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Psicopatologia psicanalítica:
subjetividade e alteridade contemporâneas
Psychoanalytic psychopathology:
contemporaneous and alterity
Resumo
Neste artigo, faz-se uma reflexão acerca dos estudos sobre psicopatologia e sua aplicação no
campo psicanalítico ao considerar aspectos da subjetividade e alteridade contemporâneas.
Para tanto, abordam-se as modificações da constituição da família na história e a influência
dessas modificações na imago paterna, diferenciando-a da função paterna. Aborda-se também
o sintoma enquanto expressão da verdade do inconsciente e o paradoxo do diagnóstico psica-
nalítico, bem como se discute o enlaçamento do “estranho” com a alteridade.
Pensar a psicopatologia a partir da psicanáli- ideia defendida por Aristóteles. Assim, a vir-
se é um desafio, uma vez que a “psicopatolo- tude estaria naquele que age em harmonia
gização” da subjetividade humana está cada com suas paixões, alcançando o equilíbrio
vez mais presente no discurso hegemônico logos/paixão. Estaria nessa balança o “crime
na área da saúde mental. passional”, assim como as grandes obras,
tendo a paixão como impulsionadora desses
Psicopatologia contém a palavra grega pathos, dois opostos.
que, em sua origem, possui vários significa- No estoicismo, em oposição às teses aris-
dos. Dois conceitos, bastante diferentes, inte- totélicas, as paixões seriam obstáculos ao
ressam-nos sobremaneira: o passional, a pai- logos e deveriam ser domadas. Elas não po-
xão, a passividade; e o patológico, a doença, deriam ser usadas para o aprimoramento
presente no diagnóstico médico. A fronteira pessoal, e enquanto o apaixonado estivesse
que separa estas duas perspectivas é frágil e preso ao seu pathos (como doença), nada
varia de acordo com as épocas e as civiliza- poderia ser feito para ajudá-lo. Dessa forma,
ções (MARTINS apud CECCARELLI, 2003, não seria ele responsável por seus atos. Qual
p. 13-25). a saída? Evitar a expressão da paixão e extir-
pá-la pela raiz (CECCARELLI, 2003).
Nessa perspectiva, o homem não é res- Há um debate interminável entre esses
ponsável por suas paixões, pois não as esco- dois pressupostos, o “normal” e o “patológi-
lhe. Contudo, torna-se responsável pela in- co”. O pathos como causa da conduta do su-
fluência delas nas suas ações, sendo possível jeito ou como uma doença que o aliena e que
julgar o aspecto ético do sujeito. Essa era a o faz necessitar de cuidados especializados.
Estudos de Psicanálise | Belo Horizonte-MG | n. 42 | p. 53–60 | Dezembro/2014 53
Psicopatologia psicanalítica: subjetividade e alteridade contemporâneas
hoje para os adultos. De acordo com Arriès desamparo psíquico ainda maior para o ser
(1981), nesse século, surge, nas classes do- humano. A atemporalidade e a alteridade do
minantes, a primeira concepção real da in- inconsciente, inconciliável com a temporali-
fância. O adulto passa, pouco a pouco, a se dade e objetividade do mundo externo, cria-
preocupar com a criança, porque ela é um ram novas formas de subjetivação para fazer
ser dependente e fraco. A palavra “criança” frente ao desamparo e ao controle do estado
passou a designar a primeira idade de vida, a de cultura do mundo globalizado.
idade da necessidade de proteção. Experiência realizada por alunos do cur-
Com o surgimento do “Estado” no sécu- so de pedagogia da UFRGS, na disciplina
lo XVIII, o patriarcado familiar perdeu força de Psicologia da Educação, ao observar as
para o patriarcado estatal, o qual se conso- crianças e suas famílias, em 2011, mostraram
lida como autoridade pública à medida que a diversidade de modos de agrupamento fa-
vai enfraquecendo o poder do pai. Há um miliar e de arranjos quanto ao desempenho
processo de “humanização” do pai divino e, das funções parentais. As observações dos
nesse contexto, a criança e a mãe ganham va- discentes de pedagogia revelaram que nem
lor. “Nos séculos seguintes a mulher passa a sempre o pai ou a mãe exercem as funções
ocupar o lugar de “rainha do lar”, e a criança parentais na família.
torna-se o “menino rei”. Está então instalado
o modelo de família nuclear burguesa” (BA- [...] por vezes são os tios, os avôs ou são parti-
DINTER apud VITORELLO, 2011, p. 10). O lhadas por várias pessoas. Há também os ca-
fortalecimento do Estado e a ideologia ilu- sos em que a função parental está vazia, pois
minista surgem como fatores preponderan- os pais denotam estar na posição de filhos e
tes de mudanças no tecido social da época, os filhos na posição dos adultos (VITOREL-
promovendo alterações nas condutas sociais LO, 2011, p. 11).
e nas formas de subjetivar dos sujeitos.
Fleig (2008) discute as relações entre as A pesquisa permitiu reconhecer na co-
formas de neuroses dominantes e as mu- munidade local a diversidade quanto às
danças nas condições da família, tal como configurações familiares, tal como constata
ocorreu na modernidade com o declínio do Roudinesco (2003): famílias “recompostas”;
Nome-do-Pai. Embora se constate o enfra- famílias com a “guarda compartilhada dos
quecimento do pai moderno, o declínio da filhos”; famílias “extensivas”, nas quais pais,
imago que o processo histórico deflagrou filhos e avós convivem na mesma casa; “mães
não coincide com a função paterna. O pai solteiras” ou “separadas” com a responsabili-
como função continua a ser o organizador dade de cuidar sozinhas dos filhos. Situações
fundamental da subjetividade e da cultura. que produzem questionamentos acerca dos
A função paterna, como operação estrutu- papéis e funções: como estão definidos, de
ral tanto para o sujeito quanto para o social, quem é a responsabilidade do cuidado das
pode ser encarnada por vários agentes. Na crianças e quem desempenha o que nessa
contemporaneidade, as funções parentais nova estruturação familiar. A presença do
não se tornam tão visíveis como eram na pai e da mãe não quer dizer que o desempe-
ordem tradicional. Há que considerar que, nho da função paterna e materna esteja ga-
em qualquer época, a cultura trata de criar rantido. Por outro lado, há famílias “mono-
estratégias de recalque e repressão com a fi- parentais” nas quais a mãe cuida dos filhos, e
nalidade de mascarar o mal-estar existente. as funções estão instaladas, via desejo mater-
Na contemporaneidade, a qual se vive, hou- no (VITORELLO, 2011).
ve uma mudança na dimensão da percep- Fleig (2008) indica a emergência de um
ção do espaço-tempo, que resultou em um matriarcado no cenário contemporâneo,
pois hoje muitas famílias estão situadas em cada um. Assim, não se pode perder de vista
torno da mãe. As técnicas de procriação ca- as relações do sintoma com a estruturação
minham no sentido de dispensar a partici- subjetiva do sujeito (VITORELLO, 2011).
pação do homem-pai na filiação. Entretanto, Para Rodulfo (apud VITORELLO, 2011),
ressalta-se que o significante paterno tem a o discurso familiar é para o sujeito o “tesou-
propriedade de barrar a demanda engolfante ro de significantes”, lugar de onde retira as
da mãe e situar a criança em relação ao de- significações para sua inscrição no univer-
sejo do Outro materno. Dessa forma, a lei so simbólico. Ao salientar a importância do
simbólica (lei do pai) interdita a mãe e, ao “mito familiar”, o autor diferencia-o de histó-
mesmo tempo, autoriza o sujeito ao acesso a ria familiar. O mito diz respeito ao lugar ocu-
um lugar sexuado. Na visão de Fleig (2008), pado pela criança na família, sua posição em
há na cultura contemporânea a expressão de relação ao campo desejante dos pais, incluin-
uma nova economia psíquica decorrente da do tanto os processos ou tramas imaginárias
suposição de se estar liberado da referência (as fantasias e o brincar) como as funções
paterna. parentais (materna, paterna, dos irmãos).
As novas e múltiplas configurações da fa- Muito tem sido discutido sobre as funções
mília ocidental evidenciam as mudanças nos parentais e as novas configurações familiares
papéis sociais do homem e da mulher, assim na contemporaneidade. Como identificar es-
como a nova realidade nas relações entre os ses conflitos no sujeito?
sexos. A família atual não é mais caracteri- Na compreensão de Dor (1994, p. 9), “o
zada pela “parentalidade”, mas pela descen- diagnóstico psicanalítico remete à dimen-
tralização do poder e por múltiplas aparên- são de um embaraço técnico no campo do
cias. A dominância masculina, característica inconsciente” ao se confrontar com a prática
do sistema patriarcal, cedeu lugar para um psicanalítica e sua investigação. Nessa pers-
contexto em que a mulher tem importância. pectiva, há uma dificuldade de balizamento
Muitas vezes, é em torno da mãe que estão ao utilizar um método dependente de “fer-
as “famílias recompostas” (ROUDINESCO, ramentas” subjetivas. O psicanalista trabalha
2003). Há que considerar, na nova perspecti- com incertezas ao escutar a narrativa his-
va, as famílias “homoparentais” (constituída tórica do paciente. Uma narrativa que, por
por um casal homossexual e seus filhos ado- vezes, entra em ressonância com sua própria
tivos ou não). O próprio direito civil já reco- história.
nhece a união civil dos casais homossexuais, Segundo Dor (1994, p. 13),
garantindo inclusive o direito à adoção de
filhos. Tal efetivação denota a transformação [..] diagnóstico psicanalítico difere do diag-
da família na contemporaneidade. nóstico médico. Existe no diagnóstico psica-
nalítico um paradoxo: por um lado, a necessi-
O sintoma e o diagnóstico psicanalítico dade de estabelecer um diagnóstico que balize
A psicanálise torna-se, desde sua descoberta o tratamento e, por outro, a impossibilidade
por Freud, um balizamento de escuta para a de fazê-lo precocemente, uma vez que ele só
cura dos sintomas do sofrimento. Sintomas poderá se delinear no transcurso da análise.
que vêm expressar, por meio de uma metá-
fora, a verdade do sujeito. Há uma relação O diagnóstico médico visa, inicialmente,
de afetos, que mantém a produção de sinto- determinar a natureza de uma afecção ou
mas com a verdade e que abarca um “saber” uma doença, a partir de uma semiologia. A
inconsciente sobre o sujeito. Desse modo, o seguir, objetiva a classificação dos sintomas,
sintoma evidencia algo que tem uma signi- que permite localizar um estado patológico
ficação e que está relacionado à história de no quadro de uma nosografia. Para o autor, o
ato psicanalítico não pode se apoiar pronta- classe em que o elemento que amedronta
mente na identificação diagnóstica como tal. pode se mostrar como algo recalcado que re-
Uma interpretação psicanalítica não pode torna. Contudo, o estranho não é nada novo
se constituir, em sua aplicação, como pura e ou alheio ao sujeito, mas algo que é familiar
simples consequência lógica de um diagnós- e há muito nele instalado, sendo que somen-
tico, já que o sintoma tem múltiplas faces. te teria se alienado de sua consciência por
A técnica de investigação que o analista uma operação de recalcamento (THONES;
dispõe é a associação livre do paciente e a PEREIRA, 2013). A partir disso se pensa na
atenção flutuante, e é na dimensão do dizer e conexão do estranho com a alteridade, ou
do dito que se definirá o campo de investiga- seja, há um enlaçamento do estranho com a
ção psicanalítica. Como o espaço de palavra diferença, com a alteridade, com o outro da
está saturado de “mentira” e tem o imaginá- relação.
rio como parasita, a avaliação psicanalítica é O sentimento do estranho no âmbito so-
essencialmente subjetiva e deve buscar des- cial se apresenta como pendular, relativo e
velar a verdade do desejo. Ao considerar as relacional; oscila entre sentimentos amoro-
incertezas encontradas no balizamento do sos e hostis, entre a representação de si mes-
diagnóstico psicanalítico, leva-se em conta a mo e a representação dos outros. Portanto,
singularidade, a “composição” do mundo in- o estranho se constitui como um território
terno e do mundo externo, da realidade e da minado. Muitas são as definições e as rela-
presença do outro. ções que se fazem em torno dessa parado-
xal categoria, na qual se busca compreender
O estranho sobre um afeto e uma representação. O es-
e a alteridade contemporânea tranho mantém íntima relação com o que é
Em suas descobertas analíticas, Freud inte- próprio, aparecendo, assim, como o duplo
ressou-se pelo tema do “estranho” no início do mesmo.
do século XX, constatando que o estranho O duplo constitui, para Freud no seu en-
era um tema negligenciado no ramo da es- saio sobre o estranho, um componente psí-
tética, uma vez que o enfoque, em seu tem- quico de fundamental importância. Rank
po, era dado ao estudo da beleza. A temática (apud FREUD, 2006) constata que o duplo,
do estranho, captada por Freud, constituiu- como negação do poder da morte, se torna
se como um assunto gerador de polêmica e uma segurança para o sujeito contra a des-
de constrangimento, o qual a sociedade, em truição do eu. As produções literárias de fic-
geral, evitava e ainda evita abordar. O tema ção da época, observadas por Rank, segundo
do “estranho” foi aprofundado por Freud no Freud em 1914, indicavam a correlação di-
texto intitulado Das Unheimliche, de 1919. reta do escrito com o psiquismo do escritor.
Após pesquisa do sentido da palavra Unhei- Freud aprofundou essa noção de relações
mliche (estranho), em várias línguas, Freud contra a castração na linguagem dos sonhos
o definiu como assustador e familiar, que se e no narcisismo primário. A partir de Freud,
pode inferir também como lugar estranho a psicanálise vem desvendando a topologia
(que pode se articular à ideia de uma pessoa do sujeito de tal forma que se pode afirmar
desorientada no ambiente) estrangeiro, que hoje, com segurança, que toda forma de ex-
pode dar a ideia de alguém vindo de outro pressão do sujeito guarda relação intrínseca
lugar (THONES; PEREIRA, 2013). com o mesmo. Todas as representações se
É importante ressaltar que ele buscou mostram por meio do enunciado do discur-
seu significado nos fenômenos que causam so e no discurso do enunciado, como afirma
estranheza. Assim, constatou que entre os Lacan. Nesse sentido, o duplo ocuparia o
exemplos de coisas assustadoras existe uma espaço da sombra, dos fantasmas que retor-
nam, dos reflexos perdidos, de sujeitos que patologia: as neuroses histéricas, fóbicas, ob-
na ficção procurariam persistir à morte. sessivas, de ansiedade; as psicoses; as perver-
Thones e Pereira (2013) evidenciam for- sões; as afecções psicossomáticas.
mas diferentes sobre a representação do es- Considera-se que o modo singular de
tranho, de si mesmo em relação ao Outro subjetivação do sujeito responde ao meio fa-
desconhecido. Para esses autores, é apenas a miliar e social em que ele se constitui, bem
partir de si mesmo que o sujeito pode defi- como a implicação cultural de sua época. Na
nir o outro, porquanto seja também definido atualidade, no mundo globalizado, a busca
pelo outro a partir do alcance de seu próprio de normatização de comportamentos vem
olhar. Assim, as formas de relação do sujeito gerando uma padronização da normalidade
com o outro, e vice-versa, dependem dessa e transformando a singularidade em anor-
condição, ou seja, da incidência do Outro malidade. Em vista disso, são criadas regras
sobre o sujeito e do quanto este conseguiu se de procedimentos a partir de parâmetros que
tornar independente, reconhecendo-o. não levam em conta a particularidade da di-
As mudanças na estrutura familiar da nâmica pulsional do sujeito. A tão falada glo-
contemporaneidade, bem como a crise no balização da atualidade, ao produzir a subje-
conhecimento e o fim das certezas ou verda- tividade que lhe é própria, arrasta consigo o
des absolutas surgem como possíveis causas padecimento psíquico na forma de mal-es-
de uma desorganização social e violência tar, fruto das marcas da sociedade e desse
sem precedentes. Tem-se a impressão de uma momento histórico. Assim sendo, acredita-
ruptura do laço social e o fim das referências se que o sofrimento psíquico impingido à
simbólicas, o fim da função e também da humanidade atual culminará numa reorga-
imago paterna. Para Cecarelli (2010), cada nização para uma nova visão de mundo.
época tem a sua própria leitura de mundo,
não sendo uma melhor que a outra. Desse Abstract
modo, uma verdade ou um comportamento This paper holds a reflection about the stu-
dura até que outra verdade venha sobrepô- dies on psychopathology and its application
-la. Em Totem e Tabu, Freud (1914) traz o to the psychoanalytic domain when conside-
conceito de Weltanschauung, como visões de ring aspects of contemporary subjectivity and
mundo às quais o homem recorreu ao lon- alterity. It addresses to the changes in family
go do processo evolutivo: animista, religiosa pattern through history and the influence of
e científica. Tais visões de mundo acompa- these changes over the paternal imago, distin-
nharam a necessidade de proteção através do guishing it from the paternal function. It ad-
amor para aliviar o sofrimento psíquico de dresses the symptom as an expression of the
cada época. truth of the unconscious and the paradox of
psychoanalytic diagnosis. It discusses the bon-
Considerações finais ding of “weird” with alterity.
Com os estudos freudianos, desvelou-se a
falsa soberania da consciência marcada pe- Keywords: Psychoanalysis, Psychopathology,
las forças pulsionais sob a determinação do Subjectivity, Alterity.
inconsciente. Dessa forma, a psicanálise en-
tende a psicopatologia a partir dos conflitos
que se estabelecem entre o inconsciente e o
consciente do sujeito, fruto de seu impera-
tivo original. Por essa razão é chamado de
psicopatologia psicanalítica. A variação ou
o grau desse conflito indica o tipo de psico-