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Deleuze e os Estóicos: Sentido e acontecimento1


Alessandro Carvalho Sales2

Alice riu. –Não adianta fazer isso – disse ela.


–Ninguém pode acreditar em coisas impossíveis.
–Eu diria que você nunca praticou bastante – disse a
rainha.
–Quando eu tinha a sua idade praticava sempre meia hora
por dia.
Às vezes me acontecia acreditar
em seis coisas impossíveis antes do café da manhã.
(Lewis Carroll)

1. Em Atenção ao Devir
Há um traço da filosofia de Deleuze que praticamente atravessa todos os seus
escritos: “O pensamento de Deleuze já foi batizado, com razão, de Filosofia do
Acontecimento.” (PELBART, 1998, p. 61) Esta é uma de suas grandes questões,
disseminada em lugares variados, às vezes tratada explicitamente, às vezes travestida sob
motivos diversos. No que toca ao foco maior deste trabalho, é preciso lembrar que “(...)
em termos deleuzianos, uma lógica do sentido equivale a uma lógica do acontecimento,
e vice-versa.” (SOUSA DIAS, 1995, p. 98)
Trata-se de um conceito perturbador, precisamente porque escapa às
categorizações mais tradicionais de que a razão comumente se vale para pensar coisas e
estados de coisas. Não há, por exemplo, como este acontecimento ser enxergado pelas
mídias jornalísticas, ele nada tem a ver com o acidental, o factual ou o histórico3. A
filosofia de Deleuze encara o monumental desafio de circunscrever a porosidade de uma
trama que, em última instância, compõe mundos...
Começaremos tecendo algumas asserções sobre o problema do devir, considerado
logo no início da Lógica do Sentido. Deleuze vai fazer valer o seu apreço pelos livros de
Lewis Carroll:

Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas
por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora. Sem dúvida, não é

1
Este texto é o segundo capítulo da dissertação de mestrado Considerações sobre o Sentido em Deleuze:
Apontamentos para uma Teoria do Signo e da Comunicação, defendida em março de 2003 no âmbito do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), com apoio do CNPq. Pequenas modificações foram realizadas, tendo em vista esta
publicação.
2
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
3
Cf. Deleuze, 1990/1992, pp. 198-199.
2

ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se
torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo,
no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos
menores do que nos tornamos. (DELEUZE, 1969/1998, p. 1)

As aventuras de Alice evidenciam a existência de uma dimensão extraordinária,


que advém na medida em que não se deixa fixar por um momento presente qualquer, e
que, por isto, não pode também ser situada em relação a um passado ou a um futuro
relativos. Pelo contrário, “pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos
ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar menor e inversamente” (ibidem, p. 1). Não
reconhecendo nossas coordenadas cronológicas, poderíamos dizer que o devir corta, de
modo abrupto e infinitesimal, o tempo costumeiro, como se cada clarão se desse pela
composição de duas linhas ilimitadamente divergentes: um passado-futuro insiste em
cada presente e a cortina do instante se fecha – inesperadamente, até o infinito – entre um
já-aí e um ainda-não. Diz-nos Deleuze:

O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta


à ação da Idéia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo
como a cópia. As coisas medidas acham-se sob as Idéias; mas debaixo das
próprias coisas não haveria ainda este elemento louco que subsiste, que “sub-
vem”, aquém da ordem imposta pelas Idéias e recebida pelas coisas? (ibidem,
p. 2)

Esta será a dimensão salientada pelo trabalho de Deleuze; não a face efetivamente
empírica e visível do mundo, mas aquela que a tudo subjaz, fluxo incessante que contém
toda efetuação. Pelos meandros enredados dos devires, ele vai buscar erigir as novidades
de sua filosofia. E – não é difícil notarmos – o devir ganha o estatuto do paradoxo, da
ambigüidade, da indiscernibilidade, da multiplicidade, da identidade infinita: “identidade
infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do
amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da
causa e do efeito.” (ibidem, p. 2)
Eis porque, valorizando o devir e os conceitos que com ele se coadunam, Deleuze
também se afastará radicalmente das figuras racionalizantes do bom senso e do senso
comum. O bom senso diz respeito ao bom caminho, o sentido acertado, sensato, racional,
aquele capaz de prever e orientar as coisas segundo uma direção única fixada como
3

verdadeira, e que vai do mais diferenciado ao menos diferenciado, do passado ao futuro.


O bom sentido, a boa média, é correlato de um senso comum, senso que agora não se diz
mais como caminho ou direção, mas como órgão, função ou faculdade, que, subsumindo
outras diversas faculdades, faz convergi-las rumo à consciência de um sujeito e ao
reconhecimento de um objeto, num tipo de operação que, valorizando unificações e
identificações, inevitavelmente premia o estatuto do mesmo4. “O paradoxo é, em primeiro
lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o
senso comum como designação de identidades fixas”. (ibidem, p. 3)
Portanto, nesta perspectiva que é a de Deleuze, enquanto, pelo bom senso e pelo
senso comum, o pensamento fica reduzido à operação tautológica do mesmo, na qual um
sujeito se refestela ao se reconhecer e ao reconhecer objetos, sem que haja margem para
a criação e a novidade, os paradoxos, de outro lado, são “a paixão do pensamento”
(ibidem, p. 77) e referem aquilo que o agita, que o provoca, que justamente o faz sair de
uma condição supostamente natural5.
Há certamente que existir uma relação muito especial entre estes paradoxos e a
linguagem que os expressa. Se a linguagem tem seus elementos tipicamente cristalizados,
partículas lexicais já bastante sedimentadas numa cultura e que aparentemente resolvem
de uma maneira muito simples a relação entre as palavras e as coisas, ela também
expressa, em alguns pontos singulares, todo um movimento, uma celeuma sintático-
vocabular, diferenças que ratificam as potências de conexão com uma esfera outra e que
complicam sobremaneira os liames entre a linguagem e o mundo.6 Estes movimentos
estão particularmente manifestados na arte e na literatura. Lewis Carroll por exemplo.
Deleuze não deixará então de atestar uma condição muito especial de suas
proposições, e que muitas vezes exemplifica e comprova segundo cruzamentos com a
atividade literária. Se os devires paradoxais afirmam as direções ambíguas e divergentes
contra a direção única de um bom senso, bem como as identidades múltiplas contra a
fixidez identitária subjetiva e objetiva relativa a um senso comum, eis que Alice e o
próprio País das Maravilhas têm uma direção sempre dupla, sempre subdividida; do

4
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 3, pp. 79-81.
5
Deleuze adverte, logo no prólogo da obra: “Apresentamos séries de paradoxos que formam a teoria do
sentido. Que esta teoria não seja separável de paradoxos explica-se facilmente: o sentido é uma entidade
não-existente, ele tem mesmo com o não-senso relações muito particulares.” Poderíamos também
perguntar: como é possível que os sentidos – eles que são da ordem do ideal, da névoa – se expressem pela
concretude formal de uma linguagem? Já não estaria aí o paradoxo maior? E, no entanto...
6
Como diz Deleuze: “É a linguagem que fixa os limites (...) mas é ela também que ultrapassa os limites e
os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado.” (DELEUZE, 1969/1998, p. 2)
4

mesmo modo, as incertezas pelas quais ela continuamente passa destituem-na, pouco a
pouco, de suas referências pessoais, de seus saberes, de sua identidade estável e segura
enfim.7 Estamos aí diante da busca por uma filosofia suficientemente despsicologizada,
crítica dos sujeitos empíricos bem formados, das identidades plenamente individuadas, o
que era já bastante notável em certas linguagens literárias8. Os devires paradoxais, como
veremos, são os próprios acontecimentos.

2. Acontecimento aos Corpos, Sentido na Linguagem


Deleuze vai pensar o acontecimento, na Lógica do Sentido, pela via estóica. Tal
caracterização será inicialmente exibida ao longo da segunda série de paradoxos, os
efeitos de superfície, acontecimentos. Se Deleuze promove esta aliança com o estoicismo,
deve ser porque tal pensamento, fazendo contraponto à axiomática platônica, afirma, em
suas construções, a força e potência do movimento, dos devires9. Segundo Émile Bréhier:

Ora, os estóicos querem explicar outra coisa, colocam-se de um outro ponto de


vista que Platão e Aristóteles. Para estes, o problema era de explicar nos seres
o permanente, o estável, o que podia oferecer um ponto de apoio sólido ao
pensamento por conceitos. (BRÉHIER, 1928/1980, p. 4)10

7
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 81.
8
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 3. Cf. também o texto A Literatura e a Vida, em Crítica e Clínica (DELEUZE,
1993/1997), pp. 11-16. Em uma nota de rodapé à p. 13, Deleuze cita Blanchot: “Algo acontece (aos
personagens) que estes só podem retomar renunciando ao poder de dizer Eu.” Em questão, as relações entre
literatura e subjetividade contemporânea: problema de crítica, mas também de clínica, como insiste o
filósofo.
9
Eis o cerne da leitura deleuzeana de Platão: no livro VI da República, Platão traça a linha metafísica cujos
efeitos acabaram por se multiplicar ao longo da história dos homens. Esta linha separa um mundo sensível
– o nosso mundo, lugar das imagens e dos corpos – de um inteligível – mundo superior, ideal, das essências
e das matemáticas. Platão, como filósofo, tem a preocupação de verificar as condições de possibilidade dos
saberes, de um conhecimento. Vai então asseverar que o conhecimento só é possível em relação aos objetos
do mundo inteligível, dada a sua ordem e estabilidade. Já no que diz respeito ao sensível, o conhecimento,
a princípio, surge como improvável, devido à total instabilidade deste mundo, mergulhado em permanentes
misturas e transformações. Contudo, eis a grande questão, há uma forma de garantir que mesmo no mundo
inferior o conhecimento torne-se possível, desde que suas imagens e matérias submetam-se aos objetos
ideais do mundo inteligível, de modo a copiar-lhes o modelo. É assim que os corpos enlouquecidos que
povoam o mundo sensível ganham contornos e limites, recebem uma ordem. Esta distinção funda o que
mais tarde acabaremos por conhecer como representação, uma vez que estas cópias mantêm-se à imagem
e semelhança de seus modelos (não são eles, mas são como eles, interiorizando uma semelhança com a
identidade superior da Idéia), já que aceitaram ser-lhes conformes. Quanto aos corpos que não se deixarem
subjugar pelos modelos, que não interiorizarem convenientemente um nível necessário de semelhança,
tanto pior: deverão, em qualquer participação, ser preteridos em favor das boas cópias. A estas, todas as
graças. Aos simulacros, a pena do degredo. Cf. o texto-apêndice Platão e o Simulacro, na Lógica do Sentido
(1969/1998). Indicamos também Ulpiano, 1993, pp. 1-4 e Machado, 1990, pp. 25-27.
10
Este pequeno livro será o principal guia de Deleuze quanto ao seu mergulho no estoicismo. A tradução
das citações que forem utilizadas é de nossa responsabilidade. Lembramos, de passagem, que a escola
estóica foi fundada em 300 a.C., em Atenas, por Zenão de Cítio (332-262 a.C.) O estoicismo antigo foi
5

Antes de mais nada, é preciso dizer que os estóicos não aceitam o traço metafísico
proposto por Platão entre inteligível e sensível, modelos e cópias. Não há a idealização
de exterioridades perfeitas cujas formas deveriam ser imitadas e que assim dispõem a
produção dos seres. Para os estóicos, tudo o que existe está aqui, neste mundo, sem
qualquer necessidade de instâncias reguladoras de uma ordem superior. A fim de defender
esta posição, eles adotam, particularmente, uma outra noção de causalidade, que inverte
a relação clássica causa ideal-efeito sensível11. Vejamos.
O domínio primeiro é o dos corpos, com suas composições alucinantes, seus
encontros e relações, ações e paixões. Aqui, os estados de coisas são dados por estas
misturas e coexistências infalíveis, primazia da física. Entre os corpos, não há pois causas
e efeitos, mas apenas causas. O ser é aí considerado in totum, ser imutável que persiste
segundo uma tensão vital, a essência complexa que o mantém. Bréhier:

Em todos os casos, é indispensável que ela [a tensão vital] esteja ligada ao


próprio ser do qual constitui a causa, como a vida só pode estar no vivo. Ela
determina a forma exterior do ser, seus limites, não à maneira de um escultor
que faz uma estátua, mas como um germe que desenvolve até um certo ponto
do espaço, e apenas até este ponto, suas capacidades latentes. A unidade da
causa e do princípio se traduz na unidade do corpo que ela produz (...) A causa
é portanto verdadeiramente a essência do ser, não um modelo ideal que o ser
se esforça para imitar, mas a causa produtora que age nele, vive nele e o faz
viver (...). (ibidem, p. 5)

O acento recai então sobre o sensível, lugar pleno dos seres e que abriga todas as
causas do universo. O impedimento ao platonismo é tamanho que, para não buscar no
inteligível qualquer tipo de causa ou origem superior, os estóicos alargam a concepção de
corpo. Assim, as coisas que perfazem as misturas são corpos, naturalmente, mas também
o é toda sorte de característica quantitativa e qualitativa. Em outras palavras, as virtudes
e as propriedades, por exemplo, também são corpos, como a prudência e o verde. A alma,

elaborado especialmente pelos sucessores de Zenão, Cleantes (331-232 a.C.) e Crisipo (280-206 a.C.) A
Academia de Platão havia sido fundada em 387 a.C., ao passo que o Liceu de Aristóteles é de 335 a.C.
11
Continua Bréhier, ainda em relação a Platão e a Aristóteles: “Também a causa, quer ela seja a Idéia ou o
motor imóvel, é permanente como uma noção geométrica. O movimento, o devir, a corrupção dos seres,
no que eles têm de perpetuamente instável, devem-se não a uma causa ativa, mas a uma limitação desta
causa, que escapa por sua natureza a toda determinação e todo pensamento.” (1928/1980, p. 4) Obviamente,
a questão da causalidade em filosofia é extremamente nuançada. Vamos nos ater somente aos poucos pontos
que interessarem diretamente ao problema em pauta.
6

tensão vital, força interna dos animais, é um corpo12. O ponto de vista, vemos, privilegia
uma noção de causalidade mais biológica e vitalista, menos matemática e transcendente.
Chegamos então a um ponto muito relevante para os estóicos, este em que
afirmam: “Tudo que existe é corpo.” (ibidem, p. 6) As causas são corpos, assim como o
que sofre a ação dessas causas. A partir daí, Deleuze diz: “Não há causas e efeitos entre
os corpos: todos os corpos são causas, causas uns com relação aos outros, uns para os
outros.” (DELEUZE, 1969/1998, p. 5) Os estóicos operam, portanto, todas as causas no
sensível, origem de tudo; se de algum modo falam em efeitos, estes é que se localizam
em um registro ideal.
De fato, da profundeza das misturas e interações diversas, atividade ininterrupta,
emerge uma espécie de névoa, efeitos que pertencem a uma esfera distinta. Não são
corpos, mas acontecimentos incorporais. De um lado, a corporeidade, as coisas em
efetuação; de outro, a superfície evenemencial incórporea, acontecimentos que se efetuam
nas coisas e nos estados de coisas. Os estóicos propõem uma nova partição metafísica,
deslocam a linha fronteiriça para um lugar até então desconhecido. Examinemos o
estatuto misterioso destes incorporais.
Se são incorporais, não se pode dizer que existem. Só os corpos existem: os
incorporais subsistem, “tendo este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa,
entidade não existente” (ibidem, p. 5)13. Os incorporais não existem, mas são reais.14 Os
corpos certamente agem e padecem, são agentes ou pacientes, mas não os incorporais
resultantes das misturas: estes são impassíveis. Compreendemos melhor esta
impassibilidade quando lembramos que as misturas podem ser avaliadas pelas partes,
positivamente ou negativamente, mas não sob a perspectiva de um “todo cósmico, do
metabolismo natural universal” (SOUSA DIAS, 1995, p. 94)15, a quem tudo é
perfeitamente cabível.

12
Cf. a discussão em Bréhier, 1928/1980, pp. 6-9.
13
Devemos chamar a atenção para o seguinte: Émile Bréhier aponta que os estóicos admitiam 4 tipos de
incorporais: o expresso (que é o acontecimento), o vazio, o tempo e o lugar. Cf. Bréhier, 1928/1980, p. 60,
por exemplo. Ao longo deste trabalho – praticamente como faz Deleuze na Lógica do Sentido, segundo nos
parece –, quando nos utilizarmos da terminologia “incorporais”, estaremos nos referindo especificamente
aos expressos, aos acontecimentos. Quanto ao tempo, cujas relações com o nosso tema são bastante
relevantes, verificar particularmente a vigésima terceira série, Do Aion. Na Lógica do Sentido, até onde
pudemos perceber, o autor não faz referências mais específicas quanto ao lugar ou ao vazio.
14
Cabe o comentário de Cláudio Ulpiano em sua Dissertação de Mestrado, Do Saber em Platão e do Sentido
nos Estóicos como Reversão do Platonismo: “Terrível questão ontológica: ser real e não existir.”
(ULPIANO, 1983, p. 39) Acrescentemos ainda a pequena fórmula de que Deleuze tanto gosta, que ele toma
da Recherche de Proust: são “reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos”. Cf. Deleuze, 1970/1987,
p. 61 e 1972/sd, p. 283.
15
Cf. também Deleuze & Parnet, 1977/1998, p. 76.
7

Confirmemos o dito variando o traço estóico: seres físicos e quase-seres


metafísicos, profundidade física e superfície metafísica, o positivo e o evenemencial,
acidentes corporais e eventos ideais. Só há corpos, tomados pelos acontecimentos que
lhes advêm.
Outra inflexão virá agora, com base em um dizer de Bréhier acerca do
acontecimento: “Conceito bastardo que não é nem de um ser, nem de uma de suas
propriedades, mas do que é dito ou afirmado do ser.” (BRÉHIER, 1928/1980, p. 12) Com
efeito, os acontecimentos não são coisas nem estados de coisas, mas efetuam-se nos
corpos; não são qualidades nem propriedades, mas exprimem-se em proposições. A fim
de bem compreendermos estas considerações, alertamos que a proposição estóica tinha
um caráter singular. Eles montaram uma máquina de linguagem diversa da que os
ocidentais conhecemos, acostumados que estamos à predicação platônico-aristotélica.
Nosso vício é a frase composta por sujeito e predicado, especialmente arquitetada sobre
a cópula do ser, o implacável verbo de procedência clássica. Aqui, Bréhier aponta
questões importantes:

Se, em uma proposição, o sujeito e o predicado são considerados como


conceitos de mesma natureza, e particularmente conceitos indicando classes de
objetos, teremos grande dificuldade em compreender a natureza da ligação
indicada pela cópula. Se são classes diferentes, cada uma existe à parte,
independentemente da outra, elas não podem se ligar. Se elas são idênticas,
estamos reduzidos aos juízos de identidade. A ligação de participação que
Platão encontrou, e aquela de inclusão que Aristóteles utilizou de preferência,
foi uma solução possível a esses problemas. (ibidem, p. 12)

O raciocínio colocado intriga: numa proposição S é P, como pode a cópula “é”


ligar duas coisas que são diferentes? Se não são diferentes, não cairíamos então numa
mera tautologia? Tomemos um exemplo simples: “Pedro é racional”. De acordo com a
solução que encontrou, Platão diria, com a teoria da participação, que o sujeito sensível
Pedro, ao imitar satisfatoriamente a racionalidade essencial, participa desta Idéia, a ponto
de poder receber esta qualidade na predicação.16 Aristóteles vai falar de predicados

16
Platão estabelece o estatuto das hierarquias, das classificações, na medida em que passa a mensurar os
pretendentes, aqueles que dispõem – para mais ou para menos – de uma determinada qualidade. Todos
terão de passar pela prova da cópia, para que os virtuosos, os semblantes que melhor souberem introjetar a
semelhança, possam ser eleitos. Diz Machado: “O fundamento idêntico, e imparticipável, é a Idéia: só a
justiça é justa, só a coragem é corajosa... Mas o fundamento possibilita aos pretendentes que passarem por
sua prova, por sua seleção, participar da qualidade que só ele possui inteiramente e lhe ser semelhantes”
(MACHADO, 1990, p. 32). Ver também Foucault, 1970/2000, pp. 230-233.
8

essenciais e acidentais, em relação a um sujeito que é individual, genérico ou específico.17


No caso, racional é um predicado ou atributo essencial do sujeito individual Pedro, e
denota sua inclusão em uma certa classe específica de seres racionais. De qualquer modo,
“(...) tais soluções, que, para os modernos, só concernem ao pensamento, tinham, para os
antigos, um alcance metafísico que não podemos esquecer. Os termos do juízo designam
com efeito não apenas o pensamento, mas os seres reais.” (ibidem, p. 20)
Os estóicos irão por outra via. Eles jamais poderão dizer, por exemplo, “a árvore
é verde”. Neste caso, já consagrado, podemos observar que, para eles, efetivamente não
haveria como propor este liame entre a árvore e o verde, simplesmente porque são duas
substâncias singulares, dois corpos absolutamente distintos que não conseguem portanto
conviver em uma sentença copulativa, juízo que acabaria por identificá-los (e para os
estóicos, a árvore não é o verde). Bréhier apresenta a solução – inicialmente megárica –
seguida e ratificada pelos estóicos:

Dissemos que certos megáricos recusaram enunciar os juízos sob a forma


habitual, com o auxílio da cópula é. Não devemos dizer, eles pensam: “A
árvore é verde”, mas: “A árvore verdeja” (...) Quando omitimos a partícula é e
exprimimos o sujeito por um verbo no qual o adjetivo não é posto em
evidência, o atributo, considerado como o verbo inteiro, aparece então não
mais como exprimindo um conceito (objeto ou classe de objetos), mas apenas
um fato ou acontecimento. (ibidem, p. 20)

Para os estóicos, o verde é um corpo, faz parte da composição enlouquecida e


misteriosa que grassa no planeta. Não há para eles, como dispor uma proposição do tipo
“a árvore é verde”. A mistura entre a árvore e o verde se apresenta de outro lado, na

17
Precisaremos fazer breves anotações sobre a lógica e a metafísica aristotélicas. Gênero diz respeito a uma
classe de espécies que se assemelham, e cujas diferenças podem então ser relevadas. Cada espécie, por sua
vez, é composta por uma classe de indivíduos que se assemelham, e cujas diferenças podem também ser
relevadas. Os indivíduos são os seres realmente existentes. Assim, gênero e espécie são conceitos universais
que se encarnam nos indivíduos e que são conhecidos pelo pensamento. Os predicados (ou atributos) são
essenciais ou acidentais conforme se apresentem como necessários ou contingentes, universais ou
particulares, em relação a um sujeito. Quando o sujeito é genérico ou específico, o predicado ou atributo é
sempre essencial; quando é um existente, pode ser essencial ou acidental. A relação entre sujeito e
predicado segundo a cópula “é” configura uma proposição (S é P) que não deixa de ser uma máquina de
especificação, realçando similitudes e preterindo diferenças. Este procedimento é também de inclusão (ou
de exclusão), na medida em que um sujeito pode pertencer (ou não) a esta ou aquela classe conceitual
(gênero ou espécie), segundo o predicado apontado na proposição. A conclusão é que o conceito
aristotélico, estabelecido a um nível genérico ou específico (e portanto um nome geral da linguagem,
sempre indicando uma classe, um conjunto), é o que inscreve a diferença na forma de uma identidade. Cf.
o capítulo Aristóteles e a Mediação da Diferença, em Machado, 1990, pp. 37-44.
9

medida em que o atributo verdejar, longe de ser um adjetivo essencial ou acidental, é um


verbo a expressar um acontecimento que advém ao sujeito árvore, o acontecimento de ela
se tornar verde, de ela se envolver em um devir-verde. Assim, em suas proposições, os
estóicos preferiram expressar mudanças e transformações, ou melhor, acontecimentos:
não a árvore é verde, e sim o fato de ela ficar verde, de ela verdejar, transitoriedade que
apresenta uma metafísica outra, segundo a qual o ser não exatamente é, mas está sendo,
e em função de algo que ora lhe acontece. Esta árvore, por exemplo, não terá problema
algum em amarelecer...18
O estoicismo vai acentuar a importância dos verbos em geral, pois eles são capazes
de exprimir o acontecimento, aquilo que sobrevém aos corpos. Os efeitos serão sempre
verbos.19 Os estóicos não atribuem predicados a sujeitos (S é P), mas enfatizam na
proposição o que há com um corpo, o que lhe advém, o que se passa com ele. Eles não
diriam “um corpo é quente”, mas “um corpo esquenta”.20 Ao mesmo tempo em que há
uma ampliação do fator movimento, o destaque nos verbos e não em adjetivos deixa algo
mais patente a impassibilidade do acontecimento, minimizando a carga subjetiva e
pessoal que é tão forte no conjunto frasal platônico-aristotélico. Continuemos com outro
exemplo conhecido, dado por Émile Bréhier:

Assim, quando o escalpelo corta a carne, o primeiro corpo produz sobre o


segundo não uma propriedade nova, mas um atributo novo, o de ser cortado.
O atributo, propriamente falando, não designa nenhuma qualidade real; branco
e negro, por exemplo, não são atributos, nem em geral nenhum epíteto. O
atributo é sempre ao contrário expresso por um verbo, o que quer dizer que é
não um ser, mas uma maneira de ser. (...)21 (1928/1980, pp. 11-12)

A predicação estóica é de outra ordem.22 Não tratam os estóicos de predicar


propriedades essenciais ou acidentais de sujeitos genéricos, específicos ou individuais,
via proposição S é P. Neste caso, para afirmarmos que o sujeito S pertence à classe de
objetos P, está incluído na classe P, possui a propriedade inerente aos objetos de P, é

18
Pela especulação platônico-aristotélica, poderíamos mesmo perguntar: como pode uma árvore que é
verde envelhecer e amarelecer? É a distância entre dois modos de pensamento...
19
Cf. Bréhier, 1928/1980, p. 12.
20
Cf. este exemplo em Bréhier, 1928/1980, pp. 20-21. Da mesma forma, eles provavelmente não usariam
“João é triste”, e sim “João entristece”; ao invés de “a noite está escura”, prefeririam algo como “é noite,
está escuro”, assim mesmo, sem qualquer sujeito de inerência (Cf. BRÉHIER, 1928/1980, p. 23).
21
Citado por Deleuze à p. 6 de Lógica do Sentido (1969/1998).
22
Efetuaremos um paralelo mais nítido entre a proposição aristotélica e a estóica. Para tanto, nos ajudou
bastante o trabalho de mestrado de Cláudio Ulpiano, 1983, pp. 47-50.
10

necessária uma correspondência com a realidade cuja verificação é sempre e tão-somente


da ordem do empírico, do sensível, da experiência ordinária.23
Os estóicos, na proporção em que rejeitam a cópula “é”, optam por expressar, pelo
verbo, os acontecimentos que envolvem um corpo, sujeito da proposição. O predicado ou
atributo então não pode ser uma essência ou um acidente, mas um acontecimento.24 Este
acontecimento excede o sensível, ultrapassa a experiência comum: ele é um incorporal,
um não-existente, que não tem como surgir, como emergir, senão pelo verbo, pela
linguagem.
É um atributo que não pode ser confundido nem com o estado de coisas físico nem
com a proposição (que são sempre do registro da efetuação empírica, do existente, do
atual), ao mesmo tempo em que é um atributo de tal estado de coisas, dos corpos, e que
só nos chega via proposição (deslocamos o problema para o âmbito do evenemencial).
Não é exatamente um atributo da proposição (ele não pertence à proposição, senão
estaríamos falando de essências ou de acidentes, da proposição aristotélica verificável no
empírico), mas é um atributo do corpo (que pertence ao corpo) na proposição. Por outro
lado, não se trata propriamente do corpo, mas de algo que o envolve, que lhe acontece,
atributo acontecimental deste corpo.
Enfim, para os estóicos, a linguagem não se presta a dizer essências ou acidentes
relativos aos sujeitos, mas a dizer os acontecimentos que envolvem os corpos e as
misturas corporais. Na Lógica do Sentido, Deleuze, indiretamente, apresenta a distância
entre o atributo estóico e o atributo aristotélico:

O sentido se atribui, mas não é absolutamente atributo da proposição, é atributo


da coisa ou do estado de coisas. O atributo da proposição é o predicado, por
exemplo, um predicado qualitativo como verde. Ele se atribui ao sujeito da
proposição. Mas o atributo da coisa é o verbo verdejar, por exemplo, ou antes,
o acontecimento expresso por este verbo; e ele se atribui à coisa designada pelo
sujeito ou ao estado de coisas designado pela proposição em seu conjunto.
Inversamente, este atributo lógico, por sua vez, não se confunde de forma

23
Isto será ratificado no tópico seguinte, sobre a proposição.
24
“Na classificação dos atributos, eles não os distinguem, como Aristóteles, pelo modo de sua ligação com
o sujeito, mais ou menos essencial ou acidental: eles só querem aí distinguir as diversas formas nas quais o
acontecimento pode se expressar.” (BRÉHIER, 1928/1980, p. 21) Exemplificando, podemos verificar a
diferença entre as proposições “Pedro é homem”, “Pedro é careca” e “Pedro dançando”. As duas primeiras
exprimem, respectivamente, um atributo essencial e um acidental do indivíduo Pedro, são suas propriedades
empíricas, ao passo que a terceira, pelo atributo “dançando”, expressa-lhe um acontecimento.
11

alguma com o estado de coisas físico, nem com uma qualidade ou relação deste
estado. (DELEUZE, 1969/1998, p. 22)

Quando vemos “uma maçã caindo”, o fato dela cair não diz respeito a uma
propriedade empírica da maçã. A maçã é um ser real e sensível (um corpo), mas não o
fato dela cair. Tal fato sem dúvida diz respeito à maçã, mas esta só cai porque há uma
linguagem para apará-la, há uma linguagem pela qual ela pode cair! Não fosse a
linguagem, ela jamais cairia. Quando nos deparamos com “um rapaz passeando” ou “uma
moça sentada”, antes de tudo é pela linguagem que o rapaz passeia, é nela que a moça
está sentada. Em suma, estamos falando de atributos que pertencem aos corpos, mas que
precisam da linguagem para se manifestar. Temos aí algo (um incorporal) que é
simultaneamente atributo (ontológico, extra-ser) da coisa e sentido (lógico, extra-
proposicional) a emergir por um verbo, via discurso. O incorporal é a coincidência entre
atributo ontológico da coisa (o acontecimento) e predicado lógico na linguagem (o
sentido), ele é indissociavelmente os dois, ele está entre os dois, ele dá liga aos dois.25 O
uso das formas nominais dos verbos (infinitivo, gerúndio, particípio), na medida em que
escapam do verbo ser e dificultam a predicação aristotélica, nos ajuda a mostrar o quanto
os acontecimentos não pertencem exatamente à linguagem, mas aos corpos: elas dizem
dos corpos, na linguagem.
As particularidades estóicas vão sendo exibidas. Para eles, todos os corpos do
universo já existem, mas novos encontros, interações e coexistências estão sempre por
serem inventadas; destas misturas inesgotáveis, eclodem brumas de acontecimentos: o
novo é sempre um verbo. Os estóicos promovem as relações e afirmam uma pragmática.
O atributo especial apresentado – transformação, mudança, diferença, efeito
incorporal, maneira de ser – é portanto o que acontece aos corpos, dito pela linguagem:
ele é ao mesmo tempo ontológico e lógico, comunhão entre o que acontece aos estados
de coisas mediante a possibilidade de expressão em discurso. Tudo muito incomum, e
não é para menos, pois os estóicos firmam um outro tipo de raciocínio e de linguagem,
uma outra forma de pensar, de existir. Aí a evidente dificuldade em entrevermos o
acontecimento, tal como proposto pelos estóicos e retomado por Deleuze. Uma citação
de Sousa Dias pode esclarecer um pouco mais este contexto conceitual:

25
Eis uma das passagens em que Bréhier assevera esta posição: “Procuraríamos em vão em que o predicado
lógico da proposição poderia diferir dos atributos das coisas, considerados como resultados de sua ação.”
(BRÉHIER, 1928/1980, p. 21)
12

O acontecimento é biface. Tem uma face voltada para as coisas, e outra para a
linguagem. Efetua-se em coisas e estados de coisas e exprime-se em
proposições. Mas sem ser redutível quer às suas efetuações quer às suas
expressões lingüísticas. Ele “encarna-se” atualmente em seres, corpos e
qualidades de corpos, e atualiza-se também nos enunciados verbais como suas
expressões, mas sem nada perder da sua natureza de extra-ser incorporal e de
entidade extra-proposicional. Não que seja separável das suas efetivas
corporizações físicas e das suas expressões lingüísticas como outras tantas suas
“insistências” variáveis. Só que ele é como o Agora infinitivo que excede todas
as suas manifestações presentes, a imaculada sombra metafísica dessas
manifestações, a parte em tudo o que acontece que escapa a toda a atualidade,
bem como a parte em tudo o que se enuncia que escapa a toda a representação
(SOUSA DIAS, 1995, pp. 95-96).

Eis então que os acontecimentos se efetuam, se atualizam, no domínio das coisas


e estados de coisas, da linguagem e das proposições plenas. De direito, os acontecimentos
antecedem suas formas empíricas, porém, de fato, há indissociabilidade, co-presença
entre ambas as dimensões: chamamos a atenção, na citação, para estes dois aspectos, e
especialmente para o último, a inseparabilidade apontada entre o acontecimento – sempre
excessivo, inesgotável – e suas manifestações sensíveis. O acontecimento é também o
empírico, mas de modo algum se reduz a ele.
Podemos agora retornar mais efetivamente ao texto deleuzeano, a fim de
ratificarmos a reviravolta estóica em relação ao platonismo. Já havíamos mostrado que
todas as causas são sensíveis e que os acontecimentos – produto dos seus encontros – é
que são incorporais. Seriam então os incorporais as Idéias da metafísica estóica? É o que
afirma Deleuze, salientando a relevância do achado.26 Se Platão repudiava terrivelmente
as más cópias e os simulacros porque não aceitavam as causas ideais como modelos, ao
ponto extremo de remetê-los às profundidades subterrâneas, o que pensaria de um mundo
afirmativo, no qual as prisões foram abertas, e de modo que tudo pode se apresentar à

26
“(...) se os corpos, com seus estados, qualidades e quantidades, assumem todos os caracteres da substância
e da causa, inversamente, os caracteres da Idéia caem do outro lado, neste extra-ser impassível, estéril,
ineficaz, à superfície das coisas: o ideal, o incorporal, não pode ser mais do que um ‘efeito’”. (DELEUZE,
1969/1998, p. 8, grifo do autor) Ratifiquemos a seguinte diferença estatutária: enquanto a Idéia platônica
têm um acento causal, a Idéia estóica é assinalada como efeito. São metafísicas distintas, que funcionam
diversamente, como podemos observar quanto à caracterização da Idéia em cada uma. Há conseqüências
evidentes. Em breve, retomaremos o tema.
13

superfície? A dimensão recalcada por Platão agora recobre os horizontes: o movimento,


os paradoxos, os devires enfim manifestam-se à vontade.27
Ora, os devires carregam os acontecimentos, eles são os acontecimentos.28 Os
acontecimentos são, assim, paradoxais e, de fato, os estóicos tinham grande admiração
pelos paradoxos. Deleuze apresenta, em especial, um dizer de Crisipo: “Se dizes alguma
coisa esta coisa passa pela boca; ora, tu dizes uma carroça, logo uma carroça passa por
tua boca.” (Citado por DELEUZE, 1969/1998, p. 9) De outro modo, Crisipo está
ratificando que tudo o que acontece acontece na linguagem, acontece à linguagem. Se
falamos “uma baleia”, não há dúvidas de que a baleia está na linguagem e portanto ela
atravessa a boca. O devir vem como acontecimento, mas o acontecimento que envolve os
corpos só pode ser dito na linguagem, ou melhor, o acontecimento é o que se dá entre os
corpos e a linguagem, segundo uma face ontológica e outra lógica. Fora da linguagem,
fora do que é dito ou afirmado do ser, não há acontecimentos: reino da noite, escuridão.
Esta fronteira é então necessariamente paradoxal: nela, por ela, os corpos deixam
a profundidade – treva imponderável –, em direção à superfície, na medida em que seus
acontecimentos são articulados em linguagem. A linguagem é aquilo que diz do ser, do
corpo, segundo o que lhe acontece. Corpo linguageiro, linguagem corporal: eis a via
luminosa e intercambiável do sentido-acontecimento, fronteira, lâmina mágica e difusa
que nos autoriza a afirmar o quanto toda fala, a mais simples que seja, é paradoxal!
Deleuze: “Por um lado, o mais profundo é o imediato; por outro, o imediato está na
linguagem. O paradoxo aparece como destituição da profundidade, exibição dos
acontecimentos na superfície, desdobramento da linguagem ao longo deste limite”
(DELEUZE, 1969/1998, p. 9). O sentido, especificamente, não será questão de
profundidade – o profundo é justo o que ainda não liberou o sentido, este duplo incorporal
–, mas de superfície. Eis que Deleuze retoma Carroll, Valéry, Moebius e apresenta a
afinidade que tiveram com os estóicos: a maior profundidade terá de passar pela
superfície. “É seguindo a fronteira, margeando a superfície, que passamos dos corpos ao
incorporal” (ibidem, p. 11), caminho para o sentido.
Os devires abissais, subindo à superfície, convidam-nos à festa do acontecimento
e do sentido, do sentido-acontecimento, quase-ser dual que se manifesta

27
Cf. DELEUZE, 1969/1998, p. 8.
28
“O devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento, ideal, incorporal, com todas as reviravoltas que lhe
são próprias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, da causa e do efeito.” Por exemplo, o que se dá
entre o escalpelo e a carne, acontecimento que transita infinitamente entre o cortar e o ser-cortado, a ativa
e a passiva, a causa e o efeito: há um corte... Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 9.
14

concomitantemente como acontecimento aos corpos e como sentido na linguagem. Esta


superfície paradoxal arrasta os opostos, trocando-os perpetuamente de lugar, de modo que
nada aí está assegurado. Não é portanto saindo da superfície que chegamos ao outro lado,
porque são ambos os lados que a constituem, os dois ao mesmo tempo, acontecimento e
sentido, passado e futuro, corpos e linguagem, sujeito e objeto, o muito e o pouco,
natureza e homem, causa e efeito, o dentro e o fora, o mais e o menos... Pelo contrário,
“não mais penetrar, mas deslizar de tal modo que a antiga profundidade nada mais seja,
reduzida ao sentido inverso da superfície. De tanto deslizar, passar-se-á para o outro lado,
uma vez que o outro lado não é senão o sentido inverso” (ibidem, p. 10).29

3. Problema da Proposição
No que toca especificamente à linguagem, Deleuze dissocia o sentido das três
relações principais com as quais os teóricos costumam delimitar os contornos da típica
proposição ocidental. De acordo com ele, a designação, a manifestação e a significação
não resolvem o problema do sentido.
A designação refere a representação mais evidente, a correspondência biunívoca
entre termos e coisas designadas, segundo o liame denotacionista e objetivista que
amarra as palavras às coisas e estados de coisas, possibilidade em função da qual ela pode
receber determinado valor lógico (verdadeiro ou falso). A designação seria sustentada
pela manifestação, relação que associa as proposições às imagens mentais de um sujeito
psicológico falante, conforme crenças e desejos pessoais. Entra aqui, portanto, o regime
do eu, do subjetivo. Entretanto, para além da designação objetivista e da manifestação
subjetiva, há um conjunto de significantes cuja rede de articulações e implicações
conceituais é capaz de compor os universos subjetivos mediante significações lógicas que
se desenvolvem no interior de uma língua e de uma cultura. A prolongada permanência
de algumas destas significações tem sido hegemonicamente essencial quanto à
constituição das subjetividades ocidentais, os conceitos de Deus e de mundo, por
exemplo.30
Deleuze se questiona por que a significação deve ser considerada primeira com
relação à manifestação e à designação, e afirma a complexidade da resposta.31 Ele levanta
este problema com o fim de verificar o que é que alicerça, como é que se funda cada uma

29
Em diversas ocasiões, ao longo da série Dos Efeitos de Superfície, Deleuze vai se referir a este
deslizamento.
30
Cf. Deleuze, 1969/1998, pp. 13-15, nas quais Deleuze conceitua os três tipos de relação.
31
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 16.
15

das dimensões em pauta e onde se encaixa o sentido em tal grupo de relações. O


desenvolvimento, nós veremos, culminará na apresentação do paradoxo de Carroll e do
círculo tautológico da proposição: o sentido será uma espécie de quarta dimensão,
dimensão extraordinária, também distinta da significação.
De princípio, o autor afirma que há um ponto de vista sob o qual a manifestação
é primeira não só em relação à designação, mas também à significação.32 Na perspectiva
exclusiva da fala, do sujeito, o Eu cartesiano é absoluto, submetendo a si a designação
dos objetos e um conjunto de significações implícitas e particulares que, aí, não se
desenvolvem por si mesmas. Lembramos que este não é mais o território do verdadeiro e
do falso, mas o da veracidade e do engano, pois que estão em jogo crenças e desejos
pessoais, relativos a um Eu.33 Contudo, de outra parte, estas significações se desenvolvem
sim, ganham autonomia e dinamismo, a partir do ponto de vista mais amplo da língua:
eis a manifestação e o Eu enredados e determinados segundo uma teia de trocas e
implicações conceituais, indissociáveis da relação com o outro. Sob o ponto de vista da
língua, a proposição vem como premissa ou conclusão, conceitos lógicos que alicerçam
a manifestação de um Eu em seus desejos e crenças, que, por sua vez, é capaz de designar
um estado de coisas.
O ponto nevrálgico do raciocínio deleuzeano se dá entre a significação e a
designação, subentendido um sujeito no meio do caminho. A questão é: será assim tão
óbvio que a significação lingüística é primeira em relação à designação? Mais exatamente
no que toca à significação, trata-se, segundo Deleuze, “(...) da relação da palavra com
conceitos universais ou gerais, e das ligações sintáticas com implicações de conceito”
(DELEUZE, 1969/1998, p. 15, grifo do autor).34 Estamos por nos deparar com um
problema de lógica. O autor prossegue:

A significação se define por esta ordem de implicação conceitual em que a


proposição considerada não intervém senão como elemento de uma

32
Deleuze utilizará aí dois conceitos tradicionais, provenientes de Saussure: fala e língua. De acordo com
Roland Barthes, temos “um puro objeto social, conjunto sistemático das convenções necessárias à
comunicação (...) e que é a língua, diante de que a fala recobre a parte puramente individual da linguagem
(fonação, realização das regras e combinações contingentes de signos).” Cf. Barthes, 1964/1993, p. 17.
Diríamos que a fala é a simples atualização subjetiva de seu outro mais denso e complexo, a língua.
33
“Enfim, da designação à manifestação se produz um deslocamento de valores lógicos representado pelo
Cogito: não mais o verdadeiro e o falso, mas a veracidade e o engano.” Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 14 e p.
16.
34
Um dos alvos de Deleuze, ao longo desta seção, é a teoria da proposição em Aristóteles, inseparável da
questão metafísica do conceito e de sua lógica silogística. Lembramos que, há pouco, apresentamos
brevemente certos termos aristotélicos, alguns dos quais reaparecerão agora.
16

‘demonstração’, no sentido mais geral da palavra, seja como premissa, seja


como conclusão (...) Quando falamos de demonstração no sentido mais geral,
queremos dizer que a significação da proposição se acha sempre assim no
procedimento indireto que lhe corresponde, isto é, na sua relação com outras
proposições das quais é concluída, ou, inversamente, cuja conclusão ela torna
possível. A designação, ao contrário, remete ao procedimento direto. (ibidem,
p. 15)

A significação, dizendo respeito à questão da demonstração, deve funcionar


relativamente a um conjunto de premissas e conclusão, assim relatando as condições sob
as quais determinada proposição (por exemplo, S é P) pode ser logicamente verdadeira
ou falsa. Enquanto a designação é um procedimento direto – apreciamos diretamente o
empírico, o estado de coisas, para a verificação da verdade ou da falsidade do vínculo
entre o designante e a coisa –, a significação é um método indireto, quando o valor de
uma sentença não depende apenas de si, mas também da consideração lógica do grupo de
proposições que a precede e a condiciona – é preciso, como disse Deleuze, levar a termo
um processo de demonstração.
Tentaremos exemplificar por meio de um silogismo aristotélico básico, já que aí
podemos enxergar as relações de implicação/significação em pauta, tendo em vista a
inclusão (ou não) de sujeitos a esta ou aquela classe conceitual, de acordo com os
predicados estabelecidos nas premissas, verdade que deve ser transmitida à proposição
conclusiva. Ei-lo, segundo suas premissas a e b, e conclusão z: a.Todos os cães são
mamíferos; b.Sultão é um cão; z.Logo, Sultão é um mamífero. Podemos ler: dado que
todos os cães são mamíferos e que Sultão é um cão, isto significa que, isto implica que
Sultão é um mamífero. Ora, “quando dizemos ‘logo’, quando consideramos uma
proposição como concluída, fazemos dela o objeto de uma asserção, isto é, deixamos de
lado as premissas e a afirmamos por si mesma, independentemente. Nós a relacionamos
ao estado de coisas que designa, independentemente das implicações que constituem sua
significação” (ibidem, p. 17). Trata-se então de mostrar que a conclusão designativa é
lícita, dado o conjunto de implicações que a pressupõem, ou, por outra, de mostrar que a
significação ou implicação funda e condiciona a designação da conclusão. É preciso assim
demonstrar a implicação, realizar sua prova de verdade, o que, segundo rezam preceitos
lógicos, pede duas condições: 1.que as premissas sejam verdadeiras; 2.que a conclusão
seja uma conseqüência dedutiva das premissas, isto é, não deve ser possível que as
17

premissas sejam verdadeiras e que a conclusão seja falsa, ou, ainda de outro modo, dada
a verdade das premissas, a conclusão deve ser necessariamente verdadeira.35
No que diz respeito à primeira condição, relativa especificamente às premissas,
imediatamente surge a necessidade de sairmos da implicação para a verificação dos
estados de coisas designados (é verdade que todos os cães são mamíferos?; é verdade que
Sultão é um cão?). Quanto à segunda, que põe em xeque a conclusão, iremos, com
Deleuze, montar o famoso paradoxo de Carroll: afirmar que se as premissas a e b são
verdadeiras, a conclusão z também deve ser é, em suma, gerar uma outra proposição que
agora nomearemos como c. Posso então dizer que se as premissas a e b e c são
verdadeiras, a conclusão z também deve ser, o que já é uma nova proposição d e assim
por diante, ao infinito.36 Para uma melhor visualização:
a.Todos os cães são mamíferos;
b.Sultão é um cão;
c.Se a é V e b é V, z é V;
d.Se a é V e b é V e c é V, z é V;
e.Se a é V e b é V e c é V e d é V, z é V;
(...)
z.Logo, Sultão é um mamífero.
Por que tudo isto? Para mostrar que sair do loop infinito apresentado é ter de pedir
uma mão à designação a fim de que ela ajude a fundar aquilo que ela não poderia:
estaremos solicitando ao fundado que nos ajude quanto à sua fundação, chamaremos o
constituído para que assim possamos constituí-lo: “(...) a implicação não chega nunca a
fundamentar a designação a não ser que se dê a designação já pronta, uma vez nas
premissas, outra na conclusão.” (ibidem, p. 17)
O estado de coisas me assevera diretamente: todos os cães são mamíferos e Sultão
é um cão (as evidências do argumento são verdadeiras); também é ele quem vai ter de me
confirmar: Sultão é um mamífero (a conclusão do argumento é verdadeira – não é possível
a configuração com premissas verdadeiras e conclusão falsa, o que invalidaria o
argumento); paradoxalmente, é apelando ao esquema designativo que demonstramos a

35
Deleuze apresenta as duas condições na Lógica do Sentido, p. 17. A lógica aponta que a demonstração
(ou prova de verdade) de um argumento se dá segundo os dois quesitos apresentados. Cf., por exemplo, o
texto Evidência e Relevância, de Mark Julian Cass (2002, p. 8).
36
Cf. O que a tartaruga disse a Aquiles, nas Aventuras de Alice (1980, pp. 251-254, tradução de Sebastião
Uchoa Leite). Este texto não está presente no Alice: Edição Comentada (2002, tradução de Maria Luíza
Borges).
18

validade da implicação silogística em jogo, quando então poderemos garantir a conclusão


designativa final – sim, Sultão é um mamífero... Onde a estranheza? Por que, para ir da
significação à designação, precisamos ir da designação à significação? É que o paradoxo
de Carroll nos leva ao círculo tautológico da proposição:

Da designação à manifestação, depois à significação, mas também da


significação à manifestação e à designação, somos conduzidos em um círculo
que é o círculo da proposição. A questão de saber se devemos nos contentar
com estas três dimensões, ou se é preciso acrescentar a elas uma quarta que
seria o sentido, é uma questão econômica ou estratégica. Não que devêssemos
construir um modelo a posteriori que correspondesse às dimensões
preliminares. Mas, antes, porque o próprio modelo deve estar apto do interior
a funcionar a priori, ainda que introduzisse uma dimensão suplementar que
não tivesse podido, em razão de sua evanescência, ser reconhecida na
experiência. Trata-se pois de uma questão de direito e não somente de fato.
(ibidem, p. 18)

Porém, mesmo de fato, Deleuze aponta que o sentido não deve ser confundido
com qualquer das três dimensões ordinárias da proposição. Ele repete insistentemente que
o sentido não são os estados de coisas ou objetos físicos, nem as imagens particulares,
crenças pessoais, representações mentais ou o vivido psicológico dos sujeitos, nem
conceitos lógicos ou possíveis essências universais e gerais. Numa ponta, se as palavras
estivessem indefectivelmente coladas às coisas, como seria possível que uma carruagem
passasse pela boca? As designações são arbitrárias e contingentes, como demonstram
nitidamente a poesia e o humor. Com efeito, a designação presume o sentido: alojados
nele é que operamos designações.37 Sabemos, no entanto, que os designantes só têm
sentido na medida em que são enunciados por um sujeito que se manifesta na proposição.
Deleuze encontra uma oportuna citação de Carroll, através de Humpty Dumpty, que
enfatiza exemplarmente a autoridade de uma subjetividade no que toca ao campo da fala:
“Quando uso uma palavra (...) ela significa exatamente aquilo que eu quero que
signifique... nem mais nem menos.”38 Contudo, a fala se insere em um contexto mais
abundante, o da língua, esfera em que fica facultada a permanência de alguns conceitos –
a partir dos quais um sujeito torna-se mesmo capaz dos seus enunciados (como o de Deus

37
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 18.
38
Aventuras de Alice, 1980, p. 196, grifo nosso. No Alice: Edição Comentada (CARROLL, 2002), p. 204.
A citação na Lógica do Sentido (DELEUZE, 1969/1998) está na p. 18.
19

e de mundo) –, além do desenvolvimento autônomo de outros, de modo que se viabiliza


a ordem das crenças e dos desejos. “Se estas significações se abalam, ou não são
estabelecidas em si mesmas, a identidade pessoal se perde – experiência dolorosa por que
passa Alice –, condições em que Deus, o mundo e o eu se tornam os personagens
indecisos do sonho de um alguém indeterminado” (ibidem, p. 19). Portanto, eis,
supostamente, o derradeiro expediente: é preciso tomar o sentido pela significação, um
pelo outro, sem resto. E como a ponta da significação retorna à da designação, ficamos
de novo encerrados a observar os muros circulares proposicionais.
Como então é possível sair de tal círculo, do paradoxo de Carroll, pelos quais a
significação só pode funcionar como fundamento na medida mesma em que convoca e se
serve da irredutibilidade da designação (a ser) fundada? Para escapar ao círculo vicioso
alegado, Deleuze lembra que definir uma condição de verdade é, certamente, definir a
possibilidade segundo a qual certa proposição será verdadeira. Mas a possibilidade para
uma proposição de ser verdadeira não é nada além do que a forma de possibilidade da
proposição mesma (...) seja qual for a maneira segundo a qual definimos a forma, trata-
se de um estranho empreendimento, que consiste em nos elevarmos do condicionado à
condição para conceber a condição como simples possibilidade do condicionado (ibidem,
p. 19).
Chegamos a um argumento tipicamente deleuzeano. Pelo que podemos perceber,
a crítica do autor se dirige ao estatuto da proposição enquanto pura forma, isto é, a
condição de verdade de uma proposição é, ela própria, decalcada diretamente do visível,
do atual. Assim, estabelecer uma condição de verdade (logo significar) é já o retorno da
empiria, quando e onde constatamos as classes conceituais segundo as quais os sujeitos
em questão poderiam (ou não) ser agrupados, classes que – atentemos – estão envolvidas
no próprio processo de significação; e assim passeamos entre o condicionado e a
condição, na medida em que se estabelece a condição como uma duplicação, uma mera
imagem do condicionado.39 Tautologicamente, permanecemos no nível do empírico, do
descritivo, do designativo mesmo. Finalmente:

39 Como se fazer uma pergunta fosse já dispor de uma resposta. A pergunta espera e condiciona a resposta,
mas a resposta, de algum modo, a antecedeu. Diz Deleuze (DELEUZE, 1968/1988, p. 256): “(...) uma
interrogação é sempre calcada sobre respostas passíveis de serem dadas, sobre respostas prováveis ou
possíveis.” Ou, como diz Foucault, é que o “modelo escolar” do pensamento falsifica a resposta já pronta:
cf. Foucault, 1970/2000, pp. 245-246.
20

Para que a condição de verdade escape a este defeito, será preciso que ela
disponha de um elemento próprio distinto da forma do condicionado, seria
preciso que ela tivesse alguma coisa de incondicionado, capaz de assegurar
uma gênese real da designação e das outras dimensões da proposição: então a
condição de verdade seria definida não mais como forma de possibilidade
conceitual, mas como matéria ou “camada” ideal, isto é, não mais como
significação, mas como sentido (ibidem, p. 20, grifo do autor).

Eis que Deleuze, em relação à linguagem tipicamente ocidental, não deixa de


ratificar o sentido segundo o estatuto do incorporal, de modo que assim poderá dispô-lo,
por direito, como sustentação, arcabouço lógico das demais dimensões da proposição.
Estas são já da ordem da forma, do existente, tudo visivelmente pronto para a tessitura e
a côa dos sujeitos; no entanto, de acordo com nosso autor, o sentido está para aquém (e
para além) de suas manifestações atuais nos termos representativos da proposição, pois
sua textura, ainda que real, é não-existente, evenemencial. Insistimos: sabemos que há
acontecimento – atributo do corpo –, somente quando dito na linguagem; porém, se a
tomamos apenas pelas dimensões mais comuns e conhecidas – o círculo que
apresentamos –, ficamos unicamente no plano das efetuações empíricas e ulteriores,
perdemos justamente sua face anterior, genética, que chamaremos de transcendental, na
acepção deleuzeana do termo.
Portanto, as últimas passagens, relativas à argumentação que tenta distinguir o
sentido e o círculo proposicional, o sentido e a significação, elas também exibem o caráter
do transcendental, para Deleuze. É neste nível que ele almeja chegar, no nível
transcendental do sentido, o lugar onde se desenrola o movimento de sua gênese.

4. Considerações
Para compreendermos o deslocamento produzido pelos estóicos e retomado por
Deleuze, precisamos colocá-lo em réplica à construção platônico-aristotélica. Nesta, as
essências são idealidades a serem perseguidas segundo uma ascese promovida a partir da
razão; para os primeiros, ao contrário, as essências estão nos próprios corpos, são
inseparáveis destes, e estão no plano de uma física. Platão e Aristóteles querem acentuar
a suposta inevitabilidade da cópula “é”, na medida em que ela promove a ligação entre
sujeitos e predicados, conformando um tipo específico de proposição que tem escrito, de
maneira majoritária, o pensamento e a linguagem ocidentais. Os estóicos, na proporção
em que os corpos necessária e indissociavelmente contêm suas essências, vão salientar,
21

de outro lado, no pensamento e na linguagem, o problema das modificações – sempre


incorporais – pelas quais passam os corpos. Estas ações não podem obviamente alterar as
essências físicas dos corpos, mas se configuram como efeitos metafísicos que lhes advêm
segundo um plano evenemencial, maneiras de ser que se expressam em verbos. Assim,
os corpos não mudam; o que se altera são as modificações incorporais que não deixam
jamais de lhes suceder. Se os corpos conduzem suas essências que são imutáveis, eles vão
variar em função dos acontecimentos: estes são a expressão das diferenças.
Diremos ainda de outro modo: tanto para Platão quanto para os estóicos, há uma
esfera de corpos sensíveis e outra de idealidades incorporais. No entanto, se para Platão
as essências se encontram nas Idéias inteligíveis por meio do pensamento, para os estóicos
elas pertencem ao registro dos corpos: são forças complexas, potências de germinação,
tensão vital. Para Platão, as Idéias são as causas e os limites para tudo o que existe no
mundo sensível, o que instala um evidente regime de transcendência entre os dois planos;
quanto aos estóicos, as Idéias jamais serão causas, mas são tênues e simples efeitos que
emergem das ações e reações entre os corpos. Estes buscam desenvolver suas essências,
efetuar suas potências de expansão e de germinação, e aí não há como fugir ao encontro
com o outro, encontro entre os corpos, produção de acontecimentos, ou, numa palavra
premente, transformação, agora colocada sob uma perspectiva que é outra, a dos
inevitáveis efeitos.
Disto tudo, entre tantas inferências possíveis e relevantes, apresentamos um ponto
central: as Idéias não são portanto aquilo que devemos alcançar, mas, pelo inverso, aquilo
que se põe a gerar a partir de práticas e ações cotidianas, do encontro peremptório dos
corpos com outros corpos, do infalível exercício das misturas. Em outras palavras, o
sentido não está para ser originariamente buscado, mas está para ser continuamente
produzido.
Reafirmemos certos caracteres do sentido-acontecimento, procurando
acompanhar as conclusões de Deleuze tais como situadas em mais algumas páginas
fundamentais de sua Lógica do Sentido.40

Inseparavelmente o sentido é o exprimível ou o expresso da proposição e o


atributo do estado de coisas. Ele volta uma face para as coisas, uma face para
as proposições. Mas não se confunde nem com a proposição que o exprime
nem com o estado de coisas ou a qualidade que a proposição designa. É,

40
Estamos nos referindo especialmente às páginas 22 e 23.
22

exatamente, a fronteira entre as proposições e as coisas (...) Não


perguntaremos, pois, qual é o sentido de um acontecimento: o acontecimento
é o próprio sentido. (DELEUZE, 1969/1998, p. 23)

De um lado, como já sabemos, o expresso não pode existir fora de sua expressão:
ele é o atributo lógico extra-proposicional, extra-representativo, mas que se manifesta
pelas proposições de linguagem, é nelas que atualiza uma de suas faces. Ao mesmo
tempo, é atributo ontológico, o extra-ser que advém às coisas e estados de coisas e que
resulta nos acidentes positivos, sem contudo a eles se reduzir. O sentido-acontecimento
precisa tanto da corporeidade quanto da linguagem, mas ele é a superfície incorporal
aquém destas efetuações formais. Nem ser, nem não-ser, mas quase-ser, o acontecimento
não se dá fora de suas efetuações, e, todavia, não se esgota nelas – é excessivo,
superabundante, reserva inesgotável. Precede, lógica e ontologicamente, suas
atualizações, mas aí ele não se esvai, continua a perpassá-las, subsistindo como eterna
porção inatualizável.
Deleuze aponta a insuficiência dos conceitos de designação, manifestação e
significação: tais funções proposicionais não dão conta do sentido. Estas relações são
obviamente importantes, mas se resumem aos laços do representável, de maneira que algo
lhes escapa. Este algo – reclamado, como procuramos mostrar, por aspectos
essencialmente lógicos – pertence a um domínio diverso, campo dos devires e do
acontecimento, cuja teorização é capaz de imprimir novos pontos de vista no que toca aos
vínculos entre linguagem e mundo. O trabalho de Deleuze mostra-nos o quanto ele
acredita na potência destes liames, uma vez que “o acontecimento pertence
essencialmente à linguagem, ele mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a
linguagem é o que se diz das coisas” (ibidem, p. 23). A linguagem, em seu elo
imprescindível com uma quarta dimensão da proposição, será cada vez mais, nas séries
seguintes da Lógica do Sentido, sustentáculo para a argumentação de nosso autor.

Referências bibliográficas
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23

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Dissertação (Mestrado) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade
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