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..
EMMANUEL TERR'AY
Dois estudos
Tradução
de
MANOEL BARROS DA MOITA
e
VENUSIA CARDOSO NEIVA
Fundador:
MAX DA COSTA SANTOS
IB i f ,.~.1.J.'
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Terray, Emmanuel.
O Marxismo diante das sociedades "primitivas": dois
estudos / Emmanuel Terray; tradução de Manoel Bar-
ros da Motta e Venusia Cardoso Neiva .•. Rio de Janei-
ro: Edições Graal, 1979.
(Biblioteca de Ciencias sociais: Série Antropolo-
gia; v. 11)
CDD - 335.411
CDU •. 301.195
lNDICE
Apresentação 9
Morgan e a Antropologia Contemporânea...... . IS
O Materialismo His(órico Diante das
Sociedades Segmentares e de Linhagens 93
Posfácio à Edição de 1979 .. '167
APRESENTAÇÃO
9
o que torna nova a conjumura teórica atual, é que se pode me-
lhor dimensionare~ta questão e as condições de sua resposta.
Vamos direto ao fato: o materialismo histórico "poderá ser
~ às formações sociais Uprimitivas" e seu conhecimento se
tornará um verdadeiro conhecimento cientifico. quando. e apenas
quando. ~ estiverem em via de realização:
11
ADVERTtNCIA
E.T.
13
I
MORGAN
E A ANTROPOLOGIA
CONTEMPORÂNEA
Tradução
de
MANOEL BARROS DA MOTTA
15
"Tal é a segunda leitura de Marx: uma leilura
que ousaremos dizer "simomal"· na medida
em que, num mesmo movimemo, revela o que
eslá ÓCUllono lexlo mesmo que ela lé. e o rela-
ciona com um outro texto. presente com uma
auséncia necessária no primeiro, produzida, no
emamo, a tílulo de simoma pelo primeiro,
como seu próprio invisível, Assim como SUQ
primeira leitura. a segunda leitura de Marx
supõe por cerlo a exisléncia de dois lexlOs e a
medida do primeiro pelo segundo. Mas o que
disringue esla nova leitura da amiga é que na
nova, o segundo lexlo já eslá no primeiro, ao
menos como possível. o lexlo invisíveljá eslá
contido no leXIOvisível, como um modo de seu
invisível próprio,"
• A leitura "sintomal" das obras do saber proposta por Althusser e por ele aplicada à
obra de Marlt para definir ~ cientificidade do Materialismo histórico tem seu mode-
lo formal na estrutura do jnconsciente - pensado como na linguagem - tal como este
é definido por ~c,an. Terray aplica o conceito de uma pluralidade de leituras possl.
veis presentes no mesmo texto, na análise da obra de Morgan.
16
P ara os antropólogos de hoje, a personalidade de Morgan é
vitima de um estranho desdobramento. Morgan é primeiramente o
autor de Syslems of Consanguinity anti Affinity of lhe Human Fami/y
(1871), e há então poucos elogios que sejam dignos de seus méritos:
Claude Lévi-Strauss por exemplo o vé não apenas COII!lO um dos
"grandes precursores dos estudos estruturais" 1 mas também como o
criador da Antropologia Social: .
"Durante os últimos anos, a Antropologia Social interessou'se
principalmente pelos fatos do parentesco. Ela reconheceu, assim, o
gênio de Morgan, de que os Syslems ofConsanguinily and AffinilY of
lhe Human Family (1871) simultaneamente fundaram a antropologia
social e os estudos de parenteséo, explicando ao mesmo tempo por-
que a primeira deve conceder tanta importância aos segundos". ' In-
felizmente, Morgan escreveu igualmente Ancienl Sociely (1877), e
esta segunda obra lhe custou a mais severa reprovação: é que nela se
17
torna culpado do pecado mortal do evolucionismo. Assim esta vez a
sentença não admite indulgências e obtém a unanimidade das mais
opostas escolas. Eis, sobre o evolucionismo, a opinião de Claude Lé-
vi-Strauss:
"Trata-se de uma tentativa para suprimir a diversidade das cul-
turas ao mesmo tempo que se finge reconhecê-Ias plenamente. Por-
que se"tratamos os diferentes estados em que se encontram as socie-
dades humanas tanto antigas quanto longfnquas, como estágios ou
etapas de um desenvolvimento único que, partlndo de um mesmo
ponto, deve fazê-los convergir para o mesmo fim, vê-se bem que a9i-
,,~r~idadeéapenas apar~ºle ... A noção de evolução social ou cultural
só traz, no máximo, um procedime'lto sedutor, mas perigosamente
cômodo, de apresentação dos fatost O evolucionismo social, não é,
no mais das vezes, senão a maquilagem falsamente científica de um
velho problema filosófico de que não está absolutamente certo que a
observação e a indução possam um dia fornecer a chavej 3
E eis agora Paul Mercier:
"A negação do passado complexo das sociedades "primitivas"
atualmente ol!serváveis, está impllcita, quando os homens que as
compõem são apresentados como nossos "antepassados contempo-
râneos". Este é o título, bem posterior, de uma obra de vulgarização
antropológica, mas uma das citações de L. Morgan apresentadas no
começo deste capitulo tem sensivelmente a mesma ressonância ...
Esta concepção incompleta da história está de fato indiretamente li-
gada a estas persistências etnocêntricas que mencionamos no capftu-
[lo precedente. Neste perfodo, bierl\rquizações apressadas das socie-
:dades humanas parecem muitas vezes,'que nada mais fazem do que
;refletir uma vaidade cultural do homem do século XIX convencido
,de ter em mãos a chave dos progressos definitivos ... Mas é no plano
do método que se percebe os inconvenientes da aplicação sistemática
da teoria da evolução. Já assinalamos a que distorsões L. Morgan,
por exemplo, submetia os fatos. IÕnecessário acrescentar que ele pro-
cedia iI extrapolaçõcs apressadas quando os dados estavam ausen-
tes" .•
Assim Morgan, estruturalista em 1871, teria se tornado evolu-
cionista em 1877. Mutações tão bruscas são raras na história das
19
1.QulL!Lma leitura "evolucionista" de Ancient soc~-:
po~iYll.eJ.~-iítí~-ª-R.ij9.9_C9Jlles.taremos· o próprjo ?dofaso ;et;\(;be
ce explicitamente sua dívkI&~para com-Da1win; cuja influência, nos
diz ele, o obrigou a adotar:
••... a conclusão de que o homem começou no primeiro grau da esca-
la, e que trabalhando sobre si mesmo, elevou-se a partir deste primei-
ro grau até seu estado presente' I
E é fácil de localizar o que Ancient Sodety.pede emprestado à .
Origem das Espécies e à The Descent of Man: em primeiro lugar, bem
entendido, a idéia de evolução. Para Morgan a es cie n-
sjderal!a tanto nos seus cara res SOCial u uanto nos
carac.t.eres bIQ10glcos,não é imutável; ela sofre uma evolucão, pqri-
de atraYé~ uma'Crie de estados dos quais cada um é Odesenvolyi.
~ do estado precedente ~!I!!e do es1ado:_~eK~l!t1-e;._.enfim;ests _
21
evolução é semellu!n.te.àquela que Darwin descreveu 'para as ~_spécies-
n~ Estas atirmações envolvemao mesmo tempo uma tese
sobreõ--}lOmem e uma tese sobre a história, Uma tese sobre o ho-
mem: ~p.é_ge humana é Uma espécie animal entre outras. Para
Morgan como para Darwin a espécie humana é de origem animal, e
o homem dos começos apenas se distingue das bestas selvagens que o
cercam:
"Por uma cadeia de inferências necessárias, pode-se remontar o
curso da história da humanidade até uma época em que a sobrevi·
vência dos homens, ignorando o fogo e a linguagem articulada, des·
provido de armas artificiais, dependià como a ~ animais selvagens,
dos frutos que a terra produz espontaneamente '('...). A promiscuida·
de sexual caracteriza o mais baixo nível concebível da selvageria; ela
representa o primeiro grau da escala. Neste estado era difícil distin-
guir o homem dos animais privados da palavra que o cercavam".'
A evolução ulterior da espécie jumana não acarreta ruptura
com esta origem animal. Entre o remo animal e o reino humano,
Morgan não admite descontinuidade alguma.jNo interior do indivi·
duo a ordem biológica e a ordem cultural estão indissoluvelmente li·,
gadas e se determinam reciprocamente~ O volume do cérebro mede a
capacidade da inteligência: "
"Na medida em que remontamos o curso da história, do homem
civilizado para o selvagem, o volume do crânio diminui e as carac'
terísticas animais se denunciam: existe aí um signo da inferioridade
necessária ao homem primitivo" ..•
Mas o exercício da inteligência contribui para o crescimento do
cérebro. Darwin escreve:
"A prática habitual de cada nova arte deve ... reforçar em algum
grau a inteligência". ~
E Morgan o repete:
"Com a produção dasJnyen~Qes e das descobertas, e COJ1l~-
cimento da_ünsti!tJi0~s, o el;piJ:i!9~leYe ne~~riamente de \
crescer e se desenvolver, e somos levados a consta.t.ar_umcrescimento
2 Lewis H. Morgan - Ancient Society I' Ed. 1877 Meridian Books, 1963 p. 536.
3 Ibld .• p. 507
4 Ibid .• p. 507
5 Charles Darwin, La descendencc de I'homme. Tradução francesa Reinwald. I,
p. 171.
22
progressivo da caixa craniana especialmente na sua ltarte cc':...
rebral.'~
Levando-se em conta esta rigorosa correlação entre o cérebro e
a inteligéncia - entre o órgão e sua função - não se poderia portanto
inferir das proezas do "espírito" para instituir no seio do indivíduo
humano uma diferença da natureza entre o biológico e o espiritual,
entre o animal e o humano. A fronteira entre a humanidade e a ani-
malidade não está situada tampouco no interior da espécie humana,
da qual Morgan afirma vigorosamente a unidade, tanto no espaço
quanto no tempo. Unidade no espaço: Morgan condena sem apelo a
"teoria da degradação" segundo a qual apenas certas variedades da
espécie humana seriam dignas do nome de homem, enquanto que ou-
tras, humanas na origem, teriam hoje recaido na animalidade:
"Doravante não é mais possivel, para explicar a existência dos
selvagens e dos bárbaros, sustentar a teoria da degradação humana.
Originariamente esta teoria foi um corolário da cosmogonia mosai-
ca, e foi admitida em nome de uma pretensa necesidade que não mais
existe hoje. Enquanto teoria, ela não é apenas incapaz de dar conta
da existência de selvagens; a experiência humana não contém fato al-
gum que venha apoiá-Ia." ,
't Unidade no tempo: do selvagem ao civilizado a continuidade é
rigorosa, náo se observa em parte alguma salto, mutação que marca-
ria o advento de um reino humano radicalmente distinto do reino na-
tural:
"Nosso cérebro é o mesmo que estava outrora em ação no crâ-
nio dos bárbaros e dos selvagens. Ele nos foi transmitido pela repro-
dução e chegou até nós carregado dos pensamentos das aspirações e
'
das paixões que o ocuparam durante os períodos intermediários. f: O
mesmo cérebro, que se tornou mais velbo e maior com a experiência
das idades passadas" '.
Unidade da espécie e do indivíduo humanos, origem animal do ,i
I
-
l, homem, pertinência do reino humano ao reino animal, estas teses
-
que são para Morgan verdadeiros axiomas são, com toda evidência, J..
. inspiradas por Darwin.,
Se a espécie é uma espécie natural entre outras, a história huma
na se torna um momento da história natural, é efeito dos mesmos
a .
23
mecanismos, está submetida às mesmas leis. Em suma, a noção de
história se apaga diante da noção de evolução. Os historiadores
~Iham a história como uma obra da qual o homem é o autor, Mor-
'1i:gan a olha como um processo do qual o homem é o objeto:
"Os acontecimentos ue marca O rogresso da humanidade,
se inca ,.tn e endente 'vi tiOS a' ~_ em (iâ-
cºs - atertaiS in ue se cristalizam nas instit~i-
(tÕes,-, 80S ec ornes e ue são onservados nas invenções e des-
éQ virtude '-'euma espécie de necessl a e. os IS ariadores
atribuem aos indivíduos um papel preponderante na produção dos
acontecimentos, e substituem assim os princípios - que são perma-
nentes - por pessoas - que são efêmeras. Do trabalho global da socie-
dade, que é a fonte de todo progresso, atribui-se por demais mérito
aos individuos e não o bastante ao espírito público (public intelligen-
ce). "Reconhecer-se-á, de uma maneira geral, que toda a substância
da história humana está contida em (is bound up in) no crescimento
de idéias que são elaboradas (wrought up) pelo povo, e que são ex-
pressas em instituições, seus usos, suas invenções, suas descober-
tas",9
Deste "trabalho da sociedade" que constitui a "substância da
história humana", o homem não é consciente!
"O aparecimento das instituições da humanidade tomou a for-
ma de uma série progressiva e ordenada; cada uma delas é o resulta-
do de movimentos de reforma inconscientes, tendendo a liberar a so-
ciedade dos males existentes" \0.
9 Ibid .• p. 31 I.
10 Ibid .• p. 58.
II Charles Darwin, L'orisine dcs ClpUcs, último capitulo.
24
Da mesma forma, para Morgan:
"As idéias originais, absolutamente independentes de todo co-
nhecimento e de toda experiência prévia, são necessariamente pouco
numerosas. Se fosse possível reduzir a totalidade das idéias humanas
a originais que não seriam derivados de nada, o número destes origi-
nais seria inacreditavelmente pequeno. O progresso humano se reaJi.
za por desenvolvimento ... A partir de um pequeno número de germes
de pensamento (germs of thought) concebidos nos primórdios se des-
dobraram (have been evolved) todas as instituições principais da hu-
manidade". 12
2S
mfio, mas não se preocupa em identificar de outras maneira sua cau-
sa eficiente. Observando que variações semelhantes podem afetar in-
divíduos situados em condições diferentes, e variações diferentes afe-
lar indiví 'hos situados em condições semelhantes. conclui:
"Estas considerações fazem com que eu me incline a atribuir
menos peso à ação direta das condições ambientes do que a uma ten-
dência à variabilidade, devido a causas que ignoramos absolutamen-
te". lll.
16 Citado por Emite Guyénot - L'origine des espeees, ColI. "Que sais-je", Paris,
P.V.F .• 1966. p.. 56.
17 Lewis H. Morgan. op. cit., p. 16.
18 Ibid .• p. 388. \
19 Citado por Eleanor Uacock, op. cit., I, p. IV.
26
Mas a seleção natural intervém ao nível mesmo das instituiçqes
para impor as que são mais favoráveis para o desenvolvimento da es-
pécie: ela explica por exemplo a substituição da exogamia gentllica
pelo casamento consangüíneo:
••A proibição do casamento entre membros da mesma gens li-
vrou-as dos males que são a conseqüência das uniões consanguíneas,
e contribuiu assim para aumentar o vigor da espécie... lO. A organiza-
ção da sociedade em classes fundada sobre o sexo, e a organização
ulterior e superior em gentes fundadas sobre o parentesco podem ser
consideradas como o resultado de grandes movimentos sociais que se
realizaram sem que os homens tivessem consciência deles através da
seleção natural" 21.
Certas situações favorecem ou pelo contráril) tornam mais lenta
a ação da seleção natural. Sabe-se do papel que desempenha o isola-
mento no pensamento de Darwin: uma espécie só pode se constituir a
partir de uma outra quando as variantes que constituem sua origem
estão isoladas das invariantes, e conseqüentemente forçadas a cruzar
entre si. Como escreve em termos modernos Emile Guyénot:
"Uma mutação, uma vez aparecida na natureza, só terá possibi-
lidades de subsistir se as condições particulares de isolamento se
opõem à anfimixia (cruzamento com a forma normal) e favorecem o
estabelecimento de famílias ou de raças locais de mutantes". "
Da mesma maneira para Morgan, é nas populações geografica-
mente isoladas que se realizam de modo mais perfeito, as diferentes
etapas da evolução humana: "a determinação de períodos étnicos
claramente delimitados, apresenta uma outra vantagem: ela permite
orientar mais particularmente a pesquisa para as tribos e as nações
que trazem a melhor ilustração de cada estágio (status) tendo em vis-
ta fazer de cada uma delas ao mesmo tempo um modelo e um exem-
plo. Certas tribos e certas famllias ficaram no isolamento geográfico,
e tiveram que resolver por seu próprio esforço mental os problemas
do progresso: conseqUentemente suas técnicas e suas instituições fi-
caram puras e homogeneas, enquanto as das outras nações eram alte-
radas por influências externas; assim, enquanto que a Africa era e é
ainda, um caos étnico de selvageria e de barbárie, a Austrália e a Po-
29
Ora, sabe-se por outro lado que após a publicação de L'Origine
des Esperes, numerosos pl!.blicistas se esforçaram em aplicar à histó-
ria humana as concepções'de Darwin e sabe-se também o vigor com
que Marx e Engels condenaram estas tentativas. Marx escreve a Ku-
gelman no dia 27 de junho de 1870:
" ... O senhor Lange fez uma grande descoberta. Toda esta histó-
ria deve ser subordinada a uma só grande lei natural. Esta lei da na-
tureza é a frase vazia (a expressão de Darwin assim empregada se tor-
na uma simples frase): "struggle for Iife", "a luta pela vida" e o con-
teúdo desta frase é a lei malthusiana da população ou melhor, da su-
perpopulação. Em lugar, portanto de analisar o "struggle for Iife" tal
como se manifesta historicamente nas diversas formas sociais deter-
minadas, não se encontra nada melhor a fazer do que converter cada
luta concreta numa fórmula: "Struggle for Iife" e substituir esta mes-
ma fórmula pelas elocubrações malthusianas sobre a população, E:
necessário confessar que ai está um método muito penetrante ... pela
ignorância e a preguiça de espirito pretenciosa, auto-suficiente e que
se gaba de ser ciência" 2'.
Da mesma maneira Engels escreve a Lavrov no dia 12 de no-
vembro de 1875: "Se ... um pretenso naturalista se permite resumir
toda riqueza, toda varie9ade da evolução histórica em uma fórmula
estreita e unilateral a de 'luta pela vida' fórmula que só pode ser ad-
mitida mesmo no dom imo da natureza cum grano .•alis, este procedi-
mento contém já sua propria condenação ... a diferença essencial en-
tre as sociedades humanas e animais é que os animais, no máximo
reúnem objetos enquanto que os homens os produzem, basta apenas
esta, porém capital diferença para tornar impossivel a transposição
pura e simples para sociedades humanas das leis válidas para socie-
dades animais ...
Apenas o fato de considerar a história, até nossos dias como
uma luta de classes, basta para fazer aparecer tudo que tem de super-
ficial a concepção que deseja fazer dessa história uma luta pela vida,
apenas diversificada". )n
29 Karl Marx e Friedrich Engels Lettns sur It capital. apresentada por Gilbcn Sadia,
Paris. tditions sociales. 1964, p. 260.
30 Ihid., pago 276.
30
Darwin, Marx e Engels a teriam condenado como eles condenaram,
o ensaio de Lange e os artigos submetidos a Engels por Lavrov.
Ora, eles colocam pelo contrário esta obra no nível das maiores: sig-
nifica, pois, que não se fixaram na evidente leitura "evolucionista".
Fizeram de Ancient Society uma leitura original que lhes permitiu
para além das aparências darwinianas, encontrar outra coisa. O que
é esta outra coisa? Pura e simplesmente:
" ... A concepção materialista da história descoberta por Marx
há 40 anos" .11.
Podemos acreditar nos leitores penetrantes que são Marx e En-
gels: uma outra leitura de Ancient Society é possível. Da mesma for-
ma que na Idade Média, qualquer pessoa que quisesse ser entendida
em qualquer domínio que fosse devia exprimir-se como teólogo, da
mesma maneira no fim do século dezenove o transformismo se tor.
nou a linguagem universal das ciências biológicas e humanas. Tenta-
remos mostrar que mediante - e apesar de - esta linguagem transfor-
mista, Morgan procura apreender conceitos que o conduzem a vias
inteiramente diversas.
Essas vias são, acreditamos, as que percorreu a antropologia so-
cial até nossos dias, e aquelas onde era hesita ainda em se engajar.
31
•• 2.Qual é o primeiro objeto de Morgan? Objeto no duplo sentido
do termo: aquilo de que ele fala, o que deseja atingir? A crer em seus
comentadores, Morgan se1eJiap<oposto"a desenhar quadrlUlL
evolução da humanidade,dividido e~quatr<). :
\I
invenções e d~"artes de subsist!rícia volução do govern "~tu._
ção da famil volução da proprieda Cada uma dessas e UÇÕCI
aparece com 'ma sucessão de estágios pelos quais passam, passa.'
ram ou passarão todas as sociedades humanas. E este projeto sup~
toque atrai sobre Morgan os raios da crftica:levando·se em conta a
insufici!ncia da documentação reunida, um tal projeto traduz uma
am bição desmesurada; ele só pode se realizar numa "história conjec-
turaI" feita de reconstituições desprovidas de toda garantia objetiva;
implica que seja reduzida a um só itinerário a infinita diversidade dos
encaminhamentos humanos .
. Estas criticas resultam, acreditamos, de um grande mal entendi.
do sobre as intenções de Morgan, que um exame um pouco atento
dos textos basta para dissipar. Digamos em uma palavra que o obje-
to de Morgan não é descrever as diferentes etapas da evolução huma.
na, não é escrever uma história da humanidade, é ~laborar uma t~o-
33
ria d~sta história, quer dizer um sistema de conceitos que permita
pensá-Ia cientlhcamente. Iremos, portanto, procurar de um lado
quais são os conceitos propostos, e por outro lado qual é a epistemo-
logia, a concepção da ciência sobre a qual são fundadas estas propo-
sições. "
É necessário aqui distinguir li história das invenções e das artes
de su_bsistência, que consiste em uma sucessão de fatos e constitui um
pr0.&l:cssopor acumulação, da história das instituições, que, em cada
um de seus TiéS ramos' -+ governo, familia, propriedade,. nos apresen-
ta as etapas do crescim~nto de uma("idéla", e constitui'um progresso
por desenvolvimento de alguns "germes de pensamento" originais:
"Quando percorremos em sentido inverso lis primeiras idades
da humanidade, e eliminamos uma após a outra, na ordem em que
elas apareceram, as invenções e descobertas de um lado, as institui-
ições de outro lado, nos apercebemos que as invenções se adicionam
:umas as outras, enquanto que as instituições se desenvolvem umas a
',partir das outras._ Enquanto que na primeira categoria existe uma co-
nexão mais ou menos direta, as instituições se desenvolvem a partir
de um pequeno número de germes primários de pensamento. Os fa-
tos indicam a formação progressiva, em seguida o desenvolvimento
de certas idéias, paixões ou aspirações. Para os desenvolvimentos
mais importantes pode-se, generalizando, apresentá-los como o cres-
cimento das idéias às quais eles estão respectivamente ligados". 1
Assim se justifica o título das três últimas partes de "Andent So-'
de/y". "Crescimento da idéia de governo", "Crescimento da idéia de
familia", "Crescimento da idéia de propriedade". Os termos "idéia",
"germe de pensamento" devem nos advertir: o que Morgan estuda,
não são o governo, a família e a propriedade em sua existência empí-
rica, nas suas manifestações históricas, mas o crescimento orgânico
de uidéias" que passam por várias uformas" sucessivas cuja série
constitui uma "seqüência" de progresso. E iremos ver com que cui-
dado Morgan distingue:
- de um lado, as "formas" do governo e da família, objeto de
seu estudo, das organizações polfticas e familiares tal como se dão na
realidade e se oferecem à observação do etnógrafo;
34
- e por outro lado, as "seqnências" do desenvolvimento da "i-
déia" de governo e da "idéia" de familia, das sucessões da hIstória
real, tal qual são registradas pelo historiógrafo.
No que concerne uàs formas", Morgan, nós o vimos, insiste
sobre a necessidade de estudá-Ias lá onde elas puderam se realizar li-
vremente, ao abrigo de toda influência exterior. _
"É essencial para um progresso sistemático em etnologia que o
estado social das tribos selvagens e bárbaras seja estudado no seu de-
senvolvimento normal, em regiões em que as instituições do povo são
homogêneas ... Na época atual não encontrariamos em parte alguma
da terra um exemplo mais perfeito do estágio inferior da barbárie do
que o que nos é oferecido pelos .Iroqueses e as tribos norte-
americanas situadas a este do Mississipe. Com suas técnicas autócto-
nes protegidas de toda mistura, com suas instituições puras e homo-
gêneas, eles ilustram a cultura própria deste período, na sua exten-
são. seus elementos e suas possibilidades, da maneira mais com ple-
ta". 2
Como se vê, o que interessa a Morgan nos Iroqueses, não é seu
sistema de governo em si mesmo, é este sistema na medida em que ele
é a realização - Morgan diz: "a exemplificação" - mais perfeita do
modelo gentilico, cujas realizações, em particular no Velho Mundo,
são de certa forma perturbadas e confundidas por fenômenos de di-
fusão, de empréstimo ou de conquista. Da mesma forma, Morgan
distingue as "formas" da famllia das famllias reais, empiricamente
observáveis. Ao final de sua análise da familia dita punaluana, Mor-
gan escreve:
"Teoricamente a familia durante este perfodo recobria o grupo
constituído pelas relações matrimoniais mas, na prática, por razões
de comodidade em matéria de residência e de subsistência ela estava
obrigada a se subdividir em famllias menores"'.
E se observará a notável indiferença que ele testemunha pelos
problemas colocados pelas regras de residência, enquanto que sobre
o terreno, são OS grupos de residência que constituem os dados pri-
meiros de observação. Por fim, respondendo a Mac Lennan que de-
sejaria reduzir os "sistemas de consangOinidade" a simples termino-
logia, Morgan escreve:
2 Ibid. p. 472-3.
3 Ibid .• p. 454.
3S
"Um sistema de nominação seria efêmero, porque todos os usos
convencionais são efêmeros. Além disto, seria absolutamente neel:s-
sário que tais sistemas fossem tão diversos quanto as raças da buma-
nidade. Mas um sistema de consagüinidade é uma coisa muito dife-
rente. As relações que o constituem nascem da família e da regra ma-
trimonial, e são mais duráveis ainda do que a própria família: esta
progride enquanto que o sistema permanece inalterável" 4.
Aqui ainda, a terminologia é o que nos fornece o registro ime-
diato da realidade empírica. Mas um sistema de consagOínidade"
não poderia constituir o objeto de uma observação direta; para anali-
sá-lo é necessário conbecer a "forma" da família e as regras do casa-
mento; ele é, não o ponto de partída mas o resultado da pesquisa.
Já que as "formas" do governo ou as da família não se confun-
dem com li,:; instituições políticas ou familiares reaís, combinar uma
"'forma" de governo, uma "forma" de faroHia, e uma "forma" de
propriedade para reconstituír uma sociedade real seria uma operação
destituída de sentido. De fato, Morgan admite primeiramente no in-
terior das sociedades reais as possibilidades de sobrevivências ou de
antecipações: a uma época dada corresponde uma forma de governo
ou de família dominante, mas esta forma pode coexistir aqui ou ali,
seja com os vestígios de uma forma logicamente anterior, seja com os
embriões de uma forma logicamente ulterior:
"Apresentando assim as diferentes formas da família na ordem
em que elas se sucedem corre-sc o risco de ser mal compreendido.
Não desejo dizer de forma alguma que uma forma surge de modo
completo num certo estágio da sociedade, se difunde em todas as re-
giões e só nas regiões onde existem tribos vivendo neste estágio, em
seguida desaparece e se transforma na forma que Ibe é superior.
Pode-se encontrar casos excepcionais de família punaluana sob o rei-
no da família consangüínea e inversamente; casos excepcionais d"
famílias sindiásmicas sob o reino da família puna'luana e inversamen,-
te; por fim, casos excepcionais da família monogâmica, sob o reino
da família sindiásmica e inversamente. Casos excepcio,nais de família
monogâmica podem mesmo aparecer numa época tão recuada quan-
to a da família punaluana, e casos excepcionais de famílias sindiásmí-
cas numa época tão recuada quanto a da família consangüínea. Além
do mais, certas tribos atingiram tal forma particular antes de outras
4 Ibid .. p. 527,
36
tribos no entanto mais avançadas: assim os Iroqueses conheceram a
família sindiásmica no estágio inferior da barbárie, mas nos Bretões,
que estavam no éstágio médio da barbárie, a famma punaluana do-
minava ainda"~.
Uma forma só se desenvolve plenamente se o isolamento a pro-
tege das influências exteriores, mas a história é escassa destes desen-
volvimentos em ambiente fechado. De fato, a organização de uma
sociedade dada numa data determinada se explica muitas vezes por
fenômenos de difusão e de empréstimo:
"Em certas partes do hemisfério oriental, a introdução de ele-
mentos estranhos na cultura autóctone produziu um estado social
anormal, no qual as técnicas da vida civilizada foram remodeladas de
maneira a que elas se adaptassem às aptidões e às necessidades dos
selvagens e dos bárbaros. As tribos nômades elas também, devido ao
caráter excepcional de seu modo de vida, apresentam particularida-
des sociais que não são bem compreendidas. Sob a influência das ra-
ças superiores, muitas tribos viram sua cultura própria paralisada e
alterada a um ponto tal que o curso natural de seu progresso foi des-
viado. Suas instituições e seu estado social foram'modificados, con-
seqüentemente" '.
Pode-se mesmo assistir à fusão de sociedades situadas em etapas
de evolução muito diferentes. Morgan analisa a organização social
dos povos da India setentrional nos seguintes termos:
"Produziu-se uma fusão entre um povo civilizado, os Brahma-
nes, e uma camada bárbara ... Seus sistemas de consangüinidade en-
traram em choque e disto resultou um sistema misto. Os aborígenes
que eram mais numerosos impuseram a este sistema um caráter tura-
niano, enquanto que o elemento sànscrito aí introduziu modificações
tendendo a proteger do descrédito a família monogâmica" '.
Morgan reconhece portanioà realidade dos fenômenos de
sobrevivência, e de antecipação, de difusão, de empréstimo e de fu-
são.
Mas ele não se detém aí:
"O primeiro estágio da barbárie começa com a cerâmica, cuju
presença resulta seja de uma invenção. seja de um empréstimo ... 8. A
5 Ibid .• p. 470-1.
6 lbid .• p. 47~.
7 lbid .. p. 408.
8 lbid .• p. lO.
37
gens nasce espontaneamente num estado determinado da sociedade,
e este nascimento se produziu em várias oportunidades em várias re-
giões separadas? Ou então a gens tem uma origem única e se difundiu
sobre a terra a partir de um centro inicial graças a uma sucessão de
migrações? E,s um bom tema de reflexão para o pensamento especu-
lativo.·~9.
9 Ibid .. p. 388.
10 Ibid .. p. 441.
1i Ibid .. p. 387.
12 Ibid .. p. 41.
38
"Quando existe um laço de contiguidade territorial, as tribos se
beneficiam numa certa medida do progresso de cada uma delas. To-
das as grandes invenções e descobertas se propagam, mas as tribos
inferiores devem ter compreendido seu valor antes de poder se apro-
priarem delas. Nas regiões continentais certas tribos conduzem a
marcha; mas no curso de um mesmo período étnioo. os detentores
deste papel de guia podem mudar muitas vezes." '.
Mas sobretudo, não há "élan vital", necessidade metaflsica que
possa obrigar tal sociedade real a passar de uma "forma" de governo
ou de família a uma outra, e a percorrer todas as etapas das "seq n-
u.
13 Ibid., p. 39.
14 Ibid .. p. 128.
15 Ibid .. p. 39.
39
"A destruição dos laços e da vida étnicas de certas tribos, segui.
da de sua decadência, deve, em numerosos casos e em todas as épo-
ca~~ralisado o fluxo crescente do progresso humano ... "
(Pode-se apmitir que houve casos em que certas tribos ou nações
sofreÍ'lHrLumlÍregressão fisica e mental, mas estes casos jamais inter-
romperam o progresso geral da humanidade". 17
Como se vê, a imagem que Morgan faz da história não é tão rígi-
da quanto levam a pensar algumas de suas declarações - aquelas que
seus comentadores citam sempre - sobre a uniformidade do desen·
volvimento humano em todas as partes da)erra. (; que, de fato, estas
declarações dizem respeito à sucessão das "formas" não à dos acon-
tecimentos. Ainda uma vez, não é como historiador que Morgan
considera o movimento da história, os fenômenos de transição e de
mudança. Para ele, o fato de que em tal data tal povo tenha passado
de um estado a um outro se explica por diversas circunstâncias entre
as quais muitas sâo acidentais, e a análise destas circunstâncias não
pertence a seu campo de pesquisa:
"Por razões que se devem seja à sua origem - a mistura de vârias
estirpes - seja à superioridade de seus meios de subsistência, seja a
uma situação geográfica vantajosa, seja a todos estes fatores reuni-
dos, duas famílias da humanidade, a família Ariana e a família Semi-
ta, foram as primeiras a sair da Barbárie. Foram elas que fundaram a
civilização ... \I A civilização deve ser olhada como o produto de uma
reunião acidental de circunstâncias. Sua aparição num momento
qualquer era certa, mas que se tenha produzido na data em que se
produziu, continua a ser um fato extraordinârio" I'.
Quando Morgan examina a passagem de uma "forma" a uma
outra, ele não se interessa pelos diferentes itinerários efetivamente
percorridos por tal ou qual sociedade; ele abandona os fatos aos his-
toriadores. O que retém sua atenção, é a estrutura dos termos entre
os quais se realiza a passagem, e a relação de filiação lógica que os
une:
"As etapas intermediárias da progressão não estão bem estabe-
lecidas; mas dada a família punaluana no estágio da selvageria, tanto
a existência da família sindiásmica no estágio inferior da barbárie
16 Ibid .• p. 39.
17 Ibid .• p. 58.
18 Ibid .• p. 38.
19 Ibid .• p. 563.
40
quanto o fato da passagem da primeira r"rma à segunda podem ser
deduzidos com uma certeza razoávcl:~20
Quais são portanto em definitivo estas uformas" e estas "se-
qüências", as quais acabamos de ver, não poderiam de maneira algu-
ma passar por simples representações da realidade empirica? No que
concerne ao seu estatutô epistemológico, elas são, nos diz Morgan,
hipóteses construidas para dar conta dos fatos, e sua realidade é ex-
clusivamente fundada sobre sua fecundidade:
"Tendo reunido os fatos que estabelecem a existência do sistema
de consangüinidade c1assificatória, arrisquei-me a propor uma hipó-
tese para explicar sua origem. Que as hipóteses sejam úteis e algumas
vezes necessárias para chegar à verdade, não discutiremos. A realida-
de da solução proposta será função de sua capacidade de dar conta
de todos os fatos em causa", 2]
Notar-se-á, aliás que cada uma das formas estudadas é descrita
como um conjunto orgânico cujos elementos são solidários. Conside-
remos, primeiramente, as formas de governo: eis como Morgan nos
apresenta as diferentes etapas da organização gentllica:
"O sistema (plano) de governo dos aborígenes americanos co-
meçou com a gens e acabou-se com a confederação, que é o ponto
mais elevado que atingiram suas instituições politicas. Este sistema
consiste na série org~nica seguinte: em primeiro lugar, a gens. corpo
de parentes consangüíneos que trazem o mesmo nome gentílico; em
segundo lugar, a frátria, reunião de gentes aparentadas no seio de
uma associação de nível mais elevado em vista de certos objetivos co-
muns; em terceiro lugar. a tribo, reunião de gentes geralmente orga-
nizadas em frátrías, das quais todos os membros falam o mesmo dia-
leto; em quarto lugar, a confederação das tribos cujos memvros fa-
lam dialetos que pertencem à mesma família lingüística" ".
t certo, a interpendência só é absoluta entre a gens exógama e a
tribo endógama que não podem existir uma sem a outra. Nem por
isto deixam de constituir os quatro elementos de uma "série orgâni-
ca", um conjunto logicamente ligado. O mesmo se dá no que concer-
ne às "formas" da família. Colocadas'à parte a família sindiásmica e
a família patriarcal que são etapas de transição, as três principais for-
20 Ibid .. p. 443.
21 Ibid .. p. 516,
22 Ibid .• p. 65.
41
mas da família - consangüínea, punaluana, monogâmica, - são elas
também conjuntos orgânicos. Cada uma dentre elas compreende três
elementos - uma forma de casamento, uma forma de família e um
sistema de consangüinidade - cuja reunião constitui um sistema:
"Os fatos cuja veracidade estabelecemos por observação direta,
no que concerne à família monogâmica. sua regra de casamento e seu
sistema de consangüinidade. revelaram-se igualmente verdadeiros no
que diz respeito à família punaluana, sua regra de casamento e seu
sistema de consangüinidade; e da mesma maneira que para a família
consangüínea, sua regra de casamento e seu sistema de consangüini-
dade. Dado qualquer destes elementos, a existência a seu lado dos
dois outros num momento qualquer pode ser deduzida com certe-
za" 2l.
23 Ibid., p. 498.
24 Ibid., p. 390.
25 Ibid .• p. 422.
42
os irmãos e irmãs colaterais, bastava excluir os primeiros desta rela·
ção e manter nela os segundos para mudar a família consangüínea
em família punaluana" 26.
Donde se segue que, inversamente. basta, para reencontrar a
família consagüínea, a partir da família punaluana. introduzir nesta
o casamento entre irmãos e irmãs consanJ!:üíneos. Morgan escreve, por
outro lado, num texto que já citamos:
"As etapas intermediárias da progressão não são bem estabele-
cidas; mas dada a família punaluana no estágio da selvageria, tanto a
existência da família sindiásmica no estágio inferior da babãrie,
quanto o fato da passagem da primeira forma à segunda, podem ser
deduzidos com uma certeza razoável" 27
•
Pode-se então ficar tentado a ver nas formas sucessivas que
toma uma idéia de governo, idéia de família, idéia de propriedade-
um conjunto de modelos no sentido que Lévy-Strauss dá a este termo,
modelos permitindo pensar a esfera da vida social considerada. As
seqüências no curso das quais estas formas se sucedem aparecem
como os grupos de transformação destes modelos, grupos cuja inter-
pretação em termos de gênero pode ser, no estágio em que estamos,
vista em segundo plano.
Lembremos aqui como Claude Lévi-Strauss define a noção de
estrutura. Começa por distinguir a estrutura das relações sociais em-
piricamente constatadas:
"A noção de estrutura social não se refere à realidade empírica,
mas aos modelos constituídos segundo esta ... As relações sociais são
a matéria-prima empregada para a construção dos modelos que tor-
nam manifesta a própria estrutura social. De forma alguma esta não
deveria ser remetida ao conjunto das relações sociais observáveis
numa sociedade dada". "
Pensamos ter mostrado no começo desta análise que as formas e
seqüências propostas por Morgan são de fato conformes com esta
exigência: elas não d~veriam sc=rde forma alguma conf~_~~idas com a
26 Ibid .• p. 443.
27 Ibid .• p. 443.
28 C1aude Lévi-Slrauss. An,h"op%gie S,ruc'urale, op. cit. p. 305.
43
r~lIlida~e~..:i~a. Passando à estrutura, Claude Lévi-Strauss escre-
ve:
"Para merecer o nome de estrutura os modelos devem exclusiva-
mente satisfazer a quatro condições,
Em primeiro lugar, uma estrutura oferece um caráter de sistema.
Ela consiste em elementos tais que uma modificação qualquer de um
entre eles acarreta uma modificação de todos os outros.
Em segundo lugar, todo modelo pertence a um grupo de trans-
formações dos quais cada uma corresponde a um modelo da mesma
família, de tal forma que o conjunto destas transformações constitui
um grupo de modelos.
Em terceiro lugar, as propriedades indicadas acima permitem
prever de que maneira reagirá o modelo, em caso de modificação de
um de seus elementos.
Por fim, o modelo deve ser construido de tal maneira que seu
funcionamento possa dar conta de todos os fatos observados". 29
Destas quatro condições, a terceira está de fato contida nas duas
primeiras. No que concerne às três outras, os textos que citamos nos
parecem provar: - que as formas do governo e da família, conjuntos
lógicos cujos elementos são interdependentes, satisfazem à primeira:
- que as seqüências no interior das quais estas formas se sucedem
constituem de fato grupos de transformação, já que se pode passar de
uma forma a outra por via de dedução lógica, o que responde à se-
gunda condição.
- que, por fim; o critério segundo o qual uma forma é retirada é, de
fato, o de sua fecundidade, ou como diz Morgan:
••...(Cf.) its sufficiency in explaining ali the facts of the case" ".
Assim·é preenchida a última condição.
lJ.ma leitura estruturalista de Morgan é portanto possivel. Cer-
tamenteo-esfruturalísmo de Morgan é inspirado pela biologia e não
pela lingüística: é a imagem do organismo que subentende seu pensa-
mento, não a da língua. Certamente os lermos modelo, estrutura,
grupo de transformação, não figuram no léxico de Morgan; por ou-
tro lado as noções de modelo, de estrutura, de grupo de transforma-
ção pertencem de fato a seu arsenal teórico. Em Anciem Sociely as-
sim como em Syslems of Consanguinity and Affinity of lhe Huma.,! Fa-
29 Ibid .. p. 306.
30 Lewis H. Morgan, op. cit., p. 516.
• "(de)l sua eficiência em explicar todos os aspectos do caso". (N. do R.)
44
mi/y, mas esta vez aplicados a todas as instâncias da realidade social,
são os instrumentos do estruturalismo moderno que operam. Mas
as noções de Morgan não encontraram a linguagem adequada. Na
conjuntura histórica e ideológica em que Morgan se encontra situa-
do, a linguagem transmitida é, nós o dissemos, a única que ele pode
usar; sua reflexão deve correr num molde que não é feito para ela.
Não subestimamos os obstáculos que esta linguagem coloca ao pen-
samento de Morgan: as imagens que ele transporta com ele - orga-
nismo, espécie, germe, embrião, crescimerito, evolução, transplante,
seleção - confundem a visão, entravam a marcha ou a afastam da di-
reção que ela obscuramente fixou para si. Resta o fato de que com os
instrl\mentos imperfeitos de que dispunha, Morgan roçou o que o
pensamento antropológico só rcinventará setenta anos mais tarde.
Roçou? Ocorre algumas vezes que no desvio de uma análise, Morgan
"encontra suas palavras"; obtém-se então fórmulas de uma espanto-
sa ressonância: assim, não é, como se poderia acreditar, Radcliff-
Brown ou Lévi-Strauss. é Morgan que escreve:
"Quando se estuda a estrutura da sociedade, só as relações orgâ-
nicas devem ser levadas em consideração. A comuna territorial é
para a sociedade 'politica o que a gens é para a sociedade gentílica.
Cada uma entre elas é a unidade de um sistema" 31.
Entretanto, não é certamente esta leitura estruturalista que pôde
seduzir Marx e Engels. O "estruturalismo" de Morgan, como os que
o sucederam, repousa de fato sobre uma concepção positivista da
ciência na qual, como escreve Atain Badiou:
"A teoria é modelo, a experimentação consiste em isolar o cor-
relato empirico que materializa o modelo, o dispositivo experimental
(deve permitir) uma intervenção separadora exibindo uma realização
aproximada da forma". (Comunicação pessoal).
Morgan, nós o dissemos, não procura dar conta da constituição
de sociedades reais, mas elabora uma ciência da história; para este
fim, elimina o que vê como as impurezas características do real: em-
préstimos, sobrevivências, estagnações, regressões. Procede assim a
uma operação de abstração que se reduz de fato a uma filtragem se-
parando o essencial do acessório. Fica portanto prisioneiro desta
ideologia empirista do conhecimento que Louis Althusser descreve
da forma seguinte:
31 Ibid., p. 234.
45
"Todo o processo empirista do conhecimento reside de fato na
operação do sujeito denominada abstração. Conhecer, é abstrair do
objeto real s,ua essência, cuja posse pelo sujeito é então dita conheci-
mento ... O real: ele é estruturado como o é estaganga de terra con-
tendo, no interior, uin grão de ouro puro, quer dizer que ele é feito de
suas essências reais, a essaneis pura c a impura ... O conhecimento:
sua única função é separar, no objeto, as duas partes nele existentes:
o essencial do inessencial... Se concebermos claramente esta estrutll~
ra fundamental, ela pode nos servir de chave em numerosas circuns-
tâncias, em particular para julgar os tftulos teóricos das formas mo-
dernas do empirismo que se apresentam a nós sob os titulas inocen-
tes de uma teoria dos modelos" 32.
47
achatado: todos os níveis são situados sobre um plano de estrita
igualdade, já que as estruturas que eles revelam são, todas no mesmo
grau, o produto da atividade lógica inconsciente do espirito humano.
Como escreve Lucien Sebag:
"A lógica é anterior com relação aos diferentes niveis da organi.
zação social, que aparecem como outras tantas realizaçõcs desta lógi.
ca correspondendo aos fins múltiplos que o homem se propõe". '
Sendo, não processos reais, mas correlativos lógicos, as trans·
formaçõcs que permitem passar de um nivel a outro são reversiveis: o
sistema pode ser percorrido a partir de qualqiler um de seus elemen·
tos. Em outras palavras, cada tipo de sociedade se caracterizando t:'
por um tipo de transformação determinada - é a famosa "ordem das
ordens" de Claude Lévi·Strauss - poder·se·á sempre abordar o estu·
do de uma sociedade por qualquer dos níveis estratégicos que a cons-
tituem: qualquer que seja o ponto de partida escolhido, será sempre
possível reencontrar a partir dele o conjunto das estruturas corres·
pondendo aos diferentes níveis. Que haja entre estes uma hierarquia,
que um dentre eles seja do ponto de vista de explicação privilegiado,
está ai, quaisquer que sejam as aparências e as declaraçõcs de inten·
ções, uma idéia inteiramente estranha à teoria estruturalista contem·
porânea. Como o diz ainda Lucien Sebag:
"f: na medida em que o pensamento não é o simples reflexo do
que não é ela que nenhum valor absoluto pode ser concedido a um
certo tipo de fenômenos sociais com relação aos outros". '
Um tal privilégio não teria aliás nenhum sentido para os estrutu·
ralistas: com efeito, eles não concebem jamais as relações entre os di·
versos niveis em termos de eficácia, de determinação e de ação reci·
proca; seu objeto é de descobrir correspondências formais entre as
estruturas: homologias, isomorfias, simetrias, inversões, tais são 0$
conceitos que utilizam para descrever estas correspondências. A so·
ciedade em seus diferentes niveis aparece, assim, como um sistema de
espelhos que se remetem uns aos outros sua imagem mais ou menos
deformada. Uma tal concepção não pode conceder lugar algum ao
acontecimento, à mudança: com relação à estrutura, esta aparece
como um corpo estranho, uma espécie de toxina que ele deve elimi·
nar sob pena de morte:
48
"A evolução demográfica pode fazer explodir a estrutura, mas
se a orientação estrutural resiste ao choque, ele dispõe a cada
transformação pe vários meios para restabelecer um sistema; senão
idêntico ao sistema anterior, ao menos formalmente do mesmo ti~
pO",4
49
articulam em uma cadeia logicamente ligada de experiências comuns.
No seio do grande agregado, pode-se ainda reconhecer os poucos
germes primários de pensamento (pri.mary germs of thought) que,
trabalhando sobre as necessidades primárias do homem (primary hu-
man necessities) produziram resuUados tão importantes pelo proces-
so natural de desenvolvimento" •
De maneira mais precisa a experiência humana· é portanto pro·
duzida pela interação de três elementos: as necessidades primárias do
homem, os germes primários de pensamento, e a lógica natural, cuja
identidade no espaço e a permanência no tempo fundam e garantem
sua unidade. As necessidades primárias são a matéria-prima sobre a
qual trabalham os germes de pensamento, guiados pela 16gica natu-
ral; invenções e instituições são o resultado deste trabalho.
Seria tentador ver neste apelo à 16gica natural uma antecipação
das evocadas acima, segundo as quais as estruturas "realizam" a 16-
gica do esplrito humano. Mas esta vez as aparências são enganado-
ras. Para Lucien Sabag, aqui inspirado de muito perto pelo modelo
Iingulstico. a atividade 16gica do intelecto é a fonte de toda forma e
de toda organização. As relações sociais são, tanto quanto os mode-
los que ,as representam, obras ào esplrito, como tais submetidas a seu
determinismo. Para Morgan, pelo contrário, o esplrito não é senão
um instrumento cujo uso é determinado pelos problemas que lhe são
colocados, pela matéria-prima que ele trata, matéria já organizada.
Dizer que o espírito humano continua idêntico a si mesmo através do
tempo e do espaço não implica. portanto. para Morgan. nenhuma ,
tese sobre a hierarquia ou a não-hierarquia das instâncias da realida- "
de onde este esplrito opera. já que este não é nem o produtor nem o
organizador desta. Esta insistência sobre a unidade do esplrito hu-
mano s6 tem na teoria de Morgan uma função: afirmar a homogenei-
dade e a continuidade da hist6ria. Morgan afasta resolutamente a
idéia de uma originalidade irrediítlvel das sociedades ditas primiti-
vas. Que desde o aparecimento do homem sobre a terra tenham coe-
xistido várias hist6rias separadas. que o século XIX seja o de sua fu-
são em uma s6 hist6ria mundial. Morgan concordaria talvez. Ele ain-
da precisaria. sem dúvida, que estas hist6rias são regidas pelos mes-
.mos priJw1pios: é nisto que ele é evolucionista. Mesmo se, quanto a
n6s, pensamos que em cada hist6ria regiónal cõrrespondem um con-
6 Ibid .• p. 262.
50
1
'eeito e um conjunto de axiomas distintos nós nos reencontraremos de
acordo com ele para afirmar que estas diferentes histórias dizem res-
peito à mesma ciência, que os conceitos e os sistemas de axiomas cor-
I respondentes pertencem à mesma teoria. Sabe-se a popularidade que
sob diversos disfarces - sociedades frias e sociedades quentes, socie-
dades que dizem respeito à hermenêutica e sociedades que dizem res-
peito ao estruturalismo. sociedades industriais e sociedades sub-
desenvolvidas - a distinção dos civilizados e dos primitivos continua
a conhecer nos nossos dias: ela fundamenta a existência mesma da
Antropologia enquanto disciplina distinta. Para Morgan, supondo-
se que esta distinção tenha um sentido, ela é, em todo caso, interior à
história, e cabe. à história dela dar conta.
A este respeito, é não apenas sobre seu tempo, mas também
sobre o nossó, que Morgan está à frente ...
A identidade do espirito humano cria, portanto, a possibilidade
de uma teoria unitária da história. Ela implica em particular a inter-
dependência das seqüências de progresso, em cada uma das etapas de
seu desenvolvimento respectivo. Do ponto de vista sincrônico, esta
interdependência se manifesta pela solidariedade que, num instante
dado, une as formas que pertencem às diferentes seqüências. Entre
estas formas, há de certa maneira uma correspondência Utransver.
sal", elas constituem como conjunto uma totalidade orgânica. Mais
precisamente, cada forma se situa na intercepção de duas estruturas:
uma estrutura diacrônica - a rede das conexões lógicas que ligam as
formas sucessivas de uma mesma seqüência - e uma estrutura sincrô.
Dica - o sistema de correlações que, de uma seqüência a outra, ligam
as formas realizadas no mesmo instante. Vimos que o conceito da se-
qüência permite a Morgan pensar a estrutura diacrônica. Que ocorre
com a estrutura sincrônica?
O conceito fundamental é aqui o de "período étnico", que Mor-
gan define da maneira seguinte: "A discussão destas diferentes cate-
gorias de fatos será facilitada pela determinação de um certo número
de períodos étnicos, dos quais cada um representa um estado distin-
.
to .da sociedade, caracterizado por um modo de vida que lhe é pró-
pno ...
Cada um destes periodos tem uma cultura distinta e apresenta
um modo de vida especial que lhe é particular. Esta especialização
7 Ibid .• p. 8.
51
dos perlodos étmcos permIte estudar uma sociedade particular em
função do grau de avanço que ela atingiu, e dela fazer o objeto de
uma análise e de uma discussão independentes." •
Acreditamos que é necessário entender esta definição de manei-
ra extensiva: um perlodo étnico não é apenas caracterizado !l0r um
modo de vida particular mas, como testemunha o cuidado de Mor-
gan em situar cada uma das formas que estuda num ponto determi-
nado da sucessão dos perlodos étnicos, o perlodo étnico é o conjunto
das etapas atingidas pelo desenvolvimento da sociedade nas diferen-
tes esferas da vida social. Desde as primeiras páginas do seu livro,
Morgan faz o inventário dessas esferas; ele distingue primeiramente
as invenções e descobertas das instituições. Invenções e descobertas
constituem juntas o que se poderia chamar "um estado técnico". Por
sua vez as instituições estão divididas em sete categorias: subsistên-
cia, governo, linguagem, famflia, religião, vida doméstica e arquite-
tura, propriedade .•
Entre estas categorias, Morgan exclui do campo de sua pesquisa
a linguagem, que constitue o objeto de uma ciência particular, a reli-
gião, descartada de forma lapidar, o que valeria justos sarcasmos a
seu autor e, por fim, a arquitetura que nada mais é do que o reflexo
material das formas da famflia. Um perlodo étnico envolve, portan-
to/ quanto ao essencial, um estado técnico, uma "arte da subsistên-
cia", uma forma de governo, uma forma da famflia e uma forma da
propriedade. O problema é então de saber qual é a natureza das rela-
ções que unem entre si estes diversos elementos, e as esferas da vida {\
social a que eles correspondem; em outras palavras: qual é a estrutu- '.\ ",
ra do perlodo étnico..~
Digamos logo que estas relações são de três tipos: relações de
compatibilidade/incompatibilidade; relações funcionais. estas operam
dentro limites instituldos por aquelas; por fim, relações de expressão.
elas próprias subordinadas às precedentes: no interior de uma mesma
esfera da vida social, uma forma está geralmente acompanhada de
um "discurso" que a exprime; as relações de expressão podem igual-
mente unir duas esferas das quais a segunda não é então nada mais
do que o decalque da primeira. Relações de compatibilidade/incom-
patibilidade: as formas da famflia, do governo e da propriedade são,
8 lbid" p 13.
9 Ibid.• p. 4.
52
como vimos, cOllJuntos 10g1COS
'cujos constituintes são solidários. A
realização de uma forma em uma esfera determinada exclui conse-
qüentemente:
- ao seio desta mesma esfera, o aparecimento de um elemento
que contradiz a forma em questão,
- no interior das esferas vizinhas a realização de formas que es-
tão igualmente em contradição com ela.
No que concerne ao primeiro caso o exemplo mais notável nos é
fornecido pela incompatibilidade da organizaçi!o gentilica com os
privilégios e as desigualdades sociais:
"A monarquia é incompatível com a organização gentilica ... ".
Não há nenhuma analogia entre o senhor e seu título, de um la-
do, o chefe Indio e sua função de outro lado. Um pertence à socieda-
de política e representa a opressão da maioria pela minoria; o outro
pertence à sociedade gentilica, e sua posição repousa sobre os interes-
ses comuns dos membros da gemo Nagens, na frátria ou na tribo não
há lugar para os privilégios ... ".
A existéncia de um direito hereditário sobre o principal papel da
gens é totalmente incompatível com a antiga doutrina da igualdade
dos direitos e das prerrogativas ... ".
N o quadro das instituições gentilicas, com uma sociedade com-
posta de gentes. de frátrias e de tribos, das quais cada uma está orga-
nizada como corpo independente administrando-se a si mesmo, o
povo é necessariamente livre. O poder de um rei hereditário, sem res-
ponsabilidade diante de qualquer pessoa é pura e simplesmente im-
possivel numa tal sociedade. Esta impossibilidade provém do fato
que as instituições gentilicas são incompatíveis com a existência de
um rei ou de um governo monárquico" 13,
Da mesma maneira, no segundo caso, a constituição de um pe-
ríodo étnico, conjunto das formas realizadas nas diferentes esferas da
vida social numa etapa dada, obedece a leis de compatibilidade/in-
compatibilidade que autorizam certas coexistências _ e tornam por
isto teoricamente possiveis as sobrevivências e as antecipações evoca-
das acima - mas que proibem outras. Criticando um texto de Heró-
10 Ibid .• p. 126.
II Ibid .• p. 208.
12 Ibid .• p. 232.
13 Ibid .. p. 259.
53
doto segundo o qual o povo dos Massagetas vivia sob regime da pro-
miscuidade sexual, Morgan escreve:
"Os Massagetas ignoravam o ~erro mas possuíam rebanhos de
carneiros e de bovinos; combatiam a cavalo, armados de flexas de
cobre e lanças cuja ponta era também de cobre; fabricavam e utiliza-
vam carros. f: inimaginável que um povo vivendo sob o regime da
promiscuidade tenha podido atingir um tal grau de avanço" ".
Uma incompatibilidade não acarreta necessariamente a exclu-
são de um dos termos contrapostos; ao menos os prolbe de se encon-
trarem encerrados em domínios diferentes: assim, no quadro da so-
ciedade gentilica, a familia não pode se tornar uma unidade significa-
tiva da organização social:
"Nada estava fundado sobre a familia, qualquer que fosse a for-
ma desta porque a familia não podia entrar na gens como um to-
do ... ". Já que todas as partes devem entrar no todo a familiutão po- ,
dia tornar-se a unidade de base da organização gentilica" ".
No interior do quadro assim traçado pelas relações de compati-
bilidade/incompatibilidade, intervêm então relações funcionais. Nós
vimos, existem "primary human necessities""P, "necessary want.s" 1i e
as instituições são respostas a estas necessidades:
"Constatar-se-á que toda instituição humana que possui um ca-
ráter de permanência está ligada a uma necessidade permanente" 19,.
Que são exatamentee,úUnecesidades? Entre as institulções po-
líticas, a forma ntf" responde à necessidade de Ç(!~sãoso~al: "(A
otganização nt lca é o meio pelo qual a sociedade é organizada e
conserva sua coesão ... "'. A.gens nasceu da necessidade de uma orga-
nização da sociedade". "A'frátria nasce da necessidade de um êstá·-
gio jntcrm,ediArio__ CRtre a gens e a tribo: --
- "Ao contrário da gens. da tribo e da confederação, a frátria não
tinha funções políticas, mas era dotada de certos poderes úteis no sis-
tema social, em função da necessidade de uma organização maior
14 Ibid., p. 439.
15 Ibid .• p. 233.
16 ibid .• p. ,477.
17 Ibid., p. 262.
18 Ibid .• p. 118.
19 Ibid .• p. 98.
20 Ibid .• p. 61.
21 Ibid .• p. 330.
54
que as gens e menor que a tribo, em particular quando a tribo era nu-
merosa'~ )2., ._._
22 Ibid .. p. 90.
23 Ibid .. p. 118.
24 Ibid .. p. 334.
25 Ibid .. p. 124.
26 Ibid .. p. 149.
27 Ibid .. p. 433.
55
"N as saudações familiares e solenes, as gens se dirigem umas às
outras por meio de termos de relações, e não de seus nomes pessoais,
o que tende a difundir ao longe o conhecimento do sistema, e a man-
ter as relações que as ligam a seus pí'rentes mais distantes reafirman-
do constantemente estas relações" "
A terminologia romana constitui a base de um código da filia-
ção:
"Os civilistas romanos introduziram esta terminolo!!ia a fim de
aperfeiçoar a armadura do código da filiação; e é à necessidade deste
código que devemos a existência desta terminologia""
Estes exemplos bastam para mostrar que as necessidades invo-
cadas por Morgan nada têm em comum com as que Malinowski to-
mará mais tarde como fundamentos de sua teoria: não são necessida-
des biológicas, m~linecessidades sociais.
Se existe um/ funcionalismo de Morgan, este é por outro lado
pouco ambicioso e -se' limitá •• dois tipos de afirmação. Em primeiro
lugar, Morgan declara que as instituições duradouras respondem to-
das a necessidades sociais; o que coloca assim, é mais uma regra de
pesquisa do que uma tese de fato. Em segundo lugar, põe em relação
tal instituição determinada, ou mais ex~tamente. tal elemento de
uma forma determinada, com tal necessidade social determinada; o
conselho da tribo com as exigências da cooperação, a chefia com as
da defesa, etc ... Por outro lado ele se exime de assinalar à dita esfera
da vida social uma função única e permanente através dos diversos
períodos étnicos: não se interroga sobre a função das relações de pa-
rentesco em geral, das instituições jurídico-políticas em geral, etc ... A
função de umas e de outras, é de fato seu papel nointerior de um pe-
ríodo étnico que é de certa maneira uma uessênda singular". Este pa-
pei pode variar de um período étnico para outro: definí-Ia de maneira
geral e unívoca não terá, portanto, nenhum sentido. Subordinada a
esta lógica social que constituem as relações de compatibilidade/in-
compatibilidade evocadas acima, o funcionalismo de Morgan é por
outro lado bastante flexível para se abster dos vastos enunciados tau-
tológicos em que vai se comprazer muitas vezes o funcionalismo ulte-
rior.
28 Ibid., p. 397.
29 Ibid., p, 492.
56
•
Vêm em seguida as relações de expressão: uma forma pode ser
reproduzida em "um discurso" ao qual ela está unida como o mode-
lo ao retrato. Na esfera do governo, é este estatuto de reflexo que
Morgan concede às leis, e mais geralmente, ao que nós chamarlamos
a superestrutura jurídica dos sistemas politicos: a lei traduz o funcio-
namento efetivo do sistema, ela se limita a codificar a prática, trazen-
do·lhe simplesmente rigor e clareza:
••As primeiras leis que editaram os Gregos, os Romanos e os
Hebreus depois dos começos da civílização, nada mais fizeram do
que enunciar em termos jurfdicos os resultados que a experiência pré-
via destes povos já inscrevera nos seus usos e seus costumes.
Da mesma maneira, o sistema de consangOinidade exprime a re-
gra de casamento e a forma de familia que estão etn vigor quando de
sua arlocâo:
"U m sistema de consangOinidade não é o produto de um decre-
to arbitrário, mas de um crescimento natural. Ele expressa, é absolu-
tamente necessário que expresse, os fatos reais de parentesco, tal
como eles aparecem para a opinião pública no momento em que o
sistema foi constituído". II
Por fim, a esfera da propriedade reflete ao mesmo tempo a acu-
mulação das invenções e descobertas e a evolução das instituições:
"O crescimento da proptiedade é paralelo ao progresso das in.
venções e descobertas ... Os costumes de que as regras de posse e de
herança dependem, são determinados pelo estado da organização so-
cial e modificados pelo progresso desta. O crescimento da proprieda-
de está assim estreitamente ligado à acumulação das invenções e des-
cobertas, e às melhorias introduzidas nas instituições sociais. Melho-
rias que marcam os diferentes perfodos étnicos do progresso huma-
00",32
•
A estas três categorias de relações entre as esferas - relações de
compatibilidade/incompatibílidade, relações funcionais, relações de
30 Ibid .• p. 550.
31 Ibid .• p. 513.
32 Ibid., p. 535.
S7
expressão - correspondem três tipos de eficácia histórica, três tipos de
ação das estruturas, umas sobre as outras. Em primeiro lugar, a exis-
tência das relações de compatibilidade/incompatibilidade nos obriga
a colocar a questão no peso relativo das diferentes esferas. Não bas-
ta, com eleito, declarar incompatíveis duas formas pertencentes a es-
feras diferentes. Se desejarmos ser capazes, não apenas de comentar a
posteriori o desenrolar da história, mas também de prevê-Ia ou pelo
menos compreender sua gênese efetiva. é necessário, ainda, saber.
quando duas formas incompatíveis ameaçam se afrontar, qual delas
vai prevalecer, qual afastará a outra. Em outras palavras, é necessá-
rio estabelecer entre as diferentes esferas da vida social uma hierar-
quia, e distinguir entre elas esferas detenninanres, cujo papel será de
decidir quais são nas outras esferas,as formas que podem se realizar e
as que não podem; decidir.- também como nós o veremos - do lugar
e·da eficácia assinalados a cada uma dessas esferas.
Conhecemos a resposta de Morgan - é ela que em primeiro lu-
gar lhe valerá a admiração de Marx e de Engels -: a esfera determi.
nante é a<lils "artes da subsistência". E.,primeiramente, sobre a su-
cessão das artes da subsistência que está fundada a periodização da
história da humanidade, quer dizer, a divisão desta história em perío-
dos étnicos:
"Devido à influência considerável que exerceram sobre o estado J I
33 Ibid .• p. 9,
34 Ibid .• p. 19.
.
,,
S8 r
E as artes da subsIstênCIa não são consideradas no caso como
simples "traços culturais" característicos de uma época dada. Se elas
são tomadas como ·bases de periodização, é porque elas fixam as
fronteiras no interior das quais, em cada etapa, pode se desdobra. a
vida social, porque impõem limites às organizações sociais. Como se
exerce esta ação de determinação? As artes da subsistências decidem,
em primeiro lugar, a dimensão das comunidades, tanto pollticas
quanto familiares. Evocando o aparecimento do arado na agricultu-
ra, Morgan escreve:
"O arado puxado pela força animal, marca o começo de uma
nova arte da subsistência. Pela primeira vez, teve-se a idéia de des-
bastar as florestas e de pôr para cultivar vastos campos. A concentra-
ção de populações numerosas em espaços limitados tomou-se possl-
vel. Antes do aparecimento do arado era improvável que num ponto
qualquer da terra, meio milhão de pessoas, tenha podido se desenvol-
ver junto sob a autoridade de um mesmo governo". "
São da mesma maneira as exigências da subsistência que deci-
dem a extensão dos grupos familiares.
"Em toda parte onde o estágio inferior ou médio da selvageria
aparece ainda à superl1cie, descobriu-se os casamentos por grupo, se-
gundo modalidades que definem os grupos; eles foram efetivamente.
descobertos, ou então encontrou-se traços deles de tal maneira que
eles não permitem duvidar de que estes casamentos eram a norma
durante todo este perlodo da hist6ria humana. Pouco importa que
em teoria o grupo tenha sido extenso ou restrito. As necessidades li-
gadas ao estado social então em vigor limitavam na prática as dimen-
sõesdos grupos que viviam sob este regime" 36,
Por outro lado, a cada arte da subsistência corresponde um
modo de vida -, Morgan diz: "Mode o/li/e" ou "Condition" - cujas
exigências comandam a organização social. Para uma arte da subsis- ~\\ .
tência dada, uma superficie dada s6 pode nutrir um número limitado
de pessoas: também, para fazer face à expansão demográfica, a co-
munidade deve elaborar um processo de segmentação que lhe permi-
ta se dividir sem perder sua coesão: esta é uma das significações da
organização gcntíliea:
"N ovas tribos e novas gentes se formavam constantemente por
via de crescimento natural, e o progresso era sensivelmente acelerado
35 Ibid .. p. 27.
36 Ibid .. p. 57.
S9
pela grande extensão do continente americano. O método era sim·
pies. Num primeiro tempo, migrações progressivas se produziam a
partir de uma zona superpovoada e provida de meios de subsistência
superiores. De ano para ano, uma população cada vez mais conside·
rável se instalava a alguma distância do habitaI inicial da tribo. A
medida que o tempo passava, os interesses dos emigrantes se torna-
vam distintos, seus sentimentos se alteravam; as linguagens diver-
giam: seces~ão;e independência se seguiam. se bem que os territórios
fossem contígüos. Assim, uma nova tribo era criada. Isto é uma bre-
ve descrição da maneira pela qual as tribos dos aborígenes da Améri·
ca do Norte se formaram, mas tem um alcance geral. Repetindo-se
de idade em idade sobre as terras ocupadas assim como sobre terras
virgens, este processo deve ser visto como um resultado natural e ine·
lutável, ao mesmo tempo da organização gentílica e das necessidades
ligadas ao estado social em que se encontravam estas populações". "
Mas este processo mesmo torna muito dificil a constituição de
um poder forte exercendo·se sobre vastos territórios:
"Um governo pessoal fundado sobre as gentes não podia desen·
volver um poder central bastante forte para seguir o crescimento de·
mográfico e controlar populações' cada vez mais numerosas, salvo
quando elas não se afastavam muito umas das outras". l8
J7 Ibid .. p. 105.
JK Ibid .. p. 112.
60
tavam reunidos num só corpo tantas terras quanto lhes era necessá-
rio, nas zonas que lhe pareciam mais convenientes. obrigando~os no
ano seguinte a se deslocar". 39
39 tbid., p. 370.
40 Ibid .. p. 264.
41 Ibid .. p. 469.
61
se prolon@a durante o estágio inferior da barbárie ... A familia sin-
diásmica pertence ao estágio inferior e ao estágio médio da barbárie
e se prolonga durante o estágio superior; a família monogâmica per-
tence ao estágio superior da barbárie e se prolonga durante o periodo
da civilização". 42 -..-
42 Ibid .. p. 471.
62
Assim, cada instituição faz de certa maneira face a seu problema
num diálogo de que os terceiros estão excluídos e a sociedade aparece
como um feixe de funções independentes umas das outras. Numa tal
concepção a coerência da sociedade global é perdida; para restaurá-
la, forja-se então a imagem mílica de uma sociedade - organismo, ca-
paz' de manter seu "equilibrio" através das vicissitudes de sua histó-
ria, de inventar "respostas" paUl as questões que lhe coloca seu meio,
de se transformar para se "adaptar" às modificações deste. Só existe,
portanto, unidade entre as diversas instituições na medida em que
elas são todas concebidas como obra deste super-organismo ou deste
super-sujeito.
A esta concepção "biológica" da sociedade, Morgan, malgrado
sua inspiração darwiniana - da qual nós percebemos aqui os limites-
não faz nenhuma concessão. I:. ao nível mesmo dos problemas, nas
relações que eles sustentam uns com os outros, que Morgan procura
a unidade das instituições que constituem a organizaçãosocia!.
Os diversos problemas que afrontam a sociedade são de fato es-
treitamente solidários, entre si. A solução do problema A determina
a do problema B e exclui a do problema c: todos três estão ligados
por conexões lógicas que proíbem de os separar uns dos outros, de
tratar cada um deles sem se referir aos outros. Por outro lado há en-
tre eles uma hierarquia, ou pelo menos uma ordem de urgência;
pode-se distinguir problemas capitais e problemas secundários. A so-
lução dos segundos será subordinada à dos primeiros, que comanda-
rá assim o conjunto da organização socia!.
O que importa ressaltar aqui. é que esta hierarquia não é cons-
tante. E na esfera da subsistência que os problemas são colocados,
mas sua natureza varia: eles podem dizer respeito ao volume dos efei-
tos disponíveis, à organização da produção e da distribuição, às téc-
nicas postas em ação, à repartição dos meios de trabalho e das rique-
zas. E a acuidade relativa destes problemas varia em função do gran-
de desenvolvimento das artes da subsistência. 1:., portanto, este grau
que decide a identidade do problema dominante.
U ma vez identificado este, devemos nos perguntar como e onde
pode ser resolvido. Para todo problema há diversas vias possíveis.
Para superar um obstáculo, uma sociedade avançada usará de meios
de que uma sociedade menos desenvolvida estará desprovida; em su-
ma, a natureza e a eficácia dos meios utilizados dependem, também,
do grau de desenvolvimento das artes da subsistência.
Por fim, dois fatores determinam o lugar em que um problema
qualquer pode ser resolvido; são precisamente a natureza deste
63
problema e os meiqs de sua resolução. O mesmo ocorre, portanto,
para o problema dominante; determinando estes dois fatores, o grau
de desenvolvimento das artes da subsistência determina ao mesmo
tempo o lugar em que ele pode ser resolvido. Este lugar está situado
numa qualquer das diferentes esferas da vida social: é esta esfera que
chamaremos esfera dominante.
Pediremos emprestados a Morgan nossos exemplos. Durante o
período da selvageria e durante o estágio inferior da barbárie, as ar-
tes da subsistências têm uma produtividade muito fraca, a quantida-
de dos bens disponíveis é reduzida, é o. reino da escassez.
"Os selvagens só possuíam bens reduzidos, e tinham poucas
idéias a respeito de seu valor, seu caráter desejável e os modos de sua
transmíssão. Armas grosseiras, tecidos, utensílios, adornos, instru-
mentos em pedra ou em osso, ornamentos pessoais constituíam o es-
sencial da riqueza na vida dos selvagens: eles mal podiam conceber
uma paixão por ela já que ela mal existia." .,
Durante este periodo, é, portanto, o homem que é o bem mais
precioso; ele é em particular a única fonte de energia disponível. 1::,
conseqüentemente, o processo da produção dos homens tal como ele
é regido pelas regras do parentesco e do casamento que governa a or-
ganização social; nessas condições a esfera da família é a esfera domi·
nante. E seu papel não se limita ao dominio da demografia; é nele
que os problemas de organização social são resolvidos. As classes
matrimoniais desempenham, para os Australianos, o papel da orga-
nização politica e é por isto que o estudo destas classes constituiu o
primeiro capítulo da seção que Morgan consagra ao "crescimento da
idéia de governo". Inversamente, a organização gentílica que Mor-
gan vê como uma forma de governo, implica leis de exogamia; ele as-
segura, portanto, a regulação dos casamentos. Vê-se como, a partir
de um certo grau de desenvolvimento das artes da subsistência, uma
forma qualquer, realizada numa esfera qualquer, pode desempenhar
várias funções e servir para resolver vários problemas; repetimos:
não há em Morgan especialização das esferas: ele se afasta' radical-
mente, quanto a este ponto, dos funcionalistas contemporãneos. 1::,
da mesma maneira, na esfera dominante que a partir de uma trans-
formação das artes da subsistência se realizam mudanças sociais de-
cisivas. I:: porque o casamento de um homem fora do circulo de seus
44 Ibid., p. 74. ,
45 Ibid .. p. 434-5.
46 Ibid .. p. 6.
65
ponto de vista quantitativo pelo crescimento do volume dos bens dis-
poníveis. No plano político, a diferenciação qualitativa acarreta o
fim da homo~eneidade das sociedades j!entílicas, onde "todos os
membros praticavam as mesmas atividades. Interesses divergentes e
mesmo antagônicos aparecem, suscitando a instituição de regras e a
introdução de ârbitros. Vimos por outro lado, que o crescimento das
riquezas tornara possivel o nascimento das cidades. em que se reú-
nem comerciantes e artesãos, e a constituição de vastos conjuntos
políticos, as futuras nações. Mas a vida das cidades e nações coloca
difíceis problemas cuja resolução supõe a intervenção de uma admi-
nistração especializada. Por outro lado, o aumento quantitativo das
riquezas conduz à sua concentração nas mãos de alguns e ao apareci-
mento de uma estratificação social. A propriedade e os cargos admi-
nistrativos são as fundações sobre as quais repousa a aristocracia. A
mobilidade social se estende, migrações se produzem para as terras
férteis e para as cidades; enquanto que certas tribos se dispersam, ou-
tras acolhem em seus territórios estrangeiros aos quais elas recusam
todo direito político e s6 concedem uma instalação precâria e revogâ-
vel: tal é a origem da plebe romana. Por fim a escravidão se difunde:
"A igualdade dos direitos e das prerrogativas, a liberdade da
pessoa e os princípios fundamentais da democracia faziam parte da
herança legada pelas gentes. Quando as riquezas foram produzidas
em grande quantidade e sua influência e seu poder começaram a se
fazer sentir na sociedade, a escravidão apareceu. Esta instituição vio-
lava todos estes princípios, mas se apoiava sobre a consideração en-
ganadora de que a pessoa reduzida à escravidão era um estrangeiro
do ponto de vista do sangue e um inimigo cativo. Com a riqueza apa-
receu também, progressivamente, o princípio aristocrâtico, lutando
pela criação de classes privilelliadas". "
O efeito comum deste conjunto de transformações é a prolifera-
ção dos conflitos - entre cidades rivais, entre camponeses e comer-
ciantes citadinos, entre patrícios, plebeus e escravos -; a organização
gentílica, tornando-se de certa maneira muito estreita, não permite
mais a solução dos problemas que afronta a sociedade; assim ela se
apaga para ceder lugar, primeiramente à democracia militar, em se-
guida à organização territorial e ao Estado, formado de três poderes;
o basiJeus ou o rex, herdeiro do chefe de guerra; o senado, herdeiro
47 Ibid .• p. 351.
66
do conselho dos chefes; por fim a assembléia do povo, da qual Mor-
gan define o papel da forma seguinte:
"O crescimento das riquezas acarretou o estabelecimento da as-
sembléia do povo enquanto terceiro poder no seio da sociedade
gentílica, a fim de proteger os direitos da pessoa e de constituir um
escudo contra as usurpações do conselho dos chefes e do chefe de
guerra". ~M
48 Ibid .• p. 325.
49 Ibid .. p. 553.
50 Ibid .• p. 485.
67
Estes exemplos bastam para mostrar como se exerce a domina-
ção de uma esfera da vida social sobre as outras esferas; eles nos per-
mitem igualmente precisar esta distinção entre determinação e domi-
nação, cuja importãncia capital Louis Althusser mostrou na teoria
marxista e que, para nós, é igualmente indispensável para a inteligên-
cia do pensamenCode Morgan. Como a articulação entre estes dois ti-
pos de eficácia se realiza? A esfera determinante assinala limites, cria
possibilidades, exclui as outras; ela decide, por outro lado, da identi-
dade da esfera dominante, que comanda por sua vez, o conjunto da
organização social. Quanto aos depositários destas duas funções, en-
quanto que as artes da subsistência desempenham em toda extensão
da história seu papel de determinação, é apenas a partir do estágio
médio da barbárie que eles começam a intervir diretamente na cons-
tituição das formas do governo e da famflia: pode-se dizer que nesta
data, eles são ao mesmo tempo determinantes e dominantes. Mas
para que eles acumulem os dois papéis, é necessário que sua eficácia
tenha superado um certo nivel; aquém deste nlvel, são por certo de-
terminantes, mas a função de dominação é preenchida por outras es-
feras da vida social e, em particular, pela da famflia. Reencontramos,
portanto, a tese fundamental de Marx: o grau de desenvolvimento
alcançado pelas artes da subsistência determina qual das esferas da
vida social que será dominante durante o pedodo considerado .
•
Terceiro e último gênero de eficácia: ação de uma-forma sobre
o discurso que a exprime. A passagem de uma forma de governo ou
de famflia a uma outra acarreta, sob certas condições, uma mutação
correspondente do reflexo. Aos olhos de Morgan, a autonomia deste
reflexo é muito reduzida, e ela está exclusivamente fundada sobre a
inércia que opõe a pressão de ,sett'1I'D:0delo.
Para que a mudança do
modelo tenha uma repercussãO'n04'éfle~ é necessário que a mudan-
ça do modelo atinja ou supere um certo nlvel de amplitude e de pro-
fundidade. Assim, a passagem da famflia punaluana para a famflia
sindiásmica não basta para derrubar o sistema de consangüinidade
turaniano:
••A familia representa um principio ativo; ela não é jamais esta-
cionária, mas progride de um estágio inferior para um estágio supe-
rior, e finalmente abandona uma forma para passar a uma forma
mais elevada. Os sistemas de consangninidade, pelo contrário, são
68
passivos; só registram os progressos feitos pela famllia depois de um
longo período, e só mudam radicalmente quando a familia mudou
radicalmente" ~I
•
Paremos um instante aqui para medir o caminho percorrido.
No capítulo precedente vimos Morgan elaborar, para analisar as di-
ferentes esferas da vida social, o conceito de forma - formas da famí-
lia, do governo e da propriedade - formas que no seio de cada esfera
se ordenam em uma seqüência de progresso. O conjunto das formas
que, numa certa data são realizadas nas diferentes esferas constitui
um período étnico; o periodo étnico está provido de uma estrutura
feita de relações que unem estas formas entre si. Estas relações são de
três gêneros: relações de compatibilidade/incompatibilidade, relações
funcionais, relações de expressão. As formas agem umas sobre as ou-
tras; mas sua eficácia ê medida e modulada pela natureza das rela-
ções que compõem a estrutura do conjunto; cada gênero de relações
é de certa forma o canal de uma ação determinada. No sentido de
que uma rede elétrica conduz uma corrente, as relações de compatibi-
lidade/incompatibilidade conduzem a ação de determinação, as rela-
ções funcionais conduzem a ação de dominação; por fim, as relações
de expressão conduzem a ação do modelo sobre seu reflexo. A peça es-
tando assim escrita, e a cena montada, como são distribuídos os pa-
péis? As artes da subsistência têm o monopólio da determinação; o
grau de desenvolvimento que atingiram num período dado decide
qual a esfera que exercerá a dominação durante o periodo considera-
do; por causalidade direta, causalidade limitada pela inércia própria
do renexo.·
Este resumo rápido basta, acreditamos, para mostrar até que
ponto Engels tinha razão quando pretendia reencontrar em Anciem
Society "a concepç~ materialista da história descoberta por Marx
há quarenta anos",." Sabe-se de resto até que ponto Engels inspi-
rou-se em Anciem Society para escrever A Origem da Faml1ia. da Pro-
priedade Privada. do Estado. De fato, as artes da subsistência de Mor-
51 ibid .. p. 444.
52 ~Friedrich Engels. Prefácio à primeira edição de A Origem da Famflia, da Proprie-
dade Privada e do Estado, op. cit.. p.IS:
69
gan não são nada mais do que o sistema das forças produtivas de
Marx; o período étnico, é o modo de produção acompanhado das su-
perestruturas jurídicas e politicas que este suscita. Para Morgan,
como para Marx, a economia é, em última instância, determinante;
para Morgan como para Marx, as diferen~es esferas da superestrutu-
ra tém sua lógica própria e reagem atr~avêsdesta lógica à ação da in-
fra-estrutura; por fim, é o próprio Marx que descobre na teoria dos
sistem'as de consangüinidade de Morgan sua própria teoria das ideo-
logias. No último dos textos que citamos, Morgan apresenta a faml-
lia como um elemento ativo, transformando-se com a sociedade, e o
sistema de consangüinidade como um elemento passivo, só se adap-
tando com atraso às transformações da família; e Marx anota à mar-
gem deste texto:
"O mesmo ocorre COlR os sistemas politicos, jurldicos, religio-
sos, filosóficos em geral" "
No elogio que ele dirigiu a Morgan, Engels tem talvez mais ra-
zão do que ele próprio o crê. Foram, com efeito, como dissemos,
Louis Althusser e Etienne Balibar, que, pela primeira vez, mostraram
o papel decisivo que desempenha no pensamento de Marx a distin-
ção entre determinação e dominação, de que tentamos revelar a pre-
sença latente em Morgan. Foram igualmente Louis Althusser e
Etienne Balibar que primeiramente trouxeram à luz os conceitos nos
quais Marx pensa a mudança e a transição na história, a passagem de
um modo de produção dominante a outro modo de produção domi-
nante. Tentaremos mostrar, num último capitulo, que sob diversas
máscaras, os mesmos conceitos estão em ação na teoria de Morgan.
70
,
4. Uma teoria geral da história supõe não apenas uma teoria de
cada um dos estados sucessivos pelos quais passou a humanidade;
exige também uma teoria da passagem de um estado ao outro, uma
teoria da transição e da mudança. Que nos traz Morgan sobre este
ponto?
11
4 Ibid .. p. 288
5 Karl Marx - O Capital, Livro 111. Tomo VI. Paris, Editions Soeiales, 1957, p. 263.
6 Louis Althusser, Etiennc Halibar, Roger Establct, L/re It Capital, Tomo 11. Paris.
François Maspero, 1965. p. 301.
73
"{: evidente que o conselho, a ágora e basileus das gentes, foram
o germen do senado, da assembléia do povo e do chefe do executivo -
rei, imperador, ou presidente - da sociedade polltica moderna" '.
M as cada elemento evolui independentemente dos outros, e a
evolução dos elementos não deveria ser confundida com uma evolu-
ção da forma. A mutação dos elementos acarreta, não a mutação,
mas o desaparecimento da forma .
•
Qual é, portanto, o motor 10 movimento? A contradição efeti-
va, a que condena à morte as forma, existentes e impõe a mudança
social vem de fora: nomeadamente da esfera das artes da subsistên-
cia, cujo papel determinante n6s reencontramos aqui.
São invenções ou descobertas que marcam o começo e o fim de
cada período étnico. Conhecemos a lista: o fogo e o consulT.o do pei-
xe. o arco e a f1exa, a cerâmica, a domesticação dos animais, a meta-
lurgia e o alfabeto.
Se colocarmos à parte o alfabeto - Morgan não esclarece sobre
o alcance que ele atribui a seu aparecimento - todas as outras inven-
ções introduzem, seja novas fontes de subsistência, seja novos instru·
mentos de produção. Respondendo a eventuais objeções no que con-
cerne à cerãmica, Morgan escreve:
"A fabricação da cerâmica pressupõe a vida na aldeia e um pro-
gresso considerável das técnicas simples ... A introdução da arte da
cerâmica inaugura uma etapa nova na progressão da humanidade
para um gênero de vida melhor e comodidades da vida doméstica au-
mentadas" '.
E essas invenções ou descobertas são as verdadeiras e únicas
causas Fficientes da mudança:
"As frações mais avançadas da espécie humana foram, por as-
sim dizer, paralizadas em certas etapas do progresso até que alguma
grande invenção ou descoberta, tal como a domesticação dos ani-
mais ou a fundição do minério de ferro, deu à Sllamarcha para frente
novo e poderoso impulso". '
•
Estando assim estabelecida a origem da mudança, é necessário
tentar agora compreender seu mecanismo. A forma, nós o dissemos,
é uma totalidade estruturada de maneira lógica e coerente; esta defi-
nição acarreta uma primeira conseqüência: se entendemos por forma
de transição um conjunto em que coexistiram bem ou mal elementos
pertencendo, uns às formas antigas, outros a formas novas, então
não existe para M organ forma de transição. Entre duas formas X e Z
pode-se conceber a existência de uma forma intermediária Y, etapa
obrigatória do itinerário que conduz de X a Z; mas esta forma tem
sua coerência própria e não se reduziria a um agregado de traços pe-
didos emprestados uns a Y e outros a Z. Pode-se analisar nesta pers-
pectiva o caso da democracia militar; ó que a caracteriza, é a impora
10 Ibid .• p. 222-224.
75
tância nova do chefe de guerra no interior de uma organizaçâo que
continua sendo gentílica:
"É na confederação que o cargo de general. - "Grande soldado
de Guerra" - faz sua primeira aparição. Casos se produziram em que
as tribos se engajaram na guerra confederando suas forças (in their
confederate capacity); e se fez sentir a necessidade de um chefe para
dirigir os movimentos dos bandos reunidos. A introdução deste car-
go enquanto elemento permanente da maquinaria governamental foi
um grande acontecimento na história do progresso humano; foi o co-
meço de uma diferenciação entre o poder militar e o poder civil. que.
quando ela foi acabada. mudou radicalmente a face do governo". "
Mas segundo Morgan, esta inovação não altera a essência da or-
ganização gentílica. e a democracia militar é antes a última variante
desta do que uma forma radicalmente nova;
"O espírito (spirit) do governo e o estado social em que se en·
contra o povo estão em harmonia com as instituições sob as quais
vive este povo. Quando o espírito guerreiro domina. como foi o caso
dos Aztecas, uma democracia militar surge no interior das institui-
~ões gentílicas. Este tipo de governo não suprime o espírito de libero
dade próprio das gentes e não enfraquece os principios da democra-
cia, mas concorda hamonicamente com eles". \2
11 Ibid .• p. 149.
12 Ibid .• p. 220.
76
"U ma formação social possui uma estrutura que resulta da
combinação de ao menos dois modos de produção, dos quais um é
dominante e o outro subordinado" "
A mesma relação liga organização e forma. Cbamaremos, por-
tanto. de organização um conjunto de relações sociais existentes em
tal época em tal população, Encontramos organizações em diversOlõ
niveis e em diversas regiões da vida social: no curso de um período ét-
nico dado cada uma das esferas que distinguimos apresenta uma or-
ganização determinada. Retomamos pelo contrário o termo forma
para designar os conceitãsque nos permitem pensar as diversas orga-
-nizações existentes. Uma forma, nós o vimos, é um sistema coerente
. de instituições, levando-se em conta os fenômenos de sobrevivência,
de antecipação e de difusão que desempenham um papel essencial na
constituição das sociedades reais, parece que é em geral necessário,
para explicar uma organização determinada, apelar para várias for-
mas diferentes, Para tomar um exemplo moderno, podemos descre-
ver a organização econômica de um país subdesenvolvido e enumê-
rar os traços que a caracterizam: predominância da agricultura, pa-
pei das culturas de exportação, influência das sociedades estrangei-
ras, aparecimento, conforme o caso, de um setor de Estado. Para
analisar esta organização, devemos fazer apelo a quatro forma .• de
economia: economia de auto-subsistência, a pequena produção mer-
cantil, a produção capitalista, a economia de estado, Assim, a uma
mesma organiza-;ão podem corresponder várias formas: é a interação
destas que permite compreender aquela.
~Q.éj),QLal:asº q.ue escolhemos este exemplo deu1ll'palsem via
de desenvoIYÜlleDlo:,(),qu~é,,º-c1esenvolvimento.senãQum caso típico
de tpJOsieão'?E é bem esta noeão de organização que vai nos permitir
-pensar os fenômenos de transição; de fato, se não podemos falar de
formas de transição, por outro lado podemos e devemos falar de or-
ganização de transição. Porque uma organização de transição se de-
fine precisamente com'o a coexistência'ôe'varÍasfõrnrafaas quais ne-
nhumactregOUüirYãa li dóminar ou a reprimiras outras. Admitiria-
-mos de'nossa parte, que toda organização resulta da combinação de
várias formas. Mas em periodo de estabilidade, uma delas exerce a
hegemonia e as outras lhe são subordinadas; pelo contrário, o que
caracteriza a transição é o equilíbrio antagônico entre duas formas
77
das quais uma se apaga enquanto a outra se anuncia. Equilíbrio ins-
tável que se traduz de fato pelo caráter precário e flutuante da domi-
nação de uma forma sobre a outra~ enquanto dura a transição, as
duas formas podem trocar suas posições, cada uma pode tornar-se
alternativamente dominante e dominada, até que por fim a balança
pende definitivamente: ou para o retorno ao passado. ou para o ad-
vento do futuro. E:: o que Etienne Balíbar mostra muito bem a propó-
sito da análise marxista da manufatura:
"Os períodos de transição são portanto caracterizados, ao mes-
mo tempo que pelas formas de não-correspondência (entre as supe-
restruturas jurídicas e políticas e a estrutura econômica - E. T.-) pela
coexistência entre vários modos de produção ... A manufatura não é
portanto, jamais, um único modo de produção, mas sua unidade é a
coexistência e a hierarquia de dois modos de produção" ".
E reencontraríamos indicações análogas no estudo feito por Lê-
nin e Trotski do fenômeno da durabilidade dos poderes no período
revolucionário.
Ora, nós iremos ver que estes princípios de análíse são exata-
mente os que Morgan aplica aos fenômenos de transição, tanto na
esfera do governo como na da família. No domínio da organização
familiar, tomamos como exemplo a descrição que nos dá Morgan do
sistema de classes matrimoniais dos Kamilaroi da Austrálía. Em ter-
mos modernos, os Kamilaroi têm um sistema de quatro seções per-
tencendo ao tipo Kariera tal como ele foi definido por A. R. Radclif-
fe - Brown e Claude Lévi-Strauss. Esta organização resulta, aos
olhos de Morgan, da coexistência e da articulação de duas formas. A
primeira e a mais antiga é a das classes: os Kamilaroi estão reparti-
dos entre oito classes matrimonais, quatro masculinas e quatro femi-
ninas. Estas oito classes estão reagrupadas em quatro seções A, B, C,
D, cada uma formada de uma classe masculína e de uma classe femi-
nina, cujos membros se consideram como irmãos e irmãs e não se -ca~
saro entre si. O intercasamento é prescrito entre as seções A e B de
um lado, C e D de outro. Se concordamos com Lévi-Strauss em cha-
mar de casal o conjunto formado pela seção do pai e a de seus filhos,
e ciclo ao conjunto formado pela seção da mãe e a de seus filhos, um
homem pertencendo a uma seção dada, seus filhos pertencerão à se-
ção alterna do próprio casal, de acordo com o quadro seguinte:l~
78
Um homem de: casa com uma mulher de: seus filhos são de:
.\ B D
1I A C
(' I) B
11 C A
17 Ibid., p. 56.
18 Ibid .• p. 55.
81
feito entre o sistema de classes e o sistema de clãs; se bem que ela não
envolva nenhuma contradição lógica e possa funcionar indefinida-
mente de maneira inteiramente harmoniosa, ela não con~titui uma
. solução satisfatória para o problema que afronta os Kamilaroi, o dos
casamentos consangüíneos.
Também o processo de que acabamos de falar não poderia aca-
bar-se com ela. O problema, nos diz Morgan, só pode ser resolvido
pela eliminação completa das classes e é de fato nesta via que se enga-
jam os Kamilaroi. Ao final de sua análise, Morgan assinala uma "i-
novação" que rompe de maneira clara com a lógica do sistema de
classes:
"Falta assinalar uma inovação em relação à constituição origi-
nal· das classes que tende a promover a gens e que revela um movi-
mento em curso para o verdadeiro ideal da gens. Esta inovação apa-
rece em dois pontos. Em primeiro lugar, os casamentos são autoriza-
dos em certos limites no interior de cada triade das gentes; em segun-
do lugar, entre certas classes, os casamentos outrora proibidos são
doravante autorizados ... Em cada triade de gentes, cada classe de ho-
mens se vê atribuir uma classe suplementar de mulheres nas duas
gentes restantes da mesma tríade, classe que lhe era outrora proibi-
da. I"
19 Ibid .• p. 56.
82
por. O primeiro é uma sociedade (soeielas) fundada sobre as gentes,
o segundo um estado (civitas) fundado sobre o território e a proprie-
dade. O segundo suplanta progressivamente o primeiro" '''.
Em A tenas como em Roma, nós o vimos, O desenvolvimento da
produção e o aumento do volume das riquezas disponíveis desempe~
nham. na transformação, o papel de causas eficientes. Essa transfor-
mação é dupla: substituição de grupos fundados na residência por
grupos fundados sobre o parentesco, emergência de uma estratifica-
ção social. As mudanças que afetam os regimes políticos não fazem
senão refletir estas duas inovações. Em primeiro lugar, as migrações
e os deslocamentos das antigas tribos, obrigaram a sociedade a con-
ceder em seu seio um lugar para as unidades territoriais. Elas acarre-
tam de fato a constituição de uma classe de pessoas que romperam
seus laços com seu clã ou tribo de origem e que estão por isto mesmo
excluídas de toda participação na vida polftica e religiosa:
"Devido às mudanças sofridas pelas tribos gregas e os inevitá-
veis movimentos de população que se produziram durante o período
legendário e na época que precedeu Solon, muitas pessoas se desloca-
ram de uma nação para outra e assim romperam os laços que as
uniam a sua gens sem estabelecê-los com uma outra ... Todas essas
pessoas caíam fora do sistema político ao qual só se podia estar liga-
do por intermédio de uma gens e de uma tribo ... Não tendo nem gens
nem fratria, não tinham também direitos religiosos, já que estes são
inerentes. a estas organizações. Não é dificil ver que esta categoria de
pessoas representa um elemento cada vez mais insatisfeito que põe
em perigo a segurança da sociedade." 21
20 Ibid., p. 309.
21 Ibid., p. 273-4.
83
para o exército ou para a marinha e estes chefes de família estavam
submetidos ao imposto. A naucraria foi o germe do demos ou comu-
na e quando a idéia de uma base territorial foi plenamente desenvol-
vida, tornou-se o fundamento do segundo grande sistema de gover-
no. Malgrado as importantes mudanças que intervieram no que con-
cerne aos meios pelos quais o poder era exercido, o povo vivia ainda
numa sociedade gentilica e sob instituições gentilicas. A gens, a fra-
tria e a tribo tinham conservado toda sua vitalidade e continuavam a
ser as fontes reconhecidas do poder." "
f: com a reforma de Clfstenes e a criação dos demos e das tribos
locais que o principio territorial e o principio gentilico trocam suas
posições: o primeiro torna-se dominante, e o segundo 's6 se mantém
doravante a titulo de sobrevivência em dominios menores da vida so-
cial. .
"Em seguida à legislação introduzida por Cltstenes, gentes, fra-
trias e tribos foram desprovidas de suas prerrogativas, e os poderes
de que elas eram a sede foram transferidos para o demos, para a tribo
territorial e para o Estado, que se tornaram desde então a fonte de
todo poder politico. Gentes, tribos e fratrias, não foram entretanto
dissolvidas; mantiveram-se durante séculos enquanto grupos de pa-
rentesco e linhagens, e enquanto núcleos da vida religiosa." "
Em segundo lugar, a acumulação das riquezas é acompanhada
por sua concentração nas mãos de uma minoria. Aliás, o nascimento
e o crescimento das cidades acarretam a multiplicação das tarefas e
dos cargos administrativos, que são rapidamente apropriados por
esta minoria. Assim aparece uma diferenciação entre ricos e pobres,
que é sancionada pela reforma de Teseu:
"Um outro gesto é atribuldo a Teseu, gesto que revela um obje-
tivo mais radical e que mostra q)Je se compreendia a necessidade de
uma transformação fundamental do sistema de governo.
Ele dividiu o povo, independentemente das gentes, em três clas-
ses, chamadas respectivamente eupátridas ou "bem nascidos", geo-
moris ou "fazendeiros" e de demiurgos ou "artesãos". As principais
tarefas administrativas e religiosas foram confiadas à primeira classe.
Esta repartição não era apenas um reconhecimento oficial do papel
desempenhado pela propriedade e pelo principio aristocrático no go-
22 Ibid., p. 269-70.
23 Ibid .• p. 280.
84
vemo da sociedade; ela era um ataque direto contra O poder polftico
das "gentes."24
O Principio, ou, para retomar a expressão de Morgan, o "ele-
mento" aristocrático obtém seu primeiro reconhecimento oficial: que
resulta disso para o regime polftico? Aparentemente nada mudou; os
trés órgãos da democracia militar, chefe de guerra, conselho dos che-
fes de tribo, assembléia do povo - se mantêm semelhantes a si mes-
mos; mas na realidade, O principio aristocrático investe de certa ma-
neira, o primeiro destes três ó~gãos, e que faz deles, se podemos di-
zer, sua cidadela, no coração desta organização fundamentalmente
democrátic~ que é o sistema gentílico. Desde então,,{) que outrora
era uma maquinaria harmoniosa torna-se o teatro de um antagonis-
mo agudo:
"Devido ao fato de que o conselho dos chefes foi conservado en-
quanto elemento constituinte do governo pode-se dizer que, tanto
quanto as gentes ele representa os principios democráticos no inte- .
rior do sistema social, enquanto que o basileus logo veio representar
o principio aristocrático. h provável que uma luta perpétua oponha
o conselho ao basileus afim de que este não possa ultrapassar os limi-
tes do poder que o povo estava disposto a lhe conceder" "
A dominação passageira do principio aristocrático se manifesta
nas tiranias; mas estas, nos diz Morgan. não chegam a se implantar:
"Entre as tribos gregas, o que se assemelha mais aos reinos são
as tiranias, que durante o período arcaico apareceram aqui e ali, em
diversas regiões da Grécia. Mas os governos desse gênero, contradi·
ziam tão claramente as idéias gregas e eram tão estranhos às suas ins-
tituições democráticas que nCllhum dentre eles pôde se enraizar de
maneira durável na Grécia" ".
Finalmente, uma nova organização do governo se impõe: a Re-
pública democrática. As unidades de que ela é composta são de ago-
ra em diante recrutadas à base da residência; salvo esta mudança, ela
conserva o essencial da herança gentllica e, tendo eliminado o princl·
pio aristocrático, ela constitue uma forma coerente, com a qual se
acaba em Atenas, o processo de transição: "quando os atenienses
instituíram o novo sistema político fundado sobre o território e sobre
24 Ibid .• p. 266-2&1.
25 Ibid .. 257.
26 Ibid .• p. 260.
85
a propriedade, o governo foi uma democracia pura. Esta não era
uma doutrina nova nem uma invenção particular do gênio ateniense;
era um sistema antigo e familiar, tão antigo quanto a própria gentes.
Desde tempos imemoriais, as idéias democráticas existiam no saber e
na prática dos antepassados dos Atenienses; se exprimiram, de agora
em diante, num sistema de governo mais elaborado e sob vários as-
pectos melhor. Este elemento de perturbação, que era o princípio
aristocrático, penetrara no sistema e suscitou a maioria dos conflitos
que marcaram o período de transição; ligou-se a função de basileus e
sobrevivçu à abolição desta função; mas o novo sistema conseguiu
eliminá-lo." 27
Se, em Roma, as causas e as primeiras etapas da transição são as
mesmas, em Atenas, por outro lado a saída é diferente: com efeito,
não é o oficio de chefe de guerra, mas o conselho do chefe de tribo,
ou melhor seu herdeiro, o senado, que é assumido pelo princípio aris-
tocrático.
"Sob o regime de Rômulus, depois sob a legislação de Servius
Tullius, o governo de Roma foi uma democracia militar porque o
espírito militar dominava o sistema político. Mas pode-se notar de .. ,
passagem que um elemento novo e cóntrário, o senado romano, foi
introduzido no coração mesmo do sistema social. O grau de patricio
foi concedido aos membros do senado e a sua descendência. De um
golpe uma classe privilegiada foi assim criada e instalada como uma
fortaleza (entreched) no interior do sistema gentílico, em seguida da
sociedade política que derrubou finalmente os princípios democráti-
cos herdados das gentes". "
Em Roma, o princípio aristocrático não se deixou desalojar do
bastião que conquistou, e, para Morgan, toda a história da Repúl1li-
ca Romana é feita das batalhas que ele efetuou contra o princípio de-
mocrático.
"Devido a sua alta missão, a sua composição, devido ao fato de
que a seus membros e à sua descendência foi conferido o grau de
patrício, o senado romano ocupou uma posição poderosa no sistema
político que se seguiu. Foi este elemento aristocrático, instalado pela
primeira vez no coração da organização gentilica, que deu à Repúbli-
ca seu caráter bastardo, e que, como se teria podido prever, acabou
86
nó imperialismo e na dissolução da raça que finalmente se seguiu. "
sob esta República semi-aristocrática e semi-democrática que os ro-
manos construiram seu renome. Tudo leva a crer que este teria sido
maior e seus frutos mais duráveis se a liberdade e a igualdade tives-
sem sido proclamadas pela nação, em lugar da desigualdade dos pri-
vilégios e de uma atroz escravidão. A luta prolongada que sustenta-
ram os plebeus para desenraizar o elemento aristocrático representa-
do pelo Senado; e para restaurar os antigos princípios da democra-
cia, deve ser contada entre os trabalhos heróicos da humanidade." "
Essas análises nos permitem precisar a maneira pela qual_Mor-
I gan concebe o mecanismo da mudança sociail Vemos em primeiro
'lugar que, em Atenas como em Roma, diversas organizações se suce-
deram. No interior dessas organizações, dominam ora o principio
democrático e a forma gentllica - é o caso da democracia militar e da
república Ateniense - ora o principio aristocrático, é o caso das tira-
nias; ora, por fim, como sob a república romana, os antagonistas se
equilibram. Mas as formas se realizam em instituições e é por inter-
médio de instituições que os princlpios agem. Ora, notar-se-á que ao
termo das evoluções que descrevemos, se instituições novas nasce-
ram, muito raras são as instituições antigas que desapareceram.
Em Atenas como em Roma, clãs e tribos sobrevivem sob forma
de congregações religiosas; os órgãos do poder - arcontes ou cônsu-
les, Baleia ou Senado, Eclésia ou Comícios - são os mesmos que fo-
ram legados pelas sociedades gentllicas. " a posição respectiva dessas
diversas instituições que variou. Umas, que a princípio não eram
mais do que engrenagens entre outras, em seguida impuseram sua he.
gemonia; outras, a principio dominantes, foram em seguida relega-
das ao nível de sobrevivências. O que está em jogo na transição é,
portanto, menos a existência e aOnatureza das .instituições do que seu
lugar e seu peso no seio do sistema politico. Uma instituição não é,
em si mesma, mais do que um suporte: sob uma aparência que conti.
nua constante, ela é capaz de receber atributos, de sustentar relações,
de desempenhar papéis muito diferentes; instrumento do poder de-
mocrático hoje, ela pode amanhã servir de base à aristocracia. Por
esta razão Morgan tem o direito de afirmar, simultaneamente, de um
lado que os Cônsules, os senados e os comícios da república Romana
29 Ibid., p. 322-3,
87
descendem em linha direta do chefe de guerra, do conselho dos che·
fes e da assembléia do povo, da organização gentílica; e de outro lado
que entre a organização gentílica e a república Romana, produziu·se
não apenas uma ruptura mas uma verdadeira reviravolta: a conser-
vação dos elementos, não impede a mutação do sistema, ela permite
simplesmente integrar os diversos estados deste último no interior de
um grupo de.transformações.
Aqui. voltamos a encontrar-nos com a noção de scqOência que
tínhamos evocado no capítulo li; no limite, duas formas sucessivas
podem muito bem ser constituídas pelas mesmas instituições; é, en·
lão, o deslocamento da dominãncia de uma instituição para outra
que assegura a passagem de uma forma para outra; portanto, a pas-
sagem de uma organização dominada por tal forma a uma organiza-
ção dominada por tal outra: é o crescimento do papel do chefe de
guerra que transforma a organização gentflica em democracia mili-
tar. Assim, entre as diferentes instituições cuja combinação constitue
uma forma e entre as diferentes formas, cuja combinação constitue
uma organização, nós reencontramos esta relação de dominação que
existe entre as diferentes esferas cuja combinação constitue um perío-
do étnico. isto para mostrar o papel fundamental que o conceito de
dominaçã\l desempenha na teoria de Morgan: numa palavra, permite
'1í este~ar ao mesmo tempo a estrutura e o acontecimento, o que é
a condição de um conhecimento científico da história.
S. Eis aqui, portanto, acabado o processo de Aneiem Soeiely.
Como o vimos, nós nos limitamos a uma crítica puramente interna.
Sabemos que acerca de muitos pontos as informações de que dispu-
nha Morgan revelaram-se em seguida insuficientes ou errôneas. O
sistema politico dos aztecas antes da conquista espanbola em nada se
parece com a descrição dada por ele; em matéria de relações familia-
res e matrimoniais, a família consangüínea e o casamento por grupos
estão hoje relegados ao museu dos erros etnológicos; nem a história
e nem a etnografia nos fornece o menor traço de sua existência; as
instituições e costumes de onde Morgan extraía o argumento para
provar essa existência são de fato justificáveis, mediante uma inter-
pretação inteiramente diversa. As afirmações de Morgan, sobre a
promiscuidade sexual originária, sobre a anterioridade da filiação
matrilinear em relação à filiação patrilinear são atualmente conside.
radas com muita desconfiança. Mas nós nos proibimos de levar em
conta as pesquisas que foram realizadas após a publicação de An-
eiem Soeiely: o que nos interessa é menos os resultados obtidos por
Morgan do que as intenções _que o animam, menos as teses avança-
-dis- do que os ~conceitos e métodos utilizados para estabelecê-Ias.
89
Ora, quanto a estes dois pontos o balanço nos parece amplamente
positivo. No que concerne ao primeiro, Morgan, nós o dissemos, se
propõe a elaborar uma teoria da história primitiva; segundo Claude
Lévi-Strauss - os antropólogos anglo-saxões definem como se segue,
o objeto de sua disciplina:
"Nos países anglo-saxões, a antropologia visa um conhecimento
global do homem abarcando seu objeto em toda a sua extensão his-
tórica e geográfica; aspirando a um conhecimento aplicável ao con-
junto do desenvolvimento humano, desde, digamos, os homicídios
até às raças modernas e tendendo a conclusões positivas ou negativas
mas válidas para todas as sociedades humanas, desde a maior cídade
moderna até a menor tribo melanésia" '. Destes dois projetos qual o
mais audacíoso? B absurdo criticar Morgan pela falta de medida de
suas ambições. Se o estudo das sociedades ditas "primitivas" deve
um dia superar o estado da descrição monográfica e da classificação,
ele deverá fixar-se em objetivos de amplitude equivalente. Aqui ainda,
o que importa é menos, se podemos dizer, as dimensões do projeto
do que seu conteúdo, menos a extensão do domínio a explorar do
que os meios postos em ação tendo em vista esta exploração.
B-nos necessário, portanto, chegar aos conceitos operatórios
utilizados por Morgan - forma, seqüência, periodo étnico, arte da
,. subsistência, determínação, domínação, reflexo, organização e tran-
sição - tais como os extraimos da ganga darwiniana em que eles esta-
vam mergulhados. São eles que definem o sentido e o alcance da sua
empresa; é sobre eles que deve ser julgado. Considerando separada-
mente, uns anunciam o estruturalismo; outros o funcionalismo; ou-
tros, por fim, como bem viu Engels, encontram naturalmente seu lu-
gar no interior do edificio marxista. Partindo deste ponto de vista po-
der-se-ia localizar em Ancient Society a origem de todas as vias per-
corridas até nossos dias pelo pensamento antropológico. B precisa-
mente esta ambigüidade que constitue ao mesmo tempo a importân-
cia e a dificuldade do livro de Morgan.
Mas as diversas leituras que distinguimos, leitura evolucionista,
leitura estruturalista, leitura marxista, não são equivalentes. Nós fo-
mos, acreditamos, das mais superficiais à mais profunda. De fato,
quando Morgan pensa a diacronia ele a pensa em termos de evolução
••
91
11
o MATERIALISMO HISTÓRICO
DIANTE DAS SOCIEDADES
SEGMENTARES E DE LINHAGENS
(A propósito da Anthropologie Economique des Gouro, de Claude
Meillassoux) .)
Tradução
de
VENUSIA CARDOSO NEIVA
93
"O MATERIALISMO HISTÓRICO DIANTE
DAS SOCIEDADES SEGMENTARES E DE LINHAGENS"
(A propósito da ••Anthropologie Eeonomique des Gouro" de C1aude
Meillassoux)
95
campo a fecundidade destes princípios. Quaisquer que sejam as críti-
cas que possamos fazer-lhe, digamos em princípio que, para n6s, o
levantamento e a assimilação dos resultado§ estabelecidos na Anlh~o- I
p%gie Économique des Gouro são a condição necessária para qual- ~
quer novo progresso da investigação marxista no domínio das cha- :
madas sociedades "primitivas". J
Ao escrever seu livro, Claude Meillassoux propôs-se a um duplo
objetivo: de um lado, quis d~, a partir do caso dos Gouro, o
.....-', modo de produção das sociedades de linhagens e segmentares', e por
outro quis analis~ra passamm desse modo de produção tradicional a
um novo m9do de produção caracterizado pelo desenvolvimento da
agricultur.,(comçrciaÜA esselduplo objetiv<1jcorrespondem duas par-
tes da obra: a primeira - os dez primeírOScapítulos - está dedicada à
economia de autQ-subsistênciJI, a segunda - os dois últimos capltulos
- àS\t1!nsfQr[1ÍaçÕçsque se sêguiram à QC_UPllçW~, à introdu-
ção dos ~e ao adveíítõ~da- es.Qnomia,mQ!!l'j!ria.
Entre estas duas partes, um capItulo descreve os ipt~~P.T~-,
c.9JÇ>ll!íUs:
de fato, parece que, para Claude Meillassoux, estes inter-
cãmbios ~num certo sentido, a yansição da economia de
auto-subsistencia a agricultura. comercial/Nem por isso, estes dei-
xam de constituir um aspecto do sistema econômico tradicional; estu-
dá-Ios-emos, portanto, ao mesmo tempo que à economia de auto-
subsistência da qual não são s6 contemporâneos como também com-
plementares. Aí se deterá nosso exame: por mais interessantes que se-
jam os capítulos nos quais Claude Meillassoux se volta até o perfodo
colo'!.~ cremos que são muito ~~uais e originais que sua aná-
lise da economia tradicional. '- -
Claude Meillassoux caracteriza o !llod(),.de produ~o das socie·
dades de Iinhagen~ e~e~mentares por:-'-
_ _
mJ!.l~ri.a-pri~mada
força
.. ,
de trabalho
::;:;-
e.dos
em produto pela aç!p conjugadalR'"
instrumentos de-proãiíÇão,
,_ -.---'--_._.~-..::. "-~', ação que Se realí-
I. OS MEIOS DE TRABALHO
9 Para evitar qualquer equívoco. precisemos desde agora que nós nos propomos sim-
plesmente aqui a inventariar os modos de produção "realizados" na formação eco·
nômico-social Gouro. Não pretendemos construir sua teoria; muitas outras investi-
gações se farão necessárias antes que esta tarefa possa ser empreendida.
103
pressa o limitado desenvolvimento da força produtiva de trabalho.
Do ponto de vista qualitativo, por outra parte, deixando de lado a
terra, que na agricultura e na criação desempenha o papel de meio de
trabalho, os instrumentos de trabalho são essencialmente ou utilida·
des ou "máquinas manuais" simples no sentido que André Lévi·
Gourham dá a este termo 10. Sabe-se como Marx analisa o conceito de
instrumento de trabalho mecânico:
"Todo mecanismo desenvolvido se compõem de três partes es-
sencialmente diferentes: !)lot9r, transmissão e máquina de operação.
O motor dá o impulso a todo o mecanismo. A transmissão regula o
movimento, o distribui. muda sua forma, se necessário. de retangular
em rotatória e vice-versa. e o transmite à máquina ferramenta. As
duas primeiras partes do mecanismo só existem, com efeito, para co-
municar a esta última o movimento que lhe permite atuar sobre o ob·
jeto e modificar sua forma" 11.
Nesta combinação, o que. domina ..é o ~.QI1)J;nto dat.fan~~§_~_<?:
assim, nos diz Marx, passamos da utilidade à máquina quando a fun-
ção de transmissão é exercida pelo corpo humano ou por um disposi·
tivo material; com efeito, em um caso o "programa" de trabalho per·
manece inscrito no organismo, enquanto que no outro está realizado
em um objeto. Ora, entre os instrumentos de trabalho Gouro, alguns
- facões de mato, cutelos etc - se reduzem à Uparte aperante" e são
um simples prolongamento da mão; e outros - enxadas, machados,
etc. - estão providos de um mecanismo de transmissão, mas esse me·
canismo, a maioria das vezes baseado no principio da alavanca, se Ii-
mita a ampliar e concentrar a força, enquanto que a regulação e a
transformação do movimento continuam sendo cumpridas pelo oro
ganismo. Acrescentemos que, em razão de sua simplicidade, a maio·
ria destes instrumentos são largamente poli valentes - sua natureza
não predetermina senão numa fraca medida o uso que se faz deles.
Portanto, aqui o "cerne" efetivo do processo de trabalho é o traba·
lhador. Deduz·se desta análise que tanto do ponto de vista qualitati-
vo como da ponto de vista quantitativo, a força de trabalho é o ele-
mento dominante do proçessode.pr()g~(f.Ora, neste processo a
força de trabalho iriíervém seja no estado individual seja na forma de
"trabalhador coletivo"; e o trabalhador coletivo, como vimos, pode
104
ser organizado de diversas maneiras correspondendo a outras formas
de cooperação distintas, especificadas por sua vez - ao menos em
parte - pelos meios de trabalho utilizados. Dadas estas condições, as
formas de cooperação nos servirão como Indices para identificar o ou
os modos de produção urealizados" na formação econômico·social
Oouro.
2. AS FORMAS DE COOPERAÇÃO
2.1. A caça
12 Ver a este respeito Emmanuel Terray, L'Organizalion socia/e des Dida, essai sur un
vil/age Dido de la région Lakota. mimco .. Institut d'Ethno-Sociologic.Université
d' Abidjan, p. 82 e seguintes.
106
- Colheita.
Consideremos cada uma destas etapas como um processo sim-
ples.
D01>0nto de vista da divisão sexual do trabalho e da cooperação
entre os sexos, temos que observar, antes de tudo, que a totalidade
das atividades agrícolas supõe derrubada e queimada, que são traba-
lhos masculinos. Fazendo-se abstração deste estágio prévio, pode-
mos distinguir entre os processos complexos:
- processos masculinos, em que s6 intervêm homens: estão neste
caso os ciclos do café e do cacau - deixando de lado a ajuda prestada
pelas mulheres na colheita;
- processos femininos onde somente as mulheres intervêm: estão
neste caso, os ciclos do milho, do gombô, da mandioca, do taro, etc.;
- processos alternados, em que os homens intervêm em certas
etapas e as mulheres em outras: neste caso estão o ciclo do arroz, no
qual os homens constroem a cerca que rodeia a parcela, enquanto
compete às mulheres semear, arrancar as ervas daninhas e colher,
- processos mistos, nos quais os homens e as mulheres intervêm
juntos em todas as etapas: neste caso está o ciclo da banana;
- processos ao mesmo tempo mistos e alternados, nos quais cer-
tas etapas estão a cargo dos homens, outras a cargo das mulheres, en-
quanto" que outras, enfim. são realizadas em comum pelos hQmens e
pelas mulheres: no ciclo do inhame os homens formam os monticu-
los, e colocam as estacas, as mulheres arrancam as ervas daninhas e
colhem, uns e outros realizam em conjunto o plantio. Talvez se pense
que nossa análise é muito sutil. Sem nos estendermos mais acerca
deste ponto (o que não podemos fazer devido ao caráter quase exclu-
sivamente econômico dos materiais apresentados por Claude
Meillassoux) digamos, entretanto, que estas distinções e as propor-
ções que elas permitem estabelecer entre os processos inteiramente
femininos, aqueles em que os homens e as mulheres se revezam c, por
último, aqueles em que os homens e as mulheres colaboram direta-
mente - são passíveis, a nosso ver, de lançar alguma luz sobre o
problema das relações entre os sexos em uma formação econômico-
social "primitiva". Notemos, por último, que no pais Gouro os três
cultivos dominantes, o arroz, a banana e o inhame (pg. 106 e 113)-
são processos alternados e/ou mistos.
Vamos às formas de cooperação propriamente ditas. No essen-
cial, encontramo-nos aqui no domínio da cooperação simples: os
produtores reunidos executam ao mesmo tempo trabalhos análogos.
Mas a amplitude desta cooperação varia, entre os dois p610s, Os di-
107
versos processos simples que enumeramos acima pressupõem unida-
des de produção diferentes em tamanho e estrutura. Uns consistem
em grandes trabalhos - preparação de terreno, colheitas sazonais, -
que devem ser executados em tempo limitado; estes requerem uma
cooperação simples ampliada; os outros, mais longos - são principal-
mente trabalhos de cuidado e colheitas diárias; só requerem uma
cooperação simples. restrita.
2.3. A criação
Neste ramo, os principais meios de produção - a terra e o gado-
são ao mesmo tempo objeto e meio de trabalho: a terra desempenha
aqui o mesmo papel que na agricultura. Levando·se em conta o cará.
ter muito rudimentar das técnicas tradicionais de criação (pg. 102) o
gasto de trabalho é relativamente pouco. Uma parte deste gasto se
investe diretamente no processo de produção: é absorvido, funda-
mentalmente, por tarefas de simples vigilância. Por outro lado, o
processo de produção só é eficaz quando se realizam "as condições
materiais que, sem entrar diretamente em suas operações, são, entre.
tanto, indispensáveis e cuja ausência o tornaria defeituoso" '4; en.
quanto que em torno da aldeia se deixa um espaço sem cultivar para
permitir que o gado paste livremente. em torno dos "campos" e
sobre as pistas são construídas cercas para impedir a devastação das
culturas. Portanto, podemos considerar, neste caso, o processo de
109
trabalho como um processo complexo formado por dois processos
simples: um consiste no curso de um processo de produção natural, o
crescimento do gado; o outro consiste na disposição do espaço no
qual se desenvolve este processo natural; ambos se realizam indife-
rentemente seja sob a forma de trabalhos individuais, seja no quadro
da cooperação restrita. Em função da conquista colonial e de suas
conseqüêndas, a criação só tem atualmente uma pequena importân-
cia, o que sem dúvida explica a insuficiência de informações que dis-
pomos acerca dela.
2.6 O artesanato
N este ramo voltamos a encontrar as duas formas de cooperação
já encontradas na agricultura. A cestaria, o trabalho na madeira, a
forja, a tecelagem, são atividades masculinas. Claude Meillassoux es-
creve a propósito dos objetos que são o produto destas atividades:
110
"Sua fabricação não exige necessariamente cooperação, posto
que o mesmo artesão assegura as diferentes fases da execução do tra-
balho" (pg. 190).
Portanto, encontramo-nos aqui frente a trabalhos individuais,
cujos efeitos sociais, como veremos, assemelham-se aos da coopera-
ção restrita. A cooperação ampliada, em troca, intervém no domínio
da construção e da conservação das casas - trabalhos de terraplena-
gem, edificação dos muros e do telhado, coleta de palha, etc. (pgs.
175 a 178). O importante é a dominação da agricultura sobre o arte-
sanato: as formas de cooperação impostas pelo grau de desenvolvi-
mento das técnicas agrícolas são as mesmas que se utilitam no arte-
sanato. O artesanato não provoca a aparição de unidades de produ-
ção de novo tipo: as atividades deste ramo se realizam dentro dos li-
mites das unidades "engendradas" pela produção agrícola:
"Dentro do quadro tradicional, não existe o artesão especializa-
do, isto é, aquele que extrai a maior parte de seus rendimentos do
exercicio desta atividade. O artesão está integrado sempre em uma
célula social constituída em torno das atividades agrícolas: ele é sem-
pre e principalmente um camponês e acessoriamente um artesão. (pg.
189).
-
2.7. Enumeração das formas de cooperação
.
Encontramos, pois, na formação econômico-social Gouro duas
formas de cooperação, uma das quais resulta por sua vez na combi-
nação de duas sub formas:
I) A forma de cooperação característica da caça com rede que aca-
bamos de designar mediante o termo cf!OJ!f!!açâoJº"'pkxa, determi-
nada pela utilização de um instrumentoaetra6albo coletivo: a rede.
Ela implica numa divisão de trabalho entre caçadores e batedores -
papéis confiados, um aos jovens e o outro aos meninos e aos homens
de idade -, e portanto, um primeiro grau, muito embrionário ainda,
de especialização;
2) A forma de cooperação característica da agricultura que pode se
definir como uma cooperação simples no sentido marxista do termo.
Esta forma é a combinação de duàs sub-formas:
- a coope~ªçã(L~",pJ~ Q",pli{Jqa,praticada em grandes trabalhos
agrícolas: é encontrada igualmente em certas atividades de caça (a-
presamento de animais de grande porte) e de artesanato (construção
de casas);
- a C!!.QIl.CraçãoAmP/eS!eslrj/(J,
praticada nos trabalhos agrícolas de
manutenção. na coleta, na pesca c, às vezes, na criação;
111
3) A caça com fuzil e arco. o apresamento de pequenos animais. a.
fabricação dos objetos de uso corrente e. às vezes. a criação. sã0-ªÍi:
vi des individuai .
Assim po emos classificar os ramos e processos de produção
que enumeramos em função da forma de cooperação que põem em
práticjl. O quadro I indica esta classificação. •
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112
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u8
113
para reencontrar o caminho, demarcam ao mesmo tempo um domí-
nio" (pg. 253).
Agora, de todas as formas de caça, a caça com rede é a mais ,.fi-
caz e a mais importante. Claude Meillassoux insiste no papel da caça
como fator de dissociação dos grupos constituídos, mas é fato que no
país Gouro - como no país Dida - só se separam aqueles grupos sufi-
cientemente numerosos, capazes de prosseguir esta atividade tão
frutífera que é a caça com rede. Em conseqüência, esta aparece como
o cimento da unidade aldeã:
"Nenhuma das formas de cooperação vinculadas com outras
atividades elOonômicas,incluindo a agricultura, possui esta amplitu-
de. A caça coletiva com rede é uma atividade associada a toda a al-
deia e nunca com outra unidade menor. Contrihui para criar uma
coesão entre linhagens de origens constantemente afastada •... O de-
saparecimento da caça com rede privou, certamente, a sociedade
Gouro de um fator de integração social e de equilíbrio, que ainda
não foi substituído por nenhuma outra atividade". (pg. 89).
Outro fator que exerce considerável influência sobre a vida e o
destino da aldtia: a guerra. Pode parecer espantoso que evoquemos a
guerra no curso de uma investigação que tem como objeto as rela-
çôes de produção. De fato, à primeira vista, a guerra não poderia ser
considerada como uma atividade de ordem econômica e, para Clau-
de Meillassoux, suas funções econômicas são muito reduzidas quan-
do não inexistentes (pgs.242/3). Efetivamente, podemos concordar
que, a rigor, a guerra, não é um trabalho produtivo. Mas em um regi-
me no qual "o homem é a única força 'motriz'''e onde "o controle da
economia e dos bens que dela derivam se apóia necessariamente
sobre o produtor" (pg.90), parece-nos diflcil negar as incidêndas
econômicas da guerra. No caso do modo de produção antigo onde a
terra - como objeto e meio de trabalho - ocupa um lugar capital e
constitue o motivo da grande maioria das guerras, Marx admite que
estas desempenham um papel econômico.
"Por maiores que sejam os obstáculos que possam se opor a
quem queira trabalhá-la e apoderar-se dela, a terra em si mesma
nada opõe ao indivíduo vivo quando se trata de servi-lo enquanto
natureza inorgânica, enquanto local de trabalho, utilidade, matéria
de trabalho e alimento. As dificuldades que encontra a comunidade
só podem provir de outras comunidades que ocupam o solo e pertur-
bam a comunidade em sua ocupaião. Portanto, a guerra é a grande
tarefa coletiva, o grande trabalho comum exigido quer seja para apo-
114
derar-se das condições materiais de existência, quer seja para defen-
der e perpetuar a ocupação" 1~.
No país Gouro, uma aldeia ou uma tribo empreendem uma
gucrra quer seja visando restaurar um equilíbrio demográfico amea-
çado por um assassinato ou rapto de uma mulher, quer seja visando
aumentar o potencial de força de trabalho disponível mediante a
aquisição de cativos: em ambos os casos se trata de conservar ou de
acrescer a força de trabalho que é, como vimos, o fator dominante do
processo de produção; trata-se, em outras palavras, de assegurar a
reprodução, simples ou ampliada, deste fator dominante. Portanto,
com muita lógica, "as leis de guerra" proíbem a morte das mulheres.
Podemos reconhecer, pois, aqui também, um papel econômico da
guerra.
Ora, o conjunto das relações sociais implicadas na guerra é mui-
to semelhante ao conjunto das relações sociais implicadas na caça
com rede l~: tarnbém a guerra pressupõe uma divisão e uma coorde-
nação das tarefas, portanto, uma cooperação complexa. Desta ma-
neira, na escala de tribo, o primeiro conjunto reproduz o segundo até
na terminologia utilizada. As aldeias de tribo se distribuem em dois
grupos denominados a maioria das vezes de bei' e bebu; ao doplazà
que dirige a caça corresponde o gulizà que comanda a guerra. Em re-
sumo, como diz Claude Meillassoux:
"lO a organização da guerra que determina a estrutura, por seu
lado elementar, da tribo, sobre o modelo da qual impõe à aldeia a
caça com rede e segundo variantes parecidas". (pg.232)
Desta forma as relações de produção e as relações superestrutu-
rais que cor respondem à cooperação complexa são urealizadas" no
que nós poderemos chamar de sistema Iribol-aldeão. As regras que
presidem a repartição dos meios de produção e a distribuição do pro-
17 louis TauJ;icr. Nigres Gouro tI Gagou. Paris, Geuthner, 1924; Ariane Deluz,
"Villagc ct Lignages chez lea Gouro de COted'lvoire", Cahier! ãEtudes A/,ica;nes,
Volume V, n' 19. P8. 388/452.
116
participantes através da instituição da repartição. Portanto, ao con-
trário do que se observa na sociedade agricola, não há redistribuição,
isto é, centralização do produto e repartiçãe diferentes no tempo,
mas, ainda uma vez, um fato momentâneo. "
Vimos aqui, por uma parte, como as relações de distribuição re-
fletem as relações de produção das quais são o inverso; mas também
vimos através da diferença entre a savana e a floresta, dois sistemas
de relações de produção reagindo um sobre o outro. Voltaremos a is-
to. Por último, a repartição d" botim obedece a principios análogos
(pgs. 236/9). E, quanto ao consumo, ele ocorre dentro dos quadros
dos grupos de comida que analisaremos mais adiante.
Dadas tais relações de produção, as estruturas de direção e de
controle são pouco desenvolvid~s. Como vimos, o iniciador da caça
dirige a expedição durante a qual é obedecido sem discussão e é ligei-
ramente favorecido na distribuiçito das presas. Mas seu poder é tem-
porário e qualquer homem da aldeia pO,deser um iniciador. Em con-
seqüência, estas estruturas de direção ,.de controle não estão "repre-
sentadas" no plano político por relações de autoridade institucionali-
zadas e permanentes. Por certo, como escreve Claude Meillassoux:
"No plano social, as caçadas coletivas eram uma oportunidade,
para quem tomava a iniciativa, de distinguir-se e de adquirir tempo-
rariamente uma posição de autoridade, que, por repetição, podia ser
confirmada". (pg.99).
Entretanto, nenhum privilégio formal vem sancionar esta posi-
ção de autoridade. Quanto ao chefe de guerra, este é escolhido, às ve-
zes, por sua valentia; em outros locais é escolhido entre os homens
eminentes; mas uma vez terminadas as operações militares, seu papel
de chefe de guerra só lhe dá crédito moral.
Portanto, podemos concluir a respeito do caráter profundamen-
te igualitário das relações polfticas "realizadas" no sistema tribal-
aldeão.
117
produção engajada na cooperação simples restrita é a ~quipe d~ tra-
balho. Esta se encontra "realizada" em duas formas diferentes. Onde
o marco de linhagem é ainda sólido. como em Bazré {pgs. I38/40), a
equipe de trabalho se constitui ao seio dos grupos familiares e sua
composição pode ser descrita em termos de parentesco; coincide com
o segmento de linhagem. e a distribuição dos órfãos e dos isolados
permite corrigir os desequilibrios mais graves. Claude Meillassoux
escreve a respeito desta repartição:
"Uma razão funcional áessa repartição é... a p~eocupação por
atribuir a cada um (aos mais velhos - E.T.) uma quantidade suficien·
te de homens para constituir uma equipe de trabalho eficaz"
(pg.140).
Em troca. quando o marco de linhagens é deslocado como em
Duonetla (pg.159). a equipe se "realiza" por meio de uma instituição
especifica. o klala. a qual poderiam os denominar: Klala por pares.
Neste caso. nos diz Claude Meillassoux:
"Cada equipe estL .• freqllentemente. composta por dois ho-
mens. A pertinência se faz por afinidade. Estes pequenos grupos fun-
cionam com maior regularidade que os anteriores" por ocasião das
tarefas rotineiras e tanto nos campos como nas plantações. Tampou-
co se trata de um consenso ocasional, mas sim de um acordo que al~
cança toda a duração de um ciclo agrlcola" {pg.182/3).·.
Reencontramos aqui os traços caracteristicos das unidades de
produção fundadas sobre a cooperação simples restrita. limitação
dos efetivos e permanência;
A unidade de produção envolvida na cooperação simples am-
pliada é a comunidade de produção. Ela se "realiza" sob duas formas.
segundo o quadro de linhagem esteja ainda sólido ou já deslocado.
No primeiro caso ele resulta da reunião de várias equipes de traba·
lho. reunião que se opera segundo as clivagens traçadas pela genealo-
gia e que podem ser analisadas em termos de parentesco; ela coincide
então com a linhagem; e se esta é igualmente unidade de consumo e
de residência. a comunidade de pradução não possui um nome genéri-
co próprio e o termo dogi designa esta unidade multifuncional. Mas
quando a comunidade de produção não coincide com a unidade de
consumo - tal é o caso da IinhagenlDiazramo em Bazré - se denomi-
na nianawuo (pg.128). A cooperação ampliada dentro do quadro da
linhagem é o bo:
19 Trata-e aqui dos klala amlJliado.t dOI quais falaremos mais adiante
118
"O goniwuoza (o mais velho da linhagem) pode, a princípio, cha-
mar os membros de seu goniwuo (linhagem) para trabalhar todos jun-
tos em seus campos, arrancando os arbustos ou para empreender OU~
tros grandes trabalhos. Isto freqUentemente ocorre no caso de socie-
dades mais integradas. mas a instituição se confunde então com o
funcionamento normal da comunidade, posto que os cultivos do go-
niwuoza são, a princípio, de todos (pg.I77).
O 60 pode estender-se aos vizinhos e aliados, mas nem por isso
muda de naturez.a, mas sim conserva a linhagem como núcleo: o que
Claude Meillassoux denomina o bo comunal parece ser uma mera ex-
tensão do 60 familiar.
Se, pelo contrário, o quadro de linhagens se encontra distendi-
do, é novamente no interior da instituição do klala que se "realiza" a
comunidade de produção. Ao analisar a segmentação da aldeia de
Duonena em comunidades de produção, Claude Meillassoux assinala
a existência de klalas numerosos, cujos membros podem pertencer a
linhagens diferentes e alguns dos quais ao menos resultam da fusão-
ocasional e temporária - de vários klalas por pares (pgs.182/83).
Em suas diferentes formas - klala por pares, klala ampliado - o
klala aparece por certo como uma instituição de substituição que se
expande onde o quadro de linhagens foi relaxado, geralmente por ra-
zões de ordem histórica, cisões e migrações. efeitos do comércio e da
guerra:
"Esta instituição (o klala - E.T.) parece bastante difundida no
país Oouro. Pelo menos é conhecida com o mesmo nome em muitas
aldeias e funciona sobretudo onde a organiz.ação de linhagens é me-
nos compacta" (pg.181).
O grupo klala está formado, às vezes, por jovens que não pos-
suem nenhuma terra própria e trab.vham para os mais velhos: neste
caso substitui pura e simplesmente a cooperação de linhagens. Às ve-
zes reÚne os adultos que já são responsáveis por uma ou muitas par-
celas e cultivam-nas sucessivamente. O que neste caso caracteriza o
klala e o opõe à cooperação de linhagens, é a sua estrutura igualitá-
ria: o grupo klala está governado por um princípio de estrita recipro-
cidade e como tal não parece ter chefe nem responsável instituciona-
lizado. Mas a substituição do klala pela cooperação de linhagens não
modifica nem a distribuição de produto - o klala não se faz acompa-
nhar nem de festividades nem de presentes - nem a apropriação dos
meios de produção, pois continuam ambos se efetuando dentro do
quadro da linhagem. Neste sentido, o klala continua dominado pela
organização de linhagens. Em todo caso, se nos ativermos à socieda-
119
de tradicional tal como se conservou na zona da floresta, ao abrigo
das intromissões estrangeiras, parece, então, que as relações de pro-
dução que correspondem à cooperação simples estão "realizadas" no
que podemos chamar de O sistema de linhagens.
Como vimos, a cooperação simples está composta por duas sub-
formas, a cooperação restrita e a cooperação ampliada. Qual destas é
a sub-forma dominante? " o estudo da repartição dos meios de pro-
dução e da distribuição do produto que nos permite descobrir. Dois
tipos de meios de produção são utilizados aqui: os instrumentos e a
terra. Os instrumentos de madeira: morteiros, pilões e pirogas .
••... embora fabricados a pedido de um individuo, não consti·
tuem objeto de apropriação individual. São, melhor dizendo, bens de
uso coletivo que se emprestam e pedem-se emprestados livremente"
(pg.191).
Quanto aos instrumentos de ferro, escreve Claude Meillassoux:
"Embora de uso corrente os instrumentos de ferro não são
como os objetos precedentes, bàts de uso coletivo, mas sim de posse
exclusiva dos mais velhos. Assim é que o número de terçados possul-
dos pelo chefe da comunidade corresponde ao número de homens
trabalhando sob sua autoridade assim como o número de enxadas,
ao de mulheres" (pg.193).
Vê-se assim que os instrumentos de trabalho se encontram à dis-
posição dos indivíduos ou das equipes de trabalho, não são em ne-
nhum caso propriedade destes. O mesmo acontece no que concerne à
terra; cada parcela é objeto de uma série de direitos superpostos: di-
reito da tribo frente a outras tribos; direito da aldeia frente a outras
aldeias da tribo, direito de linhagem frente a outras linhagens da al-
deia. Mas estes direitos têm um caráter negativo: eles prolbem o uso
da parcela às comunidades estrangeiras. De fato são a "representa-
ção" jurídico-política da repartição deste meio de produção que é a
terra. É unicamente ao nível da linhagem que encontramos também
os direitos positivos que são a própria repartição: é a este nlvel que se
opera a atribuição das parcelas e a direção da exploração. A linha-
gem, representada pelo seu mais velho, é então o verdadeiro deposi-
tário da propriedade da terra.
"Quando os caçadores descobriam terras propicias para O culti-
VO, assinalavam-nas com marcas nas árvores e avisavam ao mais ve-
lho de sua comunidade. Este organizava a exploração dessas terras
repartindo o trabalho entre seus dependentes ..., a faculdade de culti-
var um campo distinto estava relacionada com a posição social que
ocupava cada um deles" (pg.259).
120
Em poucas palavras, a linhagem "realização" da comunidade de
produção que corresponde à cooperação ampliada, é o lugar onde se
leva a cabo a repartição dos principais meios de produção.
A análise das relações de distribuição confirma esta indicação.
No que conceme aos produtos alimentares, a unidade de consumo
corresponde, não às equipes de trabalho baseadas na cooperação res-
trita, mas á comunidade de produção fundada sobre a cooperação
ampliada.
"(A colheita) será depositada nos celeiros da comunidade e co-
locada sob o controle direto ou indireto do mais velho. O segundo ir-
mão ou a primeira esposa se encarregarão freqüentemente de sua
gestão. O produto será utilizado, em primeiro lugar, para alimentar
os membros da comunidade, ocasionalmente a um hóspede em trân-
sito, a alguns parentes da aldeia vizinha ou aos participantes de um
bo. Ás vezes uma fração geralmente pequena será trocada ou vendi-
da. O decano da comunidade é um pólo do sistema de circulação. A
produção do grupo se dirige até ele, depois retorna, em sua maior
parte, senão em sua totalidade, até aos membros da comunidade".
(pg. 188)
A principal alimentação diária, a da noite, reúne a princfpio to-
dos os membros do dogi. Estes se dividem então em grupos baseados
na idade e no sexo, que não se superpõem às equipes de trabalho.
"Por este mecanismo bastante intrincado, os produtos alimenta-
res são redistribuídos ao conjunto dos membros da comunidade e
desta maneira a alimentação coletiva acaba por ser o ponto de chega-
da do processo de cooperação agrícola: o trabalho indistinto de cada
um volta a se encontrar em um produto comum. Todos misturaram
seu trabalho e todos participam no produto do trabalho de todos os
demais". (pgs. 124/25).
Estes princípios regulam igualmente a distribuição nos ramos
dominados pela agricultura. Os produtos preciosos da caça com ar-
madilha e da coleta são entregues ao mais velho.
"Os marfins provenientes da caça, da armadilha de elefantes ou
da descoberta de esqueletos, cabem, em primeira instância, ao caça·
dor, isto é, a quem tomou a iniciativa e a direção da expedição. Se o
caçador, como sucede freqüentemente, depende de um mais velho, é
este último quem receberá os marfins. São, freqüentemente também,
os caçadores que descobrem as árvores da cola no curso de seus iti-
nerários. O beneficiário do descobrimento é O mais velho descobri-
dor. A colheita empreendida pelas mulheres e meninos da comunida-
de corresponde-Ihe integralmente" (pg.189).
121
o mesmo sucede no caso do artesanato:
"O artesanato é sempre integrado numa célula social constitulda
em torno das atividades agrlcolas ... Portanto, o produto de seu tra-
balho circulará em geral, ao seio de sua comunidade, de acordo com
o esquen a descrito mais acima: os objetos são fabricados em benefi-
cio do mais antigo ou da comunidade inteira e o artesão não recebe
outra contra partida por seu trabalho senão o alimento que comparte
com seus comensais como se contribuísse para os trabalhos agríco-
las" (pgs. 189/190).
Teremos que examinar mais adiante a signilicação exata do pa-
pel que desempenha o mais velho tanto na apropriação dos meios de
produção como na distribuição do produto. O que nos interessa aqui
é o fato de que este mais velho ocupa em ambos os casos uma posi-
ção privilegiada na qualidade de representante da linhagem. Resu-
mindo: a linhagem realiza a comunidade de produção baseada na coo-
peração ampliada, enquanto que o segmento de linhagem ou a faml-
lia extensa realizam a equipe de trabalho baseada na coOperação res-
trita. O exame das relações de propriedade ou de distribuição mostra
então claramente que, na constituição das relações sociais de produ-
ção que correspondem à cooperação simples, a comunidade de produ-
ção predomir.a sobre a equipe de trabalho, e a cooperação ampliada
sobre a cooperação restrita.
Finalmente, ternos que descrever as estruturas de direção e con-
trole, implicadas nestas relações de produção; isto é, abordar o
problema de posição dos "mais velhos". Este problema é duplo: an-
tes dc tudo é necessário definir o papel desempenhado pelo mais ve-
lho e logo é preciso indagar porque esse papel é representado em ge-
rai por homeens de idade avançada. No que se refere ao primeiro
ponto. vimos que a comunidade de produção está dividida em equi-
pes de trabalho. Por conseguinte os meios de produção são objeto de
uma dupJa apropriação: a comunidade de produção detém sua pro-
priedade. e a equipe de trabalho seu uso. Portanto, a comunidade de
produção tem que repartí-Ios entre equipes de trabalho que a inte-
gram, o que supõe a existência em seu seio de um posto ou de uma
função de operador da repartição. e. a ocupação deste posto, o exercí-
cio desta função, que define a personalidade social do mais· velho.
Por conseguinte, o mais velho é também, freqüentemente - mas nem
sempre, como o atesta a existência do klala. - o organizador da coo-
peração.
Porque os "mais velhos" são recrutados entre os homens de ida-
de madura ou avançada? Como o próprio Claude Meillassoux nos
122
convida a fazê-lo (pg. 188), recorremos aqui ao artigo que dedicou às
economias tradicionais de auto-subsistência nos Cahiers d'Etudes
Africaines '" : anterior à publicação da Anthropologie économique des
Couro. este artigo é posterior às investigações realizadas sobre o ter-
reno pelo autor e se inspira, por certo, nestas investigações. Mostra
que nas sociedades segmentá rias, onde o grau de desenvolvimento
das forças produtivas do trabalho é ainda pequeno, a supremacia dos
mais velhos não pode apoiar-se diretamente:
- nem sobre a compulsão física: os mais velhos são os menos fortes,
tanto numérica quanto fisicamente;
- nem sobre o parentesco no sentido biológico do termo, que por si
só é incapaz de fundamentar uma outra dominação distinta da dos
pais sobre os filhos de pouca idade;
- nem sobre o controle da terra: além do fato desta existir em abun-
dància, os mais velhos, que necessitam dos jovens para proteger as
terras do grupo contra os estrangeiros, não dispõem de nenhuma for-
ça para opor-se às reivindicações dos jovens sobre essas mesmas ter-
ras; - nem, enfim, sobre o controle dos instrumentos de produção:
os instrumentos são individuais; eles são f~itos, seja de uma matéria
acessível a todos, seja de uma matéria rara ou ilJ1portada, da qual os
mais velhos asseguram seu monopólio, graças ri sua situação privile-
giada; mas neste caso, é o privilégio que explica o monopólio e não o
inverso.
Em outras palavras, o controle da força fisica, as prerrogativas
vinculadas à paternidade social, o controle da terra e dos instrumen-
tos de produção podem converter-se em atributos da supremacia,
mas não podem ser nem sua origem nem seu fundamento. Estes atri-
butos podem ser conquistados a partir de uma posição dominante,
porém não podem explicar nem a existência desta posição dominante
nem a identidade de quem a ocupa. Entre os diferentes elementos
cuja reunião constitui o conjunto das condições da produção. há um
só cujo controle pertence imediatamente, e em certo sentido, "natu-
ralmente", aos mais velhos: trata-se do saber, da soma de conheci-
mentos técnicos necessários para a produção. Como escreve muito
bem Claude Meillassoux:
123
"A aquisição dos conhecimentos técnicos prQporciona a quem
os possui uma autoridade real sobre o profano porque deles depende
a perpetuação do grupo ... Ora, a aquisição do saber se realiza com o
tempo e coincide com a idade fisiológica, senão de maneira absoluta,
ao menos de maneira suficientemente significativa para apoiar a rela-
ção fundamental, do mais velho ao mais novo. Por conseguinte, a
aquisição e a detenção do saber produziram um efeito de reforçar a
autoridade dos mais velhos sobre os mais novos". 21
No plano da produção, unicamente a apropriação do saber por
parte dos mais velhos permite compreender então sua supremacia.
Mas ela explica também os limites estreitos dessa supremacia. Com
efeito:
"A soma dos conhecimentos técnicos vitais em tal sociedade é li.
mitada e acessível num tempo relativamente curto, o que leva ao ris-
co de colocar em pé de igualdade a todos os homens a partir de uma
certa idade" 22 •
Claude Meillassoux mostra como, em certas sociedades, os mais
velhos tentam reforçar artificialmente o controle que exercem sobre
o saber, estendendo-o mais além dos conhecimentos vitais e colocan·
do em seus caminhos de acesso diversas barreiras institucionais, tais
como a iniciação por exemplo. Mas no país Gouro parece que estas
barreiras estão ausentes. Digamos de qualquer forma que, em nossa
opinião, estes procedimentos permitem certamente que os mais ve-
lhos consolidem o poder que devem a este controle, mas não lhes per·
mitem estendê-lo. Quanto ao que podemos denominar o "saber so-
cial" - este intervém não diretamente na produção 1 mas sim na re-
produção da estrutura social, e é estudando a reprodução que pode-
mos apreciar seus efeitos. Em sIntese, a relativa simplicidade do sa-
ber técnico o converte em elemento secundário no conjunto das con-
dições da produção. A apropriação deste elemento secundário pelos
mais velhos não lhes confere, então, mais do que um domínio limita-
do sobre o conjunto do processo de reprodução.
Por conseguinte, no plano das relações polfticas de autoridade o
poder do mais velho aparece essencialmente como um poder de fun-
ção. A autoridade do mais velho sobre os jovens solteiros ou casados
sem filhos é certamente pesada, mas ela se relaxa à medida em que o
21 Idem, p. 47.
22 Idem, p. 47.
124
maIs Jovem se torna mais velho e reforça sua própria autoridade
sobre seus descendentes e sobre seus dependentes. Este processo de
emancipação compreende muitas' fases: primeiro, o mais jovem rece-
be a responsabilidade de uma equipe de trabalho, depois de uma par-
cela, e, por último a livre disposição de uma fração de produto; a
passagem de uma etapa a outra está vinculada à elevação do status
social do mais novo e esta elevação só depende em parie da boa von-
tade do mais velho; certamente que este pode atrasar o momento em
que entregará terras e mulheres ao mais jovem - e freiar, pois, o rit-
mo do processo de emancipação, mas fica dificil, para ele, interrom-
pê-Ia por completo, uma' vez que o mais jovem dispõe neste caso de
muitos recursos.
"FreqUentemente a promoção social é acompanhada por um
conOito entre o mais velho e o mais novo, conOito que os anciãos da
aldeia são chamados a arbitrar. r;, evidente que os interesses dos mais
velhos são solidários e que, em quase todos os casos, os wibilizà "
dão razão a seus pares. O único que resta então ao dependente é in-
clinar-se, exilar-se ou colocar o mais velho ante o fato consumado,
negando-se a participar da comida coletiva - o que sempre é sinal de
desentendiment" - a trabalhar nas terras da comunidade e cultivan-
do seus próprios campos, O mais jovem não tomará uma iniciativa
tào grave a menos que esteja certo de encontrar um apoio. e o que
mais ocorre é que o busque em sua famllia materna" (pg. 171, nota).
Assim, a querela entre Tro e seu filho Tiese, que Claude Meillas-
soux cIta como exemplo, acaba exatamente com a capitulação de
Tro:
"Durante um ano Tiese se recusou a trabalhar com seu pai, ins-
talou-se em um acampamento no bosque separado da aldeia e roçou
por conta própria nas terras da linhagem. Tro vacilou em intervir por
medo de que Tiese se refugiasse na famllia de sua mãe. Finalmente,
ao fim de um ano, conta-se que Tro perdoou seu filho" (pg. 171, no-
ta).
Da mesma forma, no que concerne á repartição dos viveres, o
J.lIaisvelho é o guardião das reservas da comunidade e sob sua autori.
dade se realiza a redistribuição dessas reservas; mas, para retomar o
texto já citado:
125
"A produção do grupo se dirige até o (mais velho) e depois re-
toma na maior parte, senão em sua totalidade, para os membros da
comunidade' (pg, 188).
Em resumo: no ponto em que chegamos, parece que os mais ve-
lhos só muito dificilmente podem transformar seu poder de função
em poder de exploração. Veremos se o papel que desempenham na
reprodução da estrutura social global - e em particular na repartição
das mulheres - lhes abre novas possibilidades neste sentido.
3.4. A Escravidão
Nosso estudo das relações sociais de produção não estaria com-
pleto se nada disséssemos acerca das relações de escravidão. Claude
Meillassoux as descreve do seguinte modo:
"Tradicionalmente os Gouro praticavam uma forma de escravi-
dão doméstica que afetava no máximo alguns poucos indivíduos ...
Os escravos domésticos eram comandados por seus amos ou pelas es-
posas destes e se destinavam aos trabalhos do campo, à construção
de casas, etc. Os mais hábeis e os que detinham a confiança de seu
amo empreendiam tarefas mais nobres: teciam, pescavam ou caça-
vam elefantes para ele. Embora submetidos à autoridade absoluta do
amo, que tinha direito de vida e de morte sobre eles e que podia re-
vendê-los, os escravos domésticos estavam associados ao parentesco:
compartilhavam a comida da comunidade e comiam com seus amos;
herdavam inclusive deste quando este não tinha sucessor. Casavam-
se, conforme as regras exogãmicas do grupo ao qual ele pertencia,
com mulheres de outras linhagens, geralmente outras escravas pelas
quais se dava um dote, ou com mulheres livres quando era conve-
niente para os amos um dote mais considerável. Os filhos dos escra-
vos eram adotados pelo decano da comunidade e com as p;erações, a
distinção de status se diluia até desaparecer" (pgs. 203/4).
Como se vê, os cativos são jovens cuja sujeição é mais estrita e
cuja emancipação é mais ampla. Por conseguinte, as relações de cati-
128
•
veiro não constituem um sistema autônomo: «!~Jãointegrados no seio
do sistema de linhagens que desta maneira se baseia sobre um duplo
fundamento: o parentesco biológico e o cativeiro.
4. MODOS DE PRODUÇÃO
24 A respeito deste tema veja-se Karl Polanyi. lhe Economy as Instituted Process. em
Karl Polanyi. Conrad Arensbcrg, Harry W. Pearson (ed) Trade and má,bt ill lhe
Early Empire, The Free Press Glcncoc (111), pg. 2.50.
129
QUADRO 11
A FORMAÇAo EcoNOi\.nCO.SOCIAL GOURO
130
5. O ESTATUTO E O PAPEL
DAS RELAÇ(JES DE PARENTESCO
132
res desta e a natureza dos outros setores é muito variável: aqui é a
produção. em outra parte o consumo, em outra os intercâmbios ma·
trimoniais, etc. Destarte, para atribuir aos estudos do parestesco um
valor estratégico decisivo para o conhecimento das sociedades primi-
tivas, é necessário entender por "parentesco" algo mais que a mera
conjunção da terminologia e das atitudes, e considerar os sistemas de
parentesco tanto em seu aspecto funcional como em seu aspecto for-
mal: neste caso, porém, a unidade do objeto "parentesco" não pode
ser considerada como algo dado, e sim deve ser demonstrada.
As indicações que nos proporciona Claude Meillassoux condu-
zem-nos numa direção muito diferente. Cioso de conservar para a
base econômica seu estatuto de instância determinante, ele demons-
tra de maneira magistral de que modo, na formação econômico-
social Gouro, o sistema de linhagem é o resultado de uma transfor-
mação das relações de parentesco genealógicas, transformação orien-
tada e imposta pelas exigências da produção:
"A comunidade agricola se forma sob o modelo de linhagem ou
de segmento de linhagem. As relações genealógicas sâo o terreno
sobre o qual se edificam as relações de produção, terreno continua-
mente modificado e continuamente renovado. As relações de paren-
tesco que se nos oferecem são o produto desta alteração ... A vida e a
morte atuam como perturbadores e tendem a decompor as famílias
naturais ... Os imperativos de ordem econômica encontram-se entre
os que contribuem para a reconstituição de novas células cujos
membros estarão vinculados entre si por relações de produção e de
consumo. A família biológica, incapaz de permanecer dentro de seus
quadros genealógicos estritos, é deslocada assim por famílias funcio-
nais cujos membros estão associados através de obrigações econômi-
cas, mais que por relações de consangüinidade. Em semelhante dinâ-
mica, faz-se necessário que os vinculos de parentesco sejam suficien-
temente flexíveis para adaptar-se a estes deslizamentos: os termos do
parentesco c1assificatório prevêem as relações possiveis de se estabe-
lecer entre individuos no caso de morte do parente que os vincula en-
tre si" (pgs. 168/9).
Este texto capital lança luz sobre o dificíl problema das relações
entre parentesco e relações de produção. O ciclo de nascimentos e de
mortes, nos diz Claude Meillassoux, constitui, destrói e reconstitui
incessantemente as famílias "naturais", mas estas famílias naturais
são constantemente reorganizadas e modificadas de tal maneira que
se transformam em unidades de produção eficazes. As relações de
parentesco possuem, pois, uma base "genealógica", mas esta base é
133
modificada uma primeira vez, de acordo com as exigências da produ-
ção, de maneira que as relações de produção possam ser nela realiza-
das. A modificação consiste num processo de seleção no decorrer do
qual certas relações genealógicas são retidas e reconhecidas como re·
lações sociais. enquanto que outras são "esquecidas" ou socialmente
assimiladas às precedentes. Organizada desta maneira, a base genea-
lógica pode ser modificada de novo, de acordo com os mesmos pro-
cedimentos, se ela deve acolher também as relações jurfdico !politicas
e ideológicas ( o que depende da ausência ou presença de fatores tais
como a divisão social do trabalho, a separação da cidade e do cam-
po, os antagonismos de classe, o Estado, isto é, em última instância,
do grau de desenvolvimento da base econõmica). Com efeito, tam-
bém a instãncia jurídico-politica e a instância ideológica possuem
suas próprias exigências que não concordam necessariamente com as
de produção e com o embasamento genealógico do conjunto. Nas so-
ciedades segmentárias, onde a estrutura de linhagens "conduz" todas
ou parte das relações sociais, as relações de parentesco ureais", tais
como as registra o etnólogo, são o resultado de um compromisso en-
tre esses diferentes conjuntos de exigências.
Ao tomar este caminho, Claude Meillassoux evita duas tenta-
ções simétricas às quais muitos investigadores marxistas tem sucum·
bido. Para uns, as relações de parentesco seriam de um certo modo
"criadas" ou "geradas" pelas relações de produção; para outros,
constituir-se-iam de maneira independente e lhes seriam confiadas do
exterior e por acréscimo certas funções econõmicas, jurídicas, pollti-
cas ou religiosas, cujo exerelcio não as modificariam em nada. Ora,
por um lado, seria absurdo tentar deduzir o sistema de parentesco
Murngin unicamente da base econômica desta sociedade. Por outro
lado, não basta dizer que as relações de produção "funcionam como
relações de produção, assim como funcionam como relações politi:
cas, religiosas, etc. e que "o parentesco, é pois, neste caso ao mesmo
91
136
em efeito a distinguir duas modalidades de realização de um modo de
produção em uma formação econômico-social. Certamente, tanto as
relações de parentesco como as de classe são o resultado do jogo
combinado das instâncias do modo de produção, mas, enquanto a
análise deste jogo é suficiente para dar conta das relações de classe,
deixa em troca um resíduo no caso das relações de parentesco. Nas
formações econõmico-sociais dominadas pelo modo de produção ca-
pitalista, a ação das instâncias produz por si só, as relações de classe;
aqui, as relações de parentesco são o efeito da ação das instâncias
sobre uma matéria ou melhor, sobre um elemento irredutivel a esta
ação. A realizaçâo do modo de produção na formação econõmico-
social é então direta em um caso e indireta no outro. f: evidentemente
na estrutura dos modos de produção considerados onde há que se
buscar as razões desta diferença. Queríamos propor aqui algumas hi-
póteses que poderiam contribuir para a solução deste problema. Po-
demos, em princípio, nos perguntar qual é a extensão exata da oposi-
ção que acabamos de trazer entre a realização direta e a realização in-
direla'? A realização direta é a regra ou a exceção? O exame das for-
mações econômico-sociais providas de uma estrutura de classes per-
mite-nos fazer uma primeira observação a este respeito. Sabe-se que,
para Marx, as classes só aparecem "em estado puro" quando o modo
de produção capitalista estabelece sua hegemonia. Quando outro
modo de produção - escravista ou feudal, por exemplo - é dominan-
te, as classes estão presentes em forma de pastas, ordens ou de condi-
ções. Estamos, portanto, fortemente tentados a reencontrar aqui a
posição evocada acima: enquanto que em um caso as classes estariam
diretamente realizadas, no outro estariam realizadas em um uclc_
mento" cuja natureza caberia precisar. Bem entendido, extensas in-
vestigações seriam necessárias para verificar semelhante proposição.
Se a considerarmos provisoriamente, nosso problema se precisa:
com efeito, a realização direta aparece então como um traço próprio
das formações econômico-social dominadas pelo modo de produção
capitalista e, portanto, tem que ser explicada por referência às outras
particularidades desse modo de produção.
De fato. se as classes estão presentes "em estado puro" nas forma-
ções econômico-sociais dominadas pelo modo de produção capitalis-
ta, isto se explica, segundo acreditamos, pelo fato de que nesse modo
de produção a base econômica não é só determinante, como nos ou-
tros modos de produção; não só decide o papel que lhe corresponde
em cada sistema da produção das formações sociais concretas; ela é
também dominante, desempenha por si mesma o principal papel nes-
137
5a produção. A produção mercantil se torna capitalista quando a
própria força de trabalho se torna mercadoria. Conseqüentemente,
as relações mercantis já não governam unicamente a circulação dos
produtos entre as unidades de produção, mas penetram também no
interior dessas unidades. E. comprando aos trabalhadores sua força
de trabalho que o capitalista pode constituir sob sua direção uma
unidade de produção; é vendendo ao capitalista sua força de traba-
lho que o trabalhador pode, por um lado, ter acesso aos meios de
produção e converter-se efetivamente em um produtor, e por outro
lado, obter os meios necessários para sua subsistência e a de sua
familia. Esta transação entre capitalistas e trabalhadores condiciona,
portanto, a existência mesma da unidade de produção porque unica·
mente ela permite reunir os diversos fatores cuja intervenção forma o
processo de trabalho. Dominando de agora em diante tanto a esfera
da produção como a da circulação, as relações mercantis se conver·
tem no vínculo social fundamental:
"O pressuposto elementar da sociedade burguesa é que o traba-
lho imediato produz o valor de troca, isto é, o dinheiro e também que
O dinheiro compra diretamente o trabalho, que o próprio trabalha-
dor vende na troca: trabalho assalariado por uma parte, capital por
outra, tais são as formas que reveste o valor de troca desenvolvido e
sua encarnação, o dinheiro. ConseqUentemente-, o dinheiro é direta-
mente a comunidade real de todos os indivíduos, posto que é sua
própria substância, assim como seu produto comum" l(l
138
converter-se no principio imediato da produção dos grupos sociais
concretos se o econômico é. a instância dominante do modo de pro-
dução; enquanto as relações de produção não são exclusivamente de
oràem econômica, ela não pode por si só dar conta da identidade
desses grupos sociais, não pode servir diretamente como base para
sua diferenciação.
O advento da produção capitalista pressupõe por um lado a se-
paração do trabalhador dos meios de produção e, por outro lado, a
existência do trabalhador livre. O que caracteriza, pelo contrário, os
modos de produção que precedem a produção capitalista é a presen-
ça entre os produtores, os meios de produção e, conforme o caso, os
não-produtores, de vínculos extra-econômicos, que não só são a re-
presentação politica e ideológica das relações de produção, mas que
entram na própria constituição dessas relações. Esta presença é a que
permite afirmar a dominação, nesses modos de produção, da supe-
restrutura politica e ideológica. Nas formações econômico-sociais
primitivas tal como Marx as descreve, a unidade de trabalho e de
suas condições materiais é mediatizada pela pertinência do trabalha-
dor a uma comunidade e por meio desta comunidade o individuo
tem acesso aos meios de produção; no modo da produção escravista,
a violência do amo coloca o escravo entre os meios materiais da pro-
dução, e é ela quem torna possível o processo de produção escravista.
No modo de produção feudal, o processo de produção, sendo ao
mesmo tempo processo de apropriação da natureza e processo de ex-
ploração do trabalho, pressupõe a existência de uma relação de de-
pendência pessoal entre os produtores diretos e o proprietário da ter-
ra. Em todos estes casos. são os vinculas extra-econômicos - qual-
quer que seja sua natureza e a intensidade dos antagonismos que re-
cobrem - que reúnem os membros da unidade de produção'e os
põem em contato com os meios de produção. Assim, estes vínculos
assumem, nos modos de produção pré-capitalistas, as funções das re-
lações mercantis no modo de produção capitalista. Mas, este deslo..
camento traduz uma diferença profunda na estrutura dos modos de
produção considerados. Para enunciar esta diferença não seria sufi-
ciente dizer que num caso a base econômica e no outro as superestru-
turas políticas e ideológicas são dominantes. A dominação da base
econômica implica. com efeito, sua autonomia relativa no que diz res-
peito às superestruturas, que neste caso, são simplesmente a repre-
sentação de relações de produção dadas fora deias. A dominação das
superestruturas pressupõe. ao contrArio, a integração re/Oliva destas
instâncias do modo de produção: aparece quando um vínculo jurfdi-
139
co, político ou ideológico é a condição necessária do processo de pro-
dução, quando, por conseguinte as superestruturas são introduzidas
a titulo de pressuposto, no próprio interior da base econômica.
Inclinar-nos-emos, portanto, a admitir que a ausência ou a pre-
sença no processo de realização de um "elemento" -sobre o qual
atuam as três instâncias e cuja transformação produz as relações so-
ciais concretas, é ao mesmo tempo o efeito e o sinal desta diferença
na estrutura do modo de produção: cremos que é a integração relati-
va das instâncias no seio deste o que provoca a convergência sobre
um mesmo elemento das determinações que estas exercem. A auto-
nomia relativa das instânciàs do modo de produção capitalista per-
mite distinguir, nas formações econômico-sociais que este domina,
uma região econômica, uma região jurídico/política e uma região
ideológica claramente separadas: cada instância dispõe, de um certo
modo, de um campo de realização que lhe é próprio. Por conseguin-
te, desde o inicio da análise podemos distribuir as formações sociais
concretas descritas pelo sociólogo ou pelo historiador, entre essas di-
ferentes regiões, uma vez que a sobredeterminação se traduz sobre a
base desta distribuição. Quando dominam os modos de produção
pré-capitalistas, semelhante segmentação só é posslvel na ordem da
investigação. No modo de produção, com efeito, a instânciajurldico-
política e a inst.ância ideológica intervêm no interior mesmo da base
econômica: esta intervenção impede de fato a delimitação na forma-
ção econômico-social, de regiões distintas correspondentes a cada
uma das instâncias. Inseparáveis no interior do modo de produção,
as três instâncias têm um campo de realização que lhes é comum: é a
eSle campo comum que nós designamos pelo termo "elemento". Por
conseguinte, antes de terminar a análise não poderfamos atribuir a
determinada instância mais que a outras as formações sociais Canere.
tas produzidas em tais condições: uma linhagem se apresenta, fre-
qüentemente, ao mesmo tempo como uma unidade de produção,
como um corpo político e como uma "congregação religiosa"; unica-
mente o exame dessas diversas determinações e de sua combinação
permite-nos decidir qual delas é a dominante. Desta forma voltamos
a encontrar esta polivalência funcional das instituições que nós
havíamos evocado mais acima e da qual apenas quisemos mostrar
que era o efeito de uma estrutura determinada do modo de produ-
çào.
Acabamos de localizar a condição necessária para que um "ele-
mento" intervenha no processo de realização de um modo de produ-
ção qualquer: esta condição é a dominação, nesse modo de produ-
140
ção. de uma das instâncias da superestrutura. Temos agora que per-
guntar quais são as condições necessárias para que o parentesco pos-
sa desempenhar esse papel de "elemento". Aqui também a teoria do
modo de produção capitalista pode servir-nos como fio condutor. A
particularidade deste modo de produção é, repetimos, a transforma-
ção da força de trabalho em mercadoria e a introdução das relações
mercantis no interior mesmo da esfera de produção imediata. Ora,
esta introdução tem como efeito necessário a ruptura entre a produ-
ção e o consumo individual ou, de maneira mais precisa," a disssocia-
ção entre a unidade de produção e a unidade de consumo. Esta dísso-
ciação se manifesta de duas maneiras: em primeiro lugar, unidade de
produção e unidade de consumo ou, para retomar a terminologia da
economia contemporânea, empresas e atividades domésticas se con-
vertem em unidades sociais completamente distintas tanto por suas
dimensões como por sua estrutura; em segundo lugar, entre elas s6
existem relações mercantis: ao sair do processo de produção, o pro-
duto tem que passar necessariamente pelo mercado para ser consu-
mido. Podemos perguntar-no~, então, se, inversamente, os modos de
produção anteriores à produção capitalista não estariam caracteriza-
dos por certa tendência à unidade da produção e do consumo, unida-
de que seria suscetível de graus e poderia aparecer sob formas varia-
das. Aqui se reconhecerá a noção de aut,,-subsistência, que muitos
etnÓlogos utilizam para definir as economias "primitivas". Noção
profundamente equivoca posto que designa de fato três fenômenos
distintos cujas variações são, dentro de certos limites, independentes
umas das outras. Com efeito, por auto-subsistência podemos enten-
der:
I) O caráter não-mercantil da circulação, isto é, da relação que
vincula a unidade de produção com a unidade de consumo;
2) A homologia da unidade de produção e da unidade de consu-
mo, isto é, o fato de que essas duas unidades estejam constituídas de
acordo com principios e mecanismos idênticos e, por conseguinte, se-
jam de igual dimensão e estrutura;
3) A coincidência entre unidade de produção e unidade de con-
sumo, isto é, o fato de que a unidade de produção encontra em si
mesma as condições de sua reprodução, matérias-primas, instrumen-
tos de produção e fundos de consumo.
Certamente, como vimos, a generalização das relações mercan-
tis implica na dissociação da unidade de produção e da unidade de
consumo; impede, em outras palavras, qualquer homologia e a for-
tiori qualquer coincidência entre elas. Mas a esta correlação negativa
141
não corresponde uma correlação positiva equivalente. Podemos, per-
feitamente, conceber um regime de produção no qual as unidades de
produção e as unidades de consumo seriam homólogas e no qual a
circulação seria mercantil; este é o caso da denominada pequena ex-
ploração familiar na agricultura; o camponês e sua família consti-
tuem, ao mesmo tempo, a unidade de produção e a unidade de con-
sumo; eles vendem seu produto no mercado e compram nele o que
lhes é necessário. Inversamente, podemos conceber também um regi-
me no qual as unidades de consumo e as unidades de produção não
seriam homólogas sem que, por isso, a circulação seja mercantil: isto
é o que sucede quando o trabalho é comunitário enquanto que o con-
sumo continua sendo familiar, posto que a repartição do produto é
assegurada por via da redistribuição ou da repartição. Por último,
uma rigorosa coincidência entre a unidade de produção e a unidade
de consumo exclue, por conseguinte, qualquer circulação mercantil.
Por outro lado, do ponto de vista formal, ela supõe uma homologia
entre estas unidades - unicamente figuras semelhantes podem super-
por-se - mas não se confunde com ela: no sistema trobriandês de uri-
gubu, por exemplo, o produtor entrega a maior parte de seu produto
ao marido da irmã e recebe do irmão de sua mulher a maior parte do
que consome; num caso semelhante, existe por certo homologia entre
unidade de produção e unidade de consumo, mas não coincidência.
De fato, podemos dizer por um lado que a coincidência perfeita, isto
é, a autarquia, não se realiza nunca e. por outro lado, que a homolo-
gia se apóia geralmente sobre uma coincidência parcial.
Se reservarmos o termo "auto-subsistência" para os modos de
produção nos quais no essencial a circulação não é de caráter mer-
cantil e nos quais as unidades de produção e as unidades de consumo
são homólogas. inclinar-nos-emas, portanto, a admitir uma correla-
ção entre auto-subsistência assim definida e a presença do "parentes-
co" como elemento de "realização" do modo de produção. Por con·
seguinte, se um modo de produção implica na existência de muitos ti-
pos de unidades de produção, para falar de auto-subsistência bastar-
nos-á que exista homologia entre a unidade de consumo e um desses
tipos, que seria então reconhecido como dominante. Para ilustrar
esta correlação, podemos retomar o exemplo Gouro. No modo de
produção relacionado com a cooperação complexa, existe homologia
entre a unidade de produção dominante - a comunidade de produ-
ção - e a unidade de consumo - o grupo de comida. Ambas se com-
põem das mesmas pessoas e estão organizadas de maneira similar;
como o grupo de comida, a comunidade de produção reúne homens
142
e mulheres: vimos que os processos de produção mais importantes
eram mistos e(ou) alternados; em outras palavras. faziam intervir si·
multaneamente e/ou sucessivamente a homens e mulheres. Mas à di-
visão do trabalho entre os sexos "corresponde" sua separação em
sub-grupos distintos no decorrer da comida coletiva. Da mesma ma-
neira, o mais velho detém na produção um papel de direção e de con-
trole; por ocasião da comida, come sozinho ou lhe é reservado um
prato particular. Assim, a unidade de çonsumo reproduz, com os
"meios" que lhe são próprios, a estrutura da unidade de produção.
Paralelamente, ambas são urealizadas" nas relações de parentesco.
Ocorre algo muito diferente no caso do modo de produção vinculado
à cooperação complexa; enquanto a unidade de consumo é o grupo
de comida que acabamos de descrever, a unidade de produção com-
preende o conjunto de homens da aldeia; trata-se, portanto, de uma
coletividade muito mais numerosa que o grupo de comida. mas da
qual se encontram excluidas as mulheres: por conseguinte, não po-
deríamos falar de homologia. Ora, encontramo-nos aqui no domínio
do sistema tribal - aldeão. Por outra parte, é na zona da savana,
onde o comércio pré-colonial conheceu certa expansão, que o klala
vem a deslocar em parte o sistema de linhagens; na zona da floresta,
este se conservou numa integridade relativa. Comprovamos assim
que onde falta um dos traços pelos quais acabamos de definir a auto-
subsisténcia - homologia entre unidade de produção e unidade de
consumo, pouco desenvolvimento das relações mercantis - o paren-
tesco não desempenha, ou tende a perder, o papel de elemento de
realização do modo de produção. Podemos considerar, ao contrário a
auto-subsistência como uma condição necessária da presença de pa-
rentesco em tal papel.
Na medida em que a homologia entre unidade de produção e
unidade de consumo se apóia sobre sua coincidência parcial, a auto-
subsistência implica na existência de comunidades que são, ao mesmo
tempo, unidade de produção e unidade de consumo. Estas são as co-
munidades que estão organizadas por relações de parentesco. Dois
casos podem, então, se apresentar: ou a formação econômico-social é
um agregado de comunidades, unidas por diversas relações de ordem
econômica - circulação da força de trabalho, dos meios de produção
c do produto - e politica - guerra, aliança, etc. -; em tal caso a estru-
tura da comunidade é representativa da formação econômico-social;
as relações de produção que servem de base a estas são as relações in-
teriores àquela e, portanto, estão realizadas nas relações de parentes-
co; ou então a formação econômico-social está composta por comu-
143
nidades exploradas por uma classe de não produtores; então sua es-
trutura não é mais representada pela da comunidade; as relações que
formam sua base não são mais relações interiores à comunidade, mas
sim relações jurídicas, políticas e ideológicas de dependência que su-
bordinam a comunidade a seus exploradores. Com efeito, a reunião
de produtores e dos não-produtores não é uma comunidade no senti-
do definido mais acima; a aparição da exploração faz desaparecer
pura e simplesmente a auto-subsistência, mas ela começa a dissociar
as unidades de produção das unidades de consumo; ao introduzir um
consumo dos não produtores, ela faz surgir unidades de consumo às
quais não corresponde nenhuma unidade de produção. Por conse-
guinte a auto-subsistência não pode mais ser considerada como um
traço característico do modo de produção e este já não pode ser reali-
zado nas relações de parentesco. Certamente os produtores diretos
continuam pertencendo às comunidades organizadas por relações de
parentesco; por outro lado, estas podem realizar as relações jurídi-
cas, polfticas e ideológicas que relacionam os não produtores entre si;
podem realizar, todavia, as relações interiores a cada uma das duas
classes dadas, mas já não podem às relações entre essas duas classes;
ora, são estas últimas as que, rigorosamente, constituem a estrutura
do modo de produção.
Desta maneira, a não exploração do trabalho aparece como a
segunda condição necessária para a intervelJ.ção do parentesco como
elemento na realização do modo de produção. Reencontramos, as-
sim, por outros caminhos, uma tese sustentada por Morgan e Engels
a partir dos primeiros ensaios do materialismo histórico em matéria
de etnologia; a dominação das relações de parentesco na organização
social é incompativel com a exploração do trabalho e com as relações
de classes. Teremos ocasião de voltar a esta tese ao examinarmos a
reprodução da formação econômico-social Gouro
7. O PROCESSO DE REPRODUÇÃO
E A NATUREZA DA RELAÇÃO
ENTRE MAIS VELHOS E MAIS NOVOS
34. Georges Dupré. Pierre--Philippe Rey, Théorie de I'Hisloire des échanges. exemp/e de
I'Ouesl-Congolais (tango Brazaville), artigo inédito. manuscrito, p. 30.
152
dutores diretos e este grupo seja assegurada pela circulação deste c;x-
ceden te" 3.\.
Notemos primeiramente que se os antagonismos de classes exis-
tem no interior das sociedades de linhagem e segmentares, são então
praticamente universais; só os bandos de caçadores coletores Pig-
meus ou Nambikwara escapam delas. Mas nestas condições o con-
ceito de classes perde todo poder de discriminação entre as socieda-
des, e designa tantas realidades heterogêneas que não tem pratica-
mente valor operativo: como observa Ariane Deiuz e M aurice Gode-
lier .'\ parece difícil confundir na mesma categoria os mais novos
que, pelo funcionamento normal da estrulura social, são chamados a
converter-se em mais velhos, e os servos e os proletários que, mesmo
na velhice, jamais se tornarão senhores ou patrões. Por outro lado,
para considerar as sociedades de linhagem e segmentares como socie-
dades de classes, é necessário rechaçar a correlação estabelecida por
Marx e Engels entre a presença das classes e do Estado; quer dizer,
descobrir em tais sociedades as instituições - administração especiali-
zada, força pública, impostos, etc. - cuja reunião constitui o Estado,
sem recorrer às noções de Ugerme" e de "embrião" que pertencem ao
evolucionismo social, mas não ao materialismo histórico,
Mas há algo mais grave do que estas objeções "epistemológi-
cas". Pode-se falar de exploração quando um grupo de não-
produtores se apropria de qualquer modo do excedente criado pelo
trabalho dos produtores diretos. Pois bem, ~o país Gouro, os bens de
prestígio e os bens matrimoniais não sào, quanto ao essencial, produ-
to do trabalho dos mais novos,
Consideremos antes de tudo o gado. Por causa do caráter muito
elementar das técnicas de criação, o gasto do trabalho social neste se-
tor, é, nós o vimos, muito fraco, Q papel da força de trabalho consis-
te principalmente em tarefas de vigilância que requerem poucas pes-
soas durante pouco tempo, No setor da economia Gouro dominado
pelas relações de produção "realizadas" no sistema de linhagem, a
criação ocupa um lugar inteiramente marginal: mesmo se se: admitis-
se que dê lugar a uma exploração dos guardas do rebarih'?J?Clos maIs
velhos,_mesmo esta exploração seria marglnar:O-aprísionamento aos
153
elefantes é uma atividade que toca a efetivos relativamente pouco
numerosos. No que concerne aos panos, Claude Meillassoux escreve:
"Os panos de prestigio assim como os panos destinados às tro-
cas com c exterior, na medida em que se convertem em outros bens
de prestígIO, se concentram entre as mãos dos mais velhos. Sua fabri-
cação é mais dificil (do que a dos panos correntes - E. T.) e nem to-
dos os homens conhecem sua técnica. Trata-se, em geral, da especia-
lidade dos chefes de família ou de alguns tecedores experimentados
que trabalham para seus mais velhos" (p. 195).
Estes chefes de famílias e estes tecedores experimentados não
podem ser considerados como mais novos; em todo caso, trata-se de
,mais novos cuja emancipação se encontra jâ muito avançada. Quan-
to à cola, sua colheita e seu transporte são obra, não dos mais novos,
mas das mulheres e dos meninos, e s6 a prop6sito dessas categorias
poderia falar-se de exploração. De fato, o essencial do trabalho .1I0s
mais novos é consagrado à produção de bens vulgares - produtos alio
rrienticios, produtos de uso corrente, e estes bens vulgares lhe são re-
distribuídos "na maior parte, senão totalmente" (p. 188). O 'mais ve-
lho retém uma fração destes para si e, desta forma, pode cumprir os
deveres - dever de hospitalidade, 'obrigações funerârias, etc. - que se
lhe incumbem na qualidade de representante de linhagem: neste caso
trata-se, não da apropriação de um excedente, mas de colocar à dis-
posição do mais velho os recursos de que necessita para exercer seu
poder de função. De qualquer forma:
"Os bens vulgares não podem ser trocados por tesouros" (p.
221).
O mais velho não poderia, portanto, trocar bens de prestígio
pelo excedente de alimentos que lhe é confiado. Em suma, as rique-
zas propriamente ditas s6 em escassa medida são derivadas do traba-
lho dos mais novos; ~s sxisti,~se,exploração, esta exploração conti-
nuaria sendo.Qe,lOlI.a,s as m~ras;.àiiiilê.J!ll!..<lerªdb
Verdade é que, no caso dos panos - como muito precisamente
nos rez notar Pierre-Philippe Rey, é o trabalho agrlcola dos m'ais no-
vos que permite aos mais velhos dedicar-se à tecelagem. Mas, se o
processo das trocas matrimoniais se desenrola normalmente, este tra-
balho dos mais novos ser-lhes-â restituído sob a forma de esposas.
Como escreve Claude Meillassoux:
"O produto do trabalho dos dependentes. recolhidos pelo mais
velho. retoma a eles. mas convertido em meio natural (uma esposa)
para constituir. por sua vez, uma dependéncia" (p.224).
154
Certamente sabemos, desde Rousseau, que a exploração de uma
classe por uma outra toma muitas vezes a figura de uma troca: cm
"troca" das prestações e das corvéias. o senhor protege seus servos;
em "troca" da força de trabalho o capitalista fornece ao operário
subsistências que são.necessárias para sua manutenção. Mas o qu(c o
mais novo recebe aqui, em contrapartida pelo excedente de seu tra~
balho. é uma esposa, quer dizer, um meio para livrar-se da tutela do
mais velho.
Em suma, haveria exploração se o mais velho fosse capaz de in·
terromper o processo de circulação das mulheres ou de desviá-lo em
seu proveito, se lhe fosse possivel apossar-se do produto do sobretra-
balho dos mais novos sem lhes fornecer esposas. Mas, de fato, o con-
trole exercido pelos mais velhos sobre este processo está contido em
estreitos limites. O mais velh01'0de. sem dúvida, à guisa de castigo.
retardar o momento em que fofhecerá uma Ij1ulhera um menor indó-
cil; mas ele não pode recusá-la totalmente,'sob pena de vê-lo refu-
giar-se junto a uma outra comunidade que o adotará, junto de sua
família materna, em particular. Mas, pode-se objetar que é evidente a
priori que o mais velho ganha como "tio materno" os mais novos que
perdeu como "pai"; de fato, esta evidência é desmentida pela expe-
riência: poderíamos citar para o país Dida numerosos casos de mais
velhos decaídos devido a sua "avareza" e ao seu "egoísmo". Os mais
velhos, diz-se, dilapidaram, isto é, utilizaram para fins pessoais, os
bens matrimoniais de que eram depositários, quando deveriam ser-
vir-se deles para casar seus mais novos. E a decadência se traduz de
fato pela partida destes. Absoluta na teoria, a autoridade do mais ve-
lho é, portanto, na prática, reduzida.
"O pagamento do dote acaba o ciclo de reprodução da estrutura
social. Mas se o princípio geral d,a autoridade ancestral é preservado
e reconduzido por este meio, é a preço da dissolução progressiva da
autoridade individual dos mais velhos. Cada pagamento de dote,
cada casamento. enfraquece seu domínio sobre uma parte de sua de-
pendência, ao dar a esta precisamente os meios para sua independên.
cia. Se bem que ele afrouxe cada vez mais os vínculos que o unem di-
retamente a seus mais novos. e s,e bem que seja para ele uma tentação
permanente utilizar a riqueza para aumentar o número de suas pró-
prias esposas mais do que para casar seus dependentes, o mais velho
não pode escapar a este imperativo sem correr o risco de ver sua co·
munidade perecer ou explodir. Em vez de desejar confiscar as mulhe-
res para seu proveito. e neutralizar desta maneira os meios de eman-
155
cipação dos mais novos, o mais velho é animado pela preocupação
de ampliar sua dependéncia e perpetuar sua autoridade" (p. 223).
Tampouco o controle dos bens matrimoniais importados refor-
ça o poder do mais velho. Com efeito, enquanto que no interior da
formação econômico-social Gouro, os bens vulgares não podem ser
trocados por bens de prestigio, esta troca é possivel nas fronteiras
do pais Gouro; os comerciantes Malin,ké aceitam produtos alimenti-
cios em contrapartida de sua sompe (p. 270). De uma certa maneira o
comércio contribui, portanto, ele também, para limitar a hegemonia
dos mais velhos:
"A existéncia de um escoadouro novo, que compete com o que
representava os anciãos, assim como a possibilidade de vender, além
dos produtos preciosos, produtos do campo, permitiram a homens
dependentes ou a linhagens menores se enriquecer, malgrado seu
nivel, e escapar às autoridades tradicionais. A desintegração dos gru-
pos sociais, sobretudo na savana, parece ligada às trocas, assim como
à mudança das relações tradicionais de preeminéncia entre linhagens
(p. 99)... permitindo a aquisição das riquezas matrimoniais indepen-
dentemente das normas convencionais, o comércio oferecia às células
súciais dependentes - segmentos menores ou inclusive familias de
clientes ou de escravos - a possibilidade de escapar à autoridade dos
chefes de linhagem" (p. 275).
Entretanto,-esta possibilidade não acarreta nenhuma revolução
ao nivel das estruturas, porque:
"O comércio s6 desagregava as linhagens existentes para contri-
buir para a reconstituição de comunidades funcionando segundo as
mesmas normas" (p. 276).
Em resumo: como diz Claude Meillassoux, os efeitos do comér-
cio são "neutralizados" pelos Gouro (p. 221, nota p. 277); • esta neu-
tralização implica em duas conseqOéncias complementares: se ela im-
pede os mais novos de sacudir inteiramente a tutela dos mais velhos,
impede também os mais velhos de agravar esta tutela.
No total, o mais velho se apropria certamente de uma fração do
excedente fornecido pelos mais novos, mas serve-se dela essencial-
mente para procurar mulheres para estes mesmos mais novos, para
dar-lhes, pois, meios para sua emancipação. Se ele se subtrai a esta
obrigação, verá seus dependentes abandoná-lo, perderá conseqOente-
mente sua posição de mais velho. Neste sentido, enquanto o consen-
so do operário é uma condição fictlcia do poder do capitalista - o
operário pode deixar um patrão, mas é obrigado a vender sua força
de Irabalho a um outro patrão que o ClIplorará da mesma forma - o
l.:H>
consenso do mais novo é uma condição real do poder do mais velho,
porque o mais novo pode deixar um mais velho que não lhe d~ mu-
lher, por um outro que lhe daria uma, possibilitando-lhe, conseqüen-
temente, o meio de tornar-se mais velho por sua vez, Nestas condi-
ções, contrariamente ao que pelisam Georges Dupré e Pierre-Philippe
Rey, não se falará nem de exploração nem de antagonismo de clas-
se .l7,
Se Pierre-Philippe Rey e Georges Dupré são levados a olhar a
relação do mais velho com o mais novo como uma relação de explo-
rador e explorado é, talvez, porque ao invés de considerar o processo
de reprodução no seu conjunto, eles at~m-se, exclusivamente, a um
destes momentos, o da circulação, Sabe-se a que erros esta atitude
conduziu a economia polftica burguesa. No modo de produção capi-
talista a esfera da circulação serve de funcionamento para a represen-
tação que as instâncias jurídicas e ideológicas dão da esfera da pro-
dução. Ora, a transformação da força de trabalho em mercadoria e a
existência de uma circulação da força de trabalho, produzem uma de-
!aJagem entre a estrutura da produção e a da circulação: a primeira é
caracterizada pela exploração, a segunda pela troca. Repousando
sobre as relações de circulação, a consciência que a sociedade adqui-
re de sua base econômica é necessariamente deformada, e a econo-
mia burguesa, que reflete esta consci~ncia, está presa a uma série de
rdlsos problemas: a troca entre o operário e o capitalista é igualou
157
desigual? O trabalho é vendido a seu justo preço? etc ... Caso ele seja
conservador ou democrata, o economista burguês se pronunciará
num sentido ou noutro. Ora, se admitimos que existe em todo modo
de produção uma ligação entre as "aparências" da circulação e a
imagem que a superestrutura oferece da produção, podemos então
perguntar se a existência, no interior do modo de produção ligado à
cooperação simples, de uma circulação. mesmo não mercantil e par·
cial da força de trabalho não produz uma defasagem análoga à que
assinalamos para o modo de produção capitalista. Do ponto de vista
das relações de produção, com efeito, a circulação das mulheres apa-
rece como uma repartição da força de trabalho, mas na representa-
ção ideológica que a sociedade elabora de sua base econõmica, este
aspecto se apaga diante das relações de troca que, no entanto, são
simplesmente a forma que esta repartição toma na esfera da circula-
ção. Isolando o momento da circulação no processo de reprodução.
o etnólogo ratifica esta representação: como o economista burguês,
ele perguntará, portanto, se as relações de circulação são o lugar de
um equilíbrio ou de um antagonismo e concluirá num sentido ou
noutro caso ele seja partidário de uma etnologia estática ou dinãmi-
ca.
Mas os diversos momentos que constituem o processo de repro-
dução não são esferas independentes reguladas por leis próprias; são
determinados pelas relações de produção. Definimos estas como uma
repartição dos fatores de produção, repartição que é ao mesmo tem-
po a condição e o resultado do processo da produção. Realizando a
separação de um destes fatores - a torça de traoalho - a circulação das
mulheres é elá também determinada pelas relações de produção: é,
portanto, destas que cremos partir para analisar e para explicar o pa-
pei que ai desempenham os mais velhos. Vimos que a dualidade da
comunidade de produção e da equipe de trabalho implica a existên-
cia de um lugar de operador da repartição dos meios de produção;
ela implica igualmente, acreditamos, a existência de um lugar de ope-
rador da repartição das forças de trabalho. Esta compreende, com
efeito, duas fases: num primeiro momento, as mulheres são distribuí-
das entre as comunidades de produção pelo mecanismo da troca ge-
neralizada; aqui o mais velho intervém como o porta-voz de sua co-
munidade quando das negociações matrimoniais, mas ele não exerce,
propriamente, nenhum poder. Conflitos podem explodir se uma das
comunidades que participam das trocas tenta interrompê-las ou des-
viá-Ias em proveito próprio, praticando o rapto ou recusando pagar
suas dívidas, mas estes conflitos opõem uma comunidade a uma ou-
158
tra; no seio de cada uma delas, mais velhos e mais novos são, em caso
semelhante, solidários. Durante esta primeira fase, a oposição entre
mais velhos e maisllovos não é, portanto, pertinente.
Quando o processo chega a seu termo, a mulher é adquirida pela
comunidade de produção, da qual se torna de certa maneira proprie-
dade: os membros da comunidade falarão dela dizendo "nossa mu-
lher"; ao morrer seu marido, ela se casará com um dos irmãos deste,
etc. Num segundo momento, a comunidade de produção tem que re-
partir a força de trabalho de que dispõe entre as equipes de trabalho
que a constituem; a mulher poderá ser atribuída a um jovem solteiro,
o que permitirá a criação de uma nova equipe de trabalho, ou a um
homem casado, o que aumentará os efetivos da equipe dirigida por
este homem. É esta segunda fase da repartição que supõe a existência
de um lugar de operador; ora, na medida em que toma a forma de
uma circulação, entra no processo geral de prestações e de redistri-
buições que organiza a circulação no interior da comunidade de pro-
dução: aos mais novos se confiam os meios de produção, eles propor-
cionam prestações em trabalho e em espécie e recebem, em contra-
partida, por um lado, subsistências e, por outro, esposas. Desta ma-
neira a repartição da força de trabalho, a dos meios de produção e a
distribuição do produto formam um só e idêntico processo que reela-
ma a intervenção de um só e idêntico operador. O mais velho desem-
penha, poi$, nos intercâmbios matrimoniais, o mesmo papel que na
produção material: em ambos os casos seu poder é um simples poder
de função.
Vê-se o que nos separa de Pierre-Philippe Rey e de Georges Du-
pré: para eles, o mais velho monopoliza os bens de prestígio e pode
assim controlar a circulação das mulheres, portanto, reforçar a de-
pendência dos mais novos; para nós o mais velho é primeiramente o
operador da repartição das mulheres, e é porque ele desempenha este
papel que os bens de prestígio lhe .ão confiados. De uma maneira
mais geral, no cielo das prestações e das -redistribuições que acaba-
mos de evocar, Pierre-Philippe Rey e Georges Dupré consideram o
momento da prestação como determinante: o mais velho monopoliza
o produto do trabalho dos mais novos e pode, devido a este fato,
proibir a redistribuição; para nós, pelo contrário, o momento da re-
distribuição é o principal, e o momento da prestação não é senão um
efeito necessário dele.
Por fim, no que diz respeito ao método, Pierre-Philíppe Rey e
Georges Dupré vêm os mais velhos como uma categoria social dada,
159
constatam seus privilégios, e dai concluem pela existência de relações
de produção determinadas, no caso, relações de exploração.
Nosso caminho é inverso: para nós o mais velho, da mesma ma-
neira que o sistema de linhagem de que ele faz parte, é um produto
das relações de produção, e é das relações de produção que é necessa-
rio partir para caracteriza-lo; estas relações determinam a existência,
no seio da comunidade de produção, de uma função de operador da
repartição, e o mais velho se define como o suporte desta função,
cujo exercicio implica, aliás, certas condições. Entre estas figuram,
no plano econõmico, o monopólio dos bens de prestigio e a concen-
tração do produto entre as mãos do mais velho, e no plano politico e
ideológico, a autoridade do mais velho, nos limites que precisamos,
seu prestígio, seu saber social, etc. Em outras palavras, o poder do
mais velho é sobredeterminado pelas diferentes instâncias. do modo
de produção, e ã análise deve distinguir nele o que diz respeito à es-
trutura do processo de produção e o que pertence às condições supe-
restruturais de funcionamento deste processo. Os resultados desta
análise contradizem, talvez, as aparências que nos proporciona a et-
nografia; mas, como o diz Marx, a pesquisa científica sería inútil se
as aparências se confundissem com a realidade.
8. CONCLUSÃO
38 Louis Althusser "O objeto do Capital" in Louis Althusser, Etienne Balibar, Reger
Establ~t. Li,e le Capital. Tomo 11. François Maspero, Paris. 1965. p. 40.
39 Ibid., p. 167
40 Btonislaw Malinowski - Â Sc~nt;fii: Theorv ofCllltun DIId ptlter euaVI. N.Y. OI.-
fôrd. Uno Pr!'y, 1960.. p. 171. Tradução francesa C.L. HcfVY c Rcné Ri<:hard.Gri·
fos nossos. (N. do T.) Há traduçAo bruileira. Ed. Zahar.
163
"Nossa hipótese não é senão um prolongamento de Ruth Bene-
dict no seu Pallems ofCulture. Admitamos que exista entre os seres
humanos diferenças de temperamento bem definidas que, se não são
inteiramente hereditárias, se estal;>elecemao menos sobre uma base
hereditária muito pouco tempo depois de seu nascimento. (Não po-
demos precisar melhor o problema por ora). Estas diferenças que •••
agregam, finalmente, à estrutura de caráter dos adultos, constituem a
substância mesma a partir da qual a civilização se elabora. Um certo
tipo de temperamento, ou uma combinação de tipos conexos e varia-
dos, parece ser preferida a outros, e esta escolha marca toda a estrutu-
ra da sociedade. - quer se trate dos cuidados dados às crianças, dos
jogos, dos cantos, de organitação politica, do culto religioso, da arte
ou da filosofia". 41
Podo-se, também, descobrir "a esséncia interior do todo" num
princípio puramente formal, a integração da totalidade social sendo
assegurada não mais ao nível da semântica, mas no da sintaxe. Reco-
nhecer-se-á aqui o estruturalismo de Claude Lévi-Strauss. Ora, Lévi-
Strauss procura correspondências entre os diversos níveis - lingua-
gem, parentesco, mitologia, da mesma realidade social. Estudando as
relações do mito e do parentesco entre os índios Pueblo Claude Lévi-
Strauss escreve:
"Em lugar de uma progressão contínua ou periódica, o mito se
apresenta como um conjunto de estruturas bipolares análogas às que
compõem o sistema de parentesco. Que podemos concluir? Se é pos-
sível constatar uma correlação entre sistemas tão distantes, ao menos
aparentemente, como o parentesco e a mitologia, a hipótese de que
uma correlação do mesmo tipo existe também com o sistema linguis-
tico nada tem de absurdo e fantasioso. Que gênero de correlação?
Cabe ao lingUista dizê-Io; para o antropólogo, será, no entanto sur-
preendente que nenhuma correlação possa ser descoberta sob uma for-
ma ou sob outra", 41
41 Margarct Mead. S~Xand Tempe1'tl1Mnt In thne p,imitiw sodelits, trad ..de Georges
Chevassus in Margaret Mcad - Moeurs tI SexuaJité en Oceanie, Paris, Plon, 1958.
p. 86. Grifos nossos.
42 Claude Lévi~Strauss. Anthropologie Structurale. Paris, Plon, 1958. p. 86. Grifos
nossos.
164
gica. correspondendo aos fins múltiplos a que o homem se pro-
põe", ~.\
Ora, de maneira mais sutil, Claude Lévi-Strauss admite que rela-
ções de tipos muito diversos podem existir entre estes níveis da reali-
dade social, mas afirma que, para uma sociedade dada, as transfor-
mações pelas quais se passa de um nível a outro pertencem a uma
mesma famf1ia: é a noção de uma "ordem das ordens":
"Entendo ... por ordem das ordens as propriedades dos conjun-
tos compostos de sub-conjuntos dos quais cada um corresponde a
um .nível estrutural dado ... Não postulo uma espécie de harmonia
pré-estabelecida entre os diversos níveis da estrutura. Podem perfei-
tamente encontrar-se - e muitas vezes se encontram - em contradição
uns com os outros mas as modalidades segundo as quais eles se con-
tradizem pertencem todas. a um mesmo grupo ... Se desejamos de fato
admitir na linha mesma do pensamento de Marx (ver ... E.T.) que as
infra-estruturas e as superestruturas comportam nlveis múltiplos, e
que existem diversos tipos de transformações para passar de um nlvel
a outro, se conceberá também que seja possível em última análise, e
abstraindo dos conteúdos, caracterizar diversos tipos de sociedade por
leis de transformaçâo:fórmulas indicando o número, a potência, o
sentido e a ordem das teorias que seria necessário - se podemos dizer
- anular para reencontrar uma relação de homologia ideal (logica-
mente e não moralmente) entre os diferentes níveis estruturados" .••
43 Lucien Sebag, Marxisme et structuralisme, Paris. Payot. 1964. p. 149. Grifos nos-
sos.
44 Claude Lévi-Strauss. Anthropologie struturale. op. cit. p. 365-6. Grifos nossos.
165
rior de uma estrutura articulada como dpminante, estrutura que deter·
mina a natureza e os limites da eficácia que eles podem exercer uns
sobre os outros.
Tudo isto Marx nos ensinou para as formações sociais domina·
das pelo modo de produção capitalista. A ideologia da "totalidade
expressiva" refluiu então para a antropologia social, e logo serviu \
para definir o objeto mesmo desta disciplina: a "expressão recipro-
ca" entre os elementos do todo foi apresentada como o caráter pró-
prio das sociedades estudadas pela antropologia social, como a dife-
rença especifica que as separa das sociedades industriais, abandona·
das para o materialismo histórico. Esperava-se, ao mesmo tempo,
garantir a autonomia da antropologia social. A tarefa atual dos pes-
quisadores marxistas é a de expulsar esta ideologia de seu último re-
fúgio, é de anexar o dominio reservado da antropologia social ao
campo de aplicação do materialismo histórico, e provar a validade
universal dos conceitos e métodos elaborados por este, é substituir a
antropologia social por uma seção particular do materialismo histó-
rico consagrada ás formações econômicas_sociais nas quais o modo
de produção capitalista está ausente, seção na qual colaborariam
historiadores e etnólogos. O mérito de Claude Meillassoux será o de
ter sido o primeiro a empreender este trabalho, de ter, n um caminho
que será longo e diflcil, franqueado as primeiras etapas.
166
,
f
I - O MODO DE PRODUÇÃO
1 Ver por exemplo Marx ..O Capital, livro 1- E.ditions Soeiales, vaI. 1. p. 196. nota.
168
ai, estes se beneficiam, de fato ou de direito, de um estatuto privile-
giado. Por outro lado a agricultura de plantation, o trabalho das mi-
nas, o transporte, se prestam bem à utilização dos escravos. Da mes-
ma forma, Marx esclareceu as razões pelas quais a agricultura é por
mais tempo mais refratária do que a indústria à implantação do
modo de produção capitalista, e a elas se devem a natureza mesma
dos processos de trabalho agrícola: diferença entre tempo de traba-
lho e tempo de produção, lentidão da rotação do capital empenhado,
obstáculos de todo gênero para a racionalização do trabalho, etc, 2
Estas considerações são importantes para compreender como um
modo de produção se propaga numa formação social.
Mas a segunda questão - o risco de uma proliferação dos modos
de produção - nos confronta com uma escolha cujo alcance é verda-
deiramente decisivo, Toda uma parte da tradição marxista, em parti-
cular na U,R.S.S" por muito tempo se contentou em definir um
modo de produção pela justaposição de alguns traços gerais concer-
nindo o grau de desenvolvimento atingido pelas forças produtivas, a
repartição dos meios de produção e do produto, assim como as for-
mas institucionais através das quais se realiza ésta repartição: a defi-
nição do modo de produção não é então mais do que a deScrição de
um certo tipo de economia. Desde então o conceito de modo de pro-
dução torna-se essencialmente um instrumento de classificação: seria
antes de tudo para o estabelecimento de uma tip%gia das economias
e das sociedades. Nesta perspectiva compreende-se que a prolifera-
ção dos modos de produção apareça como um perigo: se as rubricas
são muito numerosas, a classificação não será utilizável. Mas este
uso do conceito de modo de produção levanta inevitavelmente todas
as dificuldades inerentes às empresas taxonômicas, e em particular o
insuperável problema dos casos-limites; e a vontade de restringir ao
mínimo o leque dos modos de produção acarreta como contra-golpe
uma outra proliferação, a dos modos de produção quase ou proto-
escravistas, feudais, etc.
A meu ver, uma definição deste gênero é, do ponto de vista da
pesquisa, inútil ou prejudicial. Aquilo de que temos necessidade, não
é de uma fórmula de classificação, é de um instrumento de análise,
em outras palavras de uma definição precisa e rigorosa que nos per-
169
mita designar sem ambigllidade os elementos simples como aquela
dos quais reconstruiremos, na ordem do pensamento, o conceito real
objeto de nosso exame. Este concreto, é a formação social, ela resulta
da combinação e da articulação de componentes que são os modos
de produção. Para rcconstitui-Ia em todos os seus aspectos, é-nos ne-
cessário portanto primeiramente isolar e indicar estes componentes.
e para este fim, não devemos hesitar em levar a análise tão longe
quanto necessário. Desde então é-nos necessário traçar o inventário
das diferenças e das particularidades antes do que das semelhanças;
é-nos necessário em seguida produzir os conceitos especlficos corres·
pondendo a estas particularidades e saber que neste estágio a prolife-
ração é um perigo mais temível do que a penúria: um termo sem em-
prego cairá rápido em desuso, uma mesma noção aplicada a realida-
des diversas criará pelo contrário graves confusõcs. Nesta perspecti-
va, toda limitação a priori. do número de modos de produção con·
cebível é excluída, o único imperativo a-respeitar sendo de chegar ao
fim da análise a elementos "claros e distintos".
Foi com este espirito que eu propusera definir:
I) O modo de produção, como a combinação de uma base econômi-
ca e das superestruturas polfticas e ideológicas correspondentes;
2) A base econômica do modo de produção como uma relação de-
terminada entre os-diferentes fatores do processo de trabalho uma
força de trabalho, objeto de trabalho, meio de trabalho - relação
que deve ser considerada sob uma dupla relação: a da transforma-
ção da natureza pelo homem - e deste ponto de vista ela aparece
como um sistema de forças produtivas - e o do controle dos fato-
res da produção - e sob este Angulo, ela se apresenta como um
conjunto de relações de produção;
3) Por fim, a superestrutura como o conjunto das condiçôcs polfticas
e ideológicas da reprodução desta relação.
Sem ser inexata, esta definição parccc-me hoje insuficiente ao
menos quanto a um ponto: ela não se pronuncia sobre o lugar e opa·
pel relativos das forças produtivas e das relaçõcs de produção. Na
sua associação, qual é o termo principal? Onde procurar em última
análise o que constitui a diferença especifica de um modo de produ.
ção dado, o que o distingue fundamentalmente dos outros modos de
produção, o que está na raiz dos caracteres sociais, polfticos e ideoló-
gicos que Ihe .•ão próprios? Na medida em que, por razõcs legítimas,
mas ligadas às particularidades do caso examinado, eu fora levado a
ver as formas de cooperação entre os produtores como outros tantos
índices permitindo identificar o ou os modos de produção realizados
170
na formação social considerada. pude expressar o sentimento de que,
para mim, era no terreno das forças produtivas que originaria.nente
os modos de produção se diferenciavam uns dos outros. Ora, é evi-
dentemente errado atribuir a estes um papel que Marx expressamen-
te reservou para as relações de produção. Mais precisamente, Marx
definiu o modo de produção como a combinação de uma relação de
produção fundamental e do conjunto das condições de sua reprodu-
ção. Por relação de produção fundamental, é necessário aqui a rela-
ção entre o produtor direto e o personagem individual ou coletivo
que controla os diversos fatores do processo de produção, força de
trabalho inclusive. Esta relação, colocada por Marx como a base e o
segredo de todo o edifício social " pode tomar formas muito variadas
segundo a natureza e as modalidades do' controle exercido tanto
sobre o produtor quanto sobre os meios de produção: a cada uma
destas formas corresponde então de direito um modo de produção
particular, implicando a título de elemento constitutivo uma confígu-
ração particular das forças produtivas. Na prática este modo de pro-
dução pode desenvolver ou não o conjunto de suas determinações:
isto depende da estrutura da formação social na qual ele está inseri-
do; isto depende em outras palavras da relação que ele entretém com
os outros modos de produção realizados no interior desta formação
social.
Que estatuto conceder então às formas de cooperação nas quaís,
eu o disse, pensava encontrar índices permitindo demarcar e recen-
cear os diferentes modos de produção realizados na formação social
Gouro? Mantenho que numa formação social onde a força muscular
é a principal, senão a única forma de energia utilizável, onde os ins-
trumentos são simples, poli valentes e disponiveis em abundância,
onde o trabalhador é portanto o lugar efetivo do processo de traba-
lho, e onde conseqüentemente a força de trabalho é o fator decisivo
do processo de produção, as formas de cooperação - quer dizer as
formas diversas da existência e da intervenção da força de trabalho -
podem de fato desempenhar este papel de indices. Mas eu deveria ter
mostrado de maneira precisa de que relações de produção elas são o
índice; em outras palavras, eu deveria em cada caso ~sclareceras for-
ças que provocam e mantêm a cooperação e as relações que se esta-
belecem através dela entre produtores. não-produtores e meios de
produção.
171
Se eu tivesse assim procedido teria chegado da mesma forma a
isolar duas relações de produção fundamentais, portanto dois modos
de produção distintos: o modo de produção chamado no meu livro,
de maneira pouco satisfatória, "tribal-aldeão", realizado sobretudo
na caça coletiva, e o modo de produção de linhagem, realizado
sobretudo na agricultura. Mas considerando-os primeiro separada-
mente eu teria caracterizado o primeiro por uma cooperação volun-
tária, pelo colocar à disposição de todos os meios de produção (terri-
tório e redes de caça) por uma estrutura de poder igualitária (rotação
dos condutores de caça), por uma repartição ela também igualitária
do produto (divisão imediata do animal, após a caça, entre todos os
participantes) e por fim pela dependênCia dos não produtores com
relação aos produtos. Inversamente, eu teria mostrado como, no se-
gundo, os mais velhos detém já um certo controle dos meios de pro-
dução (exercicio dos direitos de uso sobre as parcelas cultivadas,
apropriação do saber técnico e social necessário para a produção),
como eles se servem deste controle para se assegurar um papel deter-
minante na distribuição das mulheres e conseqüentemente para coa-
gir os mais novos à obediência, como isto acarreta uma cooperação
forçada, a existênda de uma estrutura de poder hierarquizada, e uma
repartição do produto por via de prestação e de redistriouições ope-
radas sob a direção dos mais velhos, como por fim ai se manifesta
uma dependência dos produtores em relação aos não-produtores, ou
mais precisamente em relação aos produtores retirados. Eu teria en-
tão podido compreender que o que separava o segundo modo de pro-
dução do primeiro, era a presença da exploração. (voltarei a isto).
Examinando em seguida sua combinação, eu teria VIstomelhor como
o primeiro está subordinado ao segundo, como tendo recorrido ao ri-
tual, os m.iis velhos isolam a caça dos outros setores de atividade e
neutralizam seus eféitos, e como eles controlam o próprio desenrolar,
fazendo da rede de caça um objeto sagrado, simbolo da continuidade
da linhagem, cujo uso está portanto necessariamente submetido à
sua aprovação e à sua vigilância.
Desde então, este é o ponto decisivo, cada um dos dois modos
de produção representados e sua associação teriam aparecido como
outras tantas contradições. Definindo a relação de produção funda-
mentai como a relação entre o produtor direto e o controlador dos
fatores de produção, Marx o coloca necessariamente simultaneamen-
te como uma contradição cujo alvo é o volume e a atribuição do tra-
balho, e a repartição do sobre-produto que dele resulta. No primeiro
modo de produção identificado, os caçadores são senhores de seu
172
trabalho e de seu produto e lhes cabe decidir da parte que eles entre-
garão aos não-produtores. No segundo, são pelo contrário os não-
produtores, e no caso, os mais velhos é que são capazes de determi-
nar tanto a importância do sobre-trabalho quanto a distribuição do
sobre-produto. N o primeiro caso, os produtores prevalecem e no se-
gundo os mais velhos. Devido a esta assimetria, a combinação dos
dois modos de produção se apresenta por sua vez como uma contta-
dição, mas a subordinação do primeiro ao segundo significa que ao
nível de formação social no seu conjunto, a vantagem continua com
os mais velhos, vantagem sempre recolocada em questão, como disto
testemunham entre outros os esforços dos jovens para estender a ou-
tros setores de atividade as regras de cooperação em vigor na caça
coletiva.
2 - A REPRODUÇÃO
175
qual indivíduo particular. Do mesmo golpe, as tensões aparecem ao
mesmo tempo como inevitáveis - estão inscritas na natureza humana
- e como independentes da organização social, que surge inocentada
no termo do processo. Reencontramos portanto aqui os mecanis-
mos constantes da deformação ideológica, que faz passar por psico-
lógico o que é social, por natural o que é histórico, por eterno o que é
provisório. Numa formação social onde a força física se encontra do
lado das forças dominadas, estes mecanismos adquirem uma impor-
tância particular, e pode-se pensar que a ideologia é a instância do-
minante das formações deste gênero, na medida em que é ela que ga·
rante mais seguramente sua conservação.
Mas os esforços da categoria dominante só constituem um as-
pecto do processo de reprodução. Além de que eles são suscetíveis de
produzir contra-efeitos, é necessârio-igualmente levar em conta a re-
sistência das categorias dominadas. Desde então, colocar-se do pon-
to de vista da reprodução, é em definitivo compreender como o ciclo
mesmo da produção e da distribuição recoloca constantemente em
presença os dois termos desta contradição que é a relação de produ-
ção fundamental: dominantes e dominados, exploradores e explora-
dos; como os primeiros tentam enfrentar as crises através das quais
esta contradição poderia ser superada ou resolvida, como os segun-
dos se dedicam pelo contrário, mais ou menos conscientemente, a
aboli-Ia ou escapar dela. A reprodução no seu conjunto é ao mesmo
tempo o alvo de seu afrontamento e seu resultado. Enquanto tal, ela
se traduz pelo jogo de leis de evolução tendenciais que em regra geral
nenhum dos parceiros em luta está à altura de discernir.
3 - AS CLASSES
176
sobretrabalho que fornecem: ora tal é bem o caso nas formações so-
ciais analisadas, pelos mais jovens e mais ainda para as mulheres.
Conseqüentemente, estou pronto a admitir igualmente a exist!ncia
de classes no sentido econômico do termo, definidas como os dois
pólos opostos de uma relação de exploração. Mas o problema tor-
na~se então saber se e como estas classes Hem si" podem se trans-
formar em "classes para si", conscientes de si mesmo, capazes de re-
nexão e de ação coletivas, e em seguida aptas a tomar iniciativas his·
tóricas e a pesar enquanto tais no curso dos acontecimentos.
No trabalho a que se aludiu acima, assinalei um certo número
de condições que são a meu ver necessárias para que semelhante
transformação se produza, e dos obstáculos que ela encontra. Dese-
java me ater a um outro aspecto do processo. No seio do modo de
produção de linhagem, as relações de exploração tais como nós as
observamos põem em cena categorias sociais definidas essencialmente
pela idade e pelo sexo: os mais velhos exploram os mais jovens, os
homens exploram as mulheres. Pode-se portanto pensar que no inte-
rior de cada uma dessas categorias existe de certa forma uma solida-
riedade "horizontal" ligada à homogeneidade das situações, à identi-
dade das situações sofridas. Mas no entanto o grau de desenvolvi·
menta das forças produtivas e o da divisão do trabalho - reclamam a
existência de unidades de produção-consumo na qual os conjuntos
destas categorias são necessariamente representados - casas, ruas,
quarteirões, aldeias, etnias - e, a cada nivel, a formação social se
apresenta como um agregado ou uma justaposição de unidades deste
gênero, entre as quais existem um certo número de relações - trocas
matrimoniais, trocas de bens - e simultaneamente a possibilidade de
um certo número de conflitos. Desde então se desenvolve em cada
uma destas unidades o que se poderia chamar - uma solidariedade
vertical que transcende as oposições evocadas acima e que neutraliza
desta maneira as solidariedades horizontais correspondentes. Em ou-
tras palavras os dois tipos de solidariedade estão em contradição, e a
transformação dos jovens ou das mulheres em classes no sentido ple-
no do termo implicaria o triunfo do primeiro e a desagregação do se-
gundo.
Ora, no estado atual da pesquisa, não existe que eu conheça ne-
nhum exemplo de um processo deste gênero; mais exatamente eu não
conheço que tenha chegado a seu termo. Certamente, em ceqas so-
ciedades as mulheres são reagrupadas enquanto tais no interior da
comunidade e podem ter voz no capitulo no todo ou parte das delibe-
rações que empenham seu futuro. Alhures existe uma organização
177
em classes de idade - ou em graus fundados na idade - que ordena e
retifica a estratificação das gerações. Mas estas estruturas só no mais
das vezes operantes nos limites do grupo local; se elas os ultrapas-
sam, é enquanto rede de hospitalidade e de assistência; é raro que
elas permitam a constituição de verdadeiras associações a nivel da
sociedade inteira; em todo estado de causa, elas não parecem pôr em
questão nem a organização de linhagem. nem a configuração e a se-
paração das unidades de produção que circunscrevem seu campo de
ação e sua eficácia. Em outras palavras, por mais longe que possa ir o
processo de formação de verdadeiras classes a partir das categorias
exploradas, ele não chega jamais sozinho à superação do modo de
produção de linhagem.
Esta superação e a constituição de classes no sentido pleno do
termo se produzem em regra geral segundo outras modalidades seja
por diferenciação progressiva no interior da sociedade, seja em segui-
da a uma irupção estrangeira, assiste-se a uma cisão entre as unida-
des de produção até então justapostas - e não em seu seio; umas se
tornam dominantes e as outras dominadas. Até onde nossos conheci-
mentos históricos permitem julgar, dois modos de produção - sepa-
rada ou conjuntamente - sucedem ordinariamente ao modo de pro-
dução de linhagem: o modo de produção tributário e/ou modo de
produção escravista. Nos dois casos, um conjunto antes homogêneo
é doravente dividido em dois grupos separados por diferenças de sta-
tus, que são acompanhados de prestações econômicas e de uma sujei-
ção politica de um ao outro. Ao menos no caso do modo de produ-
ção tributário, cada um destes dois grupos continua organizado pela
estrutura de linguagem, que deste ponto de vista é não suprimida,
mas de certa forma simplesmente recalcada. Mas é de agora em dian-
te entre eles que se produzem os afrontamentos de classe, e os anta-
gonismos entre homens e mulheres, entre mais velhos e jovens, tor-
nam-se contradições secundárias interiores a cada uma das duas clas-
ses em presença, senhores e escravos, senhores e camponeses.
É necessário interrogar-se sobre as razões desta solidez do modo
de produção de linhagem - ou sobre a incapacidade das classes "em
si" que ele implica para se transformar em classes "para si". Vou me
ater aqui a três observações:
I) Em primeiro lugar, na medida em que as categorias exploradas do
modo de produção de linhagem se recrutam segundo critérios funda-
dos'na idade e no sexo, é mais fácil de apresentar a exploração como
um fenômeno enraizado na natureza das coisas, ou mais precisamen-
te na natureza humana. O mecanismo da deformação ideológica en-
178
contra aqui um terreno que lhe é particularmente favorável;
2) Em segundo lugar, nós o dissemos, o modo de produção de linha-
gem implica uma relação de exploração: dos jovens pelos anciãos,
das mulheres pelos homens, Ora, os jovens são também homens. Isto
significa que é muito dificil realizar uma aliança entre as duas catego-
rias exploradas, e a observação da vida social disto não nos fornece
indices;
3) Por fim, a persisténcia das solidariedades verticais, ligando em
conjunto os diversos elementos componentes da unidade de produ-
ção. compreende-se facilmente se nos esforçamos em reconstruir a al-
ternativa. muitas vezes muito concretamente, com que os jovens têm
que se defrontar. No quadro da unidade de produção o jovem está
submetido à exploração, mas o volume do sobretrabalho extorquido
continua limitado por duas razões: devido à improdutividade relati-
va do trabalho, o trabalho necessário continua a absorver a maior
parte da jornada de trabalho global; por outro lado e sobretudo, a
produção continua dominada e orientada pelo valor de uso, quer di-
zer pela satisfação das necessidades existentes. Ora, como diz Marx,
em tal caso "o caráter mesmo da produção não faz absolutamente
nascer um apetite devorado r de sobre-trabalho" '. Aliás, a estrutura
mesma da organização de linhagem dá ao jovem o sentimento de que
ele pode esperar também um dia ascender ao grau de ancião. Por
outro lado, a morte. a escravidão, ou o assujeitamento aparecem ne-
cessariamente, enquanto saídas sempre possíveis, no horizonte dos
connitos que opõem as unidades de produção umas às outras. ~ des-
de então compreensível que o jovem hesite em enfraquecer umasoli-
dariedade vertical que é sua úníca proteção contra tais perigos, com
o fim apenas de lutar contra uma exploração cujo peso continua mo-
derado e cuja intensidade vai diminuindo com os anos. Pode-se por-
tanto no total perguntar-se se o modo de produção de linhagem não
é o teatro de uma ilusão específica perfeitamente eficaz, segundo a
qual as contradições ligadas à exploração seriam rebaixadas a n/vel de
contradições secundárias, a contradição principal sendo a que lança
as unidades de produção umas contra as outras. Se fosse de fato as-
sim, esta ilusão seria a melhor garantia do poder dos mais velhos e da
perenidade da exploração.
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Penso ser inútil ressaltar o lugar que tomou nas diversas etapas
deste balanço, o conceito de contradição. Parece-me mais interessan-
te, para concluir, demarcar até que ponto para além das diferenças
de contexto, os problemas levantados são semelhantes aos que colo-
ca uma história muito próxima de nós no espaço e no tempo. Como
se formam as Classes? Com que obstáculos se choca esta formação?
Como as contradições de classe chegam a se separar das outras con-
tradições que dividem a formação social e a se impor acima delas en~
quanto contradições principais? Tais são algumas das questões que
fomos levados a examinar. A análise da "questão nacional" ou a da
"questão feminina" para nos atermos a estes dois exemplos, não nos
teria conduzido a reflexões da mesma natureza das que foram apre-
sentadas aqui? Novo índice, se isto ainda fosse necessário, de que a
etnologia, está muíto longe de constituir um campo de estudos parti-
cular e irredutível a qualquer outro, nem se confundiu com a história
e a economia nesta ciência das formações sociais e de sua evolução de
que Marx foi o iniciador.
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