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i. Representação
A palavra, a idéia, a coisa
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nte. Teria sido possível recorrer ao catafalco fünebre coberto com
umlençol mortuário: uma alternativa baseada numa evocação não
J fljimética, e consagrada pela tradição.* Já em Londres, em 1327,
i decidiu-se pagar um artesão para que fizesse quandam ymaginem
de ligno ad similitudinem dicti domini Regis, uma imagem de
madeira que se parecesse com o rei morto, Eduardo n. Por quê? E
por que essa inovação seria adotada na França um século depois,
prolongando-se por tanto tempo em ambos os reinos?10
Falei de “inovação”, termo talvez ilegítimo. As imagens de
cera utilizadas durante os funerais dos imperadores romanos nos
séculos ii e m eram muito semelhantes — notou Julius von
Schlosser — àquelas de cera, madeira ou couro dos reis franceses
e ingleses exibidas em circunstâncias análogas um milênio depois.
Devemos supor uma filiação ou uma redescoberta espontânea?
Schlosser inclinava-se para a primeira hipótese, se bem que os tes
temunhos de tal continuidade sejam mirrados." Pela segunda hi
pótese pronunciaram-se outros historiadores, entre eles Giesey.
Ele não nega as semelhanças (sobre as quais voltarei em breve)
entre os funerais dos reis franceses e ingleses e os dos imperadores
J romanos; mas a comparação entre ritos pertencentes a culturas
j tão distantes entre si lhe pareceu “fácil, porém estéril” de um ponto
/ de vista histórico.12E acrescentou: “Do ponto de vista da antropo-
logia cultural, as semelhanças são estimulantes, mas as conexões
Vhistóricas são frágeis”."
A hipótese que orienta estas páginas é exatamente oposta.
Procurarei demonstrar que as semelhanças transculturais podem
\ ajudar a compreender a especificidade dos fenômenos de que par-
j tiram . É um caminho laborioso, que demanda uma quantidade
significativa de vaivéns espaciais e temporais. Os manequins dos
reis franceses e ingleses servirão de ponto de referência.
«7
V
3 . 0 p ró p rio G ie se y re v e la te r p a r t id o , p o r SUge8tà
mestre K antorow icz, claro , d o e n s a io d e E lia s ° de * * \
apoteose d o s im p e ra d o re s r o m a n o s (1 9 2 9 ) .16E m págin as brilha * \
tes, que suscitaram crític as v ig o r o s a s , B ic k e rm a n analisou os rito, \
da comecratio, b ase ad a em u m a d u p la in c in e ra ç ã o : a do corpo do \
im perador e, dias d e p o is, a d a s u a im a g e m d e cera. G raças a esse
funus im aginarium , a e sse s “ fu n e r a is d a im a g e m ”, o imperador
que já havia ab a n d o n ad o seu s d e s p o jo s m o r ta is , e ra recebido entre \
os deuses. B ickerm an sa lie n ta v a e x a t a m e n t e a s an a lo g ias entre l
esses ritos e os fen ô m en o s in glês e fra n c ê s d a Id a d e M édia tardia; 1
n u m a n ota, tam b ém a lu d ia a o s r ito s f u n e r á r io s e stu d a d o s por 1
Frazer. A paren tem en te, e s c a p o u -lh e a “ C o n t r ib u iç ã o para um 1
estudo sobre a representação coletiva d a m o r te ” q u e R ob ert Hertz
havia publicado em Année sociologique ( 1 9 0 7 ) .15 E n o entanto, no
fim do prim eiro parágrafo do e n saio de B ic k e rm a n p o d e m o s ler
um a afirm ação que poderia ter sid o su b sc r ita p o r H e rtz: A morte
não constitui o fim da vida do corp o no m u n d o : n ã o é o fato bio 6
gico, m as o ato social— os fu n erais— q u e se p a r a o s q u e se vão dos
que ficam ” 16 O esplêndido ensaio de H ertz in v e stig a , n u m a pers
p e c tiv a bastante am pla,o rito do duplo se p u ltam e n to e stu d a d o por
j Bickerm an no contexto rom ano. H ertz m o stra q u e a m o r te , toda
m orte, é um acontecim ento traum ático p ara a c o m u n id a d e : um a
j v e rd ad e ira crise, que pod e ser d om in ad a m e d ia n te a a d o ç ã o de
rito s q u e tran sfo rm am o acontecim ento b io ló g ic o n u m p ro c e sso
social, co n tro lan d o a passagem do cadáver putrescen te (o b je to in s
t á v e l e am ea ç ad o r p o r excelência) a esqueleto. E ntre e sse s rito s e stá
o se p u ltam e n to p ro v isó rio ou, em outras culturas, a m u m ific a ç ã o
e a cre m a ç ão , às vezes co m b in adas: soluções específicas, s e g u n d o
H e r tz , d e u m p r o b le m a e xtrem am en te d ifu so .17 N a R o m a d o s
A n to n in o s, a ssim c o m o n a In glaterra e na França d o Q u a tr o c e n to s
e d o Q u in h e n to s, o s fu n e rais d o c o rp o d o s im peradores e d o s re is
tin h a m u m a fu n ç ã o c o m p a rá v e l à d o s sepultam entos p r o v isó rio s
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analisados por Hertz. Em ambos os casos, eram seguidos do* fune
rais das imagens, ou seja, de um rito não apenas definitivo, mas
V eternizador. O imperador era consagrado deus; o rei, em virtude da
afirmação da perenidade da função monárquica, não morria
nunca. As imagens imperiais de cera e as efígies reais, que consuma
vam a morte dos imperadores como processo social, equivaliam,
num plano diferente, às múmias ou aos esqueletos. Já há algum
tempo, Florence D upont chegou à mesma conclusão, seguindo
outro roteiro de pesquisa."
Nesse horizonte amplo, transcultural, é possível avaliar me
lhor a especificidade da solução idealizada quer na Roma dos
Antoninos, quer na Inglaterra e na França do Quatrocentos e do
Quinhentos. Neste último caso, sabe-se que a esfinge mostrava o rei
“vivo” ; m as também em Roma a imagem era inscrita no que foi
definido como um a“ ficção da soberania postmortem”.'* Uma pági
na bem conhecida da História romana de Díon Cássio descreve a
estátua de cera do imperador Pertinax, falecido em 193, “adornada
com hábitos triunfais”; diante dela, “um jovem escravo espantava
as moscas com um leque de plumas de pavão, como se o soberano
estivesse dorm indo”.20Herodiano descreve com ainda maior rique
za de detalhes as cerimônias que se seguiram à morte de Sétimo
Severo: durante sete dias a imagem de cera do imperador, acomo
dada num grande leito de marfim com cobertura dourada, foi visi
tada por médicos que constatavam que o doente estava “cada vez
pior”.21 Essas descrições certamente lembram o que aconteceu na
França em 1547, depois da morte de Francisco i. Por onze dias,
Jfo ra m realizados banquetes, primeiro junto do cadáver, depois
j junto da efígie do rei: comia-se junto dele, bebia-se junto dele, e
( “bacias de água limpa [eram] oferecidas ao trono do supracitado
i Senhor, com o se ainda ali estivesse sentado, vivo’’.22Giesey observa
que o texto de Herodiano começou a circular na França por volta
de 1480 e que os mais antigos testemunhos franceses sobre o costu-
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me do banquete fúnebre remontam ao fim do Quatrocentos’
tudo, como vimos, ele não acredita que essas analogias c?"
Antigíiidade romana se devessem a imitação consciente.23 5
As argum entações d e G iesey às v ezes d ã o m argem a dúvida
um detalhe discord an te, c o m o o in íc io d o b an q u ete fúnebre em
honra de Francisco I ao lad o d o cad áver, n ã o b a sta p ara demonstrar !
que os hábitos franceses eram to talm e n te independentes dos usos
rom anos.24 M as u m a criação a u tô n o m a n esse âm b ito certamente
era possível, até m esm o em so c ied ad es m a is d istan tes no espaço do
que a Rom a de Sétim o Severo e a F ran ça d e F ran cisco i no tempo.
f Um relatório de Francisco P izarro, o c o n q u ista d o r d o Peru, confir
m ado por outros testem u n h o s, in fo rm a q u e n a s circunstâncias
| mais solenes os incas exibiam as m ú m ia s d e se u s reis, por eles con-
J servadas com grande cuidado, e a elas ofereciam b anquetes e brin-
\ des.25U m a analogia e spantosa, q u e talvez se ja p o ssív el explicar,
pelo menos hipoteticamente. N o Peru, o p a trim ô n io dos sobera
nos defuntos se constituía no p a lá c io real d e C u z c o , em gado e
escravos,bens administrados por u m g ru p o fo rm a d o pelos herdei
ros homens, com exceção do rei, que n ad a d e m aterial herdava do
( soberano que o precedera.26 P ortan to, em te o ria , o s soberanos
"S defuntos conservavam o poder— e os incas m an tin h am com suas
m úm ias relações de reciprocidade que se ex p rim iam no banquete
ritual. N a França também, uma ficção legal a tr ib u ía o pod er ao
soberano falecido, se bem que por um tem po lim itad o, q u e coinci
dia com o período— que Giesey definiu com o “ interregno cerim o
nial” — imediatamente precedente à coroação d o n o v o rei.27 Em
outras palavras, injunções análogas produziam, em circunstâncias
totalm ente heterogêneas, resultados convergentes.
Tudo isso aju da a reformular o problema que v árias vezes foi
J levan tad o a propósito dos funerais reais na França d o Q u in h en -
) tos. A alternativa entre “ imitação dos modelos ro m an o s e inven
ç ã o in d ep e n d en te concerne somente a um lado d o p r o b le m a
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C om o sa lie n ta ra m v ig o ro s a m e n te M arc B loch e C laude Lévi-
Strauss a p r o p ó sito d e q u e stõ e s totalm en te distintas, o contato
(se é que h ou ve co n ta to , o qu e neste caso n ão é seguro) não expli
ca a p erm an ên cia.28
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“substituto de um cavalo” o levaram a salientar a função da substi
tuição nos arranjos funerários: “ O cavalo ou o servo de barro,
sepultados nos túmulos dos poderosos, substituem os cavalos ou
os servos vivos”. Essa observação, referida por exemplo ao Egito
antigo, é projetada por Gombrich, hipoteticamente, num plano
mais geral: “A substituição precede a intenção de fazer um retrato,
e a criação, a de comunicar”. Somente em algumas sociedades— a
Grécia, a China, a Europa do Renascimento — uma mudança de
funções acabou gerando o surgimento de uma arte diferente, liga
da à“idéia da imagem como representação no sentido moderno do
termo”. Dez anos mais tarde, essas fórmulas rápidas e brilhantes
foram desenvolvidas pelo próprio Gombrich em seu fundamental
íArte e ilusão.36Pomian, por sua vez, para entender o que unifica os
J objetos tão díspares que encontramos nas coleções, partiu das ofer
tas funerárias: nelas reconheceu, assim como nas relíquias, nas
^curiosidades, nas imagens,“intermediários entre o aquém eo além,
entre o profano e o sagrado [...] objetos que representam o distan
te, o escondido, o ausente [...] intermediários entre o espectador
j que os mira e o invisível de que provêm [...]”. No momento em que
< são subtraídos do âmbito dos objetos de uso para serem isolados no
/ espaço à parte do túmulo ou da coleção, esses objetos se tornam
v“semióforos”, portadores de significado.”
A substituição precedeu a imitação, supunha Gombrich.
Tanto nos kolossoícomo nas representationesfunerárias, o elemen
to substitutivo prevalece nitidamente sobre o elemento imitativo.
Antes de discorrer sobre este último, quero salientar que todas as
pesquisas mencionadas até aqui, além de tratarem de temas bem
diferentes, foram realizadas de maneira independente. As conver-
r gências que assinalei se mostram, portanto, ainda mais significati-
J vas. Mas como interpretá-las? Devemos associá-las às característi-
)cas universais do sinal e da imagem, ou a um âmbito cultural
(específico? E, neste último caso, a qual?
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A alternativa qu e ap en as delin eei está n o centro de um e
em que Jean-Pierre Vernant re to m o u , desenvolvendo-o, o t r a b Í
de Benveniste sobre o kolossós. V ernant m o stra que o kolossós {&
parte de um gru po de term o s ( “ a lm a ”, “ im agen s oníricas”, “som
bra”, “aparições sobrenatu rais” ) acerca d as q u ais “ temos o direito
de falar [...] de um a verdadeira categoria psicológica, a categoria do
‘duplo’, que pressu p õe u m a o r g a n iz a ç ã o m en tal diferente da
nossa”. Contudo, no fim do ensaio, V ernant m u d a repentinamente
de tom:
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oscilação entre u m a p e rsp e ctiv a h istó ric a e u m a perspectiva uni-
versalista, que in sp iro u a s fe c u n d a s p e sq u isa s de V ernant, é m ais
que com preensível, ten d o em v ista a relação de to d o especial, um
misto de d istâ n c ia e filia ç ã o , q u e n o s sa c u ltu ra m an tém com a
grega.5’ M as n o c a s o d a im a g e m , c o m o em o u tr o s, verificou -se
entre nós e o s g re go s u m a fra tu ra p ro fu n d a, qu e deve ser exam in a
da de perto.
)
do a inseri-lo no espaço sagrado em que se situará seu templo. Isso é
impensável, tanto do ponto de vista do morto, que ficaria sem sepul
tura, como do ponto de vista do espaço sagrado, que seria horrivel
mente contaminado com a presença de um cadáver [...]. Os túmu
los são expulsos para fora da cidade [...] é proibido edificá-los no
chão público em que os templos são erigidos.
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m ortos p o ssu ía m u m sta tu s e sp e c ia l a o s o lh o s d o s fiéis-
res. Peter Brow n in sistiu v ig o r o s a m e n te n a presença do ^ i
| em geral, d o san to , p o r m e io d a s r e líq u ia s. O statu s metm,- '
que se qu is atribu ir à imago d o s im p e r a d o re s rom an os se mostra,
neste caso, to talm en te ju stific a d o . A a lm a d e M artinho, lia-se na
inscrição gravada em seu tú m u lo em T o u rs, está ao lado de Deus
(cuius anima in manu Dei est); e n o en ta n to M artin h o hictotusest
praesens manifestus om ni gratia virtutum (está aqu i, inteiro, como
dem onstram m ilagres de to d o tip o ).42
A função atrib u íd a às relíq u ias d o s sa n to s n o m undo cristão
deve ter m od ificad o p ro fú n d am en te a a titu d e em relação às ima
gens. Essa hipótese é u m sim p les c o ro lá rio d aq u e la anteriormen
te form ulada, que sugeria a existên cia d e u m a relação estreita entre
/im agens e o além . M as as relíq u ias m e sm a s faziam parte de um
âm bito que não conhecem os em su a to ta lid a d e .43 A ntes de mais
nada,h á o fenôm eno que os p o lem istas c r istã o s ch am aram de ido-
I latria. Deveriamos levá-lo finalm ente a sério, ad m itin d o duas coi-
j sas: que sabem os muito pouco a seu respeito e qu e esse pouco que
\ é conhecido é de difícil interpretação.44A sob revivên cia (e as meta
m orfoses) dos deuses antigos de um p o n to d e v ista artístico foi
esclarecida faz tem po por estu d io so s c o m o F ritz Sax l, Erwin
Panofsky, Jean Seznec, ligados prim eiro à W arbu rg Bibliothek e
depois ao Warburg Institute.4S M as ainda perm an ece largamente
inexplorada a gam a das reações (absorções, m etam o rfo ses, rejei
ções) provocadas no plano religioso pelo en c o n tro en tre essas
im agens, inclusive as popularescas, e as tendências parcialm ente
n ão icôn icas, se não explicitamente antiicônicas, arra ig a d a s na
tradição hebraico-cristã.
Para ilustrar a complexidade desse encontro basta o exem plo
de santa Fé, que segundo a lenda foi martirizada aos doze an os de
idade, no início do século iv. Sua imagem, conservada no tesouro
da igreja d e C onques (ilustração 7), é considerada um a o b ra fún-
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dam ental d a e scu ltu ra e d a ou rivesaria carolíngia. A m esm a im a
gem d esem pen h a u m a fu n ç ão im p ortan te no Liber miraculorum
sancte Fidis. | j
O s d o is p rim eiro s livros d esse texto hagiográfico foram redi
gidos entre 1013 e 1020 p o r B ernard d ’Angers, u m clérigo que estu
dava na escola d e C h artres. B ernard, devoto fervoroso de santa Fé,
saíra em viagem co m u m am igo , u m escolar de nom e Bernier, com
destino a C o n q u es: a s relíqu ias d a san ta se encontravam ali fazia
um século e m eio, isto é, d esd e qu an d o haviam sido su btraídas de
um a basílica erigid a especialm ente para elas em Agen.“ D urante a
peregrinação, B ern ard ficou im pressionado com a abundância de
estátuas de ou ro , p rata e o u tros m etais, na região da Auvergne e de
Toulouse, qu e co n tin h am relíquias de santos. Para pessoas cultas
com o ele e seu am igo , tratava-se de u m a superstição, algo que re
cendia a p ag a n ism o , se n ão a cultos diabólicos. Ele havia visto num
altar u m a estátu a de são G eraldo, coberta de ouro e de ped ras pre
ciosas, q u e parecia olh ar para os cam poneses ajoelhados em prece
com o lh o s brilh an tes. B ernard voltou-se para o am igo e pergu n
tou -lh e em la tim ( latino sermone), com um so rriso m alicio so :
‘ Irm ão, o qu e acha deste ídolo? Júpiter ou Marte ter iam considera
do u m a estátu a co m o esta indigna deles?”. As únicas estátuas que
p o d ia ad m itir, observou , eram os crucifixos. Pintar san tos n u m a
pared e — imagines umbrose coloratis parietibus depicte— tam b ém
era adm issível. M as a veneração das estátuas dos santos lhe parecia
u m a b u so inveterado de gente ignorante: se ele tivesse dito p o r ali o
qu e pen sava d a estátua de são Geraldo, tê-lo-iam tratad o co m o u m
crim in oso.
Três d ia s d epois, Bernard e Bernier chegaram a C o n q u es. A
im agem d a santa, denom inada “m ajestade de santa Fé” (M ajestas
sancte Fidis), estava conservada n u m a saleta, qu e se en co n trav a
ch eia de gente de joelhos. N ão poden do im itar o exem plo d aq u elas
p e sso a s, B ernard exclam ou: “ Santa Fé, de cu jo co rp o h á u m ffag-
mento conservado nesta estátua, ajuda-me no dia
julgado!” E, enquanto dizia essas palavras, o l h a v a ^ r a T ^
com o rabo do olho. Suas palavras estavam carregadas de dest* 8°
pela estátua-relicário da santa, como se ela fosse um simulacr^I
Vênus ou de Diana, um ídolo a que são oferecidos sacrifícios.
Mas isso tudo pertencia ao passado. No momento em que
escrevia, Bernard disse ter compreendido seu erro, graças aos mila
gres de santa Fé descritos na antologia. Conta a história de umtal
de Ulderico, que havia falado em tom zombeteiro da estátua de
santa Fé. Na noite seguinte, a santa lhe apareceu agredindo-o com
/um porrete:“Por quê, celerado, ousaste insultar minha imagem?”.
J Bernard concluiu que a estátua não podia nem prejudicar a fé cris-
Jtã nemfazer temer uma recaída nos erros dos antigos. Elahaviasido
erigida em honra a Deus, e para conservar a memória da santa.47
í Peter Brown observou que a cólera e a vingança manifestadas
-por santa Fé são, por assim dizer, a correlação dos sentimentos de
j justiça da comunidade: “Ela era a voz grave do g ru p o ”.48Isso é ine
gável. Contudo, os milagres de santa Fé, transmitidos pela cultura
oral, estão encerrados num texto escrito que contém trechos como
os citados acima, centrados numa série de oposições assimétricas,
indivíduos cultos/camponeses; latim/línguas vulgares; pintu-
ra/escultura; Cristo/santos; religião/superstição (sem contar a
oposição, não declarada mas onipresente, entre homens e mulhe
res). Elas podem ser reduzidas a uma dupla oposição, cultural e
social: de um lado, a oposição entre cultura escrita (em latim) e cul
tura oral (em língua vulgar); de outro, entre cultura escrita e ima-
( gens.48No âmbito das imagens se insinua uma nova h ierarqu ia, que
J remonta à tradição judaica: as estátuas são muito mais perigosas do
| que as pinturas, uma vez que servem de incentivo à idolatria.50É
( verdade que, no fim do capítulo, Bernard reconhece ter se engana
do; a devoção dos camponeses pelas estátuas de são Geraldo e de
santa Fé nada tinha de supersticiosa, logo suas atitudes religiosas
devem ser toleradas (permittantur). Mas o olhar do douto, oriun-
do de um ambiente bem diferente, como era o do Norte da França,
permanece indulgentemente hierárquico.51
Hoc Deus est, quod imago docet, sed non Deus ipse
Hanc recolas, sed mente colas, quod cernis in illa.
j (O que a imagem ensina é Deus, mas ela não é Deus
I Medita sobre a imagem, mas adora em espírito o que vês nela.)59
100
Deve» ger feliz, ó d ou to, por tere» ví»to o Orgulho não em imagem
I imagínalíter), como leste na Psicomaquía de Prudéncío, m a* na
sua autêntica e corpórea presença [presentíalíter corporalíterque
proprie)
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impossível relacionar à eucaristia o que Vernant falou do *
isto é, que, “para a sua íunção operatória e eficaz, o k o b s s ó n ^
ambição de estabelecer, com o além, um contato real de reaijj 1
sua presença aqui”. À luz da formulação do dogm a da transubsun
riação não se pode falar simplesmente de “contato”, mai sim de
/ sençano sentido mais forte do termo. A presença de Cristo nahós-
< tia é, de fato, uma superpresença. Diante dela, qualquer evocação
I ou manifestação do sagrado — relíquias, imagens — empalidece,
l pelo menos em teoria. (Na prática, as coisas são diferentes.)
As hipóteses, mais ou menos ousadas, que seguem darão idéia
de alguns possíveis desdobram entos destas páginas. Depois de
v 1215, o medo da idolatria começa a diminuir. Aprende* se a domes
ticar as imagens, inclusive as da Antigüidade pagã. Um dos frutos
dessa reviravolta histórica foi o retorno à ilusão na escultura e na
pintura. Sem esse desencantamcnto do m undo das imagens, nlo
teriamos tido nem Arnolfo di Cam bio, nem Nicola Pisano, nem
Giotto. Attidéia da imagem como representação no sentido moder
no do termo", de que Gombrich falou, nasce aqui.
Esse processo teve repercussões sanguinolentas. A ligação
entre os milagres eucaristicos e a perseguição d o s judeus é bem
conhecida.*7 Supôs-se que a acusação de sacrifício ritual lançada
contra os judeus a partir da metade do século xit tivesse projetado
para o exterior uma angústia profunda, relacionada à idéia de pre-
( sença real vinculada à eucaristia.** Alguns elementos da polêmica
j antijudaica tradicional assumiram então um novo significado: a
j acusação de idolatria centrada no conto bíblico do bezerro de ouro,
( o u a de excesso literal na interpretação da p a lav ra d e D e u s. O
M ogm a d a transubstanciaçào, na medida em que n egava o s d a d o s
sensíveis em nom e de um a realidade profunda e invisível, p o d e ser
interpretado (pelo m enos poT um observador externo) como u m a
vitória extraordin ária da abstração.
102
A abstração tam b ém triunfa, no mesmo período, no âmbito
da teologia e d a liturgia política. Na grande pesquisa de Kantoro-
v?icz sobre o d u plo corpo do rei, as alusões à eucaristia são curiosa
mente m arginais.** Ê provável, porém, que o dogma da transubs-
tan ciaçio ten h a desempenhado, nesse processo histórico, uma
função decisiva. V ou me limitar a um exemplo, retirado da descri
ção das cerimônias que se realizaram em Saínt-Denis por ocasião
das exéqu ias do condestável Bertrand du Guesciin (1389). O
m onge au tor da crônica de Saint-Denis relata uma cena que viu
com os próprios olhos: o bispo de Autun, que estava celebrando a
m issa, a o chegar ao ofertório, saiu do altar com o rei para ir ao
encontro de quatro cavaleiros que, na entrada do coro, exibiam as
arm as do defunto “com a finalidade de mostrar, por assim dizer, a
presença corpórea dele [ ut quasi ejus corporalem presenciam de-
monstrarent]".79As implicações eucarísticas dessa extraordinária
comunhão heráldica e eqüestre (de norma, reservada a barões e
príncipes) se explicam facilmente à luz da hipótese que proponho.
ÍE a presença real, concreta, corpórea de Cristo no sacramento que
] possibilita, entre o fim do Duzentos e o princípio do Trezentos, a
\ cristalização do objeto extraordinário de que parti, até fazer dele o
/ símbolo concreto da abstração do Estado: a efígie do rei denomi-
\ nada representação.
103