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O Estado Democrático de Direito

Enio Moraes da Silva

Sumário
1. Introdução. 2. A dicotomia entre direito
natural e direito positivo. 3. O conceito de Es-
tado e sua evolução. 4. Estado estamental. 5.
Estado de Polícia. 6. Liberalismo e Estado de
Direito. 7. The Rule of Law e o Rechtsstaat. 8. Es-
tado Legal. 9. Estado Social. 10. O Estado De-
mocrático de Direito. 11. Conclusão.

“Man’s capacity for justice makes democracy


possible, but man’s inclination to injustice
makes democracy necessary.”
Reinhold Neibuhr

1. Introdução
O termo “Estado Democrático de Direi-
to”, conquanto venha sendo largamente uti-
lizado em nossos dias, é pouco compreen-
dido e de difícil conceituação em face das
múltiplas facetas que ele encerra.
No Estado contemporâneo, em virtude
da maximização do papel do poder públi-
co, que se encontra presente em praticamente
todas áreas das relações humanas, a expres-
são “Estado Democrático de Direito” ganha
uma extensão quase que ilimitada, mas, con-
seqüente e paradoxalmente, perde muito em
compreensão.
O fato de esse termo ter sido incluído em
nosso atual texto constitucional, no seu
Enio Moraes da Silva é Procurador do Esta- primeiro artigo, adjetivando a República
do de São Paulo, Mestre em Direito pela Uni- Federativa do Brasil, torna obrigatória a sua
versity of Florida, Doutorando em Direito do compreensão, com todas as conseqüências
Estado pela USP. que dela podem e devem advir.
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Não obstante, esse status constitucional Nesse diapasão, será abordada ainda a
não torna essa tarefa mais fácil: ao contrá- questão da proeminência, em dada época,
rio, aumenta a responsabilidade do intér- do chamado Estado de legalidade ou, sim-
prete constitucional, especialmente em ra- plesmente, Estado Legal, com todas as suas
zão das implicações, das mais diversas na- características, e como o mesmo evoluiu –
turezas, que possam se originar do entendi- ou deve evoluir – para um Estado Democrá-
mento – e sua conseqüente aplicação – do tico de Direito.
que venha a ser “O Estado Democrático de
Direito”. 2. A dicotomia entre direito
O presente estudo não tem a pretensão natural e direito positivo
de entregar, ao final de suas poucas pági-
nas, uma definição perfeita e acabada do Para alcançar uma compreensão do Es-
termo em tela. Até porque se trata de um tema tado de Direito, não se pode prescindir de
dinâmico e em constante evolução. uma análise da distinção entre direito natu-
A fluidez do termo ora em exame está ral e direito positivo, considerando que essa
diretamente relacionada aos diferentes tipos é uma dicotomia estabelecida pelo pensa-
de Estados hoje existentes, variações essas mento jurídico ocidental, e que influenciou
que influenciam e dificultam uma generali- e ainda influencia fortemente as relações
zação a esse respeito. E, além disso, impor- sociedade–Estado e Estado–indivíduo, sen-
lhe uma definição única, indisputável, se- do que não se pode falar da instituição Es-
ria desconsiderar a existência de inúmeras tado sem falar no Direito.
formulações teóricas e constatações empíri- Dessa divisão teórica resultam vários ques-
cas do que sejam “democracia” e “direito”, tionamentos quando se perquire da relação
conceitos ligados ao primeiro termo e que do Estado com o Direito. Um deles diz respei-
também correm como líquido. to aos limites do poder estatal no que toca ao
Entretanto, sem embargo das vicissitu- direito natural. O Estado sofreria limitações
des que se apresentam, o estudo do “Estado do direito natural? Ou somente o direito posi-
Democrático de Direito” permite uma abor- tivo limitaria a ação do poder público?
dagem histórica, pela qual se pode enten- Outra intrigante questão surge quando
der a sua evolução no tempo e em face dos se afirma que o próprio Estado deve ser sub-
fatos que o influenciaram, que certamente metido ao Direito para o seu controle. Mas
serve de caminho para a sua melhor com- como pode, então, o Direito se limitar às
preensão. Além disso, a análise de princípi- normas que o próprio Estado produz? Não
os que com ele se relacionam e o dirigem se revela uma incongruência deixar a cargo
ajudará a explicar os laços que enfeixam o do Estado produzir as próprias normas que
referido conceito. irão controlá-lo?
A análise da evolução do Estado de Di- Norberto Bobbio (1995, p. 17) esclarece
reito para o Estado Democrático de Direito é que a distinção entre direito natural e direi-
de suma importância para entender o senti- to positivo já havia sido identificada até
do que se deve empregar hodiernamente mesmo na antiguidade, com Platão e Aris-
para o termo que dá nome ao presente escrito. tóteles. Este último utilizou-se de dois crité-
O caminho que procuraremos percorrer rios para chegar a tal diferenciação: (1) o
neste trabalho, portanto, passará pelo estu- direito natural é aquele que tem em toda parte
do dos fatores históricos que influenciaram a mesma eficácia, enquanto o direito positi-
a formação do conceito em questão, tanto vo tem eficácia apenas nas comunidades
com relação à evolução do Direito como à políticas singulares em que é posto; (2) o
transformação do Estado Liberal em Estado direito natural prescreve ações cujo valor
Social. não depende do juízo que sobre elas tenha o

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sujeito, mas existe independentemente do É paradoxal que tal sistema jurídico te-
fato de parecerem boas ou más a outros. Pres- nha sido preconizado e efetivamente imple-
creve ações cuja bondade é objetiva. O direi- mentado pelo Estado Liberal, influenciado
to positivo, ao contrário, é aquele que esta- pelo Iluminismo, uma vez que o seu pressu-
belece ações que, antes de serem reguladas, posto filosófico é a doutrina dos direitos do
podem ser cumpridas indiferentemente de homem elaborada pela escola do direito
um modo ou de outro mas, uma vez regula- natural. No entanto, no momento em que se
das pela lei, importa (isto é: é correto e ne- exigiu do Estado o respeito a tais direitos,
cessário) que sejam desempenhadas do deu-se máxima ênfase ao aspecto da legali-
modo prescrito pela lei. dade, concedendo o poder absoluto de pro-
Os filósofos da Idade Média também dis- dução jurídica ao legislador estatal.
correram sobre o assunto, deixando assente Essa estatização do Direito, segundo a
que existe uma clara distinção entre direito ensinança de Bobbio, foi obra, em grande
natural e direito positivo, tendo este a carac- parte, das idéias liberais de Montesquieu
terística de ser posto pelos homens, em con- (1996, p. 132) e Beccaria ([19--?], p. 33). O
traste com o primeiro que não é posto por es- primeiro defende em sua famosa obra, O Es-
ses, mas por algo (ou alguém) que está além pírito das Leis, que “a liberdade é o direito de
desses, como a natureza (ou o próprio Deus). se fazer aquilo que as leis permitem”, sen-
No pensamento dos jusnaturalistas mo- do, conforme ele, o Poder Legislativo o úni-
dernos dos séculos XVII e XVIII, Bobbio co corpo capaz de criar as leis e o Poder Ju-
(1995, p. 22) registra a distinção entre direi- diciário mero ventríloquo do legislador (os
to natural e direito positivo, citando Glück, juízes seriam seres inanimados; a boca que
que diz que a esfera direito natural limita-se pronuncia as palavras da lei). O segundo,
àquilo que se demonstra a priori; aquela do fiel seguidor de Montesquieu, foi ferrenho
direito positivo começa, ao contrário, onde defensor do princípio da estrita legalidade,
a decisão sobre se uma coisa constitui, ou afirmando que “só as leis podem fixar as
não, direito depende da vontade de um le- penas de cada delito e que o direito de fazer
gislador. leis penais não pode residir senão na pes-
Essa distinção, que perdura até hoje, ga- soa do legislador, que representa toda a so-
nha importância no tocante à questão do ciedade unida por um contrato social”.
exame do Estado de Direito e, em última Importante esclarecer, entretanto, que
análise, do Estado Democrático de Direito, Montesquieu apontava a existência de um
quando se sabe que o positivismo jurídico Direito superior à lei positiva, em sua céle-
reduziu todo o Direito a direito positivo, afas- bre obra o Espírito das Leis (Livro I, Cap. 2),
tando o direito natural da categoria do Di- defendendo que existiam relações de justi-
reito, pois essa corrente doutrinária não con- ça possíveis e que o legislador, assim, não
sidera Direito outro que não seja aquele pos- faz a lei: escolhe, entre as relações de justiça
to pelo Estado, sendo este o único detentor possíveis, a que melhor se coaduna com as
do poder de estabelecer as normas jurídicas condições próprias a cada Estado.
que irão reger a sociedade. No entanto, essa representação do justo,
A concepção do Estado moderno vem no momento em que ela é expressa na obra
atrelada a esse entendimento de que o Esta- do legislador, é racionalizada e acaba se re-
do é o único criador do Direito e ele mesmo duzindo às leis positivas, à vontade daque-
solucionará os conflitos sociais por inter- le que criou a lei. Esse Direito superior ao
médio do Estado-juiz que aplicará as nor- dos homens fenece e passa a ser representa-
mas positivadas pelo próprio Estado-legis- do pela lei, elaborada pelo legislador, como
lador. É a monopolização da produção jurí- “expressão da vontade geral”, fórmula cu-
dica e sua aplicação por parte do Estado. nhada por Rousseau e expressa no artigo 6 o

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da Declaração dos Direitos do Homem e do der e com autoridade para determinar o
Cidadão (1789). O jusnaturalismo foi impor- comportamento de todo o grupo. Pela segun-
tante, assim, reconhece-se, como impulso da, a sociedade humana teria inicialmente
inicial às declarações escritas de direitos doexistido sem o Estado, tendo este sido cons-
homem. tituído gradual e localmente para atender
Por outro lado, quando se fala de Estado as necessidades ou as conveniências dos
de direito no âmbito da doutrina liberal do grupos sociais. E, finalmente, pela terceira
Estado, deve-se acrescentar à definição tra- teoria, somente pode se falar em Estado
dicional uma determinação ulterior: a cons- como uma sociedade política dotada de cer-
titucionalização dos direitos naturais, ou tas características bem definidas, como con-
seja, a transformação desses direitos em di- ceito histórico concreto, com a idéia e a prá-
reitos juridicamente protegidos, isto é, em tica da soberania, o que somente ocorreu no
verdadeiros direitos positivos (BOBBIO, século XVII, existindo autores que apontam
2000a, p. 18). o ano de 1648 (ano em que foi assinada a
Essa ideologia ganhou ares científicos paz de Westfália) como a data oficial em que
sofisticados, mais recentemente, pela pena o mundo ocidental se apresenta organiza-
de Hans Kelsen (2002, p. 62), o precursor do em Estados.
máximo do positivismo jurídico, embora em Para os fins de nosso estudo, interessa
sua obra “Teoria Pura do Direito” revele o em especial a questão da soberania estatal,
autor que a sua doutrina visava justamente uma vez que ela é indispensável para a aná-
combater a ideologia da ciência do direito lise do Estado Democrático de Direito. E essa
tradicional e que a Teoria Pura do Direito característica somente se apresenta com re-
teria uma tendência antiideológica, mani- lação ao conceito de Estado moderno.
festando-se como verdadeira ciência do di- Sérgio Resende de Barros (2003, p. 121 et
reito. A verdade é que Kelsen (2002, p. 95, 103)
seq.) leciona que não houve na prática anti-
defende que o Direito é um sistema de nor- ga a idéia de um poder supremo, soberano,
mas jurídicas, postas pelo Estado, num esca- embasado em si e por si mesmo, sem lei que
lonamento de autoridade legal hierárquica, o vinculasse à base social; ou seja, um po-
em que a Constituição de um Estado se en- der solutus a legibus. A idéia de soberania,
contra na camada jurídico-positiva mais alta. como marca de uma sociedade política por
Essa valorização do papel do legislador, ela diferenciada, é moderna. Recuando ao
com a conseqüente absolutização do direito máximo, chega ao fim do medievo. Na anti-
positivo, na concepção liberal do Estado, guidade, desde a época mais remota até o
como será visto mais adiante, contribuiu de- fim do Império Romano, não se encontra
cisivamente para a instituição de um Estado qualquer noção que se assemelhe à sobera-
legalista, reduzindo o conceito do Estado de nia. (...) A soberania, como já se viu, somen-
Direito a mero estado de legalidade. te veio marcar a sociedade política na pas-
sagem da forma de governo medieval (poli-
3. O conceito de Estado e sua evolução árquica) para a moderna (monárquica).
O conceito de Estado moderno, portan-
Os autores divergem sobre as origens e to, assenta-se sobre quatro elementos bási-
surgimento do Estado. Dalmo de Abreu cos: a soberania, o território, o povo e a
Dallari (2003, p. 51-52) registra que existem finalidade. Ele é definido como a ordem jurí-
três teorias básicas a respeito da época do dica soberana que tem por fim o bem comum de
aparecimento do Estado. Pela primeira, o um povo situado em determinado território
Estado, assim como a sociedade, sempre te- (DALLARI, 2003, p. 118).
ria existido, considerando que o Estado se- Oportuno acrescentar que a soberania
ria uma organização social, dotada de po- estatal encontra-se, contemporaneamente,

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em fase de transformação e questionamento da sociedade inglesa, que confirma a idéia
em face dos novos fenômenos que envolvem de um Estado estamental. Embora essa ma-
o relacionamento entre os Estados ditos so- neira de pactuar direitos entre o monarca e
beranos. Confira-se, nesse diapasão, o inte- determinados grupos sociais que apresen-
ressante magistério de J.J. Gomes Canotilho tassem algum poder suficientemente con-
(2002, p. 90): trastante ao do rei da Inglaterra tenha se
“O Estado, tal como acaba de ser iniciado mais cedo, basicamente com a Mag-
caracterizado, corresponde, no essen- na Carta de 1215 (afirmação de direitos em
cial, ao modelo de Estado emergente favor da aristocracia feudal em face do Rei
da Paz de Westfália (1648). Este mode- João Sem Terra), o reconhecimento e a con-
lo, assente, basicamente, na idéia de cessão gradual de direitos tiveram segui-
unidade política soberana do Estado, mento na história inglesa pelos séculos que
está hoje relativamente em crise como viriam a seguir, o que certamente contribuiu
resultado dos fenômenos da globali- para alcançar-se verdadeiras declarações de
zação, da internacionalização e da direitos humanos.
integração interestatal.” “Na medida em que se instituiu o
Com o aparecimento do Estado dito mo- parlamento, a evolução constitucional
derno, marcado pela presença do poder so- inglesa deixa a era das cartas para
berano, podemos estabelecer uma classifi- ingressar na era das petições. Logo se
cação para demonstrar a evolução do Esta- multiplicaram as petições endereça-
do, conforme veremos a seguir. das ao rei, seja pelo Parlamento, seja
em parlamento, e assim, no século XIV
4. Estado estamental as petições eram de duas espécies:
umas redigidas e apresentadas ao rei
Esse tipo de Estado aparece no início do pelas câmaras ou por uma delas, e re-
século XVII, como uma organização políti- lativas a pleitos mais ou menos ge-
ca em transição, buscando uma inicial con- rais; as outras dirigidas ao rei por in-
centração de poder estatal, mas dividida divíduos, cidadãos, corporações, cida-
ainda entre o poder do Rei e dos estamentos des, e tinham por objeto interesses pri-
(Parlamentos, Cortes). vados ou coletivos locais. (...) A peti-
Jorge Miranda (apud BASTOS, 2002, p. ção de Direito de 1628 é uma petição
158), a respeito do Estado estamental, ensi- da primeira espécie – uma petição
na que endereçada pelo parlamento ao rei –
“a idéia básica que nele se encontra é um importante documento declaran-
a dualidade política rei-estamentos, do os direitos e liberdades do súdito
sucessora do dualismo rei-reino me- como opostos às prerrogativas da co-
dieval. O rei e as ordens ou estamen- roa (isto é Carlos I).” (BARROS, 2003,
tos criam a comunidade política. O rei p. 359).
tem não só a legitimidade como a efec-
tividade do poder central, mas tem de 5. Estado de Polícia
contar com os estamentos, corpos or-
ganizados ou ordens vindos da Ida- A história registra o surgimento desse
de Média. Rei e estamentos exprimem, tipo de Estado, que se caracteriza pela con-
de certa maneira, um enlace entre Es- centração de poder nas mãos do monarca,
tado e sociedade”. que também pode ser chamado de Estado
Na história política da Inglaterra, iden- absoluto, em que a vontade do Rei era a lei
tifica-se uma fase de concessão de direitos (“regis voluntas suprema lex”), e esta se apre-
por parte do Monarca a certos segmentos sentava vaga e totalmente ao domínio do

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monarca, que não respondia pelos seus atos lo XVIII, surgidas em oposição ao absolutis-
perante os súditos (“ the king can do no mo, para colocar os governantes sob a von-
wrong”). tade da lei (princípio da legalidade), sendo
Pode se identificar duas fases dentro esta produto da vontade geral do povo ou
desse tipo de Estado. Na primeira, o poder da nação, mas com o objetivo de manter o
do Monarca é atribuído à escolha divina, poder público na passividade, respeitando
governando pela graça de Deus: seu funda- as liberdades fundamentais do indivíduo
mento é religioso. Na fase seguinte, já há (as chamadas liberdades públicas ou liber-
uma alteração do fundamento do poder do dades negativas).
governante: é a fase do despotismo esclare- A conquista e a manutenção da liberda-
cido, em que se atribui ao poder uma racio- de do indivíduo e de seus direitos funda-
nalidade calcada pelas idéias iluministas, mentais, opostas ao poder absoluto, foram
mas pouco modificando os poderes do Mo- a grande bandeira do liberalismo, objetivos
narca, com atuação ilimitada e irresponsá- esses já preconizados por Locke (2002, p.
vel juridicamente. 94):
O absolutismo iniciou-se com o fim do “(...) quando os homens constituem
feudalismo, tomando forma mais robusta à sociedade abandonando a igualdade,
medida que o governante concentrava a liberdade e o poder executivo do es-
poderes em suas mãos, atingindo seu tado de natureza aos cuidados da co-
pináculo na Idade Moderna, tendo ficado munidade para que disponha deles
conhecida de todos, nesse período, a frase por meio do poder legislativo de acor-
de Luis XIV: L’Etat c’est moi (“O Estado sou do com a necessidade do bem dela
eu”). mesma, fazem-no cada um com a in-
Esse período histórico somente vem a ser tenção de melhor preservar a si pró-
ultrapassado por meio das revoluções eu- prio, à sua liberdade e propriedade”.
ropéias, iniciando-se na Inglaterra com a O Estado de Direito, de cunho liberal,
Revolução Gloriosa de 1688, tendo, em de- portanto, é caracterizado, em suma, pela
corrência dela, sido assinada a Bill of Rights presença de dois elementos: a limitação do
em 1689, que instituiu o governo parlamen- poder estatal e o respeito aos direitos fun-
tar inglês. Na França, por sua vez, o absolu- damentais do homem1.
tismo foi afastado pela Revolução burguesa “Foi assim – da oposição histórica
de 1789. e secular, na Idade Moderna, entre a
liberdade do indivíduo e o absolu-
6. Liberalismo e Estado de Direito tismo do monarca – que nasceu a
primeira noção do Estado de Direito,
Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2004b, mediante um ciclo de evolução teóri-
p. 5), em seu magistério, esclarece que a “lo- ca e decantação conceitual, que se
cução Estado de Direito foi cunhada na Ale- completa com a filosofia política de
manha: é o Rechtsstaat. Aparece num livro Kant. Esse primeiro Estado de Direi-
de Welcker, publicado em 1813, no qual se to, com seu formalismo supremo, que
distinguem três tipos de governo: despotis- despira o Estado de substantividade
mo, teocracia e Rechtsstaat. Igualmente foi na ou conteúdo, sem força criadora,
Alemanha que se desenvolveu, no plano filo- reflete a pugna da liberdade contra
sófico e teórico, a doutrina do Estado de Di- o despotismo na área continental
reito. Nas pegadas de Kant, Von Mohl e mais européia.” (BONAVIDES, 2004, p.
tarde Stahl lhe deram a feição definitiva. 41).
A submissão do Estado ao Direito é re- É importante notar que, ao falarmos de
sultado das revoluções burguesas do sécu- Estado Liberal, estamos falando de limites

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do Estado. Nessa limitação estatal, dois fe- riam os tipos de Estados submetidos ao Di-
nômenos ocorrem: a limitação dos poderes reito.
do Estado (noção de Estado de Direito); a Pela doutrina do liberalismo, a subordi-
limitação das funções do Estado (noção de nação do Estado ao Direito, além dessa li-
Estado mínimo). O liberalismo é uma dou- mitação formal, apresenta um necessário
trina do Estado limitado tanto com respeito reconhecimento e a conseqüente proteção de
aos seus poderes quanto às suas funções certos valores fundamentais do homem, cons-
(BOBBIO, 2000a, p. 17). titucionalmente enumerados. É o que se pode
Não se pode deixar de registrar, neste chamar doutrinariamente de Estado de Direi-
ponto, que das revoluções burguesas do sé- to forte, pois dele fazem parte os mecanismos
culo XVIII não nasceu a democracia, mas constitucionais de controle do poder público
delas se originou, isto sim, o governo repre- de modo a evitar os seus excessos e a garantir
sentativo, conceito mais restrito do que o de as liberdades públicas fundamentais.
democracia, considerando que a participa- No entanto, existem outros tipos de Es-
ção popular no governo daquele período tado cuja subordinação ao Direito sofre mi-
restou bastante limitada. tigações, sendo portanto considerados, se-
Vale lembrar que, até meados do século gundo as palavras de Bobbio, Estado de Di-
XIX, entendia-se democracia como a parti- reito fraco e fraquíssimo. O Estado de Direito
cipação direta do povo nos destinos da na- em sentido fraco é o Estado não-despótico, isto
ção, locução que se contrapunha ao termo é, dirigido não pelos homens, mas pelas leis.
“representação”. Rousseau (2002, p. 125), E o Estado de Direito em sentido fraquíssimo,
que não admitia a representação da vonta- tal como o Estado kelseniano segundo o
de popular, retratou bem essa distinção em qual, uma vez resolvido o Estado no seu or-
sua obra “Do Contrato Social” (1762): denamento jurídico, todo Estado é Estado
“A soberania não pode ser repre- de Direito (e a própria noção de Estado de
sentada, pela mesma razão por que direito perde toda força qualificadora).
não pode ser alienada; ela consiste, Não obstante essas variações, alguns
essencialmente, na vontade geral, e a princípios do Estado de Direito podem ser
vontade não pode ser representada; destacados em sua configuração básica. Se-
ela é a mesma ou é outra; não há meio gundo o prof. Manoel Gonçalves Ferreira Fi-
termo. Os deputados do povo não são, lho (2004b, p. 23), os três grandes princípi-
pois, nem podem ser, seus represen- os encontráveis num Estado submetido ao
tantes, já que não passam de comissá- Direito são: o princípio da legalidade, o prin-
rios; nada podem concluir definitiva- cípio da igualdade e o princípio da justicia-
mente. Toda lei que o povo não ratifi- lidade.
cou em pessoa é nula; não é uma lei. O O princípio da legalidade, que contém a
povo inglês pensa ser livre; ele se en- afirmação da liberdade do indivíduo como
gana muito, pois só o é durante a elei- regra geral, seria a fonte única de todas as
ção dos membros do Parlamento; as- obrigações dentro de um Estado de Direito.
sim que são eleitos, o povo torna-se A lei vincula o Poder Executivo, que não
escravo, não é nada. No curto momen- pode exigir condutas que não estejam pre-
to de sua liberdade, o uso que dela faz vistas em lei, submete a função do Judiciá-
bem merece que a perca.” rio, que não pode impor sanção sem que esta
De volta à questão do Estado de Direito, esteja definida em lei, e embasa a atuação
este, em suma, é um tipo de Estado em que o do Legislativo, que nada pode prescrever
exercício do poder estatal é limitado e regu- senão por meio de uma lei.
lado por normas jurídicas gerais. Todavia, A igualdade é princípio informador do
essa definição sofre variações conforme va- conceito de lei no Estado de Direito, limi-

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tando o Poder Legislativo, posto que suas igualdade perante a lei; terceiro, as
formulações legais devem ser iguais para regras da Constituição são a conse-
todos, proibindo o arbítrio, tratando os qüência e não a fonte dos direitos in-
iguais de forma igual e os desiguais de for- dividuais, pois ‘os princípios gerais
ma desigual, na medida em que se desigua- da Constituição são o resultado de
lam. decisões judiciais que determinam os
A justicialidade, vista como princípio direitos dos particulares (private per-
também, é o controle dos atos do Estado de sons) em casos trazidos perante as cor-
Direito, que deve conter um procedimento tes’. Portanto, ‘a Constituição é o re-
contencioso para decidir os litígios, sejam sultado da lei comum da terra’ (ordi-
estes entre as autoridades superiores do nary law of the land)”.
Estado, ou entre autoridades e particulares, Como se vê, a locução rule of law tem ca-
ou, num Estado federal, entre a Federação e ráter mais específico do que a expressão
um Estado-membro, ou entre Estados-mem- Estado de Direito, enquanto caracterizado-
bros etc. ra da situação inglesa na relação do poder
Interessante observar que, nessa análise público com os seus cidadãos.
do Estado de Direito, não há como escapar Inclusive, alguma insuficiência da di-
da medida da lei (mesmo que seja a Lei Mai- mensão da fórmula rule of law pode ser iden-
or de um Estado de Direito, que é a sua Cons- tificada, conforme anota com mestria Ca-
tituição), que irradia sua presença tanto ao notilho: “a necessidade de um ‘New Bill of
princípio da igualdade como também ao Rights’ e mesmo de uma ‘ Written Constitution’
princípio da justicialidade. A igualdade é que estabeleça vinculações jurídicas precisas
revelada pela vontade expressa na lei, e a à clássica e incontornável parliamentary sove-
justicialidade se pauta pelos critérios e re- reignty”. (CANOTILHO, 2002, p. 94).
gras contidos na lei. O Rechtsstaat, do direito alemão, a seu
A preponderância da lei no Estado Libe- turno, que pode ser traduzido por Estado
ral, como meio de contenção dos poderes do de Direito, apareceu no início do século XIX,
Estado e como forma de garantia das liber- dentro do constitucionalismo alemão, ten-
dades negativas, levou a um culto da lei, do as seguintes características, apontadas
que transmudou o Estado de Direito em pelo magistério de Canotilho (2002, p. 97): o
mero Estado de legalidade, o que será exa- Estado de Direito é um Estado liberal, limi-
minado mais adiante neste estudo. tado à defesa da ordem e segurança públi-
cas; as questões econômicas e sociais fica-
7. The Rule of Law e o Rechtsstaat ram sob o domínio dos mecanismos da li-
berdade individual e da liberdade de con-
A expressão em Inglês The Rule of Law, corrência; a garantia dos direitos fundamen-
por vezes tida como sinônima de Estado de tais decorreria do respeito de uma esfera de
Direito, na verdade, representa sentido li- liberdade individual, sendo que a liberda-
geiramente distinto deste último. de e a propriedade somente poderiam so-
Ela pode ser vista como antecedente di- frer intervenções por parte da administra-
reto e imediato do Estado de Direito, na dou- ção quando tal fosse permitido por uma lei
trina inglesa, conforme observa Manoel aprovada pela representação popular; a li-
Gonçalves Ferreira Filho (2004b, p. 11): mitação do Estado pelo direito teria de es-
“Assim, no limiar da revolução de tender-se ao próprio soberano, estando este
Cromwell, estava definido o rule of law também submetido ao império da lei; e os
que Dicey sintetiza em três pontos: poderes públicos, nas áreas de defesa e se-
primeiro, a ausência de poder arbitrá- gurança públicas, deveriam atuar nos ter-
rio por parte do Governo; segundo, a mos da lei (princípio da legalidade da ad-

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ministração); e, por fim, a existência de um or, não revelado na lei, ele não vincula o
controle judicial da atividade da adminis- Estado. Não se cogita se a lei é justa ou in-
tração pública, que, no modelo alemão, po- justa, basta que tenha sido elaborada e apro-
deria ser feito ou pela jurisdição ordinária vada pelos canais formais legislativos esta-
ou pela justiça administrativa (tribunais tais, para estar apta a produzir os seus efei-
administrativos). tos. E o mesmo conceito se aplicaria à Cons-
tituição do Estado, a Lei Máxima, destituí-
8. Estado Legal da de que qualquer valor ideológico, segun-
do a doutrina científica e “antiideológica”
A absolutização da lei, caracterizadora kelseniana.
do chamado Estado Legal, merece ser exa- Na França, onde construiu-se uma pi-
minada com mais profundidade, entrando râmide jurídica, tendo no seu cume a Decla-
no âmago dessa doutrina, perquirindo-lhe ração de Direitos de 1789, em resposta ao
seu sentido e significado reais dentro de Ancien Régime, paradoxalmente, afirmou-se
uma organização política juridicamente so- o primado da lei com base na doutrina da
berana. soberania nacional expressa pela assem-
Não se pode esquecer que a fórmula do bléia legislativa. Erigiu-se, na prática, por-
Estado de Direito, guardião das liberdades tanto, o L´État légal. Conseqüentemente, “ a
individuais, sofreu enorme influência da supremacia da Constituição foi neutralizada
classe burguesa, em especial por conta da pela primazia da lei. (...) Não sem razão, se
Revolução francesa de 1789. fala do constitucionalismo francês como
“A burguesia, classe dominada, a um constitucionalismo sem Constituição” .
princípio e, em seguida, classe domi- (CANOTILHO, 2002, p. 96).
nante, formulou os princípios filosó- Nesse tipo de Estado, o Estado da lei,
ficos de sua revolta social. E, tanto todos estão submetidos à norma jurídica,
antes como depois, nada mais fez do inclusive aqueles que a fazem e também o
que generalizá-los doutrinariamente governante. A lei é colocada como ponto
como ideais comuns a todos os com- central do Estado.
ponentes do corpo social. Mas, no A doutrina e a jurisprudência ocupam
momento em que se apodera do con- papel meramente coadjuvante com relação
trole político da sociedade, a burgue- à lei. Com esta devem se conformar. Há, por-
sia já se não interessa em manter na tanto, uma sobrevalorização do princípio da
prática a universalidade daqueles legalidade, sendo este o super protetor das
princípios, como apanágio de todos liberdades individuais, levando a uma su-
os homens. Só de maneira formal os perlegalidade do Estado, com uma redução
sustenta, uma vez que no plano de do Direito à lei.
aplicação política eles se conservam, Nesse quadro, conforme arguta obser-
de fato, princípios constitutivos de uma vação de Manoel Gonçalves Ferreira Filho
ideologia de classe”. (BONAVIDES, (2004b, p. 45), “não há, portanto, Estado
2004, p. 42). Legal injusto. Todo Estado é um Estado de
Como já foi mencionado anteriormente, Direito, nesse sentido. Em face dessa con-
o positivismo jurídico, capitaneado por cepção positivista do Direito, o Estado não
Hans Kelsen, deu sua contribuição para encontra limites jurídicos anteriores à Cons-
transformar o Estado de Direito em mero tituição”.
Estado de legalidade ou, simplesmente, Es- A máxima valorização do princípio da
tado Legal2. legalidade, verdadeira panacéia jurídica,
A medida desse não consegue passar do remanesce até os nossos dias, fazendo mui-
espectro da lei. Se existe um Direito superi- tos crerem que a solução para todos os ma-

Brasília a. 42 n. 167 jul./set. 2005 221


les da sociedade está na elaboração e apro- cule um valor de Justiça postulado pela so-
vação de uma lei. ciedade, e a posteriori, por meio de um órgão,
Esse fenômeno foi muito bem abordado o Judiciário, que estaria à disposição da so-
pelo professor Sérgio Resende de Barros ciedade para rever aquelas normas jurídi-
(2003, p. 14), que o chama de hipernorma- cas que porventura não retratem essa ex-
ção ou penalose (inflação legislativa penal pressão de justiça ou, mais grave, sejam a
punitiva). expressão da própria injustiça.
“Assim, ao exacerbar o direito para
combater a corrupção, o estatuto da 9. Estado Social
contratação administrativa brasileira
contaminou-se de penalose em duplo O princípio de igualdade do Estado de
sentido: aliando a tipificação penal, legalidade não passava de um mero forma-
ora ao excesso, ora à deficiência de lismo jurídico, que não alterava em nada a
legislação. Mas, o que é a penalose? É situação dos destinatários da lei. Ao con-
uma doença jurídica. Consiste em trário, a lei produzida nesse quadro políti-
transformar tudo em infrações penais co colhia e mantinha os cidadãos no estado
para aterrorizar todos com punições em que se encontravam. A única garantia
penais. Indigna do Estado de Direito, proporcionada por esse tipo de direito, como
é uma afecção do direito penal mani- se sabe, era de uma liberdade negativa, uma
festada por normas penalóides, nas abstenção do poder público.
quais a tipificação criminal visa ao O elemento faltante, que deveria ir para
fim-mor de incutir o terror geral.” além da igualdade jurídica, formal, do Esta-
Poderíamos acrescentar que a inflação do Liberal era o encontro com o igualitaris-
de produção legislativa, em particular no mo democrático, a conquista de um ideal de
Brasil, é agravada pelo furor legislativo das equalização econômica e de oportunidades.
medidas provisórias, que constantemente Essa estrutura política sofreu uma ten-
trancam a pauta do Poder Legislativo e, não tativa de alteração, bastante forte, por meio
raro, surpreendem o cidadão com normas do que se chama de Estado Social. Este “re-
de origem atípica, pois feitas pelo Executi- presenta efetivamente uma transformação
vo, que tiram toda a previsibilidade jurídica superestrutural por que passou o antigo
que o direito deveria apresentar e tornam Estado liberal”. (BONAVIDES, 2004, p. 184).
letra morta o adágio: “a ninguém é dado Não se pode confundir aqui o Estado
desconhecer o direito”. É a verdadeira des- Social com o socialismo. Este é uma doutri-
moralização das leis e do legislador. O ex- na que visa combater o capitalismo selva-
cesso de leis e medidas provisórias está gem, mudando radicalmente o eixo político
matando o direito. do Estado, para resolver a questão social,
O grande questionamento que pode e procurando afastar o uso exacerbado da
deve ser feito com relação ao Estado Legal propriedade privada, propondo que esta
diz respeito à legitimidade da lei, ou à au- seja melhor distribuída de forma impositi-
sência dela na produção normativa. Ao con- va. Aquele, o Estado Social, como ensina
trário de Kelsen, que nega que algum tipo Bonavides (2004, p. 184),
de valor de justiça seja componente do con- “conserva sua adesão à ordem capi-
ceito de Direito, a sociedade reclamou uma talista, princípio cardeal a que não
renovação do Estado de Direito, exigindo renuncia. Daí compadecer-se o Esta-
que a lei seja necessariamente expressão da do social no capitalismo com os mais
justiça. variados sistemas de organização
E os mecanismos para essa aferição de- política, cujo programa não importa
vem ser feitos previamente, para que a lei vei- modificações fundamentais de certos

222 Revista de Informação Legislativa


postulados econômicos e sociais. A Manoel Gonçalves Ferreira Filho (2004a,
Alemanha nazista, a Itália fascista, a p. 45) chama a atenção para o que ele enten-
Espanha franquista, o Portugal sala- de ter sido “o principal documento da evo-
zarista foram ‘Estados Sociais’. Da lução dos direitos fundamentais para a con-
mesma forma, Estado social foi a In- sagração dos direitos econômicos e sociais:
glaterra de Churchill e Attlee; os Esta- a Constituição francesa de 1848”. Esta Lei
dos Unidos, em parte, desde Roose- Fundamental da França continha capítulo
velt; a França, com a Quarta Repúbli- em que reconhecia os direitos e deveres an-
ca, principalmente, e o Brasil, desde a teriores e superiores às leis positivas, atri-
revolução de 1930 ”. buindo à República a tarefa de proteger o
Fenômeno paralelo ao avanço das liber- cidadão na sua pessoa, sua família, sua pro-
dades públicas, alavancadas e garantidas priedade, seu trabalho e pôr ao alcance de
pelo liberalismo foi a degradação dos as- cada um a instrução indispensável a todos
pectos econômicos e sociais daquela época. os homens. Além disso, por uma assistên-
A liberdade experimentada pelo indivíduo cia fraternal, assegurar a existência dos ci-
no Estado abstencionista provocou um in- dadãos necessitados, seja procurando-lhes
tenso e grave quadro de desigualdades so- trabalho nos limites de seus recursos, seja
ciais, especialmente pesado para a classe dando, à falta de trabalho, socorro àqueles
trabalhadora, impotente perante o poder que estão sem condições de trabalhar. E no
econômico da classe dominante burguesa. artigo 13, a referida Constituição estabelece
Dessa situação de penúria e miséria do pro- que o Estado providenciará “trabalhos pú-
letariado e de outros seguimentos sociais blicos para empregar os braços desocupa-
desfavorecidos e marginalizados, dentro do dos”.
Estado mínimo, surge o questionamento do Observa-se, assim, uma mudança pro-
papel do Estado: é a incontornável “Ques- funda na função do Estado liberal para o
tão Social”. social. Do abstencionismo, passa-se para a
A pressão da sociedade que exigia solu- intervenção pública em prol do social, vi-
ção para essa questão fez surgir o denomi- sando a extirpar desigualdades no seio da
nado Estado Social. Evidente que o apareci- sociedade e oferecer oportunidades para
mento deste não ocorreu de maneira tão sim- uma igualação daqueles que se encontram
plista. Outros fatores concorreram para que em condições desfavoráveis, reconhecendo
isso ocorresse. Nesse sentido, pode-se men- que a própria sociedade não teria condições
cionar: a luta de classes, perpetrada por ati- de assumir esse papel.
vistas revolucionários; a desestabilização Bonavides (2004, p. 188) pontua que “o
das instituições públicas; a ascensão de tra- velho liberalismo, na estreiteza de sua for-
balhadores a certos direitos políticos, espe- mulação habitual, não pôde resolver o pro-
cialmente ao voto e elegibilidade, com uma blema essencial de ordem econômica das
tendência à universalização do sufrágio. vastas camadas proletárias da sociedade, e
O Estado de Direito inicia, então, seu por isso entrou irremediavelmente em cri-
processo histórico de mudanças fundamen- se”.
tais, numa evolução a justificar, portanto, o Esse fenômeno não poderia passar des-
novo rótulo que passaria a receber de “Esta- percebido pelo Direito, até porque, indo
do Social”. mais além, é também por meio do Direito –
A preocupação do Estado, agora, passa mas não só por ele – que tais transforma-
a ser a conquista dos direitos econômicos e ções podem ser implementadas. Justifica-se,
sociais. Nessa esteira, alguns documentos por isso, a inclusão desses novos direitos e
políticos da era moderna se destacam nesse funções do Estado em seus documentos po-
escopo. líticos.

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Além da já mencionada Constituição vez até por isso se possa dar razão a
francesa de 1848, outras duas Cartas Políti- Forsthoff quando exprime a idéia de
cas ficaram conhecidas por esse pioneiris- que Estado de Direito e Estado Social
mo em prol do social: a Constituição mexi- não podem fundir-se no plano consti-
cana de 1917, que anteciparia determina- tucional. O próprio Elias Díaz, que
dos direitos sociais; e, em especial, a Consti- reconhece a importância histórica do
tuição alemã de Weimar (1919), que institui- Estado Social de Direito, não deixa de
ria um novo parâmetro para o Estado, mar- lembrar a suspeita quanto a ‘saber se e
cado pelo espírito social, introduzindo im- até que ponto o neocapitalismo do Estado
portantes elementos para o avanço de direi- Social de Direito não estaria em realidade
tos relativos à educação, propriedade, tra- encobrindo uma forma mais matizada e sutil
balho, previdência social etc. de ditadura do grande capital, isto é, algo
O Estado Social caracteriza-se pela afir- que no fundo poderia denominar-se, e
mação dos direitos econômicos da socieda- se tem denominado, neofascismo’”.
de e pela realização dos objetivos da justiça Se as revoluções liberais maximizaram
social, que seria rotulado de Welfare State. os direitos individuais e supervalorizaram
“O Estado passou, graças a uma a liberdade pessoal, o Estado Social, por sua
intervenção crescente na ordem eco- corrente moderada,3 tenta conviver com o
nômica e social, a perseguir uma mais capitalismo, de forma domesticada, e intro-
justa distribuição dos bens de tal sor- duzindo elementos do socialismo, particu-
te que a todos fossem facilitados re- larmente procurando uma mais justa distri-
cursos mínimos para a fruição dos buição de riquezas e socorrendo os mais
direitos fundamentais clássicos. Isto, necessitados, o que, evidentemente, teria que
contudo, não foi possível senão por redundar numa restrição aos direitos fun-
meio da imposição de regulamenta- damentais do indivíduo, numa concepção
ções e de novas obrigações ao cida- bastante inovadora a ser adotada por um
dão (...)”. (BASTOS, 2001, p. 181). diferente tipo de Estado.
Não obstante tais objetivos realizadores Interessante notar que, na seara do Di-
da justiça desse tipo de Estado, o mesmo reito, propriamente falando, poderíamos
não ficou e não está infenso a críticas, prin- afirmar que a primeira leva dos assim cha-
cipalmente em face dos resultados alcança- mados direitos humanos, trazida pelos ven-
dos, considerados insuficientes diante dos tos do liberalismo, de caráter negativo, teria
enormes problemas que persistem no seio so- surgido do combate dos liberais ao absolu-
cial. tismo. A segunda corrente de direitos hu-
José Afonso da Silva (1998, p. 65, grifo manos, de cunho social, surge em conse-
nosso) anota que seria qüência da crítica originada por força do
“insuficiente a concepção do Estado socialismo ao liberalismo.
Social de direito, ainda, que como Es- Em outro giro verbal, a segunda geração
tado Material de Direito, revele um de direitos surgiu para implementar a pri-
tipo de Estado que tende a criar uma meira geração, ou seja, para dar condições
situação de bem-estar geral que garan- ao indivíduo de exercer sua verdadeira li-
ta o desenvolvimento da pessoa hu- berdade, reconhecendo que a igualdade for-
mana. Sua ambigüidade, porém, é mal apregoada pelos liberais jamais se con-
manifesta. Primeiro, porque a palavra cretizaria pela mão do Estado neutro, não
social está sujeita a várias interpretações. intervencionista, necessitando da força do
(...) Em segundo lugar, o importante Estado Social para trazer ao mesmo nível os
não é o social, qualificando o Estado, desvalidos e faltos de oportunidade daque-
em lugar de qualificar o Direito. Tal- les que se encontravam e se encontram em

224 Revista de Informação Legislativa


situação privilegiada, realizando a igualda- tivo “democrático” do Estado de Direito,
de material. uma vez que ele faz toda a diferença na aná-
Não se pode negar que o passo dado em lise do conceito em questão.
direção ao Estado social, na verdade, foi um Na tentativa de explicar o conceito de
pulo gigantesco para a evolução da socie- Estado Democrático de Direito, variados
dade. Entretanto, o caminho apenas se ini- aspectos são elencados pelos cientistas po-
ciou. A fragilidade desse tipo de Estado é líticos e juristas, considerados por eles como
desnudada quando a manifestação do seu necessários para a sua definição.
aspecto social não passa de mero paterna- Loewenstein (1976, p. 149), por exemplo,
lismo e este se encontra imiscuído em uma afirma que
estrutura política concentradora de poder, “la classificación de un sistema político
autocrática, ou mesmo carecedora de legiti- como democrático constitucional depende
midade popular. de la existencia o carencia de instituciones
Esse, afirmamos, é – ou pode ser – o pon- efectivas por meio de las cuales el ejercicio
to fraco do Estado Social. Tendo em vista del poder político esté distribuido entre
que ele se coaduna – ou se permite coadu- los detentadores del poder, y por medio de
nar – com regimes políticos ilegítimos, an- las cuales los detentadores del poder estén
tagônicos até aos objetivos fundamentais sometidos al control de los destinatarios
daquele, permitindo a introdução de coman- del poder, constituidos en detentadores
dos de poder de cunho totalitário ou despó- supremos del poder”.
tico, resta fraturada a estrutura nuclear do No entendimento de Loewenstein (1976,
Estado Social, o que anularia o seu escopo p. 152), o aspecto principal do Estado De-
de justiça social. mocrático Constitucional residiria na dis-
A estrutura política do Estado de Direito tribuição e nos mecanismos institucionais
deve assentar-se, defendemos, sobre um tri- de controle do poder político, fazendo com
nômio composto por aspectos do liberalis- que este seja efetivamente submetido aos
mo (controle da autoridade e manutenção seus destinatários, ou seja, ao povo. Mais à
dos direitos fundamentais do homem), do frente em sua primorosa obra, “Teoria da
socialismo (busca da igualdade material e da Constituição”, Loewenstein destaca a im-
justiça social) e da soberania popular (elemen- portância da Constituição na formulação e
to democrático do poder). O Estado Social, formalização da ordem fundamental da so-
por si só, não restaria suficiente para atender ciedade estatal, com um indispensável as-
este último fundamento da estrutura política pecto material em seu elemento fundamen-
de um Estado. A ausência de um desses com- tal para alcançar-se o controle do poder.
ponentes do trinômio referido causaria, mais No entanto, embora seja um elemento
cedo ou mais tarde, a ruína do ser estatal. importante e indispensável do Estado De-
Em razão disso, devemos avançar mais mocrático de Direito, o controle do poder
na composição do conceito do Estado de político nos parece ser insuficiente para ca-
Direito, agregando-lhe outro indispensável racterizar todo o significado desse conceito.
elemento, dando o suporte necessário à sua Isso porque ele deixaria em aberto alguns
anatomia, denominando-o, assim, Estado flancos em sua estrutura política e na finali-
Democrático de Direito, conceito-chave que dade desta, especialmente quanto à neces-
será a seguir examinado. sária legitimidade desse mesmo poder, o
interesse público que deve movê-lo e a pro-
10. O Estado Democrático de Direito moção da justiça social.
Uma definição de Estado Democrático
Óbvio dizer que o elemento objeto de exa- de Direito é apresentada, por outro lado,
me nesta parte de nosso estudo será o adje- como sendo “a exigência de reger-se por

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normas democráticas, com eleições livres, “se funda no princípio da soberania popu-
periódicas e pelo povo, bem como o respeito lar que ´impõe a participação efetiva e ope-
das autoridades públicas aos direitos e ga- rante do povo na coisa pública, participa-
rantias fundamentais”. (MORAES, 2000, p. ção que não se exaure, como veremos, na
43). simples formação das instituições represen-
Essa aproximação do conceito em tela tativas, que constituem um estágio da evo-
pecaria por restringir o elemento democrá- lução do Estado Democrático, mas não o seu
tico à limitação do poder estatal e a demo- completo desenvolvimento’”.
cracia ao instituto da representação políti- Assim, a substância da soberania popu-
ca. Esta, em virtude de seus inúmeros defei- lar deve ser representada pela autêntica, efe-
tos, não pode fundamentar o Estado Demo- tiva e legítima participação democrática do
crático de Direito, pelo menos não como ele povo nos mecanismos de produção e con-
deveria ser, já que o princípio democrático trole das decisões políticas, em todos os as-
não se reduz a um método de escolha dos pectos, funções e variantes do poder estatal.
governantes pelos governados. A célebre e irreparável fórmula de
Mesmo que se considere que a universa- Abraham Lincoln, quanto à essência da
lização do sufrágio, em tese, realizaria a in- democracia, “governo do povo, pelo povo
tegral participação de todos e de cada uma e para o povo”, é considerada ainda hoje a
das pessoas na vida política do país, confor- melhor síntese do princípio democrático. De-
me afirma Alexandre de Moraes (2000, p. 44), compondo essa fórmula, deve-se entender
essa participação, embora generalizada em os seus elementos da seguinte maneira. “Go-
certo grau – o que esconderia, diga-se, as res- verno do povo” é o sujeito da democracia, o
trições existentes ao direito de voto -, ficaria seu fundamento; o “governo pelo povo” diz
limitada à mera escolha dos governantes. respeito ao exercício do poder democratiza-
Acrescente-se que o próprio professor do, revelador do seu correto funcionamen-
supracitado aponta a crise do sistema re- to; e “governo para o povo” será a finalida-
presentativo, que tem resultado no distan- de do poder democrático, o atingimento do
ciamento entre a vontade do representante bem comum.
e do representado. “O problema central da O governo democrático tem por funda-
representação política, portanto, acaba por mento, portanto, o binômio liberdade políti-
consistir na impossibilidade de aferir a com- ca e igualdade política.
patibilidade entre a vontade popular e a O princípio da soberania popular com-
vontade expressa pela maioria parlamen- porta, segundo o brilhante magistério de J.J.
tar. Entre outras importantes causas, poder- Canotilho (2002, p. 292), que merece ser re-
se-iam apontar três primordiais para esse produzido, cinco dimensões, historicamen-
distanciamento entre representantes e repre- te sedimentadas. Seriam elas: (1) o domínio
sentados: o desvirtuamento da proporcionali- político não é pressuposto e aceite, carece de
dade parlamentar, o total desligamento do par- justificação, necessita de legitimação; (2) a
lamentar com o seu partido político e a ausência legitimação do domínio político só pode de-
de regulamentação na atuação dos grupos de rivar do próprio povo e não de qualquer
pressão perante o Parlamento”. (MORAES, outra instância “fora” do povo real (ordem
2000, p. 47). divina, ordem natural, ordem hereditária,
O Estado Democrático envolve necessa- ordem democrática; (3) o povo é, ele mesmo,
riamente – deve apresentá-los em seu signi- o titular da soberania ou do poder, o que
ficado – aspectos outros para a sua compre- significa: (i) de forma negativa, o poder do
ensão, sendo o principal deles a soberania povo distingue-se de outras formas de do-
popular. Conforme expõe José Afonso da mínio “não populares” (monarca, classe,
Silva (1988, p. 66), o Estado Democrático casta); (ii) de forma positiva, a necessidade

226 Revista de Informação Legislativa


de uma legitimação democrática efectiva termos sonoros. Traduzem quando muito
para o exercício do poder, pois o povo é o conotações ideológicas que, quanto mais
titular e o ponto de referência dessa mesma vagas forem, maior possibilidade terão de,
legitimação – ela vem do povo e a este se sem desagradar a parcelas consideráveis do
deve reconduzir; (4) a soberania popular – o povo, agradar e seduzir o maior número.
povo, a vontade do povo e a formação da Fogem sempre dos problemas reais, salvo
vontade política do povo – existe, é eficaz e quando os podem colocar de forma dema-
vinculativa no âmbito de uma ordem cons- gógica para excitar os piores instintos das
titucional materialmente informada pelos massas”. (FERREIRA FILHO, 1972, p. 15).
princípios da liberdade política, da igual- Outra questão que deve ser enfrentada e
dade dos cidadãos, de organização plural que denigre a imagem dos partidos é a fide-
de interesses politicamente relevantes e pro- lidade partidária. Se não tivermos uma obri-
cedimentalmente dotada de instrumentos ga- gatoriedade de o representante do povo per-
rantidores da operacionalidade prática deste manecer no partido a que se encontra filia-
princípio; (5) a constituição, material, formal do, vinculado às suas idéias e projetos, con-
e procedimentalmente legitimada, fornece o tinuaremos com essa pseudo representação,
plano da construção organizatória da de- persistirão os freqüentes casos de traição do
mocracia, pois é ela que determina os pres- voto popular e o leilão das legendas parti-
supostos e os procedimentos segundo os dárias, tão deletérias para a democracia re-
quais “as decisões” e as “manifestações” presentativa.
de vontade do povo são jurídica e politica- A democracia representativa, conforme
mente relevantes. defende Bobbio (2002b, p. 386), deve exigir
Todas essas dimensões da soberania visibilidade do poder, com publicidade das
popular são vias de manifestação da mes- sessões do parlamento, com a formação de
ma e viabilizadoras do princípio democrá- uma opinião pública mediante o exercício
tico do Estado Democrático de Direito. O da liberdade de imprensa, com a solicitação
princípio democrático deve ser, assim, o in- dirigida aos líderes políticos que façam suas
formador do Estado e da própria sociedade. declarações através dos meios de comuni-
Resta, então, examinar os instrumentos cação de massa.
e mecanismos pelos quais o Estado Demo- A enumeração dos defeitos da represen-
crático de Direito se fortalece ou pode se for- tação, de conhecimento de todos, seria in-
talecer, viabilizando e promovendo a parti- findável e, portanto, por não ser esse o obje-
cipação popular. tivo deste trabalho, cessa aqui. Reputamos
Necessária a renovação, portanto, do mais importante apontar os mecanismos que
instituto da representação política, para que viabilizariam a efetiva participação popular
este deixe de ser um instrumento das elites nos comandos e decisões políticas. A demo-
dominantes. A modificação desse quadro cracia exige essa participação real do povo.
passa pela revisão da estrutura e do papel Consideramos necessário, no caso do
dos partidos políticos, hoje considerados no Estado brasileiro, estimular os mecanismos
Brasil mera legendas de aluguel. Os progra- de participação popular, previstos na Cons-
mas partidários são demasiadamente am- tituição Federal, em seu artigo 14, que são
plos e praticamente indefinidos, pois na meios de exercício da soberania popular:
verdade tentam incluir a maior parcela pos- plebiscito, referendo e iniciativa popular.
sível de simpatizantes e não desejam ofen- Muitos temem submeter ao povo certas
der certos grupos sociais, para não perder decisões políticas, acreditam que a socieda-
os respectivos votos. de não teria condições de avaliar determi-
“Os programas partidários contentam- nados assuntos. Esse entendimento não
se com afirmações doutrinárias, postas em passa de desculpa das elites dominantes

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para subtrair do verdadeiro detentor do po- vre, justa e solidária e fundada na dignida-
der as decisões que lhe interessam. Deve ser de da pessoa humana.
incentivado o movimento que postula o exer-
cício desses instrumentos de participação 11. Conclusão
popular. Não importa que erros ocorram
nesse exercício. A correção deles sempre será Como se percebe, chegar a uma defini-
possível, e além disso será o próprio povo que ção do que seja o Estado Democrático de
colherá as conseqüências de suas decisões. Direito significaria tentar colocar todos
Acrescentamos que seria interessante, aqueles aspectos dentro do seu conceito, sob
também, pensar a respeito da possibilidade pena de não o fazendo termos um conceito
de trazer para o Brasil, tirados da experiên- incompleto.
cia de outros países, novos institutos da Além disso, certos elementos desse con-
democracia direta ou semidireta, a exemplo ceito são tão indeterminados e tão mutáveis
do recall, direito norte-americano, que prevê – temporal e espacialmente – que uma defi-
a possibilidade de os eleitores interrompe- nição apresentada num dado momento es-
rem o mandato de seus representantes no taria desatualizada no momento seguinte,
Legislativo, antes do prazo normal, caso os ou uma definição válida para um tipo de
mesmos não estejam correspondendo aos Estado não valeria para outro.
anseios do povo. Por essa razão, o mais aconselhável não
A regulamentação dos grupos de pressão é buscar definir aqui o conceito de Estado
também deve ser encarada, para possibilitar Democrático de Direito, mas retomar e rea-
uma democratização da ação desses segui- presentar os valores e princípios que o en-
mentos sociais sobre o processo político, di- volvem ou com ele estão relacionados, para
minuindo a atuação das elites econômicas que sua compreensão seja a mais fiel possí-
sobre as decisões políticas do Estado e permi- vel. Assim teríamos:
tindo que grupos verdadeiramente popula- (1) Um Estado Democrático de Direito tem
res possam também defender seus interesses. o seu fundamento na soberania popular;
A democratização do processo de deci- (2) A necessidade de providenciar me-
sões políticas, num Estado Democrático de canismos de apuração e de efetivação da
Direito, também deve se estender ao Poder vontade do povo nas decisões políticas fun-
Judiciário, muitas vezes esquecido nesse pro- damentais do Estado, conciliando uma de-
cesso, permitindo uma melhor visualização mocracia representativa, pluralista e livre,
de sua estrutura e modos de decisão. Fala-se com uma democracia participativa efetiva;
que o controle de constitucionalidade difuso (3) É também um Estado Constitucional,
seria mais democrático do que o controle con- ou seja, dotado de uma constituição materi-
centrado, em razão de que desconcentraria al legítima, rígida, emanada da vontade do
essa decisão tão relevante para a sociedade. povo, dotada de supremacia e que vincule
Necessário dizer que o Estado Democráti- todos os poderes e os atos dela provenientes;
co de Direito somente se realiza quando se (4) A existência de um órgão guardião
constata que ele propicia uma real proteção e da Constituição e dos valores fundamentais
garantia efetiva dos direitos humanos em seu da sociedade, que tenha atuação livre e de-
seio. Há autores, inclusive, que defendem que simpedida, constitucionalmente garantida;
o Estado atual deve ser denominado de Esta- (5) A existência de um sistema de garan-
do Democrático de Direitos Humanos 4. tia dos direitos humanos, em todas as suas
Em resumo, o Estado Democrático de expressões;
Direito deve realizar a institucionalização (6) Realização da democracia – além da
do poder popular, num processo de convi- política – social, econômica e cultural, com
vência social pacífico, numa sociedade li- a conseqüente promoção da justiça social;

228 Revista de Informação Legislativa


(7) Observância do princípio da igual- BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Pau-
dade; lo: Atena, [19--?].
(8) A existência de órgãos judiciais, li- BOBBIO, Norberto; MORRA, Nello (Coord.). O
vres e independentes, para a solução dos positivismo jurídico: lições de filosofia do direito.
conflitos entre a sociedade, entre os indiví- Tradução e notas de Márcio Pugliesi, Edson Bini,
Carlos E. Rodrigues. São Paulo: Ícone, 1995.
duos e destes com o Estado;
(9) A observância do princípio da lega- BOBBIO, Norberto. Liberalismo e democracia. Tradu-
lidade, sendo a lei formada pela legítima ção de Marco Aurélio Nogueira. São Paulo: Brasili-
ense, 2000a.
vontade popular e informada pelos princí-
pios da justiça; ______.; BOVERO, Michelangelo (Org.). Teoria ge-
ral da política: a filosofia política e as lições dos
(10) A observância do princípio da se-
clássicos. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani.
gurança jurídica, controlando-se os exces- Rio de Janeiro: Campus, 2000b.
sos de produção normativa, propiciando,
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado sóci-
assim, a previsibilidade jurídica.
la. 7. ed. São Paulo; Malheiros, 2004.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 5.
ed. Coimbra: Livraria Almedina, 2002.
Notas
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de teoria ge-
1
José Afonso da Silva (1998, p. 62) alinha três ral do estado. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2003.
características do que ele chama de Estado Liberal
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. A democra-
de Direito: submissão ao império da lei; divisão de
cia possível. São Paulo: Saraiva, 1972.
poderes; e enunciado dos direitos e garantias fun-
damentais. ______. Direitos humanos fundamentais. 6. ed. São
2
Há autores que fazem referência a essa espé- Paulo: Saraiva, 2004a.
cie de Estado chamando-o de Estado Legislativo.
3
Entenda-se corrente moderada aquela doutri- ______. Estado de direito e constituição. 3. ed. São
na social que procurou domesticar o capitalismo Paulo: Saraiva, 2004b.
selvagem, mas mantendo vivos os direitos funda- KELSEN, Hans. Teoria pura do direito: introdução à
mentais do homem, especialmente o da proprieda- problemática científica do direito. Tradução de J.
de particular, enquanto a corrente radical socialis-
Cretella Júnior e Agnes Cretella. 2. ed. São Paulo:
ta, capitaneada pela doutrina marxista, que pro- Revista dos Tribunais, 2002.
duziu os Estados socialistas, como a União sovié-
tica, China e Cuba, pregava a eliminação do capi- LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. São
talismo ocidental e, em especial, da propriedade Paulo: Martin Claret, 2002.
privada.
4
Vide nesse sentido a lição de Alberto Nogueira LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución. Bar-
(2003, p. 231) em referência a Louis Favoreu, que celona: Editorial Ariel, 1976. (Coleccion Demos).
relata que na França houve o acolhimento das dis- MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito
posições da Declaração dos Direitos do Homem e das leis. Tradução de Gabriela de Andrada Dias
do Cidadão com força de norma constitucional. Barbosa. São Paulo: Ediouro, 1996.
MORAES, Alexandre de. Jurisdição constitucional e
tribunais constitucionais. São Paulo: Atlas, 2000.

Referências NOGUEIRA, Alberto. Direito constitucional das liber-


dades públicas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
BARROS, Sérgio Resende de. Direitos humanos: pa- ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social: prin-
radoxo da civilização. Belo Horizonte: Del Rey, cípios de direito político. Tradução de J. Cretella
2003.
Júnior e Agnes Cretella. São Paulo: Revista dos Tri-
______. Liberdade e contrato: a crise da licitação. 2. bunais, 2002.
ed. Piracicaba: UNIMEP, 1999.
SILVA, José Afonso da. O estado democrático de
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de teoria do estado e direito. Revista da Procuradoria Geral do Estado de São
ciência política. 5 . ed. São Paulo: Celso Bastos, 2002. Paulo, São Paulo, v. 30, dez. 1988.

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