-
férica e ficou deslumbrado. Comprou dois livros e ainda Jéssica Balbino
me pediu um exemplar do “Hip-Hop – A Cultura Marginal”. Seu olhar brilha
Seu rosto que penumbra
Neste mesmo momento conheci o rapper e escritor Renato
Através da luz
Vital. Da Zona Sul de São Paulo, ele chegou de mansinho,
pediu para tirar uma foto, trocar uma ideia. Ficamos ami- A caneta na sua mão
gos, trocamos e-mails e um tempo depois, confidências. Vai desenhando o futuro
Carimbando com sua inteligência
Ganhei um texto de presente dele:
Todo e qualquer ser imundo

Sua beleza faz parte


De sua ideologia
Que também é bela
Justiça aqui na terra
240 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 241

Quando anda pelas ruas


As flores sentem seu cheiro
O vento sopra mais leve
E o sol ilumina seu jeito

As palavras em seu nome


Se transformam nas palavras
Desse humilde poeta
Que corteja sua face

Ela vai caminhando


Em busca de seus objetivos
Com seu charme mineiro
Olha para mim sorrindo

O seu sorriso faz parte


Da sua pessoa então
Que complementa sua beleza
Junto com sua simpatia

Jéssica és bela
Suas palavras te cercam
Seu sorriso se preza
É uma linda guerreira aqui na terra.

Incrível como uma noite tão mágica pode proporcionar


tantas mudanças e ao mesmo tempo desperta mais
interesses.
No ar: o hip-hop 243

crack me fizeram ligar o gravador e propor a ele uma


Do lado de dentro matéria para o jornal. O Edu fez o mesmo e propôs uma
matéria em conjunto para o rádio.

da periferia A maior indignação é que, dias antes, o prefeito e o vice


tinham aparecido em toda mídia local anunciando que
Poços de Caldas havia sido considerada a 4ª melhor
cidade do país em qualidade de vida. Mas se havia quali-
dade na vida daquele menor, onde ela estava? Embasa-
dos nestas perguntas passamos a questionar o jovem.
Para o jornal, a reportagem abaixo é que foi escrita:
Do lado de cá. O lado que poucos conseguem enxergar
e que é colorido pela magia das ruas, das casas sim-
Problemas sociais são detectados em Poços de Caldas
ples, das pessoas cheias de vida e da realidade enco-
berta e deturpada pelos noticiários e donos do poder. Por Jéssica Balbino
É deste lado que eu sempre estive e fazia questão de Participação Eduardo Correia
estar. Estas pessoas cheias de vida são as que eu que- “Quando eu ficar mais velho, quero arrumar um serviço e
ria defender com as armas que me foram dispostas: o ser gerente. Quero trabalhar, ganhar meu dinheiro e não
hip-hop e as palavras. precisar mais ficar na rua. Quero alugar uma casa para
morar, se Deus quiser”, conta Lucas Pedro da Silva, 17
Como lugar de repórter é na rua, em uma manhã eu
anos, mas pela baixa estatura e os traços infantis apa-
estava com meu parceiro de trabalho Eduardo Correia,
renta ter bem menos.
repórter da Rádio Difusora, quando caçávamos uma
pauta boa para o dia e nos deparamos com um menor Engana-se quem pensa, ou afirma, que em Poços de
que abordava quem passava pelo local. O frio na cidade Caldas não existe moradores de ruas ou mendicância.
era de rachar e havia chovido durante toda a noite, dei- A reportagem do Jornal de Poços pode comprovar isto
através da história de Lucas.
xando as ruas todas molhadas. Resolvemos descer do
carro e conversar com o garoto, que quando nos viu mais Durante a fria manhã de terça-feira (17), o garoto está no
próximos ficou receoso e tentou fugir. Numa conversa Parque José Affonso Junqueira, atrás do Palace Hotel,
rápida ele nos contou o que estava fazendo em Poços “trabalhando” como fl anelinha ou “guardador de car-
de Caldas e o que sonhava para a própria vida. Ainda de ros”, como ele diz.
forma rápida, nos disse que gostava muito de cantar e Lucas conta que veio da cidade de Caconde, interior de
que seu estilo preferido era o rap. A cena que já havia São Paulo, para Poços de Caldas há pouco mais de um
chamado a minha atenção causou revolta. O jovem de 17 mês e que está morando na rua. “Eu saí de casa porque
anos, com documentos enfiados num saquinho plástico, meu pai morreu já faz tempo e minha mãe bebe, não
roupas maltrapilhas e a voz falha de anos consumindo dá para ficar com ela, ela me agride. Então eu vim para

242
244 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 245

Poços, pedindo carona e hoje eu moro na rua. Durante mal, mas não acho serviço. Quero sim, poder trabalhar e
o dia eu guardo os carros e à noite eu fico embaixo de alugar uma casa”, reforça.
alguma ponte ou cobertura.”
O psicólogo residente em Poços de Caldas, Fábio Rimens-
O garoto, que usa roupas e sapato folgados para o corpo chneider, acredita que o que faz a criança ou adolescente
e tem o cheiro de quem não toma banho há bastante abandonar o conforto do lar, por mais humilde que seja, e
tempo, diz que com as moedas que ganha olhando os car- viver na rua são um grupo de fatores como a questão eco-
ros, compra comida. Os banhos são tomados em postos nômica e a questão das relações interpessoais. “Ao lidar
de gasolina e as roupas foram ganhas na rua. com menores carentes e infratores, ao checar a história,
descobrimos um lar absolutamente caótico, rompendo
Para suportar as baixas temperaturas do inverno poços-
com o equilíbrio familiar e, se esse cuidado básico não
caldense o garoto diz que tem um cobertor e que deixa
vem, a criança tende a comportamentos delinquentes ou
guardado embaixo dos trailers que vendem lanches na
vai às ruas, buscar algum reconhecimento, e isto leva a
praça.
uma perversidade e estas crianças acabam sendo víti-
Para os moradores da cidade, como o motorista particu- mas de organizações e facções criminosas. Surpreende-
lar Wellington Silva Alves, encontrar crianças moradoras me que isto tenha chegado em Poços. É duro sermos tão
de rua em Poços de Caldas é uma situação estranha. “Eu fatalistas, mas quando uma criança sai às ruas e tem de
me surpreendi muito ao ser abordado por este garoto, sobreviver ali, já há um rompimento com o futuro dela.
porque eu sempre trago meu patrão aqui na praça e esta Não estou generalizando, mas na maioria das vezes é
é a primeira vez que eu vejo alguém na situação dele. assim que acontece”, pontua.
Infelizmente a desigualdade social está no Brasil todo e
a gente pode ver que a tendência é piorar cada vez mais. Assistência Social
Poços de Caldas sempre foi vista como uma das cidades A Secretaria Municipal de Assistência Social (Semas)
com o maior Índice de Desenvolvimento Humano e agora tem um trabalho chamado Atendimento Cidadão, que
está recebendo este tipo de coisa, vemos muitas pes- recolhe as pessoas em situação de risco das ruas da
soas por aí andando de carros importados, mas também cidade e as encaminha para centros de tratamento e de
vemos que a pobreza está cada vez mais intensa aqui na Desenvolvimento Humano.
cidade, infelizmente”, diz.
Por intermédio de telefones emergenciais, a Semas
Ao ser questionado sobre a vida na rua, Lucas diz que é presta o serviço de recolher as pessoas. No entanto,
feliz com a vida que leva e conta que nunca foi agredido nesta manhã, o número de telefone divulgado pela Semas
por outras pessoas, nem pela polícia. “Acho que a polí- foi chamado para prestar atendimento ao garoto, no
cia até ficou feliz em saber que estou aqui olhando os período de uma hora, nenhuma mobilização ocorreu por
carros, porque, antes, os garotos murchavam os pneus, parte da Semas.
riscavam, eu não, fico só olhando mesmo, este é o meu
trabalho”, defende. Procurada pela reportagem, a coordenadora do setor emer-
gencial da Assistência, Rosa Fleming, informou que desco-
Ele conta também que já usou drogas, como maconha, nhece o fato. “É muito estranha esta história. Não chegou
mas que parou há algum tempo. “Hoje não uso mais nada, ao meu conhecimento este fato. Estou surpresa”, afirma.
também não estudo. Já tentei procurar um emprego nor-
246 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 247

Ela diz ainda, que, em casos semelhantes, envolvendo enquanto lugar-comum, passa despercebido aos olhos
menores de idade, o Conselho Tutelar é acionado e de toda a população e se ninguém gritar ao mundo que
procura entrar em contato com a família e cidade de estes seres tratados como invisíveis existem, eles vão
origem da criança ou adolescente, buscando o melhor realmente se tornar ocultos no corre-corre do dia a dia e
encaminhamento. nada será feito, fazendo com que as cidades do interior
O Conselho Tutelar do município também disse desconhe- se transformem, mesmo que em pequenas proporções,
cer o fato e informou que, em situações como esta, o Con- em abrigos de problemas, como as capitais.
selho Tutelar da cidade de origem é procurado e enquanto
Para tentar defender isso e garantir não apenas ao Lucas,
as informações são levantadas, a criança ou adolescente
mas a outros menores que enfrentem a mesma situação,
é mantida em abrigos. “Por isso estamos lutando por uma
tentamos fazer algo.
casa de passagem para crianças e adolescentes aqui na
cidade. Fatos como este não são frequentes, mas já acon- Há muito tempo eu já me espelhava em profissionais
teceram e a nossa instrução é para que o Atendimento como a Eliane Brum, que enxergava, enquanto jorna-
Cidadão seja chamado”, diz Sandra de Fátima dos Santos lista, além do óbvio e sempre retratava histórias comuns
Lapa, coordenadora do Conselho Tutelar. de uma forma recheada de poesia e transformava a rea-
A Guarda Municipal, que é o órgão que recebe as ligações lidade, nos fazendo enxergar mais do que uma pessoa
através do plantão de emergência da Assistência Social inserida em uma estatística ou problema social. Sempre
afirma que apenas recebe as ligações e as encaminha busquei trabalhar como ela e ir além da pauta, além do
para a viatura do atendimento social que fica pelas ruas que todos vão dizer, além do que todos já sabem, além
da cidade realizando o patrulhamento. da situação visível.
“O que observamos é que os chamados aumentam durante Esta foi uma primeira tentativa e dar voz a um ser margi-
o inverno, pois muita gente fica penalizada de ver pessoas nalizado e me deixou extasiada. A repercussão também
na rua com o frio que faz na cidade. Porém, um dado inte- foi boa e, no dia seguinte, enquanto Edu e eu enfrentá-
ressante que temos aqui em Poços é que não há moradores vamos mais um dia frio em Poços de Caldas, ouvíamos
de rua. Existem, sim, pessoas morando na rua, mas em
o rádio onde um ex-vereador da cidade apresentava um
todos os casos, são pessoas que têm famílias e que por
programa matinal e discutia a manchete do jornal, que
algum desentendimento acabam indo para a rua”, conta o
havia sido a reportagem do garoto e chamava a atenção
inspetor Marcelo Bastos, da Guarda Municipal.
das autoridades para o problema.
Contudo, a Assistência Social disse que irá averiguar
A matéria foi também tema no “Debates Populares” e,
a situação de Lucas e encaminhá-lo ao melhor trata-
mento possível. desta vez, o Francis não aceitou o horário de almoço
do Edu como desculpa e praticamente exigiu que par-
Apesar da reportagem não ser nenhuma novidade nos ticipássemos do Mix. O que era para ser uma simples
grandes centros urbanos do país. No centro da cidade de matéria de rádio AM se transformou quase em um mini-
Poços representou uma cena pouco comum. Mais além, documentário, com trilha sonora e tudo, que o próprio
248 Traficando conhecimento No ar: o hip-hop 249

Edu gravou e que foi ao ar durante todo aquele dia, tam-


bém na FM, através do Mix. O assunto rendeu durante
todo o programa e o pedido de intervenção para o pro-
blema rendeu ligações de políticos e participações ao
vivo também no quadro.
Acho que o mais comovente era a voz do garoto e o jeito
dele falar quando sonhava em alugar algo e não preci-
sar mais viver na rua. O sonho de Lucas era o mesmo de
mais de 10 mil crianças que vivem nas ruas. Embora elas
fiquem de fora dos censos feitos pelo Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística (IBGE), uma pesquisa do Con-
selho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(Conanda) estima que, entre crianças e adolescentes,
mais de 10 mil vivem pelas ruas de todo país.
Pode ser pouco, pode ser quase nada, mas foi o que deu
para fazer com aquela primeira matéria que, mais tarde,
inspirou uma série de reportagens.
No ar: o hip-hop 251

Como ele já tinha alguns programas gravados, fui para


Plano B estúdio apenas para gravar uma participação sobre o
livro, uma breve explanação do que é a cultura margi-
nal e para anunciar que a melhor frase sobre o programa
concorreria a um exemplar do “Suburbano Convicto”.
Como minhas afinidades eram, até então, com jor-
nal impresso e eu estava descobrindo o rádio naquele
tempo, não sabia como me sairia na TV, mas acreditei
que poderia tentar, elaboramos um roteiro e empaca-
mos um nome para o quadro. Após várias reuniões de
E se o que planejamos não der certo? E se surgirem brainstorm, me inspirei no nome do CD que o UClanos
imprevistos? Devemos sempre ter um Plano B. Foi assim estava gravando e disparei: Pelos Cantos. O quadro vai
que li em um livro com este título e, desta forma, come- se chamar Pelos Cantos, pois vou percorrer cada qua-
çou a apresentação de um grupo de estudantes da dradinho da periferia de Poços.
minha classe para o TCC. A ideia era trazer para a nossa realidade algo parecido
Foram aprovados com a nota 10 porque a 11 não existe. com o quadro Central da Periferia, feito pela Regina
Só por terem feito algo inédito na faculdade: um pro- Casé, no Fantástico, mas havia um único inconveniente.
grama televisivo com formato de revista eletrônica com Meu patrão, senhor dos escravos modernos, não que-
o público-alvo, em Poços de Caldas, de 18 a 24 anos. Foi ria que eu participasse de programas televisivos e nem
louvável. fizesse freelas, alegando que eu deveria ser funcionária
exclusiva do jornal, podendo fazer apenas algumas par-
Uma das três matérias do programa era sobre hip-hop, ticipações na rádio.
na fonte de Leãozinho, onde surge a união entre o patri-
mônio material e imaterial da cidade. Com isso, o grupo Mas, como eu já estava de saco cheio da imposição de
conseguiu apoio de uma produtora e comprou um horá- regras sem pé nem cabeça, resolvi arriscar. Contudo,
rio nas tardes de sábado com reprise no domingo na antes de começarmos as gravações para valer, a TV saiu
recém-fundada TV Plan. do ar por falta de uma concessão do Governo Federal
e não dava para manter o programa e nem para levá-lo
O programa, assim como a TV, era uma promessa de para a outra emissora da cidade. Como demorou mais
entretenimento e fui convidada pelo idealizador, Jorge do que os dois meses previstos para que a concessão
Junior, que era também o apresentador, para montar um saísse, o Jorge abandonou o sonho que tinha e se mudou
quadro onde eu percorreria todas as periferias da cidade para São Paulo, onde iria trabalhar em uma empresa
e falaria com as mais variadas tribos urbanas e expres- multinacional. Lamentei não ter podido colocar em prá-
sões de cada quebrada, a começar, é claro, pelo hip-hop tica o quadro, que seria quinzenal dentro do programa.
e as oficinas de literatura na Zona Sul.

250
252 Traficando conhecimento

As poucas edições que foram ao ar fizeram sucesso e o


quadro que eu participei, sorteando o livro, me trouxe
um pouquinho mais de publicidade, o que ajudou na arti-
culação de projetos que eu tinha na mente, além de ter
dado o livro de presente a um garoto que morava na Zona
Leste da cidade.
Quando ele foi até o estúdio retirar o prêmio, nos cumpri-
mentou e disse: “Que ‘da hora’ a iniciativa do programa.
Nem imaginava que existia gente em Poços para escre-
ver sobre hip-hop. Tô bem feliz com o presente.”
Assim, apesar do pouco tempo em que o sonho durou,
valeu a pena ter tentado e as ideias ficaram para uma
próxima oportunidade. Quem sabe de uma outra vez.
No ar: o hip-hop 255

positiva que só a periferia tem e que só os talentos da


Cultura Marginal quebrada conseguem proporcionar através das pró-
prias manifestações artísticas.
Claro que eu gostaria que o evento tivesse reunido a
região toda, que as pessoas fizessem fila para entrar
e que fosse um verdadeiro estouro, naquela tarde de
domingo, contudo, mais uma vez, não tive tempo para
lamentar porque a urgência em conseguir tocar novos
projetos adiante era enorme.

Durante as tempestades de ideias para dar um nome


ao quadro que não foi ao ar, ficamos bastante tempo
com o nome temporário de Cultura Marginal, até surgir
o Pelos Cantos e trocarmos, mas a expressão não dei-
xou de me acompanhar. Primeiro porque faz parte do
nome do meu primeiro livro e segundo porque resume
exatamente o que o hip-hop e a literatura são, juntos.
Há tempos eu precisava de um nome para o projeto
social das oficinas, das pequenas palestras e de todo
o trabalho que eu pretendia realizar. O ano de 2007 já
estava no final e para 2008 eu pretendia ainda mais atu-
ação nesse sentido.
Resolvi batizar o último evento daquele ano como Cul-
tura Marginal. No centro comunitário do Cohab, onde
aconteceu a primeira leva de encontros do Hip- Hop
Sul, no início da década, formamos uma turma de cole-
gas que dançavam e cantavam e tentamos atrair os
garotos da oficina da escola do bairro e mais quem qui-
sesse. Apesar de não ter tido um comparecimento em
massa, foram mais de 100 pessoas, o que é pouco para
o local. Continuamos a ler nossos textos em um sarau
improvisado e sem muitas regras, mas com a energia

254
Cap.05
Em foco

Cap.05
Em foco
Em foco 259

Marginal” e “Suburbano Convicto”. Garanti que no final


do evento alguns participantes ganhariam exemplares
deste segundo.
A cada manifestação que subia no mesmo palco, inter-
calando a dança, o grafite, o DJ, o conhecimento e o rap,
eu apareço para explicar o que aquilo significa, como
surgiu e para o que serve. De uma forma simples e não
professoral, a noite se transforma em uma enorme
palestra-show sobre a cultura periférica de Poços que
deu a oportunidade a todos os grupos, inclusive àqueles
“Cinco elementos, humildade e talento, b.boy, DJ, Gra- que nunca se apresentaram para tanta gente.
fite, MC e Conhecimento... E conhecimento.”
Um beat, uma batida, um passo sincopado, um movi-
Com este pequeno refrão eu fiz a abertura do 1° Hip-Hop mento mais forte e uma racha de break estão forma-
em Foco, que lotou o Teatro Municipal durante o Viva dos. Duas crews de diferentes regiões se confrontam no
Urca – evento anual de atrações locais. pequeno espaço do palco e arrancam suspiros da plateia
que está ali. É visível que muitos turistas estão em con-
Os mais de 700 lugares – poltronas e em pé – foram
tato com a cultura do hip-hop pela primeira vez na vida
ocupados por jovens dos quatro cantos da cidade que,
e alguns comentários como “eu só vi isso pela televisão”
cheios de expectativa, pagaram o ingresso ao preço de
podem ser ouvidos.
R$ 3 que seria revertido para manutenção do Espaço
Cultural da Urca e aguardavam, ansiosos, o início do Mas, nem mesmo as explicações sobre a proposta ini-
evento que promete tudo que o hip-hop tem. As cinco cial do hip-hop, de paz, amor, diversão e união para aca-
manifestações reunidas em uma única noite, de forma bar com as brigas de gangues nas ruas consegue parar
histórica na cidade. alguns representantes das duas crews, que se estra-
nharam durante a dança e quando foram interrompidos
Representando o 5º elemento da cultura – o conheci-
pelo mediador partiram para uma discussão do lado de
mento – subo ao palco com o nervosismo natural da
fora do espaço. Foi neste momento que alguns integran-
“primeira vez que estou fazendo isso” e dou boa noite
tes do Concepção Urbana que fazem parte do staff do
à casa cheia.
evento, foram até lá para tentar apartar uma briga pres-
Tremendo por dentro e tentando me controlar por fora. tes a ser iniciada. Voltaram e comentaram que alguns
Digo baixinho para a emoção “fique ali do lado, na dos garotos estão alcoolizados e foram mantidos do
coxia e me observe, depois a gente comemora juntas o lado de fora do teatro.
sucesso desta noite”, dei prosseguimento, explicando
Volto ao palco com mais uma intervenção do 5° elemento
que estava ali em nome da literatura periférica, do meu
e explico que é exatamente este tipo de comportamento
trabalho com oficinas e dos livros “Hip-Hop – A Cultura

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260 Traficando conhecimento Em foco 261

que a cultura hip-hop visa acabar e que ele pode ser


alcançado através de qualquer uma das manifestações,
dispostas como armas, feitas para combater a guerra
diária travada entre grupos rivais, seja entre jovens,
adultos, classes sociais ou grupos políticos.
Enquanto falo, um jovem grafiteiro pinta, ao meu lado, a
palavra PAZ em um painel de madeirite. Com destreza,
ele conclui o desenho ao mesmo tempo em que eu me
retiro, dando lugar a mais uma demonstração de dança.
O inconveniente provocado pela briga entre as crews
foi esquecido quando um grupo de rap subiu ao palco e
desrespeitou o tempo limite de apresentação. Também
estavam alcoolizados e deixaram de cumprir o acordo
firmado com a organização, além de ferir os ouvidos do
público com letras improvisadas de forma distante do
verdadeiro hip-hop.
Contudo, mesmo com esses vexames, o evento prosse-
gue e eu já digo à emoção: “Não se entristeça. Estamos
indo bem. Não é nossa culpa. A falha de algumas pes-
soas não deixa de ser poesia dura e marginal.”
Produzir amor onde não há e cantar belezas onde não
tem era exigir demais daqueles grupos que estavam
despreparados para o evento. A falta de conhecimento
do 5º elemento, que versa, justamente, sobre a sabedo-
ria é o que culminou para cenas tão lamentáveis.
As competições entre crews continuam, as apresenta-
ções de rap também e o DJ Dunha trabalha firme nas
pickups para a minha entrada com algum dado e fato
histórico que recheia o evento com um tanto da compre-
ensão acerca da cultura marginal.
Após quase três horas ali, a emoção que latejava no meu
peito tinha conseguido se acalmar e quietinha, em um
canto, me observa. Sou interrompida por Nando, que
deveria estar no camarim se aprontando para fechar
262 Traficando conhecimento Em foco 263

as apresentações da noite com uma coreografia mon-


tada especialmente para o evento. Ao lado de Mário,
diretor do grupo, agradeço a presença de cada pessoa
no público e espero, de coração, que o hip-hop em foco
daquela noite tenha agregado coisas positivas.
Nando me abraça, toma meu microfone e passa a ler,
como quem representa – afinal, iniciamos juntos no teatro
há alguns anos – o texto “Olhar para o hip-hop” e quando
termina o público que ainda resta o aplaude em pé. Claro
que essa euforia é quanto à performance empregada por
ele e outro tanto pelo texto, que me enche, novamente,
de orgulho. Não um orgulho explosivo, mas uma felicidade
concreta por saber que, naquele fim de noite, muitas das
pessoas que pagaram para estar ali deixariam o tea-
tro após ouvir um pouco da nossa cultura pelas minhas
palavras, escritas em uma largada de emoção, pressa e
urgência em reportar toda a grandeza desta cultura.
Para agradecer ao público presente, já no embalo do
clima de sarau improvisado criado pelo Nando, sortea-
mos três exemplares do “Suburbano Convicto” e as pes-
soas que ganharam o livro puderam levar para casa um
pouquinho de cada uma das 13 periferias espremidas
entre as letras e fotos daquelas páginas do livro. Cria-
mos, também, uma forma de agradecer os grupos que
estiveram no evento e separamos troféus para os três
melhores lugares de cada categoria: dança e música.
Todos os participantes também ganharam um certifi-
cado de agradecimento e participação.
Já com as cortinas abaixadas, grito a minha emoção, que
sai de onde estava escondida e vem ao meu encontro.
Pula sobre mim e me abraça, rodopiamos pelo teatro já
com as cortinas abaixadas e corremos para abraçar a
minha família, meus amigos e os grupos vencedores, que
posam para fotos exibindo os troféus. O evento chega ao
fim e o hip-hop, de uma forma ou de outra, apesar dos
contratempos, esteve em foco naquela noite.
Em foco 265

crítica desses estudantes, o que eu considerava funda-


3... 2... 1 gravando! mental para o sucesso das oficinas. Oficinas essas que
deixaram de ser na escola e passaram a ser cada dia em
um local, ora na quadra do bairro, ora na casa de alguém,
ora no poliesportivo e assim por diante, de maneira
informal, mas bastante produtiva.
Outro ponto foi o lançamento de novos livros escritos
por autores periféricos. Logo no início do ano surgiu um
produzido pelo selo Elo da Corrente, que trazia a litera-
tura do sarau comandado pelo Michel e pela Rachel, com
A ideia de produzir TCCs sobre hip-hop para as univer- textos e contos de gente superimportante para a que-
sidades de todo Brasil ainda estava em alta e a cada brada. O livro “Prosa e Poesia Periférica” se revelou mais
mês, grupos de diferentes regiões entravam em contato, uma arma para o arsenal que estávamos montando em
sempre através do blog, com pedidos de dicas, suges- nossa quebrada.
tões e tudo mais. Alimento. Assim eu encaro as novas produções e, mesmo
No início de 2008 um grupo de São Paulo estava gravando morando a pelo menos 280 km de São Paulo, onde a pro-
um vídeo-documentário sobre a produção cultural na dução literária realmente acontece, acompanho por meio
periferia e queria unicamente o capítulo que eu falava da internet o que surge de novo e sempre que posso com-
sobre literatura marginal, o sarau da Cooperifa e as ini- pro os exemplares – e graças à amizade muitas vezes os
ciativas do Ferréz, do Buzo. Travamos contatos e mais ganho – e tenho a oportunidade de conhecer o que há de
uma vez a troca de experiências se relevou fundamen- mais fresquinho saindo dos fornos periféricos e mostrar à
tal. Aos poucos os DVDs e outros trabalhos já produzidos turma de estudantes que, para que as coisas aconteçam,
foram chegando em minhas mãos e passei a separá-los basta que nós tenhamos vontade de transformação.
para poder aplicar em oficinas. Com alguns exemplares do “Suburbano Convicto” em
Vídeos como o produzido pela Kaká Soul, de Goiânia, mãos o trabalho também ficou mais fácil. Resultados
e o produzido pela Érica Guimarães, de Campinas, se palpáveis chamam atenção dos jovens e em pouco
tornaram parte dos momentos em que eu passava na tempo, pequenos textos também estavam sendo pro-
companhia dos alunos, desta vez pouco mais de meia duzidos por eles.
dúzia, também selecionados pelos professores e dire- Com muita luta e confiança, pude – de forma bem real
tores da escola para frequentar, uma vez por mês, as – mostrá-los à infinidade de blogs existentes na rede,
oficinas no período noturno. todos tratando de hip-hop e literatura, sempre com novi-
Exibir coisas produzidas por gente da periferia sobre a dades incríveis sobre o universo marginal.
nossa cultura se tornou parte, também, da formação

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266 Traficando conhecimento Em foco 267

O que ouvi foi “da próxima vez que eu for à lan house vou Periferia adentro
visitar o site” e também “vou deixar de jogar country
Quarta-feira, uma hora da tarde. O trem para. Estação
strike e ler um pouco mais”. Frases como estas, soltas Jaraguá, Zona Oeste, São Paulo, capital. Para sair do
em meio às oficinas me fazem crer que as transforma- trem é um sofrimento já que ele está parado muito longe
ções são possíveis. da plataforma e é preciso pular. É mês de julho, inverno.
Com o recurso audiovisual dos documentários e da con- Mas o sol está muito quente. Passa dos 30°C. É preciso
fiança em cada um dos garotos para emprestar os meus caminhar um quarteirão e tomar um ônibus para a Praça
Panamericana. Uma praça bonita, porém, sem muito
materiais e deixá-los circulando na roda, de mão em
verde. Tem uma pista de skate toda grafitada, denun-
mão, ficou mais fácil, também, verbalizar um pouco do
ciando a presença do hip-hop por ali.
contexto. Trabalhar com tudo isso em um horário tão
ingrato como o que eu tinha de tempo disponível era Em frente ao supermercado Panamericano também há
como um brinde, uma promoção incrível, um número vários muros e fachadas de estabelecimentos comerciais
acertado na loteria. exibindo seus grafites. Subindo uma ladeira íngreme dá
para entrar em uma viela, cheia de casas próximas. É
A maioria dos garotos que participava tinha entre 9 e 13 uma quase-favela. O real retrato do gueto, da periferia.
anos e todos pediam mais clipes de rap, mais vídeos e em Aliás, estas são as palavras que mais aparecem na lite-
um dos encontros um pedido inusitado mexeu comigo, ratura ou em qualquer coisa relacionada ao hip-hop e são
chamou minha atenção. Um dos garotos me lembrou que quase endeusadas pelos autores e ativistas.
fazia tempo que não trazia um texto novo, feito por mim.
Mas o gueto é ali mesmo, naquelas casas, com seus
Um conto talvez. Eu já havia lido “O homem do gueto”,
“muros” de madeira pichados e grafitados, com seus
“Uma brasileira”, os que estavam no “Suburbano” e algu-
aparelhos de som “top de linha”, contrastando com a
mas partes do livro-reportagem, sem falar nos textos do pobreza do lugar, e tocando rap no último volume. O rap é
Elo da Corrente, do Sacolinha e do Buzo. a trilha sonora deste pessoal, que encontra nas letras de
O questionamento me fez reparar que eu estava tão protesto uma forma de gritar para o mundo, de chamar
embalada no Jornal de Poços, cobrindo a editoria de polí- atenção da sociedade para seus problemas cotidianos.
É nessa poesia urbana que eles encontram uma forma de
cia que eu havia assumido no Carnaval e que não gostava
extravasar tudo que lhes oprime.
nem um pouco, que não tinha mais tanta disposição para
atualizar o blog ou mesmo escrever meus contos da lite- Saindo dessa rua, uma escadaria enorme tem de ser
ratura marginal. Percebi também que o tempo estava enfrentada e os moradores locais reclamam diariamente
passando e que eu precisava, com urgência, me dedicar deste percurso. No topo do morro tem um portão branco e,
mais ao hip-hop. Reformulei o blog, fiz um layout dife- descendo vários degraus, está à casa de Pow, 28 anos, inte-
rente e soltei na rede textos novos. Produzi o conto “Peri- grante de um grupo famoso na cena do hip-hop paulistana.
feria Adentro”, inspirado em uma realidade que observei Ele anda o mais rápido que pode, vai se encontrar com o
durante as pesquisas do TCC e cheguei na oficina do mês MC Eduardo, do grupo de rap e vão compor alguns sons
seguinte toda feliz, mostrando o texto: para tocar no próximo baile da quebrada.
Em foco 269

Numa das vielas o cheiro de sangue fresco ainda é forte.


São os vestígios de mais uma morte “da noite de ontem”.

— Aqui não era para ser um campo de futebol? — per-


guntam alguns garotos ao se depararem com mais um
corpo em um dos inúmeros cemitérios clandestinos no
meio daquela favela.

Pow não liga para os comentários. “É só mais um corpo”,


pensa. Ele já está acostumado com a cena. “Corpo jogado
na vala da periferia é o mesmo que moleque batendo bola
no campinho. Faz parte do dia a dia, corre e volta a pen-
sar na letra que está compondo.

“Falta alimento em nossas mesas e o país é culpado”,


cantarola baixinho.

A céu aberto estão covas e corpos, sangue fresco de


quem morreu há pouco, e é enterrado ali mesmo, como
indigente, com a mãe chorando ao lado. Lágrimas deses-
peradas, de quem já sabia o futuro do filho.

A indiferença está em quem passa. Pode ser conhecido


ou não o corpo de quem está em uma das valas. Não
vale a pena.

A bola batendo entre os corpos transforma as covas em


mais um campinho de futebol, entre os muitos já existen-
tes nas periferias.

Nos jornais, na banca em frente à Praça Panamericana


estão diários, com manchetes como “Integrante de grupo
de rap é morto após confronto com traficantes”, “Bandido
é alvejado no Panamericano” e “Jovem rapper é morto por
envolvimento com tráfico”.

As fotos, ainda piores que as manchetes, trazem detalhes


do corpo do jovem em meio às valas e a mãe, chorando ao
lado. O menino que queria o campo de futebol prometido
sonha à noite, com uma bola nova, um par de chuteiras,
e um campo igual ao que ele vê na TV. Mas ele vai ter de
esperar, crescer para poder virar ladrão, traficante e res-
270 Traficando conhecimento Em foco 271

peitado no morro, aí vai poder comprar tudo isso, se ele “Falcão e os Meninos do Tráfico”, acompanhado do livro,
não morrer e cair na cova de mais um cemitério que pode- algo que também se tornou importante para as oficinas e
ria virar quadra esportiva. passou a ser trabalhado em salas de aulas de todo Brasil.
Após enfrentar o morro e chegar em casa, Pow desembrulha Outros projetos com hip-hop e literatura passaram a usar
a carne que comprou e no jornal vê o corpo do MC Eduardo. os exemplos também para promover mudanças nas vidas
dos jovens locais, e mostrar, com a clareza existente no
O grito, em forma de rap, ecoa por todas as vielas e chega
documentário, o quão ruim é a vida do crime e o destino
ao ouvido dos mais desatentos: “Falta alimento em nos-
quase único que ela leva.
sas mesas e o país é culpado.”
Sucesso pela linguagem utilizada pelos autores e ide-
Surpreendi-me ainda mais quando aquele mesmo garoto
alizadores. A mesma falada em qualquer roda de ami-
me trouxe um texto feito por ele. Era mais uma redação e
gos de qualquer bairro de qualquer periferia de qualquer
dizia sobre o que ele gostaria para a vida dele no futuro.
cidade de qualquer estado de todo este Brasil. Diante
Desinibido e diferente de todos que eu já havia trabalhado
da empolgação desta turma, convidei o grupo anterior
até então, não teve objeções quando disse a ele para ler
também, para voltar no mês seguinte e apreciar um dos
o texto em voz alta. Com a voz impostada, Rodrigo con-
encontros, reunindo as informações e vivências.
tou ao grupo que, antes das oficinas, tinha vontade de ser
músico e depois, a vontade havia aumentado. Tinha von- Para incrementar, usei da experiência no jornal para
tade de ser músico e escritor. sugerir que produzíssemos algumas matérias sobre
nossa própria quebrada. Nem que fossem apenas notas
Como eu me senti? Não preciso nem relatar que absurda-
e fizéssemos uma espécie de folheto, um minijornal,
mente feliz e lisonjeada. Embora ele tivesse alguns erros
apenas para exercitar a arte da escrita e também da
de português e uma construção ainda um pouco precária,
apuração. Alguns gostaram, outros preferiam continuar
era ótima para a idade dele e pela falta de leitura também.
nos textos e documentários. Fizemos uma experiência,
A exemplo da oficina anterior, sugeri que ele passasse mas como tudo tinha de sair do meu bolso e do meu salá-
a ler um pouco de Pedro Bandeira, que tinha tudo a rio de miséria, não deu muito certo, mas, valeu pela ten-
ver com a realidade e, novamente, o formato deu certo. tativa e experiência.
Outra sugestão que resolvi trabalhar com os meninos
Não precisava ser um projeto perfeito. Bastava que fosse
foi o “Quarto de Despejo”, da Carolina Maria de Jesus.
feito e vivido de todo coração e que acrescentasse algo
Sempre considerei uma grande obra e levei alguns tre-
àquelas vidas. Era suficiente que um encontro mensal
chos. Nas mãos dos garotos senti maior firmeza quando
despertasse nos jovens – nem que fosse um deles – a
eles revelaram a identificação com a autora.
vontade de driblar o péssimo ensino e a desinformação,
Outro texto fundamental e que pode ser atrelado ao mudando as consequências e os planos já traçados pela
audiovisual foi “Cidade de Deus”, de Paulo Lins. Pri- elite, que se interessa pela ignorância do povo, que sem-
meiro o livro e, por último, a exibição do filme. Um pouco pre plantou frases feitas como “o pobre não tem vez”, “o
antes havia também estourado no Brasil o documentário pobre não tem estudo”, “o pobre nasceu para sofrer” e
272 Traficando conhecimento Em foco 273

“brasileiro não gosta de ler”, “esse povo não tem nem o 3...2...1... gravando! Gaguejando de vergonha e felici-
que comer como vai comprar livros”. A elite esqueceu-se dade, ele parou, se recompôs e como um poeta em um
que a fome é um ingrediente a mais na inspiração e que o sarau daqueles movimentos do início do século, sendo
sofrimento é doce para o poeta que transforma a própria revivido atualmente pela Cooperifa, Elo da Corrente,
desgraça em revolução. entre outros, ele declamou tudo que havia escrito com
naturalidade surpreendente. A equipe de reportagem
E as mudanças — mesmo que pequenas como árvores
me fitou e como quem não acredita que um estilo literá-
que começam a florescer bem antes de dar frutos —
rio e o incentivo a leitura tenham feito aquilo, pergunta-
eram inspiradoras para que o fantasma da desistência
ram a ele o motivo do texto.
passasse bem longe do desejo de comer a fruta no pé,
debaixo da árvore frondosa em tarde quente de verão. A resposta: “A dona nos incentiva a ler e a escrever o que
estamos sentido igual a ela mesma e aos autores que ela
Assim se seguiram as oficinas de 2008, com mais faci-
traz os textos. Pensando nisso em casa eu resolvi tentar
lidade e experiência que as de 2007, e a expansão para
e saiu esse texto aí.”
outros bairros tornou-se um projeto a ser pensando,
contudo, eu precisava trabalhar e fazer pelo menos o
dinheiro das cópias dos textos e da condução para os
eventos de hip-hop.
Por outro lado, o trabalho no jornal me favorecia em con-
tatos e amizades com os colegas da imprensa, que sem-
pre me prestavam favores, como a gravação de matérias
sobre os livros e desta vez sobre as oficinas.
No encontro preparado entre o grupo de 2007 e o de 2008
recebemos a visita de uma equipe de reportagem da TV
local. Para driblar a vergonha e excitação dos garotos,
fizemos um laboratório prévio em que expliquei que esta
era a oportunidade que tínhamos — e muito rara — na
nossa existência de falar num microfone, através de
uma reportagem que seria exibida no “horário nobre” da
cidade sobre os problemas do nosso bairro e da nossa
tentativa de melhorá-los com a produção literária.
Convidei Rodrigo, autor do texto sobre o que ele gostaria
para o futuro, para ler, em frente às câmeras, a produção
que ele havia feito. Foi preciso cortar e começar de novo.
Em foco 275

dia das pessoas e lhes chamar atenção às pequenas coi-


Caixinhas poéticas sas da vida. Mesmo correndo contra o tempo para chegar
ao trabalho em um horário bom e acompanhar todas as
ocorrências policiais do dia, perdia — neste caso ganhava
— alguns minutos observando de longe quem seriam as
pessoas a pegar as caixinhas e qual seria a expressão.
Com o olhar atento ao que se passa ao redor, elas procu-
ram pelo dono da caixinha e, como no mar de gente que
inunda as ruas, é impossível identificar quem é dono do
E se toda poesia do mundo coubesse em uma caixinha? que, acabam por levar a caixinha na mão e deixavam no
E se ela fosse achada, ganhada ou entregue na forma ar a expressão de um sorriso.
de um presente? E se a literatura presente na vida de
Arrisquei-me, algumas vezes, a deixar caixinhas em
alguns poucos brasileiros pudesse ser encontrada, casu-
alguns espaços da delegacia. Tive medo de ser presa
almente, em um banco de praça, em um orelhão, no meio-
ali mesmo, por tentativa de mudança, disseminação do
fio, no balcão de um bar, dentro do ônibus, na fila de
saber e incentivo a alegria e gentileza.
espera de um posto de saúde, no meio de uma balada,
em um restaurante, no trânsito ou comprando pão de Além da brincadeira e do prazer terapêutico em reco-
manhã na padaria? lher os cartões e confeccionar as caixinhas durante
horas o melhor era poder semear, de uma forma tão
A expressão sisuda de um senhor que se encaminhava
poética, a literatura.
para o trabalho em mais uma manhã se transformou em
sorriso e o dia dele mudou. Quando parou em um orelhão Com frases, poesias e pensamentos escolhidos, cuida-
qualquer da rua para fazer uma ligação encontrou uma dosamente e retirados de anos de muita leitura, guar-
caixinha. Pequena, formato 4x4 cm, feita com papel reci- dava cada trechinho impresso nas caixinhas, embara-
clado, toda colorida. Abriu e encontrou dentro um pedaço lhava, colocava na bolsa e saía pela rua na distribuição.
de esperança, de sorriso, de solidariedade, de gentileza.
Pensei inclusive em levar a ideia às oficinas, mas o
Um trecho de poesia selecionada com cuidado foi depo- entrosamento do grupo poderia, de repente, ruir, se
sitado dentro da caixinha, que imitando as atitudes gen- mais alguma atividade fosse proposta. Ensinar o pro-
tis de José Dantrino, conhecido como profeta Gentileza cesso de confecção das caixinhas toma tempo e não
e inspirada pelo filme europeu “O Fabuloso Destino de seria tão simples fazer isso em apenas 1 hora e meia de
Amélie Poulain”, soltei pela cidade, inúmeras delas fei- encontro mensal.
tas a partir de cartões postais de propagandas, com poe-
Apenas mencionei o projeto e deixei em aberto, se alguém
sias dentro. Ajudada em ideias pelo meu amigo e também
quisesse me auxiliar com sugestões de frases e poesias
poeta, Eduardo Herrera, que tem no projeto Gentileza
para pôr nas caixinhas ou, ainda, na arrecadação de car-
uma grande referência, o objetivo maior era transformar o
tões postais, seria uma ajuda e tanto.

274
276 Traficando conhecimento Em foco 277

Já esquecida da proposta me surpreendi quando, no


mês seguinte, quase todos apareceram com cartões e
papéis que poderiam servir para as caixinhas e algu-
mas frases. Na maioria eram retiradas de contos do
escritor Ferréz, por quem eles demonstravam nítida
preferência, talvez por ter sido o primeiro que conhece-
ram, contudo, até mesmo letras de rap eles sugeriram e
não é que muitas se encaixavam?
Resolvi aderir e a segunda leva de caixinhas e ela circu-
lou pelas ruas com letras de rap e MPB.
Uma observação é que as pessoas, sempre imersas na
cultura da pressa, passavam de forma despercebida
pelas caixinhas, que só faltavam pular e gritar: “Olá, sou
o seu presente”, em analogia ao tempo. Curiosamente
os seres “invisíveis” eram os que melhor enxergavam e
acabavam contemplados com as poesias. Moradores de
rua, catadores de lixo, bêbados, prostitutas, varredores
e anônimos, sem a necessidade urgente de correr contra
o tempo para alcançar – ou seria fugir – deles mesmos.
Notar as caixinhas e poesias beneficiando estas pes-
soas era como vencer uma das batalhas nessa guerra
da vida. Um presente encontrado, no presente, era como
lhes restaurar parte da dignidade, tão afetada pelo des-
prezo dos demais.
Gostaria, porém, de nunca ter me deixado vencer pela
pressa, pelo individualismo e egoísmo, pela necessi-
dade de trabalhar, trabalhar e trabalhar e ter parado de
confeccionar as caixinhas poéticas e distribuí-las, con-
tudo, durante um tempo em 2008 estive fechada no meu
mundinho jornalístico-e-policial e não me dediquei à
muita coisa mais.
Em foco 279

tomado enquanto estava na garupa da moto perseguindo


Às margens da a polícia, que perseguia os bandidos, e ainda ser ferida
nos direitos morais, esmoreci durante um tempo da luta

sociedade diária contra a desigualdade social.


Nunca achei que o pobre devesse ser rico, mas sempre
lutei pela melhor distribuição de renda, pela panela cheia
de comida e a cabeça cheia de ideias e ideais. Sempre
defendi a democracia e a liberdade de expressão, por
acreditar que já nos privam de tanta coisa, o que faremos
se nos tirarem também o pão da poesia marginal?
Talvez por ser nova. Talvez por ser boba. Talvez pela falta
Mas, como tudo na vida muda e, graças a Deus, passa.
de experiência. Uma sequência de talvez é o que eu con-
Uma semana depois, em uma manhã em que eu era,
sigo para justificar a minha ausência, mais uma vez, nos
mais uma vez, massacrada dentro do ônibus cheio, per-
eventos de hip-hop, a falta de entusiasmo para as ofici-
cebi que era hora de fazer como tantos guerreiros da
nas e a pausa na produção literária. Quase corrompida
nossa história. Virar o jogo. Lutar com o que temos nas
pelo sistema, deixei de usar as armas — o hip-hop e a
mãos — e eu tinha um espaço no jornal, as palavras e a
literatura — que sempre estiveram ao meu alcance para
mente fervilhando.
driblar os adversários que jogam a favor do sistema.
Ao meu lado, 90% dos passageiros do ônibus iam para
Esgotada por trabalhar quase doze horas por dia e pas-
o trabalho e, deste percentual, quase todas diaristas e
sar a maior parte do tempo atrás de sirenes de polícia,
empregadas domésticas, vivendo de salários de fome e
bombeiros e Samu, sempre montada na garupa de uma
acreditando em dias melhores.
moto — com sol, frio ou chuva — deixei, mesmo que por
um período de tempo pequeno, de acreditar que poderia Anunciei no jornal que, naquela semana, estava criada a
mudar alguma coisa e me rendi à escravidão moderna série de reportagens “Às margens da sociedade” e traria
de trabalhar em troca do salário, que nunca dá para o matérias especiais em todas as edições de domingo com
mínimo e aguentar esculacho de patrões bem abonados perfis e fatos inusitados vividos pelas pessoas invisíveis.
que tentavam me demover da ideia de ser eu mesma, de
A intenção da série era contar as histórias reais de per-
correr pelo meu povo oprimido, de escrever as minhas
sonagens com faces desconhecidas ou ignoradas que
injustiças e de gritar para o mundo, através de cinco
frequentemente são forjados de estorvo e marginali-
manifestações criadas há mais de trinta anos, o quão
dade, em uma guerra diária pela vida.
interessante pode ser a vida periférica.
Inspirada pelas manhãs cotidianas, a primeira repor-
Esgotada por não ter nem o mínimo, que seria a dignidade
tagem da série foi sobre as diaristas, que teriam o dia
no emprego e ter de comer marmita fria, ser obrigada a
comemorado justamente naquele domingo, 27 de abril.
trabalhar bem vestida mesmo depois de um temporal

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280 Traficando conhecimento Em foco 281

Lavar, passar e cozinhar – Empregada Doméstica Atualmente, Mary se levanta às 7h, entra no serviço às
9h e trabalha até às 17h. Apesar da violência no ônibus,
Vidas que se cruzam nos ônibus, elevadores — de prédios
prefere usar este meio de transporte, na ida e na volta, a
pobres e residenciais chiques —, supermercados, venda,
caminhar até o serviço. No entanto, anteriormente a isso,
feira e pelas estradas da vida. As empregadas domésticas
quando trabalhava como vendedora de roupas usadas,
são muitas e algumas trazem o ofício na história da famí-
aceitando inclusive doações, fazia disso seu ganha pão e
lia, com a profissão passada de mãe para filha.
a pé, caminhando trechos longos por dia, economizava o
Tema de muitas discussões, histórias e estórias, as dinheiro da passagem para comprar comida.
empregadas domésticas já viraram filmes, documentá-
Aos 15 anos, Mary foi mãe do primeiro filho, Eduardo, que
rios, textos e personagens de um Brasil real, que não foge,
hoje tem 30 anos. Também é mãe de Adriana, 25 anos.
seja onde for, capital, interior, cidade de médio porte,
Relata que sempre trabalhou para poder sustentar os
praia, montanha, sertão, riacho, as domésticas sem-
filhos, visto que o primeiro casamento não deu certo.
pre existiram, promovendo a limpeza e o bem-estar dos
patrões, em um ofício insubstituível e, quem sabe, eterno. “Eu sempre trabalhei, saía cedo com as roupas para ven-
der e só voltava à noite, quando conseguia trazer algo de
Apesar do corre-corre da profissão e do dia a dia, muitas
comer para meus filhos. Saí de casa quando vi que meu
empregadas domésticas exercem a função além das oito
casamento não daria certo e trabalhei com fome, a base
horas diárias e não são aquelas que moram no emprego,
de feijão e polenta no estômago, para aguentar. Nesta
são as que saem dele e voltam para casa, onde são ainda
época, eu ainda trabalhava com roupas usadas e dormia
“donas de casa” ou “do lar”, e realizam o mesmo serviço
em um casebre, no chão, até ganhar uma cama. Digo isso
por duas vezes no mesmo dia.
para as outras mulheres, para que elas saibam como é a
É um trabalho difícil e, por estas e outras, as empregadas força de uma mina com vontade de vencer. Temos que ter
domésticas vêm sendo, cada vez mais, valorizadas hoje uma conexão com a vitória. O que eu gostaria de colocar
em dia. Com isso, conseguem fazer valer seus direitos. A é que, mudanças são necessárias, e é assim que eu vejo,
recente conquista do depósito do Fundo de Garantia por nosso país está precisando de gente corajosa para fazer
Tempo de Serviço — FGTS — mesmo que opcional para o grandes mexidas”, relata.
empregador, é sinal de que os tempos mudaram.
Ela diz, ainda, que, hoje em dia, chega a ganhar R$ 30 por
dia, o que dá para o seu sustento porém, fala com tris-
Guerreira
teza que a patroa reduziu os dias de serviço na semana,
Parece título de livro. E é neste ramo mesmo que ela quer fazendo, consequentemente, a renda diminuir. “Eu ia
trabalhar. todos os dias, agora, vou trabalhar apenas três vezes por
Um exemplo de uma vida corrida de empregada domés- semana e não sei como vai ser. Tenho muitas contas para
tica é o caso de Marilice Bagesteiro, conhecida como pagar, colocar comida em casa, coisas do tipo. Pretendo
Mary, 45 anos, que trabalha há dois como diarista, continuar trabalhando como doméstica, mas a renda
depois de ter deixado de comercializar roupas usadas está curta até para sair e procurar emprego”, conta.
de porta em porta.
282 Traficando conhecimento Em foco 283

Mary afirma também desconhecer que exista um dia outros locais, aumentando o orçamento, visto que cobra
no calendário nacional que comemore a profissão que R$ 30 por diária em apartamentos e casas.
ela exerce, mas, deixa como mensagem, que as mulhe-
Satisfeita com a profissão escolhida, Dita relata que há
res devem lutar para alcançar os objetivos e lugares na
sete anos está trabalhando na mesma casa e diz que a
sociedade, independente da profissão.
patroa sempre foi muito boa com ela.
“Eu quebrei muitas barreiras, aquelas que são impostas
“Gosto muito de onde eu trabalho. Eu que determino
na vida das mulheres. Eu tenho um filho que tem a idade
como será o meu dia de serviço. Quando eu chego, a
do cara que eu vivo hoje, o Bagé, de 30 anos, e eu quero
primeira coisa que faço é tomar café, depois, começo o
dizer que funciona cheio de moralismos e falsos valores
meu serviço normal, mas, em um dia eu lavo, no outro eu
que não nos levam a nada. Impedindo as mulheres, prin-
passo e assim por diante”, diz.
cipalmente as domésticas e diaristas, de serem livres
e felizes. Nós temos que ter, hoje, uma livre expressão Desconhecendo o dia instituído para comemorar a profis-
do corpo, da alma e, ainda mais, do pensamento, para são, Dita garante que é feliz na profissão escolhida. “Sinto
podermos nos expressar e lutar pelos nossos sonhos e prazer em ser doméstica. Me acostumei, embora exista o
direitos”, acrescenta. preconceito, eu gosto bastante do que faço. As pessoas
sempre me dizem ‘Você não tem cara de doméstica!’, e eu
Além de trabalhar como doméstica, Mary escreve letras
retruco ‘E para ser doméstica, precisa de cara?’”, destaca.
de rap e participa de sites e blogs — diários virtuais —
que difundem a literatura marginal.
Da história...
Há vinte anos na profissão, com prazer Uma outra história, de uma também guerreira não apenas
“O preconceito é frequente, muita gente torce o nariz poços-caldense, mas do Brasil, é a vivida por Laudelina
quando digo a minha profissão”, é o que afirma a domés- Mello, que nasceu em Poços de Caldas, em 12 de outubro
tica Maria Benedita Marcondes de Lima, 56 anos, conhe- de 1904 e começou a trabalhar com 7 anos de idade em
cida como Dita, que trabalha como empregada domés- casas de família, como era típico na época.
tica e diarista há mais de vinte anos. Aos 16, inicia a militância em organizações de mulheres
“Por vestir-me bem e estar sempre arrumada, as pessoas negras e atua, principalmente, em atividades de lazer
não acreditam que sou doméstica. Ainda tem aquela visão e cultura. Para ela, essa era a porta de entrada para a
de que empregada está sempre malvestida, o que não é consciência de classe, gênero e raça.
verdade”, destaca. Na década de 1930 muda-se para Santos (SP) e começa
Para criar os quatro filhos e ajudar a pagar, inclusive a a atuar em movimentos populares e reivindicatórios,
faculdade de um deles, Dita, sempre trabalhou como filiando-se ao Partido Comunista Brasileiro. Em 1936,
doméstica, sendo registrada em um serviço e fazendo funda a primeira Associação de Trabalhadores Domésti-
alguns bicos após o expediente. cos do país, na qual foi presidenta até 1949. No mesmo
período ajuda a fundar a Frente Negra Brasileira, a maior
Ela levanta-se todos os dias antes das 6h, enfrenta o ôni- organização da história do movimento negro, que chega
bus lotado da manhã em um trajeto de 10 quilômetros e a ter 30 mil filiados.
trabalha até às 15h. Dali, sai e trabalha como diarista em
284 Traficando conhecimento Em foco 285

Alguns anos depois, muda-se para a cidade de Campinas Elizabeth afirma ainda desconhecer o dia de comemora-
(SP), e participa, também, do movimento negro e de ativi- ção da empregada doméstica, mas diz sentir-se bem em
dades culturais e recreativas. Sua liderança, consciência ser doméstica, apesar das dificuldades.
de classe e disposição para a luta a levam a organizar e
“Com a minha filha, de 7 anos, é que as coisas se compli-
incentivar o surgimento de diversos sindicatos da cate-
cam em razão do horário. Eu tenho que deixar café pronto,
goria, projeto interrompido em 1964 com o golpe militar.
arrumar alguém para dar almoço para ela, tenho que sair
Instalada a ditadura, Laudelina é presa, entra para a
do serviço e pegá-la na escola, tudo é mais difícil”, relata.
clandestinidade e, posteriormente, passa a atuar em
comunidades eclesiais de base, formadas pela ala pro- A única coisa da qual Elizabeth reclama é de ter de fazer
gressista da Igreja Católica. o serviço no emprego, para a patroa e depois fazer o
serviço em casa.
Por conta de problemas de saúde e disputas políticas,
afasta-se, durante os anos 1970, do movimento das “São duas vezes a mesma coisa e, às vezes, é bastante
empregadas domésticas, mas volta à direção do, hoje, cansativo, mas é a luta pela sobrevivência. O que importa
Sindicato dos Trabalhadores Domésticos de Campinas, em para mim é o meu crescimento pessoal”, conclui.
1982. Nesse período, entra para o Partido dos Trabalhado-
res e incentiva a filiação de seu sindicato à recém-fundada No cinema
Central Única dos Trabalhadores. Existentes por todas as partes, as domésticas, que
Laudelina morre em 12 de maio de 1991, tendo como sempre fizeram um papel de pano de fundo no cinema,
único patrimônio uma casa em Campinas, que deixa de passaram às telonas, em “Domésticas - O Filme”, como
herança para o Sindicato dos Trabalhadores Domésticos. protagonistas da própria história, deixando de ser as
Ali é fundada a sede a entidade. figurantes de bandeja na mão, como as donas dos con-
flitos e tramas.
Na batalha do dia a dia
O filme se passa em São Paulo na capital, centrado
Na luta diária pela vida e sobrevivência está Elizabeth no cotidiano, nos anseios e nas expectativas de cinco
Camilo, 47 anos, trabalhando há dois anos como empre- profissionais do lar. E, na mão dela, não só o cafezinho,
gada doméstica, após ter se separado do marido. mas o cardápio completo: humor, tragédia e poesia.
O fato é que, nas telonas, ou na tela diária da vida real,
Para garantir o sustento, Elizabeth acorda todos os dias
as empregadas domésticas são peças fundamentais do
também antes das 6h e vai para o trabalho, além de ter
dia a dia brasileiro, seja para uma fonte de renda, para
que se dividir entre o emprego e os cuidados com a filha
a família, ou para quem elas prestam serviços. Guerrei-
caçula, de 7 anos.
ras, ou não, as empregadas domésticas assumem suas
“Eu me separei e tive que arrumar um serviço e como a formas, seus lugares e merecem destaque, neste dia
idade não facilita, de emprega doméstica fica mais fácil dedicado à profissão.
e como eu era do lar, já tinha prática, acabei me tornando
Encontrei, mais uma vez, nas mazelas humanas, a força
empregada doméstica”, conta.
para abandonar o meu próprio limbo e voltar a lutar
286 Traficando conhecimento Em foco 287

pela minha vida, a “correr pelo certo”, como quem é do acabando, morrendo aos poucos”, relata, soluçando e
hip-hop costuma falar. com os olhos inchados de tanto chorar.

Para a segunda edição da série, preparei uma reporta- Lucas usa drogas há sete anos, ou seja, desde os 13 e
gem sobre as mães que têm filhos presos, dependentes a mãe não sabe dizer o que levou o filho a enveredar-se
de drogas e que, nem de longe, passam um dia feliz no pelo caminho tortuoso dos tóxicos.
segundo domingo do mês de maio. “É estranho e ao mesmo tempo intrigante, porque além
do Lucas, tenho um outro filho de 18 anos, porém, o outro
Infeliz Dia das Mães sequer bebe. Não consigo encontrar onde eu possa ter
A história única das mães que amam, sofrem e choram falhado na educação ou criação dele que o levou a usar
com os filhos por problemas com drogas e dependên- drogas. Na infância ele sempre foi um bom filho, muito
cia química. carinhoso, mas, ao entrar na adolescência, mudou um
pouco o comportamento, e eu demorei a perceber que
Nesta data, a reportagem traz histórias de mães des- ele estava usando drogas. É difícil, porque não sei onde
conhecidas. Mães como todas as outras, que só querem falhei com ele”, comenta a mãe.
o maior bem do mundo para seus filhos, mas que nem
sempre ouvem um “Feliz dia das mães” na data de hoje. Atualmente, Lucas não trabalha, porque perdeu o emprego
que tinha, como entregador de mercadorias para um
Em uma guerra diária pela vida, são alvos de precon- supermercado. Passa o dia todo dormindo ou ouvindo
ceito ou, até mesmo, descaso por parte da população, música e, assim que a noite cai, vai às ruas, em busca
mães que têm filhos desconhecidos e sofrem, pelo amor de drogas. Quando não as consegue, volta para casa e
que têm neles. conta histórias mirabolantes à mãe, para convencê-la
Os nomes das fontes foram preservados, portanto, alte- a dar-lhe dinheiro.
rados para nomes fictícios. “Geralmente eu choro muito, não sei o que fazer e acabo
dando o pouco do dinheiro que ganho, fazendo faxinas.
Mãe do vício
No grupo que frequento, com ajuda psicológica para
“Lágrimas, medo, sobressaltos e cansaço”, isto é o que mães que têm filhos dependentes químicos, já fui ins-
marca a rotina de Marta P., 52 anos, nome fictício da mãe truída para não dar mais, mas, quando vejo meu filho
de Lucas P., 20 anos, e que vive o drama de ter um filho sofrendo, desesperado, acabo dando a droga. Sei que
dependente químico em casa. A família mora na Zona Sul estou financiando pequenas doses de morte para ele e
da cidade e, chorando, ela conta como é o dia a dia de um isso me deixa muito deprimida”, conta Marta.
usuário de drogas e de como a família fica comprometida
Sem conseguir dormir enquanto o filho não chega, Marta
em razão do vício do filho.
passa quase todas as noites acordada, temendo o pior
“Uma mãe sempre quer o melhor para seu filho, mas, para Lucas. “Não adianta, é coração de mãe. Sempre fico
chega em um ponto em que o cansaço é tremendo, fica- pensando que vou receber uma má notícia. Já pedi até
mos sem saber o que fazer. Não aguento mais ver meu que desligassem o telefone da nossa casa, porque fico
filho usando drogas, devendo para outras pessoas, se sempre achando que vão me ligar dizendo que meu filho
foi preso, morto”, desabafa, chorando.
288 Traficando conhecimento Em foco 289

Ao ser indagada sobre o filho estar envolvido com o trá-


fico, Marta destaca que não sabe sobre isso, mas pre-
fere acreditar que não. “Ás vezes eu acho que ele está
envolvido, outras acho que não. O que eu sei é que, várias
vezes, os traficantes foram até a porta da minha casa
cobrá-lo, ameaçando toda a família e eu acabei pagando
a dívida, mas, geralmente, são dívidas pequenas, que
ficam entre R$ 20 ou R$ 30”, conta.

Marta destaca que as drogas consumidas pelo filho, que


ela tem conhecimento, são crack e maconha. Ela conta
que várias vezes já encontrou os dois tipos da droga nas
coisas do filho, enquanto limpava ou separava roupas.
“Quando ele era mais novo, fazia questão de esconder,
agora não esconde mais. Parece que ele também perdeu
o sentido na vida e vive apenas por conta da droga”, relata.

A mãe acredita, também, que o filho não se envolve com


furtos e roubos, dizendo que se isso ocorresse, ele já
teria sido preso, contudo, o grupo de apoio às mães com
filhos dependentes já lhe alertou para o fato de que nem
sempre os usuários de drogas são pegos praticando
pequenos delitos, mas, que, na maior parte das vezes,
eles furtam para financiar a droga.

“Em casa ele já roubou quase tudo. Dinheiro, televisão,


DVD, aparelho de som e, inclusive, coisas do meu outro
filho. Agora, já tomamos o cuidado de não deixar as coi-
sas pela casa e eu conversei com ele, pelo menos a TV e
meu radinho ele deixou”, afirma.

Ela diz ainda que perdeu muito da autoestima por conta


do filho. Embora tenha um outro filho, Marta se deixa
levar pelo sofrimento causado pela conduta de Lucas.

“Eu sei que meu outro filho sofre por me ver assim,
mas ele nem comenta nada. Eu não tenho mais ânimo
para nada. Trabalho porque devo trabalhar. O pai deles
também sofre bastante com isso e sente-se culpado de
alguma forma”, diz.
290 Traficando conhecimento Em foco 291

No auge do desespero, Marta procurou uma entidade Do outro lado da grade


assistencial da cidade, que pode tentar encaminhar Lucas
Uma outra mãe que sofre pelos problemas que tem com
para uma internação, mesmo que involuntária, para tentar
o filho e, mesmo assim, não perde as esperanças é Olga
sanar o problema tão desgastante para a família.
B., 67 anos, uma senhora baixinha, gordinha, de cabelos
“Faz uns dois dias que ele disse ter parado de usar dro- brancos presos em um coque e uma sacola pendurada no
gas e afirmou, chorando, que a única solução seria uma braço, ela vai até a cadeia de segurança pública, visitar o
internação forçada, mas nunca sabemos se isto resol- filho que está preso há um ano, Pedro B., 28 anos.
verá de fato, ou se ele irá recair. Ele sempre afirma que
Mãe de quatro filhos, ela conta que esta é a segunda
acabou, mas sabemos que este é um discurso comum.
vez que o filho cumpre penas em regime fechado. Da
Creio que, se ele ficasse internado, talvez resolvesse,
primeira vez, Pedro foi preso por roubo e após ser solto,
mas, eu também preciso fazer algo mais por ele, porque
ficou seis meses em liberdade, sendo preso novamente,
com meu coração de mãe, eu acabo atrapalhando, aju-
por tentativa de homicídio. Tudo isso se dá porque o
dando a financiar a droga”, cobra-se Marta.
filho já foi usuário de drogas e ela diz que não sabe se
Mesmo culpando-se por não ser mais firme quando pre- ele parou de usá-las.
cisa, Marta não esconde seu amor por Lucas e chora a
“Desde muito jovem o Pedro usa drogas, começou com
todo momento, ao relatar episódios em que o filho lhe
cigarro e bebida, depois maconha e, de uns tempos para
pediu dinheiro, mesmo que inventando histórias, e ela
cá, até mesmo drogas fortes como o que eles chamam de
cedeu, ou quando o filho passou por uma situação difícil.
pó e um famoso mesclado, que parece que é a mistura da
“Há um ano ele perdeu um filho. Em um namoro ado- maconha com outra substância mais forte”, relata.
lescente, ele engravidou a namorada, ela resolveu ter o
Os outros filhos de Olga trabalham e são encaminhados
bebê e, quando estava no hospital, ainda com 2 dias, teve
na vida, dois deles já se casaram e moram fora de casa.
um problema no coração e morreu, o que deixou Lucas
ainda mais triste e depressivo, daí em diante, ele come- Ela acredita que o motivo da prisão do filho e do uso
çou a ficar menos em casa, parou de trabalhar e de certa desenfreado de drogas se deva ao fato de que, quando
forma, fica se culpando também”, conta. ele era criança, ficava apenas com sua filha mais velha,
que hoje tem 35 anos, para que ela fosse trabalhar.
Para Marta, seria um sonho ver o filho se recuperando,
bem, namorando, trabalhando e pensando em formar “Somos de uma origem pobre, então eu tinha que traba-
uma nova família, porém, sem autoestima, ela diz que lhar para ajudar no orçamento de casa. Depois que o pai
não se permite sonhar. dos meus filhos também faleceu, por beber demais, fiquei
sozinha para terminar de criá-los e não tinha como ficar
“Eu tenho esta fantasia e, ao mesmo tempo, deixo de ter.
com eles, ou mesmo vigiar e aconteceu isso. O Pedro se
Só queria ver meu filho bem, que voltássemos a ser uma
desencaminhou, começou a usar drogas, ficou agressivo,
família, sabe?”, finaliza, chorando novamente.
começou a roubar em casa, depois na rua, ficou preso. Eu
pensei que ele fosse melhorar quando saísse, mas não,
fez ainda pior e agora eu estou aqui”, conta, emocionada.
292 Traficando conhecimento Em foco 293

Olga destaca ainda que é bastante humilhante ter um protegê-lo, como eu gostaria de fazer, afinal, mãe é mãe
filho preso, ter de ir visitá-lo na cadeia, passar por revis- e não deixa de ser porque o filho está preso, usa drogas,
tas e todo o procedimento exigido. tentou matar alguém, sempre vou amar meu filho. Não
posso dizer que nunca fiquei decepcionada com ele,
“Eu fico muito envergonhada, até mesmo para andar na
senão, estaria mentindo, mas o amo da mesma maneira,
rua, pegar um ônibus, parece que todos me apontam
mesmo ele errado”, desabafa.
como mãe de um marginal. Meu filho não é marginal, ele
errou, sei disso, mas eu também errei com ele e me sinto Para o Dia das Mães, Olga diz que não está totalmente
tão culpada por tudo isso. Não sei nem de onde eu tiro feliz, por saber que Pedro passará longe dela, na cadeia,
forças para continuar vivendo, vir aqui na prisão vê-lo, mas, pretende fazer um almoço para os outros três filhos
trazer coisas para ele, é tudo muito triste”, relata, já com e a família deles. “Vamos almoçar em casa, fico feliz
lágrimas nos olhos. pelos meus outros filhos, mas, no fundo do coração,
sempre tem aquela dor, aquele desespero, porque eu
Na pesada sacola que Olga carrega, em direção à cadeia,
queria que o Pedro estivesse conosco”, lamenta.
ela leva alimentos, sabonetes e toalha para o filho e diz
que, mesmo sabendo que ele errou, ora todas a noites e Ouvir e relatar histórias como estas me fizeram deixar o
pede que Deus tenha piedade dele, além de tentar, com esgotamento pela rotina de lado e voltar com tudo para
pouco, zelar pelo bem-estar de Pedro, dentro da cadeia. as oficinas. Percebi que poderia fazer jornalismo e lite-
Com um olhar triste, Olga comenta que espera ansiosa ratura ao mesmo tempo, trabalhar com as ferramentas
pelo dia em que o filho sairá da cadeia, e faz planos para do jornalismo literário nos meus textos, produzir lite-
poder sentar e conversar com ele. Ela destaca, tam- ratura marginal por meio dos fatos reais que assolam
bém, que pretende procurar alguma ajuda, para tratar a nosso povo, cercados pelo preconceito, pelas situações
dependência química dele. limite, pela linha invisível do tráfico, pelo desejo de liber-
dade e pelo descaso social.
“Sou sozinha, as coisas são difíceis, mas espero conse-
guir tratar a dependência química do meu filho. Vou bus- Levei os dois primeiros textos produzidos para a oficina
car ajuda, e quando ele sair da cadeia, penso em procurar e bolei, mentalmente, oficinas futuras, além de voltar a
um serviço e ter uma vida normal. Sei que não é fácil, mas atualizar o blog e colaborar com o Literatura Periférica,
se eu não sonhar, fica ainda mais difícil”, diz. mantido pelo amigo Buzo.
Ela fala ainda sobre o preconceito que enfrenta, até Voltei, mesmo que ainda endividada, a comprar livros
mesmo para encontrar emprego, ou no bairro onde
de literatura marginal. Primeiro para alimentar a minha
reside, na Zona Leste da cidade, onde, segundo Olga, os
alma e segundo para usar no trabalho com as crianças
vizinhos, ao saberem das mazelas do filho, lhe viraram as
e adolescentes da oficina fixa e também do projeto iti-
costas e a julgaram.
nerante que eu estava pensando em criar. Com um novo
“Muitos nem sabem como foi difícil criar meus filhos e layout, o Cultura Marginal voltou a fazer jus ao nome,
dar pelo menos o que comer a eles, sem pedir nada a nin- e ao projeto, e a receber textos quase diários, além de
guém. Julgam-me e isso é fácil, mas só eu sei a dor que matérias semanais, sempre reproduzidas na coluna Às
é ter um filho preso, não poder vê-lo sempre, ou mesmo Margens da Sociedade.
294 Traficando conhecimento Em foco 295

A terceira reportagem da série foi a história de um andarilho. Na estrada


Já na estrada, Osmar lembra que, para comer, gastava
Pelos acostamentos da vida
o dinheiro que havia levado. A princípio, pensou que as
Mochila surrada nas costas e cantil pendurado no ombro. economias conseguiriam mantê-lo até São Paulo, mas se
Assim segue Osmar, 53 anos, andarilho pelas estradas do enganou e já no interior da Bahia o dinheiro estava prati-
país. Um homem de rosto queimado pelo sol e a pele des- camente no fim, o que o obrigou a arranjar bicos em bares
gastada pelo tempo passado às margens de estrada, diz e restaurantes de beira de estrada, bem como postos de
não se recordar do sobrenome e conta que está há mais gasolina e oficinas mecânicas. “Eu trabalhava horas em
de trinta anos perambulando pelo Brasil. troca de um prato de comida, para tentar chegar até a
próxima cidade e prosseguir a viagem”, diz.
Em uma manhã quente, ele deixou a cidade de Triunfo, em
Pernambuco e seguiu, a princípio de bicicleta, para São Foi então, que uma noite, em uma cidade baiana da qual
Paulo, onde pretendia encontrar um emprego, naquele não se recorda do nome, que Osmar teve a bicicleta fur-
que chamam de o maior centro empresarial do país. tada enquanto dormia em um posto de combustível. A
bicicleta, estacionada junto a outras, no mesmo lugar,
Enquanto ainda carregava sonhos na mochila, Osmar
foram levadas por ladrões durante a noite.
deixou a família no interior de Pernambuco e foi, peda-
lando e vivendo a vida das estradas, até chegar na maior Ao acordar e não encontrar mais meios de se transpor-
cidade brasileira, a capital do estado de São Paulo. tar, Osmar lembra que ficou desesperado. “Eu não sabia
o que fazer como chegar a São Paulo. Sem dinheiro, sem
Após viajar meses, com histórias peculiares sobre o tra-
a bicicleta, sem ter onde dormir e com medo de continuar
jeto feito entre Triunfo e São Paulo, Osmar lembra que
na estrada. Mas também, não tinha mais como voltar,
foram meses sofridos, porém, guarda boas lembranças.
então tive que prosseguir com a viagem. Foi um período
“Eu ainda era moço quando saí de casa, então, tinha
difícil, mas me lembro que fiz grandes amigos”, afirma,
um certo charme que a juventude deixa. Não me faltava
deixando transparecer a saudade.
nenhum dente e tudo mais e eu conheci uma moça, assim
que saí de Triunfo, num bar. Ela era a garçonete. A danada Mesmo sem a bicicleta, ele foi seguindo a viagem, a pé
atrasou a minha viagem para São Paulo”, se diverte, com e da mesma maneira, fazendo bicos para conseguir se
um sorriso no rosto e os olhos brilhando. alimentar.
Ele conta que, por causa da moça, ficou bastante tempo
Amizade feita na estrada
em volta do bar, gastou boa parte do dinheiro que tinha
guardado e levado para a viagem e o romance não deu Foi nesta época também que Osmar conheceu um grande
em nada. parceiro, chamado de Pernilongo, que o acompanhou
durante a viagem, a pé.
“Eu saí de casa para achar um trabalho, então, era isso
que tinha que fazer. Tive que deixá-la para trás. Era um “Eu conheci o Pernilongo, como a gente o chamava, no
tempo bom, apesar dos medos da estrada e dos perren- mesmo lugar onde furtaram a bicicleta. Levaram a dele
gues que passei”, destaca. também e, conversando, ficamos amigos. Ele estava
indo para o Rio de Janeiro e fomos andando e seguindo
296 Traficando conhecimento Em foco 297

juntos, mas, por fim, ele acabou indo para São Paulo Por cada estado e cidade que passou, Osmar guarda
comigo”, relata. uma passagem ou alguma coisa. Por não saber ler, nem
escrever, ele diz que se perde muito pelo caminho e
Durante anos, os dois viveram juntos e se ajudando.
ainda esclarece que prefere andar a pegar carona com
Fazendo bicos em troca de comida e caminhando a pé.
caminhoneiros ou viajantes. “Eu gosto mesmo é de cami-
Osmar, já não se recorda de quanto tempo levou para
nhar, como não tenho um destino certo, vou parando.
chegar a São Paulo, mas ele acredita que caminhou por
Sempre peço um pouco de comida, como, levo um tanto,
mais de um ano.
esquento em fogareiros que eu mesmo improviso e pro-
“Era difícil, porque não conseguíamos ir muito longe curo me abastecer com água, assim, vou caminhando,
ou caminhar por muito tempo, por falta de comida e observando cada paisagem, que é diferente por cada
tudo mais. Tínhamos receio de pegar muitas caronas. lugar que eu passei e isso me dá uma paz de espírito e me
Às vezes íamos até determinado ponto de carona com sinto mais perto de Deus”, destaca.
alguém que conhecíamos nos postos ou bares que ficá-
Questionado sobre a fé, Osmar ressalta que crê bastante
vamos parados”, conta.
em Deus e que se sente próximo a ele enquanto caminha
A amizade com Pernilongo durou até pouco tempo, quando pelo país afora. “Enquanto ando, vou rezando, conver-
no Rio de Janeiro, este faleceu. Osmar acredita que foi sando com o criador deste mundo tão grande e bonito,
uma vítima da dengue. que apesar das desigualdades, também tem belezas.
Basta saber enxergá-las.”, acredita.
“Ele ficou bem doente, achamos que foi dengue. Tentei
levá-lo para um albergue, mas ele faleceu. Também, já
Em Poços de Caldas
estava velho, mesmo assim, sinto falta de ter um com-
panheiro para caminhar comigo”, diz. Osmar diz que chegou até Poços após vir caminhando
pelo interior de São Paulo e conversando em bares, onde
Seguindo viagem adquiriu um gosto especial por tomar pelo menos uma
pinga por dia em cada local que passa. Assim ele desco-
Mesmo com a morte de Pernilongo, Osmar continuou
briu que aqui é uma cidade com águas termais e veio até
peregrinando pelo Brasil afora e conta que já esteve em
aqui, conhecer.
estados como a Bahia, São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito
Santo, Paraná e, atualmente, em Minas Gerais. “Parado em um bar no estado de São Paulo, passou um
caminhoneiro que disse que viria para Poços e que a
Porém, desde que saiu de casa, nunca mais teve notícias
cidade era bonita, com águas quentes e tudo mais e eu
da família ou mesmo retornou para Pernambuco. “Sinto
senti vontade de conhecer, peguei carona com ele e aqui
saudade, me pergunto como minha família pode estar,
estou, acho que já tem umas duas semanas, porém,
mas não tive como retornar. Nunca tive trabalho fixo ou
pretendo ir embora semana que vem rumo a Belo Hori-
residência. Permaneço, há mais de trinta anos nesta vida
zonte”, conta.
de andarilho. Já passei em albergues e tudo, mas é difícil
me acostumar, ou ficar muito tempo num mesmo lugar, Em Poços, ele conta que se alimentou, nos primeiros
penso que o meu propósito de vida é andar até chegar a dias, com o caminhoneiro que o trouxe, depois, fez ami-
minha morte”, acrescenta zade com outros moradores de ruas e passou a comer
com eles, do alimento que os mesmos pediam em resi-
298 Traficando conhecimento Em foco 299

dências e cozinhavam em uma casa abandonada, a qual


eles invadiram e habitavam.

“É uma vida diferente a que eles levam, foi bom, ficamos


amigos, conheci a cidade, mas agora já sinto vontade de
ir embora, talvez um dia eu volte, pois gostei do lugar, das
pessoas, dos amigos que fiz”, destaca.

Desta forma, seguindo por cada cidade, Osmar vai


vivendo e permanecendo na estrada, e pelo que ele
afirma, durante toda vida. “Não vejo porque mudar de
vida, sou feliz assim”, finaliza.

Comovida por relatos de luta e coisas inusitadas, como


as contadas por Osmar, me abriram os olhos, fazendo
ver que a vida vai mais além e que de repente, era tempo
de deixar algumas coisas para trás, como o tronco de
escrava ao qual eu estava presa. Na segunda-feira após
o fim de semana em que a matéria foi veiculada, enchi
uma pasta com vários currículos e visitei os demais
órgãos de comunicação, inclusive os que ficam na
mesma rua e calçando a cara, pedi um emprego.
Fui bem recebida em todos e, como resposta, a pro-
messa de que assim que surgisse uma vaga, ela seria
minha. Esperançosa, continuei à minha maneira e para
descontrair resolvi encarar a produção de mais um
evento de hip-hop, desta vez, com um sarau, ao melhor
estilo dos da capital paulista. Porém, enquanto traba-
lhava nos preparativos, não deixei de produzir as repor-
tagens, com o intuito de, mais tarde, transformá-las em
outro tipo de publicação para além do jornal e do blog.
Minha vontade continua sendo fazer pós-graduação em
jornalismo literário e mestrado em antropologia, justa-
mente para abordar o jornalismo em conjunto com a rea-
lidade e a literatura, principalmente no relato cotidiano
presente na literatura periférica que usa o submundo
como pano de fundo. Confira algumas reportagens:
300 Traficando conhecimento Em foco 301

Por amor: bandeira arco-íris “Não demorou um mês e estávamos morando juntos no
nosso apartamento”, comentam.
Na linha entre o amor e o preconceito, casal de gays
conta como vive e relata as particularidades da vida O casal vive em um apartamento pequeno, porém muito
entre dois homens. bem decorado, por Caio, que gosta bastante de explorar
o próprio lado artístico. “É para fazer jus. Dizem que todo
“Eu amo ser homossexual e quero é pregar a felicidade,
gay se dá bem com decoração”, se diverte.
porque eu sou feliz assim. Eu respeito, mas também
quero ser respeitado”, é o que afirma Daniel Sampaio Em uma sala bem decorada e limpa, eles contam as par-
(nome alterado), personagem desta edição da série Às ticularidades de um mundo que nem sempre é exposto
Margens da Sociedade que fala sobre a vida de um casal e, poucas vezes, é compreendido. Falam de preconceito,
gay, preconceito e orgulho da causa que abraça, que vai aceitação e felicidade.
em defesa de homossexuais.
O primeiro momento
Aos 27 anos, Daniel vive com um outro homem, Caio Pas-
choal*, 26 anos. Ele conta que eles se conheceram em Para ambos, é difícil falar do momento em que se acei-
uma boate voltada ao público gay na cidade de São Paulo taram e assumiram como homossexuais e cada um tem
e não se desgrudaram mais. uma história diferente.

“Eu não gostava muito de sair e ir à boates gays, mas Daniel relata que sempre teve a famosa “tendência” e
naquele dia, há quase cinco anos, resolvi sair da toca e nunca se deu muito bem com os garotos de sua idade em
fui nessa boate. Assim que botei os olhos no Caio e ele época escolar. “Eu não gostava de jogar bola, brincar na
em mim, nos aproximamos. Ficamos a noite toda conver- rua e coisas desse tipo, mas não entendia o porquê. Na
sando e bateu, ficamos amigos já com terceiras inten- pré-adolescência, eu me forçava a fazer estas coisas
ções”, brinca, ao lembrar. e, até mesmo, namorei garotas, para me enquadrar nos
padrões sociais. Quando fiquei adulto, percebi o grande
Quem continua a narração do primeiro encontro é Caio, erro que cometi comigo mesmo. Eu não era feliz”, comenta.
que lembra que, logo de cara, se deram bem. “Eu sempre
fui muito reservado e a empatia que surgiu com o Daniel Já Caio relata que desde muito novo, assumiu a homos-
foi incrível. Na primeira noite, contei toda a minha vida a sexualidade. “Eu era garoto e contei, inocentemente para
ele e ele me contou muita coisa também. Combinamos de minha mãe, que gostava de outro garoto. Claro que foi
nos encontrarmos no outro dia para caminhar e estamos um choque para toda a família. Passei pelos psicólogos,
juntos, caminhando, até hoje”, conta. terapeutas, psiquiatras, familiares, irmão mais velho e
nada adiantou. Aceitei-me e meus pais tiveram de fazer o
Daniel é funcionário público e Caio cabeleireiro. O casal mesmo. Não adianta lutar contra algo que é da natureza,
conta que na ocasião em que se conheceram, Daniel sabe? Nunca namorei mulheres. Claro que já estive com
estava passando um feriado em São Paulo com amigos. algumas, mas acho que foi mais para desencargo de cons-
Antes mesmo do fim de semana chegar ao final, os dois ciência, para constatar que eu gosto mesmo é de homens.
já estavam de volta a Poços, para que Caio conhecesse a Hoje, gosto do homem que é o Daniel”, diz, bem-humorado.
cidade e talvez se mudasse.
302 Traficando conhecimento Em foco 303

Daniel, contudo, diz que contar em casa a natureza pre- Preconceito


ferencial por homens e não por mulheres foi um processo
“O preconceito deixa marcas”, afirma Daniel, que diz que
doloroso. “Sempre tive medo de magoar e decepcionar
já sofreu vários tipos de preconceito, na rua, em antigos
meus pais, mas eu estava sendo infeliz em fingir que
empregos e em situações corriqueiras.
era algo que não era. Contei primeiro para minha mãe,
morrendo de medo da rejeição e para minha surpresa, “Não tem como um gay dizer que não aparenta ser gay.
embora tenha ficado chateada, ela me apoiou, disse que Claro que alguns demonstram mais, outros menos, mas
me amava e que gostaria de me ver feliz. Já com meu pai as diferenças de comportamento são visíveis e o precon-
foi diferente. Ele esbravejou, tentou me fazer mudar, mas ceito, mais visível ainda”, destaca.
como adiantaria? Hoje ele aceita, mas mantém uma certa
Já Caio acredita que, dentro do que é classificado como
distância. Por exemplo, ele nunca veio à minha casa, por
preconceito, o que mais deixa marcas é no que diz res-
saber que eu vivo com o Caio”, relata.
peito à parte psicológica. “Já deixamos de frequentar
A vida à dois vários lugares pela forma como somos tratados. Não
temos doenças contagiosas ou coisas do tipo. A única
Ao serem questionados sobre a vida à dois, o casal coisa que difere é que a pessoa ao meu lado é o Daniel
comenta que, assim como um casal hétero, existem as e não uma mulher, mas temos amor em nossa relação,
dificuldades de um casamento. Eles dão risada ao se coisa que muitos héteros não têm. Mas é um fato, o pre-
atacarem sobre as preferências domésticas de cada um e conceito dói. As piadas na rua, a forma de tratamento,
Daniel brinca com Caio. “Sempre discutimos sobre o modo a discriminação. Enfrentar o preconceito é muito difícil.
de apertar a pasta de dentes ou arrumar a cama”, ri. Mas é o preço de ser diferente, de ser feliz”, destaca.
Porém, mesmo com as pequenas diferenças domésti- Sobre ser xingado nas ruas, Daniel comenta que várias
cas, eles afirmam que vivem bem e sem brigas. “Claro vezes, há alguns anos, parou para discutir com as pes-
que temos ciúmes, crises, momentos difíceis, mas nos soas. “Hoje vi que não vale a pena. Penso que por meio
damos bem. Acho que nos completamos, sabe? Não de campanhas temos mais chances de atingir estas pes-
imagino minha vida sem o Caio. Somos o que falta um no soas do que parando para discutir na rua. Recordo-me
outro e somos muito felizes. Temos vida de casal, pes- de uma vez que estava andando pela rua e um monte de
soal e social”, acrescenta Daniel. adolescentes começou a me xingar. Parei e fui discutir
Para selar a união, eles contam que não fizeram festa, com eles. Um deles retrucou e me disse que o pai dele
casamento ou recepção, porém, ambos tatuaram uma tinha horror a homossexual e disse que contamináva-
lua azul nas costas, como prova de amor. “Acho que é mos a sociedade. Percebi que ali existia muito mais a
uma marca. As pessoas dizem que é loucura marcar o ser combatido do que provar que eu sou feliz e não faço
corpo e tudo mais, porém, eu penso que, mais do que o mal. Desisti da discussão após alguns minutos e quando
corpo, marcamos nossa alma ao nos unirmos e isso não saí, este mesmo adolescente atirou objetos contra mim.
tem laser que apague”, reflete Caio. Não parei para ver e quando cheguei em casa, desabei.
O meu consolo foi o amor do Caio. Desde então, aprendi
304 Traficando conhecimento Em foco 305

que podemos lutar contra o preconceito utilizando nossa jando Brasil afora, vendendo bijuterias ou biojoias (bijute-
maior arma, que é o amor. Mesmo, muitas vezes, sendo rias feitas com materiais naturais como pedras, folhas de
taxados de marginais pela sociedade, o amor nos forta- árvores secas, sementes) como são conhecidas e sobrevi-
lece e obriga a lutar contra este preconceito gritante”, vendo, ou como eles dizem, vivendo o real sentido da vida.
desabafa Daniel.
A história do casal se confunde com a da maioria dos
Iniciativa brasileiros, porém, com o diferencial de que ambos
abandonaram o conforto da vida contemporânea para
Discretamente, pois onde Daniel trabalha, nem todas as viver na estrada. Aos 30 anos, Pivô já fez curso de tor-
pessoas sabem de sua vida com Caio, o casal se orga- neiro mecânico pela escola profissionalizante, SENAI e
niza em manifestações e campanhas contra a homofo- abandonou tudo isso para ser hippie, vivendo já há dez
bia e o preconceito. anos na estrada.
“Quando vamos a São Paulo visitar a família do Caio, “O que me levou a ser hippie foi a busca pela liberdade.
nos engajamos em ONGs e buscamos o conhecimento Viajar, conhecer, não ter patrão. Ganhar meu dinheiro
para aplicá-lo em Poços também. Claro que é mais difí- honestamente e curtir a vida, como os hippies de anti-
cil, pois tenho que manter a discrição que meu cargo gamente”, conta. Com um sotaque de paulistano, ele
público exige, mas não estou impossibilitado. Através conta ainda que sofre até hoje os preconceitos de viver
da Internet trocamos ideias, informações e agitamos às margens da sociedade. “É o rapa, a galera, a falta de
uma campanha virtual”, conta. cultura, tudo isso é muito, somos muito discriminados
Caio afirma também que sua afinidade com a arte vai porque queremos ser felizes”, afirma.
além dos fantásticos cortes de cabelo e da decoração do Já Tamayra conta que vivia em Manaus (AM), quando
apartamento onde vivem. conheceu Pivô em um bar, onde ele fazia bijuterias e se
“Estou desenvolvendo um projeto. Pretendo ir às peri- encantou pela história e estilo de vida do mesmo. “Na
ferias, me encontrar com jovens carentes e que tam- verdade eu abri mão de tudo, do sistema. Eu tinha uma
bém são taxados de marginais e com eles, montar uma vida totalmente diferente da que eu levo agora, mas
peça teatral para tratar justamente da homofobia e do estou satisfeita. No início, larguei tudo por amor e arran-
preconceito, da invisibilidade social e gritante desamor. jei um outro, que é o amor pela estrada. Estou viajando
Ainda não tenho nada pronto, mas posso garantir que direto e sou realizada do jeito que estou”, destaca.
assim que conseguir implantar e desenvolver este pro- Antes de se tornar hippie, Tamayra cursou até o 5° perí-
jeto, muitas pessoas conhecerão o amor e os milagres odo da faculdade de administração de empresas, traba-
que ele é capaz de fazer”, pontua. lhou no banco HSBC e conseguiu, inclusive, comprar um
carro com o próprio dinheiro. “Eu abri mão pela felicidade
Vida contemporânea x vida nas estradas mesmo, fora do sistema”, acrescenta.
“Pela estrada da vida”, assim vive o casal de hippies, Mar- Ambos definem o dia a dia como uma correria, não muito
celo Pivovarte Camargo, 30 anos, e Tamayra de Andrade, diferente dos milhões de brasileiros que se adequaram
22 anos, conhecidos como Pivô e Tayta, que passam via- às normas da sociedade.
306 Traficando conhecimento Em foco 307

“Contudo, continuamos sempre firmes. Nem pensamos O hippie conta, também, que já passou por 16 capitais
em desistir. Nosso ganha pão são nossos “trampos”, que brasileiras, o que o torna um ser humano feliz e cheio de
fazemos com muito amor e cada um tem uma história”, histórias vividas em locais diferentes do país.
conta Tamayra.
Mesmo vivendo, aparentemente, sem regras ou controles,
Ao serem indagados sobre a quantia adquirida mensal- os hippies buscam conhecimento e se interam de fatos atu-
mente com a venda dos trabalhos artesanais, os hippies ais do país, não somente os culturais, mas também política
ressaltam que não têm noção, uma vez que assim que o e democracia e, contudo, tecem críticas ao sistema.
dinheiro entra, já é gasto com comida e bebida.
“É muita discriminação, burocracia e ninguém respeita
“Um dia é maré alta, outro dia maré baixa, mas, investi- as leis, porque temos o livro da constituição que traz
mos o dinheiro em nossa história, além de alimentação, que quem faz seu trabalho honestamente, artesanal,
temos um dinheiro guardado, para ser investido numa tem direito a um metro quadrado em cada terra, só que
terra em Manaus.”, diz Pivô. a lei municipal passa por cima da federal e continuamos
nessa luta. É Brasil, né mano?”, acrescentam.
Desmistificando
Um misto entre lucidez e doideira, esta é a impressão cau-
Apesar de viverem pelas estradas, acampando nos sada por quem conversa com o casal ou fica perto durante
campings, praças e locais públicos, o casal destaca que algum tempo. Com garrafas de vinho tinto na mão, logo às
também tem casas, como a dos pais, onde passam algum 9h, eles dizem que bebem para suportar o frio que é estar
tempo quando a saudade aperta. nas ruas durante os meses mais gelados do ano.
Atualmente, em razão de uma cirurgia na hérnia, Pivô não Além das garrafas, eles têm nas mãos os apetrechos
tem viajado grandes distâncias, ficando concentrado no necessários para confeccionar bijuterias, que podem
sudeste, com paradas regulares na casa da mãe, que vive ser do gosto do cliente, feitas na hora, ou as que já estão
em São Paulo, na capital. prontas, nos mostruários.
“Minha mãe mora no Ipiranga, eu fico por lá, mas sei Ao abordar as pessoas, eles sempre ressaltam que o
lá, de repente é como se não estivesse, porque ela não dinheiro pago é para ser investido em mais uma garrafa de
admite o meu jeito, a minha vida. Mas, eu tô vivendo a vinho. “É para fortalecer o vinho da manhã”, dizem. Da con-
minha vida, honestamente”, destaca. cepção social e do senso comum de que os hippies estão
Contudo, o casal faz questão de ressaltar que não tem às margens da sociedade, Tamayra adquire uma postura
planos ou mesmo rotina e afirmam que a vida é o dia a dia. concisa e forte a respeito disso. “É coisa de gente leiga,
estão por fora, são sem cultura. Hippie é só alto astral, só
“Não tenho grandes ambições como o carro do ano, uma felicidade. Aprendi a viver fora da cultura do sistema, vivo
TV de Plasma, eu só quero curtir a vida. Se eu tiver um bem, não passo fome, bebo o quanto quero, curto o quanto
pedaço de terra onde morrer, já é válido. Eu armo minha quero e tento passar isso adiante”, acrescenta.
barraquinha no meio do terreno e já era”, comenta Pivô.
308 Traficando conhecimento Em foco 309

Amizade mais espetaculares (e mais ridículas) um numeroso


grupo de hippies rodeou o Pentágono (sede do aparelho
Acompanhando o casal está uma amiga, também conquis-
militar americano) e tentou fazê-lo levitar apenas com a
tada na estrada. É Kelly da Silva Pereira, 23 anos, que saiu
“força da meditação”.
de Alagoas para viajar pelo país. “Conhecer o movimento
hippie foi uma revolução na minha vida. Há cinco anos que Estabeleceu-se um “estilo hippie”, com roupas coloridas,
eu estou vivendo assim e é muito bom. Massa”, diz. túnicas, sandálias, cabelos compridos em ambos os sexos.
A flor foi um dos seus símbolos e chegou a usar-se a expres-
O dia a dia dela é bastante parecido com o do casal.
são “flower power” como designação do movimento.
Ela faz o que sente vontade no momento e mantém a
mesma postura de pregar “paz e amor” e a vida fora dos Desta forma, alguns hippies ainda permanecem pelo
padrões sociais. mundo, inclusive pelo Brasil, vivendo em comunidades
específicas ou viajando, pregando o princípio de paz e
Segundo os hippies, uma das vantagens deste estilo de
amor por onde passam, fugindo das obrigações sociais e
vida é o fato de que, pela estrada, muitas amizades são fei-
do sistema, que eles consideram injusto e ineficaz.
tas e levadas por toda a vida, como a história dos mesmos.

O movimento hippie Profissão: Prostituta

A cultura e movimento hippie nasceu e teve o maior Maquiagem, salto alto, vestido curto e bolsa pequena,
desenvolvimento nos Estados Unidos da América (EUA), estes são apenas alguns acessórios de Flávia Oliveira,
com uma juventude rica e escolarizada que recusava 18 anos, que adotou este nome fictício ao tornar-se
as injustiças e desigualdades da sociedade americana, travesti e começar fazer o famoso ponto, nas ruas de
nomeadamente a segregação racial. Poços de Caldas.

Na sua expressão mais radical, os jovens hippies abando- Conhecida como Flavinha, ela conta que se tornou tra-
navam o conforto dos lares paternos e rumavam para as vesti e prostituta há um ano porque quis. “Ninguém me
cidades, principalmente São Francisco. Viviam em comu- obrigou a nada, desde pequena eu queria isso e somente
nidade com outros hippies; noutros casos se estabeleciam agora eu tomei esta postura para me assumir mesmo,
em comunas rurais. Dois valores defendidos: a “paz” e o entendeu? É uma coisa que quero mesmo”, dispara.
“amor”. Opunham-se a todas as guerras, incluindo a que Por sempre ter tido uma convivência no meio de mulhe-
o seu próprio país travava no Vietnã. Defendiam o “amor res, Flavinha conta que nunca levou jeito para ser hétero,
livre”, quer no sentido de “amar o próximo”, quer no de então começou a tomar remédios e tornar-se mais femi-
praticar uma atividade sexual bastante libertária. Podia- nina, além de brincar mais com mulheres.
se partilhar tudo, desde a comida aos companheiros. A
palavra de ordem que melhor resume este sentimento foi “Eu fui criada por mulheres, sempre convivi nesse meio.
a famosa “Make love, not war” (Faça amor, não guerra). Os homens da minha casa trabalhavam, então eu sempre
vivi em meio às mulheres. Então, para tornar-me o que
Os hippies apreciavam a “filosofia oriental”, o que signi- sou hoje, comecei a tomar certos tipos de remédios, usar
ficava alguns aspectos da religião hindu misturada com coisas mais femininas, desde os meus 12 anos e, até
doutrina da “não violência” de Gandhi. Em uma das ações
310 Traficando conhecimento Em foco 311

hoje, me sinto evoluindo. Então, aos 17 anos eu decidi ser Contudo, ela detalha, também, os maus tratos, vindos do
travesti, mas uma travesti de programa”, detalha. preconceito e de pessoas que não assimilam situações
como a que Flavinha vive.
Ao ser indagada sobre o momento em que descobriu ser
homossexual e se decidiu pela prostituição, Flavinha “Claro que existem pessoas maldosas, que me xingam
lembra que teve a primeira experiência sexual aos 10 na rua, mas eu passo de cabeça baixa, não respondo,
anos. “Mas eu ainda tinha medo e a incerteza de querer porque a melhor a resposta é o silêncio. Mas tento ser
realmente aquilo para minha vida. Aos 12 anos, quando normal, aliás, eu sou uma pessoa normal”, destaca.
cheguei em Poços, vinda da Bahia com a minha família,
vi como é a vida aqui, encontrei-me com pessoas mais O programa
evoluídas e passei a me travestir”, diz. Ao assumir que realiza programas sexuais por dinheiro,
Flavinha fala também, com certa tristeza, que os pais Flavinha faz questão de ressaltar que é por opção e que
não aceitaram de imediato o fato de ela ter começado a faz isso simplesmente porque gosta e sente prazer.
se travestir, aos 12 anos. Nas proximidades do Complexo Cultural da Urca, conhe-
“Demorou alguns anos para eles entenderem que eu cido como “paredão”, é onde Flavinha costuma ficar
havia assumido. Isso aconteceu há uns dois anos ape- durante as noites, em busca de dinheiro atrelado à satis-
nas, mas foi uma grande batalha”, afirma. fação sexual e pessoal.

Sobre praticar sexo por dinheiro, ela conta que os pais “Eu costumo ficar ali perto, mas já tenho vários clien-
sabem do fato, mas ainda não assimilam com clareza a tes. Espero eles me buscarem em casa, pois, como sou
situação. independente, moro sozinha, eles me pegam em casa
ou, aqueles fixos, que eu já conheço há tempos, costu-
A vida em Poços de Caldas mam entrar”, conta.

“Minha vida é ótima”, conta Flavinha. Vinda da Bahia há O preço estipulado por ela vai de acordo com a hora.
quase oito anos, Flavinha atualmente mora sozinha, no Quando o programa é feito em casa, Flavinha cobra R$ 100.
centro da cidade. Os pais também moram em Poços, mas E quando é na rua, o preço costuma ser de R$ 50 por meia
não dividem a mesma casa com a travesti. hora, que geralmente é gasta em motéis.

Com uma rotina diferente, até mesmo pelo tipo de vida “Ás vezes chega a acontecer no carro ou mesmo em
escolhida, durante o dia Flavinha arruma os objetos e alguns outros lugares que eu já conheço, ou que nos
pertences em casa. levam, mas que já temos referências”, diz.

“Minha mãe tem um estabelecimento em casa e às vezes Ela conta, também, que não são todos os dias da semana
vou para o local, que prefiro não citar, como travesti em que programas são feitos. A frequência maior é no
mesmo e as pessoas que entram no estabelecimento me final de semana. “Tem dias que eu não vou ao ‘paredão’
aceitam, me tratam muito bem, da mesma forma que eu pois não estou com cabeça mesmo”, comenta.
as trato”, enfatiza.
Há também horários pré-determinados pelos travestis e
garotas de programa que frequentam os locais famosos
312 Traficando conhecimento Em foco 313

por oferecer prostituição. De acordo com Flavinha, o Defendendo a classe em que trabalha, Flavinha não
movimento se intensifica após às 21h de sexta-feira e vai acredita que as ações policiais sejam exclusivamente
até antes do amanhecer, por volta das 5h. Nestes locais, para zelar pela ordem pública e bem-estar da sociedade,
muitas amizades são feitas entre as outras prostitutas. mas classifica tais atividades como abuso de poder.
“Tenho muitas amigas ali, sim, somos bastante unidas, já
“Tem muita gente em Poços que pensa que a prostituição
passamos por vários desentendimentos anteriormente,
nas ruas é uma coisa sobrenatural, sabe? São reações
mas isso era quando uma não conhecia a outra e gerava
superpreconceituosas, mas, estas pessoas que pensam
aquela confusão, agora, somos bastante unidas”, relata.
assim, por trás disso, são os que vão nos procurar mais
O inusitado tarde. Na calada da noite, eles mostram a verdadeira
cara. Porque durante o dia, são um tipo de pessoas, à
Ao ser questionada sobre situações ou programas inu- noite, são outro e isso é o que eu não aceito”, desabafa.
sitados, Flavinha conta que já saiu para fazer programa
com dois casais heterossexuais. “O que eu observo é que Sobre a procura por programas, Flavinha acredita que o
as mulheres querem ter uma relação sexual com uma que leva um homem ou mesmo mulher em busca de um
travesti. Já saí com dois casais. Porém, da primeira vez, travesti na rua é a busca pelo prazer. “Muita gente tem
não fiz nada com a mulher. Já na segunda vez, eu fiz por- vontade, mas nem todos têm coragem. Eu acho que é
que fiquei com vontade, aí aconteceu. Foi a primeira vez uma fantasia sexual”, destaca.
que eu tive relações com uma mulher”, detalha. Já para ela, o maior prazer da profissão é ser reconhe-
Sobre os programas feitos com homens, ela garante que cida entre os homens. “Eu gosto da propaganda do boca
não existe mais os estereótipos de travesti passivo ou a boca, os homens dizem que eu sou boa e indicam, para
ativo. “Depende do que os homens querem ou pagam, que outros saiam comigo. Isso é o que me dá prazer”,
mas, no meu caso, o que eles querem, eu faço”, garante. afirma. Além disso, Flavinha não deixa de citar o dinheiro,
que, de certa forma, vem fácil por meio da prostituição.
O “paredão” por ser um local antigo e bastante conhe-
cido, por muitos moradores da cidade, como um ponto de Os perigos da prostituição
prostituição, é também alvo de muitos preconceitos por
Por semana, Flavinha consegue ganhar em média R$ 350,
parte da sociedade e, algumas vezes, até mesmo da polí-
ou seja, um pouco menos que um salário mínimo. Porém,
cia, como conta Flavinha. “Já sofremos algumas amea-
vários fatos tristes também fazem parte da história, pouco
ças de cidadãos e também vários policiais já pediram
comum, de Flavinha. Ela conta que no Carnaval de 2007,
para que deixássemos o local, mas eu não entendo, tam-
saiu com um rapaz da cidade vizinha de Caconde (SP).
bém, o porquê disso. Não é a primeira cidade de Minas
Gerais que tem profissionais do sexo nas ruas, todas as “Ele começou a passar de carro, que também tinha
cidades têm. Muitas vezes tentam nos tirar de lá, nos dão as placas de Caconde (SP) e eu não estava na Urca. Na
‘gerais’ desnecessárias e ficamos inclusive constrangi- terceira vez que ele passou, parou. Contudo, ele estava
das, porque as pessoas passam, olham, eles reviram com uma cara um pouco suspeita, aparentando estar
nossa bolsa, jogam nossas coisas no chão, pedem-nos bêbado”, conta.
para tirar a roupa, às vezes”, descreve.
314 Traficando conhecimento Em foco 315

Com isso, alertada por uma amiga, Flavinha fotografou Na capital paulista, fato semelhante já aconteceu com ela,
uma das placas, como uma espécie de garantia. Dali, o cara recusou-se a pagar o programa, lhe apontou uma
Flavinha e o rapaz foram para um local já conhecido por arma e a deixou no meio da rua. “Ele me deixou no meio do
ela, próximo à Avenida João Pinheiro. nada, eu nem sei onde desci, mas graças a Deus eu tinha
dinheiro na bolsa, liguei para um táxi e ele foi me buscar,
“Eu já conhecia e quis ir para aquele local, justamente,
mas foi um dia em que eu senti bastante medo”, lembra.
por isso, pensando que se algo acontecesse, eu saberia
para onde correr, fugir ou mesmo pedir socorro”, relata. O preconceito
Daí em diante, um programa entre os dois foi feito e na
hora de acertar o prazer recebido, o rapaz não quis efe- “Tem muitas pessoas que nos apontam nas ruas. Acham
tuar o pagamento, sacando uma faca. que somos alvo de zombaria”, diz, ao referir-se ao precon-
ceito existente da sociedade com os travestis e, também,
“Ele disse que não me pagaria, puxou esta faca, porém, com as prostitutas. Contudo, Flavinha destaca que pre-
eu também estava com uma navalha e tentei me defender. fere ignorar o preconceito e levar a vida como está acostu-
Descemos do carro, começamos discutir e o resultado é mada, sem se deixar abater com o julgamento alheio.
que eu tenho uma cicatriz nas costas, onde ele passou a
faca em mim. Porém, eu também passei a faca nele. Ele “Eu prefiro esquecer isso tudo, embora alguns falem, eu
disse que iria registrar um boletim de ocorrência e eu vou levando a vida, pois, para conseguir o que quero, eu
garanti que quem teria a temer era ele, pois todos sabe- devo passar por isso”, afirma. Quando diz que quer chegar
riam com quem ele havia saído e eu explicaria para a polí- a algum lugar, Flavinha refere-se ao ideal que criou para si
cia que ele não quis pagar meu programa. Porque, neste mesma, que é colocar mais silicone no corpo e mais próte-
caso, eu acho que a polícia deve ir atrás”, narra Flavinha. ses e ela enxerga, como única alternativa para alcançar o
sonho, se prostituir.
Após estes fatos, Flavinha começou a correr e gritar ao
rapaz que estava com ela que havia tirado foto das pla- Relacionamento
cas do carro. Quando chegou no centro da cidade, pró-
Além dos sonhos já citados por Flavinha e dos planos
ximo ao “paredão”, o mesmo rapaz parou Flavinha, pediu
para o futuro, Flavinha conta que possui um namorado
que ela não fizesse nada e lhe deu o dinheiro devido pelo
em Poços. “Ele é muito bacana comigo, acho que ainda é
programa. “Naquele momento aceitei, mas foi um apuro
a única coisa que realmente me prende na cidade”, conta.
pelo qual passei”, diz.
Os dois se conheceram na rua e segundo relatos dela, ele
Ela relata ainda que nem sempre anda como armas bran-
a aceitou enquanto prostituta. “Mesmo não querendo,
cas como facas, estiletes ou navalhas e diz que naquela
ele tenta entender isso”, afirma.
noite, por sorte, estava com uma navalha.

“Aqui em Poços eu não me armo mais, porque a polícia O dia de hoje... O futuro...
já me parou, porque tinham pessoas denunciando que
Diferente dos relatos comuns de prostitutas, que iniciaram
estávamos armadas, mas só pode ser quem sai com a
na profissão por falta de recursos financeiros, Flavinha
gente”, comenta. Porém, Flavinha afirma que, quando
nunca passou por nenhuma necessidade e conta que os
vai para a cidade de São Paulo fazer programas, arma-se
pais sempre lhe proporcionaram bem-estar dentro de casa.
com medo de sofrer alguma coisa.
316 Traficando conhecimento

“Eles sempre batalharam, tanto na Bahia como aqui, mas


me prostituir foi uma opção. Não precisava de nada disso
que estou passando, faço porque gosto mesmo, embora
não seja fácil ficar na rua, é algo que quero passar, para
chegar onde quero”, relata.

Ela diz, também, que trabalhar em um emprego con-


vencional, por ora, não está nos planos, visto que a rua
oferece dinheiro mais rápido. Contudo, a travesti relata,
também, que, às vezes, a rua não é tão agradável e sedu-
tora, numerando fatos como não ter clientes todos os
dias, ou fatos desagradáveis com pessoas que fazem o
programa e recusam-se a pagar o preço estipulado.

“Eu já procurei empregos convencionais, mas aqui em


Poços não consegui nada. Acho que os empresários são
preconceituosos ainda. Só existem opções para cabelei-
reiro e quero trabalhar com moda”, conta Flavinha.

Ela diz ainda que não conseguiu se firmar em um emprego


comum, porque deixou de tentar ao longo do caminho.
Atualmente, Flavinha quer continuar na rua, trabalhando
como prostituta, mas não descarta a hipótese de, futura-
mente, dedicar-se ao sonho, que é trabalhar com moda.

Sem se esquecer do sonho e que cada dia ou mesmo pro-


grama é um passo dado em direção ao futuro, Flavinha
conta que sempre se previne contra Doenças Sexual-
mente Transmissíveis (DST) ou mesmo da Aids. “Minha
bolsa é lotada de camisinhas, eu tenho a carteirinha no
DST / Aids e me cuido também. Muitos caras chegam até
mim, dizem que são casados, que não têm nada, porém,
eu bato o pé e exijo o uso da camisinha”, relata.

Para finalizar, Flavinha reafirma considerar-se uma pes-


soa bastante feliz e realizada no que faz. “Eu sou hiperfe-
liz no que sou, no que faço e com as amizades que tenho
neste mundo. Eu tenho que dizer para as pessoas abrirem
a mente, porque todo mundo é igual, não tem quem seja
diferente, perante Deus, todos somos iguais”, finaliza.
318 Traficando conhecimento Em foco 319

Caminho de pedras Após usar cocaína e maconha por anos, Toquinho conhe-
ceu o crack há pouco mais de um ano e, deste então,
É uma manhã ensolarada de sábado. Os termômetros
diz que raras foram as vezes em que ele não fez o uso
marcam algo em torno de 22° C e, apesar da época ser
da droga. “Antigamente usava com um maior espaço de
considerada fria, faz um dia agradável.
tempo. Agora, acordo fissurado, como hoje, levantei e já
Sentado, na porta de casa, Augusto Caetano* (nome fumei. Parece que foi ontem mesmo, mas vejo que minha
alterado), 19 anos, conhecido como Toquinho, pela baixa vida mudou”.
estatura, conta à reportagem que naquela mesma manhã,
Neste momento, Toquinho abaixa a cabeça e mostra
assim que se levantou, por volta das 9h30, já havia usado
sinais de estar levemente emocionado. Em seguida, conta
crack, droga derivada da mistura da cocaína ao bicarbo-
que, antes de usar o crack, saía todos os fins de semana,
nato de sódio, geralmente fumada em cachimbos e bas-
namorava e sentia mais prazer em viver. “Como eu contei,
tante comum nos locais mais pobres das comunidades.
sempre usei drogas, mas agora parece que é pior. Eu me
Por ser mais barato que a cocaína, o crack chega mais sinto em função do crack. Uma parte de mim diz que não é
facilmente às mãos dos jovens e casos como o de Toqui- viciado e outra me mostra que sou totalmente dependente
nho são mais raros, visto que os jovens começam a fumar do cachimbo para estar feliz ou mesmo vivo”, declara.
o crack com idades entre 10 e 12 anos. “É uma droga que
Antes de conhecer o crack, Toquinho, apesar de morar em
tem um efeito legal, embora dure pouco tempo. Uma
um bairro pobre da cidade, trabalhava e levava uma vida,
pedra de crack custa R$ 10”, conta, timidamente o rapaz.
aparentemente natural, como outros rapazes da idade
Estudos acerca da droga mostram que este é um vício dele e que também fumam maconha e cheiram cocaína.
bastante caro e que de pedra em pedra, os usuários Ao conhecer o crack, se viciou quase instantaneamente
passam a quantidades maiores, tentando obter o mesmo e revela que perdeu o emprego, a namorada e com isso,
efeito das primeiras vezes consumidas. muito da vontade de viver.

O crack chega a ser até seis vezes mais potente que a Sustentando o vício
cocaína, contudo, provoca dependência física e pode
levar à morte por ter uma ação fulminante sobre o sis- Segundo o Departamento Estadual de Investigação sobre
tema nervoso central e cardíaco. Narcóticos (Denarc), o crack é a droga com um dos mais
altos poderes viciantes e uma pessoa, apenas de experi-
O antes e o depois mentar, já se torna um viciado.

“Lutei muito tempo para me assumir como um depen- O efeito do crack passa muito depressa, e o sofrimento
dente de crack”, conta Toquinho. “Quando eu era mole- pela ausência do mesmo no corpo vem em 15 minutos, ou
que, fumava muita maconha e achava o máximo, até que seja, o usuário, a cada dia que passa, faz uso de quanti-
com uns 16 anos, fiquei amigo do pessoal que repassa dades maiores e aumenta, com isso, os gastos.
a droga e entre um repasse e outro, junto com eles,
Surge então a fase em que a pessoa faz qualquer coisa
treinando para ‘aviãozinho’ — pessoa que leva a droga
para obter a droga. Isto é confirmado por Toquinho, que,
de um local a outro — eu experimentei cocaína e gostei
ao perder o emprego de auxiliar mecânico, passou a atuar
bastante. É estranho a gente falar que gostou de uma
como “aviãozinho” onde mora, para obter um pouco mais
coisa que faz mal, né?”, comenta.
320 Traficando conhecimento Em foco 321

da droga. “Eu sempre tenho que entregar a pedra, algu- mento de culpa e depressão, daí a tendência dele usar
mas vezes, vender e, com isso, ganho algumas. Depende de novo, para não enfrentar o desconforto que a droga
do meu desempenho. As que eu ganho, posso vender por provoca”, explica.
conta própria, ou usar. Como eu uso, fico com elas para
Contudo, a sensação do crack é muitas vezes ilusória,
mim. Mas, cada dia que passa, me vejo obrigado a entre-
como relata Toquinho. “Ao mesmo tempo em que me
gar ainda mais pedras para usar mais”, conta.
sinto muito bem usando o crack, vejo que perco muita
Toquinho revela, também, que, para comprar drogas, coisa. Antigamente eu me preocupava com o tipo de
muitas vezes, furtou pequenos objetos em casa ou pediu roupa que usava e a forma como me vestia. Hoje, não ligo
dinheiro para a mãe. “Minha mãe trabalha como domés- mais para isso. Meu único interesse é obter a pedra e
tica, então, por várias vezes, peço dinheiro para ela. Ela usá-la da melhor forma possível”, conta.
sabe que é para drogas, me xinga, pede que eu procure
Para Luciana, esta posição denota o processo de “suicí-
um novo emprego, mas eu não quero, quero só a pedra,
dio inconsciente”, em que grande parte dos usuários foge
fumar o crack, sozinho em paz”, diz.
das responsabilidades e nem cogitam a ideia de deixar o
Outras vezes, para comprar droga, Toquinho furtou CDs, crack. “É mais fácil se entregar a isso, não querer ficar
um par de tênis e blusas do irmão mais velho. “Como ele adulto, esperar que a morte venha, de uma forma ou de
trabalha o dia todo, quando bate a fissura, tenho que outra. Pode ser pelo uso prolongado da droga e da dege-
fazer isso. Mas não sou um monstro. Eu me arrependo neração do organismo, ou através da polícia, das dívidas
depois. Conto para ele. Peço desculpas”. com os traficantes”, afirma.

Para Toquinho, o crack é ao mesmo tempo um alívio e um Toquinho conta que em uma única noite, já chegou a fumar
peso. Como fuga da realidade, ele embrenha-se, cada diz até sete pedras de crack. Número considerado alto, até
mais, no uso da substância e não tem intenções de parar, mesmo entre os usuários. “Foi durante uma festa. Eu
porém, não sabe o que faz para manter o vício. “Não tive várias alucinações. Não sabia se era dia, noite, quem
vejo sentido em continuar, mas não quero parar. Queria estava a minha volta, mas, foi uma sensação muito boa
apenas uma forma de poder ter quanto crack eu preciso. também. Se eu pudesse, fumaria tudo novamente”, afirma.
A sensação que ele me causa é ótima. Não faz sentido
parar”, dispara, se contradizendo. Medo
Ao ser questionado sobre ter medo da morte ou mesmo da
Sensação
polícia ou de traficantes, Toquinho hesita e diz que o medo
A contradição de Toquinho é comum em usuários de varia.“De morrer eu não tenho medo. Mas, por outro lado,
crack, conforme afirmam muitos psicólogos e pessoas tenho dó da minha mãe, sabe? Ela faz tudo por mim. Vejo
que lidam com situações semelhantes, como é o caso que errei na vida. Sinto-me fraco e sem vontade de parar.
de Luciana Marques, estudante de psicologia e estagiá- É mais forte do que eu. Só quem já fumou crack entende o
ria em centros de reabilitação. “O crack gera um prazer que digo. Mas é uma coisa que me comanda. Ao invés de
imediato, então, em cerca de dez segundos, o usuário eu mandar em mim, quem manda é a droga. Imagino que
se sente um super-homem e toma coragem para fazer tentar parar dá mais trabalho do que continuar fumando.
abordagens. Mas o fim do efeito vem repleto de senti- Agora, da PM ou dos traficantes eu não tenho medo. Não
322 Traficando conhecimento Em foco 323

fico dando bobeira. Fumo crack em casa. Ando com pouca Em seguida, o Corpo de Bombeiros foi chamado e após
quantidade. Os caras que passam a droga, também, são muitas perguntas e confirmação de nome, endereço e
meus amigos. É só ficar esperto e não fazer dívidas, mas telefone do solicitante, a reportagem foi informada que
sobre isso eu ainda tenho controle”, revela. uma Unidade de Resgate (UR) estava a caminho do local.
O relógio marcava 12h19. A vítima, ainda caída ao solo e
Futuro? imóvel, abriu os olhos e murmurou “eu estou morrendo,
Não existe um tempo estimado de vida para os usuários eu fui atropelada” e expressava dor por estar ali, daquela
de crack, mas é sabido que grande parte deles, se não maneira, sem poder ser removida.
deixam a droga, morrem por motivos já citados, como Alguns carros que passaram pelo local pararam para ofe-
dívidas, presos ou por degeneração do organismo. recer ajuda. Um deles, de uma empresa da cidade parou.
Toquinho afirma que não acredita em um futuro para ele, Uma moça desceu, foi em direção a Neusa, começou a
uma vez que não pretende abandonar a droga.“Quando medir seus batimentos cardíacos, contatando que ela
eu era criança, tinha muitos sonhos. Pensava em jogar estava com vida, quando esta afirmou mais uma vez que
futebol, em ter uma casa grande, com piscina, em com- estava morrendo.
prar um carro, uma moto. Conforme fui crescendo, per- O homem que acompanhava a moça ligou para o Samu,
cebi o trabalho que eu precisaria fazer para ter tudo isso desta vez, conseguindo informar o local onde a vítima
e desisti. Assumo que sou fraco e optei pelo lado mais estava. No movimento cotidiano pela rodovia, passou
fácil. Se você me perguntar, qual é o meu maior prazer, uma viatura da Polícia Rodoviária Estadual (PRE), que
vou te responder ‘fumar crack’, certo? Minha vida é isso. reduziu a velocidade para observar a cena, uma mulher
Nem quero pensar em futuro”. caída às margens da rodovia, e foi embora, sem parar no
local para realmente confirmar o que aconteceu.
Às Margens da Rodovia
Poucos minutos depois, para uma Kombi velha, prati-
São 12h15 de uma sexta-feira. É dia 16 de maio de 2008 e camente caindo aos pedaços e descem alguns homens,
Neusa Bastos, aproximadamente 35 anos, está estendida acompanhados por uma criança. Um desses homens
às margens da rodovia L-MG 877, rodovia Geraldo Costa apresenta-se como Joaquim, companheiro de Neusa.
Martins, conhecida também como rodovia do Contorno. Os outros são vizinhos deles e informam que Neusa está
daquele jeito, pois bebeu cachaça com uma amiga, no
Parcialmente consciente, Neusa está imóvel, caída, com
bairro vizinho, Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade.
metade do corpo na estrada e metade no acostamento,
sem conseguir se mexer. É neste momento que ela abre os olhos novamente e
murmura que foi atropelada. Todos os presentes na cena
Passando pelo local, a reportagem quer saber o que houve
param para observar se existe alguma marca de sangue,
com aquela pessoa, para ela estar ali, daquela maneira.
que não é encontrada, mas, marcas de freio podem ser
Ao averiguar que a pessoa ali estendida estava viva, a observadas próximas ao local.
reportagem telefonou para o Serviço de Atendimento
Estes homens acompanhando Joaquim afirmam, tam-
Móvel de Urgência (Samu) e pediu auxílio e socorro, con-
bém, que Neusa tem alguns distúrbios mentais e talvez
tudo, devido a localização em que se encontrava, a ligação
tenha tido uma convulsão, por ter bebido. Joaquim se diz
foi cortada por falta de sinal no celular.
324 Traficando conhecimento Em foco 325

preocupado com a companheira estar caída ali, porém, Após longos vinte minutos, chega uma viatura do Corpo
em uma conversa com a reportagem, informa que vive de Bombeiros, com as luzes ligadas e as sirenes desli-
com ela há apenas um mês e que eles não são casados. gadas. Assim que se aproximaram de Neusa, o militar do
“A gente só mora junto”, diz. Corpo de Bombeiros foi verificar se havia sangue em sua
cabeça, momento em que esta despertou e novamente
E, a partir daí, ele começa a contar um pouco sobre a
resmungando, disse que havia sido jogada por um carro
vida. Diz que mora em uma casinha, tipo chácara, em um
às margens da rodovia.
terreno às margens da rodovia e também, às margens
da sociedade. Ele conta que não sabe a idade exata de Cerca de dois minutos após a chegada do Corpo de Bom-
Neusa, mas desconfia que ela tenha 35 anos. Diz, ainda, beiros, o Samu chegou e em conjunto, fizeram o aten-
que nenhum dos dois trabalha e que apenas ela recebe dimento de Neusa. Enfermeiros do Samu, ao descerem
aposentadoria. da UR afirmaram que não estavam encontrando o local
descrito na ligação e, por isso, a demora para chegar e
“Ela é aposentada, mas a mãe dela pega todo o dinheiro
fazer o resgate.
que ela recebe”, relata. Joaquim diz também que não tra-
balha porque tem problemas de saúde, uma hérnia. “Eu não O nível de glicose no sangue de Neusa foi medido, cons-
posso trabalhar. Então, moro aqui nesta casa que é de um tando sim, que ela estava alcoolizada. Porém, nenhum
daqueles rapazes da Kombi. Eu cuido da criação de gansos comentário sobre atropelamento foi feito. Joaquim ficou
que ele tem. Não pago nada para morar aqui”, conta. em volta dos bombeiros e dos enfermeiros do Samu,
aguardando um resultado ou diagnóstico de Neusa.
Aparentando ter bastante idade, Joaquim contou, também,
que, em razão da hérnia, está tentando aposentar-se. “Eu Ao ver as viaturas do Corpo de Bombeiros e do Samu para-
já separei meus documentos e a resposta que tive é que das no local, uma terceira viatura da PM passou e parou,
foi para Brasília. Acho que não vou conseguir”, lamenta-se. estacionando o veículo e querendo informar-se sobre o
acontecido. Neusa foi colocada na maca de emergência do
Enquanto aguarda a chegada de um socorro, Joaquim
Corpo de Bombeiros e, segundo os militares, seria levada
fica em volta de Neusa, dividido entre saber se ela bebeu,
para a Policlínica Central, onde deveria ser medicada com
realmente, se foi atropelada e quando ela afirma que foi
glicose e posteriormente liberada.
atropelada, em um tom de quem sente dor, ele afirma a
ela que é por conta da bebida. Com isso, com bastante Uma das enfermeiras do Samu, antes de ir embora,
esforço e a respiração forte e ofegante, Neusa mexe-se comentou que Neusa teria tido uma convulsão, mas,
da posição em que encontra e vira, no acostamento, com nada comprovado. Joaquim foi solicitado para acompa-
o peito para cima, tombando a cabeça para o lado. nhar Neusa até o pronto socorro, porém, ele disse que
não poderia, alegando ter muitos afazeres, como guardar
Contudo, Joaquim permaneceu a seu lado, ora em pé, ora
algumas ferramentas. No entanto, foi convencido pelo
sentado em uma pedra a beira da porteira, que dá acesso
Corpo de Bombeiros, o que não foi muito fácil, mas aca-
a casa em que ele reside. Outros carros passaram pelo
bou cedendo e informou que guardaria apenas algumas
local e ofereceram ajuda. Uma viatura da Polícia Militar
coisas que havia deixado ali, às margens da rodovia.
também passou e, assim como a viatura da PRE, diminuiu
a velocidade, observou a cena e sequer parou.
326 Traficando conhecimento Em foco 327

A Polícia Militar aguardou, esperou o Samu ir embora, o em São Paulo, apesar do desrespeito, a mente não parava
Corpo de Bombeiros, e não registrou nenhuma ocorrên- nem para dormir de tanta vontade de fazer tudo. Porém,
cia. Neusa foi na ambulância afirmando ter sido jogada diante da situação de opressão encontrada no local,
por um carro. As marcas no asfalto apresentavam frea- escrevi o texto abaixo, que circulou toda internet e virou
das. Nenhum carro. Nenhuma prova. Nenhuma ocorrên- notícia em todos os sites ligados ao hip-hop e à literatura.
cia. Mais um ser humano jogado, às margens da rodovia,
às margens da sociedade. Opressão e desrespeito com o hip-hop na
Entre outras reportagens estas foram as que mais cha- Virada Cultural 2008
maram minha atenção. Não acho que foram as melho- Revista policial, abuso de autoridade e distanciamento
res, jornalisticamente falando, mas, sem dúvida, foram marcam o Baile Chique, palco destinado ao hip-hop, na
as histórias que mais me envolveram durante a execu- 3ª edição do evento Virada Cultural
ção e foram as que fortaleceram a minha inspiração para
Após viajar 280 quilômetros de ônibus, depois de ter
trabalhar com a literatura atrelada ao jornalismo.
trabalhado 12 horas seguidas, cheguei para a Virada Cul-
Sei que não devemos escolher personagens pela pro- tural. Fui porque várias atrações prometiam, entre elas,
fissão e sim pela história, mas desobedecer esta regra, grandes nomes no palco do hip-hop, como os precurso-
muitas vezes, foi inevitável. As profissões e ocupações, res Thaíde, Dj Hum e o pai de toda esta cultura, Afrika
além de estereótipos sempre reservaram bons relatos e Bambaataa, como atração de encerramento.
como a intenção era praticar o jornalismo literário e, ao Mesmo sem nunca ter ido a uma Virada Cultural, espe-
mesmo tempo, dar voz aos que estão às margens, penso rava um evento bem organizado e estruturado, com poli-
que fiz as escolhas certas. ciamento para garantir a segurança do público e não para
constranger. Ao chegar, me deparei com vários palcos,
Do ouvido atento a estes relatos o movimento só amadu-
entre eles o principal, onde marcava atrações como Gal
receu. Por intermédio de grandes experiências de vidas
Costa, Zé Ramalho, Teatro Mágico e Marcelo D2, citando
captadas num único lugar: a quebrada. este último como rapper.
Havia, também, a intenção de reunir material suficiente Agora eu questiono. Se ele é um rapper, o que estava
para transformar em livro, ou em revista, ou em qualquer fazendo no palco principal do evento? Por que não
que seja o tipo de publicação, apenas para distribuir de estava no palco do hip-hop, ao lado de tantos outros
outra maneira que não o jornal circulando aos domingos. nomes bons? E reafirmo questionamentos já feitos.
Qual é a representatividade do Marcelo D2, dentro
Mas, para continuar fazendo valer, resolvi, mais uma vez,
da cultura hip-hop, para ocupar o palco principal? E o
embarcar no mundo dos eventos de hip-hop e promover
Afrika Bambaataa? São indagações longe, ainda, de
um ao melhor estilo do Hip-Hop Sul de antigamente.
serem o problema principal deste artigo.
Após economizar, ir e voltar do “Baile Chique”, palco des-
Em um mapa distribuído em vários pontos da Virada Cul-
tinado ao hip-hop, na 3ª edição do evento Virada Cultural tural, os palcos de shows eram mostrados, qual não foi
Em foco 329

minha surpresa ao ver que o palco do hip-hop ficava bas-


tante longe dos demais, localizado na praça Cível Ulysses
Guimarães, no Parque Dom Pedro. Pelas informações do
mapa e de moradores de São Paulo, deveria pegar um
metrô, do Vale do Anhangabaú até a Praça.

Contudo, pela inexperiência no evento e na maior cidade


do país, somente ao descer do metrô, percebi que estava
mais longe do local do que se tivesse ido a pé de onde
eu estava anteriormente. Um cidadão ainda me disse que
eu deveria pegar um ônibus da estação do metrô até o
Parque Dom Pedro, pois o caminho feito a pé poderia ser
perigoso, “pelo povo que passava por ali”. Não questionei
e fui. Seguindo um som distante, cheguei próxima a um
local pouco iluminado, onde, para entrar, deveria passar
por um corredor de grades. Mais uma surpresa na noite
e, esta, bastante desagradável, quando vi meus compa-
nheiros de cultura sendo revistados por policiais, aliás,
um grande número de policiais, bem maior do que nas
outras concentrações do evento. Não contentes em efe-
tuar a revista pessoal, expondo a cultura hip-hop nova-
mente à margem da sociedade, dizendo, nas entrelinhas,
que somos todos bandidos e que expomos a sociedade
à riscos, os policiais faziam com que colocássemos
as mãos na cabeça, ou estendidas na grade e abrísse-
mos as pernas, para a revista completa. Sem estarem
satisfeitos, boa noite ou bom dia para quê? A estupidez
costumeira tomou o devido lugar, quando os policiais,
cheios de abuso de autoridade, abordavam os manos e
minas que chegavam ao local com o único intuito de cur-
tir a Virada Cultural com o tipo de música preferido. Fácil
notar, também, que a cada árvore do parque havia três
policiais, ou seja, mais policiamento do que público, sem
falar na cavalaria, também presente no maior evento cul-
tural do país. Lamentável. Já me sentindo um lixo, pela
decepção do local do show, o pequeno público e a revista
policial, tirei uma foto da revista e fui lesada nos meus
330 Traficando conhecimento Em foco 331

direitos de jornalista formada por uma cabo, que não torno de seis mil pessoas, contra as 50 mil que foram aos
sabia nem falar, mas, abusando da autoridade, me fez shows do palco principal, na Avenida São João. Quando o
apagar a imagem, me impedindo, não apenas de curtir criador de toda a cultura subiu no palco, ficou por mais de
meu estilo musical preferido em paz, como de trabalhar meia hora regulando o som, que estava mal sintonizado,
e exercer minha profissão, com todos os direitos previs- ou seja, outra vergonha para o público do hip-hop.
tos pela lei. Nos shows, meia dúzia de gatos pingados,
Em entrevista ao Jornal da Tarde, o secretário de Cultural
isolados, discriminados e julgados tentavam curtir o
Carlos Augusto Calil justificou o local escolhido. “Houve
rap, com uma aparelhagem de som desregulada, o que
uma certa inocência em colocar, no ano passado, o palco
denota ainda mais o descaso da organização do evento,
de hip-hop na Praça da Sé, que passa por um processo
e também da sociedade, com a cultura hip-hop. Contudo,
de urbanização.” Segundo o secretário, para evitar novos
mesmo sofrendo com as mazelas impostas pela socie-
incidentes, os espaços foram melhor distribuídos e
dade, o público do “Baile Chique” comportou-se como
adequados ao público. “Criamos condições para que o
deveria, ou seja, como sempre, civilizadamente, porém,
público de hip-hop, por exemplo, que tem um comporta-
com a dispersão deste, os policiais fizeram questão de
mento diferenciado, possa curtir a festa deles.”
aproximar-se do palco, alvoraçados, como se os negros
e pobres, ali presentes, pudessem, a qualquer momento, Eu pergunto, que condições? Que público? O que este
atacar alguém, como animais mitológicos. Não aguentei secretário entende de hip-hop para fazer isso? Não subes-
e fui embora logo. Fiquei decepcionada por ter viajado e timando, mas creio que não entenda mais do que o pre-
investido em um evento no qual meu estilo fora despre- conceito criado acerca da nossa cultura, pois referir-se ao
zado em último grau. Em outras partes da Virada Cultural, “comportamento diferenciado” como se fôssemos bichos
com público estimado de quatro mil pessoas. No palco agindo por instinto, foi demais. Durante a semana que se
da dança, no Vale do Anhangabaú, onde público tinha até seguiu a Virada Cultural, minha caixa de e-mails fervilhou
cadeiras, um garoto de uns 12 anos cheirava cola livre- de mensagens debatendo o assunto. Vários sites também
mente em frente aos policiais que faziam a “ronda” por publicaram artigos, matérias e indignações. Cada um
ali e, não satisfeitos pela ronda, faziam também vista mantém a sua opinião acerca dos fatos acontecidos.
grossa para isso. Um pouco mais adiante, um grupo
Na minha? Culpa dos dois lados. O primeiro, da falta de
fumava maconha livremente na cara dos policiais, coisa
comprometimento do hip-hop com ele mesmo. Cadê as
natural, e ninguém tomou geral por isso, foi impedido de
lutas? A prática da pregação de Bambaataa por “paz,
fotografar, ou ficou isolado em suas comemorações, em
amor, diversão e união”. Quem é que luta por isso? Quem
um parque ‘enjaulado’ e à parte do evento. No outro dia,
tenta mudar nossa situação de escravidão moderna? O
voltei para o show do Afrika Bambaataa e fiquei em um
que o hip-hop, ou seja, nós mesmos, fazemos por isso?
evento, no qual, não havia constatado na noite anterior,
não havia barracas vendendo comes e bebes e, para Só escrever um texto adianta? Publicar várias opiniões
tomar uma água, tínhamos de sair do pátio feito pela dispersas resolve?
organização da Virada Cultural. O pai do hip-hop chegou
para tocar para o maior público daquele palco, algo em
334 Traficando conhecimento Em foco 335

É, eu também estou publicando a minha, e como todos, Olá, Jéssica,


acredito que o desabafo e o compartilhamento dos pen-
Seu texto me deixou deveras pensativo. Até quando?
samentos possa nos levar a algum lugar. Jogo o desafio
Resolvi disponibilizá-lo para leitura no meu site (www.
aos manos e minas, que queiram se reunir, na represen- gograpnacional.com.br). Pode ser?
tatividade da nossa cultura, mostrando ao Secretário de
Cultura, aos novos eleitos neste ano eleitoral e à popula- Abs,
ção que não podemos mais ser tratados como escravos e GOG
que a nossa inteligência não pode mais ser subestimada —
em revistas policiais. Que temos, sim, direito a trabalhar
Olá, Jéssica
e exercer nossas profissões e, ainda mais, de termos o
Muito bacana e necessário seu texto. É isso aí. Obrigado por
que os outros estilos musicais têm.
ter me enviado. Havia feito um questionamento em minha
No mais, acho que o que todos queremos é a Paz. Coluna no Le Monde Diplomatique, mas a realidade foi
muito pior do que eu imaginava. Você foi brilhante nas suas
Fiz questão de salvar alguns comentários e, na época,
posições.
publicar no blog e apresentar, também, aos garotos das
oficinas e aos grupos da cidade, como uma tentativa de Eleilson Leite (Ação Educativa)
chamar atenção ao problema e ao fato de precisarmos —
nos organizar mais.
Li a a sua matéria da Virada; parabéns pela atitude e voz!!
Juntos!
Os comentários:
Abços,
Olá, Jéssica. Parabéns pela visão crítica ao hip-hop e pela
bela coluna escrita. Infelizmente o hip-hop é um movi- Nelson Maca
mento quase que falido que não consegue responder mais —
às questões, como você mesma fez no seu texto, poucos
que estão no ativismo devem ser respeitados e merecem, Olá, guerreira!
cada vez mais, um suporte para nos tirar deste novo Eu não estive na Virada Cultural, mesmo morando na
modelo de escravidão que se perpetua, cada vez mais, cidade, pois no sábado eu trampei e, domingo, preferi
sobre os pobres e pretos deste país. Nossa maior prisão prestigiar o evento Favela Toma Conta do Buzo, porém
ainda está na mente e para se livrar dela é necessário mais fiquei sabendo de toda a movimentação, em especial sobre
do que só o hip-hop, que hoje é sexista, consumista e não os acontecimentos no palco do hip-hop. Gostei muito da
agrega mais valores para melhoria da nossa autoestima e problematização que contém seu texto e pela descrição
crescimento sócio-político do nosso povo. da realidade sobre esse acontecido, por isso quero saber
se posso publicar em dois blogs do nosso coletivo: Elo da
Parabéns e paz! corrente (www.elo-da-corrente.blogspot.com) e o Grupo
Ass: MT Ton - CUFA BH / Realistas NPN Alerta ao Sistema (www.alertaaosistema.blogspot.com).
Aguardo resposta.

Saudações!!!
Michel da Silva
336 Traficando conhecimento

Firmeza!
Valeu, Jéssica. O que precisar pode conta conosco, pode
crer? Admiro muito o seu trabalho. Essa conexão é muito
importante.

PAZ guerreira
Elemento.S
Em foco 339

Uma tempestade de ideias, apenas para poupar o tempo


Pela vida das reuniões foi o que definiu a programação. Shows de
rap feitos com artistas locais e convidados de outras
cidades, apresentações dos grupos de dança, batalhas
de break, batalhas de rimas, exibição de grafite e DJs no
comando. A novidade, até então, explorada apenas de
forma simbólica, seria o sarau literário com a distribui-
ção das caixinhas poéticas.

“As juras de amor não são mentiras, de maneira alguma!


São verdades com prazo de validade.” (Sérgio Vaz)
Sem opção de lazer, o domingo à tarde é o dia escolhido “A elite me causa nojo, porque quer exigir, exigir, exigir e
para a realização de um novo evento de hip-hop. Na nunca dividir.” (Alessandro Buzo)
mente as boas lembranças dos primeiros Hip-Hop Sul e
“A Humildade de um homem serão as armas para a paz
no coração o desejo de transformar a realidade, nem que universal.” (Mano Brown)
fosse por apenas alguns segundos.
“Dou ‘mó’ valor para quem suporta vida dura.” (Gog)
Correndo contra o tempo e, novamente, sem qualquer tipo
“A elite já é suicida há muito tempo.” (Ferréz)
de patrocínio, o evento foi realizado e manteve a proposta
de atrelar qualquer atividade a uma ação beneficente. Um —
ingresso = um quilo de alimtento. A tentativa era livrar o
“Eita negro!
hip-hop do preconceito e mostrá-lo muito além do que a Quem foi que disse
sociedade pensa e propaga. Serve, também, como um que a gente não é gente?
instrumento de amor e de ajuda a quem precisa. Quem foi esse demente,
se tem olhos não vê…
Mesmo com pouco a dar, os hip-hoppers e adeptos fazem
— Que foi que fizeste mano
“um corre qualquer” e conseguem o alimento para doar.
para tanto falar assim?
A favor da informação e da socialização, o encontro foi — Plantei os canaviais do nordeste.
batizado como “Cultura Marginal: Pela vida!” O convite é — E tu, mano, o que fizeste?
único: toda periferia pode participar. — Eu plantei algodão
nos campos do sul
Como influências foram captadas as experiências da
pros homens de sangue azul
Cooperifa, do Favela Toma Conta, do Hip-Hop em Foco,
que pagavam o meu trabalho
das oficinas, dos eventos na cidade vizinha de Pouso Ale- com surra de cipó-pau
gre e do sem-número de atividades feitas por parceiros …”
de outras periferias em cidades e estados brasileiros. (Solano Trindade)

338
340 Traficando conhecimento Em foco 341

Estas foram algumas das frases que os participantes ambulantes com carrinhos de cachorro-quente e pipoca
puderam ler quando encontraram as caixinhas espalha- encostaram-se à calçada. Todas as pessoas que, de
das por todo poliesportivo. Claro que havia um número alguma forma, estavam ou estiveram ligadas ao hip-hop
suficiente para todos participantes, mas provocar a sur- foram convidadas e os amigos da antiga crew, aquela
presa em quem chegava primeiro era uma forma de brin- mesma que conheci quando ainda desconhecia a cultura
car com as palavras. Pelas paredes liam-se pequenas foram chamados para compor a banca de jurados para
frases, poemas e poesias, afixadas como um jeito de dar as batalhas de break e de rimas.
um charme no evento.
Após algumas horas espremidas nos espaços curtos de
Os integrantes das oficinas, tanto das de literatura vans e ônibus, pessoas das cidades vizinhas deram colo-
como das de dança seriam parte do staff e deveriam rido especial ao poliesportivo. Com figurinos feitos ape-
nos auxiliar com som, controle de entrada, arrecada- nas para as apresentações de dança e roupas sempre
ção de alimentos, além de, claro, participar das apre- chamativas, deixaram o quilo de alimento com a portaria
sentações nas respectivas áreas. O comprometimento improvisada e seguiram o som vindo das pickups do DJ.
e o empenho dos garotos das oficinas no evento chama-
Figurinos, músicas, dança. Além do clima de paz natural,
ram atenção. Quando propus que eles fossem inseridos
o encontro traz a lembrança dos bailes black do início da
em oficinas e tomassem gosto pela leitura não imagi-
década de 1980, propagados por Gerson King Combo. A
nava que o desenvolvimento da cidadania, do respeito
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima
e da responsabilidade seria desenvolvido e aflorado em
entre os afrodescendentes e registra, também, uma
tão pouco tempo. Cumprindo horários e prazos, eles
nova fase da história da cultura hip-hop.
apresentavam textos lidos, trechos escritos e sempre
propunham mudanças em tais trechos, em um dado “Respeite o próximo, também é nosso, se você pode eu
momento da apresentação, além de colaborar firme na também posso... hip...hop... hip...hop”, assim o show é
arrecadação de papel reciclado para as caixinhas. aberto na marcante voz de Lu, que, no palco se trans-
forma em Lu Afri e exibe, diferente das outras vezes,
Quanto ao evento, era impossível saber quando e, se,
um penteado black power que lembra a força do movi-
aconteceria outro, então era fundamental fazer deste o
mento nos anos 1970.
melhor possível. Cinco exemplares do “Suburbano Con-
victo” estavam separados para serem sorteados no Levanto-me de onde estou e, emocionada, começo a
evento. O objetivo era entregá-los a quem se manifes- tirar fotos do grupo e cantar junto. Observo um grupo de
tasse no sarau. Pequenos e simples troféus seriam entre- garotas que cantam junto no refrão e dançam, tentando
gues aos vencedores das batalhas. acompanhar as rimas. Do outro lado, um grupo de garotos
também parece bastante animado. Mais de 300 pessoas
Não foi preciso montar uma lanchonete no local como
já estavam dentro e mães com filhos pequenos resolve-
fora sugerido na tempestade de ideias da primeira reu-
ram sair de casa acompanhando o som e chegaram até o
nião. Assim que ônibus e vans com grupos das cidades
poliesportivo. Sem o quilo de alimento para poder doar,
vizinhas encostaram próximos ao ginásio, vendedores
342 Traficando conhecimento Em foco 343

lamentaram não poder participar do encontro e em uma Paralelo ao show, b.boys dançam e alguns MC’s se pre-
pequena reunião entre a organização ficou decidido que param para o confronto em batalhas de rimas, lem-
elas poderiam entrar, afinal, o objetivo era promover a brando os primórdios e resgatando a ancestralidade
inclusão e 10 ou 20 pessoas a mais não mudariam os afro, levanto para todos os presentes o valor da cultura
rumos. Era justo que todos pudessem participar. Todos negra, dos quilombos. O meu estado é de euforia total.
entraram e era nítido que aquele era o primeiro contato Superemocionada circulo por todo o espaço e me lem-
com a cultura. Crianças se encantam com os dançarinos bro que a prática oral de expressão acompanha a evolu-
de break e suas roupas largas e coloridas. Imitam os tre- ção da humanidade e que, naquele momento, estávamos
jeitos dos MCs ao cantar e correm soltas pelo ginásio. todos vivendo a nossa história.
Vou ao encontro de algumas das mães com crianças Em um bairro periférico e em um espaço nada consa-
que entraram e ouço falarem: “Que legal, é bem da paz! grado, raps da nossa realidade, pessoas próximas e
As crianças estão adorando.” Mas é claro que o evento o hip-hop puro, transformando as atividades em paz.
era da paz e que a intenção era de que as crianças ado- “Evento muito fera”. “Sem dúvida, animal”. Estas são
rassem. Que todos presentes saíssem dali diferente do algumas frases de um diálogo que ouço próximo a mim.
que quando entraram e com um sentimento bom, com a
“Muito bom o som deste grupo”, é o que escuto em uma
mesma vontade que tínhamos de fazer acontecer e de
outra roda. Vale destacar que, desde os primórdios, a
mudar a realidade.
prática oral de expressão acompanha a evolução da
Aprendi durante os contatos com outras pessoas, tam- humanidade e, até hoje, continua sendo um importante
bém da literatura, que o grande barato não é mudar da meio de comunicação entre as periferias. Para Subur-
periferia e sim mudar a periferia e acho que, por meio do bano, MC do grupo, o rap feito na Zona Sul de Poços tem
evento e das oficinas, era exatamente isso que estava elementos próprios, no entanto, traz na essência, a prá-
acontecendo. Nada melhor do que a letra criada pelo tica de antigos quilombos. “Os africanos e escravos tra-
grupo ocasionalmente para refletir e registrar o momento. zidos ao Brasil utilizavam a expressão verbal e o canto
Reviver os bailes black faz parte do encontro, do evento e para transmitir crenças e valores comportamentais atra-
da união das almas naquela noite, através do hip-hop. vés das gerações, o nosso rap de hoje tem a mesma fun-
ção”. A afirmação do rapper vai ao encontro da situação.
Pela fisionomia de todos, penso em como aquele
momento é importante. Revejo, mentalmente, toda a Elas são negras, bem vestidas, de salto alto, mineiras e
trajetória do grupo, cheia de dificuldades, desencon- de ancestralidade no sangue, daí a química entre os gru-
tros e agora uma vitória. O CD quase pronto e prestes pos. Elas correm e abordam os integrantes do UClanos,
a ser gravado. Incrível. Assim pode ser descrita a cena fazem perguntas, pedem para tirar fotos e requisitam um
do grupo sobre o palco, cantando o cotidiano poços-cal- CD. “Então vocês gostaram da apresentação?”, pergunto.
dense para gente de toda a região. “Sim, diz muito sobre a gente”, me respondem. São garo-
tas de um grupo de rap da cidade vizinha de Lavras, que
junto com uma equipe de dança vieram conferir o evento.
344 Traficando conhecimento Em foco 345
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348 Traficando conhecimento Em foco 349

O primeiro show termina e classificadas como azul e anteriores somadas a esta, as ações passam a ser cada
amarela, as crews enfrentam-se em grandes dispu- vez mais fundamentadas.
tas. Os olhos dos competidores não negam a emoção
Entregues todas as caixinhas, li pela primeira vez em um
de estarem sendo julgados pela melhor crew de break
evento o conto “Periferia Adentro” e aproveitei o embalo
brasileira. Na roda, eles colocam todo o nervosismo do
do silêncio em sinal de aprovação do público e li um texto
momento e a disputa segue acalorada. A plateia delira
do Ferréz e outro do Sérgio Vaz. A intenção foi mostrar
a cada movimento feito. A vencedora da competição é
que Brasil afora estão produzindo e que também pode-
uma crew de Lavras, interior de Minas Gerais. Chamada
mos fazer isso.
de Action Break, é a crew mais eclética e tem a partici-
pação de uma garota dançando e entrando na roda com Incentivado pelos textos, Rodrigo, um dos garotos das
os homens. Ela é Poliana, 20 anos, que dança break há oficinas me chamou no canto e disparou: “Oh, dona, fiz
quatro. Especialista no freeze – congelamento do movi- mais um texto e queria ver o que você acha e se eu posso
mento – ela se orgulha de ter vencido os preconceitos de ler hoje aqui. É que eu quero muito mostrar para a minha
ser mulher e dançar break. mãe o que eu tô aprendendo.” Como eu poderia negar a
ele esta oportunidade de ler, para um público bacana
Além de ter a única mulher na crew, a Action Break tam-
e para a genitora, um texto feito por ele mesmo e que
bém levou ao evento o mais novo b.boy competidor.
falava, justamente, sobre o amor de mãe, outro tema
Rodrigo, 11 anos, que entra na roda com segurança e
recorrente da literatura marginal.
consegue intimidar a crew adversária, além de ser bas-
tante aplaudido pelo público. Mesmo tremendo – medo e ansiedade – ele empunhou o
microfone ao melhor estilo de MC e disparou um salve para
A empolgação frenética deu lugar ao silêncio pedido para
a galera, que na mesma hora simpatizou com o garoto.
o início do sarau, ainda novidade. Apesar de textos lidos
Tirou do bolso uma folha de caderno amassada e, olhando
em eventos e de um elemento caminhar com o outro com-
para a mãe, que devolvia a expressão terna, declamou:
pondo a cultura marginal, muitos visitantes de outras cida-
des não estavam acostumados com aquilo. Porém, como Quem é essa mulher que na quebrada é bastante respeitada?
no hip-hop o respeito prevalece, todos se calaram quando Quem é ela que não tem parada, nos dá de tudo e não nos
cobra nada?
o silêncio foi pedido e aguardaram o que viria a seguir.
Sempre disposta a nos ajudar
Enquanto aguardavam, caixinhas com poesia dentro Ela tira comida da própria boca para nos alimentar.
foram entregues de mão em mão, como um presente Quem é essa mulher que está sempre tão disposta?
para a periferia. Expressões das mais variadas tomaram E que, no gueto, sempre banca a nossa aposta
conta dos rostos dos presentes e como da primeira vez Pode ser herói, ladrão, bandido ou mocinho
Para todos ela sempre tem um colinho
em que espalhei caixinhas aleatoriamente, pude sentir a
Veio ao mundo com a missão de nos cuidar e dar educação
emoção em espalhar a cultura, dialogando com os pre-
Sem você, mãe, não dá para encarar este mundão.
sentes através da literatura. O interesse era promover
a formação crítica para a juventude. De experiências
350 Traficando conhecimento Em foco 351

Apesar de ainda ser um texto cru, o jovem teve a cora- enquanto comunicadora era fazer algo que mudasse, de
gem que as oficinas buscavam estimular e o leu. Pediu alguma maneira, a forma das crianças e adolescentes de
licença e, ainda com o microfone na mão, leu um texto encarar as dificuldades.
do livro “Cabeça de Porco”. Arrancou muitos aplausos
Falei sobre o conhecimento, que sempre nos foi negado.
do público. Convidei algumas pessoas para declamar.
Os pobre já nascem nas quebradas excluídos do mundo
Devagar o MC de um grupo de rap da cidade de Vargem
e muito cedo tem que se incursionar numa guerra diária
Grande do Sul foi até lá. Declamou uma letra de rap.
pela vida, lutando para manter os costumes, as origens
Válido. Mais um quis falar. Mandou uma rima.
e as tradições, ao mesmo tempo que brigamos para ser-
Não foram bem poesias. Subi de novo e li um trecho do mos melhores, produzirmos mais e limparmos o limbo
“Quarto de Despejo”. Propus um debate acerca da infor- cultural dos guetos. As pessoas não têm acesso à cul-
mação fora do palco. Enquanto o próximo grupo de rap tura e o grande barato era justamente esse, direcionar
a se apresentar se preparava, formamos uma roda e ao as palavras a estas pessoas que só estão acostumadas
som das batidas vindas das pickups comentamos sobre a uma tela colorida que mostra a vida em preto e branco.
o que acabara de acontecer. Muitas pessoas queriam
Feito: o protesto é contra a massificação da informação
mais caixinhas e doamos todas que tínhamos feito para
reduzida às periferias. Os pobres e marginalizados tam-
o evento. Outros queriam aprender a fazer e muitos tro-
bém têm direito ao conhecimento e o evento tinha esta
cavam as poesias que continuam dentro.
proposta: descentralizar a informações, propagando-a
Embriagados com o conhecimento, celebramos, real- até as margens invisíveis da cidade.
mente, a cultura marginal pela vida, por meio da difí-
Com a literatura e as palavras guerreamos contra as bar-
cil existência na periferia. Homenageamos escritores,
reiras impostas ao conhecimento, discorri rapidamente
sugerimos títulos, sorteei meus volumes do “Suburbano
sobre a falta de informações nas periferias e o quanto a
Convicto” e lembramos toda literatura marginal como
elite trabalha duro para nos privar da sabedoria. Minhas
Carolina Maria de Jesus, que iniciou a literatura perifé-
palavras ecoaram como um grito há muito tempo repre-
rica ao ser traduzida e publicada no mundo todo, para 13
sado e era a minha maneira de dizer a todo aquele público
outros idiomas, as mazelas do povo que vive nas favelas
que podemos fazer acontecer e mudar a realidade, basta
brasileiras. E ainda, alertar a todos aqueles jovens que
nos organizarmos e trabalhar ainda mais pesado para
estavam ali e como nós, algum dia tiveram um exemplo,
transformar a nossa própria maneira de pensar e inserir o
algo para fazer em uma tarde de domingo e um objetivo:
conhecimento no dia a dia das casas e barracos.
se envolver com o hip-hop e praticar o bem.
O objetivo é romper as correntes que nos aprisionam às
Como quem vive na quebrada não tem outra opção senão
telas da televisão e libertar do salário de fome pelo qual
se drogar, seja pelos entorpecentes como crack, cocaína
todos lutam tanto e sequer conseguem comer. Imagino
e maconha ou pelas drogas servidas nas bandejas das
como uma semente jogada ao vendo que corta os barra-
TVs abertas, principalmente aos domingos, minha tarefa
cos e casas mal acabadas da periferia.
352 Traficando conhecimento Em foco 353
Em foco 355

Durante dois dias seguidos, os jovens de toda Poços de


O que você Caldas puderam acompanhar tais palestras e se envol-
ver ainda mais com literatura. Ponto para mim, que

está lendo? consegui que grande parte dos garotos do bairro fosse.
Consequência das oficinas. Todas as partes da cidade
estiveram presentes e o melhor é que cada um doou um
livro pelo incentivo a leitura para poder estar ali.
Para MV Bill, rapper, natural da Cidade de Deus, uma
das comunidades com os mais altos índices de violên-
cia do município carioca, inclusive já retratada no livro
“Eu não gosto de ler.” De repente, com a propagação dos de Paulo Lins e no filme de Fernando Meireles, em casos
eventos em todas as regiões e o surgimento de novos gru- como o festival literário, o hip-hop representa salvação.
pos, bandas e escritores, essa frase foi apagada da boca “O hip-hop, neste caso, é um agente que promove a paz.
da juventude que vive nos mais bairros mais afastados. Não acontece em todos os eventos, mas quando temos
Não como quem apaga com borracha algo escrito a lápis, um criado com o ponto central de entretenimento em
mas como quem arranca e põe fogo numa página ditada paralelo tem educação, inclusão e inserção, criamos um
pelos coronéis da elite. Cópias de autores e poetas mar- evento que tem esta aura de paz. Já é um encontro com a
ginais passaram a circular entre rodas de eventos e gru- paz intensificada, um ambiente diferente”, coloca.
pos de rap e de dança do hip-hop. Novamente a internet, Tal frase é complementada pelo estudante e aspirante
blogs e sites foram ferramentas que difundiram o ele- a escritor Felipe Paulo de Assis. “Palestra com um
mento conhecimento. cara como MV Bill é diferente. Dá vontade de ler o livro,
Um balanço feito pela Divisão de Cultura de Poços mos- saber mais, conhecer mais sobre nossa própria cultura.
tra que 2007 para 2009 as bibliotecas mostram um Aumentou minha vontade de ser escritor”, acrescenta.
aumento de 24% no número de empréstimos de livros, Com letras conscientes e de muito sucesso há quase dez
sendo que a maior parte é retirada na biblioteca da Zona anos, o rapper, também carioca, Gabriel, o Pensador, traz
Sul, no Cohab, onde as oficinas e eventos do projeto Cul- uma linguagem um pouco diferente. Embora nunca tenha
tura Marginal acontecem com mais frequência. vivido na periferia, sempre foi politizado e teve uma infân-
Não é mais uma cena gritante ver um jovem lendo dentro cia recheada por acontecimentos divertidos, tristes e de
do ônibus, pelas ruas e ainda comentando que pretende ensinamentos, como todos os jovens que ali estavam.
editar os próprios livros, sempre contando a própria his- Autor de um livro em forma de diário e um infantil, o
toria. Nesta mesma cena, muitos deles rumaram para a músico improvisa e manda a rima ao melhor estilo
3ª Feira Nacional do Livro e Festival Literário de Poços, Freestyle e se revela conhecedor da realidade nacio-
para palestras-show de MV Bill acompanhado de Nega nal. Bastante aplaudido, os jovens tentam somar as
Gizza e Gabriel, o Pensador.

354
356 Traficando conhecimento

experiências das duas noites e concluem que o caminho


realmente é através do conhecimento e da boa prática
da cultura urbana existente em cada região.
Impulso. Assim as palestras somadas das oficinas podem
ser classificadas para descrever o que os jovens passa-
ram a fazer enquanto multiplicadores. Por meio de blogs e
comunidades, a divulgação se estendeu para outros bair-
ros que passaram a fazer o mesmo.
Em pouco tempo chegou a notícia de que os bairros
vizinhos e, também, mais afastados estavam reunindo
grupos, sempre ligados ao hip-hop, e promovendo estu-
dos sobre a cultura, a literatura marginal e baixando
livros pela internet.
E por aí se seguem os eventos, as oficinas, os saraus,
quando vários outros grupos começam a congregar alu-
nos em períodos diferentes do das aulas e lhes passar
algo sobre a cultura marginal, seja por meio de oficinas
de dança, canto ou literatura. E, finalmente, tornou-se
comum ouvir jovens comentando entre si: “O que você
está lendo?”
358 Traficando conhecimento Em foco 359
Cap.06
Estatística

Cap.06
Estatística
Estatística 365

Um ano à frente, em 1988, os brasileiros passaram a notar


o mesmo comportamento em cidadãos da maior cidade do
país, São Paulo, onde a droga chegou primeiro. Vinte anos
depois, não há sequer um cidadão que nunca tenha ouvido
falar nas famosas pedras, no crack, na cocaína derivada.

Policiais, médicos, estudiosos, jornalistas, cidadãos


comuns. Todos querem entender o que leva as pessoas
a se acabarem por este caminho. O caminho das pedras
tem dois únicos destinos: a morte ou a prisão.

Feita em grandes ou pequenas quantidades, as pedras


A manchete do jornal de maior circulação na região diz: de crack, que tem este nome devido o estralar que
“Envolvimento de menores com o tráfico aumentou produzem quando estão sendo feitas ou, às vezes, até
277% no último ano”. A matéria, assinada por mim, inau- mesmo quando são fumadas, assombram crianças, ado-
gura uma nova fase da minha vida profissional no Jor- lescentes, famílias inteiras e se tornam um peso para a
nal Mantiqueira, vizinho do Jornal de Poços, porém, com sociedade. Nas esquinas de qualquer cidade brasileira, e
melhor e maior estrutura. Estes números já martelavam Poços de Caldas, desta vez, não é uma exceção, existem
na minha cabeça desde que eu me aventurei a escre- histórias dos dependentes de uma droga, que se alastra
ver uma reportagem especial sobre o poder devastador como um vírus.
do crack. Pensei em iniciar o novo emprego com estes
Produção
números que, na ocasião, assombravam toda a cidade.
As pedras podem ser feitas de duas maneiras: com
Após ouvir inúmeras músicas de rap que aludiam sobre o
pasta-base ou cocaína em pó, depende do produto dis-
problema da epidemia do crack, da morte de amigos, de
ponível no mercado. As feitas com pasta-base – um pro-
pais e mães e de várias quebradas devastadas pelo pro-
duto bruto, não-refinado com éter ou acetona – apresen-
blema, me senti na obrigação de escrever algo. tam uma coloração escura, entre o amarelo e o marrom.
As pedras de cocaína em pó são mais claras. Os viciados
Crack: o caminho das pedras
afirmam que a pedra da pasta-base é mais forte e não
Um cachimbo. Dentro dele, pequenas pedras porosas, esfarela com facilidade.
de um branco sujo, cinza, amarelado, com aparência de
Para os fabricantes, o segredo de fazer a boa pedra está
sabão ou cera. Pessoas tremendo e andando rápido com
em dosar a quantidade de pasta-base ou cocaína em pó,
os olhos vidrados. A cena representa como se comportam
água e um agente, normalmente o bicarbonato de sódio,
os usuários de crack – droga potente, derivada da cocaína
comprado com facilidade em farmácias ou em laborató-
– que surgiu, de acordo com um primeiro registro histó-
rios de manipulação. O bicarbonato tem a função de reagir
rico, em 1982 nos Estados Unidos, sendo que cinco anos
com a mistura para deixá-la mais consistente, como cris-
mais tarde, em 1987, passou a ser considerada e tratada
tais, além de facilitar a combustão no momento de fumar.
como uma epidemia no país.

364
366 Traficando conhecimento Estatística 367

Há ainda as variações, onde os usuários esfarelam a com os olhos perdidos e os dentes da frente amarela-
pedra feita com a pasta-base e misturam o crack com a dos, pelo uso constante do crack.
maconha, improvisando cigarros conhecidos como mes-
Em uma fase de fissura, ele conta que, para obter a droga,
clados ou brazuca.
atua como “vapor” na região onde mora e o que “recebe”,
O lucro na venda do crack é representado pela grande pega em pedra, para consumo próprio. Na primeira
quantidade da pedra que o traficante consegue obter entrevista, Toquinho ainda era “aviãozinho”, ou seja,
com cada grama de cocaína, visto que com um grama é apenas entregava a droga. Atualmente, vende pequenas
possível fazer de três a quatro pedras. quantidades e o que recebe, consome em pouco tempo.
“Como eu uso, fico com o pagamento todo para mim, mas
Vidas queimadas em cachimbos cada dia que passa me vejo obrigado a vender mais, rece-
Ouvir o relato de dependentes químicos e de mães que ber mais, fumar mais”, diz.
lutam para que os filhos abandonem o vício é como um cas- Um outro usuário de crack ouvido pela reportagem é
tigo. Tido como a pior das drogas pela fulminante depen- Wallace Rafael de Oliveira, 18 anos, conhecido como Buiú
dência que cria e pela brutalidade que provoca no viciado, da Barão, por ser morador da rua Barão do Campo Místico,
traz, cada vez mais, violência para dentro das famílias. no centro da cidade, e que é acusado de ter cometido
Há cerca de três meses, entrevistado pela reportagem vários furtos na área central da cidade. Ele relata que já
do Jornal de Poços, Augusto Caetano (nome alterado), furtou e continua furtando diversas residências para sus-
19 anos, conhecido como Toquinho, já estava magro tentar o vício e em um apelo, pede uma internação. “Quero
e com semblante acabado, em razão do uso do crack. que alguém arrume um lugar para eu ficar internado, tran-
Em um segundo encontro, para realização desta maté- quilo e parar de atormentar a população”, pede.
ria especial, o jovem já está bastante consumido pela O tráfico de drogas é um crime que repercute nos demais
droga. Aparenta ter bem mais idade do que o registro crimes e, por ser o crack, o que mais atrai os usuários e
de nascimento marca e já não tem mais a mesma vitali- daí uma dependência maior, embora antigamente con-
dade para falar. siderado como uma droga barata, ele custa tudo que o
Com uma baixa estatura, que parece ainda mais afe- viciado tem e ainda aquilo que obtém de outras pessoas.
tada em razão dos efeitos da droga, Toquinho, bas- Os crimes contra o patrimônio, como furto, roubo e rela-
tante sonolento, comenta que os últimos dias, os que cionados à violência doméstica são frequentes em Poços
se lembra, foram divididos entre dormir e fumar crack. de Caldas e atribuídos a popularização da droga.
“Estou fumando cada dia mais. Antes eu pensava em No caso de Buiú, ele comenta que não pode ver uma janela
parar algum dia. Agora, evito esse tipo de pensamento. A aberta, que entra para furtar. Embora não cometa roubos
única coisa que penso é em como vou conseguir a droga. e nunca tenha utilizado de violência contra as vítimas, ele
Minha mãe já não me dá mais dinheiro. Eu não trabalho. confessa ter feito inúmeros furtos. “Faço isso para sus-
Estou tendo que furtar alguns estabelecimentos. Não tentar meu vício, para comprar a pedra. Eu dou preferên-
quero pensar nisso. Quero fumar minha próxima pedra cias às carteiras, mas furtava, também, outros produtos
em paz”, diz, encostado na mureta do portão de casa, como computador, tela de computador, capacete, celular,
enfim, o que tem pela frente eu levo embora”, relata.
368 Traficando conhecimento Estatística 369

Ele frisa que o que mais deseja é uma internação em Já chorando, com o coração partido, a mãe do jovem
uma clínica de reabilitação para dependentes químicos. conta que, no início, quando ele tinha ainda 12 anos e
“Quero ficar longe das drogas”, deseja. A mãe do jovem, começou a trabalhar como engraxate e cheirar cola, ela
Lúcia Regina de Oliveira Gonçalves, 44 anos, faxineira, relutou em ver o vício do filho e só reconheceu quando
conta o martírio que é ter um filho dependente do crack este tomou grandes proporções e ele passou a trilhar o
dentro de casa. Com a expressão cansada de quem já caminho das pedras de crack.
não sabe mais o que fazer ou para que lado correr, ela
“Recentemente ele foi preso e eu vi pela televisão, a
revela que não tem tempo para si mesma e que, embora
quantidade de coisas que ele furtou. Eu não imaginava
tenha outros filhos, uma moça já casada e uma garota de
que meu filho era capaz de furtar tudo aquilo. Eu que
8 anos, têm vivido em função do Buiú e na busca de um
sustento a casa, trabalho quatro vezes por semana e
tratamento de desintoxicação para o mesmo.
ganho R$ 30 a cada vez que faço faxina. Não temos muita
Para controlar as crises de abstinência do filho, ela revela coisa, mas ele começou furtando meus cremes, perfu-
que, por contra própria, lhe dá remédios que atuam como mes, mas eu não imaginava que ele tivesse capacidade
calmantes, como Diazepan e Rivotril. “Eu faço isso para de pegar tudo aquilo.”
ele dormir, para tentar segurá-lo dentro de casa, para
No último dia 9 de setembro, Buiú foi localizado pela
ver se ele não sai para comprar drogas, para furtar, para
Polícia Civil e levado para a 25ª Delegacia Regional de
mexer nas coisas dos outros”, conta.
Segurança Pública para prestar esclarecimentos. No
Assombrada pelo medo de receber uma notícia ruim, local, ele informou quem são os receptadores do mate-
assim como vivem os pais de usuários de drogas, Lúcia rial por ele furtado. Segundo Lúcia, ele já esteve preso
afirma que não dorme durante a noite e que passa longos por vinte dias, quando ainda era menor de idade e afirma
períodos atrás do filho, chamando-o pela casa e pelo que, na cadeia, passou por coisas que nunca imaginou
quintal, desejando que ele volte logo. passar. Na cabeça da mãe, o tratamento policial com o
filho deve ser agressivo. “Ele tem muito medo da polícia,
A rotina de Buiú é semelhante com as dos demais usuá-
então eu não acho que a polícia trate ele bem”, acredita.
rios de crack. Durante a noite, ele consome a droga.
Dorme durante o dia e, no final da tarde, sai para tentar Com o baixo salário, ela não consegue bancar um trata-
encontrar um meio de conseguir mais crack.“Minha vida mento de desintoxicação que busca há quatro anos para
com ele dessa maneira tem sido muito difícil. Todos os o filho, embora ele já tenha tentado o que é oferecido pelo
dias tenho uma reclamação na minha porta. A polícia Sistema Único de Saúde (SUS), no programa de Álcool e
vêm até minha casa atrás do meu filho e, muitas vezes, Drogas, dentro do programa de Saúde Mental, mas que
quem atende é minha filha de 8 anos e tenho medo que ele se recusou a continuar a frequentar as consultas psi-
ela possa se envolver nesse caminho também. Dentro quiátricas e a tomar os remédios necessários.
de casa, Buiú é um amor de pessoa. Ele não briga, não
“Eu consegui junto a ONG Poços de Luz para interná-lo,
xinga e nos trata super bem. Talvez por isso que eu tenho
mas eu não tenho recurso financeiro para isso. A interna-
vontade de ajudá-lo”, comenta.
ção mais barata fica em torno de R$ 420, mais dez cestas
básicas e eu não tenho condições de dar esse dinheiro,
370 Traficando conhecimento Estatística 371

porque se eu fizer isso, como vou pagar minha água, luz Organismo em pedras
e fazer compras, se eu tenho uma menininha de 8 anos
O programa de Álcool e Drogas do município também
para criar?”, argumenta.
recebe, diariamente, várias pessoas acometidas pelo uso
Lúcia fala, também, com saudade, de quando o filho de drogas, principalmente do crack. O médico responsável
não fumava crack, trabalhava e tinha força e energia de pelo atendimento clínico, Walter de Abreu, destaca que o
vida.“Desde que ele passou a fumar esse tal de crack, o acompanhamento dos pacientes vai desde a parte psiqui-
comportamento dele mudou. Ele deixou de comer, emagre- átrica, com acompanhamento psicológico, com terapeuta
ceu muito, está só pele e osso. Passa a noite toda fumando ocupacional para poder desvincular o paciente daquele
crack, quando levanta, umas 15h, pede um prato de comida ritmo de vida que ele vem levando.
e larga tudo pela metade. Ele está muito acabado.”
Quanto aos efeitos do crack, ele destaca que existem
Ainda em relação ao uso do crack, a mãe conta que o filho várias maneiras para ser analisado. “Os efeitos que vejo
consome a droga dentro de casa, com o consentimento como médico e os que o usuário pensa. Os que eu penso
dela. “Eu deixo ele usar no quintal, dentro de casa. Faço são os mais graves, que podem levar à morte, os efei-
isso para evitar que ele faça na rua, com outras pessoas, tos que os usuários pensam são porque ele pensa que
e se envolva ainda mais com coisas que não deve”, diz, está fazendo bem. Outro dia mesmo, eu estava ouvindo
chorando novamente. um rapaz falar, na Zona Rural, que todos os funcioná-
rios dele estavam usando o crack, porque estavam
Durante a entrevista, ela relata, também, que o pai do
desenvolvendo um trabalho muito melhor, trabalhando
jovem já foi usuário de drogas e passou um longo período
assustadoramente, não precisavam se alimentar, não
preso. Atualmente, pai e filho não têm nenhum tipo de
comiam, não bebiam água, o sol não era motivo de afas-
contato ou relacionamento, e toda sobrecarga dos pro-
tamento do trabalho, não precisavam de sombra, chuva
blemas acarretados pelo crack ficam por conta da mãe,
não os impedia. Por quê? O rapaz fica confuso, não sabe
que mostra, claramente, sinais de esgotamento.
o limiar de dor dele, ferimentos, estas coisas ele não
Para ela, já cansada da situação, a internação em uma sente, para ele, aquilo não faz diferença.
clínica seria a única coisa que talvez pudesse salvar
Ele adquire uma maior virilidade para o trabalho, fica
Buiú, que ela considera muito jovem, aos 18 anos. “Eu
mais rápido, ágil no raciocínio, enfim, tudo isso leva o
sei que meu filho ainda vai ser um grande homem, por-
leigo a pensar que é uma droga boa. As consequências, a
que ele sempre trabalhou e tem boa vontade. Quero
longo prazo, são letargia, o indivíduo começa a ficar apá-
ver ele recuperado e me ajudando em casa, financei-
tico, diminui o ritmo de trabalho, começa a apresentar
ramente e cuidando um pouco de mim. Até o momento,
taquicardia, batimento rápido do coração. O aumento da
ele concorda com a internação, demonstra vontade de
velocidade do batimento do coração pode diminuir a oxi-
parar de usar a droga. Meu maior sonho é ver ele recu-
genação cerebral e o indivíduo começar a ficar confuso,
perado. Eu acredito em Deus e sei que Ele vai me ajudar.
agitado, agressivo, com ideias suicidas e, até mesmo,
Sei que vou vencer. Falo isso para meu filho todos os
homicidas. Ele pode ter, ainda, colapsos ou infarto pela
dias, quando me pergunto se agi errado, tentando ver
própria frequência cardíaca, visto que as irrigações das
onde errei, mas não estou conseguindo saber”, encerra
coronárias no coração não são benfeitas”, considera.
a entrevista, chorando muito.
372 Traficando conhecimento Estatística 373

O tratamento clínico consiste em uma desintoxicação ini- Por atuar no Conselho Tutelar, muitos casos chegam até
cial, em que o médico procura afastar o usuário do meio de ele como apelos e urgentes pedidos de ajuda. Um dos
convívio que ele se encontra. Walter afirma, também, que casos mais chocantes, que ele diz sentir até mesmo dor
o crack é uma droga em que a pessoa fica viciada quase no coração ao se lembrar e relatar, é o de um adolescente
que instantaneamente após o uso da mesma. “A pedra, o cuja digital dos dedos já se tornou imperceptível, por ter
usuário pode se tornar viciado em cinco ou dez minutos e a sido queimada pelo contato da pele com o cachimbo uti-
cocaína vai matá-lo lentamente, já o crack pode fazer isso lizado para fumar o crack.
rapidamente, visto a agressividade do mesmo”, comenta.
“E vejo o crack inserido no mundo atual onde nossa
Uma das causas do vício é a rapidez do efeito da droga, juventude deixou de sonhar. A perspectiva de mundo, de
que dura, no máximo, 15 minutos. Inicialmente, a droga, transformação, foi um pouco perdida. E nossos jovens,
por ser aspirada pelas mucosas, que fica toda queimada, e hoje, estão muito preocupados com o presente e um
por ser inalatória, há uma maior rapidez de atingir as célu- presente não muito agradável faz com que a gente queira
las neuronais. Ele impede as mensagens que são enviadas fugir desse presente. A droga é um subterfúgio mais fácil
de um neurônio para o outro no cérebro, começa a cortar para sair dessa realidade, que, muitas vezes, não é o que
como se fosse um curto circuito, bloqueia as mensagens, a TV nos vende. Em relação a Poços de Caldas existe um
o que causa um estado de confusão no usuário da droga. surto, hoje, de uso de crack. Até cinco anos atrás, não
Por ser inalatória, fumada por um cachimbo, a droga pode tínhamos esse problema tão grave”, considera Lenon.
comprometer o pulmão também, visto que torna frágeis
Para ele, a droga assume o papel à frente de tudo, por-
os alvéolos, que são as extremidades terminais dos pul-
que o tudo que deveria estar à frente, na verdade, está
mões, o que deprime as defesas do organismo, causando
atrás. Em uma comparação confusa e simples ao mesmo
pneumonias de repetição ou, até mesmo, tuberculose.
tempo, ele garante que isso seria a garantia dos direitos
Problema social básicos, feridos de todas as maneiras quando se fala de
crianças e adolescentes envolvidos com o crack e, até
Embora o crack esteja diretamente ligado apenas aos con- mesmo, o tráfico.
sumidores, ou seja, viciados e as pessoas ao redor dele,
toda sociedade fica comprometida pelos problemas que a Como forma de amenizar os inúmeros problemas gera-
droga traz. Além do comprometimento da saúde dos usu- dos pelas pedras, ele acredita que uma reorientação
ários, os problemas sociais também ficam em destaque. orçamentária e investimentos pesados nas políticas de
prevenção, nos programas sócio-educativos, na geração
Para falar sobre o assunto, o cientista social e, também, de empregos e na garantia de habitação seriam ideais.
conselheiro tutelar, Diney Lenon, garante que a dissemi- “Daria uma anestesiada.”
nação do crack está intimamente ligada com os concei-
tos pregados pela mídia e pela sociedade como um todo. Já em longo prazo, Lenon é mais pretensioso e crê em
O individualismo é fortalecido de todas as formas, gera- uma discussão e mudança na educação que existe
se a busca pelo prazer imediato por parte dos jovens, o hoje. “O que leva a uma consciência individualista,
que os atrai rapidamente ao universo das drogas e, mais utilitarista e imediatista. Temos que garantir sonhos
precisamente, ao esfumaçado mundo do crack, onde a para nossa juventude, por meio de um novo modelo de
cor predominante é o cinza, sem vida. educação, novos valores, para que o jovem venha a ver
374 Traficando conhecimento Estatística 375

a droga como algo chato e não como algo legal. Muitas que as mesmas viciam com mais rapidez e, dessa forma,
vezes, o bandido é o que é apresentado como referên- degeneram, também com mais rapidez o usuário, o dele-
cia e isso contribui muito. As crianças sonham em ser gado acredita que em razão do crack ser um subproduto
bandidas, traficantes, usuárias de droga, e seria impor- da cocaína, o lucro pode ser maior e consequentemente,
tante mudar este desejo, esta visão”, ressalta. em razão dos usuários serem ainda mais viciados, as
vendas crescem. “Se entendermos que com cada grama
Trabalho policial de cocaína pode-se fazer três ou quatro pedras de crack
Diariamente, usuários ou traficantes são presos portando e, se cada uma é vendida por R$ 10, o traficante alfere um
drogas e o que, antigamente, era maconha ou, até mesmo, lucro bem maior”, acredita.
papelotes de cocaína, hoje, foi substituído pelo crack. Para ele, o que faz com que o número de apreensões
Nesta semana, a Polícia Militar da cidade apreendeu cresça é somente a procura pela droga. “Em geral o crack
crack todos os dias em pontos diferentes do município, é encontrado com pessoas de mais baixa renda, muito
mostrando que a droga, não atinge somente as pessoas embora o papelote de cocaína e a pedra de crack custem,
de baixo poder aquisitivo, como também as pessoas das a princípio, a mesma coisa, em geral, são pessoas de
castas mais elevadas da sociedade. menor poder aquisitivo e as pessoas que são pegas, com
Não diferente, na Delegacia de Tóxicos e Entorpecentes, o cocaína, com um poder aquisitivo um pouco maior, mas
crack, sem dúvida, é o responsável pelas maiores apreen- acredito que a forma como as pessoas estão se viciando,
sões. Ainda não existem levantamentos sobre o quanto de vá se alastrar aos poucos nas classes mais altas”, diz.
crack foi apreendido, porém, destaca-se que as apreen- O delegado acredita também que a Polícia seja a última
sões ficam em torno da droga. Para falar sobre o assunto, medida no que se referente ao combate às drogas e critica,
o delegado Carlos Eduardo Galhardi Di Tommaso destaca também, a Lei nº 11.343, conhecida como Lei de Tóxicos e
que nos últimos anos, o crack vêm assumindo o papel que que, recentemente, completou dois anos.“A cocaína vem
a maconha e a cocaína tinham. “Antigamente, elas eram do sul ou dos países fronteiriços e, para chegar aqui, bas-
drogas muito difundidas, hoje o crack, que é um subpro- tante gente já falhou, né? E a polícia é o último caminho.
duto da cocaína, assume este papel. Nós percebemos A rigor, teria que ter um apoio aos dependentes químicos
que a maioria das apreensões ultimamente de drogas é de mais intenso. Seriam lugares destinados para eles se
crack. Sejam grandes porções, sejam pequenas porções, livrarem dos vícios. Infelizmente, o que podemos perceber
já destinadas à venda, ou mesmo o pessoal que é pego é que é muito rara, muito difícil, uma vaga, especialmente
com porte para uso, a maior quantidade é de crack que em estabelecimentos públicos. Existem clínicas particu-
assumiu, roubou o espaço da cocaína, que, hoje, vemos lares, mas, em geral, boa parte da população que é aco-
com menos frequência. Em geral, quando apreendemos metida pelo vício não tem possibilidade de pagar, então a
cocaína hoje em dia, ela é apreendida em grandes volu- minha visão é que deveriam existir novos e maiores esta-
mes, que provavelmente não se destinariam, a princípio, à belecimentos para recepção desses dependentes. Esta
venda, mas para fazer o crack.” seria a saída que cumpriria a Lei por efetivo, para tentar
Questionado sobre as razões de um traficante comercia- diminuir a procura pela droga. Mas nós continuamos com
lizar as pedras de crack, mesmo com a consciência de as apreensões de forma estoica”, considera.
376 Traficando conhecimento Estatística 377

Em busca de luz principalmente em um atendimento específico para o


dependente químico.
Como não existe o tratamento previsto na Lei nº 11.343
para os usuários de drogas, os caminhos ficam interrom- “Quando vamos à Secretaria Municipal de Assistência
pidos e o voluntariado passa a ser a opção para quem Social, encontramos sempre um ‘não’. Temos apenas um
está na escuridão, grande parte das vezes, provocada atendimento paliativo, emergencial, no Hospital Santa
pela fumaça cinza do crack ao sair dos cachimbos. Lúcia. Se a cidade tivesse mais clínicas, seria impor-
tante, visto que a estimativa levantada revela que 30%
Segundo Vilma Jorge, voluntária da ONG Poços de Luz, que
dos habitantes poços-caldenses são usuários de drogas
há sete anos atua na ajuda aos familiares e dependentes
e é um número muito alto”, acredita Vilma.
químicos da cidade, o número de atendimentos relaciona-
dos ao crack aumenta assustadoramente a cada dia. Dos Embora a ONG trabalhe no sentido de reverter o número
259 casos que estão em atendimento na ONG, 233 são por de dependentes químicos, a tarefa não é fácil. O tempo
dependência ao crack, ou seja, quase 90% das pessoas mínimo de internação aconselhável é de seis meses,
que procuram atendimento, são viciadas nas pedras. porém, há pacientes que ficam por mais tempo. No
entanto, para a organização, uma oportunidade de
“Em Poços de Caldas o número de atendimentos por
melhora no quadro, seria evitar o preconceito enviado
crack está crescente. Dia a dia temos novos casos. Todos
por todas as camadas da sociedade. “Geralmente, a
os dias nos chegam casos de mães e familiares que vêm
sociedade vê o dependente químico como um criminoso,
nos procurar para atendimento de desintoxicação, de
um vagabundo, um ladrão. Eles se esquecem que aquela
internação, mas temos uma dificuldade muito grande
pessoa tem uma mãe, uma família, filhos. Poços de
com relação à internação por conta de vagas e do lado
Caldas está em um estágio que pede socorro. Estamos
financeiro, porque não existe clínica gratuita. Todas as
travando uma luta que não temos como vencer sozinhos.
clínicas trabalham por pagamento. São clínicas geral-
Precisamos de apoio”, pede, em apelo, não somente de
mente fora de domicílio, que são aconselhadas para este
uma voluntária do apoio aos viciados em crack, mas de
tipo de tratamento”, afirma a voluntária.
toda a sociedade, que assiste à degradação dos seres
Para ajudar, a ONG tem parcerias com clínicas do inte- humanos que resolvem trilhar o caminho das pedras.
rior de São Paulo e algumas no sul de Minas Gerais, que
A matéria teve boa repercussão e os jovens que faziam
trabalham com preços mais acessíveis, visto que as pes-
parte das oficinas, não apenas no bairro onde morava,
soas que procuram a ajuda são de um poder aquisitivo
mais baixo. Dos 233 atendimentos, 93 dizem respeito a
como em outros, passaram a refletir mais sobre o pro-
menores de idade. Ela ressalta, também, que o ponto blema. Porém, o objetivo não era fazer com que a pes-
comum entre as pessoas afetadas pelo crack é a deses- soa que já vivenciava isso tivesse consciência, mas
truturalização familiar. abrir para uma discussão mais ampla, com sugestões.
Pode parecer pouco, entretanto, tinha plena visão de
De acordo com a experiência adquirida na ONG, uma
que o hip-hop atrelado com a literatura, quando leva-
alternativa para reduzir o envolvimento, cada vez mais
dos a sério, promoviam mudanças e não deixavam que
frequente das pessoas com o crack, seriam atitudes
os jovens cruzassem a linha invisível entre o caminho
positivas do poder Executivo e também do Legislativo,
do bem e o mundo do crime.
380 Traficando conhecimento Estatística 381

A sugestão de leitura do livro “Crack – O Caminho das rança Pública, chefiada pelo delegado Carlos Eduardo
pedras” feito pelo jornalista, já falecido, Marco Antônio Galhardi Di Tommaso, recebe em média três denúncias
Uchôa também pode ser trabalhado e difundido entre os por dia relacionadas ao tráfico de drogas.
jovens, que pareciam poucos, mas que, como multipli- O último levantamento feito pela Polícia Civil em 2008
cadores de informações positivas, eram muitos. Assim, aponta que 14 adolescentes foram autuados por envolvi-
poderia parecer clichê ou repetição, mas achei neces- mento direto com o tráfico e que tiveram 83 ocorrências
sário falar sobre o problema e surgiu o texto da matéria de menores que fazem uso de drogas. Além dos adoles-
no Jornal Mantiqueira, onde estreava minha temporada centes, no último ano, um menino de 11 anos foi condu-
com a estatística. zido pela Polícia Militar até a 25ª DRSP, por estar com
drogas dentro de um saquinho de salgadinho na Cadeia
Envolvimento de menores com o tráfico aumentou 277% Pública, acompanhado pela mãe, que para fugir do fla-
no último ano grante, fez com que o filho segurasse a droga. O menor,
conforme manda a lei, foi encaminhado a programas de
Levantamento feito pela Polícia Militar mostra o aumento
apoio através do Conselho Tutelar.
significativo de crianças e adolescentes que se envolve-
ram com o comércio de drogas em 2008. “O que percebemos dos adolescentes é que eles são
facilmente seduzidos pelas pessoas mais velhas a fim
Jéssica Balbino
de ganharem um dinheiro fácil e terem acesso a algumas
Poços de Caldas (MG) – Repetitivo, porém assustador, o mordomias, ou bens de consumo, que a mídia expõe como
número de crianças e adolescentes envolvidos com o trá- coisas muito interessantes e, então, eles acabam acredi-
fico de drogas aumenta diariamente e sem mecanismos tando que tem de ter de qualquer forma, daí o tráfico”,
de recuperação ou punição se torna impossível contê-los. avalia Tommaso, delegado de Tóxicos e Entorpecentes.

São comuns cenas de adolescentes, recém-saídos da


Motivo
infância, com idades entre 12 e 13 anos, cometendo
pequenos furtos para sustentar vícios ou ainda servindo Para o delegado, como os pais geralmente não têm con-
de base e de “laranjas” para o tráfico de drogas. dições de entregar aos filhos os bens materiais que eles
almejam, como camisetas, bonés e eletroeletrônicos,
Todos os dias a Polícia Militar registra diversas ocor-
eles terminam seduzidos pelos traficantes mais velhos.
rências relacionadas ao tráfico de entorpecentes e de
“Essas crianças costumam ficar sozinhas o dia todo, sem
acordo com um levantamento, de janeiro a novembro de
muitos cuidados e os traficantes, mais velhos, sabem
2008, 34 menores foram apreendidos por tráfico de dro-
da dificuldade da polícia em apreender esses menores
gas. Em um comparativo com o mesmo período do ano de
e mantê-los presos então utilizam, com cada vez mais
2007, apenas nove menores foram apreendidos, ou seja,
frequência, a mão de obra destes adolescentes para rea-
houve um aumento de 277,78% nos casos.
lizar o tráfico”, acrescenta.
Segundo a ONG Poços de Luz, 93 adolescentes aguardam
A psicóloga Mariângela Moura Santos tem a mesma visão
tratamento para desintoxicação. Já a delegacia de Tóxi-
e acredita que o nível cultural e social dessas crianças
cos e Entorpecentes da 25ª Delegacia Regional de Segu-
é muito ruim. “São crianças muito carentes, sem refe-
382 Traficando conhecimento Estatística 383

rencial paterno positivo, sem referencial materno e que o auto da apreensão em flagrante. Mas, geralmente, eles
começam muito cedo na rua, se agrupam com outras são postos em liberdade aos cuidados dos familiares, para
crianças entram muito precocemente nas drogas, sendo que respondam um processo na Vara da Infância e Juven-
influenciadas por adultos muito cedo”, comenta. tude por aquele ato infracional. “Via de regra, mesmo após
aplicação de reprimenda final que no máximo é o encami-
Por não existir um centro de reabilitação em Poços de
nhamento a uma instituição de recuperação, estes jovens
Caldas, o envolvimento dos menores no tráfico fica
são orientados a prestar algum serviço comunitário ou
favorecido e de certa forma, impune. “Quando a Lei dis-
encaminhados a alguma outra instituição para que sejam
põe de forma tão diversa da censura aos menores, tem
atendimentos por psicólogos, mas não sofrem nenhuma
como objetivo a ressocialização, independentemente da
repressão mais intensa”, enfatiza Tommaso.
imposição de uma pena. Só que, para isso, é preciso de
uma estrutura que corresponda a essa expectativa de Questionado sobre o fato de terem crianças apreendi-
reestruturar a pessoa e a maioria das cidades não tem das em razão do tráfico, ele esclarece que os menores
isso. Nós observamos que não podemos prender estas de 12 anos não deveriam sequer ser levados à Delegacia e
crianças e adolescentes, então eles retornam para as a Polícia, e que nesses casos, não se pode fazer nada.“A
ruas e repetem o ato infracional”, queixa-se o delegado. única coisa que se faz é não constranger, de maneira
nenhuma a criança e não tomar nenhuma medida poli-
De acordo com a psicóloga, tal comportamento por parte
cial. Apenas contatar, imediatamente, os familiares e na
dos menores pode ser atribuído a uma psicopatologia
impossibilidade de contato, o Conselho Tutelar”, revela.
chamada delinquência. “Ao contrário do que as pessoas
pensam, a delinquência não é apenas um comporta- Opção
mento, é também um desvio de caráter considerada uma
doença como esquizofrenia ou psicose e ela faz com que Para reverter o quadro cada vez mais alarmante, Mariân-
os jovens e adolescentes busquem esta vida mais fácil e gela pensa que um trabalho social e de conscientização
isso, somado às influências familiares, contribui para o feito com as crianças, os adolescentes e os pais poderia
ingresso destes menores no tráfico”, explica. ser uma opção.

Mariângela compartilha ainda da mesma opinião que “É um caso complexo. Uma falta de tudo. Precisaríamos
Tommaso em relação à influência da mídia no comporta- de um trabalho muito benfeito que envolva saneamento
mento dos jovens que ingressam no tráfico.“Acredito na básico, alimentação, escola e educação. Talvez institui-
influência social na questão do ter. Isso contribui, além ções que fazem estes trabalhos podem ter algum resul-
da falta de instrução e de carinho”, diz a psicóloga. tado”, diz. Tommaso acredita que locais para recepção
destes menores pode ser uma opção de ressocialização
Procedimento e que talvez reverta o quadro: “Um local para que eles
ficassem mais ocupados, fossem reeducados e que não
A máxima punição aos menores envolvidos com o tráfico
fossem novamente presas fáceis aos traficantes mais
de drogas é a internação em algum estabelecimento de
velhos. Em relação às crianças, eu não sou um defen-
reintegração social, no entanto, como a cidade não possui
sor da redução da maioridade penal. As pessoas jovens
um, em geral, quando os adolescentes são apreendidos, há
mesmo não tem essa capacidade de discernimento, de
384 Traficando conhecimento Estatística 385

escolha. Elas são realmente seduzidas. Em vez de ficar


tanto tempo discutindo esta redução, podia voltar as
energias para o desenvolvimento de um plano de recep-
ção desses adolescentes para tentar a ressocialização
da forma que a lei de execução penal e o Estatuto da
Criança e do Adolescente (ECA) promovem”, enfatiza.

Como conselho, o delegado pede aos pais para que fiquem


atentos ao comportamento dos filhos. “Não devem deixá-
los muito tempo sozinhos na rua porque é uma idade que
precisa de uma autoafirmação grande e que às vezes se
o pai não está por perto, está um pouco descuidado e os
traficantes chegam, outras pessoas chegam, conseguem
convencê-lo a andar por um caminho errado”, finaliza.

Com o balanço feito e opiniões como a da psicóloga e do


delegado, a ênfase em locais onde os jovens ficassem
ocupados e passassem a pensar por si era uma das alter-
nativas para a redução do envolvimento com o tráfico.
Estatística 387

Literatura, pedras
e sementes

Um espaço quase centenário. A precariedade contrasta


com as cores repintadas nas paredes usando a técnica
do grafite. A história dos bailes e do culto aos antepas-
sados negros é presente por meio de quadros, recortes
de jornais e da energia que emana do galpão adaptado
para receber jovens e crianças em situação de risco. O
nome é Chico Rei e a simples menção remete a bailes
realizados na cidade quando a estância ainda recebia
inúmeros turistas para a lua de mel e o espaço se dedi-
cava a receber a periferia. Transforma-se, atualmente,
em Centro Cultural Afro Brasileiro Chico Rei.
Como um resgate, arte-educadores propõe oficinas
durante todo o período da tarde a alguns jovens morado-
res da região. Um resgate de autoestima, de cidadania,
de consciência. Com um trabalho feito pelos próprios
jovens, toda fachada do galpão foi redecorada com tin-
tas coloridas e grafites, sempre em alusão às oficinas
de hip-hop. Com aparelhagem de som, pickups e muita
rima, o rapper Job passou a ministrar oficinas para a
garotada. Com uma visita, pude conferir o local, o que
estava sendo passado e de forma breve um pouco do 5º
elemento – conhecimento – lhes foi passado por meio
de audiovisual e da literatura.

386
388 Traficando conhecimento Estatística 389
392 Traficando conhecimento Estatística 393

Não há dados científicos ou computados quanto aos O filme trata, também, sobre as origens e os antepas-
resultados, mas o fato é que, por meio de uma pesquisa sados, tema que os adolescentes passam a respeitar
empírica com a arte-educadores e instituições que, de desde que ingressaram no projeto.
alguma maneira, nos últimos dois anos tinha traba-
Por meio de incentivos assim, muitos que eram ausen-
lhado com hip-hop ou literatura, mais de 1000 jovens já
tes na escola voltaram a frequentar a sala de aula pela
tinham passado de oficinas itinerantes, onde também
manhã, com melhora no comportamento, na concentra-
estive presente com textos da literatura marginal, ora
ção e nas notas. Sou convidada para um dia específico
feitos por mim, ora feitos por estudantes e, também,
levar um pouco das oficinas até eles. Combino e marca-
do cenário nacional. Com lares desfeitos ou abalados
mos uma noite. Chego e o clima de sarau toma conta do
pelo crack, por pais adictos, familiares dependentes do
ambiente. Os garotos chegam e o acontecimento – ficar
álcool, todos os jovens integrantes do projeto Chico Rei
horas longe de casa, da televisão e não estar fazendo
são vitimas do desemprego, da humilhação e da falta
algo reprovável, é quase inédito – os mobiliza a ajuda-
de saúde e educação.
rem a arrumar cadeiras, mesa e telão.
Com a mesa desfeita e a barriga vazia, grande parte
Aos poucos o salão lota. Mães, pais, avós e vizinhas.
estava ali, inicialmente, para receber o lanche ofere-
Muitos vêm saber o que vai acontecer ali. Abro uma
cido pelos responsáveis pelo programa que mais do
pasta e retiro um caderno do Jornal Mantiqueira. O que
que o estômago, encheu a alma. Completaram-na com
estou trabalhando atualmente e que me permite, vez ou
sonhos, com palavras, com arte, cultura e poesia. Em
outra, publicar textos de amigos da literatura marginal.
pouco tempo estavam apegados aos livros e com o senso
Começo a ler o texto e só depois que termino, explico.
crítico fortalecido. Minha visita aconteceu em uma tarde
em que pude fugir do jornal. Com trabalhos feitos a partir A presença da mulher na sociedade de hoje
de notícias ocorridas no próprio bairro deles envolvendo
Por Renato Vital
polícia e, não raras vezes, pessoa conhecidas, eles apren-
deram a gostar de ler o jornal e entender a importância de Qual seria sua reação, ao se deparar com uma mulher
estar por dentro dos acontecimentos da cidade. dirigindo um ônibus há vinte anos atrás? Muitas pessoas
ficariam, no mínimo, assustadas com a cena, por não
Com iPods, MP3 e outros tocadores de músicas, eles
se tratar na época de um fato comum. Ao compreender
mostram, entre si, durante o intervalo, raps nacionais
o assunto, podemos notar a evolução das mulheres na
novos e, quando pergunto algumas coisas básicas sobre sociedade e no mercado de trabalho. Pois, hoje em dia,
o conhecimento do hip-hop, eles não hesitam em me res- é normal nos depararmos com mulheres ao volante,
ponder sobre a origem dos ritmos, da dança e da música. mulheres escritoras, jornalistas, policiais, bombeiras,
Pergunto quanto à produção literária e a coordenadora médicas, jogadores de futebol etc.
do projeto mostra algo escrito por eles. A volta do inter-
Especialistas afirmam que elas se destacam por serem
valo acontece quando eles podem assistir um filme
ágeis, organizadas, sensíveis e detalhistas. Outras pes-
exibido num telão conseguido para o centro cultural.
soas dizem apenas que essa evolução feminina se deve
394 Traficando conhecimento Estatística 395

pelo quesito boa aparência. Quer dizer que as empresas, supermercado e que passa os mesmos venenos diários
em vez de contratarem mão de obra masculina, utilizam- que todos nós a publicar o texto no jornal.
se da beleza e exuberância da mulher, afim de causar boa
impressão em seus clientes, sócios, associados etc. Mostro que não apenas o Jornal Mantiqueira tem este
espaço, como todos da cidade podem abrir a coluna
Mas as mulheres, por sua vez, alegam que a presença Opinião ou Espaço do Leitor para que jovens, adultos e
maciça no mercado de trabalho foi causada pelas diversas
idosos publiquem o que pensam sobre tudo que os leva
manifestações e piquetes, que aconteceram no decorrer
a refletir. Ato contínuo, leio outro texto de Vital, tam-
dos anos. Como sabemos elas conseguiram, na base de
bém publicado no jornal.
lutas e conquistas, os direitos de voto, atendimento espe-
cial nos hospitais e postos de saúde, a Lei Maria da Penha
Não aponta o dedo
(que as protege da violência machista), entre outras.
Por Renato Vital
Podemos dizer que a ousadia delas é, na grande maio-
ria dos casos, motivo pelo qual ocupam esse espaço na Madrugada fria, e não tem desculpa, não tem choro, não
sociedade, que, em alguns anos, poderá ser ainda maior. tem pelo amor de Deus, ou levanta para trabalhar ou vai
É uma pena que muitas consigam destaque apenas com se ver com o patrão. O patrão também acorda cedo, se
apelo sexual, ao posarem nuas em revistas masculinas ele, que é patrão, levantou cedo, você não pode fazer
ou mostrarem o corpo de maneira explícita na televisão, diferente. O trabalhador não tem escolha, o patrão às
em variados programas (muitos deles dominicais). vezes também não tem escolha, o presidente, muitas
vezes, não tem escolha, e quem escolhe então? O patrão
É lamentável, também, que muitas delas confundam:
acorda cedo, porque sabe que tem pagar os funcioná-
“espaço e direitos iguais” com “liberdade sexual e des-
rios, ele sabe que tem que pagar imposto, ele sabe que
valorização ideológica e de seus próprios corpos”, como
se não pagar as contas os agiotas vão ligar para ele, o
acompanhamos em bailes funks entre outras festas de
patrão sabe que precisa vender, o patrão às vezes não
apelação sexual feminina. É bom nos apegarmos aos
queria, mas é obrigado a pagar pouco, porque é pouco
bons exemplos de mulheres de coragem e firmeza, para
que lhe sobra, mas, muitas vezes, o patrão também fica
que possamos assimilar bem essa evolução, pois daqui
com a parte mais gorda do lucro. O empregado sai de
há alguns anos, será comum irmos a um estádio de fute-
casa todo dia, rumo ao trabalho, seu descanso é tempo-
bol e assistir a jogos de futebol feminino.
rário, o tempo menor, talvez o sábado e domingo, ou só o
Escrito pelo rapper e escritor Renato Vital, da Zona Sul domingo, ou uma folga por semana, ou cinco folgas por
de São Paulo, o texto traz muito do que vivemos aqui, mês. Hora extra quase não existe mais, é só banco de
onde todos andam sujos, como a mente da sociedade, e horas, tudo controlado pelo sindicato. O patrão chega
trazem — ora no corpo, ora na alma — sequelas de uma em casa e liga a televisão, o empregado chega em casa
e liga a televisão, um assiste futebol, o outro também, o
vida miserável. Comento como é possível se expressar
empregado pega sua camisa pirata do time do coração,
por meio da literatura periférica e como isso pode che-
o patrão pega sua camisa oficial do time do coração,
gar a um veículo de comunicação. Conto que convidei
mas que comprou na promoção. Ninguém aponta o
o jovem de pouco mais de 20 anos, funcionário de um
396 Traficando conhecimento Estatística 397

dedo para ninguém, no mundo social assim é melhor, na Para não deixar cansativo, no telão, exibi o documentá-
sociedade em que vivemos nada se pode apontar, nem o rio “Hip-Hop: A Revolução que vem das ruas”, produzido
lápis que o menino não quer usar, o futebol é mais atra- pela jornalista Érica Guimarães, em 2007, pela Unip de
ente que a prova de matemática. Na televisão algumas Campinas. Sem narração, os próprios personagens con-
pessoas são apontadas como culpadas, temos obras tam a história desta cultura e conforme o Zulu King, Nino
superfaturadas, temos “big luxo”, casas na praia, a pro-
Brown – representante da Zulu Nation no Brasil – define,
paganda de turismo pro empregado soou como piada,
não há hip-hop sem conhecimento, sem saber dos ante-
enquanto a mulher do patrão interrogou o esposo:
passados, sem voltar no tempo e percorrer as próprias
Pra qual praia vamos no próximo recesso? raízes, sem a leitura e sem a escrita.
O patrão pensa sozinho “Não vou para praia, se julho for Nos olhos dos garotos que queriam tudo e não tinham
lucrativo”. A patroa adivinha o pensamento do patrão quase nada, pude ver um rastro de esperança, rondando
e solta uma exclamação: “Pensando em trabalhar nas aquelas pequenas mentes com corpos tão sofridos.
férias de novo? Não cansa não?”. O patrão tenta dizer Senti, novamente, que algo havia mudado. Entretanto, a
algo, mas é novamente abduzido pela propaganda que maior transformação acontecia dentro de mim, que não
mostra cerveja e praia. Quem abre livros para ler no país
deixava uma escola, um centro cultural, uma quebrada,
do carnaval? O patrão se preocupa com o lucro, o empre-
sem ter lágrimas nos olhos por ter plantado, mesmo que
gado com o salário no fim do mês, e o livro fica dando
bem pequena, a sementinha do conhecimento na vida de
sopa para quem? Algum estudante quer saber de Dante,
crianças e adolescentes que até então só tinham rece-
enquanto mal sabe da sua origem? Os livros vão se empo-
eirando em alguma estante, empregaram o espanador e
bido as pedras da ignorância.
o aspirador de pó e só, ou será que eles, um dia, vão ser
percorridos, com suas páginas já amareladas, mas que
trazem palavras claras e precisas sobre o mundo que
vivemos? Deixa para lá. Se alguém apontar o dedo, dedos
serão apontados, mas o que a gente sabe é que o lucro
virá novamente e as contas, também, e o empregado
ficará com o quê? Não sei lhe dizer!

Com estes exemplos reais e palpáveis, ouvi as coloca-


ções dos jovens sobre os textos e deixei em aberto para
que eles me apresentassem os feitos por eles mesmos.
Apenas dois jovens se manifestaram e leram redações
escritas por eles. Recusaram-se a usar a frente da sala
e de onde estavam, engasgando, disseram um pouco
daquilo que pensavam por meio do que fora anotado
algum tempo antes.
398 Traficando conhecimento Estatística 399
Estatística 401

de pesquisa, que sei, ainda vai levar anos, até que seja
Do verbo produzir admitida em um mestrado de comunicação e possa tra-
balhar a produção literária vinda das quebradas.
Através de questionários, muitos escritores e afins da
literatura, frequentadores de saraus e agitadores cultu-
rais me contaram mais sobre o universo e toparam fazer
parte da pesquisa. Sem parar, me lancei novamente em
oficinas, desta vez em outras regiões e sem a obrigatorie-
dade de ser com estudantes. Bastava que quem estivesse
a fim aparecesse, até porque quem não quisesse não iria
Mudar de emprego foi a melhor opção feita por mim se dispor a receber dicas de livros, textos e filmes.
desde que ingressei na vida “dos que tem carteira assi- Jovens apegados aos livros para o fortalecimento do
nada”. Estava ganhando a mesma coisa, entretanto, senso crítico. Esse era meu objetivo com as oficinas.
havia deixado o tronco e as chibatadas para a liberdade Fazer com que eles parassem de achar que porque eram
de produção e qualidade de textos. Profissionalmente o pobres, muitos deles negros e moradores da periferia
salto foi incrível. Ingressei em um jornal maior, com mais não tinham muito alimento nas mesas, precisavam ser
estrutura, onde posso aprender, até hoje, diariamente, acomodados e conformados com a existência de miséria
as artimanhas do fechamento, da edição e do direciona- que o sistema nos oferece.
mento das matérias.
Como exemplo, passei a usar a minha própria vida e traje-
Tenho ainda mais espaço para divulgar os eventos de tória. Encontrar um emprego não é fácil. Ganhar bem é o
hip-hop, os escritores, os movimentos literários Brasil mesmo que acertar seis números na loteria. Mas frequen-
afora e, ainda, a coluna das opiniões, onde vários ami- tar, mesmo firme, a escola pendenga. Comer, mesmo fria,
gos já puderam participar com textos e crônicas da lite- a marmita amassada e procurar, mesmo com uma enorme
ratura marginal. Sem ser obrigada a produzir inúme- coleção de nãos. Nunca desisti de me encontrar e conti-
ras matérias por dia – incumbida de fazer apenas uma, nuava, de alguma forma, lutando por aquilo que acredito.
desde que fosse boa – pude pensar mais no que poderia
Não é pecado ter a barriga vazia, mas a mente sem ide-
fazer em relação às oficinas, em relação à própria vida,
ologia é quase um crime, se não te leva para o mundo do
além de ter mais tempo para ler e assistir documentá-
mesmo. A minha pequena trajetória passou a ser exem-
rios e filmes relacionados com a periferia.
plo, citada com a de outros parceiros que também tive-
A ideia antiga de trabalhar, antropologicamente, a lite- ram caminhos parecidos, mas que sempre foram firmes
ratura produzida nos guetos voltou à mente e mais uma ao dizer não para os convites às drogas e sim para o con-
vez, com ajuda de amigos e através da internet, entrei vite às leituras. Dispor ideais escritos por mim nem sem-
em contato com vários autores e comecei um trabalho pre era uma tarefa fácil. Muitos passavam para uma fase

400
402 Traficando conhecimento Estatística 403

comparativa do tipo: “Mas na sua casa tem tal coisa. de lixo para encher a barriga. Orgulha-se de nunca ter
Mas você pode fazer tal coisa. Mas você tem apoio”. usado drogas e de ter parado de fumar, vício que adqui-
Optei, então, por usar e casar, textos e relatos meus riu por achar “chique”, ainda adolescente.
com os de outros escritores que tem a mesma situação.
Cuidou/cuida dos familiares, até hoje. Tentou a sorte em
Pareceu funcionar e, através de blogs e mesmo do orkut,
São Paulo no ramo da metalurgia, vivendo no caos do
que não gosto, mas acho uma ferramenta de inserção e
transporte público, nas horas intermináveis trabalhando
até mesmo de divulgação, os jovens, e até as garotas,
feito máquina e botando brioche na mesa do patrão,
que, como nas crews, passaram a aparecer um tempo
retornou a Poços e nem tanta coisa mudou. Assim como
depois, formaram uma integração e listas de discus-
meu pai, cursou até o 4° ano primário e, nas horas vagas,
sões sobre os textos.
quando termina de cuidar da casa e preparar a minha
Citar MV Bill e Racionais MCs, rapper e grupo dos quais marmita, se senta e lê tudo que encontra pela frente.
todos tinham bastante afinidade por conta das letras
Diante das pequenas passagens, que faço questão de
também se tornou uma ferramenta importante, até por-
contar para que todos os jovens saibam que as dificul-
que, ambos já participaram de saraus, livros, prefácios
dades existem na vida de todo mundo e que os caminhos
e tudo mais. A literatura e a leitura, até então vistas
somos nós mesmos que traçamos. Basta termos força
como chatas, se tornavam coisas importantes porque
de vontade e discernimento para mudar a própria peri-
os “espelhos” também estavam praticando.
feria e as oficinas caminham de forma mais produtiva.
Algo que sempre fiz questão de ressaltar foi um pouco
Por falar em produção, após dois anos de trabalho com
da vida e luta dos meus pais. Aposentado no ramo da
as oficinas, somente quando elas se tornaram itinerantes
metalurgia, meu pai começou a trabalhar aos seis anos,
e através da internet foi possível ver o empenho e desejo
quando levava marmitas, vendia bucha de aço na feira e
dos garotos em produzir textos. Com o ingresso de garotas
ajudava os pais com o orçamento doméstico. Nas horas
nas oficinas e encontros, a produção ficou ainda maior.
vagas, catava balas de goma descartadas ao lado de
Não sei se são mais sensíveis, mas o fato é que passaram
uma fábrica. Nunca teve qualquer luxo. Estudou até o 4º
a escrever ainda mais. Muitos questionam, perguntam,
ano primário e fez de tudo para me dar estudo. Sempre
especulam: “O que pode virar conto, texto, notícia?”
gostou de ler, fazer palavras cruzadas e tem uma mente
incomum para resolver problemas e praticar a hones- Respondo que as cenas inéditas no papel e cansati-
tidade. Enfrentou problemas na capital paulista como vas na vida são ótimos começos: a goteira que pinga na
qualquer pessoa pobre enfrenta. Hoje, continua vivendo cama, o vizinho que ninguém quer ter, o invisível que nin-
em um local pobre, não tem plano de saúde e com diver- guém quer ver, o mendigo que todos tropeçam e as crian-
sos problemas, enfrenta horas para ser atendido. ças que já não sorriem. O pessoal quer saber se relatar
a própria vida funciona... Não existe fórmula e, pelo fato
Já minha mãe cresceu sem mãe. Criada pela avó anal-
da literatura estar às margens, tudo vale.
fabeta até os 13 anos, ficou sozinha no mundo. Também
trabalha desde os 6 anos. Passou fome. Comeu restos
404 Traficando conhecimento Estatística 405

Alguns, que já desistiram da escola, passam a ler bas- Transforma-se em uma pessoa inválida de guerra, mas
tante e pensando em escrever, ignoram o analfabetismo é uma guerra urbana e social, que deixa sequelas de
e pensando bem, ler e escrever são brindes em um país variados tipos. Ela se transforma em uma aleijada, tipo
de estatísticas. O último levantamento feito pela Secre- aqueles que se arrastam pelas ruas da cidade com seus
taria de Promoção Social mostra que a cidade tem cerca passos incertos queixando-se dos muros invisíveis, que
os impedem de serem pessoas – seres humanos.
de 500 analfabetos. Menos de 1% da população. E esta é
mais uma estatística, que me inspira um texto. Bem real: A maior tristeza que me invade repentinamente, várias
vezes ao dia, é a lembrança de vê-la olhando o jornal e
Invisibilidade tentando compreender quais eram as notícias que aque-
Por Jéssica Balbino las folhas impressas com letras, fotografias e infográ-
ficos traziam e que, para ela, fazia parte de um mundo
O cheiro da sujeira misturada com a pobreza é insupor- ainda mais distante.
tável. Permanecer poucos minutos nos dois cômodos da
casa é sufocante. As garrafas pet, sapatos velhos, peda- Entristeço-me cada vez que lembro de como deve ser
ços de madeira, de ferro e muito papel ficam empilhados duro o dia a dia de quem não entende as letras. Penso
e obstruem a passagem para os demais cômodos e dão à que seria, então, um desperdício não incentivar a leitura
casa um aspecto de aterro sanitário. daqueles que podem ler e não o fazem.

Quando é questionada sobre o porquê de tanta sujeira Todas as vezes que me deparo com esta realidade,
acumulada, ela tenta se defender e, enrolando a língua, lembro-me da história contada por meu pai. Cheio de
tropeçando nas palavras, diz que não vai se desfazer de emoção e, também, de angústia ele sempre relata que a
“suas coisas”, que, para quem observa do lado de fora mãe dele – a avó que não tive a oportunidade de conhe-
(tanto da casa como daquele mundo), não passa de um cer – certo dia estava folheando uma revista de cabeça
monte de lixo e um convite para focos de dengue. É quase para baixo. “Foi duro ver aquilo”, ele sempre comenta,
incompreensível o que ela quer dizer. Ela é surda. E, por quando conta a passagem.
ter nascido assim, não aprendeu a se comunicar. Por E voltando à dona de toda a bagunça – lixo – acumu-
causa disso é analfabeta e, dentro desta situação, se lada em uma pequena casa, por se encaixar em tantas
transforma em mais uma estatística. Ou em muitas. estatísticas e ao mesmo tempo ficar do lado de fora dos
Brasileiros que recebem benefício por incapacidade de padrões impostos pela sociedade, foi despejada do local
trabalhar. Brasileiros que vivem em situação de risco. Bra- onde vive sem direito à defesa. Foi atropelada. Não há
sileiros que são completamente analfabetos. Brasileiros quem queira cuidar até que ela se recupere.
que ganham apenas um salário mínimo. Brasileiros que Nunca fez mal para ninguém. Nunca teve desejo de rique-
pagam aluguel. Brasileiros que não podem se alimentar zas materiais. Nunca desejou ter mais do que tinha. Nunca
de forma decente. Que vivem sem higiene. Que tem pro- conseguiu expressar sua indignação diante de um mundo
blemas mentais. Que se transformam em mais um ou são “injusto”, que escraviza quem já nasce condenado, por
divididos em vários, por categorias, deixando de pensar, nascer no meio de pobres e da pobreza. Nunca conseguiu
sentir e, até mesmo, de existir. Vira apenas um número. construir uma identidade. Nunca conseguiu comer carne
todos os dias. Nunca conseguiu se desgarrar da cultura
406 Traficando conhecimento Estatística 407

negra, como foi ensinada – embora sempre tenha sido loira


de olhos claros – nunca conseguiu se “divertir” da forma
como dita a sociedade. Nunca conseguiu ser “alguém” e,
mesmo sendo taxada a vida toda como “ninguém”, teve
quem chorasse quando a notícia chegou: ela seria inter-
nada em um hospício. Não, nunca foi louca. Apenas surda
e analfabeta. Quando foi comunicada, não conseguiu dizer
o que pensava, apenas repetia, da mesma forma enrolada
de sempre: “Não quero ir. Não quero.”

Mas, novamente, a invisibilidade social fez com que as


palavras, desejos e vontades dela não fossem respei-
tados. Todos decidiram o que para eles, seria melhor
para ela, sem saber que ela era feliz da maneira como
vivia. Antes de se despedir, pediu que quem estivesse
chorando enxugasse as lágrimas, prometeu ficar bem
e finalizou: “Deus é grande.” Saiu e continuou invisível.
Todos seguiram suas vidas. Ah, a propósito, ela tem um
nome, embora nem todos se recordem ou se dirijam a ela
da mesma maneira. Geralda Dionésia de Jesus1. E ainda
acredita neste último, embora pareça que ele não acre-
dita muito nela. Continua analfabeta.

O fato de, como no Chico Rei, inserir outros elementos


do hip-hop nas aulas e oficinas só foi positivo para a evo-
lução. Entre uma oficina e outra, a produção literária só
foi crescendo e em comunidades, orkut e blogs é que os
jovens passaram a divulgar os próprios textos.
As garotas tratavam de sentimentos, de letras de músi-
cas, de histórias de amor. Os garotos de descaso, de
problemas sociais, da própria vida. Atitude, assim eles
autodefiniam o trabalho que estavam fazendo. E assim,
realmente, é! Muitos voltaram a estudar, trocaram as
horas de bar e sinuca pelo cinema, pela música, pelos
ensaios, pela produção de novas bases.

1 Texto escrito poucos dias antes de Geralda falecer de forma misteriosa,


em um hospital, sozinha, em uma cidade vizinha. Foi enterrada com marcas
roxas no pescoço e sem laudo médico.
Estatística 409

Durante o mesmo período, na capital mineira, onde o rap


Sem parada ainda é o elemento mais forte da cultura hip-hop, deva-
gar, o conhecimento foi tomando espaço e em tempo
simultâneo o grupo Elemento.S, que, em 2007, havia
pedido para gravar um texto como música, participou de
um sarau no Palácio das Artes.
O evento conhecido como Terças Poéticas, pela pri-
meira vez, reuniu grupos de rap e empurrou a Litera-
tura Marginal elite adentro. Bruno, conhecido como MC
Budog, se uniu aos integrantes Pquena e Rapper Julim
O bonde não para. Esta é uma das frases preferidas de e, com roupas em alusão aos mendigos, leram e ence-
quem está inserido no hip-hop. Trata-se da letra de uma naram o texto “Olhar para o hip-hop que ...”, publicado
música de MV Bill que é usada com muita frequência no “Suburbano Convicto”.
para aludir que, quem está do lado de dentro da cultura Pois é, estávamos vencendo as barreiras geográficas e
marginal, não pode estacionar. do sul do Estado, estava na capital, interagindo com a
Estar em movimento significa fazer algo em prol da sociedade por meio de um texto escrito as pressas para
própria quebrada. Mudar a realidade que contorna os ser a introdução do livro-reportagem do TCC. Bruno
problemas enfrentados na periferia. Há nove anos na explicou que o CD estava em fase de produção e que,
estrada o grupo UClanos, os tios do hip-hop, consegui- em breve, a música estaria pronta, mas fez questão de
ram, por meio de uma audição realizada em Poços, par- filmar a leitura do texto e colocar no youtube. Assim,
ticipar do programa Astros, do SBT, onde ficaram entre mais uma vez, a internet ajudou na divulgação, nos
os três melhores grupos. incentivando a praticar o 5º elemento.

Pela primeira vez conseguiram cobertura de todos os veí- Por ser um evento tradicional na capital, mais de 150 pes-
culos locais e chamaram ainda mais atenção por serem soas frequentam o sarau toda semana e saber que o texto
um grupo de rap, estilo pouco apreciado em competições chegou a todo este público foi um ponto bastante impor-
e, mesmo assim, terem alcançado uma boa colocação. tante. Objetivos alcançados. Disseminação de conheci-
Com as portas abertas por conta da participação, fica- mento e de informação. Lembro do primeiro contato com
ram em primeiro lugar no Festival Rap Popular Brasileiro o Bruno, quando ele pediu o livro, disse que o que estava
de Belo Horizonte, como em uma seletiva para o Festi- escrito estava mudando a vida dele, que ele queria ler e
val Hutúz no Rio de Janeiro. Para fortalecer, não apenas conhecer, cada vez mais, sobre a própria história. Como
o profissionalismo como a amizade, me apresentei como um filme rápido, enquanto eu assistia a apresentação,
assessora de imprensa deles e todos ganhamos. repensava em toda trajetória e enfim, sorri realizada.

408
412 Traficando conhecimento Estatística 413

Como uma maneira de fortalecer o trabalho, fiz uma trarem sua literatura marginal como: Blitz (Crime Verbal),
matéria que consegui publicar no Mantiqueira e, tam- Leo (Comando Rap Mineiro), Arte Favela, Coletivo Voz,
bém, no blog. Confira: Gen (Retrato Radical), Black W, Kadu (S3M). E teve, tam-
bém, uma apresentação do Artista “Novato”, um grande
Literatura Marginal entra pela porta da frente no Palá- nome na literatura marginal em Minas Gerais.
cio das Artes em BH Jéssica Balbino - Como foi a performance feita pelo
por Jéssica Balbino seu grupo?
Budog - Olha, foi muito louca a performance, mas vou
Na última semana o MC Budog, 25 anos, do grupo de rap
avaliar de uma forma geral. Seguinte, Ice band abriu o
mineiro Elemento .S participou do evento Terças Poéticas
espaço para todos nós, como disse anteriormente, e em
no Palácio das Artes em Belo Horizonte. Com os integran-
cima disso ele montou um único espetáculo com todos
tes Pquena e Rapper Julim, o texto “Olhar para o hip-hop
os grupos, vestidos como marginais. “Assim a sociedade
que...”, escrito por mim, do livro “Suburbano Convicto”
julga, né? Apenas pela aparência.” Mas então, estávamos
foi lido pelo grupo, que caracterizados e em uma perfor-
a maioria de touca cobrindo a face, outros de óculos escu-
mance singular, fizeram uma cena impossível de deixar o
ros, jaqueta, alguns sem camisa, pois estava amarrada
público calado, ou alheio.
em seu rosto cobrindo toda a face. A ideia foi causar um
Jéssica Balbino - Como funciona o evento? impacto no público e mostrar que o marginal que eles jul-
Budog - O evento se chama Terças Poéticas, é realizado gam, também tem talento, e que não deve ser julgado pela
todo ano nos jardins internos do Palácio das Artes, em aparência e sim, pelo caráter e pela sua atitude. Enfim, a
Belo Horizonte, local de grande nome e difícil acesso performance, em geral, foi um sucesso, foi mil grau!
aos eventos da cultura hip-hop, mas graças a Deus e ao
Jéssica Balbino - Parece que rolou uma homenagem
esforço dos artistas, as portas para a cultura estão se
aos nomes da cultura hip-hop e literatura marginal que
abrindo! Os artistas passam por uma seleção e tem um
já se foram? Como foi?
espaço para estar divulgando seu trabalho, lembrando
Budog - A apresentação foi um tributo feito aos artistas
que está é a primeira vez que a cultura marginal, ou
da cultura hip-hop que já se foram. Cada poeta ao finalizar
melhor, a literatura marginal teve seu espaço e conti-
a literatura, poesia, prestava a sua homenagem aos mes-
nuaremos batalhando para conquistar cada vez mais.
mos, vitimas do descaso, do sistema, do crime etc. “Acho
Como disse a jornalista Janaina C. Melo (Mina Jana) e
que o motivo da morte não importa, são todos guerreiros.”
Ice band: “O hip-hop entrou nos jardins do palácio pela
Alguns citados foram: Anita Motta, Duke (Retrato Radical),
porta da frente, da próxima vez, estaremos no Teatro do
Sabotagem, Alex F(Sistema Negro), Chacrinha(Decreto
Palácio e seremos convidados a entrar.”
Verbal) e vários outros artistas importantes que, com cer-
Jéssica Balbino - Foi a primeira vez que vocês partici- teza, estão no coração de todos nós!
param do evento?
Jéssica Balbino - Como o público reagiu?
Budog - Sim. Através do rapper Ice Band e de sua esposa,
Budog - Eu achei que o público iria reagir de uma forma
a jornalista Mina Jana, que abriram esse espaço não só
preconceituosa, mas não! Fomos recebidos com palmas
para o grupo Elemento. S, mas para vários artistas mos-
414 Traficando conhecimento Estatística 415

e bastante barulho. Ao final de cada literatura, o público Como o projeto Cultura Marginal tem tudo a ver com a ora-
aplaudia, alguns gritavam “Bravo! Bravo!” Por incrível lidade, o registro do 5º elemento em uma música foi ao
que pareça, fomos muito bem recebidos no Palácio das encontro da ousadia de Suburbano, que fez questão de
Artes, alguns podem pensar assim ao ler essa entrevista: cantar a história do hip-hop e ainda teve a sensibilidade de
“Que bosta, no palácio das Artes, até parece!” Mas para me agradecer, sendo que eles é que sempre me ajudaram.
todos nós é mais uma vitória, também para a cultura
hip-hop, são mais portas se abrindo para a periferia e, “Obrigado Jéssica, pelo seu trabalho, com o hip-hop, meu
com certeza, isso é muito importante. pit stop, onde eu me abasteço (...)”, assim canta Subur-
bano na canção “É tudo nosso”, parte de um projeto, tam-
Jéssica Balbino - Como você avalia sua experiência?
bém do grupo.
Budog – Nossa, sem palavras. Primeira vez que recito um
poema, que participo deste tipo de evento apesar de já A Cultura Marginal em versos, de Poços para todo o país.
estar envolvido no rap que também é poesia, mas dessa Assim aconteceu a divulgação. Em uma outra música,
forma sem beat, sem DJ, foi a primeira e confesso que cantando, o grupo defende a história do hip-hop e pede
gostei! Recitei, junto com meu parceiro Rapper Julim, a respeito. “Respeite o próximo, também é nosso, se você
sua poesia “Olhar para o hip-hop que...”, eu a gravei com pode, eu também posso”, cantou durante o show do
base, com melodia, mas recitar foi diferente. Comecei a UClanos no Circo Voador, no Rio de Janeiro.
recitar, aí, do nada, me deu uma vontade de falar cada
vez mais alto, às vezes suspirava, falava mais baixo, é Escolhidos para abrir o show de MV Bill e Racionais MCs,
inexplicável, foi ótimo. Muito interessante! o clã de suburbanos se deixa levar pela magia existente
debaixo da lona do Circo Voador. É fácil ser sentida e
Jéssica Balbino – Tem algo que não foi perguntado, mas
vários grupos conseguem curtir os embalos da noite. A
que você acha importante destacar?
Budog - Agradeço à você, Jéssica, e também à Anita
volta dos cabelos black marca o resgate da autoestima
Motta (in memorian), pelo apoio e por ter confiado no entre os afrodescendentes e a utilização de um espaço
nosso “trampo”, por ter cedido a sua literatura para gra- “nobre” no centro da cidade registra também uma nova
varmos como introdução do nosso CD e por permitir que fase da história da cultura hip-hop.
nós, do grupo Elemento. S, possamos recitá-la pelas ruas, “Soul, black, funk, afro... Sou da beleza negra”, assim o
palácios, periferias etc. Agradeço ao Centro de referência
show é aberto na marcante voz de Lu, que, no palco, se
Hip-Hop Brasil pelo apoio e pela oportunidade e, ainda, à
transforma em Lu Afri e exibe, diferente de outras vezes,
coordenação do evento Terças Poéticas. “Não julgue pela
um penteado black power que lembra a força do movi-
aparência, julgue pelo caráter.” Aos guerreiros in memo-
mento nos anos 1970. Pela fisionomia de todos, penso
rian: “Perde-se um homem na Terra, mas ganha-se um anjo
em como aquele momento é importante. Revejo, mental-
no Céu.” Descansem em paz, sua missão foi cumprida!!!
mente, toda a trajetória do grupo, cheia de dificuldades,
Sem parada, o contato firmado com grupo UClanos per- desencontros e, agora, uma vitória. Quando o Flávio, que
mite que eu vá a vários eventos e fique sempre próxima no palco se transforma em Suburbano, exibindo inclu-
do público que trabalho em oficinas e encontros literários. sive o pseudônimo em uma tatuagem, pega o microfone
Estatística 417

e faz questão de dizer que é muito satisfatório estar no


Hutúz e, mais ainda, no Circo Voador, lembro que mui-
tos artistas como Cazuza, Lobão, Capital Inicial e Legião
Urbana começaram a carreira debaixo da lona, inicial-
mente, para 50 pessoas e posteriormente para 3000.
Incrível. Assim pode ser descrita a cena do grupo sobre o
palco, cantando o cotidiano poços-caldense para gente
de todo país em um grande festival de rap. “Mesmo sem
qualquer apoio do poder público ou da iniciativa privada
da nossa cidade, estamos aqui hoje, cantando para
vocês e é um orgulho muito grande”, fala Bebeto, que no
palco transforma-se em MB2, ao microfone, lembrando
como tem valor um microfone na mão de um MC. Assim
pode ser notado pelos gritos da plateia e pela agitação.
Deduzo que isso acontece porque todos têm histó-
rias parecidas e vêm de periferias, que, como diz Mano
Brown, são assim em todo lugar. Canto e danço ao som
de rimas e refrãos que acompanho desde que conheço o
hip-hop e que dizem tanto sobre mim como sobre qual-
quer pessoa que acompanha uma cultura popular.
Todos os suburbanos que viajaram conosco estão envol-
vidos pela magia que é ver um grupo da nossa própria
quebrada no palco do Circo Voador, entoando para o
Rio de Janeiro o som produzido na periferia de Poços de
Caldas. Paralelo ao show, b.boys dançam em um palco
alternativo, outros grupos cantam e MC’s se confrontam
em batalhas de rimas, lembram os primórdios, resgatam
a ancestralidade afro e levam para todos os presentes o
valor da cultura negra, dos quilombos.
O meu estado é de euforia total. Superemocionada cir-
culo por todo o espaço e me lembro que a prática oral
de expressão acompanha a evolução da humanidade
e que, naquele momento, estávamos todos vivendo a
418 Traficando conhecimento Estatística 419

nossa história. No centro do Rio de Janeiro, um bairro hip-hop, com textos sobre a periferia de Poços de Cal-
boêmio, em um espaço consagrado artisticamente, raps das, me pediu uma cópia, que, prontamente, lhe enviei
da nossa realidade, pessoas próximas e o hip-hop puro por e-mail. Na época, em 2007, trocávamos e-mails quase
transformam as atividades em paz. diariamente, quando ele me dizia o que estava achando
do livro e o mais emocionante, comentava que a literatura
“Respeite o próximo, também é nosso, se você pode, eu
e o hip-hop estavam mudando a vida dele para melhor.
também posso”, canto durante o show. Quando abro os
olhos, após ter dançado sozinha e embalada na letra, Em determinado momento ele me pediu permissão para
me deparo com um garoto na minha frente. Sei que já vi usar o texto de abertura do livro, que, posteriormente, foi
o rosto dele em algum lugar, mas levo alguns segundos usado em uma coletânea de textos de autores periféri-
para me lembrar de onde o conheço. cos, para fazer a abertura do CD que ele preparava junto
com o grupo. Permissão dada. Mais de um ano depois
É ele. Parto para um abraço sincero e carinhoso, que
recebo via MSN um arquivo em mp3 com a música, que
parece de saudade. Mas, como podemos sentir sau-
marca a introdução do álbum demo do grupo.
dade de alguém que nunca vimos pessoalmente? Nesse
caso é normal. Trata-se de Bruno Eustáquio, conhecido Extasiada pela noite de hip-hop, só consigo chorar,
como Budog MC. Importantíssimo na minha vida por ter quieta no meu canto, pois uma balada precedida por
gravado um texto meu como introdução do CD Demons- uma viagem de quase oito horas, um passeio pelo Rio
trativo do grupo Elemento.S, é uma grande satisfação de Janeiro histórico e um encontro com a essência da
encontrá-lo pessoalmente. cultura nascida nas ruas e que faz parte do meu dia a
dia periférico, é inesquecível.
Ganho um CD, com dedicatória, e uma homenagem para
Anita Motta (em memória) no encarte do álbum. Fico Um tempo depois, que não sei precisar quanto, enxugo
extremamente feliz por saber que ele está distribuindo as lágrimas, procuro o Bruno, agradeço de forma decente
as cópias no Hutúz. Ele pede licença e se afasta para dis- e recito, mentalmente, o texto, que foi escrito às pres-
tribuir outras cópias. Afasto-me de choro sozinha. Feliz, sas, em uma noite chuvosa do mês de outubro de 2006,
completa, realizada. Neste instante, lembro e canto quando precisava de algo como introdução para o livro e o
mentalmente “tua ausência fazendo silêncio em todo diagramador precisava terminar aquele trabalho.
lugar”, música do Teatro Mágico que, embora não seja
Na sequência, me sento na escadaria que dá para o palco
gravada sobre bases de rap, também mistura ritmo e
e apenas ouço o show do MV Bill e um trecho do show do
poesia. Apesar de todo o som rolando, sinto o silêncio da
Racionais MC’s, feliz pelo momento, pela conquista e pela
ausência dela, que poderia estar ali, naquele momento,
experiência que posso levar para a minha quebrada e tra-
somando e curtindo conosco, se emocionando, também,
balhar lá, reunindo os elementos do hip-hop, que buscam
por ouvir um texto transformado em música.
congregar os perifericamente excluídos de todo país.
A “conquista” surgiu naturalmente. Assim que Bruno leu,
Com a gravação da música, mais uma prática oral pode
em um site, que eu era uma das autoras de um livro sobre
ser incorporada a oficinas e encontros com jovens.
420 Traficando conhecimento Estatística 421

Resultados. Apresento-a como o resultado de um traba- das favelas e o colorido do grafite, que vem, de alguma
lho de tantos anos. Viver, conviver, me inspirar, escrever forma, colorir a vida periférica.
um texto, publicar, divulgar e posteriormente, vê-lo gra- Aí está a identidade dos excluídos, com suas expressões
vado como música. artísticas marcantes, que refletem as expressões desen-
Quer orgulho maior? A quebrada de Poços de Caldas já volvidas a cada dia, atrás da vontade de mudança que
ecoa dos becos e vielas.
tinha chegado em Belo Horizonte e, agora, estava inva-
dindo o Rio de Janeiro. Com vários CDs demo na bolsa, A alma do povo que arde nos locais mais pobres, cla-
Bruno distribuiu todos eles entre pessoas de diversas mando por socorro, vem do lado negro e inferiorizado,
partes do Brasil. Mesmo sendo uma cópia demons- batendo de frente com uma sociedade que se faz de
trativa fiquei absurdamente feliz por ver meu trabalho morta para esta identidade que movimenta-se em seus
circulando. contrastes a cada dia, fazendo vibrar o grito desespe-
rado que vem dos guetos.
Fiz questão de reportar a gravação da música no jornal
e, como os contatos são tudo na vida... A Kaká Soul, irmã Sonhos embalados com som de tiros e barulho de fome,
de hip-hop, de TCC e de ideais, me pediu um texto para roncando no estômago, registram a identidade, sofrida,
da periferia.
o marido dela, Alemão. Ele estava entrando em estúdio
para gravar o CD Identidade e queria uma introdução. Saiu Seja onde for, marcada pelo tráfico, pelo medo e pelo
o texto abaixo, que entrou para o CD e desta vez circulou desrespeito. Ritmada por letras de rap refletem a violên-
no centro-oeste brasileiro, na cidade de Goiânia (GO). cia, as drogas e o domínio dos que se julgam mais forte.

Através das misturas controversas, a favela encontrou no


Favela – Identidade
hip-hop um fio de luz que traz a vontade de viver, crescer,
Lá está ela, que vem, que fica. mudar e transformar o gueto num local mais humano, com
uma identidade.
Conhecida por seus vários nomes. E pode ser gueto, arra-
balde, subúrbio, periferia ou favela.

É a cultura das ruas, do povo, surge nos locais mais pobres,


através de rima em um estilo único, misturando formas,
injustiças, cor, desigualdades, paz, dor, amor, guerra,
personagens reais, diversão, miséria e união, assim vem a
identidade da favela, do rap, do hip-hop...

Um caldeirão de misturas e contrastes, que trazem uma


identidade ilustrada por pessoas cercadas pela miséria
combinadas com as batidas do rap, os discos arranhados
dos Djs, os passos quebrados dos dançarinos, nos chãos
Estatística 425

— Espírito Santo. Aqui no Brasil atende também por hip-


Beatz hop gospel e recebe a cada dia mais adeptos, cantando
as dificuldades da classe menos favorecida, dos guetos,
e pregando as palavras bíblicas.
Enquanto os grafiteiros Gal e Eco finalizam a arte que
mostram dois caminhos possíveis de se escolher entre
o crime e o conhecimento, dois jovens aproximam-se do
palco e ajoelham-se perante ele, tiram os bonés e pedem
benção ao Senhor. Sendo, desta forma, abençoados pelo
MC Chicão, que é, também, diácono da igreja que fre-
Um pouco diferente e organizado por outras pessoas quenta, Assembleia de Deus.
da cidade, um evento de hip-hop gospel foi organizado Participantes de um evento de hip-hop gospel, os grafi-
também na Zona Sul da cidade e, conforme uma das teiros presentes também são religiosos, e seguem Deus.
organizadoras detectou, o local foi escolhido por ter Eco já passou por experiências marginais na vida e conta:
uma presença maior de adeptos e mais necessidade de “Antes de começar com o grafite eu pichava muros,
formas de diversão. naquela época, eu fui até preso e passei altos sufocos.
Assim, o evento acontece em uma noite de sábado, tal- Hoje já passou tudo, chegou uma época em que tudo aqui
vez mais uma noite qualquer, em uma periferia onde começou a me fazer mal. Estava fazendo grafite de uma
todas as noites são iguais. O que incomoda é o frio do forma errada, marginalizada, então comecei a buscar o
final do mês de maio. O vento vem gelado, e, para os lance da verdade. Foi na época que comecei a ler a bíblia,
jovens se aquecerem e aguentar mais uma noite fora de comecei a praticar e ter experiências com Deus.”
casa, só mesmo o álcool em bebidas. Gal também tem uma postura parecida e considera:
Em um salão já bem gasto pelo tempo de uso, alguns “Não faço parte do hip-hop, mas acompanho o Manus-
jovens fecham-se em rodas e praticam o break, enquanto critos porque somos amigos. Além de estar fazendo o
o MC Chicão, cantor de rap faz a sua rima no palco, grafite, nosso objetivo é passar uma mensagem do bem.
acompanhado pelo DJ Scooby em sua performance. Eles Não é pregar religião, é, de repente, a questão espiritual
integram o grupo carioca Manuscritos. Em meio a um do bem-estar social.”
freestyle, eles levam até os jovens as palavras da bíblia, Quando questionado a respeito do que é exatamente o
referindo-se à Deus. Algo novo, e até um pouco estranho, hip-hop gospel, MC Chicão afirma: “Deixe-me fazer um
principalmente para a sociedade que encara o hip-hop pequeno resumo, o hip-hop é um lance que os negros
como uma cultura marginal e desvairada, longe de Deus. dos EUA usaram para poder protestar, reclamar, aquilo
No entanto, o evento, chamado Beatz é exclusivamente que eles não conseguiam fazer apenas com as palavras.
de Holy Hip-Hop. Nome que vem do inglês Holy Spirit Eles usavam isso para passar as informações e fazer as

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pessoas refletirem naquilo que acontecia na realidade O público presente no evento começa a sair pelas laterais
deles. Nós estamos fazendo a mesma coisa. A gente do ginásio, e a festa chega ao fim com meia dúzia de pes-
passa a informação a fim de fazer as pessoas refleti- soas. Os viajantes, que acompanharam o grupo Manus-
rem naquilo que nós vivemos. O que nós vivemos? Uma critos, fazem pose em frente ao grafite recém-pintado.
vida diferente, com Cristo (...). A gente usa o hip-hop para
Um dos jovens que se converteu há poucos minutos vem
falar do amor de Cristo, para pregar o evangelho, é basi-
querendo tirar uma foto, em uma mão ele segura um
camente isso.”
cigarro aceso e, na outra, a bíblia. Parece estar bêbado e
Ao mesmo tempo, enquanto os organizadores do evento sem coerência no que diz, mas promete, com a voz elevada,
vibram por verem jovens convertidos, do lado de fora do que daquele momento em diante, será uma nova pessoa,
ginásio alguns deles estão bebendo “tubão”, uma famosa seguidora de Deus. O grupo aplaude, e sai contente por ter
bebida entre os jovens da periferia, resultado da mis- conseguido tocar o coração de alguém que estava ali.
tura de pinga com refrigerante. Estes jovens entornam a
Do lado de fora, a festa continua, ainda com muita
bebida, falam muito palavrão misturado às gírias e sequer
bebida, “tubão” e drogas. Os viajantes sobem no ônibus
param para admirar o grafite que está sendo finalizado.
e deixam o bairro periférico, os vizinhos voltam para suas
A festa prossegue, as rachas de break continuam entu- casas, e os policias continuam empunhando armas, ron-
siasmando. Os moradores do bairro achegam-se para dando toda redondeza.
“dar uma olhada” no evento. Do lado de fora do portão
Aquele sábado frio continua sendo apenas mais um
do ginásio os policiais “guardam” a segurança com as
sábado frio, sempre com rap, mesmo que, desta vez, um
armas de fogo em punho.
rap convertido, mas a trilha sonora é a mesma, a falta
O grafite fica pronto, o MC Chicão e o DJ Scooby finali- de sonhos, maior. É, justamente, nesta falta de sonhos
zam a mensagem, mandando muita paz e fé em Deus. que a Cultura Marginal trabalha. Por meio do hip-hop –
Assim como o hip-hop convencional, o gospel também seja gospel ou não – e da literatura, promove a autoes-
é baseado em protesto e resistência, mas é transmitido tima destes jovens que para aquecer o corpo e a alma
de uma forma diferente, por outros canais, utilizando a usam bebidas alcoólicas. O intuito é que eles usem as
linguagem bíblica, pregando o evangelho. letras, os poemas, o conhecimento e a sabedoria para
aquecer os sonhos, em fogueiras que queimem apenas
MC Chicão conta que, antes de se converter, ele era
os desafetos, o preconceito e o comodismo. Que das cin-
“do mundo”, como os evangélicos costumam dizer, ele
zas renasça a vontade de mudança, o caminhar rumo à
fumava, bebia e tinha uma vida como a de muitos outros
positividade e forças para realizar desejos.
hip-hoppers. “Pude ouvir a voz de Deus falando comigo
‘o que você tá fazendo aí?’ Então, percebi que podia usar Desta vontade surge, então, um novo projeto dentro do
o dom que Deus me deu para louvar o nome Dele como Cultura Marginal. Um subprojeto que, talvez, tenha mais
forma de agradecimento. Para mim o hip-hop é isso, alcance e se destaque até melhor.
expressa minha vida em versos e melodias.”
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Estatística 433

Quando tomei conhecimento do projeto, propus uma


Passa Livros reportagem para o Jornal Mantiqueira e, encantada por
mais esta forma de distribuir o saber, aderi na mesma
hora. Naquele mesmo dia limpei as estantes e ainda saí
pedindo a todos conhecidos os livros que eles poderiam
doar. Aos 47 anos, após ler uma reportagem do jornalista
Rodrigo Ratier, da cidade de São Paulo, sobre um projeto
parecido, Angela sentiu a necessidade de retirar os livros
empoeirados da estante e fazer com que eles pudessem
ser aproveitados por várias pessoas e passados adiante.
“Eu não queria criar uma biblioteca circulante, mas que
“Também quero doar livros e fazer o saber circular. Como as pessoas recebessem o livro e tivessem o prazer e a
eu faço?”, pergunta, surpreso o operador de hidroelé- responsabilidade de passá-los adiante”, diz.
trica Paulo César Alexandre, ao ser abordado com a per-
gunta “Você aceita um livro?”. A cena, pouco comum, foi Por intermédio da revisora de texto do jornal em que tra-
protagonizada por muitos rostos anônimos que circu- balho, Delma Maiochi, consegui muitos outros exempla-
lavam pelo Terminal de Linhas Urbanas em uma manhã res e levei o projeto para além das praças da cidade. O
nublada e chuvosa de quarta-feira. O projeto “Passa Terminal de Linhas Urbanas foi um dos pontos escolhi-
livros” é adotado pelo Cultura Marginal e ganha mais dos, por conta do número de pessoas que circulam dia-
edições e novos colaboradores. riamente e, também, por serem pessoas de baixa renda.

Em vez de oferecer esmolas, oferece livros. Exemplares Com uma sacola cheia de livros, pela primeira vez que
de romances, clássicos, históricos, livros-reportagens saí às ruas para distribuí-los, parei no local e para brin-
e técnicos são distribuídos gratuitamente a quem quis car, comecei a espalhar alguns livros, que na quarta
receber uma história ou informação nova. Na cidade, capa trazem a mensagem:
a ideia foi colocada em prática pela pedagoga Angela “Olá, cuide bem deste livro e após desfrutar desta leitura,
Caruso, que em uma das manhãs mais frias do mês ofereça-o a alguém, aqui mesmo onde o recebeu. Não deixe
de julho de 2009, quando o termômetro localizado em que esta história fique aprisionada novamente na estante.
frente ao prédio da Thermas Antônio Carlos marcava 10 Permita que outros possam ter a mesma oportunidade que
você. Faça as histórias circularem pela praça.”
graus, ela se dispôs a carregar uma pilha de livros sobre
temas diversos pela praça Pedro Sanches e foi, lenta- Pelas muretas, bancos e orelhões do Terminal comecei
mente, abordando várias pessoas e entregando a elas, a deixar alguns livros. Com a experiência das caixinhas
gratuitamente, os exemplares que incluíam todo tipo de poéticas, resolvi brincar um pouco e observar a reação
estórias e também histórias. das pessoas. O primeiro senhor que avistou o exemplar
sobre o apoio do orelhão, escolhido, propositalmente, por
ser o do meio, entre outros dois, se dirigiu ao da direita,

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olhando desconfiadamente para o livro, como se, de contido naquele livro a outras pessoas e promover, tam-
repente, ele deixado ali, fosse uma brincadeira ou ame- bém, o acesso à leitura, que, ainda hoje, é deficiente no
aça. Na sequência, uma mulher também olhou para o país, segundo dados da pesquisa Retratos da Literatura
livro e se dirigiu para o orelhão da esquerda. Então, uma no Brasil, que mostra que entre 95 milhões de pessoas
terceira pessoa olha para o livro e se aproxima. Trata-se entrevistas, 45% não são leitores.
de outro senhor que, finalmente, vê a mensagem colada
A intenção foi expandir o projeto a bairros e comunida-
na primeira página. Ele segura o exemplar alguns poucos
des também carentes, e assim está acontecendo. Quero
segundos e o entrega a uma senhora, que rapidamente
mudar o cenário da falta de leitura e integrar os livros
entra em um dos ônibus. Já o artesão Eduardo de Lima
a quem não está nas oficinas e também não tem afini-
Pereira ficou intrigado quando viu o livro em um dos ban-
dade/interesse com o hip-hop. O intuito é levar os livros
cos, folheou, olhou para os lados e então começou a ler
a quem não tem acesso, não conhece ou não frequenta
um pouco. “No início eu pensei que se tratava de uma
as bibliotecas por medo, vergonha, ignorância e pessoas
brincadeira, uma pegadinha e depois gostei da ideia de
que tampouco podem comprar exemplares.
ganhar um livro. Vou ler e passar adiante”, comenta.
Enquanto arrecado os livros, lembro de Carolina Maria
Ao lado dele, a vendedora Ana Paula Rodrigues já tinha
de Jesus, que viveu a máxima pobreza no Brasil, sendo
notado o livro, mas, por vergonha, não pegou. Quando viu
obrigada a revirar os livros para comer, mas que nunca
a distribuição, foi até as jovens que estavam distribuindo
deixou de pegar, junto com os restos de comida, miga-
e pediu um exemplar. “Vou embora feliz porque ganhei
lhas de livros e revistas para ler em casa e mesmo sem
uma edição. Gostei do projeto, incentiva quem não tem
dominar a gramática escreveu um relato singular sobre
acesso aos livros”, declara. Já o operador de hidroelé-
a favela e fez história no país e fora dele por conta disso.
trica Paulo César Alexandre, ao receber das mãos da
jornalista um livro, perguntou se poderia escolher um Penso que, se as donas de casa que são viciadas em
exemplar e prometeu: “Tenho vários livros empoeirados televisão, substituíssem algumas horas do dia pela lei-
na estante de casa. Vou doá-los ao projeto e, como você tura poderiam mudar a própria realidade periférica que
tem o dom de conversar com as pessoas e entregar os as circunda. Penso ainda que ganhar um livro assim,
livros, vou ficar feliz com a ação.” sem mais nem menos, como um ato de gentileza em um
dia chuvoso, em um horário qualquer, pode transformar
Enquanto ele escolhia um volume, outras pessoas, entre
o dia das pessoas apenas pela atitude. Se for atrelada
elas professoras, mães ou apenas passantes se aglome-
ao conteúdo e à forma de repassar estas histórias pode
ram e, em pouco menos de três minutos, os livros foram
sim ser um incentivo.
distribuídos. Teve gente que quis mais de um exemplar.
Outros saíram felizes, já lendo as primeiras páginas. Logo na primeira vez distribuí mais de cem exemplares
e continuei arrecadando mais. Quero que as pessoas
Passar os volumes literários apenas aos moradores da
façam os livros circularem, tirem a poeira e os ácaros da
cidade vai ao encontro da real proposta, que é dar conti-
estante e coloquem o saber nas praças e comunidades.
nuidade ao processo de ler e transmitir o conhecimento
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Não acho difícil fazer isso. Acho que falta vontade e incen- ganham livros toda semana e que ela gostaria muito que
tivo, portanto, a minha parte está sendo feita. E o mais a mãe dela tivesse dinheiro para comprar histórias colo-
bacana é o prazer em poder servir, em poder distribuir os ridas para ela. Na mão, não havia nenhum livro infantil
livros, em ver a expressão de surpresa nas crianças. que eu pudesse dar a ela. Limitei-me a dizer que um dia
ela teria os livros que tanto quer.
Em pouco tempo o projeto ganhou as ruas centrais, onde
um grande número de pessoas circula diariamente. Não imagino o que ela pensou em nos ver entregando os
As abordagens se inverteram e durante a distribuição, livros à outras pessoas e não à ela, uma vez que tínha-
sempre que alguém nos pede esmolas, oferecemos um mos uma quantia razoável naquele dia.
livro, que raramente são recusados. Os bairros também
Quando eu cheguei em casa, olhei para a minha estante
já fazem parte do itinerário por onde as histórias circu-
e vi os meus primeiros livros de história e pensei em
lam e a intenção é continuar arrecadando cada vez mais
levar para ela, mas como ela queria um colorido, aque-
livros e fortalecendo a corrente de conhecimento.
les desbotados já não serviriam mais. No dia, estava
Sempre peço que alguém vá comigo, seja a minha amiga dura, mas prometi a mim mesma que no pagamento,
Juliana, algum artista local para realizar intervenções passaria na livraria e compraria uma história bacana
urbanas, como entregar o livro a alguém recitando uma para aquela garotinha.
poesia ou pintando poesias com giz na rua e nas praças,
Quando fui procurar, encontrei uma educativa, sobre
para que sejam apagadas apenas com a chuva. No rosto
medos. Como o preço era acessível, resolvi levar. Na
de quem recebe as histórias pode se notar a expressão
dúvida sobre como entregar, decidi que a surpresa dela
de surpresa, afinal, por muito tempo, os livros foram
e o mistério seriam mais interessantes. Embalei o livro
considerados produtos das elites.
em um plástico transparente e deixei na porta da casa
Assim, a ideia de que livro na estante só tem vida quando dela. Posicionei-me do outro lado da rua, onde há uma
manuseado e lido por alguém é colocada em prática. O pracinha com bancos e passei a ler o meu livro, ansiosa
fato mais marcante foi de uma garotinha, de não mais do pela reação dela quando encontrasse a história. Algum
que oito anos, em um dos bairros da região onde moro. tempo depois, ela saiu acompanhando a mãe. Por um
Ao nos ver com os livros nas mãos, começou a nos acom- minuto, pensei que ela não tivesse notado o embrulho,
panhar, discretamente, e, depois de algum tempo, nos mas, discretamente, exatamente como quando chorou
observando enquanto entregávamos os livros aos pas- por não ter histórias coloridas, ela se abaixou, pegou o
santes e à outras crianças, começou a chorar baixinho, livro e ficou uns bons segundos olhando o presente, até
um pouco distante. que se sentou na beira da porta e começou a admirá-lo.
Intrigada, me aproximei e perguntei o que estava acon- Não tenho como saber o que ela pensou quando encon-
tecendo. Com vergonha, ela tentou enxugar os olhos trou o livro, nem se ela imagina quem pode ter dado à
e relutou até começar a falar, que na casa onde a mãe ela, mas tenho certeza que consegui fazer mais uma
dela trabalha como doméstica, os dois filhos da patroa criança gostar de ler e ter amor pelos livros com este
pequeno presente.
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Estatística 443

fizeram questão de ajudar, de tentar arrecadar e isso é


Palavra cruzada: fundamental para o sucesso do Passa Livros. Qualquer
ajuda é essencial.

literatura e Assim, uma das minhas patroas – Sônia – se dispôs a


nos ajudar e, como recebeu um número grande de pala-

conhecimento vras cruzadas de uma editora, para distribuir em um pro-


jeto chamado Mantiqueira na Escola, me disponibilizou
mais de cem volumes.
No ato eu já soube onde entregaria. Meu bairro é, e sem-
pre foi, muito pobre. Entretanto, em uma das partes,
construída mais recentemente, a população sofre com
Conseguir apoio para ações como essas nem sempre
as enchentes, com a falta de assistência, com a falta
é fácil. Aproveitei os contatos de editoras que tinha
de asfalto, de iluminação pública decente, de hospital,
quando trabalhava na livraria e fiz pedidos de doações.
de creche e de escolas. Falta tudo, só não falta vontade
Não importa o tipo dos livros. Importa distribuir o saber.
para mudança e, pensando na preocupação de todas
Até hoje não recebi nenhuma resposta e é impossível
as mães, que fazem de tudo para dar o que comer aos
que eu compre os livros para distribuir. Peço a toda e
filhos e ainda mantê-los longe das drogas e da crimi-
qualquer pessoa que conheço. Alguns que veem o pro-
nalidade, o presidente da Sociedade Amigos de Bairro
jeto se interessam e também doam livros. Uma banca
(SAB) do local, Élio Ricoy, conseguiu uma sede e, duas
de troca, implantada na biblioteca central da cidade,
vezes por semana, oferece aulas de capoeira para as
também facilita a troca de livros técnicos por literatura.
crianças. Ao todo, são 110 que participam das rodas e,
Eles disponibilizam os livros repetidos do acervo para
ao som das palmas, ritmadas pelo berimbau, as rodas
troca, assim, todos ganham. Faço várias por semana.
com crianças de todas as idades são formadas e já ínti-
Nem sempre é fácil encontrar os exemplares ou mesmo
mas do esporte criado no Brasil, elas se dedicam aos
agradar. As crianças são as que ficam mais encanta-
movimentos e imprimem cultura popular no quilombo
das e literatura infanto-juvenil é sempre complicada de
moderno da periferia poços-caldense.
encontrarmos. Infantil, então, é raríssimo. Mas nenhuma
dificuldade é forte o suficiente para me tirar a vontade Além das crianças, são 110 mães despreocupadas com
de observar a alegria das pessoas que vivem nas perife- o que os filhos podem estar fazendo ou se estão na rua.
rias e se sentem “importantes” ao serem lembradas e ao No local para fazer uma reportagem – pois continuo
ganhar algo, sem precisar dar nada em troca. encantada pelos que estão às margens e, mesmo assim,
são marcantes – percebi que gostaria demais de ajudar
Em poucos meses, mais de dois mil exemplares já foram
e oferecer algo também àquelas crianças que, simpáti-
distribuídos pela cidade em vários locais diferentes. Nas
cas, sorriam enquanto eu batia fotos e me rodeavam.
oficinas da Cultura Marginal várias pessoas também

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444 Traficando conhecimento Estatística 445

O sr. Élio está, a maneira dele, promovendo o resgate des- Mas gostoso mesmo é ver o empenho de outras pessoas,
tas crianças. Sugeri oficinas do Cultura Marginal a elas, de quem já passou pelas oficinas, de quem já conheceu o
mas a falta de horários na sede da SAB é um fator que universo do Cultura Marginal, que já esteve ligado ao hip-
complica, entretanto, não desisti. Da forma que pude, hop por meio de algum elemento, enfim, todos que se dis-
separei as palavras cruzadas e, no mesmo dia em que puseram a ajudar a captar livros, a entregar e a recitar e
elas ganharam uniformes doados por uma ONG para pra- fazer poesias e textos.
ticar a capoeira, levei as revistinhas.
Extasiadas por ganhar duas coisas em um mesmo dia,
elas correm de um lado para o outro e, eufóricas, per-
guntam sobre as palavras cruzadas, pegam, pedem aos
irmãos e mostram aos pais, loucas para começar a fazer.
Mais uma vez, uma garotinha, de não mais que 8 anos,
chama a minha atenção. Ela me pergunta como fazer
as palavras cruzadas e dispara: “Você pode me dar um
gibi?”. Como eu responderia que não? Claro que posso.
“Eu quero um da Turma da Mônica.”
Não disse nada, mas já comecei a fazer as contas do
quanto vou precisar ter e desembolsar para levar gibis a
eles. Perguntei se ela gostava de ler e a resposta foi afir-
mativa. Já separei os livros infantis também.
Apesar do Passa Livros ser uma biblioteca itinerante e
circulante com mais impacto do que um simples local
para empréstimos de livro, com as chuvas de verão, já
estava ficando com muitos exemplares doados acu-
mulados, sem ter para onde levar os livros que já esta-
vam empoeirando em sacolas e caixas. Por isso, resolvi
doá-los para a sede da SAB do bairro. Não são tantos,
cerca de 50, mas servem para empréstimos sem prazo,
como o Passa Livros, e ficam dispostos em uma mesinha
existente no local. Quem quiser ler passa por lá, pega um
livro, lê e, quando terminar, coloca no mesmo local. Penso
que é a forma mais democrática de disponibilizar os volu-
mes quando não é possível entregá-los de mão em mão.
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Estatística 449

conta que, ao fazer a música, aprendeu que a doença


Rap educativo deve ser liquidada. “Temos que observar as outras pes-
soas e também compartilhar o conhecimento”, destaca.
De forma tão positiva a professora conseguiu levar para
a periferia algo da periferia e tratar de um tema tão
importante, que, em 2009, tirou a vida de pelo menos
quatro poços-caldenses. Na visita, perguntei à profes-
sora se dos alunos apenas o Malcon gostava de rap, e
fomos interrompidas por outro professor que disse:
“Não existe não gostar de rap na periferia”. Fiquei feliz
“Morrem no Brasil muitos inocentes e os médicos não por ouvir isso de um educador e ver que há gente aberta
dão nada por essa gente. Gripe Influenza, precisamos em admitir que a cidade com o melhor Índice de Desen-
liquidar, antes que seja tarde demais.” É com esta parte volvimento Humano (IDH) do estado tem crianças que
de uma música ao estilo do rap que o aluno Malcon Mar- precisam de alguém que fale a língua delas.
tins Barbosa, 11 anos, divulga um trabalho de conscien- Para apoiar a atitude rara por parte dos educadores,
tização sobre a gripe Influenza A (H1N1) desenvolvido doei os últimos exemplares do “Suburbano” e me dis-
pela escola municipal Pedro Afonso Junqueira no bairro pus a praticar oficinas com aquelas turmas, mesmo que
Jardim Kennedy, na Zona Sul da cidade também. breves e em horário de aulas. Por ser fim de ano, ainda
O nome de guerreiro, o garoto já tem e, mesmo com vergo- aguardo uma resposta e sonho em poder acrescentar
nhar de empunhar o microfone e mandar a rima feita por mais a vida destas crianças que já, tão cedo, cantam e
ele, veste-se de coragem e vai, ao som do violão tocado fazem o papel de conscientização.
por outro garoto. Todos os presentes ficam surpresos ao
vê-lo cantar um rap e a professora logo explica que tem
trabalhado as letras das músicas em sala de aula porque
são, justamente, ligadas ao estilo de vida que as crianças
levam. “Ele não fala em outra coisa senão no rap, então,
ninguém melhor para representar a música.”
O trabalho faz parte de atividades lúdicas promovi-
das pela escola para a conscientização e a dissemina-
ção da informação sobre a gripe suína. A letra de rap
cantada pelo garoto Malcon foi escrita a partir de uma
aula de diversidade textual. Satisfeito por ter cantado
e demonstrado um pouco do talento para a escola, ele

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450 Traficando conhecimento Estatística 451
Estatística 453

— Eu gosto de escrever, apesar de não gostar de ler. —


Fronteiras diz Danilo.
— Como? É meio esquisito, mas me mande um texto. —

quebradas respondo.
— Tenho vergonha.
— Não tenha, enfrente, me mande, é a sua expressão.

Dias depois...
— Posso enviar o texto?
— Claro!
— Então vou digitar.
— Ok.
Por mais que um estado esteja separado do outro por
fronteiras geográficas, regionais, culturais, a internet, a Horas depois...
comunicação e o conhecimento provam que elas podem
— Aí está meu primeiro texto.
ser quebradas. — Tudo bem, vou ler e depois comento.
“Pensar, refletir, escrever, sentir e digitar.
Um texto sobre a saudade do pai, já falecido, trazia as
Escrevo o que sinto, sinto o que escrevo e depois, é digitar.
expressões dele. Ainda um pouco imaturo no que se refere
Reflito para entrar em uma concordância e aí as palavras
vêm em abundância.” à escrita, mas com vontade de melhorar. Na semana
seguinte, a mesma história e um novo texto, falando jus-
Este é um trecho de um dos primeiros textos escritos tamente sobre o novo do ano novo.
pelo baiano Danilo Henrique. Aos 21 anos, por um chat
onde nos conhecemos, sacamos logo de cara nossa afi- Alguns dias depois:
nidade com o hip-hop e a minha paixão pela Bahia, mas — Comprei um livro – revela Danilo.
nos estranhamos no que é literatura. Já disparei a con- — Como? Por quê? Você nem gosta de ler. — provoco.
tar do Cultura Marginal e do Passa Livros e ele revelou — Vou tentar. De tanto te ver lendo, falando e escrevendo
que não gostava de ler. sobre literatura, vou arriscar.

“Não vamos ter assunto”, pensei. E, diariamente, pela Aplausos internos e singulares. Mesmo há quase dois
internet ele me perguntava o que eu estava lendo, o que mil quilômetros de distância, por meio de um chat e de
estava escrevendo, começou a frequentar os blogs, des- uma tela de computador eu tinha conseguido incentivar
cobriu que um rapper que ele admira – Gog – era um dos a leitura. Batizei a iniciativa, para mim mesma, como
autores do “Suburbano” e passou a tomar gosto pelo Literatura em Incentivo Amplo (Leia). Foi apenas uma
tema, mesmo que de uma forma lenta. ideia de usar a internet para isso, mas a longo prazo.
Não fiz nada ainda, mas sei que ele comprou um livro de
autoajuda que leu inteiro.

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Duas semanas depois, comprou mais dois livros e presen-


teou uma tia com um. Não contente, saiu de rolé e foi pas-
sear em uma livraria. Comprou o “Capão Pecado”, do Fer-
réz, começou a ler e confessou: estou amando.
Criou um blog, mudou o nome e, agora, atua no projeto
próprio chamado de Literatude. Com posts quase diá-
rios, escreve textos, crônicas e já arriscou um conto.
Melhorou a escrita, o vocabulário e a gramática. Visita
todos os dias blogs de escritores e agitadores culturais
como Sérgio Vaz, Alessandro Buzo, Sacolinha, Michel da
Silva, Gog, Nelson Maca, de Salvador, e comenta sempre
no meu. É seguidor de muitos outros e afirma: não quero
desistir nunca da leitura. Quero trabalhar com hip-hop e
com conhecimento e vou conseguir.
Segue na busca por um emprego desde que se demitiu
de uma unidade do MC Donald’s e pretende ler todos os
livros que conseguir neste ano. E no outro também. Não
quer parar de ler nunca mais. “Vou ter meu próprio sarau
no Farol da Barra.”
Estatística 457

Todos os alunos têm uma coisa em comum: vivem em


Profissão: periferias e estão cursando o ensino médio, ou algum
curso profissionalizante, depois de adultos, afinal, o

transmissora de programa só aceita jovens com mais de 18 anos. Entre-


tanto, nenhum tem mais de 29 anos, afinal, é a idade
limite do ProJovem, seja Urbano ou Trabalhador.
conhecimento Diante deste ponto comum, outros vão surgindo. Também
vim da periferia e revelo isso logo no início, quando conto
ter uma história de vida semelhante a de todos. Tenho
também uma idade compatível com a deles — 24 anos.
São inúmeros jovens que, ansiosos diante do que está
por vir, se aglomeram entre cadeiras de madeira colo- Na sequência, o hip-hop invade o espaço através de um
cadas em volta das mesas. É sempre excitante sair da telão. Com um logotipo colorido e cheio de desenhos
rotina escolar — professor fala, aluno escuta e anota — que lembram a arte urbana do grafite, todos os olhares,
e participar de uma palestra, mesmo que o tema ainda até mesmo os mais desinteressados e cansados, têm
não tenha sido revelado. a atenção captada. Devagar, e ainda com um pouco de
receio, conto como surgiu o convite para falar a eles e
Devagar, alguns abordam o palestrante e perguntam:
revelo ser uma das primeiras experiências em falar para
“Oi, você que vai falar?”, “Sobre o que será a palestra?”,
tanta gente, afinal, são quase 100 estudantes.
e comentam entre si sobre conhecer ou não o assunto
ou o impacto que o tema tem sobre a vida de cada um. Neste momento, os alunos se acomodam melhor e alguns
É a primeira vez que acontece uma palestra mesmo. até comentam entre si já terem me visto ou me conhe-
Antes eram oficinas, coisas simples, informais. Ou even- cerem e ouço alguns falando: “É a Jéssica Balbino.” Fei-
tos. Tudo era festa. O programa é federal e exige pro- tas as apresentações, um pouco do hip-hop é expli-
fissionalismo. Exige novidade. Exige mais: didática para cado, através de slides e imagens comuns ao dia a dia
lidar com adultos. Todos, invariavelmente, têm mais de dos estudantes. Logo na contextualização, um grafite
18 anos. Falar para crianças e adolescentes é difícil. é exibido e todos o reconhecem, por ter sido feito no
Para adultos, ainda mais. muro de uma escola da região onde estudam ou moram,
na Zona Sul da cidade, considerada a mais periférica e
Em alguns minutos, todos estão acomodados aguar-
carente do município.
dando que a palestra seja iniciada e a observação é
sempre a mesma. Em alguns, o olhar é de curiosidade Diante do reconhecimento, mesmo aqueles alunos que
total, noutros, um misto de cansaço — afinal, trabalha- não tinham tido contato anterior com a cultura das
ram o dia todo — e em outros, de repente, até mesmo ruas é remetido a algo cotidiano e, então, a afinidade
um pouco de desinteresse, não apenas pelo debate que acontece. Mesmo tímidos, alguns levantam a mão e
vai se seguir, mas pela vida. fazem algumas perguntas e diante da minha narração,

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458 Traficando conhecimento Estatística 459

também nascida no local e habitante da Zona Sul, manter viva a cultura hip-hop e na sequência, desmis-
palavras empregadas por mim também fazem parte do tifico, esclarecendo que ela não tem nada a ver com a
vocabulário que todos utilizam. bandidagem e que o Afrika Bambaataa, quando resolveu
criar o movimento, o fez na esperança que ele gerasse
Com todos ambientalizados, uma pergunta é jogada no
“paz, amor, diversão e união”.
ar: “De que forma as culturas populares podem bene-
ficiar quem vive nas comunidades?” e a interrogação é Diante desta informação, mais da metade dos alunos se
visível na fisionomia de todos os alunos. Acostumados sensibiliza e consigo ver, mesmo incutido na face deles,
a se sentirem inferiores, ninguém encontra a resposta as expressões de “ooohhh”, se questionando, então, o
rapidamente e, conforme coloca o professor de comuni- porquê da cultura hip-hop, ser, até então, vista como
cação de uma turma, Guilherme Dore, por serem pobres algo ruim. Entretanto, consigo perceber também que
e viverem em periferias, todos têm mania de se auto- muitos não acreditam no que digo e têm até uma certa
desprezar. “Eles não acreditam neles mesmos, não têm resistência, mas faz parte de qualquer informação nova.
confiança no próprio potencial. Muitos não se acham
Conto, também, que o hip-hop não é música estrangeira,
capazes. Quando o programa começou, a maioria tinha
como a maioria acredita e sim, movimento e cultura.
vergonha de falar o próprio nome”, conta.
Esclareço que o rap é que é o som ouvido e cantado den-
Entretanto, ele coloca, também, que, diante de uma tro da cultura, exaltando os problemas sociais e as his-
pessoa que tem a mesma linguagem dos estudantes, as tórias de cada um pelas batidas ritmadas e entrecorta-
informações fluem com mais facilidade. “É bom porque das pelos DJs, um dos outros elementos da cultura.
você é do bairro deles e eles gostam de se reconhecerem
Alguns ficam entusiasmados com as informações, prin-
assim. Serviu para provar a eles que construir as coisas
cipalmente sobre os parâmetros iniciais do hip-hop, que
na vida só depende deles”, enfatiza.
são mostrados diferentes daquilo que sempre acredita-
Dando sentido às observações do professor, eu, que ram que fossem. Ouço alguns comentários entre eles, se
também sou jornalista e escritora, continuo, mostrando perguntando como podem, de repente, conhecer mais
aos alunos que, mesmo diante destas posições, perma- sobre isso e já me adianto, contando que posso mandar
neço morando na periferia, andando de ônibus e a pé o texto do meu primeiro livro “Hip-Hop – A Cultura Margi-
todos os dias para chegar ao trabalho, comendo de mar- nal” por e-mail e percebo vários interessados.
mita e ganhando pouco, mas, nem por isso, desisto de
Na sequência, sempre que conto alguma coisa sobre o
sonhar, escrever e batalhar em causas sociais, como a
hip-hop, a história e a cultura popular, tento manter a pro-
transformação por meio das culturas sociais e principal-
ximidade da realidade e sempre citar algum fato aconte-
mente do hip-hop.
cido comigo. Procuro lembrar que, durante as pesquisas
Conto como tento me beneficiar por meio da cultura para fazer o livro, praticamente abdiquei da minha vida
marginal e como palestras deste tipo me fazem bem, em nome da causa e cito minha rotina, que era levantar às
tanto por poder compartilhar conhecimento como para 7h, ir para o trabalho, fazer algumas coisas relacionadas,
460 Traficando conhecimento Estatística 461

almoçar correndo, aula de inglês durante o horário de Quando começamos a conversar, ele me contou, com
almoço, voltar para o trabalho, escrever a mão porque todo receio do mundo, que gostava de escrever e que,
não tinha mais energia onde eu trabalhava — em razão de repente, escreveria um texto para me mandar. Levou
da falência do local —, sair correndo, pegar a van, viajar quase duas semanas para que eu recebesse um texto
40 quilômetros, assistir aula, voltar para Poços, pegar pequeno, simples, mas que, mesmo com erros grama-
um ônibus no centro da cidade e ainda andar um quilô- ticais, tão comuns na literatura marginal, conseguiu
metro para chegar em casa. Aí sim, ler o que faltava e expressar tudo aquilo que ele sentia no momento: sau-
escrever algumas coisas do livro, para compor o traba- dades do pai que já se fora.
lho apresentado a eles.
Ainda me refazendo da emoção de ler um texto dele, que
Noto que eles se sentem próximos da vivência, até por- nunca tinha deixado ninguém ver os textos, ele me con-
que 90% trabalha durante o dia, mal almoça, também tou que tinha saído e comprado um livro, hábito que, até
anda longas distâncias e, enfim, podem estudar e veem então, ele desprezava e que já estava lendo. Emocionada,
no programa a chance de um diploma do Ensino Funda- contei esta história aos alunos e acredito que, por toda
mental, além de uma melhor oportunidade de trabalho. simplicidade dela, consegui sensibilizá-los também. Fui
Sei que muitos estão ali unicamente para isso, enquanto interrompida pela professora, que me contou que alguns
outros querem aproveitar cada minuto e reverter o já gostam de escrever e que de repente, histórias como
tempo perdido, tentando aprender sobre tudo em ape- estas são um incentivo para que eles comecem a produ-
nas dezoito meses, que é o tempo total do curso. zir os próprios textos. Neste momento, outros me per-
guntam como editar um livro e quais as dicas para escre-
Nesse misto, eles se perdem, entretidos nas imagens do
ver melhor. Sugiro que sempre leiam, cada vez mais.
datashow e no mundo do hip-hop e alguns, menos tími-
dos, iniciam algumas perguntas. Querem saber o porquê Falo, ainda, dos livros produzidos nas periferias e
de eu me interessar por hip-hop e dão risada quando dos assuntos abordados, que sempre são do interesse
digo que eu nunca soube cantar, dançar, grafitar e que deles e têm temas relevantes aos jovens da periferia,
nem me arrisquei a arranhar os discos, por isso me com crônicas cotidianas. Cito, ainda, algo que li há tem-
dedico ao 5° elemento, que é o conhecimento. pos em blogs pela internet, dizendo que os novos livros
são os raps escritos e encadernados. Acho esta analogia
Neste ponto, ingresso no assunto da literatura peri-
bacana e compartilho. Alguns alunos, que antes da pales-
férica e da ascensão que ela tem no cenário nacional,
tra estavam ouvindo rap, se mexem ansiosos na cadeira,
principalmente nos grandes centros e capitais e noto
talvez pensando em transformar os rascunhos em livros.
olhos mais brilhantes quando conto experiências pes-
Conto, ainda, que existe no Brasil uma Casa do Hip-Hop,
soais ligadas ao assunto, como o garoto de 21 anos que
em defesa das produções literárias e acadêmicas sobre o
vive em Salvador e que conheci, por acaso, pela internet.
tema e também uma organização universal Zulu Nation,
Ele tem o mesmo problema dos alunos. A mania de se
que cuida do hip-hop em todo o mundo, preservando para
achar inferior por ser pobre e morador da periferia. Rela-
que a cultura seja disseminada de forma correta.
tei que, em minhas conversas com ele, sempre via MSN,
consegui despertar o interesse dele pela escrita.
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464 Traficando conhecimento Estatística 465

Divido com estes alunos histórias de escritores brasilei- No Carnaval de 2007, quinze dias após nossa colação
ros de que eles nunca ouviram falar, mas que, ao con- de grau, ela morreu de parada cardíaca após inalar gás
trário dos clássicos, despertam um interesse maior para propano butano que vem naquelas buzinas a gás. Fez
que eles leiam, visto que trazem uma linguagem comum, isso para ter “barato” como os provados pelo lança per-
que eles podem acompanhar e histórias que eles se fume e, de uma vez, faleceu, abandonando os sonhos,
identificam, como a de “Graduado em Marginalidade”, o legado do livro e muitas lembranças incompletas de
do Sacolinha, os textos reunidos de Ferréz, e, ainda, quem poderia caminhar ao meu lado e estar, naquele
“Noite Adentro”, de Robson Canto, entre tantas outras momento, palestrando. A este ponto, me encaminho
coletâneas dos autores que despontam no cenário lite- para o fim da palestra, deixando aberto o espaço para
rário nacional e estão ganhando mais público a cada dia. as perguntas e concluindo como uma cultura popular
mudou a minha vida, a das pessoas à minha volta e que,
Neste espaço, comento, também, a necessidade de
mesmo sem recursos, consigo praticar ações benefi-
conhecer mais sobre a própria cultura, os antepassados
centes, como o projeto Passa Livros e, também, oficinas
e a história das coisas. Lembro aos alunos que isso deve
sobre hip-hop com crianças carentes.
acontecer não apenas com o hip-hop, mas com qualquer
que seja a cultura popular produzida na periferia, que Novamente, olhares mais atentos e curiosos, querendo
tem sempre uma história riquíssima, que merece ser saber como é meu trabalho social. Uma breve explica-
conhecida e divulgada. Percebo que todos ficam aten- ção, um slide com frases de pessoas de vários locais do
tos a isso, com exceção daqueles que já foram vencidos país e de várias atividades contextualizando o hip-hop e
pelo cansaço e que, nesta hora, se apoiam sobre livros o quão bom ele é para este ou aquele indivíduo e ainda
e mesas para cochilar enquanto falo. A postura não me para esta ou aquela coletividade.
incomoda, afinal, já fui estudante e, muitas vezes, extre-
Pronto. Gosto de encerrar exibindo no telão a mesma
mamente cansada, cochilei durante aulas, debates,
imagem com que comecei. Talvez seja pelas cores, tal-
palestras. Não há como recriminar.
vez porque foi um MC famoso – na comunidade e Bra-
Dentro disso, procuro sempre atrelar a minha experi- sil afora – que fez, com todo carinho, para o meu tra-
ência e fazer com que todos conheçam um pouco mais balho ou, talvez, porque represente o hip-hop tal como
sobre a minha vida e trajetória, então, separo um slide ele é, uma mescla de elementos que propõe somente
com uma foto minha, do Nino Brown na casa do hip-hop e coisas positivas. Tentando trabalhar neste positivismo,
de Anita Motta, a jornalista que escreveu o “Hip-Hop – A encerro e aguardo as perguntas, que são poucas e tími-
Cultura Marginal” comigo. Até os mais desatentos param das. Entendo o receio que todos têm de falar alto, levan-
e prestam atenção. Conto que ela nunca foi da perife- tar a mão e se dirigir a um palestrante. O medo de serem
ria e que o primeiro contato com o hip-hop foi durante ridicularizados supera o medo de permanecerem igno-
o processo de execução do livro e que, infelizmente, no rantes em alguma questão.
caso dela, a cultura não representou uma salvação como
ouvimos em todas as entrevistas.
466 Traficando conhecimento

Começo a juntar minhas coisas e devagar, um, dois, três.


Uma fila de estudantes é formada a minha volta e todos
querem trocar e-mails, contatos e me pedem meus dados
como blog, e-mail e telefone. Por questões financeiras,
não possuo cartão de visita. Distribuo, então, folhas com
meu nome e telefone. Todas extraídas de um bloquinho
comum aos jornalistas. Menos tímidos por estarem em
um grupo menor, eles me enchem de questões e comen-
tam o que falei na palestra. Alguns elogiam bastante.
Outros, tomam o rumo e partem em busca do lanche, dis-
tribuído pelo programa, gratuitamente aos estudantes.
Tento responder a todas as questões e dar atenção a
cada um. Um aluno, com roupas típicas aos adeptos da
cultura, se aproxima com um celular na mão. Nele toca
uma música do grupo Racionais MC’s, talvez o mais
popular da década de 1990, que popularizou o rap sem
se aliar à indústria e a grande mídia.
Alguns conhecidos de quebrada, eventos e também do
ônibus comentam comigo que já me conhecem e fazem
referências às fotos de pessoas conhecidas, também
exibidas nos slides enquanto eu falava. Despeço-me
com um único sentimento: paz. Consegui, apesar de
todas as adversidades, realizar uma palestra e o mais
bacana foi deixar a escola sabendo que eles estavam
comentando, cada um na sua roda, que querem ler mais
sobre literatura periférica.
Estatística 469

Morrendo de fome, pergunto se posso pegar um pão com


Palestrando: parte II mortadela e um guaraná, distribuídos aos alunos pelo
curso. Posso. Enquanto como, observo as mães, que,
embalando os bebês, tentam não perder nada da pales-
tra que inicio, descontraidamente, por terem pouco mais
de 10 pessoas na classe.
Entre um choro e outro das crianças, noto que alguns
alunos se incomodam por terem a atenção desviada,
mas, como sou apaixonada por crianças, vejo logo que
para elas, não é fácil ficar até depois das 22h acordadas,
Entre mamadeiras, fraldas e choro de crianças. Assim em um ambiente que não é a casa delas e, principal-
foi a minha segunda experiência com as palestras sobre mente, em um dia frio e chuvoso como aquela segunda-
hip-hop. feira. As mães embalam os bebês e tentam acompa-
nhar as aulas, mantendo a presença para garantir a
Segunda-feira, 20h. A chuva não para e já cai água sobre bolsa mensal de R$ 100, oferecida pelo programa.
a cidade há dois dias seguidos e ininterruptos. Mesmo
assim, cerca de 90% dos alunos que cursam Comunica- Conforme explica Andreza, os alunos não podem ter
ção Social e Marketing vão à aula. A presença garante mais de duas faltas por mês e, caso isso aconteça, a
a bolsa de R$ 100 que eles recebem mensalmente por bolsa é cancelada. “Não é só por isso que frequento as
fazerem parte do programa federal, o ProJovem Urbano. aulas, mas porque o curso é superimportante para mim.
Entre esses estudantes estão duas mães, que, pela Muitas pessoas me aconselharam a desistir por conta
fisionomia, não têm mais de 20 anos e ambas carregam da Giovana, dizendo para eu fazer quando ela crescesse,
no colo seus bebês, que, por problemas pessoais, não mas era uma oportunidade única que eu não poderia dei-
tem com quem deixar. xar passar”, conta. As histórias são muitas. Os exemplos
também. Andreza revela que conta nos dedos os dias
Há cinco meses, Giovana frequenta as aulas ao lado da em que a filha deixou de acompanhá-la, logo no início do
mãe e já cativou todos os demais colegas de classe e, curso e ficou com o pai. “Por algumas vezes, pedi que ele
até mesmo, os professores. Muitos chegam para brin- a olhasse para que eu fosse para a escola, mas, como
car com a criança, ajudam a segurar, levam e buscam ele é usuário de drogas, nossa relação acabou no dia que
mamadeira e, até, trocam fraldas. Da mesma forma, eu voltei para casa e ele tinha ido embora e levado várias
Antonela, de apenas 6 meses acompanha a mãe há um coisas da casa. Não tive mais notícias e, desde então, a
mês. Tâmara, mãe do bebê, conta que teve de optar por Giovana me acompanha”, relata. Já no caso de Tâmara, a
isso porque quem cuidava da criança – a avó – passou falta de creche onde deixar o bebê e de alguém que possa
por uma cirurgia e não podia mais cuidar. olhar tem sido uma espécie de empecilho. “Eu arrumei
um serviço e não pude assumir. Só em fevereiro que ela

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vai poder entrar na creche”, conta. Questionada sobre a “Em alguns momentos, os bebês choram, se mexem, gri-
maior dificuldade, ela diz que é a distância que percorre, tam, querem andar e isso pode desviar a atenção, então
diariamente, para estudar. Somente de ônibus ela per- prefiro sair da sala e voltar depois”, revela Andreza.
corre cerca de 10 quilômetros e ainda anda do terminal Por outro lado, levar os bebês para a aula tem algo de
de linhas urbanas até o colégio municipal – aproximada- positivo. O carinho que elas recebem de outros alu-
mente 1000 metros – a pé, com o bebê no colo. “É ruim nos. “A Giovana ganhou muitas fraldas e roupinhas e a
porque tenho que sair com ela na chuva, no frio, andar empresa do ProJovem nos dá toda a assistência. Como
a pé, carregar as coisas dela e as minhas, mas, mesmo eu tive problemas em casa com o pai dela, fui enca-
assim, compensa, porque estou estudando.” E assim ela minhada para o Centro de Referência em Assistência
segue, enquanto tenta anotar o que o professor fala e Social (Creas) e estudar não apenas me qualificou como
ao mesmo tempo amamentar a Antonela no seio. O pro- mudou minha vida pessoal. Fiquei com a autoestima ele-
fessor Guilherme Dore comenta que, inicialmente, não vada e tomei rumo. Foi a melhor coisa dos últimos anos.
soube como reagir a situação, entretanto, compreen- Foi tudo”, acrescenta. E, assim, segue a rotina destas
deu que aceitar as crianças na sala, após analisar caso a mães até o próximo dia 22, quando as aulas do curso de
caso, foi a única maneira de fazer com que as mães não Comunicação Social e Marketing são encerradas e elas
abandonassem o curso. “Para mim isso é o mais impor- recebem o diploma de conclusão e partem para o mer-
tante”, diz. Desafio. Assim pode ser definido o fato de cado de trabalho. Sempre acompanhadas pelos bebês,
participar de uma sala de aula onde os bebês também carregando-os no colo, assim como carregam os sonhos
se tornam alunos e carinhas vistas diariamente no local. de conquista profissional.
É difícil, tanto para as mães, como para as crianças e
A palestra segue e a participação dos alunos é de 100%,
para os educadores, que veem na realidade algo que, de
transformando o momento em um bate-papo, como eu
repente, possa comprometer o rendimento. Já os bebês,
havia previsto e desejado inicialmente. A cada tema,
por serem fofos, por chorarem fora de hora e por cabe-
manifestações e perguntas surgem, principalmente por
rem no colo e precisarem de tanta proteção materna,
dois estudantes, que conforme o professor me descre-
dividem a atenção das mães e dos alunos, mas, para o
veu anteriormente, gostam muito de escrever e têm pre-
professor, isto é algo que pode ser superado por meio da
tensões de criar livros.
criação de formas para deixar as aulas mais atrativas.
O mais bacana é observar as reações do professor que,
Como o professor coloca, a única coisa que ele não
por coincidência, foi o diagramador do meu livro para a
tolera são pessoas acomodadas e, de repente, a história
faculdade. Éramos amigos antes, quando viajávamos
das mães se torna um exemplo de vida. “Compreende-
juntos os 40 quilômetros diários para ir e vir da facul-
mos a situação e fazemos de tudo para que elas consi-
dade, enfrentando as mesmas dificuldades, já citadas.
gam acompanhar o restante da sala e, no futuro, este-
jam bem inseridas no mercado de trabalho”, ressalta. No meio da explanação de um assunto sobre o que pode-
As alunas-mães comentam que percebem muitas vezes mos mudar em nossa comunidade, ele me interrompe
que o professor perde a paciência, mas elas entendem. para dizer, de forma alegre e descontraída, que não aceita
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Estatística 475

gente acomodada e que se espelha em nossas histórias


— pobres, fizemos faculdade com muito sacrifício e,
mesmo assim, continuamos lutando. “Não aceito quem
não se interessa por nada. Não importa o que a pessoa
faça, seja faculdade, um curso de informática, de java-
nês, sei lá, desde que não fiquem parados”, dispara e,
assim, arranca sorrisos de toda a sala, inclusive dos meus
pais que me acompanham no momento.
Como um dos exemplos de superação, além de citar os
episódios da minha vida ligados ao hip-hop, pontuo o
desafio das mães em assistir aulas com os bebês no colo
e as mamadeiras ao redor. Como nenhuma experiência
é igual, este bate-papo foi inusitado. A cada imagem
mostrada no slide uma reação diferente e intensa podia
ser observada nos estudantes. Uma garota afirmou
já ter praticado dança de rua. Outro garoto quis saber
a diferença entre hip-hop e rap e recebeu a explicação
– detalhada – de como funciona toda a cultura. Mas o
mais empolgante é que todos, sem exceção, até os que
demonstravam mais cansaço nos olhos e no corpo, fica-
ram bastante atentos quando falei da literatura e inú-
meras dúvidas surgiram.
Como editar um livro? Qual a melhor forma de organi-
zar as ideias e escrever? Quanto tempo levei para pro-
duzir o meu? Como escolhi o tema? Entre tantas outras
questões, tentei responder com a maior relevância e
prosseguimos. Pausa para o espanto de todos quando
comentei sobre Anita Motta. Mais perguntas e uma sau-
dade imensa dentro do peito. Adoraria que ela estivesse
lá comigo, dividindo o trabalho, o momento, as lições de
vida e a leveza de alma.
Finalizo com a parte em que discorro sobre hip-hop,
minha vida periférica, meus trabalhos com o projeto
Passa Livros e com o incentivo à literatura. A pedido do
476 Traficando conhecimento Estatística 477

professor, preparei, também, um pequeno material sobre feliz da vida, acompanhada pelos meus pais e pelo meu
jornalismo. Ao término do assunto hip-hop, poderia falar amigo Luciano Santos – que fez as fotos da ocasião —,
sobre a profissão. Como o eixo do curso é Comunicação caminhei com os passos leves e a alma sem tocar o chão,
Social e a área de formação dele é Publicidade e Propa- satisfeita porque fiz a minha parte: contextualizei minha
ganda, me pediu uma passada rápida sobre jornalismo – vida e sonhei com as mãos, colocando em prática o que
como pautar, como desenvolver um tema e dicas de texto. é o hip-hop, em poucas e intensas horas permeadas de
“paz, amor, diversão e união”.
Surpreendi-me com o interesse dos alunos e, também,
comigo mesma. Tenho pouco tempo de formação e como
o jornalismo é uma profissão muito ampla, fiquei com
medo de não conseguir responder todos os questio-
namentos. Graças a Deus, tudo que foi perguntado eu
sabia como elucidar e foi muito bacana observar a curio-
sidade deles pela profissão, especialmente pelo jorna-
lismo impresso, já tão condenado por alguns teóricos.
Todos demonstraram interesse em como saber mais
sobre o ofício e o que me chamou mais atenção e valeu
pela palestra foi o entusiasmo de uma garota, a mesma
que já participou de um grupo de dança e reconheceu
boa parte das pessoas nas fotos dos slides. Anotando
tudo que eu falava e fazendo inúmeros questionamen-
tos, ela me perguntou como poderia fazer um estágio
não remunerado no jornal, sem receber nada, apenas
para acompanhar de perto o nosso trabalho.
Outro garoto, participativo, comentou que fizeram uma
visita ao jornal, mas que não viram a redação e quer
conhecer, visitar, saber também como é de perto. Ambos
escrevem textos para a escola e publicam em um blog
criado especialmente para divulgá-los. Ambos querem
se tornar escritores. Ambos me pediram dicas de livros e
prometeram me escrever.
Encerrei a palestra e apenas uma experiência se repe-
tiu. Vários deles me cercaram e pediram e-mail, deixa-
ram e-mail, querem o livro, querem vídeos, dicas e tro-
cas de ideias. Ainda com uma chuva forte, saí da sala,
Estatística 479

promovida pelos projetos. Ao meu lado, Suburbano tam-


Repercussom bém comenta sobre a influência do hip-hop e da litera-
tura na vida dele e um pouco das nossas desventuras. À
vontade e entre amigos, para falar sobre tudo que sem-
pre tivemos vontade, consumimos, facilmente, as três
horas de programa.
Mais uma vez tive a oportunidade de usar uma rádio, em
um horário em que todos estão conectados com a infor-
mação, falar um tanto sobre o projeto Cultura Marginal e
conseguir agregar mais pessoas, que é o objetivo. Tam-
A repercussão do som no ar, para toda a cidade, por meio bém me ocorreu algo que pensei na tarde de encontro
de uma rádio comunitária montada em um quartinho, nos com o escritor: me encontrei comigo mesma e com a
fundos de uma casa, no alto de um morro, na Zona Leste! minha essência.
Assim, todas as tardes de sábado, das 18h às 21h, o rapper
Leopac e o DJ Mancha se reúnem para apresentar um pro-
grama cheio de informação, música black e hip-hop.
Existente há apenas quatro meses, o programa é sucesso
entre as periferias e enquanto se arrumam para sair,
muitos adeptos da cultura se deliciam com os ritmos de
Gerson King Combo, Tim Maia e Seu Jorge. Em pequenos
quadros com músicas antigas, rap e raps românticos, DJ
Mancha tenta resgatar as origens dos bailes black e leva
muita informação.
Com toda a precariedade do local – faltam cadeiras,
estrutura, microfone e espaço – os jovens levam peque-
nos potes com comida e fazem uma vaquinha para com-
prar refrigerante. Correm por ruas tortuosas, sobem e
descem morros, vão e voltam até encontrarem as músi-
cas certas para aquele programa.
Sou convidada para falar um pouco da minha trajetó-
ria – que foi feita em grande parte com Leopac, desde
os primórdios, os eventos antigos e a época do TCC – e
explicar a influência da literatura marginal, da cultura

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Estatística 483

livros, textos, aprender dançar, curtir, tirar fotos. Enfim,


Querem nosso deu tudo certo. Não poderia ser diferente. Organizamos
com amor. Todos que estavam ali não ganharam um único

sangue centavo. E, por isso, foi sensacional.


Para contrastar, naquela mesma noite, tivemos um con-
tratempo com um dos organizadores de eventos que che-
gou na cidade há alguns anos e pensou que seria fácil
enganar o povo do hip-hop. Cheio de marra e pisando
no vazio, ele inventou um curso furado, uma agência de
modelos falsa, e um evento que, realmente, não poderia
Para dar sequência, rolou, também, a 2ª edição do Hip-Hop dar em nada. Ele não entendia nada de hip-hop, de cultura
em Foco. Como a primeira edição do evento foi um verda- marginal, de cultura negra. Levaram muitos dos nossos
deiro sucesso, o pessoal do grupo de dança Concepção parceiros no bico. Pediu serviços e não pagou. Prometeu
Urbana resolveu investir em uma segunda e, dentro da cachê e não cumpriu. Cancelou o evento bem antes de ele
programação do Viva Urca, apresentou quatro grupos de acontecer e, o melhor, assistiu e foi obrigado a aplaudir
rap e quatro grupos de dança, em apresentações marcan- de pé o nosso sucesso, a nossa vitória com o Hip-Hop em
tes, em uma noite completa de periferia, música, dança Foco. Como não chutamos cachorro morto, ele segue com
gospel e hip-hop. O destaque, desta vez, ficou por minha a vidinha dele. Não trabalhamos mais de graça nem para
conta, que fui, novamente, a mestre de cerimônias e pude patrão. Nosso objetivo é quebrar as amarras, jogar fora a
mostrar, novamente em forma de palestra, um pouco do opressão. Acuar nas cordas do destino os que tentam se
que é a Cultura Marginal, discorrer sobre a literatura e aproveitar do hip-hop, mesmo assim desistimos de regis-
ainda apresentar e anunciar os grupos. trar B.O. por estelionato e continuamos praticando a paz.
No mesmo palco, por quase três horas, falamos, can-
tamos, dançamos e arranhamos discos para quase 100
pessoas. Público nem tão grande, mas bastante partici-
pativo. Realizada, foi assim que me senti quando todos
os envolvidos neste evento, que também já se tornou um
projeto, subiram ao palco e puderam cantar e dançar
juntos, gritando no final:
Hip-hop! Hip-hop!
Vibrante!

Nosso novo quilombo. Em cima do palco do Teatro Muni-


cipal da cidade, onde todo e qualquer artista que se apre-
senta aqui também sobe. Foi maravilhoso. Todos queriam

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Estatística 487

Foi somente naquele dia, quando várias crianças me


Em dia com a leitura pediam livros, corriam pela praça “brincando” com a
arte, que percebi que, apesar de todas as dificuldades,
das fases difíceis, de perder as pessoas queridas, de
me desdobrar em trabalhos de mais de doze horas por
dia, fora o veneno do transporte, do descaso, da falta
de dinheiro para o básico, de sustentar um diploma, um
título, um bacharelado e, mesmo assim, ganhar uma mer-
reca que sequer paga o valor da mensalidade investida na
faculdade, enfim, saquei que, apesar de todos os reveses,
eu não quero desistir e somente trabalhar como meus
É bom demais fazer aquilo que gostamos. No meu caso, familiares, meus vizinhos e meus amigos. Não quero o
comunicar é quase uma bênção. Por ser tão apaixonada título de “escritora”, de “agitadora cultural” de “volun-
pelo ofício, fui convidada pelo SESC para participar do tária” e o de jornalista é consequência. Quero chegar em
evento SESC em Dia com a Leitura, por meio do Encontro casa feliz com o sorriso das crianças, com o dia das pes-
com o escritor. soas transformado por uma caixinha poética, por um
Falar da minha obra, como escrevi meu livro, como pes- livro ganhado assim, no meio do caos urbano, quero a
quisei as fontes, como tirei as fotos, escolhi o que deve- lembrança de idosos sorrindo por ver algo de bom sendo
ria entrar ou não, enfim, foi muito bom, mesmo com pou- feito neste mundo egoísta.
cos exemplares, falar com adultos, jovens, crianças, e Estava ali naquela tenda, vi o SESC promover a leitura,
explicar porque escolhi o hip-hop como estilo de vida. incentivar as crianças e pensei que não sei mais viver
Vários passantes e turistas foram atraídos pelo banner sem isso. Sem propagar as ações, sem escrever por
que coloquei na tenda destinada ao “meu espaço”. O meio do hip-hop.
bacana é que eu tinha uma tenda própria e um espaço Não queria apenas vender os livros. Queria algo bem mais
também. O banner é o que o Suburbano pintou na época do que isso. Queria exatamente o que estava aconte-
do TCC e que serviu, mais uma vez, literalmente, como cendo. Que as pessoas parassem para perguntar, não
pano de fundo para expor sobre nossa cultura. Per- unicamente a mim, mas se perguntar o porquê de elas
guntaram-me sobre o evento que estava acontecendo, também não fazerem mais. Muita gente, com muito
sobre a cidade e sobre meu trabalho. Contei um pouco mais condições, se fecha no próprio mundinho de whisky
dos venenos que havia passado para estar ali e ainda importado, prozac e carro do ano, cheirando pó em algum
dos que passo para tentar ser alguma coisa, para tentar iatezinho por aí e se esquece dos empregados, funcio-
construir a própria realidade, para tentar transformar e nários e demais habitantes do mundo. Eles têm sonhos e
para encontrar forças não sei bem onde para continuar na maior parte das vezes, são estas pessoas, com mais
empenhada em projetos sociais como o Cultura Marginal condições, que pisoteiam nos ideais de quem é mais
que engloba o Passa Livros também. pobre, marginalizado.

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Para ficar, realmente, em dia com a leitura, naquele Por isso, jurei a mim mesma que passaria o veneno que
momento, revi toda a trajetória. Todos os sonhos, quase fosse, mas não deixaria meus pais na mão. Fácil não é,
interrompidos, quando a Anita morreu e me deixou com e faço muita coisa errada, estou aprendendo, mas já
o livro, com uma bagagem bem pesada de coisas para adianto que não vou parar. Cada dia que passa tenho
realizar e sem tê-la por perto para me ajudar a conti- mais vontade de lutar, trabalhar e fazer em prol da cul-
nuar, a sonhar. Lembrei ainda de todas as vezes que tura do gueto na minha quebrada.
pensei em desistir, em largar tudo, porque era massa-
Na última semana participei da Confraria das Ideias
crada no emprego do Jornal de Poços que pagava mal,
para a V Feira do Livro e Festival Literário na cidade, a
tinha um assédio moral absurdo, sugava todas as ener-
mesma que indiquei o Sérgio Vaz para participar ao lado
gias e não deixava tempo, sequer, para eu dar um beijo
de Ferréz, e introduzir, ainda mais, a cultura marginal em
na minha mãe.
Poços. Como sugestões pedidas, penso que descentrali-
Sem falar das inúmeras críticas de quem sempre esteve à zar as ações e usar os artistas locais para irem aos bair-
volta, passando os mesmos perrengues e pagando de elite, ros convidar a população para conhecer a feira, partici-
dizendo que cultura marginal é coisa de bandido e que, par das oficinas e palestras, estar em meio aos livros é o
bom mesmo, é estar “nas paradas do sucesso”, o que, para que de melhor há para democratizar o evento.
mim, não é nada mais do que puxar saco de político falso.
Fico feliz por ser reconhecida pelo trabalho que faço
Engraçado que o evento me fez pensar e rever tudo isso. como jornalista e, também, na área cultural. No último
Rever gente que lutou e desistiu na primeira queda e resolvi que reportagem nenhuma vai mais me sugar
guerreiros que não abandonam o barco. Gente que faz como acontecia anteriormente. Vou dar o sangue por
muito e gente que carrega um título e nem sempre faz o todas elas e fazer o meu melhor, pois amo estar na rua
que precisa para evoluir. Saquei que queria, sim, o pro- e reportar, porém, tudo tem limite e o meu tempo diá-
gresso, que queria continuar e que desistir não seria rio para dedicação à cultura e literatura, escrita, blogs e
mais nem pensado. afins vai continuar sendo respeitado.
Minha mãe estava lá comigo, como sempre, acompa- Não vou deixar de escrever, de captar livros, de distribuir,
nhando e apoiando as ações. Nunca me deixou cair, assim de fazer o que gosto. Espero mudar a consciência das
como meu pai. E, talvez, justamente por isso, eu nunca pessoas e fazê-las ver que, por meio da arte e do conheci-
tenha desistido. Entretanto, não deixa de ser difícil. Lem- mento, podemos conquistar o que queremos. Ainda ando
brei que, em 2008, quando meu pai ficou doente e quase de ônibus e os quarenta minutos na ida e mais quarenta
morreu, o meu desespero em não ter de onde tirar grana minutos na volta são preenchidos com muita literatura
para levá-lo no médico particular, pagar um tratamento nacional. E as oficinas devem se tornar, em breve, mais
bom e vendo gente, que, como minha irmã — funcioná- organizadas e acontecer também em escolas, como ativi-
ria pública — nadava no dinheiro do Estado e não podia, dades extracurriculares, paralelas às aulas.
sequer, pagar a ele um tratamento ou um convênio médico.
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Ainda naquela tarde bem quente do final do ano pensei, “Paz, amor, diversão e união”, a ideologia criada por
revi minha vida e tive uma única certeza: o projeto Cul- África Bambaataa quando ele batizou o maior movi-
tura Marginal vai continuar existindo. Como diz Sérgio mento social dos últimos trinta anos – o hip-hop – e que
Vaz, “a arte que liberta não vem da mão que escraviza” permanece presente. Mesmo entre uma realidade que
e estamos juntos, pelas periferias brasileiras, lutando e em um primeiro momento consegue colocar fim a tantos
quebrando as correntes e amarradas invisíveis da socie- sonhos. O hip-hop, atrelado à arte e à literatura, conti-
dade. Um brinde ao saber, ao conhecimento, à arte, à nua se opondo às opressões raciais e sociais.
literatura e ao hip-hop, que salvou a minha vida e a de
Muitas vezes sinuosa e controversa, não deixa de ser
tantos outros parceiros Brasil afora. Um brinde àqueles
fascinante. Mesmo estando à margem da sociedade,
que sempre gostaram de ler e um maior ainda àqueles
não deixa de ser uma cultura. Uma cultura guerreira, que
que diziam “não gosto de ler” e, hoje, fazem questão de
caminha sobre pedras, mas, mesmo assim, não deixa de
gritar: “Literatura é minha vida.”
sonhar, fazer música, poesia, arte, dança e pintura.
Esta cultura carrega consigo a força do protesto e da
Em um caldeirão de misturas, a Cultura Marginal é um
indignação. Ela sobrevive, se opõe ao obscuro mundo da
marco de pessoas, filosofias e ideais. Posteriormente, o
criminalidade e enfrenta uma guerra diária de precon-
discurso poderá mudar, ser substituído por outro, mas
ceitos. Mas se rebela contra a exclusão e inclui, mesmo
a essência do movimento continuará marcando povos e
que ainda na marginalidade, toda uma nação, em um
fazendo história, afinal é o hip-hop, a cultura marginal.
misto de alegria e tristeza, a cultura hip-hop. Sobrevive,
marca e faz história para quem se sente maravilhado
por tudo que a Cultura Marginal proporciona.
As pessoas podem parar. Uma cultura, jamais. O hip-hop e
a literatura não param nunca. Vários livros, teses e repor-
tagens foram escritos sobre o assunto, e terminaram
sempre no ponto final da última página, mas as produ-
ções culturais do gueto continuam independente deles.
Desta vez não será diferente.
Enquanto tiver uma cultura marginal, sempre haverá o
que ser estudado e reportado. Qualquer tema acerca da
periferia nunca será esgotado. Até o momento o gueto
refletiu estilos de vida e comportamento, marcou gera-
ções, mudou radicalmente muitas pessoas, salvou mui-
tas vidas. Continua carregando consigo uma enorme
força de protesto, vontade de progresso.
P.90-91 Evento “Casa da Imprensa”
foto: Luciano Santos

Imagens: P.98-99 Ensaio de break na fonte do Leãozinho, patrimônio


histórico em Poços de Caldas

índice e créditos P.108


foto: Jéssica Balbino

Entre Livros no primeiro trabalho com carteira assinada,


na Livraria Alfarrábios
foto: Acervo pessoal

P.118-119 Banca examinadora do TCC “Hip-Hop – A Cultura Marginal”


foto: Acervo pessoal
P.19 Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto P.128-129 Show do MV Bill durante o Hutúz 2009 no Circo Voador
foto: Jéssica Balbino
P.23 Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto P.135 Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco
foto: Wagner Alves
P.27 Projeto LEIA
foto: Jéssica Balbino P.136-137 Grupo Silencia Crewativo no Morumbi (SP), durante as
pesquisas para o livro-reportagem
P.32-33 Polícia em combate ao tráfico no Morro São João foto: Acervo pessoal
foto: Márcio Pinto
P.140 Anita Motta entrevistando aluno da oficina de MC
P.39 Evento Hip-Hop Sul na Casa do Hip-Hop
foto: Acervo pessoal foto: Acervo pessoal

P.46-47 Suburbano e Lu Afri, do grupo UClanos P.141 Grafite no Vale do Anhangabaú


foto: Jéssica Balbino foto: Acervo pessoal

P.54-55 Back Spin Crew como jurados de batalhas de break P.143 Jéssica Balbino nas pick-ups do DJ Pow, na Zona Oeste de
em Pouso Alegre, sul de Minas São Paulo durante as pesquisas do livro
foto: Jéssica Balbino foto: Anita Motta

P.56-57 Apresentação de dança no Hip-Hop em Foco P.147 Garoto na Casa do Hip-Hop em Diadema (SP)
foto: Jéssica Balbino foto: Acervo pessoal

P.67 Valdair, b.boy P.152 Guilherme Dore e Anita Motta diagramando o


foto: Acervo pessoal livro-reportagem para o TCC
foto: Acervo pessoal
P.76 Jéssica Balbino lendo na livraria Alfarrábios
foto: Acervo pessoal P.155 Jéssica Balbino e Anita Motta, no banheiro da faculdade,
provando as roupas para apresentação do TCC
P.81 Jéssica Balbino na periferia de Poços de Caldas foto: Acervo pessoal
foto: Márcio Pinto
P.158-159 Banner grafitado por Suburbano para apresentação do TCC
P.85 Leopac no 2º Hip-Hop em Foco foto: Acervo pessoal
foto: Wagner Alves
P.160-161 Anita Motta e Jéssica Balbino durante apresentação
P.89 Jéssica Balbino na redação do Jornal Mantiqueira do trabalho
foto: Marcos Corrêa foto: Acervo pessoal
P.162-163 Grupo UClanos durante apresentação do TCC P.249 Participação no programa Mix 104 +
foto: Acervo pessoal foto: Acervo pessoal

P.166-167 Comemoração após o término de todas apresentações P.253 Periferia de Poços de Caldas
de TCCs em 2006 foto: Márcio Pinto
foto: Acervo pessoal
P.260 Grafite no Hip-Hop Em Foco e Leopac no Hip-Hop Em Foco
P.168-169 Professores da banca examinadora e alunas foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.263 Espetáculo de dança no Hip-Hop Em Foco
P.175 Gravação de programa sobre Hip-Hop nas aulas foto: Wagner Alves
de radiojornalismo
foto: Acervo pessoal P.268 Gueto de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto
P.179 Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto P.277 Jéssica Balbino no Jornal de Poços de Caldas em 2007
foto: Michele Miyake
P.185 Anita e Jéssica no encerramento das aulas no
4º ano de faculdade P.288 Jéssica Balbino durante entrevista para o livro-reportagem
foto: Acervo pessoal foto: Acervo pessoal

P.189 Grafite no centro de São Paulo P.299 Entrevista com King Nino Brown durante as pesquisas
foto: Acervo pessoal para o TCC
foto: Acervo pessoal
P.192-193 Grafite no centro de São Paulo exaltando a cultura de rua
foto: Elza Balbino P.317 Periferia de São Paulo, capital
foto: Jéssica Balbino
P.202-203 Lançamento do livro Suburbano Convicto —
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP) P.328 Palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008
foto: Acervo pessoal foto: Jéssica Balbino

P.209 Oficina de Hip-Hop e literatura na Zona Sul de P.332-333 Apresentação para o show do pai do Hip-Hop,
Poços de Caldas Afrika Bambaataa, na Virada Cultural
foto: Juliana Martins foto: Jéssica Balbino

P.214-215 Oficina de Hip-Hop em escolas públicas P.337 Grafite no palco do Hip-Hop na Virada Cultural em 2008
foto: Jéssica Balbino foto: Jéssica Balbino

P.221 Jéssica Balbino na biblioteca pública em Poços de Caldas P.344-345 Cultura Marginal: Pela Vida
foto: Marcos Corrêa foto: Acervo pessoal

P.226-227 Participação no programa de rádio Mix na rádio 104+ P.346-347 Apresentação de break no evento Cultura Marginal: Pela Vida
foto: Acervo pessoal foto: Acervo pessoal

P.234-235 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas P.352-353 B.girl e MC durante o evento Cultura Marginal: Pela Vida
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP) foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.357 Gabriel, O Pensador lendo durante a Feira de Livros,
P.241 Lançamento do Suburbano Convicto – Pelas em Poços de Caldas
Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP) foto: Acervo pessoal
foto: Acervo pessoal
P.358-359 Jéssica Balbino entrevista MV Bill durante palestra na P.438-441 Projeto Passa Livros no Terminal de Linhas Urbanas de
Feira do Livro em Poços de Caldas Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto foto: Eduardo Correia

P.360-361 Jéssica Balbino e Nega Gizza durante palestra na Feira do P.445 Projeto Passa Livros na periferia de Poços de Caldas
Livro em Poços de Caldas foto: Elza Balbino
foto: Márcio Pinto
P.446-447 Projeto Passa Livros distribui palavras cruzadas na periferia
P.378-379 Jéssica Balbino lendo o Jornal Mantiqueira durante o evento
de Poços de Caldas
“Casa da Imprensa”
foto: Elza Balbino
foto: Juliana Martins
P.450-451 Rap educativo em escola pública de Poços de Caldas
P.385 Ensaio do grupo de break Silêncio Crewativo
foto: Anita Motta foto: Jéssica Balbino

P.387 Oficina de DJ na Casa do Hip-Hop P.455 Jovens fazem letras de rap na Casa do Hip-Hop
foto: Anita Motta foto: Acervo pessoal

P.388-389 Grafites na Casa do Hip-Hop P.462-463 Jéssica Balbino durante palestra/oficina para estudantes
foto: Anita Motta de Jornalismo
foto: Luciano Santos
P.390-391 Periferia de Poços de Caldas
foto: Márcio Pinto P.467 Alunos durante oficina sobre literatura marginal e Hip-Hop
foto: Luciano Santos
P.398 Jéssica Balbino e o escritor Renato Vital
foto: Acervo pessoal P.472-473 Palestra sobre literatura marginal e Hip-Hop em escola
pública para alunos do ProJovem
P.399 King Nino Brown no acervo da Casa do Hip-Hop foto: Luciano Santos
foto: Acervo pessoal
P.474 Professor entrega textos sobre literatura marginal
P.407 DJ Pow do grupo Império Z/O durante as entrevistas para para alunos
o livro-reportagem foto: Luciano Santos
foto: Acervo pessoal
P.480-481 Programa Repercussom com música negra na periferia
P.410-411 Lançamento do livro Suburbano Convicto — foto: Jéssica Balbino
Pelas Periferias do Brasil na Ação Educativa (SP)
foto: Acervo pessoal P.484-485 Evento Hip-Hop em Foco 2
foto: Wagner Alves
P.416 UClanos durante show no Circo Voador no Hutúz 2009
foto: Jéssica Balbino P.488-489 Evento Sesc em Dia com a Leitura
foto: Elza Balbino
P.422-423 Encontro do grupo UClanos com MC Budog do grupo
Elemento.S P.494-495 Programa Repercussom
foto: Jéssica Balbino foto: Jéssica Balbino

P.428-429 Grafite no evento Beatz, Zona Sul de Poços de Caldas P.502 Jéssica Balbino
foto: Jéssica Balbino foto: Marcos Corrêa

P.430-431 Garoto se converte durante o show do grupo Manuscritos


em Poços de Caldas
foto: Acervo pessoal
502

Sobre a autora

Jéssica escreve para a massa. E por não conseguir lar-


gar mão desse vício tornou-se jornalista. Já acreditou na
utopia de mudar o mundo. Hoje tenta mudar a própria
quebrada. Prefere a rua às redações e gosta mesmo é de
mergulhar nas matérias, indo além das pautas. Foge do
jornalismo convencional e se alia ao literário, tentando
descobrir pequenas histórias, sempre relatadas em
grandes matérias.
É apaixonada pelo hip-hop, pela sua vivência e essên-
cia. Não sabe cantar rap, riscar discos, dançar break ou
mesmo grafitar. É eclética e aliou-se ao 5º elemento —
conhecimento — ainda adolescente e nunca mais con-
seguiu deixar. Tem mania de falar que o hip-hop salvou a
sua vida e passando isso adiante faz de tudo para tentar
salvar esta cultura.
Atua em projetos como “Cultura Marginal”, por meio de
palestras e oficinas com literatura para crianças e jovens,
promove e participa de eventos de hip-hop e distribui
livros, poemas e sorrisos pelas ruas da cidade de forma
gratuita, por acreditar que um dia fica melhor na vida de
quem recebe cultura. Não vive sem e fora da periferia.
Acha esta palavra tão linda e rica quanto este mundo é na
realidade, e o melhor: pulsa.
Este livro foi composto em Akkurat.
O Papel utilizado para a capa foi o Cartão Supremo 250g/m².
Para o miolo foi utilizado o Pólen Bold 90g/m².

Impresso pela Imprinta Express em setembro de 2010.

Todos os recursos foram empenhados para identificar e obter


as autorizações dos fotógrafos e seus retratados. Qualquer falha
nesta obtenção terá ocorrido por total desinformação ou por erro
de identificação do próprio contato. A editora está à disposição
para corrigir e conceder os créditos aos verdadeiros titulares.

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