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1. Em Atenção ao Devir
Há um traço da filosofia de Deleuze que praticamente atravessa todos os seus
escritos: “O pensamento de Deleuze já foi batizado, com razão, de Filosofia do
Acontecimento.” (PELBART, 1998, p. 61) Esta é uma de suas grandes questões,
disseminada em lugares variados, às vezes tratada explicitamente, às vezes travestida sob
motivos diversos. No que toca ao foco maior deste trabalho, é preciso lembrar que “(...)
em termos deleuzianos, uma lógica do sentido equivale a uma lógica do acontecimento,
e vice-versa.” (SOUSA DIAS, 1995, p. 98)
Trata-se de um conceito perturbador, precisamente porque escapa às
categorizações mais tradicionais de que a razão comumente se vale para pensar coisas e
estados de coisas. Não há, por exemplo, como este acontecimento ser enxergado pelas
mídias jornalísticas, ele nada tem a ver com o acidental, o factual ou o histórico3. A
filosofia de Deleuze encara o monumental desafio de circunscrever a porosidade de uma
trama que, em última instância, compõe mundos...
Começaremos tecendo algumas asserções sobre o problema do devir, considerado
logo no início da Lógica do Sentido. Deleuze vai fazer valer o seu apreço pelos livros de
Lewis Carroll:
Quando digo ‘Alice cresce’, quero dizer que ela se torna maior do que era. Mas
por isso mesmo ela também se torna menor do que é agora. Sem dúvida, não é
1
Este texto é o segundo capítulo da dissertação de mestrado Considerações sobre o Sentido em Deleuze:
Apontamentos para uma Teoria do Signo e da Comunicação, defendida em março de 2003 no âmbito do
Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP), com apoio do CNPq. Pequenas modificações foram realizadas, tendo em vista esta
publicação.
2
Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
3
Cf. Deleuze, 1990/1992, pp. 198-199.
2
ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se
torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo,
no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos
menores do que nos tornamos. (DELEUZE, 1969/1998, p. 1)
Esta será a dimensão salientada pelo trabalho de Deleuze; não a face efetivamente
empírica e visível do mundo, mas aquela que a tudo subjaz, fluxo incessante que contém
toda efetuação. Pelos meandros enredados dos devires, ele vai buscar erigir as novidades
de sua filosofia. E – não é difícil notarmos – o devir ganha o estatuto do paradoxo, da
ambigüidade, da indiscernibilidade, da multiplicidade, da identidade infinita: “identidade
infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do
amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da
causa e do efeito.” (ibidem, p. 2)
Eis porque, valorizando o devir e os conceitos que com ele se coadunam, Deleuze
também se afastará radicalmente das figuras racionalizantes do bom senso e do senso
comum. O bom senso diz respeito ao bom caminho, o sentido acertado, sensato, racional,
aquele capaz de prever e orientar as coisas segundo uma direção única fixada como
3
4
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 3, pp. 79-81.
5
Deleuze adverte, logo no prólogo da obra: “Apresentamos séries de paradoxos que formam a teoria do
sentido. Que esta teoria não seja separável de paradoxos explica-se facilmente: o sentido é uma entidade
não-existente, ele tem mesmo com o não-senso relações muito particulares.” Poderíamos também
perguntar: como é possível que os sentidos – eles que são da ordem do ideal, da névoa – se expressem pela
concretude formal de uma linguagem? Já não estaria aí o paradoxo maior? E, no entanto...
6
Como diz Deleuze: “É a linguagem que fixa os limites (...) mas é ela também que ultrapassa os limites e
os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado.” (DELEUZE, 1969/1998, p. 2)
4
mesmo modo, as incertezas pelas quais ela continuamente passa destituem-na, pouco a
pouco, de suas referências pessoais, de seus saberes, de sua identidade estável e segura
enfim.7 Estamos aí diante da busca por uma filosofia suficientemente despsicologizada,
crítica dos sujeitos empíricos bem formados, das identidades plenamente individuadas, o
que era já bastante notável em certas linguagens literárias8. Os devires paradoxais, como
veremos, são os próprios acontecimentos.
7
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 81.
8
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 3. Cf. também o texto A Literatura e a Vida, em Crítica e Clínica (DELEUZE,
1993/1997), pp. 11-16. Em uma nota de rodapé à p. 13, Deleuze cita Blanchot: “Algo acontece (aos
personagens) que estes só podem retomar renunciando ao poder de dizer Eu.” Em questão, as relações entre
literatura e subjetividade contemporânea: problema de crítica, mas também de clínica, como insiste o
filósofo.
9
Eis o cerne da leitura deleuzeana de Platão: no livro VI da República, Platão traça a linha metafísica cujos
efeitos acabaram por se multiplicar ao longo da história dos homens. Esta linha separa um mundo sensível
– o nosso mundo, lugar das imagens e dos corpos – de um inteligível – mundo superior, ideal, das essências
e das matemáticas. Platão, como filósofo, tem a preocupação de verificar as condições de possibilidade dos
saberes, de um conhecimento. Vai então asseverar que o conhecimento só é possível em relação aos objetos
do mundo inteligível, dada a sua ordem e estabilidade. Já no que diz respeito ao sensível, o conhecimento,
a princípio, surge como improvável, devido à total instabilidade deste mundo, mergulhado em permanentes
misturas e transformações. Contudo, eis a grande questão, há uma forma de garantir que mesmo no mundo
inferior o conhecimento torne-se possível, desde que suas imagens e matérias submetam-se aos objetos
ideais do mundo inteligível, de modo a copiar-lhes o modelo. É assim que os corpos enlouquecidos que
povoam o mundo sensível ganham contornos e limites, recebem uma ordem. Esta distinção funda o que
mais tarde acabaremos por conhecer como representação, uma vez que estas cópias mantêm-se à imagem
e semelhança de seus modelos (não são eles, mas são como eles, interiorizando uma semelhança com a
identidade superior da Idéia), já que aceitaram ser-lhes conformes. Quanto aos corpos que não se deixarem
subjugar pelos modelos, que não interiorizarem convenientemente um nível necessário de semelhança,
tanto pior: deverão, em qualquer participação, ser preteridos em favor das boas cópias. A estas, todas as
graças. Aos simulacros, a pena do degredo. Cf. o texto-apêndice Platão e o Simulacro, na Lógica do Sentido
(1969/1998). Indicamos também Ulpiano, 1993, pp. 1-4 e Machado, 1990, pp. 25-27.
10
Este pequeno livro será o principal guia de Deleuze quanto ao seu mergulho no estoicismo. A tradução
das citações que forem utilizadas é de nossa responsabilidade. Lembramos, de passagem, que a escola
estóica foi fundada em 300 a.C., em Atenas, por Zenão de Cítio (332-262 a.C.) O estoicismo antigo foi
5
Antes de mais nada, é preciso dizer que os estóicos não aceitam o traço metafísico
proposto por Platão entre inteligível e sensível, modelos e cópias. Não há a idealização
de exterioridades perfeitas cujas formas deveriam ser imitadas e que assim dispõem a
produção dos seres. Para os estóicos, tudo o que existe está aqui, neste mundo, sem
qualquer necessidade de instâncias reguladoras de uma ordem superior. A fim de defender
esta posição, eles adotam, particularmente, uma outra noção de causalidade, que inverte
a relação clássica causa ideal-efeito sensível11. Vejamos.
O domínio primeiro é o dos corpos, com suas composições alucinantes, seus
encontros e relações, ações e paixões. Aqui, os estados de coisas são dados por estas
misturas e coexistências infalíveis, primazia da física. Entre os corpos, não há pois causas
e efeitos, mas apenas causas. O ser é aí considerado in totum, ser imutável que persiste
segundo uma tensão vital, a essência complexa que o mantém. Bréhier:
O acento recai então sobre o sensível, lugar pleno dos seres e que abriga todas as
causas do universo. O impedimento ao platonismo é tamanho que, para não buscar no
inteligível qualquer tipo de causa ou origem superior, os estóicos alargam a concepção de
corpo. Assim, as coisas que perfazem as misturas são corpos, naturalmente, mas também
o é toda sorte de característica quantitativa e qualitativa. Em outras palavras, as virtudes
e as propriedades, por exemplo, também são corpos, como a prudência e o verde. A alma,
elaborado especialmente pelos sucessores de Zenão, Cleantes (331-232 a.C.) e Crisipo (280-206 a.C.) A
Academia de Platão havia sido fundada em 387 a.C., ao passo que o Liceu de Aristóteles é de 335 a.C.
11
Continua Bréhier, ainda em relação a Platão e a Aristóteles: “Também a causa, quer ela seja a Idéia ou o
motor imóvel, é permanente como uma noção geométrica. O movimento, o devir, a corrupção dos seres,
no que eles têm de perpetuamente instável, devem-se não a uma causa ativa, mas a uma limitação desta
causa, que escapa por sua natureza a toda determinação e todo pensamento.” (1928/1980, p. 4) Obviamente,
a questão da causalidade em filosofia é extremamente nuançada. Vamos nos ater somente aos poucos pontos
que interessarem diretamente ao problema em pauta.
6
tensão vital, força interna dos animais, é um corpo12. O ponto de vista, vemos, privilegia
uma noção de causalidade mais biológica e vitalista, menos matemática e transcendente.
Chegamos então a um ponto muito relevante para os estóicos, este em que
afirmam: “Tudo que existe é corpo.” (ibidem, p. 6) As causas são corpos, assim como o
que sofre a ação dessas causas. A partir daí, Deleuze diz: “Não há causas e efeitos entre
os corpos: todos os corpos são causas, causas uns com relação aos outros, uns para os
outros.” (DELEUZE, 1969/1998, p. 5) Os estóicos operam, portanto, todas as causas no
sensível, origem de tudo; se de algum modo falam em efeitos, estes é que se localizam
em um registro ideal.
De fato, da profundeza das misturas e interações diversas, atividade ininterrupta,
emerge uma espécie de névoa, efeitos que pertencem a uma esfera distinta. Não são
corpos, mas acontecimentos incorporais. De um lado, a corporeidade, as coisas em
efetuação; de outro, a superfície evenemencial incórporea, acontecimentos que se efetuam
nas coisas e nos estados de coisas. Os estóicos propõem uma nova partição metafísica,
deslocam a linha fronteiriça para um lugar até então desconhecido. Examinemos o
estatuto misterioso destes incorporais.
Se são incorporais, não se pode dizer que existem. Só os corpos existem: os
incorporais subsistem, “tendo este mínimo de ser que convém ao que não é uma coisa,
entidade não existente” (ibidem, p. 5)13. Os incorporais não existem, mas são reais.14 Os
corpos certamente agem e padecem, são agentes ou pacientes, mas não os incorporais
resultantes das misturas: estes são impassíveis. Compreendemos melhor esta
impassibilidade quando lembramos que as misturas podem ser avaliadas pelas partes,
positivamente ou negativamente, mas não sob a perspectiva de um “todo cósmico, do
metabolismo natural universal” (SOUSA DIAS, 1995, p. 94)15, a quem tudo é
perfeitamente cabível.
12
Cf. a discussão em Bréhier, 1928/1980, pp. 6-9.
13
Devemos chamar a atenção para o seguinte: Émile Bréhier aponta que os estóicos admitiam 4 tipos de
incorporais: o expresso (que é o acontecimento), o vazio, o tempo e o lugar. Cf. Bréhier, 1928/1980, p. 60,
por exemplo. Ao longo deste trabalho – praticamente como faz Deleuze na Lógica do Sentido, segundo nos
parece –, quando nos utilizarmos da terminologia “incorporais”, estaremos nos referindo especificamente
aos expressos, aos acontecimentos. Quanto ao tempo, cujas relações com o nosso tema são bastante
relevantes, verificar particularmente a vigésima terceira série, Do Aion. Na Lógica do Sentido, até onde
pudemos perceber, o autor não faz referências mais específicas quanto ao lugar ou ao vazio.
14
Cabe o comentário de Cláudio Ulpiano em sua Dissertação de Mestrado, Do Saber em Platão e do Sentido
nos Estóicos como Reversão do Platonismo: “Terrível questão ontológica: ser real e não existir.”
(ULPIANO, 1983, p. 39) Acrescentemos ainda a pequena fórmula de que Deleuze tanto gosta, que ele toma
da Recherche de Proust: são “reais sem serem atuais, ideais sem serem abstratos”. Cf. Deleuze, 1970/1987,
p. 61 e 1972/sd, p. 283.
15
Cf. também Deleuze & Parnet, 1977/1998, p. 76.
7
16
Platão estabelece o estatuto das hierarquias, das classificações, na medida em que passa a mensurar os
pretendentes, aqueles que dispõem – para mais ou para menos – de uma determinada qualidade. Todos
terão de passar pela prova da cópia, para que os virtuosos, os semblantes que melhor souberem introjetar a
semelhança, possam ser eleitos. Diz Machado: “O fundamento idêntico, e imparticipável, é a Idéia: só a
justiça é justa, só a coragem é corajosa... Mas o fundamento possibilita aos pretendentes que passarem por
sua prova, por sua seleção, participar da qualidade que só ele possui inteiramente e lhe ser semelhantes”
(MACHADO, 1990, p. 32). Ver também Foucault, 1970/2000, pp. 230-233.
8
17
Precisaremos fazer breves anotações sobre a lógica e a metafísica aristotélicas. Gênero diz respeito a uma
classe de espécies que se assemelham, e cujas diferenças podem então ser relevadas. Cada espécie, por sua
vez, é composta por uma classe de indivíduos que se assemelham, e cujas diferenças podem também ser
relevadas. Os indivíduos são os seres realmente existentes. Assim, gênero e espécie são conceitos universais
que se encarnam nos indivíduos e que são conhecidos pelo pensamento. Os predicados (ou atributos) são
essenciais ou acidentais conforme se apresentem como necessários ou contingentes, universais ou
particulares, em relação a um sujeito. Quando o sujeito é genérico ou específico, o predicado ou atributo é
sempre essencial; quando é um existente, pode ser essencial ou acidental. A relação entre sujeito e
predicado segundo a cópula “é” configura uma proposição (S é P) que não deixa de ser uma máquina de
especificação, realçando similitudes e preterindo diferenças. Este procedimento é também de inclusão (ou
de exclusão), na medida em que um sujeito pode pertencer (ou não) a esta ou aquela classe conceitual
(gênero ou espécie), segundo o predicado apontado na proposição. A conclusão é que o conceito
aristotélico, estabelecido a um nível genérico ou específico (e portanto um nome geral da linguagem,
sempre indicando uma classe, um conjunto), é o que inscreve a diferença na forma de uma identidade. Cf.
o capítulo Aristóteles e a Mediação da Diferença, em Machado, 1990, pp. 37-44.
9
18
Pela especulação platônico-aristotélica, poderíamos mesmo perguntar: como pode uma árvore que é
verde envelhecer e amarelecer? É a distância entre dois modos de pensamento...
19
Cf. Bréhier, 1928/1980, p. 12.
20
Cf. este exemplo em Bréhier, 1928/1980, pp. 20-21. Da mesma forma, eles provavelmente não usariam
“João é triste”, e sim “João entristece”; ao invés de “a noite está escura”, prefeririam algo como “é noite,
está escuro”, assim mesmo, sem qualquer sujeito de inerência (Cf. BRÉHIER, 1928/1980, p. 23).
21
Citado por Deleuze à p. 6 de Lógica do Sentido (1969/1998).
22
Efetuaremos um paralelo mais nítido entre a proposição aristotélica e a estóica. Para tanto, nos ajudou
bastante o trabalho de mestrado de Cláudio Ulpiano, 1983, pp. 47-50.
10
23
Isto será ratificado no tópico seguinte, sobre a proposição.
24
“Na classificação dos atributos, eles não os distinguem, como Aristóteles, pelo modo de sua ligação com
o sujeito, mais ou menos essencial ou acidental: eles só querem aí distinguir as diversas formas nas quais o
acontecimento pode se expressar.” (BRÉHIER, 1928/1980, p. 21) Exemplificando, podemos verificar a
diferença entre as proposições “Pedro é homem”, “Pedro é careca” e “Pedro dançando”. As duas primeiras
exprimem, respectivamente, um atributo essencial e um acidental do indivíduo Pedro, são suas propriedades
empíricas, ao passo que a terceira, pelo atributo “dançando”, expressa-lhe um acontecimento.
11
alguma com o estado de coisas físico, nem com uma qualidade ou relação deste
estado. (DELEUZE, 1969/1998, p. 22)
Quando vemos “uma maçã caindo”, o fato dela cair não diz respeito a uma
propriedade empírica da maçã. A maçã é um ser real e sensível (um corpo), mas não o
fato dela cair. Tal fato sem dúvida diz respeito à maçã, mas esta só cai porque há uma
linguagem para apará-la, há uma linguagem pela qual ela pode cair! Não fosse a
linguagem, ela jamais cairia. Quando nos deparamos com “um rapaz passeando” ou “uma
moça sentada”, antes de tudo é pela linguagem que o rapaz passeia, é nela que a moça
está sentada. Em suma, estamos falando de atributos que pertencem aos corpos, mas que
precisam da linguagem para se manifestar. Temos aí algo (um incorporal) que é
simultaneamente atributo (ontológico, extra-ser) da coisa e sentido (lógico, extra-
proposicional) a emergir por um verbo, via discurso. O incorporal é a coincidência entre
atributo ontológico da coisa (o acontecimento) e predicado lógico na linguagem (o
sentido), ele é indissociavelmente os dois, ele está entre os dois, ele dá liga aos dois.25 O
uso das formas nominais dos verbos (infinitivo, gerúndio, particípio), na medida em que
escapam do verbo ser e dificultam a predicação aristotélica, nos ajuda a mostrar o quanto
os acontecimentos não pertencem exatamente à linguagem, mas aos corpos: elas dizem
dos corpos, na linguagem.
As particularidades estóicas vão sendo exibidas. Para eles, todos os corpos do
universo já existem, mas novos encontros, interações e coexistências estão sempre por
serem inventadas; destas misturas inesgotáveis, eclodem brumas de acontecimentos: o
novo é sempre um verbo. Os estóicos promovem as relações e afirmam uma pragmática.
O atributo especial apresentado – transformação, mudança, diferença, efeito
incorporal, maneira de ser – é portanto o que acontece aos corpos, dito pela linguagem:
ele é ao mesmo tempo ontológico e lógico, comunhão entre o que acontece aos estados
de coisas mediante a possibilidade de expressão em discurso. Tudo muito incomum, e
não é para menos, pois os estóicos firmam um outro tipo de raciocínio e de linguagem,
uma outra forma de pensar, de existir. Aí a evidente dificuldade em entrevermos o
acontecimento, tal como proposto pelos estóicos e retomado por Deleuze. Uma citação
de Sousa Dias pode esclarecer um pouco mais este contexto conceitual:
25
Eis uma das passagens em que Bréhier assevera esta posição: “Procuraríamos em vão em que o predicado
lógico da proposição poderia diferir dos atributos das coisas, considerados como resultados de sua ação.”
(BRÉHIER, 1928/1980, p. 21)
12
O acontecimento é biface. Tem uma face voltada para as coisas, e outra para a
linguagem. Efetua-se em coisas e estados de coisas e exprime-se em
proposições. Mas sem ser redutível quer às suas efetuações quer às suas
expressões lingüísticas. Ele “encarna-se” atualmente em seres, corpos e
qualidades de corpos, e atualiza-se também nos enunciados verbais como suas
expressões, mas sem nada perder da sua natureza de extra-ser incorporal e de
entidade extra-proposicional. Não que seja separável das suas efetivas
corporizações físicas e das suas expressões lingüísticas como outras tantas suas
“insistências” variáveis. Só que ele é como o Agora infinitivo que excede todas
as suas manifestações presentes, a imaculada sombra metafísica dessas
manifestações, a parte em tudo o que acontece que escapa a toda a atualidade,
bem como a parte em tudo o que se enuncia que escapa a toda a representação
(SOUSA DIAS, 1995, pp. 95-96).
26
“(...) se os corpos, com seus estados, qualidades e quantidades, assumem todos os caracteres da substância
e da causa, inversamente, os caracteres da Idéia caem do outro lado, neste extra-ser impassível, estéril,
ineficaz, à superfície das coisas: o ideal, o incorporal, não pode ser mais do que um ‘efeito’”. (DELEUZE,
1969/1998, p. 8, grifo do autor) Ratifiquemos a seguinte diferença estatutária: enquanto a Idéia platônica
têm um acento causal, a Idéia estóica é assinalada como efeito. São metafísicas distintas, que funcionam
diversamente, como podemos observar quanto à caracterização da Idéia em cada uma. Há conseqüências
evidentes. Em breve, retomaremos o tema.
13
27
Cf. DELEUZE, 1969/1998, p. 8.
28
“O devir-ilimitado torna-se o próprio acontecimento, ideal, incorporal, com todas as reviravoltas que lhe
são próprias, do futuro e do passado, do ativo e do passivo, da causa e do efeito.” Por exemplo, o que se dá
entre o escalpelo e a carne, acontecimento que transita infinitamente entre o cortar e o ser-cortado, a ativa
e a passiva, a causa e o efeito: há um corte... Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 9.
14
3. Problema da Proposição
No que toca especificamente à linguagem, Deleuze dissocia o sentido das três
relações principais com as quais os teóricos costumam delimitar os contornos da típica
proposição ocidental. De acordo com ele, a designação, a manifestação e a significação
não resolvem o problema do sentido.
A designação refere a representação mais evidente, a correspondência biunívoca
entre termos e coisas designadas, segundo o liame denotacionista e objetivista que
amarra as palavras às coisas e estados de coisas, possibilidade em função da qual ela pode
receber determinado valor lógico (verdadeiro ou falso). A designação seria sustentada
pela manifestação, relação que associa as proposições às imagens mentais de um sujeito
psicológico falante, conforme crenças e desejos pessoais. Entra aqui, portanto, o regime
do eu, do subjetivo. Entretanto, para além da designação objetivista e da manifestação
subjetiva, há um conjunto de significantes cuja rede de articulações e implicações
conceituais é capaz de compor os universos subjetivos mediante significações lógicas que
se desenvolvem no interior de uma língua e de uma cultura. A prolongada permanência
de algumas destas significações tem sido hegemonicamente essencial quanto à
constituição das subjetividades ocidentais, os conceitos de Deus e de mundo, por
exemplo.30
Deleuze se questiona por que a significação deve ser considerada primeira com
relação à manifestação e à designação, e afirma a complexidade da resposta.31 Ele levanta
este problema com o fim de verificar o que é que alicerça, como é que se funda cada uma
29
Em diversas ocasiões, ao longo da série Dos Efeitos de Superfície, Deleuze vai se referir a este
deslizamento.
30
Cf. Deleuze, 1969/1998, pp. 13-15, nas quais Deleuze conceitua os três tipos de relação.
31
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 16.
15
32
Deleuze utilizará aí dois conceitos tradicionais, provenientes de Saussure: fala e língua. De acordo com
Roland Barthes, temos “um puro objeto social, conjunto sistemático das convenções necessárias à
comunicação (...) e que é a língua, diante de que a fala recobre a parte puramente individual da linguagem
(fonação, realização das regras e combinações contingentes de signos).” Cf. Barthes, 1964/1993, p. 17.
Diríamos que a fala é a simples atualização subjetiva de seu outro mais denso e complexo, a língua.
33
“Enfim, da designação à manifestação se produz um deslocamento de valores lógicos representado pelo
Cogito: não mais o verdadeiro e o falso, mas a veracidade e o engano.” Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 14 e p.
16.
34
Um dos alvos de Deleuze, ao longo desta seção, é a teoria da proposição em Aristóteles, inseparável da
questão metafísica do conceito e de sua lógica silogística. Lembramos que, há pouco, apresentamos
brevemente certos termos aristotélicos, alguns dos quais reaparecerão agora.
16
premissas sejam verdadeiras e que a conclusão seja falsa, ou, ainda de outro modo, dada
a verdade das premissas, a conclusão deve ser necessariamente verdadeira.35
No que diz respeito à primeira condição, relativa especificamente às premissas,
imediatamente surge a necessidade de sairmos da implicação para a verificação dos
estados de coisas designados (é verdade que todos os cães são mamíferos?; é verdade que
Sultão é um cão?). Quanto à segunda, que põe em xeque a conclusão, iremos, com
Deleuze, montar o famoso paradoxo de Carroll: afirmar que se as premissas a e b são
verdadeiras, a conclusão z também deve ser é, em suma, gerar uma outra proposição que
agora nomearemos como c. Posso então dizer que se as premissas a e b e c são
verdadeiras, a conclusão z também deve ser, o que já é uma nova proposição d e assim
por diante, ao infinito.36 Para uma melhor visualização:
a.Todos os cães são mamíferos;
b.Sultão é um cão;
c.Se a é V e b é V, z é V;
d.Se a é V e b é V e c é V, z é V;
e.Se a é V e b é V e c é V e d é V, z é V;
(...)
z.Logo, Sultão é um mamífero.
Por que tudo isto? Para mostrar que sair do loop infinito apresentado é ter de pedir
uma mão à designação a fim de que ela ajude a fundar aquilo que ela não poderia:
estaremos solicitando ao fundado que nos ajude quanto à sua fundação, chamaremos o
constituído para que assim possamos constituí-lo: “(...) a implicação não chega nunca a
fundamentar a designação a não ser que se dê a designação já pronta, uma vez nas
premissas, outra na conclusão.” (ibidem, p. 17)
O estado de coisas me assevera diretamente: todos os cães são mamíferos e Sultão
é um cão (as evidências do argumento são verdadeiras); também é ele quem vai ter de me
confirmar: Sultão é um mamífero (a conclusão do argumento é verdadeira – não é possível
a configuração com premissas verdadeiras e conclusão falsa, o que invalidaria o
argumento); paradoxalmente, é apelando ao esquema designativo que demonstramos a
35
Deleuze apresenta as duas condições na Lógica do Sentido, p. 17. A lógica aponta que a demonstração
(ou prova de verdade) de um argumento se dá segundo os dois quesitos apresentados. Cf., por exemplo, o
texto Evidência e Relevância, de Mark Julian Cass (2002, p. 8).
36
Cf. O que a tartaruga disse a Aquiles, nas Aventuras de Alice (1980, pp. 251-254, tradução de Sebastião
Uchoa Leite). Este texto não está presente no Alice: Edição Comentada (2002, tradução de Maria Luíza
Borges).
18
Porém, mesmo de fato, Deleuze aponta que o sentido não deve ser confundido
com qualquer das três dimensões ordinárias da proposição. Ele repete insistentemente que
o sentido não são os estados de coisas ou objetos físicos, nem as imagens particulares,
crenças pessoais, representações mentais ou o vivido psicológico dos sujeitos, nem
conceitos lógicos ou possíveis essências universais e gerais. Numa ponta, se as palavras
estivessem indefectivelmente coladas às coisas, como seria possível que uma carruagem
passasse pela boca? As designações são arbitrárias e contingentes, como demonstram
nitidamente a poesia e o humor. Com efeito, a designação presume o sentido: alojados
nele é que operamos designações.37 Sabemos, no entanto, que os designantes só têm
sentido na medida em que são enunciados por um sujeito que se manifesta na proposição.
Deleuze encontra uma oportuna citação de Carroll, através de Humpty Dumpty, que
enfatiza exemplarmente a autoridade de uma subjetividade no que toca ao campo da fala:
“Quando uso uma palavra (...) ela significa exatamente aquilo que eu quero que
signifique... nem mais nem menos.”38 Contudo, a fala se insere em um contexto mais
abundante, o da língua, esfera em que fica facultada a permanência de alguns conceitos –
a partir dos quais um sujeito torna-se mesmo capaz dos seus enunciados (como o de Deus
37
Cf. Deleuze, 1969/1998, p. 18.
38
Aventuras de Alice, 1980, p. 196, grifo nosso. No Alice: Edição Comentada (CARROLL, 2002), p. 204.
A citação na Lógica do Sentido (DELEUZE, 1969/1998) está na p. 18.
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39 Como se fazer uma pergunta fosse já dispor de uma resposta. A pergunta espera e condiciona a resposta,
mas a resposta, de algum modo, a antecedeu. Diz Deleuze (DELEUZE, 1968/1988, p. 256): “(...) uma
interrogação é sempre calcada sobre respostas passíveis de serem dadas, sobre respostas prováveis ou
possíveis.” Ou, como diz Foucault, é que o “modelo escolar” do pensamento falsifica a resposta já pronta:
cf. Foucault, 1970/2000, pp. 245-246.
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Para que a condição de verdade escape a este defeito, será preciso que ela
disponha de um elemento próprio distinto da forma do condicionado, seria
preciso que ela tivesse alguma coisa de incondicionado, capaz de assegurar
uma gênese real da designação e das outras dimensões da proposição: então a
condição de verdade seria definida não mais como forma de possibilidade
conceitual, mas como matéria ou “camada” ideal, isto é, não mais como
significação, mas como sentido (ibidem, p. 20, grifo do autor).
4. Considerações
Para compreendermos o deslocamento produzido pelos estóicos e retomado por
Deleuze, precisamos colocá-lo em réplica à construção platônico-aristotélica. Nesta, as
essências são idealidades a serem perseguidas segundo uma ascese promovida a partir da
razão; para os primeiros, ao contrário, as essências estão nos próprios corpos, são
inseparáveis destes, e estão no plano de uma física. Platão e Aristóteles querem acentuar
a suposta inevitabilidade da cópula “é”, na medida em que ela promove a ligação entre
sujeitos e predicados, conformando um tipo específico de proposição que tem escrito, de
maneira majoritária, o pensamento e a linguagem ocidentais. Os estóicos, na proporção
em que os corpos necessária e indissociavelmente contêm suas essências, vão salientar,
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Estamos nos referindo especialmente às páginas 22 e 23.
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De um lado, como já sabemos, o expresso não pode existir fora de sua expressão:
ele é o atributo lógico extra-proposicional, extra-representativo, mas que se manifesta
pelas proposições de linguagem, é nelas que atualiza uma de suas faces. Ao mesmo
tempo, é atributo ontológico, o extra-ser que advém às coisas e estados de coisas e que
resulta nos acidentes positivos, sem contudo a eles se reduzir. O sentido-acontecimento
precisa tanto da corporeidade quanto da linguagem, mas ele é a superfície incorporal
aquém destas efetuações formais. Nem ser, nem não-ser, mas quase-ser, o acontecimento
não se dá fora de suas efetuações, e, todavia, não se esgota nelas – é excessivo,
superabundante, reserva inesgotável. Precede, lógica e ontologicamente, suas
atualizações, mas aí ele não se esvai, continua a perpassá-las, subsistindo como eterna
porção inatualizável.
Deleuze aponta a insuficiência dos conceitos de designação, manifestação e
significação: tais funções proposicionais não dão conta do sentido. Estas relações são
obviamente importantes, mas se resumem aos laços do representável, de maneira que algo
lhes escapa. Este algo – reclamado, como procuramos mostrar, por aspectos
essencialmente lógicos – pertence a um domínio diverso, campo dos devires e do
acontecimento, cuja teorização é capaz de imprimir novos pontos de vista no que toca aos
vínculos entre linguagem e mundo. O trabalho de Deleuze mostra-nos o quanto ele
acredita na potência destes liames, uma vez que “o acontecimento pertence
essencialmente à linguagem, ele mantém uma relação essencial com a linguagem; mas a
linguagem é o que se diz das coisas” (ibidem, p. 23). A linguagem, em seu elo
imprescindível com uma quarta dimensão da proposição, será cada vez mais, nas séries
seguintes da Lógica do Sentido, sustentáculo para a argumentação de nosso autor.
Referências bibliográficas
BARTHES, R. Elementos de Semiologia. São Paulo: Cultrix, 1964/1993.
BRÉHIER, É. La Théorie des Incorporels dans l’Ancien Stoïcisme. Paris: Librairie
Philosophique J. Vrin, 1928/1980.
CARROLL, L. Alice: Edição Comentada. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.
CARROLL, L. Aventuras de Alice. São Paulo: Summus, 1980.
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