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O SÍTIO DA MENTE

sítio (1): S.m. 1. lugar que um objeto ocupa...


3. lugar, local, ponto.. .4. lugar assinalado por
acontecimento notável.. .6. Bras. estabelecimento
agrícola de pequena lavoura; fazendola.

sítio (2): S.m. ato ou efeito de sitiar; cerco.

Novo Dicionário da Língua Portuguesa


Aurélio Buarque de Holanda Ferreira
=
Apoio Cultural

39 reimpressão
HENRIQUE SCHÜTZER DEL NERO

O SÍTIO DA MENTE
PENSAMENTO, EMOÇÃO E VONTADE
NO
CÉREBRO HUMANO

Projeto gráfico:
LUCINO ALVES FILHO

coliegium cognitio
www.cogiiiTFosite.comT
cognitio@uol.com.br
Copyright © 1997 by Henrique Schützer Dei Nero

Capa e projeto gráfico


Lucmo Alves Filho
Preparação do texto (Partes 1, II e III)
Maria Cristina Rosa de Almeida
Revisão
Anderson Andrade Depizol
Mauro Beliesa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Dei Nero, Henrique Schützer

O sítio da mente: pensamento, emoção e vontade


no cérebro humano / Henrique Schützer Dei Nero. --
São Paulo: Collegium Cognitio, 1997.

Bibliografia.

1. Cérebro 2. Cérebro - Localização das funções


3.Cognição 4. Sistema Nervoso 1. Título

ISBN 85-86396-0l-X

CDD-612.825
97-0599 NLM-WL 300
índices para catálogo sistemático:
1.Cérebro e mente: Neurofisiologia humana
612.825
2.Mente e cérebro: Neuroflsiologia humana
612.825

1997
Todos os direitos reservados à
• Collegium Cognitio Ltda.
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Para Lucia, Rafaela, Maria Luiza e Marcelo
Para informações complementares, errata, discussões e outros tópicos
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promover e divulgar o estudo interdisciplinar de cérebro, mente e
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E.mail do autor:_hdelnero@usp.br
SUMÁRIO)

SUMÁRIO

PREFÁCIO E GUIA DE LEITURA p. 11

INTRODUÇÃO p. 17

Parte 1: FÔRMA CEREBRAL

1. CÉREBROS p.2'7

2. NEURONIOS p. 35
Integração e decisão.

3. SiNAPSE p. 45
Receptores. Mensageiros. Sinapses alteradas e tratamento das disfunções mentais. Alterações
específicas de passagem de informação na sinapse.

4. DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS p.59


Departamentos virtuais e comissões que examinam situações ambíguas. A mente como
departamento virtual. Divisórias e compartimentos. Mais divisões nos departamentos concretos.
Os grandes departamentos cerebrais. A integração de departamentos concretos e o lento surgimento
da mente. Inteligência e formação dinâmica de comitês.

5. CIRCUITOS E SISTEMAS p.79

6. CÓDIGOS E OSCILAÇÕES p.83


Neurônios e codificação. Neurônios artificiais e conectivos lógicos. Processamento temporal. O
neurônio e a codificação temporal.

7. ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS p.97


Mente e computador: uma analogia. Sobre a origem das convenções que possibilitam sincronismo.

8. SINCRONISMO E FUNÇAO VIRTUAL p. 109

Parte II: FORMA E CONTEÚDO MENTAL

9. FUNÇÕES MENTAIS p. 119


Subdivisão de funções.
O SITIO DA MENTE

10.CONSCIÊNCIA p. 125
Inconsciente. Freud e o inconsciente. Consciência e evolução. Consciência e linguagem.
Consciência: vontade, liberdade e moral. Consciência e terceirização. A consciência e a
universalidade dos processos abstratos e virtuais. Consciência e crença. Consciência:
supraconsciência e infraconsciência. Consciência e máquinas.

11.CIÊNCIA COGNITIVA ANOVA MENTE p. 155


A crise na concepção discreto-digital da mente. A crise da visão da mente como pensamento. A
crise das regras. A crise dos símbolos. Símbolos arbitrários e dinâmicos. Símbolos e proposições.
Símbolos e intencionalidade. A dinâmica cerebral e a relação entre símbolos e sinais. Investigação
de objetos e relações cerebrais. A crise da completude e a dinâmica cerebral quântica. Acaso
genuíno ou provisório? Sistemas e modelos híbridos. Outros hibridismos. Sistemas dinâmicos,
bifurcações e osciladores. Um modelo de dinâmica cerebral clássica baseado em malhas de
sincronismo.

12.DISFUNÇÃO MENTAL p. 207


Opinião e conhecimento.

13.A MENTE ADOECE p.223


Sono. Motivação. Concentração. Memória. Apetite. Fadiga. Libido. Sintomas fisicos. Pensamento.
Percepção. Irritabilidade e impulsividade.

14.0 PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS p.229


Psicoses.

15. A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS p.249


Linguagem e estabilização de significados. Lesão e disfunção. O pensamento poderia ser um meio
de redescrever as emoções e a vontade? Formação dinâmica de níveis da vida mental. Desregulagem
emocional, afetiva e do humor. Depressões. Transtornos irritáveis e impulsivos. Depressões
psicóticas. Depressões leves crônicas. Mania. Ansiedade, pânico, fobia e obsessões.

16.PATOLOGIAS DA VONTADE p.283

Parte IV: A MENTE ORGANIZADA

17.ATENÇÃO p.295
O sentido extra que corrobora discursos hipotéticos. Patologias da atenção. Atenção e reflexão.

18. LINGUAGEM p. 307


De novo as proposições. Afasias. Dislexia.
SUMÁRIO

19. PERCEPÇÃO E AÇÃO p.321


Percepção, ação e consciência. Anomalias da percepção e da motricidade.

20. MEMÓRIA p. 341


Memória e traço. Outras classificações para tipos de memória. Memória e código; memória e
interpretação.

21. PERSONALIDADE p.355


Personalidade e herança. Classificando personalidades. Psicopatia. Personalidade social e axioma
coletivo.

22. O SONHO COMO FUNÇÃO p.37'7


Heimenêutica e psicoterapia.

23. CONSCIENCIA: CONTEUDO, VWENCIA E FUNÇAO p.3W7

Parte V: A MENTE SITIADA

24. SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA p.3W7


A ciência e a satisfação do consumidor.

25. MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO 11.409


Auto-organização epathos; heterorganização e ethos. Estabilidade e funcionalidade.

26. QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE p.42l


Imputabilidade e culpa. Base neuronal para a vontade. Sujeito público e privado. O lugar da ética.

27. A MENTE EDUCADA p.439


Computadores e Internet. Drogas. Alquimias mentirosas: a auto-ajuda e os novos métodos gerenciais.
Histeria e costumes.

CONCLUSAO p.453

NOTAS p. 455

BIBLIOGRAFIAp. 497

ÍNDICE REMISSIVO p.50l


0 SITIO DA MENTE
PREFÁCIO

PREFÁCIO E GUIA DE LEITURA

E ste livro nasceu de alguns episódios singulares. Primeiramente,


da falta de texto em português que tivesse a abrangência necessária
para introduzir o leitor não-especializado no complicado mundo da
mente e de sua relação com o cérebro e a cultura. Segundo, da perplexi-
dade com que nós, psiquiatras, olhamos um sem-número de idéias que
são propaladas ainda hoje sobre distúrbios mentais, enganando as pes-
soas e subtraindo-lhes a oportunidade de corrigir pequenos desvios e
reintegrar-se plenamente à vida privada e profissional. Não raramente,
esse conjunto de opiniões ignorantes ou às vezes oportunistas sobre a
mente leva o indivíduo a procurar tardiamente ajuda médica, o que,
além de agravar o problema aumenta o risco de suicídios e agressões.
Em terceiro e último lugar, da minha indignação como cidadão diante
da perda rápida e progressiva da ética nas relações humanas, seguida
de um desejo frenético de sucesso individual, abandonando-se as
bandeiras solidárias e fraternas de outras épocas. Isso, ao contrário de
ser simples direcionamento da sociedade e da educação, constitui
afronta, na minha opinião, à função que a mente teve na evolução
humana: o contato com o semelhante constituindo um grupo coeso,
forte e preocupado com sua sobrevivência enquanto coletividade. O
novo individualismo pode parecer boa ciência econômica, mas é, a meu
ver, má compreensão da biologia que nos fez humanos e conscientes.
A empreitada era grande e não poderia ser feita sem que se
escolhesse um modo de exposição. Escolhi a alternativa de dificuldade
intermediária, coloquialidade, abrangência, didatismo e repetição
enfática, omitindo tecnicalidades excessivas. A intenção foi tornar o texto
algo mais próximo de uma exposição oral sobre os diversos temas.
Todos os tópicos que me parecem relevantes para uma visão unificada
do fenômeno do surgimento da mente a partir do cérebro humano foram
inventariados. Mais que isso, tentei articulá-los sob a forma de um
esboço de teoria da mente. Essa teoria, que chamarei de redescrição
valorada de atos epercepçõespresumidos, procura mostrar que o cérebro é
complexo e não careceria da mente para realizar inúmeras operações
de percepção e de ação. Porém, a necessidade de valoração dos atos e
percepções, sob a ótica de um discurso de responsabilidade, requereu
que se criasse uma versão da ação e da percepção que unifica, através
da linguagem e da memória, o fenômeno da consciência. Espraiada
O SÍTIO DA MENTE

pelo mundo, essa consciência constitui a cultura, que retroage


constantemente sobre cada um de nós.
A mente e a consciência, seu ponto máximo, são misto de cérebro
e de cultura. Entender a articulação destes conceitos pode auxiliar numa
naturalização de certos discursos das ciências humanas e na
culturalização de certos enfoques restritivos das ciências cerebrais.
O indivíduo, misto de cérebro e história, sujeito privado e públi-
co, precisa, para compreender a si mesmo na totalidade, examinar a
história da espécie humana, sua condição biológica inicial, os progra-
mas que gravou na sua trajetória existencial única e seu dever e subser-
viência para com o coletivo que o influencia.

Plano do livro e guia

Este livro está dividido em cinco partes gerais: 1 - Fôrma Cere-


bral; II - Forma e Conteúdo Mental; III - A Mente Alterada; IV - A
Mente Organizada; e V - A Mente Sitiada. No final do livro encontra-se
um capítulo de Notas endereçadas ao leitor que deseje maior
aprofundamento nas questões. Seria impossível colocar seu conteúdo e
forma no corpo do texto, sob pena de ferir o seu caráter introdutório. O
leitor leigo que se inicia agora nas áreas envolvidas deve deixar para
consultar essas notas numa etapa posterior. Também há no final do
livro um índice Remissivo. Como há uma grande quantidade de con-
ceitos ao longo do livro, toda vez que se precisar voltar a algum ponto
para reavivar algum item, deve-se procurar no índice a ocorrência da-
quele conceito.
Na Parte 1, mostro como o processamento de sinais elétricos nas
células cerebrais é capaz de gerar fôrmas onde vão se encaixar
posteriormente as categorias mentais. Examino a concepção de um
neurônio digital, o que fez pensar que o cérebro era um computador de
um certo tipo, e sua posterior caracterização como aparato analógico
que dispara códigos de barra e freqüências capazes de sincronizarem,
gerando as fôrmas para que a mente se encaixe. A noção de mente
como comitê virtual, como se fosse um departamento virtual formado
de funcionários recrutados de departamentos reais de uma empresa
hipotética, será uma das principais alegorias introduzidas na Parte 1 e
constantemente usada ao longo do livro. Embora tenhamos um cérebro
com divisões concretas, a mente surge da reunião dinâmica em comitês
de diferentes elementos cerebrais. Portanto, está no cérebro, mas não
deve ser confundida com estruturas estáticas, como o cerebelo, o lobo
-PREFÁCIO

frontal ou o sistema límbico. Isto porque, se o estilo cerebral de


processamento tem divisões e circuitos mais ou menos claros, o estilo
mental é uma reunião em comitê, em princípio sem lugar fixo, e para
ele a regra dinâmica de convocação de cada elemento é mais importante
que o elemento em si. Daí a possibilidade de reabilitação após lesões
cerebrais, o que não é compatível com uma visão de departamento
estanque.
A Parte 1 é uma das mais técnicas do livro, apesar de didática e
acessível. O leitor.poderá lê-Ia com maior rapidez numa primeira vez,
não se preocupando excessivamente com certas passagens e voltando a
elas numa segunda leitura. Para entendê-la, basta considerar um
neurônio que dispara códigos de barra, dialogando com outros através
de freqüências variáveis. A concepção de um neurônio digital que
dispara sins e nãos, tal fosse um computador como os atuais, fica
claramente sepultada. No final de cada capítulo haverá sempre um
pequeno resumo das idéias mais importantes. Para aquele que pretender
ler o livro de maneira não-seqüencial, convém ler as sínteses (resumos)
dos capítulos anteriores. Isso pode auxiliar na compreensão de certas
passagens em que se faz alusão a algum conceito ou exemplo já
apresentado.
Na Parte II, apresento a consciência como palco da vida mental,
onde protagonizam a ação e outras funções básicas: o pensamento, a
emoção e a vontade. Um dos maiores erros dos modelos de mente e de
sua base cerebral, nas últimas décadas, foi caracterizar a mente como
pensamento, procurando nele a base da inteligência. O projeto era claro
e visava, entre outras coisas, lançar as bases de uma ciência - a inteli-
gência artificial - capaz de fazer máquinas aptas a processar pensamen-
to inteligente. O resultado não foi um fracasso. A verdade, porém, é
que a mente não é só o pensamento, mas também a emoção e a vo e
to os os três contrac-enando n o_gande palco da consciência. Já nesta
Çparte apresento
? embrionário no Brasil, mas já firmado há décadas nos centros es-
trangeiros.
Na Parte III, apresento três fiInções mentais, sob a ótica da
m lugar de me ater apenas
ao exame da função, procuro motivar o leitor com alguns exemplos de
disfunção específica e com o relato de alguns casos.
Na Parte IV, volto a analisar algumas das
merecem destaaue na oranizacão de um esboco de teoria -da mente:
so-
O SÍTIO DA MENTE

Também aqui há o relato de disfunções e exemplos de casos clí-


nicos. Para concluir, esboço uma teoria da consciência, em que se distinguem
três instâncias conscientes básicas: função, vivência e conteúdo.
Na Parte V, procuro mostrar que a mente, ao não r?,cgàecer no
cérebro uma das bases da ética, fenômeno biolóSco e não imposição
'e
stá risco, criando itura de sucessoessoalede
sem interferência do mer_çaU. Quando o Fórum Econô-
mico Mundial, reunido no início de 1997 em Davos, Suiça, elege a
ética como prioridade em tempos de globalização, conferindo ao
teólogo Hans Küng, entre outros, a redação de um documento que
estabeleça algumas diretrizes a respeito, percebemos o quanto algu-
mas idéias rotuladas genericamente de neoliberais podem colocar em
xeque os cânones de uma sociedade justa. Jçpelico
Ético porque biológico e de preservação da espécie,
ameaçada pela partição do mundo em regiões de modernidade e
regiões de exclusão e miséria. Se antes essa partição estava na geogra-
fia continental, agora está nos bairros das grandes cidades. Urge re-
pensar a mente e a sociedade, percebendo que algumas escolhas não
são tão matéria de opinião quanto se imagina: podem ter no terreno
biológico da mente um contraste que permita distinguir o que é certo
e o que não é.
Estou ciente de que uma empreitada como a deste livro é cheia de
armadilhas. Há imperfeições originadas de uma característica básica da mente:
discuti-la implica visitar três grandes áreas: as ciências humanas porque ali
está a biografia de cada um e a análise do indivíduo inserido na cultura; as
ciências biológicas porque o cérebro é o órgão que possibilitou que se pudesse
pensar em algo como o processamento mental em um tecido físico; as ciências
exatas porque a análise do código de recrutamento de unidades cerebrais em
comitê e o

para descrever e modelar. Seria trabalho para vários especialistas; porém,


todos eles teriam que fazer uma colagem de seus conhecimentos. O resultado,
embora mais preciso, seria menos coeso. Os bons livros sobre a mente e sua
análise interdisciplinar jamais são escritos por um só autor. Nesse sentido o
trabalho aqui deve apenas servir como um inventário horizontal de todos os
temas importantes, convidando o leitor a fazer um estudo muito mais
aprofundado posteriormente. Porém, para aquele que pretende ter apenas
uma visão geral do tema, espero ter conseguido fornecer de maneira didática
uma introdução. O objetivo é informar e suscitar o debate, o que poderá
resultar em futuras versões corrigidas e aperfeiçoadas.
PREFÁCIO

Agradecimentos

Agradeço a todos os que me apoiaram nesta empreitada, particu-


larmente a colegas que me sugeriram alterações. Entre esses colegas
cabe citar José Roberto Piqueira, que me acolheu no programa de dou-
torado em engenharia eletrônica na Escola Politécnica da USP e que,
com sua paciência, didática e brilho, me fez entender um pouco de
matemática e física, disciplinas necessárias à modelagem de fenômenos
biológicos; Nestor Caticha, especialista em redes neurais; João de
Fernandes Teixeira, especialista em filosofia da mente e inteligência
artificial; Alfredo Maranca, especialista em termodinâmica e computação;
Paulo Blinder, matemático e especialista em lógica fizzzy, Laszlo Kovács,
especialista em redes neurais; Mauro Beliesa, jornalista e amigo que me
tem auxiliado na revisão de inúmeros artigos para a mídia e que
colaborou na revisão final do livro; Luiz Barreto de Souza, psiquiatra e
amigo que foi dos primeiros a ter acesso ao manuscrito; e Idméa
Siqueira, lingüista que opinou sobre uma versão preliminar. Agradeço
a Lucino Alves Filho, que editorou este livro, a Maria Cristina Rosa de
Almeida, que fez a preparação do texto, sugerindo inúmeras alterações
que facilitassem a leitura, a Rodolfo Varini que fez valiosa sugestão
sobre a capa e a Andrade Depizol que fez valiosas sugestões na revisão.
Agradeço particularmente à minha mulher, Lucia, pela compre-
ensão e infindáveis revisões e opiniões - sempre adequadas por tratar-
se de colega psiquiatra. Se 41gurn dia puder daizer que houve valor em
it se a ela cuidar com tanto zelo de meus filhos e
apoiar-me tanto, deixando, Por-vezes, em segundo plano sua própria

a
de

Taitbém meus pais, meus irmãos e meu cunhado merecem agra-


decimento. Caçula de uma família que sempre cultivou o estudo, o
pouco que sei devo muito à influência individual de cada um dos cinco,
João, Yvonne, Mansa, João Alberto e Ronaldo.
Agradeço à direção do Instituto de Estudos Avançados da USP
que, desde 1990, me tem dado a oportunidade de manter um grupo
dedicado à ciência cognitiva, até que consigamos encontrar, como no
exterior, inserção departamental com cursos regulares de mestrado e
doutorado na área.
Agradeço, finalmente, ao Anglo Vestibulares, que me auxiliou de
O SÍTIO DA MENTE

maneira substantiva para que pudesse concretizar este projeto. Muitas


pessoas ali mereceriam palavra, porém, que estejam representadas pelas
figuras de Emílio Gabriades e Nicolau Marmo, que me convidam
regularmente para proferir palestras de orientação psicológica aos alunos,
e Dado Antônio Castro, que, embora não tenha podido revisar este livro,
tem-me auxiliado muito com outros textos que, com sua revisão, acabam
tendo urna elegância e correção que não tinham inicialmente.

Fazer um livro completo sobre a mente, o cérebro e a cultura,


particularmente naquilo em que se interseccionam, é tarefa passível de
críticas e cheia de imperfeições. Em 1994 estava num encontro científico
nos Estados Unidos e comentei com algumas pessoas a dificuldade que
enfrentamos para conseguir fazer vingar uma área interdisciplinar sobre
a mente. Karl Pribram, que hoje tem quase 90 anos e certamente é um
dos grandes cientistas dessa área no século, virou-se para mim e me
entregou a citação que reproduzo a seguir de texto de Ervin Schrtsdinger,
um dos grandes físicos deste século. Schrõdinger diz em seu livro "O
que é vida" de 1944:

"Herdamos denossosantepassadosodesejoagudopela unificação do


conhecimento. Mas o crescimento, tanto em abrangência quanto em
profundidade, das dífemntesázasdeconhedmentonos últimos cem anosnos
levou a um estranho dilema. Sentimos ciaramente que estamos apenas agora
começando aadqwrirmaterialconflávelpara soldar todas aspartesnum todo
único;mas, por outrolado, tomou-se quase inipossívelpaza uma única mente
comandarmais que uniapequenapaite especializada desse conhecimento.
Não vqb ou" saídaparaeedilema,pamquenãosepeirapanisempw
nosso verdadeiro objetivo, senão que alguns denós devem arriscar-se, iniciando
uma síntese de fatos e teorias, a despeito de conhecerem muitas delas
inipen'eitamenteecom domúiio de segunda-mão e, além domais, conndoo
risco de semm tomadosportolos."

Creio que Pribram tem razão se, com seus quase 90 anos, tendo
orientado líderes de pesquisa e produzido no melhor ambiente científico
do mundo, ainda carrega debaixo do braço um texto tão sintomático.

SãoPaulo, 22 defeverefro de 1997


INTRODUÇÃO

) ;Ô

INTRODUÇÃO

T ransformações científicas estonteantes aconteceram nestes


últimos séculos, mudando o rosto do mundo e exigindo de qualquer
um cada vez maior conhecimento de uma série de conceitos técnicos.
As descobertas nos deram alto grau de controle sobre os processos
naturais, propiciando avanço e bem-estar, porém, continuamos atônitos
com a coexistência de uma tecnologia de última geração na produção
de bens de consumo e de um desconhecimento assustador, por grande
parte das pessoas, de conceitos científicos básicos. Consomem-se,
indiferenciadamente, produtos de tecnologia atual e "conhecimento"
arcaico, particularmente no que tange à vida mental. Ao lado do
computador, usado como meio, estão os búzios, o tarô, os florais, os
anjos, duendes e outras crendices e magias, usados como fins,
fornecendo "explicações" sobre o mundo da mente. Além dos que
pregam esse misticismo desenfreado, muitas vezes nutridos pela
ignorância e não por má-fé ou busca de benefício pessoal, há os
aproveitadores que, sob o rótulo de "científico", vendem idéias parciais
e erradas - porque parciais - sobre a mente, sobre sua programação,
sobre o modo de dominá-la para o sucesso ou para o equilíbrio
emocional. Aqueles que prescrevem o misticismo e a magia são, no
mais das vezes, apenas profetas do arcaico e ultrapassado; aqueles
que vendem opiniões e clichês sob o rótulo de ciência e de modernidade
são ainda piores, beneficiando-se da ingenuidade com que pessoas,
empresas e até governos os tratam. Esse temor reverencial que
provocam pelo "sucesso" de suas teorias, ou pelo menos de suas contas
bancárias - tanta gente os ouve e compra -, é bem fruto desta época de
incerteza e desvario. Estranho não terem jamais assento ou platéia na
comunidade científica nacional e internacional, salvo nos congressos
de vendas em que propalam a última técnica de otimização mental
para vender mais produtos e sair-se bem na vida.
A sociedade, como de hábito, trata o guru como sábio, o vendedor
de opiniões triviais sob a égide de moderno e científico como best-seller
e o cientista com os recursos parcos que sobram. "Teóricos", exclamam
esses cidadãos médios ao se referirem à ciência pura. Claramente esses
O SITIO DA MENTE

indivíduos preferem o fetiche da coisa pronta, do conhecimento-


produto, cultores que são da "prática" e embevecidos com a ciência
quando ela lhes fornece um telefone celular. Através dele, quem sabe
até da Internet, podem discutir a última "teoria" sobre vidas passadas
ou falar um pouco de seu mundo alienado e facilmente manipulável.
"Oh tempo! oh costumes!" dizia Cícero.
Uma explicação geral e completa da mente e de sua relação com
o cérebro e a cultura é a única maneira de tentar enfrentar essa época
de ignorância e magia, contrapondo-lhe alguma razão e discernimento.
Não apenas porque a verdade deve sempre prevalecer, mas sobretudo
porque a verdade científica, ainda que provisória e imperfeita, é uma
das únicas salvaguardas contra a tirania da desrazão. Em se tratando
de vida mental, é inquestionável a necessidade de fornecer a cada pessoa
um conjunto coerente de idéias. A mente está em toda parte,
interpenetrando qualquer domínio— da família ao trabalho, do privado
ao público, do pedagógico ao negocial. Absolutamente não se pode
pretender enfrentar alguns dos mais importantes dilemas
contemporâneos sem uma visão integrada do que é a mente e de como
surge no cérebro.
A velocidade das transformações atuais modifica padrões de vida
e de trabalho. As relações humanas estão permeadas por valores de
uma ciência que gera milhões de fatos novos a cada momento. O fluxo
de informação é frenético e tem brutal efeito sobre a mente que o consome.
Nesse sentido, falar apenas do cérebro não será completo. Também há
que se falar da mente contaminada e sitiada por um meio que a afeta todo
o tempo. Se o progresso gerou avanço tecnológico, gerou também alguns
paradoxos. Primeiramente,

em que o iucro e o
sao
- Esses dois paradoxos podem sitiar a mente. Em não se reconhecendo
gerada no sítio cerebral, a mente nega a ciência; nega o desvio e seu
tratamento; nega a ética nas relações entre seres biológicos e finalmente
nega a razão.
Vamos trilhar um caminho que nos ensine como a célula cerebral
produz a mente, como a mente produz a cultura e como essa cultura
retroage sobre nós, tornando-nos afoitos e ansiosos numa época de
novidades e grandes incertezas.
INTRODUÇÃO

A mente capaz de produzir a ciência e o avanço não é capaz de


entender plenamente o processo de produção e de consumo; não é
capaz de concordar sobre o meio de regular oferta de moeda, juros,
taxa de câmbio, emprego, etc.
O impasse também se apresenta em outras áreas. A regulação
predeterminada parece ceder lugar ao exame de caso. A Constituição
rígida e detalhista parece perder lugar para a decisão jurisprudencial.
Os grandes sistemas trabalhistas de proteção do indivíduo (welfarestate)
começam a inviabilizar as contas públicas, e cada vez mais se acredita
num Estado mínimo com forte tendência a deixar que o indivíduo se
socorra de corporações e de fundos privados para suas aposentadorias
e seus planos de saúde.
Esses exemplos todos mostram que, a par de um sem-número
de avanços científicos, continuamos a não saber com certeza como
decidir diante de cenários complexos. A interferência reguladora nestes
casos é possível e há uma série de teorias que têm feito por avançar
nosso conhecimento a esse respeito. Porém, a mente humana, complexa,
que coordena em última instância todo o processo de decisão, criação,
invenção e juízo, continua refém de múltiplas explicações e "teorias".
Conhecê-la, sabendo de seu situar-se no cérebro, significa unificar o
discurso acerca da possível convergência de vários dilemas apontados
e de soluções que brotam da constatação de que afinal seu denominador
comum é a conjunção das mentes interagentes, gerando ainda mais
complexidade. Quando essa complexidade progressiva não se assenta
na hipótese primeira de um sujeito racional, mas de uma razão baseada
no sítio cerebral, aí então há a possibilidade de usar critérios biológicos
para dirimir certas pendências privadas e também as sociológicas,
jurídicas, econômicas e políticas.
Se a mente é complexa, também o são seus produtos. As relações
humanas, pessoais ou públicas, familiares o u nego_ciai potiçp
mentais.

outras-tantas
Quando aparecem os fantasmas que nos assolam nas noites mal
dormidas - a insônia, o medo, o pânico, o desânimo, o desapontamen-
to, a apreensão, a idéia fixa, a tristeza que estreita a visão, a vontade
firme que de repente enfraquece - a mente, então, dialoga em silêncio
com sua base cerebral, reclamando que se dê a ela o remédio para a
célula e não apenas o conselho para o ouvido.
O SITIO DA MENTE

Os discursos sobre a mente são inúmeros, o que indica nosso


estágio pré-científico no entendê-la. Ninguém imagina que haja dez
correntes de pensamento na física atual; ninguém imagina que haja dez
opiniões diferentes acerca do lançamento de um satélite no que tange à
velocidade necessária para entrar em órbita. Isso tudo é exemplo de
uma ciência já madura como a física. Apsico19gia,sitpja

assustadores de diferentes correntes, o

Credite-se a esse fator pré-paradigmático um pouco


do fato de a ciência ainda desconhecer inúmeras etapas que medeiam a
conversão do sinal elétrico cerebral em símbolo mental e posteriormente
coletivo. Porém, credite-se também ao fato de que parece haver uma
atração das pessoas pelas idéias fáceis e mágicas, por um
antropocentrismo que revive na mente a idéia de um deus que tudo
pode, que tudo sabe e que a tudo assiste. Esse antropocentrismo que
pretende estar falando de "poderes cerebrais", conferindo-lhe
propriedades mágicas, serve de morada para o embusteiro que vende a
cada ano uma teoria nova. A comunidade acadêmica fica indignada e
perplexa com a ignorância com que as pessoas, as empresas, as escolas
consomem essas visões. Porém, no Olimpo de sua condição de técnicos,
poucos se submetem a fazer peregrinação lenta, didática e cuidadosa
que possa servir ao leigo de contraposição às idéias erradas.
Da sala de aula à grande empresa, do hospital psiquiátrico ao
mercado de ações, do tribunal à uma de votação, em cada lugar há uma
teoria mais ou menos explícita sobre o funcionamento mental. Esse
sistema de crenças nos desdobramentos da ação sobre os
comportamentos gera milhões de subprodutos. Em cada casa há uma
orientação quanto ao desenvolvimento dos filhos, quanto aos fatos que
hão de gerar conhecimento, bem-estar e normalidade; em cada canto há
uma teoria sobre a honestidade, a ética e o fazer social. Essa pluralidade
se vê enriquecida pela informação, mas deformada pela passividade
diante da manipulação dos meios de comunicação. Tanto quanto
podemos convencer grande número de pessoas de que a nova tendência
é aquele vestido que parecia inadequado e esquecido no fundo do
guarda-roupa, também podemos acreditar em modismos acerca da
mente.
Somos vítimas da propaganda que durante séculos calcou em
nossas cabeças a idéia de que a mente nada tem que ver com o corpo.
Parente da alma, resistiria à morte do corpo. Essa mente que pensa,
INTRODUÇÃO

sente, decide, julga, lembra, percebe, fala e escreve não poderia, na


visão antiga, ser fato do corpo ou especificamente do cérebro.
As raízes desse discurso estão situadas em diversos planos. As
religiões são, nem mais, nem menos, meios de propaganda iguais à
televisão ou ao outdoor. Geraram, ao longo da história das idéias, discurso
que endossa uma mente sem morada cerebral, autônoma e eterna.
Enquanto a explicação sobre o fenômeno mental estiver
multifacetada nas diversas disciplinas e áreas, mesclando sem critério
saberes incompatíveis, não estaremos falando de uma teoria científica,
mas sim de crenças, preconceitos e opiniões mais ou menos
sistematizadas.
Os perigos do discurso científico são conhecidos. Sabemos que a
ciência falha e que está em constante revisão. Mas o perigo maior reside
no abandono desse discurso, relativizando a razão, que, se provisória e
falível, ainda é a vela no escuro de um mundo assombrado pelos
demônios, parte do título do último livro de Carl Sagan, breviário
indignado e lúcido de alguém que passou a vida tentando popularizar
• ciência, tornando-a acessível às massas.'
A visão multifacetada da mente - a econômica, a familiar, a social,
• política, a gerencial, a patológica, a coletiva, a pública, a privada, a
"espiritual", etc. - não leva a mente alguma. Vamos tratar da base
cerebral de uma mente que até agora tem sido insensível ao apelo da
razão e da decência, manipulada e manipuladora, ignorante e arrogante,
dogmática e parcial, mente, enfim, que apenas é verbo que emana do
tecido nervoso. Na alegoria religiosa o verbo se fez carne; na ciência
contemporânea é a carne que se faz verbo. Tomar da mente apenas o
verbo, roubando-lhe a carne, é deixar que as palavras, que deveriam
comunicar e organizar os discursos, cumpram apenas o papel histriônico
de seduzir pela retórica vazia.
O edifício da razão, a nobreza de alguns sentimentos, a cor das
emoções, o papel da punição e da gratificação, o bem-estar e a motivação,
a alegria e a criatividade são todos fenômenos que se devem a um
cérebro em contato com o meio ambiente. Privilegiar a explicação
histórico-biográfica de cada um como explicação para a mente é
empobrecê-la, tomando-lhe apenas uma parte. Confiná-la ao discurso
cerebral apenas também é empobrecê-la, como o é descrevê-la apenas
como saber evolutivo; ou genético; ou concorrencial; ou transcendente.
A mente humana está situada na encruzilhada entre a natureza
que selecionou o cérebro humano, a linguagem que permitiu a
comunicação, a história pessoal que moldou o rosto de cada um e a
O SITIO DA MENTE

história coletiva que nos dá padrões médios de ação e juízo. Entendê-


la, portanto, é complicado e não pretendemos ter respostas últimas e
acabadas. Pretendemos, sim, adotar um estilo científico acessível de
falar da mente, um método que se calca na noção de seu sítio cerebral.
Afirmar a natureza cerebral não , é apenas abandonar a tradicional
natureza "espiritual" da mente. E um compromisso com um tipo de
discurso sistemático e coerente. Ao contrário de ser verdadeiro, o saber
científico busca a verossimilhança, a plausibilidade e a coerência interna.
Ao contrário do vendedor de ilusões que adora proclamar "Todos os
cisnes são brancos", para, em seguida, apontar um cisne branco a cada
ano, vendendo com isso a idéia de que a generalização é verdadeira, o
cientista ama procurar cisnes pretos. Um cisne branco por ano enche os
bolsos do primeiro. Um cisne preto prova que a afirmação geral era
falsa e precisa ser revista ou ter limitado seu domínio de aplicação.'
"Todos os cisnes de meu banco são brancos" deveria dizer aquele que
prega que equilíbrio entre a razão e a emoção, bom-senso, educação e
diplomacia são fato científico novo, alcunhado de "inteligência
emocional".
Pensar sistematicamente sobre a mente signgi~ca. visitar inúmeros

Pais, filhos, maridos, esposas, chefes, empregados, políticos,


executivos, ministros, sacerdotes, todos enfim devem pensar nas
concepções de mente neste final de século. Isto pode fazer de nós pessoas
menos ambíguas no decidir, no julgar e no pensar, dando origem a uma
nova compreensão dos fenômenos que se desdobram cada vez mais
rapidamente e auxiliando na prevenção e controle da patologia
individual e da coletiva.
Q cérebro de umin indivíduo
ivíduo pode
ode adoecer.
a Quando adoece nas
últimas camadas do tecido cerebral, particularmente no córtex e algumas
regiões subcorticais, gera a patologia mental, seja ela uma triste e grave
esquizofrenia ou uma simples crise ansiosa. Por mera convenção
chamamos as afecções cerebrais superiores de psiquiátricas e não de
neurológicas. Na visão do leigo, entretanto, aceita-se a paralisia de um
membro advinda de um derrame cerebral, mas não se aceita a paralisia
da vontade advinda de outro mau funcionamento em incerto local
cortical. 3
Também a comunhão das mentes ode "adoecer" - casamento,
família, instituição e estado. Tanto no p ano do sujeito, quanto no plano
INTRODUÇÃO

da sociedade há um denominador comum a sustentar o ato e o desvio:


a a

de i ação e controle obojj


les argumentos aue usarei vara lancar uma
sobre a vida m[aI,i1icerçando, a um só tempo, a ntide ndividual
ou rejeição
coletivas.
Resgatar uma noção científica de mente, delimitando-lhe o local,
a função, o desvio e a reunião em grupo pode nos guiar na síntese de
uma nova teoria da vida individual e na visão mais clara de certos
impasses coletivos.
Se não temos, por ora, uma ciência acabada das bases cerebrais
da memória, da vontade, da decisão, da sabedoria, da invenção, da
dor, da ansiedade, da atenção e de tantos outros processos mentais,
temos uma série de dados e teorias provisórias que vão bem mais longe
e com muito mais consistência e razoabilidade que a crença na alma,
no espírito, nos fantasmas da noite, no encosto, no chazinho natural, na
alquimia, nos búzios e em toda parafernália que nos inunda os ouvidos,
divulgados na mídia. como se fossem discursos possíveis sobre o
psiquismo.
Negar a natureza espiritual da mente não é, de forma alguma,
negar que cada um, através de seu livre exame e crença, aceite a
existência da divindade. A crença na divindade é matéria que não
preocupa uma ciência da vida mental e de suas repercussões. E objeto
de fé. A mente cerebral, processo complexo que engendra o pensa-
mento, pode perfeitamente ter em deus um objeto de culto. Essa mente
é processo; esse deus é crença.
Quando deus se torna o endosso do processo, invertendo as leis
da natureza e antepondo-se aos princípios cerebrais de funcionamento
mental, instalam-se a ignorância e o risco do discurso obtuso. Deus, fé
e espiritualidade, enquanto objetos do pensamento e da crença, são tão
lícitos e aceitáveis como a crença no cálculo integral e diferencial ou na
teoria da relatividade. Um deus ou uma alma, no entanto, que subverte
a razão e a lógica de uma natureza que cria cérebros e mentes pode ser
atrasado e ignorante.
Essa mente, cantada pelo poeta e pelo literato, pelo homem de
marketinge pelo ministro das finanças que mexe nos juros e no câmbio,
deve ser revista e revisitada à luz da ciência cerebral deste final de
século XX.
O SITIO DA MENTE

Esse diálogo com a natureza complexa e cerebral do pensamento,


da emoção e da vontade humana pode enriquecer nossos atos, melhorar
nossas relações, libertando essa mente que, ansiosa e fragmentada em
mil discursos, não se encontrou ainda una e sólida.
Talvez a natureza do processo de dominação do indivíduo e de
sua alienação seja parente da manutenção dessa quantidade enorme de
teorias psicológicas não-razoáveis. Antes de enjaulá-la no corpo, antes
de limitá-la pelo seu sítio cerebral, o discurso que se inicia pretende,
pela verossimilhança de sua estrutura, libertar e otimizar a mente
individual e a coletiva, seu desenvolvimento, sua atuação, seus valores,
sua razão e sua sensibilidade.
PARTE /
FÔRMA CEREBRAL
O SITIO DA MENTE

Corte sagital de cabeça e pescoço através


de Ressonância Nuclear Magnética

1. Cerebelo
2. Hemisfério cerebral
3. Lobo frontal
4. Hipófise
5. Mesencé falo
6. Lobo occipital
7. Ponte
8. Tálamo
9. Medula
10. Coluna vertebral
11. Língua
12. Cavidade nasal
CÉREBROS

Capítulo 1

CÉREBROS

A natureza selecionou, ao longo de milhões de anos, um deter-


minado tipo de estrutura capaz de controlar uma série de funções
internas e externas do organismo: o sistema nervoso.
Muitos organismos possuem esse sistema especializado na
recepção de informação, integração e execução motora, fruto de uma
bem-sucedida estratégia natural. Seu grau de complexidade, no entanto,
vai aumentando de acordo com a escala animal. Assim, o sistema ner-
voso de um mamífero é mais sofisticado que o de um molusco, e, entre
os mamíferos, o sistema nervoso humano é de longe o mais complexo.
Quando se faz a clássica comparação do homem com outros animais,
um dos números mais gritantes é o de encefalização - medida de cres-
cimento do cérebro em relação ao corpo. O ser humano apresenta uma
proporção bastante maior de massa encefálica (cérebro) do que qual-
quer outro animal. Isto mostra que, algumas vezes, "quantidade é qua-
lidade".
O cérebro humano é, basicamente, formado por dois conjuntos
de células - um manipula e processa informação, tal qual fosse um
computador; o outro dá suporte físico e sustento. Há na porção
responsável pelo processamento, formada pelos neurônios, uma divisão
clara de funções. Algumas áreas, chamadas sensoriais, são encarregadas
de processar informações que chegam através dos sentidos (visão, olfato,
paladar, audição e tato). Outras, as áreas motoras, são encarregadas de
gerar movimentos, sejam externos (locomoção, tração, força), sejam internos
(por exemplo, o controle de um órgão ou sistema interno).
Entre as áreas de processamento da informação sensorial e as
áreas motoras, encontram-se as áreas de integração. Estas, muito com-
plexas, é que respondem pela origem do que efetivamente nos interes-
sa na constituição do produto chamado mente.
De maneira muito resumida, pode-se dizer que há apenas essas
três funções no tecido nervoso cerebral (constituído de neurônios):
receber estímulo que vem do ambiente e do corpo (por exemplo, a
O SÍTIO DA MENTE

posição de uma articulação), agir sobre o corpo e sobre o ambiente


(regular um órgão ou iniciar um movimento que pode ser das pernas
ou dos lábios quando se fala) e, finalmente, entre o receber e o despachar,
integrar a informação.
As áreas cerebrais dividem-se, assim, em sensoriais, motoras e

de um molusco marítimo, menor é a área de integração; quanto mais


complexo, como o do ser humano, maior.
A• te ação é uma espécie dburocracia saudável que cuida de
examinar o recebimento de m doc mento e seu des n ina uanto
aior o número de departamentos em que esse documento 2
mte
deser
examinado, maior é a etapa que separa o instante do protocolo da
expedição final de um parecer. Quanto mais simples a função que um
sistema nervoso tem de desempenhar, mais fácil é coordenar circuitos
de tal forma que entre o protocolo e a expedição tenham de ser seguidas
instruções mínimas.
Imagine um animal cujo inimigo natural, chamado predador, é
um tigre. A seleção natural privilegia os espécimes com sistemas ner-
vosos capazes de detectar imediatamente sinais do predador-inimigo e
de organizar uma fuga rápida. Assim, quando fo em vistos pêlos e
listas, quando se ouvirem sonsjpicos o predador, a integção buro-
era a ornem que as areas sensoriais aarao
em marc , e maneira acelerada, uma
de r'rocessos aiie 5eiiiithi o

A resposta de fuga ou luta é o que caracteriza os sistemas nervo-


sos mais primitivos. Diante do perigo, captado pelo aparato sensorial e
devidamente decodificado, deve haver resposta motora instantânea.
Orquestram-se, assim, vários movimentos. Um gato ameaçado eriça os
pêlos, mostra os dentes, desvia a circulação sanguínea para os músculos
(retirando sangue da pele e dos órgãos de digestão, por exemplo),
aumenta a tensão muscular, corre ou enfrenta o inimigo. Não há motivo
para integrar excessivamente a informação. O mundo da natureza pede
respostas rápidas de preservação da vida. Sistemas nervosos
rudimentares detectam e agem. Os mais complexos detectam sutilezas
e agem com maior estoque de ações, mas a lógica é semelhante. Portanto,
a integração burocrática deve ser mínima.
O tigre também é predador do ser humano. Também deve susci-
tar resposta de fuga ou luta. Porém, a fuga não é fácil. 0 homem é
CÉREBROS

lento e fraco para enfrentar certos animais.

co ocá-loió zoõ1giEà, no circo etc A ó cadã fu ou


a uma serie e estrat&ias rara lidar com tieres. Pode-se

e
objetivo e cival o plano de acão. A comunica-
ção entre esse grupo de pessoas, que— vai agora avaliar um sem-número
de atitudes em relação aos tigres, depende de linguagem, de acordo,
de sincronização, de comando, de obediência, de regra para repartir o
lucro, contabilizar o prejuízo e, se algo sair errado, enterrar os mortos,
prestar-lhes homenagem, lembrar seus erros, exaltar sua coragem e
bravura. Tudo isso exige um aparato burocrático saudável que, diante
de um tigre, não gere apenas fuga ou luta como alternativas.
Esse intermediário entre o ambiente detectado pelos sentidos e a
ação motora de fuga ou luta passa a ser uma extensa área d inte a ão,
~ondera
m ~ ~
ção, a ta~
ejrn v ~ ~
as, d is~es com ação eestjpiiiah ,
~emeio sa e e m t~eu~
gnam
Pode-se retratar o que foi dito acima da seguinte maneira: se a
uma dada situação A no ambiente tenho de dar uma resposta clara B,
então o sistema nervoso deve apenas integrar, ligar A a B. Se A, então
B. Se tigre (A), então fuga (B). Parece simples, mas já não é tanto. Por-
que a visão detecta listas, luminosidades, profundidades. A audição
detecta variações sonoras. Caracterizar A como tigre é resultado de
uma complexa operação de decodificação. Pense: "Estou vendo algo
que tem pêlos, bigodes, dentes afiados, listas pelo corpo, patas salien-
tes, que mia de um jeito especial, vem rápido em minha direção, pela
esquerda, há uma árvore logo à direita... é um tigre!".
Associar variações luminosas e transformá-las em pêlos, associar
pêlos, dentes e garras a um tigre são processos de análise que compe-
tem às áreas sensoriais. Não é o olho que analisa tudo isso. O olho
apenas transmite a informação ambiental para áreas cerebrais de recep-
ção sensorial. Ali é que deverão se dar as análises e sínteses necessárias
para que se constate ser um tigre o que se aproxima. Cuidado, portanto,
com a idéia de que é simples ter um aparato sensorial e um motor e de
que animais que não têm áreas de integração são totalmente estúpidos
ou desinteressantes. Não, o conceito de área de integração é o de
burocracia saudável. Mesmo para que haja a transformação de
luminosidade em pêlos e garras e destes em um tigre, é preciso haver
alguma integração. A informação deve necessariamente passar por ai-
O SITIO DA MENTE

guns departamentos, onde será examinada antes que se deflagre


a fuga ou a luta.
A resposta pode também ser monótona ou criativa. Quando unia
pessoa entra no mar e seu pé se choca com um molusco, tocando-lhe um
tentáculo, o animal pode ter uma resposta bem simples, como retirar o
tentáculo. A, neste caso, é o choque e B é retirar o tentáculo. A isso chama-
se conexão "Se A, então B do tipo simples" (se choque, então retire o
tentáculo). A análise de A é simples e o padrão de B é simples.
Imagine agora uma lebre ameçada por um tigre. Pode-se pensar
em "Se A, então W. Se tigre (A), então fuja (B). Mas a detecção de um
tigre é mais complexa que um choque, e o padrão de fuga de uma lebre
obedece a um repertório de ações motoras de uma graça, rapidez e
inventividade incríveis. Detectar o tigre envolve integrar várias
informações sensoriais; escolher por onde fugir também. A velocidade,
a harmonia, o jogo de articulações da lebre fugindo fazem da fuga um
conjunto de ações motoras complexas. Neste caso, temos A (detectar o
tigre) complexo e B (fugir) também complexo. Definitivamente, não se
pode dizer que o fato de detectar e fugir seja tarefa simples.
Voltando ao exemplo do ser humano que integra a informação,
temos o conjunto de complexidades visto acima, tanto no plano senso-
rial como no plano motor, acrescido de uma complexidade ainda maior
que é a integração intermediária, aquela que define múltiplas opções
de ação a partir de uma determinada percepção do ambiente.
Um sistema nervoso é um aparato que recebe e integra informações
e que age sobre o meio ou sobre o corpo. Quanto mais simples o objeto
detectado (um choque) e mais simples a ação (retirar um tentáculo),
mais essencialmente simples são os sistemas. Se detectar envolve a
análise de fatos sensoriais (variação luminosa + textura + cor = pêlos +
bigodes + patas + listas = tigre) e se atuar envolve ações de fuga com-
plexas (fugir pela direita, pela esquerda, rápido, de mansinho, fingir
que vai enfrentar, pular com graça e precisão no canto do muro), então
temos um sistema nervoso complexo.'
Se, por outro lado, temos a complexidade anterior, porém com a
variação, a decisão e a ponderação de que "Se A é tigre, então fujo de
várias formas (B's), luto de várias formas (Cs), monto uma equipe
para capturá-lo (tYs), coloco-o no circo (Es)" e assim sucessivamente,
por sobre o sistema nervoso complexo (aquele que analisa a
complexidade do objeto e da ação) se assenta um analisador-integrador
que pode gerar várias respostas diferentes. Esse analisador é o que, em
última instância, está por trás do surgimento na vida animal de um tipo
CÉREBROS

de sistema chamado mente, cuja função é a integração, a associação


da sensorialidade e da motricidade.
Um sistema nervoso simples apenas detecta A (choque) e gera a
resposta motora B (retirar a perna). Um sistema nervoso complexo
detecta A (luz + contraste = pêlos + patas) e conceitualiza (pêlos +
patas = tigre). Por isso, A se torna A's, gerando uma série de respostas
motoras diferentes B's (fugir pela direita, pela esquerda, despistando,
etc.). Um sistema nervoso complexo, com mente, detecta, conceitualiza,
integra e gera a possibilidade de comportamentos motores A, B, C, D, etc.
Nesse sentido, a mente surge quando são muitas as opções criati-
vas e inteligentes de se agir com os dados ambientais obtidos pela
sensorialidade. Não é possível gravar de antemão esses programas no
sistema nervoso do animal. Ele deverá aprender, treinar, pensar, ponderar,
discutir, arriscar, inventar, teorizar, testar e assim por diante. No momento
em que tudo isso aparece entre a sensação e a ação, tem-se uma com-
plexidade explosiva, uma burocracia enorme e necessária que vai exe-
cutar milhões de cálculos e dar milhões de pareceres antes que se deci-
da por lutar, fugir ou associar-se. urg etando
essa complexidade se assenta na área deintezracão,uuando a associacão
só a deteccão e
P0
PI

pLa flum4. A memoria que consulta


casos anteriores e a linguagem que aprende na sala de aula, que ensina,
anos depois, a cobiça, a renúncia, a cautela, são instâncias novas que
intermediarão o processo gerando para A (tigre) às vezes B (foge), às
vezes C (luta), às vezes D (se une a um grupo de pessoas).
nmnitrceevolu-
A complexidade é uma
propriedade que faz com que, à medida que se agregam quantidades,
vá se obtendo, em certos momentos, saltos qualitativos. Um exemplo é
o da água que ferve. Colocamos uma chaleira com água no fogo e a
esquentamos lentamente, controlando cada grau de temperatura que
sobe. A 35 graus (Celsius) temos água. Aumentamos para 36, 37, 38,
39...88, 89, 90 graus e ainda temos água. Quando a temperatura chega
perto de 100 graus, acontece um fenômeno interessante. A 98 graus
temos água, aumentamos para 99 e temos água, aumentamos para 100 e,
de repente, a água vira vapor - uma mudança radical no panorama
qualitativo.
O SITIO DA MENTE

Durante o processo natural de encefalização (acréscimo quantitativo


de neurônios do cérebro animal), pode ter ocorrido um fenômeno
semelhante. Agua liquida não moveria um motor; vapor sim.
Cérebros, como água líquida, não têm mente. Acrescentam-se
neurônios e o cérebro se faz mente. Não se trata apenas de água um
pouco mais quente que antes, assim como o ser humano não é apenas um
macaco um pouco mais inteligente. Ao se lidar com um sistema complexo
(e o sistema nervoso é), um neurônio a mais no processo de encefalização
pode propiciar num certo instante um salto - como é um salto o que
ocorre na passagem de água líquida para vapor -, gerando a mente
como capacidade do sistema para mtermediar saudável e criativamente a
informação que vem dos sentidos e se dirige para a motricidade.
A encefalização responde, assim, pelo fnômeno de "produção"
da mente (processamento associativo) num sitema complexo. Por que
complexo? A complexidade pode manifestar-sede várias maneiras, mas
uma das formas mais características é através Ide sistemas com muitos
componentes.
A água líquida é formada por bilhões de móleculas, e é isso que
está por trás da peculiaridade que aparece nesse sistema: a determina-
dos acréscimos quantitativos (aumento da temperatura de 99 para 100
graus) correspondem saltos qualitativos com surgimento de novas pro-
priedades (água líquida não move locomotiva, vapor move).
Qistema nervoso do ser humano é formado por neurônios.
Quantos? Dez bilhões. A complexidade começa, mas não pára por aí.
Cada neurônio deve dialogar com outro para transmitir informações.
Cada neurônio conversa com dez a cem mil outros nesse processo. Isso
significa que o sistema nervoso humano tem dez bilhões de unidades
processadoras (neurônios) conversando por meio de alguns trilhões de
conexões (sinapses). Quanto mais neurônios a natureza foi colocando
nos seres vivos, tanto mais complexidade foi-se obtendo. Do retirar o
tentáculo após sentir o choque, passamos para a detecção de luz, bigo-
des e tigres e subseqüente graça no fugir e no lutar, até finalmente
chegarmos a um sistema que integra, pondera e escolhe entre milhões
de alternativas. Pensa, avalia, decide, ensina.
A variação natural criou cérebros mais dotados para o pro-
cessamento associativo. A necessidade de sobrevivência e de cresci-
mento do ser humano elegeu esse sistema como o mais adequado para
enfrentar os tigres e a inflação, o casamento e o medo de morrer. A
complexidade permitiu que, pelo simples aumento de neurônios, se
obtivessem saltos qualitativos com o surgimento de novas proprieda-
CÉREBROS

des, funções e capacidades. Quando o salto criou uma mente (sempre


se estão criando protótipos para que a seleção opere), a necessidade
escolheu rapidamente este modelo como o do ser humano que chegaria
até nós. Estava mais apto para criar sobre o meio, para se comunicar,
para inventar, para pensar e para se defender de maneira cada vez
menos animal (fuga ou luta) e cada vez mais inteligente (casamento,
sociedade, nação). Talvez a inteligência apenas tome a fuga ou a luta
mais complexa, mais dissimulada, menos natural e, às vezes, menos
limpa.

SÍNTESE

Cérebros são constituídos de bilhões de neurônios e trilhões de


conexões (sinapses) entre eles. Embora em grande parte da escala animal
já se encontrem sistemas nervosos, o acréscimo de células é capaz de
gerar saltos no comportamento do sistema. Isso ocorre quando
aquecemos água fervendo. Um grau a mais é capaz de fazê-la evaporar.
A transição da água líquida para vapor é semelhante ao que ocorreu ao
se acrescentar neurônios a um cérebro. Quando se chegou a uma certa
quantidade deles, surgiu a mente.
Cérebros são todos complexos; porém, no organismo mais sim-
ples, a uma dada situação costuma corresponder uma única reação:
fugir ou lutar. No ser humano, costumam-se engendrar diferentes ações
diante do perigo. Essa característica não é pré-gravada e depende de
complicadas operações de intermediação entre os sentidos e a motri-
cidade. Quando essa integração é muito complexa, surge o pro-
cessamento mental como um tipo especial de processamento cerebral.
Cérebros são regiões especiais de sistemas nervosos. Não estão
presentes em qualquer animal inferior. Representam a diferenciação e
crescimento de uma porção do sistema nervoso. No ser humano, por
exemplo, distinguimos um sistema nervoso central constituído
basicamente pelo cérebro e outro, periférico, constituído por nervos
espalhados pelo corpo.
O SiTIO DA MENTE

Visão lateral de um cérebro humano


NEURÔNIOS

Capítulo 2

NEURÔNIOS

T odos os seres dotados de sistema nervoso têm neurônios e


sinapses. O número e a complexidade da estrutura de ligação entre eles
é que caracterizam no ser humano o sistema que, além de complexo,
faz surgir o processamento mental. Graças à lógica de funcionamento
do neurônio e de sua ligação com outros através das sinapses, a
complexidade já se inicia no nível de cada unidade de processamento
de informação nervosa.' Imagine então o que ocorre quando há dez
bilhões dessas células arrumadas em uma arquitetura especial e alguns
trilhões de conexões entre elas. (Fig.1)

dendritos

corpo celula

axe

Fig.1 - Diferentes tipos de neurónios e respectivas estruturas básicas:


dendritos, corpo celular e axônio.
O SÍTIO DA MENTE

O neurônio básico é constituído de três tipos de estruturas: a) os


dendritos (normalmente vários), que levam informação até o corpo ce-
lular; b) o corpo celular, que reúne a informação vinda dos dendritos; c)
o axônio, que, após a reunião de informação no corpo celular, envia a
decisão final adiante.

sinapse entre os neurônios 1 e 4

neurônio 1 1 neurônio 4
a
axônio 4
do neurônio 1 dendrito
DEM-

neurônio 2

050~I 0
neurônio 31 sinapse entre os neurônios 3 e 4

sinapse entre os neurônios 2 e 4

Fig.2 Sinapses esquemáticas entre axônios de três neurônios e dendritos de


-

um quarto neurônio.

Na Figura 2, mostramos de maneira esquemática a ligação entre


os neurônios 1, 2, 3 e 4. A informação trafega pelo neurônio do den-
drito para o corpo e do corpo para o axônio. Quando chega ao final do
axônio, deve ser transferida para o neurônio seguinte através de seu
dendrito. Esse espaço entre o axômo de um neurônio e o dendrito de
outro chama-se sinapse. Por meio dela é que a informação que trafegou
por um neurônio (do dendrito para o corpo, do corpo para o axônio)
pode ser repassada para o neurônio seguinte (para seu dendrito, de
onde passará para o corpo celular e daí para o axônio).
Suponha que tenhamos três informações trafegando pelos neurônios
1,2 e 3. Essas informações devem ser transferidas para o neurônio 4. Pois
bem, através de sinapses, o axônio do neurônio 1 se liga a um dendrito do
neurônio 4,0 axônio do neurônio 2 se liga a outro dendrito do neurônio 4
e o axônio do neurônio 3 se liga a outro dendrito do neurônio 4.0 neurônio
1 recebe informações através de seus dendritos. No corpo celular do
neurônio 1 há uma "decisão", que é a informação que trafegará pelo axônio
do neurônio 1 até a sinapse com o neurônio 4.
NEURÓNIOS

Ali se dá a passagem dessa informação do axônio 1 para o dendrito


4. O mesmo ocorre com a informação que trafega pelo neurônio 2 e
pelo 3. Quando cada informação passa pelas respectivas sinapses e
chega aos dendntos do neurônio 4, tem-se a repetição do processo. A
informação de cada dendrito do neurônio 4 vai até o corpo celular do
neurônio 4. Ali ocorre uma decisão conjunta - resultante da reunião de
informações vindas de 1,2 e 3— sobre qual informação vai trafegar pelo
axônio do neurônio 4 até um próximo dendrito.
Sabemos que o neurônio é a unidade fundamental de construção
do cérebro. E uma célula que recebe informação de outras e a manda
para frente. Porém, que tipo de informação trafega pelos neurônios?
Lembrando o que vimos antes, será que podemos dizer que a informa-
ção que trafega por cada neurônio é do tipo pêlos, patas, listas... um
tigre? Poderíamos pensar, partindo deste exemplo, que cada neurônio
faria o seguinte: dendrito 1 = pêlos; dendrito 2 = patas; dendrito 3 =
listas. E que todas essas informações, depois de ponderadas e analisa-
das no corpo celular, seriam enviadas pelo axônio na forma da mensa-
gem "é um tigre". Infelizmente, as coisas não são assim.
O que trafega pelo neurônio é corrente elétrica (como é corrente
elétrica o que transita no computador e se traduz na tela por palavras ou
imagens). Essa corrente elétrica - sob a forma de sinal elétrico - é muito
baixa, mas suficiente para funcionar como carregador de informação.
Como se dá a geração desse sinal elétrico? O neurônio é uma
célula que, como todas as outras, separa-se do meio externo. Dentro e
fora do neurônio há cargas elétricas. Para todos os efeitos, é como se
tivéssemos cargas negativas dentro do neurônio e cargas positivas fora,
numa espécie de sopa que banha qualquer tecido biológico. 2
O estado de repouso do neurônio é mostrado na Figura 3. De

cargas positivas fora do neurônio

Fig.3 - Distribuição de cargas elétricas dentro e fora do neurônio quando este


não está passando informação (estado de repouso).
O SÍTIO DA MENTE

maneira geral, é como se o interior do neurônio estivesse negativo e o


exterior, positivo. Quando há um estímulo, normalmente elétrico, ocorre
na parede do neurônio a abertura de canais que fazem com que as
cargas positivas entrem e as negativas saiam (Fig. 4). Com isso, o interior
do neurônio, que estava negativo, fica positivo e o exterior, que estava
positivo, fica negativo.
estímulo elétrico
(choque)
\N R ~

Fig.4 Entrada de cargas positivas e saída de cargas negativas quando


-

o neurônio é estimulado.

Esse processo, que cria uma região invertida em relação às outras,


dura um intervalo de tempo pequeno, mas suficiente para gerar uma
corrente elétrica que vai viajar pelos dendritos até o corpo neuronal
(Fig.5).
Suponha, olhando para a Figura 6, que três informações chegam
ao neurônio esquematizado, através de três de seus dendritos. Vêm de
outros três neurônios, conectando-se com cada um dos três dendritos
(1, 2 e 3) através de três sinapses. Essas informações não são pêlos,
patas e listas. SãQ impulsos elétricos diferentes, situados respectivamente
na posição indicada dos dendritos 1,2 e 3. Ali esses três impulsos geram
a inversão das cargas. Abrem-se os canais na parede do dendrito, entram
cargas positivas, saem cargas negativas. Cria-se uma descontinuidade

l
estímulo elétrico (choque)

—+++++++++++++++++

ílÍ
neurónio
0r

Fig.5 Esquema de despolarização local, ou troca, numa pequena região, de


-

cargas positivas e negativas.


NEURÓNIOS

impulso elétrico

Fig.6 - Três correntes vindas de três dendritos diferentes num mesmo neurônio.
com o restante do dendrito, que continua com o exterior positivo e o
interior negativo. Esse fenômeno é suficiente para gerar três correntes
elétricas em locais diferentes, com intensidades diferentes. No dendrito
1 ocorre, num certo instante, num certo local, um estímulo elétrico de
uma certa força. Esse estímulo abre os canais da membrana, gera uma
inversão de cargas e cria uma corrente que se propaga pelo dendrito 1.
No dendrito 2 verifica-se algo semelhante. Um estímulo o excita num
instante determinado (que pode ter uma pequena diferença de tempo em
relação ao anterior), num local determinado e com uma determinada in-
tensidade (não necessariamente a mesma intensidade do estímulo anterior).
No dendrito 3 acontece o mesmo processo.
Podemos perceber que, embora haja três correntes que vão viajar
pelos três dendritos até o corpo celular, elas têm três diferenças:
1) acontecem em três locais diferentes;
2) acontecem em três instantes diferentes (por exemplo, com uma
diferença de 1 milésimo de segundo cada uma);
3) acontecem com três intensidades diferentes.
O leitor pode concluir: "Está bem, não são pêlos, patas e listas
que vão trafegar pelos três dendritos. Isso está claro, porque sei que
não é minha voz aue é transmitida por uma linha telefônica, mas uma
Neé meu
O SiTIO DA MENTE

papel que trafega pelo fax, mas uma tradução de cada claro e escuro
sob a forma de correntes elétricas. Nem é a foto da minha filha que
transita pelo computador. Vejo a foto na tela, aperto os comandos para
mudá-la de posição. A foto também é traduzida em várias correntes,
bem como as operações de rotação que quero fazer. Quando pronta a
operação, outras correntes são enviadas para a tela, que traduz a cor-
rente de volta como a foto da minha filha. Portanto, nada impede que
três características relevantes para identificar tigres, por exemplo, pêlos,
patas e listas, sejam codificadas sob a forma de três correntes diferen-
tes, em locais diferentes, em instantes diferentes".
O leitor está certo. Não é o ator que transita pelo ar até a televi-
são. E uma câmera que capta sua imagem e a traduz em correntes, que
são transformadas em ondas e enviadas pelo ar. A televisão capta a
onda e a traduz em correntes, que são retraduzidas pela tela numa
seqüência de pontos de claro e escuro que faz aparecer o ator. O neurônio
não é muito diferente. Porém, o que ocorre quando as três correntes se
encontram?

INTEGRAÇÃO/DECISÃO

Através de sinapses, três estímulos em três dendritos diferentes


e, portanto, vindos de três neurônios diferentes começam a viajar pelos
dendritos 1, 2 e 3. Vão se encontrar, os três, no corpo celular onde
haverá uma reunião para "discussão" e finalmente uma deliberação
que seguirá para a frente.
Pode-se imaginar uma série de processos em jogo nessa reunião:
imagine que a corrente 1 é o pai, a corrente 2, a mãe e a corrente 3, o
filho. Sentam-se para decidir algo. Podem votar simplesmente dois a
favor e um contra, todos a favor, todos contra. Podem decidir comprar
um carro. Cada um coloca na mesa o quanto tem de dinheiro - o pai 5,
a mãe 3 e o filho 2 - e, em conjunto, ponderam se com o total, 10, é
possível efetuar a compra. Podem também discutir a respeito de uma
viagem. A mãe e o filho são a favor. O pai, autoritário, esmurra a mesa e
exige que apenas a sua vontade seja acatada. Podem ainda ter três
posições diferentes acerca do resultado de um jogo de futebol: 3 x 2 diz
o pai, 1 x 1 diz a mãe, 1 x 2 diz o filho. O resultado do jogo é 3 x 2. Está
claro que o pai ganha. Mas poderia ser diferente. Opai diz 3 x 1, a mãe,
3 x 2 e o filho, 3 x 0. O resultado final é O x O. Quem ganha? Parece que
a mãe, que chegou mais perto do empate. Ou talvez somente possa
ganhar quem acertou em cheio. Ou quem mais se aproximou do resul-
NEURÕNIOS

tado do jogo, desde que tenha acertado se ganhou o time A ou o B ou


deu empate. de
dúvida, dev r computados os acertos ou erros ipassados. ce á
quem acertou mais vez no pas d . Pode-se ainda estipular que quem
L a e quem tem me os orça, como o o que deve ser incentivado.
Esta descrição dá uma pálida noção dos tipos de reunião, do con-
fronto de posições entre as três correntes que estarão na base de uma
tomada de decisão sobre quem ganha ou qual deliberação deve preva-
lecer. Entender esse processo significa compreender uma das mais
complexas formas de mecanismo decisório de que a natureza lançou
mão para selecionar sistemas nervosos processadores de informação.
Como veremos adiante, foi isso o que o ser humano copiou para
construir computadores e programas capazes de simular a mente
humana?
A partir da deliberação da reunião das três correntes (lembre-se
de que podem ser cem mil), sai uma decisão que é apresentada a uma
barreira que existe no início do axônio. Esta "porta" - chamada de
limiar - tem uma determinada norma: se o resultado, sob a forma de
corrente, é igual a ou maior que um certo número, ela se abre; se é
menor, ela fica fechada .4
Presente nos neurônios humanos (entenda-se nos biológicos), a
passagem pode ou não estar presente nos neurônios artificiais, aqueles
que o ser humano tem construído para simular a mente humana. O
leitor poderá dizer, então, que os neurônios artificiais que não usam a
"porta" não têm nada a ver com neurônios. Não é bem assim, porque,
em primeiro lugar, há aproximações possíveis entre o ter porta e o não
ter; em segundo, pode ser (matéria com alguma controvérsia) que muitos
neurônios não tenham limiar. Neste caso, a deliberação da reunião das
três correntes seria passada para o axônio qualquer que fosse ela.
Voltando ao ponto anterior, a porta deixa passar resultados de
reunião que sejam iguais ou maiores que um certo número (limiar).
Deixar passar significa gerar uma corrente de certa intensidade que vai
trafegar pelo axônio até chegar à sinapse que o liga a um dendrito de
outro neurônio.
A corrente gerada a partir da porta chama-se potencial de ação, e
é do tipo tudo ou nada. Quer dizer, se da reunião sai um resultado que
supera o limiar (que abre a porta), a corrente gerada é uma só, isto é,
de uma só intensidade. Se o resultado não supera o limiar da porta, a
corrente simplesmente não existe, isto é, a informação (sob a forma de
corrente) não vai seguir adiante.
O SITIO DA MENTE

Essa característica tem sido erroneamente interpretada na histó-


ria do estudo do sistema nervoso. Por sua causa, pareceria de menor
importância todo o processo que descrevemos anteriormente. No final
das contas, o que valeria de fato seria o abrir ou não a porta (a corrente,
sob a forma de potencial de ação, ocorrer ou não). O perigo consiste em
considerar o neurônio de uma forma maniqueísta ou digital. Por digital,
entenda-se o que dissemos acima: só existem duas chances - aberto ou
fechado. Quando existem inúmeras chances, como mais aberto, mais
fechado, fechado, aberto, etc., dizemos que o modelo é analógico.
No decorrer do livro, veremos que essas concepções são equivo-
cadas e aprenderemos um pouco das possibilidades de cada uma de-
las. De imediato, podemos dizer que a problemática gerada por elas é
facilmente contornável. Voltemos ao limiar (porta) para entender o por-
quê da irrelevância. 5
A corrente no dendrito tem tamanho e forma variáveis (potencial
local). Caminha até o corpo do neurônio, onde sofre processo de
integração. A porta se abre (se o resultado das correntes é igual ou
maior que o limiar). Dispara-se, assim, uma corrente que tem forma e
tamanho fixos (potencial de ação). Como o disparo do potencial de
ação é tudo ou nada, todas aquelas correntes de forma e tamanho vari-
áveis tornam-se um potencial de ação sempre igual.
Se tomarmos um potencial de ação, é certo que estaremos diante

aL c
JI L
+80
limiar
+40

-40
b -80

Fig. 7 - O potencial de ação é gerado de forma tudo ou nada no corpo celular


após superar o limiar. Observe: em (a), a maneira de medir o potencial através
de eletrodos implantados no neurônio; em (b), um potencial isolado, tudo ou nada,
após superar o limiar; em (c), um conjunto de potenciais codificando, com intervalo
variável entre eles, diferentes situações.
NEURÓNIOS

de uma digitalização (ou está presente ou não, sem meio-termo). No


entanto, há uma seqüência de potenciais de ação. Podemos ver na Figu-
ra 7 que não é disparado apenas um potencial de ação, mas vários.
Dependendo do resultado da reunião que se deu no corpo celular, tere-
mos maior ou menor quantidade de potenciais de ação e com interva-
los diferentes. Isso resolve o problema do analógico e do digital.
Imagine que você vai a um supermercado e tenta ver o preço de
um produto através de um código de barras do seguinte tipo:

1 (barra presente) ou ... (barra ausente)

Neste caso, pode-se saber somente se a barra está ausente ou


presente, o que permite falar apenas de duas coisas: caro (barra presen-
te) ou barato (barra ausente); 100 reais (barra presente) ou 10 reais
(barra ausente), por exemplo.
Mas é possível fazer outro código. Imagine a seguinte informa-
ção sob a forma de barras:

Ou liii OU liii OU

Aqui, são dadas várias informações com mais barras .6 Todas têm
a mesma altura (amplitude), como se cada uma fosse um potencial de
ação. Se a opção fosse quatro barras ou nenhuma, o exemplo não seria
diferente do anterior. Mas o intervalo entre as quatro pode variar. As-
sim, com as quatro barras podem-se indicar os preços de quatro produ-
tos diferentes. Um pode custar 100, outro 38, outro 47 e outro 98. Apesar
de cada barra ser igual a outra, o intervalo entre elas variou (isto é, a
freqüência em que ocorreram as barras, umas depois das outras, variou).
No caso de barra presente ou ausente, tem-se a digitalização.
Com a variação do intervalo entre as barras, cria-se um código de preço
que não é tudo ou nada, mas que admite diversos valores diferentes
(analógico).
Entendido o exemplo, está entendido o processo que se passa no
axônio. Trafegando até o final do axônio, a informação cumpre todo o
seu trajeto no neurônio. A corrente que carrega a informação no sistema
nervoso caminha, assim, dos vários dendritos até o corpo celular, onde
ocorre a "decisão" (integração). Depois, a corrente transforma-se no
potencial de ação. Embora este seja "tudo ou nada" (digital), o caráter
múltiplo (analógico) da informação é mantido graças às diferentes fre-
qüências (intervalos) entre os potenciais de ação (barras).
O SÍTIO DA MENTE

SÍNTESE

Os neurônios têm três estruturas básicas: os dendritos, por onde


chega a informação; o corpo celular, onde a informação é integrada; e o
axônio, por onde a decisão é despachada.
A informação no cérebro não é feita de imagens, palavras e emo-
ções. Toda ela é codificada sob a forma de correntes elétricas, que variam
de local, tamanho e forma quando chegam às sinapses. No corpo celular
há uma reunião entre essas correntes para discutir e chegar a uma
deliberação final, que deve ultrapassar uma barreira (limiar) existente
no início do neurônio. Se ultrapassar, gerará uma nova corrente (poten-
cial de ação).
Enquanto as correntes nos dendritos (potenciais locais) são variá-
veis, o potencial de ação é só de dois tipos: presente ou ausente. A
característica de admitir apenas dois estados possíveis é chamada de
digital; a de admitir múltiplos estados possíveis, de analógica.
Olhar para o neurônio como uma unidade que integra diferentes
informações analógicas vindas dos dendritos, gerando uma resposta
digital, é erro comum na história do estudo da mente. O neurônio, bem
como o cérebro, não é um aparato digital. Se o potencial de ação isola-
damente parece codificar sob a forma digital, a quantidade de potenciais
de ação, tal qual um código de barras, usa o intervalo entre os potenciais
para contar muito mais que o digital.

ÔNIOS ESQUEMÁTICOS
TANDO-SE ATRAVÉS DE
UMA SINAPSE:
do primeiro neurônio e
dendrito do segundo
- SINAPSE

Capítulo 3

SINA PSE

A próxima etapa para a compreensão do mecanismo de


funcionamento do cérebro humano é o estudo da sinapse, intervalo
entre um neurônio e outro, por onde eles se comunicam.
Comecemos por uma comparação. Podem-se construir diferen-
tes edificações usando apenas tijolos, cimento, areia, vidro e ferro. Pelo
fato de neurônios e sinapses serem elementos fundamentais desse tipo
e estarem, portanto, presentes até em animais bastante primitivos, nem
por isso deixam de ser vitais para a compreensão do processo de
surgimento da mente a partir do cérebro. Apesar de os elementos se-
rem comuns, a complexidade de construção de uma casinha de cachor-
ro é uma e a de uma catedral gótica, outra. A mente está situada no
plano da catedral gótica. Não há dúvida, contudo, de que alguns princípi-
os de edificação - como, por exemplo, o tempo que o cimento demora
para secar, a posição dos tijolos, a firmeza de certas vigas -, estão
presentes tanto na pequena casinha quanto na catedral.
Quando se pretende subtrair dos neurônios e das sinapses a fun-
ção de unidades fundamentais na constituição da mente humana, pode-
se cometer o erro de, diante de uma trinca na parede de um edifício,
chamar o decorador ou o arquiteto para opinar. Não, as trincas são
motivo de avaliação do engenheiro, que pode detectar ali uma mera
acomodação dos tijolos e da massa ou uma falha estrutural capaz de
pôr em risco todo o edifício.
Está certo que não se deve chamar o engenheiro para opinar sobre
a cor do tecido do sofá, nem tirar do arquiteto a função de projetar a
funcionalidade e beleza dos ambientes e da fachada. Embora todos aca-
bem opinando um pouco na área dos outros, o padre não pode, porque
reza a missa na catedral, opinar sobre trincas na parede. Quando se
chama o padre para isso e se desvaloriza o engenheiro, que atentaria
para tijolos, concreto, ferro e outras coisas,
que historicamente se tem come o ao chamar o es írito e a alma para
esempenharoppelde mente humana. A mente é resultado e uma
O SÍTIO DA MENTE

complexa reunião de elementos fundamentais - o neurônio, a sinapse,


o neurotransmissor e o receptor -, capazes de gerar arranjos construti-
vos diferentes, dependendo do número e da combinação, tal como vi-
mos na catedral.
Sua grandeza e pluralidade exigem a genialidade de um arquiteto
que lhes confira funcionalidade e a de um engenheiro que, de posse
dos elementos estruturais básicos, seja capaz de realizar o projeto
arquitetõnico. A utilização final da mente, catedral gótica, pode
perfeitamente ser a reunião em culto. Seu fundamento, no entanto, está
no desenho arquitetõnico e no arranjo concreto de unidades (fôrmas) que
viabilizam fisicamente suas formas e conteúdos.
Imagine que haja duas estradas por onde trafegam veículos e,
separando-as, um rio largo. Certo, é preciso uma balsa para atravessá-
lo. O rio, intervalo entre as estradas, é a sinapse. A balsa que atravessa
a sinapse consiste em substâncias químicas chamadas neurotrans-
missores. O carro (informação) chega ao fim da estrada 1 (neurônio 1) e
toma uma balsa. A informação sob a forma de corrente chega ao final
do neurônio 1 e libera o neurotransmissor, que "carrega" a informação
até o receptor (fechadura) do neurônio 2. O mecanismo se dá como se
fosse uma chave que vai do neurônio 1 até uma fechadura do neurônio
2, abrindo-a, isto é, reinstaurando ali a informação a ser transmitida
(neurotransmissor) para atravessar o rio (sinapse), chegar ao outro lado,
na estrada 2 (neurônio 2), e continuar viagem (Fig. 8).

neurônio T___

informação> -
- > 0 iníoroj.

SINAPSE
neurotransmissor receptor

Fig.8 - Sinapse (junção) entre dois neurônios 1 e 2. A informação, sob a forma


de corrente, chega ao final do neurônio 1 e libera o neurotransmissor, que
"carrega" a informação até o receptor (fechadura do neurônio 2). O mecanismo
se dá como se fosse uma chave que vai do neurônio 1 até uma fechadura do
neurônio 2, abrindo-a, isto é, reinstaurando ali a informação a ser transmitida.
É de uma engenhosidade fantástica o modo como se dá essa
transmissão. Através dela, o sinal elétrico chega ao final do axômo,
transformando-se em sinal químico (por meio de um representante que
é o neurotransmissor-carregador). Pode, assim, atingir o dendrito do
neurônio seguinte, onde ocorre novamente a transformação do sinal químico
em sinal elétrico, e a informação segue adiante.
SINAPSE

Suponha que um neurônio tenha de processar as informações


"pêlos", "patas" e "listas". Vimos que cada uma dessas três informa-
ções pode caminhar por um dendrito, reunindo-se no corpo celular,
onde, após deliberação, possibilitam um consenso: "tigre" (todos esses
elementos, sempre codificados sob a forma de potenciais locais e, em
seguida, séries de potenciais de ação - código de barras). Esse consen-
so é, então, enviado pelo axônio até o próximo neurônio.
Considere que o potencial de ação que carrega a informação "ti-
gre" chegue ao final do axônio do neurônio 1. E preciso que essa infor-
mação seja transferida para o outro neurônio, onde talvez se processe a
questão: "tigre malvado ou desdentado?" Como é que o tigre, no
neurônio 1, representado por uma série de potenciais de ação, vai pas-
sar pela sinapse?
Quando esse código de barras chega ao final do neurônio 1, en-
contra os neurotransmissores (simbolizados por uma bolinha na Figura
8). Essa substância sai do neurônio 1, caminha através da sinapse e se
liga a um receptor no neurônio 2. O receptor funciona como uma
fechadura e o neurotransmissor, como uma chave. Colocada a chave na
fechadura, abrem-se os canais na parede do neurônio 2, permitindo
que as cargas negativas saiam e as positivas entrem. Dessa forma ocorre
no dendrito o fenômeno local (potencial local) que propicia a formação
de uma corrente elétrica que se propaga por ele. (Fig. 9)
canal na parede do neurônio

SINAPSE ---- ++++++++++

\r.
+±+,
axônio do neurônio 1

-;
- 'dendrikdÓ h&,r
corrente
nntpneial d (potencial local)
neurotransmissor / chave (fechadura)
químico
Fig.9 — Ação do neurotransmissor (chave) no receptor (fechadura), abrindo os
canais de membrana e gerando a passagem de cargas elétricas que criam o
potencial local.
A seqüência é a seguinte: a informação - "tigre", no nosso
exemplo — chega ao final do neurônio 1 como impulso elétrico. Contrata
um mensageiro químico (neurotransmissor) que sai do neurônio 1, passa
pelo intervalo entre os dois (sinapse) e liga-se a um receptor (fechadura)
O SÍTIO DA MENTE

no neurônio 2 (normalmente em um de seus dendritos). A ligação gera


a abertura dos canais na parede do neurônio 2, o que, como vimos
antes, provoca a troca de cargas positivas de fora por cargas negativas
de dentro. O processo propicia a formação de uma corrente elétrica que
vai viajar pelo dendrito, voltando a carregar a informação "tigre". Esta,
por sua vez, caminha pelo dendrito até o corpo do neurônio 2, onde
encontra duas outras informações, vindas de dois outros dendritos:
"malvado" ou "desdentado". (Lembre-se de que o processo decisório e
o tipo de reunião podem ser de variados tipos.) As três informações -
"tigre", "malvado" e "desdentado" - sofrem a transformação de uma
pergunta: tigre malvado ou tigre desdentado? Deliberando-se se tigre
malvado ou desdentado, chega-se à conclusão de que é tigre malvado.'
Essa informação trafega sob a forma de um impulso elétrico (potencial
de ação) pelo axômo do neurônio 2. (Fig. 10) -

rrvad

Fig.10 - Processamento hipotético de informação entre dois neurônios, sendo


que, o neurônio 1 recebe três 'propriedades" de tigres, processa-as, chegando à
conclusão de que se trata de um tigre. Conecta-se, então, com o neurônio 2 através
de um dendrito. O neurônio 2, por sua vez, recebe outras duas informações:
malvado e desdentado. A operação feita pelo neurônio 2 é de transformar tigre
em duas sentenças: tigre malvado ou tigre desdentado? O processamento do
neurônio 1 é uma conjunção de propriedades; o do 2, é uma disjunção (aplicação
do conectivo "ou '9 sobre sentenças.

RECEPTORES

Quando um impulso elétrico (no nosso caso, "tigre") chega ao


final do axônio do neurônio 1, recruta uma determinada quantidade (o
que é crítico) de neurotransmissores. Estes ligam-se a vários receptores
no dendrito do neurônio 2. Depois de gerarem ali a corrente elétrica
que voltará a carregar adiante a informação, desligam-se dos receptores
e podem seguir duas rotas:
SINAPSE

N
FAZq
neurônio 1 neurônio 2

o O0<EJ _
J# 2>
re

1. Liberação do neurotransmissor (mensaRem química).


2. Ligação com o receptor no neurônio 2
3. Desligamento e recaptura pelo neurônio 1 para reaproveitamento.
4. Destruição do neurotransmissor por uma enzima.

Fig.11 - Seqüência de eventos intracelulares no neurônio 2 após ativação pelo


neurotransmissor vindo do neurônio 1.

a) voltam para o neurônio 1 para serem reaproveitados


(recaptura) numa próxima comunicação;
b) são destruídos por uma enzima. (Fig. 11).
Esse processo, que garante que a informação não fique eterna-
mente sendo transmitida e que libera a via para novas informações,
está na base de uma série de disfunções mentais.

MENSAGEIROS

Quando o neurotransmissor se liga ao receptor 2 do neurônio 2,


coloca em marcha uma série de processos dentro do neurônio. Ativam-
se mensageiros que executarão dois tipos de trabalhos:
1) ordenar que se abram os canais (passo 4, Fig. 12) para que
ocorra a troca de cargas (condição para que surja a corrente);
2) ir até o núcleo celular, onde estão os genes (estruturas celulares
que comandam toda a máquina de produção de proteínas do corpo),
ativando uma parte deles para formar novos receptores da parede do
neurônio (Fig. 12).
o sfTlo DA MENTE

+_ +++++

canal

M meu,
neuronio 1

ensag
neurotransmissor.4
neurônio 2

1. Liberação de mensageiro-neurotransmissorpelo neurônio 1.


2. Ligação com o receptor naparede do neuronio 2.
3. Ativação de "mensageiro" dentro do neurônio 2.
4. Abertura pelo mensageiro de canais na parede do neurônio para que as
cargas positivas entrem e as negativas saiam.
5. Influência do mensageiro sobre os genes do neurônio 2, particularmente
aqueles que regulam a construção de receptores de parede.
6. Influência do gene sobre a forma e a quantidade de receptores da parede
do neurônio.

Fig.12 Seqüência de eventos intracelulares no neurônio 2 após a ativação


-

pelo neurotransmissor do neurônio 1.

Tem-se a impressão de que os genes, uma vez determinados quan-


do da fecundação do óvulo pelo espermatozóide, estão definitivamen-
te gravados, são fixos e imutáveis. Não é bem verdade. Nem todo con-
junto de ordens que está nos genes é utilizado. Há épocas em que uma
parte do gene funciona e épocas em que outra parte assume a função.
Assim, é possível, ao longo da vida, ativar pedaços de um gene e dei-
xar outros pedaços silenciosos. E é exatamente isso o que acontece pela
influência do mensageiro dentro do neurônio.
Os receptores da parede do neurônio, que são as fechaduras em
que os neurotransmissores se encaixam, estão constantemente sendo
trocados por novos. Tanto a quantidade desses receptores como seu
formato estão sujeitos a ordens dos genes de cada neurônio, e essas
ordens dependem, entre outras coisas, do tipo de influência exercida
sobre eles pelo mensageiro.
Dissemos que o neurotransmissor se encaixa no receptor como
uma chave numa fechadura. Pela influência do mensageiro de dentro
do neurônio, pode-se modificar um pouco a forma do receptor para
SINAPSE

que o encaixe se dê de maneira melhor. Isto é, pode-se mudar o formato


das fechaduras nas quais se darão futuras ligações. Pode-se também
mudar a quantidade de fechaduras (receptores). Mudando-se a quanti-
dade, haverá menos ou mais locais de ligação para os neurotrans-
missores que vêm do neurônio 1.
Vamos voltar um pouco atrás e lembrar que a corrente elétrica
que sinaliza, ou carrega, alguma informação no dendrito depende da
posição, do instante e da intensidade. Assim, para que a informação
"tigre" possa ser transmitida corretamente do neurônio 1 para o neurô-
nio 2, é necessária uma perfeita orquestração de vários fenômenos:
a) "tigre" é o resultado de uma reunião de três correntes no neu-
rônio 1 que representam em cada dendrito "pêlos", "patas" e "listas";
b) após deliberar-se que pêlos, patas e listas constituem um tigre
(o que ocorre no corpo celular do neurônio 1), passa-se pela porta (li-
miar) e forma-se uma série de impulsos elétricos (todos de igual tama-
nho, mas com intervalo variável— código de barras) chamada potencial
de ação;
c) o potencial de ação (corrente no axônio) viaja pelo axônio do
neurônio 1 até chegar ao final, onde há um buraco (sinapse) separando-
o do neurônio 2;
d) o potencial de ação, que carrega a informação "tigre", deve
encontrar um jeito de selecionar o número certo de substâncias (neuro-
transmissores) para que estas saiam do neurônio 1, trafeguem pela si-
napse e se liguem a receptores no neurônio 2;
e) os receptores do neurônio 2 devem ser capazes de abrir canais
na parede em quantidade e velocidade tais que a troca de cargas gerada
estabeleça uma corrente elétrica que preserve as características da
corrente no neurônio 1, que carrega a informação "tigre".
Vê-se que não é qualquer corrente, de qualquer intensidade, de
qualquer forma e em qualquer instante que fará trafegar a informação
"tigre". Por quê? Porque no cérebro não há lugar para que um neurônio
se dedique somente à palavra tigre. Se fosse assim, bastaria estimular o
neurônio com qualquer corrente que ele mandaria a informação tigre
em frente.
Se houver uma variação na forma das fechaduras (receptores), o
encaixe será melhor ou pior e, portanto, a corrente será diferente. O
mesmo acontecerá se variar a quantidade de receptores. Um número
determinado de neurotransmissores recrutados pelo potencial de ação
do neurônio 1, que representa "tigre", terá maior ou menor quantidade de
locais para se ligar. Isso também mudará a corrente gerada pela abertura
O SÍTIO DA MENTE

dos canais e, conseqüentemente, a informação "tigre" poderá ser: a)


reforçada ou enfraquecida; b) fiel ou adulterada.
Os eventos que ocorrem no neurônio 2 sinalizam para que, atra-
vés da influência nos genes do neurônio 2 (responsáveis pela formação
de novos receptores), aconteça o seguinte no futuro:
se os genes forem influenciados de forma a aumentar o núme-
ro de receptores e melhorar sua forma (fechadura), a informação passará
cada vez de maneira mais forte e precisa naquela sinapse;
b) se os genes, por outro lado, diminuírem a quantidade de recepto-
res e piorarem sua forma de encaixe nos neurotransmissores, a informa-
ção passará cada vez mais fraca e menos precisa naquela sinapse.
O aprendizado no ser humano se dá graças à modificação nos
receptores (forma e quantidade), possibilitando o reforço de algumas
conexões entre neurônios. À medida que passam informações por uma
sinapse, vão-se modificando o número de receptores e sua afinidade
(forma da fechadura). Aquela informação fica cada vez mais forte e
precisa ali.
Imagine que uma sinapse de uma criança coordene o evento 2+
2 =4. E outra coordene 2 +2 =5. Toda vez que houver sucesso no 2+
2 =4, a sinapse que executa essa conjunção se reforçará e a que coorde-
na 2 +2 = 5 se enfraquecerá. Esse reforço de uma sinapse e enfraqiLeci-
mento de outra se dará através da influência do mensageiro sobre os
genes que:
a) aumentarão a afinidade e a quantidade de receptores na sinapse
responsável pelo 4;
b) diminuirão a quantidade e a afinidade dos receptores na sinapse
responsável pelo 5.
Esse modo de operação, isto é, o reforço de uma ligação entre
dois neurônios (sinapse) através da alteração do funcionamento do gene
que regula a forma e a quantidade de receptores na sinapse, é respon-
sável pelos condicionamentos, pelas patologias psíquicas, pelas aver-
sões, pelas fobias, por esquecimentos de fatos traumáticos, etc. O me-
canismo é mais complicado, mas o princípio está suficientemente cal-
cado na possibilidade de mudança da força que uma sinapse tem ao
ligar um neurônio a outro. A base do aprendizado está aí.
Voltaremos a isso posteriormente, quando tivermos outros ele-
mentos para entender o processo. Por ora, é interessante saber que a
sinapse e o mensageiro são pontos cruciais na intervenção medica-
mentosa sobre as disfunções mentais. Como grande parte das pessoas
continua tentando tratar distúrbios cérebro-mentais apenas com pala-
SiNAPSE

vras, examinemos a seguir a base da desregulagem nas sinapses e os


modos de intervir sobre elas.

SINA PSES ALTERADAS E TRATAMENTO DAS DISFUNÇÕES MENTAIS

A sinapse, meio de comunicação entre os neurônios, representa a


um só tempo a conexão que possibilita o diálogo neuronal e a base da
patologia cerebral e mental. Se para o leitor é interessante saber que a
sije desarranjada pode estar por trás de uma disfunção como o
tremor no mal de Parkinson, é urgente entender que também pode
estar por trás do choro de uma pessoa deprimida que precisa de remédio,
e não de conselhos.'
A conexão entre dois neurônios através da sinapse é um mecanis-
mo extremamente fino. Qualquer desarranjo na quantidade de
neurotransmissores e na forma e quantidade de receptores pode levar
a quadros cerebrais e mentais. Cerebrais porque a sinapse é unidade de
cérebros. Mentais porque, dependendo de como os neurônios dialo-
gam, surgem mentes a partir do processamento cerebral. Portanto, nada
mais natural que, se as sinapses estão descalibradas, apareçam sinto-
mas neurológicos e também psiquiátricos.
Imagine que a ligação do neurônio 1 com o neurônio 2 através da
sinapse deve passar a informação "tigre". Quando o impulso elétrico
chega ao axônio, recruta neurotrarismissores que vão atravessar a sinapse
e se ligar a receptores. Esses receptores, dependendo da ligação, vão
recrutar mensageiros, já dentro do neurônio 2, que ordenarão a abertura
de canais na parede do neurônio para que ocorra a entrada de cargas
positivas e a saída de cargas negativas. Essa inversão das cargas gerará
uma corrente elétrica que deverá ser idêntica à do neurônio 1, de maneira
que mande adiante a informação "tigre".
E preciso que a passagem do estímulo elétrico no neurônio 1,
sua representação numa determinada quantidade de neurotransmis-
sores e sua posterior conversão em corrente no neurônio 2 guardem
relação. Se ocorrer qualquer problema, a informação tigre poderá
chegar adulterada ao neurônio 2 (por exemplo, imagine que chegue
tigro, trigo, tigr ... ). Neste caso, o que acontecerá? A comunicação
será fonte de decisões erradas, ou insuficientes, ou enganadoras,
etc. Claro que estes processos são mais complicados, mas de forma
geral podemos traduzir assim todo tipo de problema que pode ocor-
rer no neurônio e na sinapse.3
O SÍTIO DA MENTE

Alterações específicas de passagem de informação na sinapse

Imagine como hipótese que tenhamos um neurônio 1 e a


informação "tigre" sendo codificada. Suponha que para transmiti-Ia sejam
necessárias três "bolinhas" de neurotransmissor e dois receptores no
neurônio 2. "Tigre" passará do neurônio 1 para o neurônio 2 desde que
haja perfeita orquestração desses eventos. A partir dessa hipótese,
vejamos esquematicamente como poderíamos classificar certos
problemas que costumam implicar patologias psiquiátricas. O exemplo
é arbitrário, e também a classificação seguinte. Visa apenas a auxiliar o
leitor para que entenda os grandes mecanismos de que se lança mão
para medicar distúrbios mentais, atuando diretamente na sinapse, no
neurotransmissor, no receptor, no mensageiro e no gene.

1. Alteração na forma do receptor

Descriçãa neste caso, haveria na ligação entre os neurônios 1 e 2


responsáveis pela transmissão da informação "tigre", três vesículas de
neurotransmissor e dois receptores de forma alterada (o número está normal
em ambos, porém a "fechadura" é deficiente).
Conseqüência- normalmente a informação sofrerá deturpação ao
passar pela sinapse.
Solução de curtopraza se o receptor é uma fechadura que dificulta
o encaixe da chave (neurotransmissor), deve-se aumentar o tempo de
permanência da chave na fechadura para possibilitar a abertura.
Solução de médio prazo: obtendo-se a abertura, com o tempo, o
mensageiro de dentro do neurônio 2 se encarregará de induzir a forma-
ção de receptores com a forma antiga.
Situações mais fit'qüentes em que ocoim depressões, ansiedade, pânico,
fobias.
Tratamento: medicamentos que aumentam o tempo de ligação do
neurotransmissor ao receptor - antidepressivos.
Esses antidepressivos normalmente agem de duas maneiras: ou
bloqueiam a recaptura de neurotransmissor pelo neurônio 1 (após ter
sido utilizado) o que aumenta seu tempo de permanência na sinapse
(passo 3 da Figura 11); ou bloqueiam a enzima que destrói o
neurotransmissor, aumentando também sua permanência (passo 4 da
Figura 11).
SINAPSE

2. Alteração na quantidade de receptores

Lscnrçãa neste caso, há um receptor em lugar de dois (o número de


vesículas está normal).
Conseqüênci,7 a informação será deturpada na passagem.
Solução de curto praza aumentar a permanência do neurotrans-
missor na sinapse porque, se há menos fechaduras, deve-se dar mais
tempo para as chaves agirem.
Solução de médio praza se for possível manter a passagem de in-
formação, os mensageiros induzirão o gene a produzir de volta a quan-
tidade certa de receptores.
Situaçõesmaisfiqüentesem que ocoiw envelhecimento.
Tratamento:antidepressivos.

3. Diminuição na quantidade de neurotransmissores

Descrição: neste caso, há duas vesículas de neurotransmissor em


lugar de três; os receptores estão em número e forma adequados.
Conseqüência: passagem alterada de informação
Solução de curto prazo: aumentar o tempo de permanência das
vesículas na sinapse para compensar o menor número de chaves.
Solução de médio praza esperar que, pela passagem normal, o
neurônio 1 volte a produzir a quantidade correta de neurotransmisso-
res (às vezes, o problema pode ser até nutricional).
Situaçõesmaisfiqüentes em que ocorre talvez em certos distúrbios
de personalidade, o que ainda não está comprovado.
Tratamenta antidepressivos.

4. Aumento na quantidade de neurotransmissores

Descrição: neste caso, há quatro vesículas de neurotransmissor e


forma normal dos receptores.
Conseqüência: deturpaçãona passagem da informação por excita-
ção excessiva (há mais vesículas do que devia haver).
Solução de curto praza diminuir a quantidade de fechaduras dis-
poníveis.
Solução demdiopraza esperar que o neurônio 1 volte a produzir o
número certo de vesículas ou remover a causa externa que está por trás
da superprodução.
Situações mais freqüentes psicoses, agressividade e impulsividade.
o síTio DA MENTE

Tratamenta neurolépticos.
O neuroléptico é uma droga que atua como um falso neurotrans-
missor: ocupa um receptor, impedindo que este seja ocupado pelo
neurotransmissor legítimo; porém, não ativa nenhum mensageiro no
neurônio 2. Portanto, não induz a qualquer alteração na corrente ou nos
genes.

S. Ausência de neurotransmissor especifico

Descrição: neste caso, há ausência de neurotransmissor adequado


para aquele receptor.
Solução de curto praza colocar algum neurotransmissor artificial
que se ligue aos receptores e promova alguma alteração desejada.
Solução demédioprazo:aguardarque a situação que gerou o pro-
blema seja resolvida para que não se tenha de lançar mão do expedien-
te acima.
Situações maisbt'qüentes em quewiw ansiedades (quando do uso de
calmantes), algumas insônias, casos de excitação espontânea dos neurônios
em que se quer usar uma droga que diminua a corrente nos neurônios (por
fechamento de canais de troca de cargas na parede).
Tratamento. calmantes (ansioliticos).
Muitos dos calmantes - particularmente os benzodiazepínicos - têm
receptores específicos nos neurônios. Tanto as drogas para a dor quanto os
ansioliticos se dirigem a "fechaduras" já desenhadas de antemão para eles.
Ligando-se nessas fechaduras, promovem diferentes modulações de corrente
elétrica, o que acaba por levar ao efeito desejado. Ao contrário do que ingenu-
amente se pudesse pensar, esse fato não afirma que a natureza selecionou
previamente fechaduras para uma droga como um calmante comercial. Indica,
outrossim, que deve haver substâncias internas que são muito semelhantes
estruturalmente a essas "chaves" artificiais. No caso de uma disfunção, essas
substâncias estariam inoperantes; porém, os receptores-fechaduras para elas
estariam ali

6. Alteração no mensageiro do neurônio 2

Descrição: neste caso, há quantidade normal de neurotransmissores


e quantidade e forma normais de receptores. Porém, o mensageiro no
neurônio 2 está alterado.
Conseqüências embora haja neurotransmissores e receptores emquan-
tidade adequada, a ligação torna-se deficiente porque as alterações que o
SINAPSE

processo deveria provocar no neurônio 2 ficam prejudicadas pelo mensa-


geiro defeituoso.
Solução de curtopraza usar alguma droga que interfira no mecanis-
mo de ação do mensageiro.
Solução demédioprazo: esperar que a passagem correta recoloque os
processos de ação do mensageiro no lugar.
Situaçõesmais ~entes em queocoiw algumas formas de depressão
e mania.
Tratainento:sais de litio.
O lítio é uma substância que pode ser indicada em alguns casos
porque age no processo de ação do mensageiro no neurônio 2.

SÍNTESE

Como há uma descontinuidade física entre o axônio de um neurônio


e o dendrito do próximo (sinapse), para que se estabeleça a comunicação
entre ambos, a informação sob a forma de corrente elétrica, potencial de
-

ação (no primeiro) e potencial local (no segundo) deve sofrer uma tradu-
-

ção química, ultrapassando esse intervalo. Contratam-se para isso mensa-


geiros químicos (neurotransmissores) que, saindo do neurônio 1, carre-
gam a mensagem para o neurônio 2. Ali, conectam-se a receptores num
mecanismo de encaixe do tipo chave-fechadura. Esse encaixe induz a aber-
tura de canais de parede no neurônio 2, por onde se dá a troca de cargas
elétricas, gerando a corrente que recria a informação do neurônio 1.
O processo de passagem pela sinapse envolve a transformação de
informação sob a forma de corrente (potencial de ação) em informação sob
a forma de mensageiro químico (neurotransmissor). A fidelidade da trans-
missão depende da ligação do neurotransmissor com os receptores do
neurônio seguinte. Quanto melhor a conexão e maior o número de ele-
mentos, tanto mais fiel será a transmissão da mensagem.
Feita a ligação do neurotransmissor com o receptor, inicia-se um
processo dentro do neurônio 2. Substâncias internas (mensageiros) vão
agora operar a abertura de canais para a troca de íons e geração de corren-
te (potencial local), e também influenciar partes dos genes daquele neurônio,
responsáveis pela produção (forma e quantidade) de receptores. Com isso,
podem-se obter, no futuro, mudanças na conexão de modo que os encai-
xes fiquem cada vez mais perfeitos. Essa é uma das bases do aprendizado
e de uma série de reforços comportamentais. Nesses dois níveis - rec ep-
tor siná iPtico e mpgiro esççi ~ia pontos cruciais onde atuam
-

drogas que tratam as disfunções mentais.


O SITIO DA MENTE

4-,

2-1-9

Sinapse real mostrada através de microscopia eletrônica.


Note as vesículas de neurotransmjssor entre um
neurônio e outro. A foto mostra uma estrutura sináptica
natural, mais ou menos 50.000 vezes menor que o que
se está vendo (ip = 0,001 milímetro).
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

Capítulo 4

DEPARTAMENTOS CONCRETOS
E VIRTUAIS

uando se procura compreender o modo como um cérebro


funciona - e esse funcionamento propicia o aparecimento da mente -,
alguns problemas entram em jogo. Primeiramente, devemos identificar
as unidades fundamentais nesse processamento - os tijolos, o cimento,
o ferro e os vidros. Vimos no capítulo anterior que os q u atro elementos
fundamentais para entender um cérebro s ã o o neurônio, a sinapp
neurotransmissor e o mensageiro. Por meio da manipulação de impul-
sos elétricos, o cérebro pode traduzir o discurso sobre pessoas e coisas,
processando informação complexa o bastante para gerar a mente.
Através de complicada operação podem-se ter, a um só tempo,
sinais elétricos no plano cerebral e mente no piano introspectivo. Essa
nenfe cheiã de ideais. remorsos, imagens e lembrancas riste aaceitar
as enes eIPtrI ccer ,rsim bcJIos mentai&
Faces de uma mesma moeda.

DEPARTAMENTOS VIRTUAIS E COMISSÕES


QUE EXAMINAM SITUAÇÕES AMBÍGUAS

As operações complexas dependem de um cérebro que, depois


de processar cada informação em seu devido lugar, aos poucos vai
agrupando-as. O modo de processamento depende dos neurônios, que
traduzem informações em correntes elétricas, integrando-as em pro-
cessos de decisão e mandando o produto em frente. E o que chamei
anteriormente de burocracia saudável: quanto mais complicado o
raciocínio entre a entrada e a saída do "documento". maior n núm e ro

Um dos pontos que merece atenção ao se lidar com a idéia de


várias seções é que se tem de dividir os ambientes de uma repartição
pública para que se saiba para onde deve ir o documento a cada instante.
O SÍTIO DA MENTE

Sabendo-se que em cada seção o modo de operação será pareci-


do - avaliação, julgamento, despacho -, deve-se ter um outro modo de
dividir seções, de maneira a melhorar a competência ao manipular a
informação.
Suponha que em uma repartição pública todos fizessem a mesma
coisa em um só ambiente. Possivelmente se perderia especialização e
aprofundamento. Se uma seção se dedica a avaliar o custo de um projeto,
é preciso colocar ali máquinas adequadas e livros especializados e dar
treinamento específico ao pessoal. Isso permite ganhar eficiência.
Numa empresa não é qualquer pedido, compra ou questão que
vai direto para a mesa do presidente. Existe uma hierarquia para reco-
nhecer a informação que está entrando e encaminhá-la ao departamen-
to correto. Cuida dela primeiro um vendedor, que a repassa para um
supervisor e assim sucessivamente até chegar ao presidente. Cada nível
de decisão tem um papel bem determinado, devendo responder apenas
sim ou não a uma pergunta técnica muito específica. Com o presidente
não é muito diferente. Embora sua responsabilidade seja maior, ele responde
com base numa série de pareceres do tipo sim ou não, vindos dos diversos
departamentos.
Imagine, agora, uma torre de unidades ou módulos que dá re-
postas sim ou não a perguntas especificas (Fig. 13). Essa torre decisória,
baseada em seqüências de sins e nãos (também chamada de estrutura
de dados, em inteligência artificial e sistemas especialistas), não preten-
de retratar em minúcias o processo de organização de uma empresa,
mas dar idéia de dois processos fundamentais: hierarquia e especializa-
ção (ou modularidade).

sim ou não

FINA

sim ou não 1 1 sim ou não

IDEN TI FICA CÃ O 1 DURABILIDADE 1 1 INFRA-ESTRUTURA

sim ou não ' sim ou não ' P sim ou não

Fig.13 - Estrutura hierárquica e modular de decisões do tipo sim ou não numa


empresa hipotética (também chamada de estrutura de dados em computação).
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

A hierarquia garante instrumentos para dar respostas cada vez


mais complexas, aumentando a responsabilidade nas decisões e, por
vezes, sua amplitude. A especialização faz com que cada módulo trate
de informações específicas, podendo-se confiar muito mais no tipo de
respostas que dá.
Pense agora no capítulo anterior, quando discutíamos o modo de
funcionamento do neurônio. Se cada bloco do diagrama da Figura 13
fosse um neurônio (na verdade, é um conjunto deles), teríamos um
sistema nervoso ou um cérebro organizado dessa forma. Como vimos,
havia o problema das respostas do tipo aberto ou fechado após a deli-
beração no corpo do neurônio e a passagem da decisão para o axônio
sob a forma de -um potencial de ação.
O leitor pode se perguntar: "Mas essa concepção digital, sim ou
não, não havia sido posta de lado pelo exemplo do código de barras -
freqüências do potencial?" Sim, mas por ora vamos continuar trabalhando
com a concepção digital do exemplo acima, como se o neurônio apenas
tomasse decisões do tipo sim ou não.' Mais à frente voltaremos a ela
para mostrar algumas sutilezas que deitarão por terra esse argumento.
Apesar de útil, o processamento digital é apenas uma simplificação do
processamento cerebral, que é basicamente analógico.
Assumindo por ora que temos uma hierarquia e uma especializa-
ção, devemos nos perguntar que problemas podem ocorrer em estru-
turas como essa. Voltemos, assim, à empresa, imaginando que, após
uma complicada operação da qual participaram todos os departamen-
tos, decidiu-se pela compra de cem mil televisores importados do país
X, que encalharam nas prateleiras e deram um prejuízo enorme.
Vários estudos são feitos pelo próprio presidente da empresa
para avaliar onde ocorreu o erro. Todos os itens do processo estão
certos. Os departamentos responderam corretamente a todas as
perguntas. Onde está o problema? Nova pesquisa entre os consumido-
res mostra que houve um boicote aos produtos vindos daquele país
porque ali se emprega mão-de-obra infantil e quase escrava nas linhas
de produção. Os sindicatos de trabalhadores da indústria nacional de
televisores fez uma campanha que conseguiu sensibilizar o público,
convencendo-o de que não se deveriam comprar aqueles aparelhos.
De quem é a culpa, então, pelo encalhe e pelo prejuízo? De nin-
guém e de todos. Porque os fatos estavam nos jornais e alguém poderia
ter levantado a questão antes de se decidir pela compra. Portanto, o
sistema de perguntas muito rígidas e especializadas cometeu o erro de
não fazer certas perguntas e de não dar espaço para que tivessem apare-
O SITIO DA MENTE

cido nuanças ou hesitações nas respostas (caso da resposta do tipo


talvez).
Uma solução possível para o problema seria a criação de novos
departamentos na empresa, como por exemplo um dedicado ao impac-
to ambiental de certos produtos. Os novos departamentos deveriam
dialogar com os níveis da hierarquia antiga, permitindo que as respostas
fossem, em vez de apenas sim ou não, também talvez, acompanhado
de algumas considerações. Mais ainda, deveria haver uma maleabilidade
tal que a decisão pudesse caminhar de baixo para cima, de cima para
baixo e também para os lados. Em suma, alguns ingredientes deveriam
ser adicionados:
a) formação de novos departamentos;
b) possibilidade de respostas do tipo talvez;
c) possibilidade de fluxo de decisão em diversos sentidos.
O custo de instalação de novos departamentos, contudo, tomaria
o processo lento e aumentaria o custo da empresa. A alternativa é,
então, criar uma série de comissões, departamentos virtuais móveis
para atuar em situações especificas, formados por membros de dois ou
mais departamentos já existentes. (Fig. 14)

-
-# ;PRESIDENTE\
talvez
/

•uAP 2J 1
talvez:;;
virtua
o
talvez

iIJ não :

Fig.14 - Fluxo misto de informação e decisão numa estrutura hipotética: digital,


sim ou não, de baixo para cima; analógica, do tpo talvez, nas duas direções.
Agrupam-se, ainda, dois tipos de departamentos: jixos/diitais e móveis-
virtuais-comitês/analógicos.

Uma série de questões devem ser decididas pelo modo antigo e


outras pelo novo, isto é, pelo digital e pelo analógico, respectivamente.
E preciso, pois, conciliar os dois modos. Em algumas situações, deve-
se começar de cima e em outras, de baixo; em algumas, deve-se processar
"sim" ou "não" e, em outras, "talvez". Nos casos de "talvez", podemos
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

imaginar que todas as instâncias passam a ser compartilhadas, como se


o presidente chamasse alguns funcionários de outros departamentos
para opinar conjuntamente. Mais interessante ainda é que, se não se
sabe de antemão se o processamento de informação deve seguir o estilo
antigo ou o novo, convém, para situações especiais (por exemplo, casos
de grande risco), fazer os dois processos seguirem paralelamente e, ao
final, decidir se sim ou não comparando-se o resultado de ambos. Se o
resultado for "talvez", uma nova rodada de departamentos virtuais
poderá ser feita, tentando-se criar perguntas novas que tenham sido
esquecidas ou omitidas antes.
Entendido o exemplo, estamos prontos para transportá-lo para o
cérebro humano, cheio de divisórias anatômicas (departamentos
concretos), e para o lento aparecimento de um departamento virtual
(comitê) chamado mente, baseado não na resposta digital, mas no proces-
samento analógico do "talvez".

A MENTE COMO DEPARTAMENTO VIRTUAL

A mente, num certo sentido, é aquilo que chamamos de departa-


mentos virtuais. Departamentos que, frente a uma determinada questão,
reúnem membros de dois ou mais departamentos concretos da empre-
sa física (cérebro) para formar uma comissão ou um departamento
transitório. Lembre-se de que os departamentos virtuais surgiram como
resposta a dois tipos de pressões na empresa do nosso exemplo:
1) Era preciso criar novos departamentos para cada nova variável
que pudesse influir numa determinada decisão. Mas fazer isso com
departamentos concretos oneraria muito o custo da empresa (e
provavelmente não seria tão eficiente), o que levou à opção de recrutar
membros dos departamentos tradicionais para desempenhar transitoria-
mente funções em departamentos virtuais, comitês, assembléias.
2) Considerando a possibilidade de que o "talvez" espelhava me-
lhor certas condutas, era preciso criar um tipo de estrutura especializa-
da nesse tipo de resposta.
Releia o início do livro e pense no animal diante de um tigre:
fugir? Não, agora o "talvez" permite que se diga "fujo", "luto" ou "ex-
ploro". Aí, é preciso avaliar as coisas numa outra perspectiva que não
simplesmente fugir. Porque a decisão de não fugir envolve uma série
de ponderações, principalmente aquelas que dizem respeito ao risco
que aumenta. É claro que ficar e tentar enfrentar o tigre, para posterior-
mente explorá-lo, é mais arriscado do que fugir. Pelo menos nos
O SÍTIO DA MENTE

primeiros momentos, há elementos de novidade que fazem com


muitos fracassos ocorram nteue se detenha o conhecimento Plem

Voltemos ao exemplo da empresa, tentando entendê-lo à luz do


que vimos no capítulo anterior acerca dos neurônios. Para certos efei-
tos, a empresa antiga - aquela de hierarquia rígida, cuja decisão é
construída de baixo para cima a partir de respostas do tipo "sim" e
"não" - pode ser traduzida por neurônios (ou grupos deles) que de-
sempenham papel digital (lembre-se, é o caso da porta-limiar que deixa
ou não o potencial de ação navegar pelo axônio). No entanto, em certas
situações especiais, é preciso deixar que os neurônios processem de
modo analógico. Isto é, o potencial de ação é sim ou não, mas sua
freqüência (código de barras) introduz nuanças entre o sim e o não. De
modo sucinto, pode-se dizer que este é um modo de deixar que
inúmeros "talvez" estejam contidos entre o sim e o não.
Não se deve pensar que a mente surge à toa. Devido a certas
pressões, é possível, sem custo biológico (a espera de que surjam no-
vas estruturas - departamentos concretos), criar um diálogo entre de-
partamentos, formando transitória e dinamicamente departamentos
virtuais (comitês) ligados a certas necessidades.
Onde ficam esses departamentos virtuais? Em toda parte e em parte
alguma, porque se constituem de elementos da empresa e dos seus de-
partamentos físicos e, ao mesmo tempo, são remanejamentos transitórios
ou, às vezes, permanentes (como um conselho) de seus membros.
A criação de departamentos virtuais é conseqüência do apareci-
mento de problemas novos que requerem soluções igualmente novas.
Problemas novos têm, ainda, uma característica suplementar: não exis-
tem especialistas para eles e, portanto, não teria sentido criar um de-
partamento com especialistas em problemas desconhecidos.
Uma característica que permite que já existam, do ponto de vista
biológico, todas as condições propícias para o surgimento desse tipo de
departamento virtual é o fato de os neurônios, num sentido clássico,
processarem sim ou não, mas, num sentido mais fino, processarem
variadas gamas de talvez (no código de freqüências do potencial de
ação).
A novidade dos problemas e a complexidade já embutida no
código de barras do neurônio permitem que coexistam, lado a lado, a
empresa digital e a analógica, a antiga e a nova, a ortoxa e a heterodoxa.
Pode-se retrucar dizendo que o talvez é um perigo porque insere
ambigüidade no sistema. Toda vez que um departamento responde
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

talvez há uma infinidade de problemas envolvidos. Num certo sentido


isso é verdade, tanto que a forma "sim" ou "não" continua a existir.
Por outro lado, embora mais complicado, o talvez é mais rico. Se forem
criados modos de coexistência do sim ou não e do talvez e seforem

um talvez com experiência. Neste caso, o risco se dilui.


Imagine que o presidente da empresa do nosso exemplo implan-
te um sistema de departamentos virtuais. Como dissemos, pode ser
que, por um tempo, adote os dois tipos de processo para tomar deci-
sões. Porém, depois de vários testes, poderá, por exemplo, definir qual
"equipe" virtual acertou mais vezes. Neste caso, poderá determinar
que essa equipe constitua um departamento quase-concreto (ou virtu-
al permanente). Por avaliação dos acertos históricos, o risco do talvez
acabará por ser eliminado, transformando-se em quase-certeza do tipo
sim ou não.2
Provavelmente foi isso o que ocorreu com uma vasta gama de
departamentos virtuais no decorrer da história humana. Uma série de
modalidades de processamento de "talvez" foram, aos poucos, se in-
corporando às soluções tradicionais e ortodoxas. Embora sem sala ou
divisória - caso da inteligência, por exemplo—, interpenetram todas as
decisões da empresa cérebro-mente.
Entender o processo de lenta reordenação dos departamentos
concretos cerebrais, usando-se para isso uma forma analógica de pro-
cessamento, é trilhar a lenta gênese do que chamamos de proces-
samento mental. Tem base no cérebro, mas não se confunde de manei-
ra física com partes dele, como se fosse uma sala com divisória clara.
Mais que isso, utiliza-se de um estilo analógico de processamento tem-
poral de informação, baseado no talvez, para que se encaminhem
decisões complexas e com alto teor de criatividade.
A mente não surgiu apenas porque o sim/não virou talvez. Sur-
giu também graças a outros elementos: linguagem, acréscimo neuronal,
particularmente nas regiões neocorticais, e formação de sociedades.
Toda vez,contudo, que se procura na empresa concreta cérebropp
det,artamento "mente ou vela sala onde está a memória, o vensamento
ou a

reggmparam eii comitês, criando, jm, base para o surgimento da


O SITIO DA MENTE

DIVISÓRIAS E COMPARTIMENTOS

O cérebro é uma empresa mais ou menos rígida no que diz res-


peito ao processamento de funções básicas. Há departamentos concre-
tos que cuidam da defesa, da respiração, do controle de hormônios,
etc. No entanto, com a evolução, surgiram problemas novos,
imprevisíveis e com uma lógica que requer sutilezas do tipo "talvez".
Não é possível responder sim ou não de maneira linear. As vezes, é
mais ou menos sim, mais ou menos não. Para enfrentar a novidade, a
ambigüidade e a criação, foi preciso recrutar elementos que já estavam
lotados em departamentos concretos de modo que, formando comis-
sões, começassem a forjar a mente.
Nos departamentos concretos há variados tipos de organização
em andares, salas, divisórias. Falar dessa organização, embora interes-
se, pouco diz a respeito da mente. Grande parte dos livros sobre ela
acaba por citar estruturas cerebrais como o lobo frontal, o sistema
límbico, e outras, sem com isso resolver o impasse. A mente está ali?
Não, simplesmente não está em departamento concreto algum. Sig
da dinâmica de recrutamento de funcionáriosdedepartç-
cretos em comitês mais ou menos fixos.
cerebrais assusta e
não esclarece. Por outro lado, um livro que fale da dinâmica de recruta-
mento pode parecer distante do cérebro. Não é. 0 cére ro,i operar a
transformacão do neurônio dieital em analó2ico, do sim ao talvez.
tou uma forma de
em máquinas.
O comitê é uma forma de departamento que possui algumas pecu-
liaridades:
(»ião precisa de local fixo para a reunião;
o seus integrantes não são tão importantes quanto a lógica de
seu recrutamento;
Code se reunir em diferentes pontos de um prédio, inclusive
fora
A falta de local fixo. entre outras suscitou a im-
ue a mente fosse esDírito. Não é estírito. salvo se

nnrcilip tem data e local certos para se reunir. Dizer, porém, que o
sítio da mente é o cérebro não significa confundi-Ia com qualquer um
dos departamentos cerebrais concretos, proclamando sandices do tipo: a
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

mente é o neurônio, ou a sinapse, ou o lobo frontal, ou o córtex


associativo.
A necessidade recruta certos departamentos e membros. A reu-
nião gera soluções. Se as soluções são satisfatórias, no futuro esse con-
junto pode ser chamado novamente. Se começam a aparecer problemas
semelhantes àquele já resolvido por um determinado conjunto, pode-
se fazer com que aqueles elementos se transformem em departamento
virtual permanente - um comitê com certas características que devem
ser preservadas.
Ninguém é insubstituível no departamento virtual (aí está a base
da reabilitação após certas lesões neurológicas). Basta que se encontre a
regra de formação daquela comissão e se convidem pessoas com
características mais ou menos próximas de modo a manter a lógica da
reunião.
O cérebro humano existe há alguns milhares de anos. A mente
humana (pelo menos como a concebemos) talvez há um pouco menos,
tendo surgido lentamente a partir de problemas que se impunham e
para os quais a estratégia de convocar departamentos virtuais mostrou-
se boa? Dos acertos de alguns desses departamentos formaram-se comitês
quase fixos que permanecem operantes até os nossos dias. Esses comitês
são fixos não por estarem situados no 30 ou 40 andar. Nem por recrutarem
o neurônio do córtex colunar ou do sistema límbico. Mas por serem sempre
recrutados para certas funções a partir de uma lógica que ordena neurônio
colunar ou similar, neurônio límbico ou similar. Apesar de muita gente já
ter sido ludibriada pelo similar, a regra sendo clara e o elenco bom, a
substituição não só é adequada como, às vezes, prepara excelentes no-
vidades, além de impedir que o indivíduo, ao envelhecer ou sofrer
certas lesões cerebrais, acabe com os departamentos virtuais.
A história evolutiva da mente é curiosa. Não se precisou esperar
milhões de anos até que uma mutação fizesse surgir um cérebro com
um departamento concreto chamado mente. A lógica de reunião em
comitês, propiciada basicamente pelo caráter analógico do potencial de
ação, possibilitou que a mente já estivesse pronta para começar a
acontecer no cérebro humano. Mais interessante ainda é que, se hou-
vesse um sistema com um departamento concreto do tipo mental, esse
departamento instantaneamente deixaria de ser mente. Mente é, por
natureza, uma regra de convocação e solução— regra dinâmica e código
de convocação -, jamais estrutura estática que possa ser a priori
desenhada para tratar do problema x ou y.
Outra característica indissociável da lógica do departamento vir-
O SÍTIO DA MENTE

tual é a inteligência. A mente humana é considerada sinônimo de sistema


inteligente, capaz de dar soluções novas e criativas a problemas
desconhecidos. Inteligência é resolver algo para que não há ainda so,o
específica. Do contrario, seiionhecimento ou técrii. Quando se
co ocam divisórias e se assinam as carteiras de trabalho de especialistas
em inteligência, eles imediatamente ficam burros porque esses
departamentos devem deliberar com base no sim ou não.
Embora departamentos concretos, lógica digital de tipo sim ou não,
conhecimento e técnica, sejam todos fundamentais para uma série de
funções, não são o elemento nodal de qualificação do que chamamos
mente, pensamento ou inteligência. Qndo se tratasie um tipo peuli-
ardj diçião que envolve novidade, prçndjzo, criatividade, o de-
partamento não pode ter divisó nemçrtixa
jemiierarquia severa nem rumos psácatabelecido,-u_
A natureza preparou o ambiente para que aparecesse esse tipo
de organização virtual. 0 cérebro humano, constituído por neurônios,
sinapses, mensageiros e neurotransmissores, processava, como vimos,
sim ou não (versão usual e digital do potencial de ação), mas já trazia
escondido um código de barras na freqüência dos potenciais de ação
(versão analógica do potencial de ação). O potencial no dendrito era
variável (tanto no formato como na intensidade, o que também lhe
conferia caráter analógico, do tipo talvez, na codificação da informa-
ção), 0 tipo de deliberação que se fazia no corpo do neurônio podia
seguir diferentes tipos, embora o mais freqüente fosse a soma simples,
lembra-se? 0 pai tem 5, a mãe, 3 e o filho, 2. Somando-se, obtêm-se 10.
Mas havia implícitos outros modos de reunião (decidir que norma deve
otimizar uma reunião entre três contendores é matéria de inteligência)
e de decisão diante de 5,3 e 2.0 mensageiro podia variar o formato e a
quantidade de receptores, o que aumentava a conexão e a precisão
entre dois neurônios (aprendizado, memória, hábitos, condicionamen-
tos).
A mente estava pronta para surgir, bastando que o sistema se
organizasse de forma a fazer coexistirem departamentos fixos! concre-
tos e departamentos virtuais. A lógica da reunião nos departamentos
virtuais tomaria emprestada do neurônio, da sinapse, do neurotrans-
missor e do mensageiro uma complexidade que já estava ali, para fa-
zer com que, nas situações triviais, os neurônios fossem funcionários digi-
tais (sim/não) e, nas situações complexas, tomassem assento em ou-
tros departamentos, podendo dizer talvez, justificar, criar e inventar.
A mente não precisava, assim, ser um novo cérebro nem um novo
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

departamento, já que havia uma empresa com malha rica de departa-


mentos, funcionários polivalentes e problemas novos às pencas, capaz
de, aos poucos, fazer coexistirem departamentos concretos e virtuais,
hierarquia rígida e pulverizada, decisão num só sentido e decisão em
todos os sentidos.
O cérebro humano era essa empresa. Num dado momento, o
número de funcionários cresceu de maneira a possibilitar uma transi-
ção de fase entre a antiga empresa (cérebro humano sem mente) e a
nova empresa (cérebro humano com mente). Essa transição pode ter se
dado quando a empresa atingiu dez bilhões de funcionários ou alguns
trilhões de vias de contato entre eles. Aí, como no exemplo da água a 99
graus, um funcionário a mais, uma conexão a mais e... a água evaporou,
a divisória sumiu, surgiram-os departamentos virtuais e as decisões se
tomaram analógicas (a par de continuarem a existir os departamentos
concretos para todas as situações triviais que exigissem grande rapidez
de ação).
A empresa continuou na avenida tal, número tal - no cérebro hu-
mano -, mas agora com dois tipos de processo decisório, o digital e o
analógico, o de departamentos concretos estanques e o de departamentos
virtuais. Ambas são água, são a mesma empresa, são o mesmo cérebro
estático, visível a olho nu. Mas a água liquida não é água vapor, não movi-
menta uma locomotiva. O cérebro mente é água vapor que move a loco-
motiva inteligente. Não tente achá-lo procurando na panela que fervia um
instante atrás: evaporou e está em movimento frenético. -
O leitor pode dizer: "Não, senhor, não evaporou. Agua líquida e
água vapor são milhões de moléculas de água em estados diferentes.
As moléculas sempre estiveram aí. Na água líquida e no vapor."
Claro, o cérebro é um bilhão de neurônios. São eles que estão o
tempo todo ali. As vezes, dizendo sim ou não, despachando nos
departamentos tradicionais, não são mente. As vezes, conversando em
locais virtuais, usando o talvez, são mente inteligente e criadora. Mas
são neurônios sempre. Tenha em mente que a dinâmica de formação
do mental se dá graças a um artifício de processamento dos sinais,
porém, num nível muito baixo, há departamentos concretos que
possibilitam que isso ocorra no ser humano e em nenhum outro animal.
Olhando para o cérebro estático, vê-se uma face da moeda. Lá estão
os departamentos concretos e seus membros. Coloque-o para funcionar e,
na dinâmica neuronal, na profusão das formas elétricas que codificam o
mundo, surgirá, a cada instante de maneira nova, o comitê que dá forma à
inteligência, ao pensamento, à emoção, à vontade e, no final, à consciência.4
O SITIO DA MENTE

MAIS DIVISÕES NOS DEPARTAMENTOS CONCRETOS

Entender a organização da mente é tarefa que implica, em pri-


meiro lugar, identificar os departamentos concretos da empresa cére-
bro. Isto é, conhecer as divisórias e departamentos que realmente estão
localizados no 10 ou no 30 andar. O truque do cérebro humano é que ele
não tem apenas um modo de ser dividido em departamentos concre-
tos, mas muitos.
Que todos os funcionários são neurônios, sabemos. Que a razão
última que faz surgirem os departamentos virtuais é um determinado
padrão de funcionamento do neurônio (analógico e não digital), tam-
bém sabemos. Mas precisamos saber mais sobre os departamentos con-
cretos, sobre os diversos tipos de divisórias que se podem colocar para
que entendamos que combinações virtuais futuras podem aparecer. E
o leitor vai perceber que é nessas combinações que reside outra parcela
da mente. Isto é, os departamentos vão se tomando novas unidades
como se fossem novos tipos de tijolos, cimento, vidro e ferro.
Suponha um alfabeto constituído apenas por 4 letras: A, B, C e D.
Devemos construir seqüências dessas letras duas a duas, sem repeti-
Ias nem inverter sua posição (AB e BA são iguais). AB, CD, AC, BD,
AD e BC são as combinações possíveis.
Agora, imagine um alfabeto com mais elementos: A vermelho, A
amarelo, A azul, A preto, B azul, B preto, C azul e D. Evidentemente, é
possível construir mais coisas. Mas por que chamar de A azul, verme-
lho, amarelo e preto? Porque, embora A possa ser de quatro tipos, de
certa forma continua sendo A.
Uma empresa cérebro, para início de operação, teria somente um
tipo de funcionário, que executaria três funções interessantes. O funcio-
nário é o neurônio e as três funções são a ligação com o outro (a sinapse),
o tipo de mensagem que passa para o outro (escrita sob a forma de
neurotransmissor) e as alterações internas que sofre em função do tempo
(isto é, o papel do mensageiro que vai mudando o perfil de seus
receptores). Esse funcionário, lembre-se, não fala nossa língua, dá
choques. Mas os choques são tão variados e com tantos formatos, fre-
qüências, posições, locais e instantes diferentes que processam
informações. Definitivamente, esses circuitos elétricos manipulam cor-
rentes elétricas, freqüências, intensidades, portas abertas ou fechadas,
etc. A linguagem corrente (essa que estamos usando para nos comunicar
através deste livro) ficará para um pouco mais adiante.
Para todos os efeitos, temos, então, na nossa empresa apenas
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

quatro letras para escrever coisas. Neurônios, sinapses, mensageiros e


neurotransmissores. Que tal colocar algumas divisórias a mais? Cada
neurônio poderá ser de três tipos. Cada sinapse, de três tipos. Cada
neurotransmissor, de quatro tipos. O mensageiro também pode ser
diverso, mas, para o nível deste exemplo, ficará sendo do tipo único.
Então, onde havia A, B, C, D temos agora A (tipo 1,2,3), B (tipo 1,2,3),
C (tipo 1,2,3,4) e D. Percebe-se que, além da riqueza de codificação do
neurônio e da sinapse, há ainda uma fonte suplementar de codificação.
Para certos fins, consideramos o fato de ser A op-13. Para outros,
consideramos Ai, A2, A3 ou A4.
Vejamos, agora, os diversos modos d4éfinir os elementos fun-
damentais do cérebro humano: -
1) neurônios: sensoriais, integradores, motores;
2) sinapses: excitatónas, inibitórias e moduladoras;
3) neurotransmissores: dopamina, serotonina, aceticolina, nor-
adrenalina;
4) mensageiros.
Para dividir o cérebro, podemos usar uma divisória única, dizen-
do que é constituído de células que codificam informação: os neurônios.
Numa classificação mais detalhada, nomeamos quatro departamentos:
neurônios, sinapses, neurotransmissores e mensageiros. Dentro de cada
departamento há funcionários distintos. No departamento sinapse, há
três; no departamento neurotransmissor, quatro, e assim por diante.
De maneira geral, essa é a lógica concreta sobre a qual a codificação
analógica pode se debruçar durante o recrutamento dos departamen-
tos virtuais.
Há outras divisões que podem interessar, tais como os lobos ce-
rebrais, o sistema límbico, etc. Estas, no entanto, contam apenas algo
sobre o cérebro, pouco sobre a mente e mais assustam do que ensinam
os que desejam somente entender como é possível fazer surgir mente a
partir de um cérebro.

OS GRANDES DEPARTAMENTOS CEREBRAIS

Grupos de neurônios formam módulos concretos mais ou menos


especializados em certas funções. Há também circuitos que privilegiam
certos neurotrarismissores. E como se houvesse duas maneiras de dividir
os departamentos concretos do cérebro: grupos de neurônios formando
estruturas visíveis a olho nu; sinapses e neurotransmissores criando outros
departamentos, chamados circuitos, especializados em certas funções.
O SÍTIO DA MENTE

De forma simplificada, o sistema nervoso humano é constituído


por medula, ponte e cerebelo, mesencéfalo, diencéfalo e hemisférios
cerebrais (Fig. 15). Para o nosso propósito, bastaria saber que os hemis-
férios cerebrais se dividem em córtex cerebral (com os respectivos lobos,
frontal, parietal, occipital e temporal), gânglios da base, hipocampo e
amígdala (estes últimos, importantes para o processamento de emoções).
No diencéfaio situa-se o tálamo, um dos grandes relés (filtros) de
informação que chega ao córtex e estrutura, como veremos adiante,
onde parecem ocorrer as sincronizações vitais para o surgimento da
consciência e da atenção.
A medula é uma das grandes vias (juntamente com algumas outras
que vão direto ao cérebro) que trazem informação do corpo e de parte
dos sentidos (olfato, gustação, dor, tato, visão, audição) e mandam in-
formação para os músculos (responsáveis pela fala, pela locomoção) e
para os órgãos. Assim, há controle do sistema sobre o músculo da perna,
o que permite que saiamos correndo após uma ordem do cérebro, e
também sobre a produção de hormônios, ou sobre o funcionamento
intestinal, etc.

lobo frontal %j*1

lobo

diencéfa lq,
(tálamo)

cerebelo

medula

Fig.15 - Grandes "departamentos" cerebrais:


divisão macroscópica.
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

Da medula passamos ao bulbo e à ponte, que têm como função


principal o controle da respiração e do ritmo cardíaco.
O cerebelo é uma estrutura que controla basicamente a coordena-
ção dos movimentos automáticos (por exemplo, equilibrar-se num muro),
o que também inclui a parte automática, não-consciente, da fala, do
pensamento, etc.
As estruturas importantes seguintes constituem o sistema limbico,
formado por outros tantos módulos responsáveis pelas emoções e afetos.
No córtex cerebral, onde encontramos a divisão em lobos, estão
as funções mais ligadas ao pensamento e à inteligência. O lobo frontal,
no ser humano, tem um desenvolvimento bem pronunciado, o que pa-
rece estar ligado à sua capacidade de gerar planos, metas e novidades.
Cada sentido tem uma área de recepção no córtex. Ali processam-se
decodificações e classificações. A informação vai, então, para as áreas
associativas, sofre a confrontação com conteúdos emocionais ligados a
ela e, finalmente, passa para as áreas motoras ligadas à coordenação
dos movimentos.
Em linhas gerais, o que se pode falar de divisórias mais ou menos
fixas (no sentido de grupos especializados de neurônios) está retra-
tado acima. Acrescentemos os circuitos que resultam da combinação
de tipos de neurônios, sinapses e neurotransmissores e teremos a ma-
lha de departamentos concretos. O resto será departamento virtual e
processamento analógico que recruta diferentes módulos e funcionários.

A INTEGRAÇÃO DE DEPARTAMENTOS CONCRETOS


E O LENTO SURGIMENTO DA MENTE

A mente humana surge de um cérebro constituído por neurônios


e por ligações entre eles. Onde está a mente? Está no cérebro, mas é um
conjunto de funções gZie, bem entendido, pode ser replicado em
máauinas e em tantos meios de suoorte auantos forem capazes de
a iogica cie recrutamento ç conexao ae elementos. tn
estão a consciência, a vontade, o pensamento, a emoção, a
o aprendizado, a imagem, a
estão essas funções no cérebro? A medida que certas tarefas se tomam
mais complexas, vão sumindo os departamentos delimitados por
divisórias e surgindo comitês ou departamentos virtuais em seu lugar.
Se uma pessoa pergunta sobre a visão de um objeto, responde-se
que a impressão visual vinda do meio externo sai da retina, dirige-se
às áreas visuais no córtex occipital - onde são feitas as primeiras
O SÍTIO DA MENTE

decodificações (claro/escuro, perto/longe, rugoso/liso)' - e segue


para áreas associativas que lentamente constituem um objeto pleno,
consciente ou não.
Quando alguém diz estar vendo uma caneta diante de si, sabe-
mos que a imagem da caneta saiu da retina, foi para o lobo occipital e
dali trafegou por uma série de circuitos (diferentes departamentos) até
se constituir na consciência de que se está vendo uma caneta. Não se
pode fazer um departamento para a visão, colocando-se divisórias em
todas as áreas envolvidas entre a entrada do estímulo visual e a
consciência visual do objeto. A medida que a informação chega às áreas
associativas, os elementos processantes vão se sobrepondo, o que signi-
fica dizer que ocorre virtualização do módulo antes concreto.
Imagine que se queira fazer um departamento para a visão e outro
para o olfato, com divisórias fixas tanto para a seqüência visual como
para a seqüência olfativa (do estímulo de um cheiro à consciência
daquele cheiro). Nas áreas de associação, os dois podem se cruzar.
Apenas as seqüências iniciais de um processo de percepção seguem
caminhos com divisórias mais claras (isto é, com departamentos mais
concretos e com processamento digital). Um mesmo grupo de neurônios
(ou um mesmo funcionário, no exemplo da empresa) pode ser usado
em duas funções diferentes.
Se isso ocorre com a visão e o olfato, o que dizer, então, do pen-
samento, função que não tem répresentante inicial nos departamentos
concretos sensoriais? Por isso, o pensamento é tão vital na caracteriza-
ção da mente, tendendo a ser virtual por natureza.
Pense numa conta de 2 + 2 chegando ao resultado 4. Há uma
operação mental em curso. Não tente colocar divisórias claras tais que
as somas fiquem num departamento e as subtrações em outro. Cálculos
terão departamentos virtuais mais ou menos comuns, superpondo-se,
às vezes, com áreas de processamento sensorial. Parece ser isso o que
subjaz à descrição de alguns gênios, como Mozart, que relatava "ver a
música".
Para os estágios iniciais de processamento de informação no cé-
rebro, há uma certa compartimentalização, que vai se perdendo à medida
que progridem a complexidade e a associação intermódulos. Quanto
mais próximas da consciência, mais se embaralham as unidades
processantes recrutadas em comitê. Após um processamento inicial em
departamentos mais específicos, tende-se a resolver qualquer questão
em departamento virtual.
Imagine uma informação visual e um cálculo. Se nas primeiras
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

etapas de processamento a região do cérebro é mais ou menos específi-


ca e exclusiva, com o tempo (e são apenas alguns milésimos de segun-
do) essa informação visual acaba sendo tratada em áreas que se
superpõem. Do lobo occipital viaja para regiões subcorticais e daí pa-
ra certas áreas do córtex. Também o cálculo seguiria percurso parecido,
indo parar no córtex associativo. Ali acaba por se reunira maior parte
das comissões. Essa última etapa parece estar intimamente ligada às
habilidades mais profundas do ser humano: raciocínio, pensamento,
reflexão e consciência crítica. Porém, como todas as informações passam
pelo sistema límbico, onde sofrem uma espécie de tratamento emocional,
o processamento final acaba por variar de pessoa para pessoa em função
de um colorido emocional e valorativo, fortemente ligado à história
individual de reforços positivos e negativos guardada pela memória.
A idéia de organização em compartimentos no cérebro humano
deve ser vista com cautela.Cuidado com a afirmação de que o hemis-
fério direito processa informação espacial e o esquerdo, intormaçaó
lógica, ou que o lobo frontal é o centro da ética e assimpordiante.,Os
fatos cruciais da mente humana - como a consciência crítica, a capa-
cidade de refletir, o pensamento, a linguagem, a criatividade, o apren-
dizado e a transmissão dele, a memória, o sonho, as emoções, as intuições
- costumam ser processados numa região em que não há divisórias
bem marcadas e iguais para todos, já que esses fatos mentais são fruto
da reunião de unidades vindas de diferentes departamentos concretos.
Alguns cientistas supõem que o cérebro humano seja uma rede
totalmente conectada, como uma grande malha, onde a informação é
processada. E como se a empresa fosse, num certo sentido, constituída
apenas de departamentos virtuais. Embora não se precise chegar a esse
extremo, já que nem todas as conexões são usadas o tempo todo, pode-
se considerar que grande parte da atividade cerebral complexa
(justamente a que é mental) se dá em departamentos virtuais.
Em geral, portanto para que seja processada em todas as etapas, a
informação precisa:
1) passar primeiramente pelo departamento concreto específico;
2) tomar variadas rotas, não ao acaso, mas arregimentando repre-
sentantes para formar comissões (um representante do lobo temporal
ou equivalente, mais um do sistema límbico, e assim sucessivamente).
O representante não precisa ser sempre o mesmo, apenas deve vir
das regiões certas. E isso o que faz com que, em vez de divisórias bem
marcadas, haja apenas processo de escolha funcional e reunião virtual.
A complexidade dos problemas enfrentados pelo ser
O SÍTIO DA MENTE

de remanejamento dinâmico, mcom


proniemas claros e rustoncos. um animal ou nasce connecenao seu
inimigo ou, então, aprende rapidamente como ele é e como fugir
dele. Se o animal resolve domar tigres, explorá-los, estudá-los e fa-
zer deles enfeite para colocar na sala, é preciso criar um sistema que
vá gerenciando essas novidades, pois a natureza não pode prevê-las
nem selecionar para elas departamentos fixos com divisórias claras.
Vivendo num sistema rico, complexo, em constante mutação e
produzindo alteração constante nesse meio, o ser humano não pode
resolver grande parte de seus novos problemas através dos departa-
mentos tradicionais. Tem de selecionar um modo de criar comissões
para isso. A partir do momento em que são criadas, de acordo com a
necessidade e a peculiaridade do sistema, essas comissões servem para
estabelecer a regra dinâmica do "talvez" (código de barras) e não do
"sim" ou "não". Se dão certo, ficam mais ou menos vitalícias, como se
constituíssem um conselho de empresa (isto é válido para as funções
superiores, como pensamento, memória, juízo, crítica, vontade).
E o caso de Einstein, que tirou da cartola uma nova teoria acerca
da natureza arrumando os conceitos de um jeito que ninguém havia
pensado antes. Como a teoria foi bem-sucedida, criaram-se os instrumen-
tos de transmissão de conhecimento necessários para que um estudante
pudesse, lendo-a e estudando-a, formar uma comissão virtual no
seu cérebro parecida com aquela que se formou na cabeça de Einstein
quando a elaborou.

INTELIGÊNCIA E FORMAÇÃO DINÂMICA DE COMITÊS

Imagine que você está estudando um mapa de sua cidade. O que


você procura ali são ruas, avenidas, bairros, pontos de referência. Diri-
gir um carro nessa cidade requer um estudo do mapa para que se veja
o caminho a seguir. Não se pode entrar na contramão, não se pode
passar onde não haja rua, etc. Para ir do ponto A ao ponto B, há algumas
alternativas, mas todas elas incluem ruas bem definidas. O
processamento cerebral dos animais e de algumas porções não-mentais
do ser humano (por exemplo, o controle da respiração) ocorre mais ou
menos dessa maneira.
Imagine, em seguida, que você vai correr no rali Paris-Dacar,
dirigindo seu carro através do deserto. Claro que há bons e maus pilo-
tos. Não pergunte a um bom piloto que trajeto deve ser seguido: não
há mapa de ruas e avenidas, as coisas se passam dinamicamente. Onde
DEPARTAMENTOS CONCRETOS E VIRTUAIS

havia uma duna, agora não há. Onde se atolava, agora se encontra o
único local de passagem. Se fosse totalmente ao acaso, a falta de ruas
faria com que qualquer um conseguisse vencer. Mas não é. O bom
piloto conhece truques para avaliar a situação a cada instante e criar
uma saída. Aprende o truque, não o trajeto.
O córtex cerebral funciona mais ou menos assim: é um pouco
mapa de cidade com ruas e avenidas, um pouco rali no deserto. Os
departamentos concretos são mapas com ruas e avenidas - circuitos
preferenciais. Os departamentos virtuais são resultado de uma dinâmi-
ca que vai mudando as coisas a todo momento e que deve ser desco-
berta pelo piloto experiente - estradas múltiplas no deserto, simples-
mente moldadas para que o indivíduo escape de atolar.
A mente é preferencialmente uma rota aue surge no deserto. Um

e criação. O bom

atola
que seus truuues e habilidades inteligentes. É nisto que parece.ccmsislir
grande parte das dnençíu4istúrbios mentais.

SÍNTESE

A grande dificuldade de compreensão da mente e de seu sítio


cerebral advém de uma peculiaridade de processamento: - enquanto

Não cabe criar devartamentos concretos vara vroblemas comvie-

com situações novás ç aue exigem aprendizado. IiiiIiigar de dar res-

tendi a avaliar cenários comniexos em aue a dinâmica analó2icad

Õneifrinio está habilitado a dar respostas digitais através do ca-


ráter sim ou não do potencial de ação. Também está apto a dar respos-
tas analógicas através da freqüência dos potenciais. Assim, para certos
fins, temos departamentos concretos processando rotinas bem conhecidas.
Para problemas complexos, temos a reorganização de departamentos
concretos em comissões que podem usar o talvez como resposta.
O SITIO DA MENTE

Procurar a mente em regiões específicas do cérebro é estéril por-


que sua lógica de aparecimento está calcada no recrutamento dinâmico
de unidades que processam o talvez em comissões virtuais. Virtual
aqui não significa imaterial ou evanescente, e sim dinâmica calcada no
processo e estilo analógico de reunião (via código de barras), não
necessariamente em local específico e com membros vitalícios. Cuidado,
portanto, com afirmações de que esta ou aquela função mental está
localizada num ou noutro ponto do cérebro.
A inteligência, principal atributo da mente humana, é construção
contínua de rotas em locais em que não há caminho único e imutável.
Como numa corrida no deserto, o que é certo agora pode não ser den-
tro de instantes. Em lugar de casuísmo ou indeterminação, a gdi-
nâmica de seleção de membros em coniitêjo que propicia respostas
adpara cada situação .j ilotiiteligente sabeoé fazer
mpre omemo trajeto aue o impedi atolar. Ao contrário, na maioria

vèzeserpetindflugue de conducão, não a rota.

glios da base

lamo

é falo

Vista dorsal do tronco cerebral, ressaltando a presença


do tálamo (última via de processamento antes do córtex)
e gânglios da base, envolvidos no controle das emoções
(parte do sistema límbico).
CIRCUITOS E SISTEMAS

Capítulo 5

CIRCUITOS E SISTEMAS

C ertamente você já viu montagens em que várias telas de


televisão são colocadas lado a lado, cada uma delas exibindo parte de
um programa. A tela gigante dá, assim, a impressão de ser uma tela
única. Esse efeito é obtido através de um software que separa a imagem
inicial em tantos fragmentos quantas forem as unidades que compõem
a grande tela. Eis uma primeira idéia de sistema ou de circuito. A ima-
gem da grande tela é coerente. As individuais não, pois são parte do todo.
Tela no sentido estrito são as individuais. Tela no sentido amplo, de
meio para uma imagem coerente, é a grande, abstração multifacetada
do processo de reunião e decomposição da imagem.
Circuitos e sistemas são constituídos de partes idênticas ou dife-
rentes, arranjadas de uma certa maneira no tempo e no espaço. São um
todo constituído de partes, em que atuam duas lógicas: uma confere
concretude física a cada uma das partes e a outra confere funcionalidade

funciojjjl ds narts.
São várias as maneiras de se montar um circuito/ sistema para
desempenhar alguma função. Imagine que se vai montar um alarme.
Colocam-se sensores para detectar fogo na garagem de um prédio. Esses
sensores disparam um sinal que trafega por um fio ou por ondas de
rádio e estimula uma central, que toca um alarme indicando o local que
está pegando fogo. Aqui, temos um arranjo espacial da informação com
dois elementos distintos— espa cia]porque temos um local que detecta e
outro que toca; elementos distintos porque temos sensores e campainha.
Imagine, agora, um termostato que deve ser acionado para regular
a temperatura de uma sala em 23 graus. Se a temperatura estiver acima de
23, ele executa a função de esfriar o ambiente, ligando o ar frio.
O SÍTIO DA MENTE

Se a temperatura estiver abaixo de 23, executa outra função, a de


ligar o ar quente. O sistema termostato mais ar condicionado é cons-
tituído de partes que jogam tanto ar quente como ar frio no ambiente.
A posição do sistema, ar quente ou frio, depende da interação com o
ambiente, a sala. Neste caso, temos um sistema que pode executar
ações opostas, determinadas pelo estado do ambiente. Temos também
um sistema espacial com partes distintas, mas que começa a ficar mais
complicado, uma vez que, para entendê-lo, é necessário examinar a
situação externa que coordena sua resposta de esquentar ou esfriar.
Um rádio é um sistema que opera com partes-que detectam vari-
ações temporais de ondas. Dependendo da freqüência de uma onda, há
um canal de comunicação aberto. Imagine que um rádio seja construído
de forma a detectar ondas que oscilam no tempo. Essas ondas podem
ter freqüências variadas. Para a freqüência A, temos a estação A
conectada. Para a freqüência B, a estação B. Neste caso, é preciso ter
um aparato detector de freqüência, que é uma característica medida no
tempo, para que se possa detectar a estação A ou B. O sistema "rádio"
é dotado de partes espacialmente distribuídas, capazes de desempe-
nhar funções diversas de acordo com a variação de uma informação no
tempo: as ondas e sua freqüência.
Sistemas e circuitos são arranjos de partes que desempenham
funções especificas. Seu computador é dotado de circuitos específicos
para operar diversas de suas funções: por exemplo, examinar arquivos,
gravar na memória um documento, detectar falhas, etc. Cada circuito
tem uma função especifica e, muitas vezes, pode haver dois circuitos
que realizam a ação A e B conjuntamente com a ação C.
Pense no corpo humano. O sistema digestivo é constituído de
partes anatõmicas: boca, esôfago, estômago, intestino, etc. Porém, cada
uma dessa partes tem outros sistemas e circuitos divididos em partes e
com funções específicas. Para certos efeitos, pode-se dizer que a função
da boca é recepcionar e mastigar o alimento e a do intestino, absorvê-
los, eliminando os detritos. Pensando, contudo, numa substância espe-
cifica, por exemplo, o macarrão, e em seu metabolismo de digestão,
haverá partes do processo que se darão na boca e outras no intestino,
reguladas por um terceiro órgão. As enzimas da saliva quebrarão o
alimento (carboidrato) e o intestino, regulado pela insulina vinda do
pâncreas, o absorverá. Para cada função há um arranjo do grande sistema
em subsistemas que se reorganizam para desempenhar funções
específicas.
Uma peculiaridade dos sistemas e circuitos é que, dependendo
CIRCUITOS E SISTEMAS

de seu arranjo, mudam de comportamento. Imagine várias resistências


de chuveiro. Colocadas em série, a resistência total é a soma das
resistências individuais. Colocadas em paralelo, o inverso da resistên-
cia total é a soma do inverso das resistências individuais. Isso é vital
quando calculamos a corrente nos dois tipos de arranjo das partes - em
série e em paralelo. Colocá-las em série ou em paralelo modifica
radicalmente as propriedades do todo.
O estudo do cérebro humano é ainda mais complicado que esses
exemplos. Não é qualquer arranjo de departamentos concretos ou virtuais
que dá a mesma resposta. Há caminhos diversos por onde trafega a informa-
ção, e isso pode mudar o seu destino. O arranjo espacial, bem como a
ordem de acontecimento dos fatos e sua distribuição ao longo do tempo,
têm importância crucial no aparecimento de determinados tipos de
deliberações.
Veja o exemplo de um circuito cerebral muito geral. Um objeto
impressiona a retina, conjunto de neurônios situados no fundo do olho.
De lá a informação trafega até o lobo occipital, onde se processam
contraste, textura, claro e escuro. Dali segue para o sistema límbico,
para o tálamo e deste para certas regiões do córtex cerebral. Essa infor-
mação será ainda reenviada para vários pontos pelos quais passou por
um processo de contínua retroalimentação, que vai atualizando e
aperfeiçoando a imagem. De maneira Muito simplificada, esse seria um

Pense que determinada decisão na empresa do nosso exemplo


tem seis meses para ser estudada e ouhoras. O mesmo sistema
terá um comportamento diferente em cada caso. A ordem dos módulos,
suas propriedades individuais e o funcionamento final do circuito/siste-
ma serão afetados pelo tempo e pela disposição das partes. Chama-se
isso de propriedades emergentes.
Quando se olha para uma molécula de água, não tem sentido
dizer que é líquida ou sólida. A água, porém, resultado de bilhões de
moléculas de H20 juntas, terá a propriedade de ser líquida ou sólida.

facilmente ardados:
o sob a forma de corrente elétrica.
O SITIO DA MENTE

4. Para certos fins, o códiw tudo ou nada


funciona como clepartam -effrõ concreto e á cÓdI de barras, como
departamento virtual.
5. Os neurotransmissores são a substância que carrega informa-
ção de um neurônio a outro na sinapse.
6. Os neurotransmissores podem ser de vários tipos.
7. Os neurônios se agrupam de variadas maneiras em circuitos e
sistemas.
8. As propriedades que surgem da disposição em sistemas po-
dem ser entendidas pela diposição espacial dos neurônios (ou de gru-
pamentos deles - assembléias) e por certas propriedades temporais
(lembre-se do exemplo do rádio).
9. Estudar o cérebro significa entender o neurônio, a sinapse, o
neurotransmissor, os receptores, os mensageiros, os circuitos/ sistemas
e o resultado do processamento, no tempo, das informações elétricas
que transitam entre assembléias de neurônios.
10. A informação no cérebro está cifrada numa linguagem especi-
al. Entender esse código e suas referências é o processo último de ligação
do cérebro com a mente e com o mundo.
Como no exemplo do termostato, devemos ainda, para entender
as respostas do sistema, ter claro que não há sistema dissociado do
meio em que está colocado. Portanto, somente compreenderemos al-
gumas das ações do cérebro sobre o meio se compreendermos as ações
desse meio sobre o cérebro.

SÍNTESE

A noção de circuito e sistema é fundamental para entender pro-


priedades cerebrais e mentais. Se algumas propriedades surgem de
uma parte, seu arranjo em sistemas pode fazer surgir novas e diferen-
tes propriedades. Chama-se isso de emergência.
Cérebros são sistemas que realizam funções diversas, de acordo
com a ótica sob a qual são examinados. O arranjo digital determina
certas propriedades. O analógico propicia o surgimento de novos ar-
ranjos das partes, de modo que as fôrmas nas quais se depositarão as
funções mentais estejam prontas.
Um circuito especifica em sua arquitetura arranjos funcionais
dinâmicos; no arranjo físico das partes se encontram as coações aos
diferentes modos e finalidades de funcionamento. Uma estrutura de
vigas e pilares de um prédio jamais poderá ser uma ponte.
cóDiGos E OSCILAÇÕES

Capítulo 6

CÓDIGOS E OSCILAÇÕES

0 grande impasse no atual estágio científico do estudo do


cérebro e da mente é saber que código de comunicação é utilizado
pelos neurônios para representar o mundo externo, interno, real e hi-
potético no lento processo de forja das categorias mentais.
Imagine que uma empresa deva tomar suas decisões de maneira
sigilosa para que algum concorrente não roube informações. A empre-
sa pode passar a codificar suas reuniões. Mas o que são códigos em
última análise? Todos nós nos lembramos da brincadeira infantil da
"língua do p". Acrescenta-se à sílaba falada uma nova sílaba, que troca
a consoante por p. Na "língua do p", a palavra "casa", por exemplo,
vira "capasapa" ("ca" + "pa" + "sa"+ "pa"). Pronto, é um código.
Códigos são instrumentos convencionais e arbitrários em que
trocamos a informação real por outra ou a modificamos, acrescentan-
do algo. Normalmente, é uma regra que liga uma informação não codi-
ficada a outra codificada (ou a um símbolo).
Um indivíduo poderia chegar à reunião em sua empresa de pos-
se de um livrinho com todas as substituições de letras ou de palavras e
falar somente na língua codificada. Isso faria com que um espião da
empresa rival não entendesse nada do que estivesse sendo dito, a menos
que tivesse acesso ao livro ou tentasse (o que é possível) decifrar o
código.
Imagine que tenhamos algumas peculiaridades a mais no
processo. O presidente, muito preocupado, não dá o livro a ninguém.
Ao contrário, nenhum integrante da reunião sabe o código e fala nor-
malmente numa câmara totalmente fechada. O produto é codificado,
transitando cifrado pela empresa.
A informação que trafega pelo cérebro humano está toda ela em
códigos de barra - potenciais de ação isolados, no caso digital, e em
grupos, no caso analógico. O código é esse e as reuniões deliberativas
dentro do cérebro, seja nos departamentos concretos, seja nos virtuais,
ocorrem usando essas convenções. Mostraremos agora:
a) o digital capaz de codificar objetos;
O SITIO DA MENTE

b) o digital capaz de codificar a conexão entre objetos (conectivos);


c) o neurônio capaz de codificar a e b;
d) o neurônio capaz de codificar conjunções especiais de a e b.
Esse modo de apresentar o problema mostrará dois grandes esti-
los de modelagem da mente: a mente como programa (software) e a
mente como rede neural.

NEURÔNIOS E CODIFICAÇÃO

Os neurônios são capazes de codificar objetos, bem como a con-


junção entre eles. Na codificação de objetos, há apenas uma relação
entre algo e o disparo neuronal. Um neurônio que codificasse gatos
seria responsável por disparar potenciais quando aparecessem gatos
no campo visual, quanto maior o número de potenciais, maior a "confi-
ança" do neurônio de ser aquele objeto um gato.'
Numa outra versão, poderíamos simplesmente codificar objetos
tais que, dado um objeto, houvesse uma seqüência de O e 1 que o codi-
ficasse. A letra A poderia ser codificada como 0001, por exemplo. Quatro
neurônios, os três primeiros silenciosos e o último gerando um potencial
de ação, estariam codificando essa letra.
Ambos os casos são relativamente desinteressantes, embora o
primeiro responda pelo surgimento da concepção científica segundo a
qual o cérebro teria para cada fato do mundo um representante próprio.
(Seria o caso do painel do alarme que acende para cada área afetada.)
Caso interessante é aquele em que o digital serve para ligar senten-
ças através de conectivos. Imagine o caso de "Pedro quer tomar café" e
"Pedro quer ir ao cinema". Cada um dos dois é uma sentença acerca de
Pedro. Podem ser falsas ou verdadeiras. Além disso, a conjunção de
ambas sob a forma "Pedro quer ir ao cinema e quer tomar um café"
obedece a uma tabela que mostra como lidar com sentenças resultantes
da união através de "e" quando: ambas são verdadeiras; ambas são
falsas; uma é verdadeira e a outra, falsa e vice-versa.

Pedro quer ir ao cinema Pedro quer tomar café Pedro quer ir ao cinema e quer tomar café
sim(1) sim(1) sim(1)
sim (1) não (0) não (0)
não (0) sim(l) não(0)
não (0) não(0) não (0)
CÓDIGOS E OSCILAÇÕES

Portanto, se tivermos três neurônios, um representando a senten-


ça "Pedro quer ir ao cinema", outro representando "Pedro quer tomar
café" e o último representando a conjunção "Pedro quer ir ao cinema e
quer tomar café", poderemos codificar, digitalmente, a tabela de pos-
sibilidade de verdade e falsidade de cada uma das três sentenças, isto
é, das duas primeiras e da conjunção através do conectivo "e" de ambas.
A lógica nos fornece basicamente alguns conectivos como "e",
"ou", "então", "não". Através deles e de suas tabelas de verdade, po-
demos codificar sentenças e conexões entre elas. Mais ainda, podemos
construir as cadeias de inferência que mostram ser válido ou não, do
ponto de vista lógico, um raciocínio.
Veja que bastam três neurônios para realizar os conectivos "e",
"ou", "então"e outros (dificilmente traduzíveis em linguagem corrente e
que arbitrariamente são foijados em linguagens artificiais - Fig. 16).

potencial de ação
sim ou não
O ou 1

neurônio 3

potencial de ação / potencial de ação


sim ou não sim ou não
Ooul O ou 1

eurônio 1 neurônio 2

Fig.16 - Três neurônios codificando através de potenciais de ação, abertos ou


fechados, sim ou não, as tabelas de verdade dos conectivos lógicos. O truque aqui
é fazer com que o limiar do neurônio de cima somente admita disparar quando a
soma for igual a 2 ou mais.2
O esquema da Figura 16 é, na verdade, um pouco mais compli-
cado. Da maneira como é mostrado, dá a impressão que há uma con-
venção no disparo ou não, no O ou 1. De fato, é pela calibragem dos
pesos da conexão e dos limiares que se pode deduzir o comportamen-
to do terceiro neurônio.
O SÍTIO DA MENTE

Imagine que um impulso de valor 1 chega a uma sinapse. Esse im-


pulso é multiplicado pelo peso da sinapse (a intensidade da ligação), que
pode variar com a experiência - e é isto o que está na base do aprendi-
zado. (Lembre-se, reforçam-se certas ligações e atenuam-se outras.) Supo-
nha que nosso impulso de valor 1 chegue a uma sinapse de valor 2. 1
multiplicado por 2 é igual a 2. Logo, o impulso que agora trafega pelo
dendrito é de 1 x 2 = 2. Ao chegar ao corpo do neurônio, encontra um
limiar de 2, o que dispara um potencial de ação. Isto porque qualquer
estímulo maior ou igual a 2 que chegue ao corpo de um neurônio que
tenha limiar 2 disparará um potencial de ação. Assim como qualquer
estímulo que chegue abaixo de 2 não disparará potencial de ação algum.
Vemos isto esquematicamente na Figura 17.

impulso valor 1
limiar de valor 2

potencial de ação
potencial.
sinapse (2 contra 2)
local de vaio
valor 2

Fig.1 7 - Impulso de valor 1, multiplicado pelo peso sinóptico de valor 2, que


atinge o limiar 2 do neurônio esquemático, disparando um potencial de ação.
Numa situação mais complicada teríamos (Fig.18).

impulso valor + 1

sinapse valor -2 'I•-..?


JJmirdevalor+1

reunião •1.
6 =+4
- 2 + potencial de ação:
- (4 contra 1)
sinapse valor +3 .

impulso
valor +2
v Fig.18 - Dois impulsos de valores diferentes, ocorrendo em
dois dendritos e sendoposteriormente integrados no corpo
celular, onde se decide se supera ou nao o limiar para
disparo do potencial de ação.
CÓDIGOS E OSCILAÇÕES

Pelo exemplo anterior, percebe-se que cada impulso chega a um


dendrito com um certo valor, que é multiplicado pela força da sinapse. 3
Esta pode ser negativa ou positiva (lembre-se, excitatória, inibitória ou
simplesmente moduladora, quando exerce apenas a função de filtro).
Todos os potenciais locais resultantes da interação com cada dendrito
trafegam até o corpo do neurônio, onde vão reunir-se. Para efeito de
simplicidade, vamos considerar que a reunião desses potenciais seja
sempre do tipo soma (embora, como mostramos em capítulo anterior,
necessariamente não seja uma soma, já que os tipos de processo de
decisão variam em função do valor de cada potencial). Assim, ao corpo
do neurônio chega um valor de -2 (resultado de um impulso de valor 1
que chegou a uma sinapse de valor -2, logo =1 x -2) e outro de valor 6
(resultado de um impulso de valor 2 que chegou a uma sinapse de
valor +3, logo = 2 x 3). Feita a soma (6 + (-2) = 4), como o resultado
supera o limiar do neurônio (no caso +1), o potencial de ação é dispara-
do. Isto é, a porta se abre e temos 1 em vez de O (caso da porta fechada).
O leitor atento poderá se perguntar onde está o código de barras.
Voltaremos a ele mais adiante. Por ora, procure fixar o conceito de que,
do processo acima descrito, sairá um sim (potencial de ação, 1) ou um
não (ausência de potencial de ação, O). Vejamos como fica o esquema
para o "e" (Fig. 19) que descreve a conjunção de "Pedro quer tomar um
café" e 'Pedro quer ir ao cinema".

Ibela do conectivo
limiar +2
A B 1 AeB
11 1
10 0
01 O
00 O
sinapse + +1

Imagine agora se entrar 1 e 1 (em cada uma


limiar \ limiar ~ 1 das duas entradas).
À esquerda, temos 1 x +1 = 1. Supera o limiar
1. Passa para o neurônio de cima.
À direita, temos 1 x + 1 = 1. Supera o limiar
1. Chega 1 de um lado e 1 de outro ao
neurônio final.
ft%sinapse +1 sinapse +1
1S Lá acontece lxi = lei x 1 = 1. 1 + 1=2
que supera o limiar (+2). Logo, sai o
potencial de ação.
Para todos os outros casos não acontece isso
(para entrada 1 e O, O e 1, O e O).

Fig. 19 - Três neurônios codificando o conectivo lógico "e ".


O SÍTIO DA MENTE

Este esquema simples permite realizar muitos conectivos, como


"e", "ou", "não" e "implica". (Veremos mais adiante que apenas o cha-
mado "ou exclusivo" não funciona aqui.) Talvez por isso tenha levado à
concepção de que os neurônios seriam responsáveis pela execução de
conexões lógicas, operando em trincas (para o conectivo "ou exclusivo"
há que se ter um neurônio a mais) e fazendo do cérebro algo muito
semelhante a um computador digital. Creditada ao trabalho de
McCulloch e Pitts, tal teoria ficou conhecida como "neurônio de
McCulloch-Pitts".
Computadores possuem conexões abertas ou fechadas (digitais),
e o programa é escrito de forma que essas conexões simbolizem os
objetos, as sentenças e as ligações lógicas entre elas. Há, porém, nítida
distância entre o nível do programa, onde estão sentenças e conexões, e
o nível físico, onde estão os códigos aberto ou fechado, sim ou não, que
traduzem digitalmente as operações.
Podemos fazer muita coisa com os conectivos, principalmente
com o "implica" ou "se... então", base de uma série de ordens ou re-
gras com que programamos computadores.
Nesta concepção, o neurônio seria uma máquina que instancia O e
1, codificando objetos e relações de objetos através de conectivos. A
mente seria um programa e o cérebro, um meio físico digital de realiza-
ção de tabelas de verdade. O modo como isso se processa foi mostrado
acima. No entanto, há um conectivo cuja tabela requer mais neurônios,
o "ou exclusivo", que motivou um complicada guinada na história dos
modelos mentais.

NEURÔNIOS ARTIFICIAIS E CONECTIVOS LÓGICOS

A história dos modelos de mente e de sua relação com o cérebro


conheceu diferentes etapas. Uma primeira versão postulava que a mente
era um programa (software) de computador e o cérebro, a placa
(hardware). Conhecer a mente seria conhecer as regras do programa e as
leis lógicas de conexão entre as sentenças. Os três neurônios mostrados
anteriormente deram suporte a esta idéia por serem capazes, tal qual
um computador digital, de instanciar as tabelas de verdade dos
conectivos lógicos.
Mas, como a mente não é feita somente de regras lógicas, nem é
programa, surgiram as redes neurais baseadas em neurônios artificiais,
nas quais não havia programa. Elas não eram, contudo, capazes de
resolver certos problemas, como a tabela de verdade do conectivo lógi-
cÓoicos E OSCILAÇÕES

co "ou exclusivo". Para tornar isso possível, foi necessário um refina-


mento: a inserção de um neurônio a mais numa camada intermediária
das redes.
Vai daí aue a concepcão da mente cmororama tornouse
com uma rede neural de base que realizasse os conectivos

no fato de as redes neurais realizarem os


no

Toda essa problemática desembocaria num terceiro tipo de mo-


delo que considera o neurônio um aparato analógico capaz de codificar
através da freqüência e do intervalo de potenciais.
Voltemos, agora, à questão dos três neurônios e da realização de
um conectivo como o "ou exclusivo".

PROCESSAMENTO TEMPORAL

Problemas importantes não são resolvidos pelos três neurônios.


Há um tipo de "ou" (chamado "ou exclusivo") que tem uma tabela
diferente do "ou convencional". Imagine que se dissesse: "Pedro tem
um livro ou Pedro tem uma televisão". Não há incompatibilidade se as
duas sentenças forem verdadeiras. A conjunção através do "ou" entre
ambas também é verdadeira. Porém, "Pedro tem um bolo ou Pedro
come o bolo" é diferente. Ambas não podem ser verdadeiras porque,
se Pedro tem um bolo, ele não come o bolo e, se come o bolo, não tem o
bolo. Neste caso, a conjunção das duas sentenças verdadeiras através
do "ou" é falsa. Essa é a diferença entre o "ou convencional" e o "ou
exclusivo". Compare as duas tabelas de verdade:

"ou convencional"

A B A ou (convencional) B
V V V
V F V
F V V
F F 17
0 Sf110 DA MENTE

"ouexdusivd'
A B A ou (exclusivo) B
V V F
V F V
F V V
F F F

A tabela do "ou" tradicional tem as três primeiras linhas verda-


deiras (para o caso de A ou B). Já a do "ou exclusivo" tem de diferente
a primeira linha. Tente agora, usando apenas três neurônios, como vi-
mos na Figura 19, calibrar limiares de modo a instanciar a tabela de
verdade do "ou exclusivo". Não há meio de fazê-lo, e isso representou
um empecilho enorme na história do desenvolvimento das redes neurais
(as primeiras redes, percéptrons, eram semelhantes à arquitetura de
três neurônios).
Sem o neurônio intermediário (camada oculta), não seria possível
realizar algumas funções (de maneira ampla, as funções que envolves-
sem separabilidade linear), como é o caso do "ou exclusivo".
Veja na Figura 20 como é resolvido o problema do "ou exclusivo". E
através de arquiteturas análogas, isto é, com camadas ocultas, que toda
classe de funções que envolvem separabilidade linear é resolvida.
\)o..5
neurônio4

/ 1-
+1,

c:::
'4

90*
Fig.20 - Como quatro neurônios implementam o conectivo lógico "ou exclusivo".
CÓDIGOS E OSCILAÇÕES

No caso da Figura 20, se tivermos a entrada de dois valores ver-


dadeiros, 1 no neurônio 1 e 1 no neurônio 2, o que acontecerá? Fazendo
as contas, no neurônio 1, 1 multiplica +1, indo para o neurônio 3. No
neurônio 2, entra 1, que é multiplicado por +1, indo para o neurônio 3.
Ao neurônio 3 chega 1 do neurônio 1 e 1 do neurônio 2. O limiar do
neurônio 3 é 1,5. Como temos 1 + 1 = 2, o 2 passa pelo limiar 1,5. Ao
neurônio 4 chegam, ao mesmo tempo, 1 do neurônio 1,1 do neurônio 2 e
2 do neurônio 3. A integração é então 2 x (-2) +1+1= -2. Como o limiar do
neurônio 4 é 0,5,0 valor -2 não passa. Assim, se entrar comi e 1, não sairá
nada. Se entrar como 1 e O (ou com O e 1)? 1 xl e O xl (ambos chegando ao
neurônio 3). Como o limiar do neurônio 3 é 1,5, no caso de 1 e 0,0 e 1,0 e
0, ele não deixa passar nada. 1 e O ou O e 1 chegam ao neurônio 4 e são as-
sim integrados: 1 x 1+1 x 0 = 1, que, sendo maior que 0,5, faz passar para
a frente o potencial de ação. No caso de O e 0, não passa nada porque não
chega a exceder o 0,5 do limiar do neurônio 4.
Vê-se dessa maneira que:
a) por meio de sinapses, de reunião e decisão no corpo neuronal
e de potenciais de ação (acima do limiar da porta do axônio), os neurô-
nios podem realizar as funções de codificar Verdadeiro ou Falso, 1 ou 0;
b) é possível codificar objetos (no caso de letras, por exemplo,
0001 seria um A e assim por diante) ou codificar operações lógicas sobre
sentenças: Pedro vai ao cinema "ou" Pedro come goiabada - A ou B;
c) os conectivos "e", "ou", "implica" (se... então), etc. são ferra-
mentas poderosas para construir raciocínios (inferências necessárias que
estão na base dos argumentos, da razão, do pensamento);
d) esses conectivos podem também ser realizados por conjuntos
de neurônios, três para a maioria deles, quatro para o "ou exclusivo";
e) há certos problemas (de separabilidade linear) que podem ser
resolvidos por quatro neurônios, o que os transforma em instrumentos
capazes de fazer praticamente qualquer coisa em termos de cáltulo.
O mais importante aqui é mostrar quanto um sistema simples
de três neurônios (às vezes, quatro) pode realizar em termos de
codificação e manipulação lógica. A base dos computadores está
explicada. Quando falamos de funções digitais, estamos imaginan-
do um computador que implemente conectivos lógicos. O neurônio
digital, dotado de camada intermediária, pode instanciar todos os
conectivos lógicos, até mesmo o "ou exclusivo". Se construirmos
redes de neurônios como as mostradas nas figuras, poderemos rea-
lizar operações digitais complexas que simularão a mente humana,
tendo por trás "neurônios" digitais.
- O SÍTIO DA MENTE -

O NEURÔNIO E A CODIFICAÇÃO TEMPORAL

Quando se colocam pesos nas sinapses e integração no corpo


neuronal e há ainda um limiar, temos uma porta que, no final das contas,
deixa passar ou não um potencial de ação. Essa porta está aberta ou
fechada, respondendo como um sim ou não, como 1 ou O.
O cérebro deve usar esses mecanismos para grande parte de suas
funções, as que chamamos de departamentos concretos com divisórias
claras. Claro que afirmar que a mente nasce da capacidade de formar
departamentos virtuais baseando-se somente na capacidade analógica
("talvez") dos neurônios é ir ao extremo. Não há uma relação estrita
entre o analógico (talvez) e o mental, de um lado, e o digital (sim ou
não) e o não-mental, do outro. Sabemos, no entanto, que o poder de
cálculo (ou de computação, que quer dizer a mesma coisa) aumenta
brutalmente quando podemos usar o digital e o analógico.
Já vimos todo o poder do neurônio digital, "sim ou não" (depar-
tamento concreto). Vejamos agora, para finalizar 1 o neurônio analógico,
"talvez" (departamento virtual), tentando entender o que o limiar tem
a ver com o código de barras.
Imagine que de uma decisão no corpo neuronal resultou 8 e que
o limiar é de 0,5. Isso significa apenas que vai haver um potencial de
ação e pronto? No sentido digital, sim. No sentido analógico (código de
barras), não. Se uma soma no corpo neuronal der 5 e outra der 8, talvez
o limiar 0,5 não faça com que passe apenas um potencial de ação nos
dois casos. Vimos atrás que o potencial de ação tem sempre a mesma
amplitude (isto é, o mesmo tamanho). Porém, se o potencial de ação é
tudo ou nada (sim ou não), existe uma série de potenciais de ação que
podem surgir após a superação do limiar (o que será diferente no caso
de 8 ser maior que 0,5 ou de 5 ser maior que 0,5). Essa série de potenciais
fará um código no tempo:

No exemplo acima, temos variação de intervalo entre os potenciais


e também variação de quantidade. Essas duas grandezas, freqüência e
quantidade, criam no tempo um código que pode (como o código de
barras) transmitir informação. E o código que utiliza essa grandeza tem-
poral, a freqüência, através da quantidade de potenciais de ação, o
reponsável pela criação de diferentes departamentos virtuais. Ao con-
trário do que ocorria no caso do limiar e do potencial de ação, o neurônio
CÓDIGOS E OSCILAÇÕES

não é mais apenas uma porta por onde passa ou não uma informação.
Não é um aparato que apenas responde sim ou não. Ele passa a
transmitir várias nuanças através do código temporal. Essas sutilezas
correspondem a dizer que entre o potencial de ação passar ou não passar,
entre a porta estar aberta ou fechada, há um sem-número de estados de
porta entreaberta. O código analógico faz agora do neurônio uma máquina
mais polivalente, capaz de desempenhar várias funções nos departa-
mentos virtuais, onde o código é "talvez".
Quando se fala em realizar esse processo, deve-se saber que há
uma espécie de oscilação que responde pela geração dos códigos de
barras (Fig. 21):

caso 1 caso 2 caso 3


Fig.21 - Potenciais de ação vistos sob a forma de oscilações: caso 1, um potencial;
caso 2, dois potenciais; caso 3, dois potenciais mais espaçados (codificando pelo
número de potenciais um mesmo objeto, porém, diferentes objetos se considerado
o intervalo diferente entre eles).
No caso 1, temos apenas uma onda (um potencial de ação). No
caso 2 e no 3, temos dois potenciais de ação, mas separados no tempo.
No caso 2, os dois potenciais são mais próximos; no caso 3, mais distan-
tes. Quando damos o exemplo do código de barras, é como se traduzís-
semos estes três casos da seguinte forma:

Claro que são diferentes. O caso 1 é o que responde pela tradu-


ção digital (é um 1 e não um O). No caso 2 e no caso 3, temos mais
potenciais de ação, além de uma distância temporal que também per-
mite fazer diferenciações. E fundamental entender que o potencial de
ação, isolado ou em grupos, é sempre uma oscilação. Uma oscilação é
aquilo a que você assiste no pêndulo de um relógio de cuco; ou numa
mola esticada que, solta, começa a ir e vir. Podemos definir a freqüên-
cia com que o pêndulo faz um trajeto completo, e assim por diante.
Neurônios são, portanto, máquinas que geram oscilações, sejam
O SiTIO DA MENTE

os potenciais locais na árvore dendrítica ou o potencial de ação no axônio.


Quando medimos a freqüência dos potenciais de ação, procuramos duas
coisas:
a) códigos que utilizem aquela freqüência;
b) freqüências semelhantes, em outras partes do sistema, que
poderiam sintonizar como se fosse um rádio.
No caso de uma letra, podemos codificar:
a= 1
b = II
c= II
Este seria o caso análogo ao da codificação digital de letras, por
exemplo a = 00001, b =00011, etc. Porém, no caso do rádio, o que está
em jogo é a noção de sincronizar numa determinada freqüência. Quan-
do o sistema manda um código de barras, o que está mandando é
basicamente uma mensagem, como uma onda de uma transmissora de
rádio. Outro neurônio que seja capaz de sintonizar aquela freqüência
entra em contato com ele. Essa noção de sincronização ou de afinamento
(como a de uma orquestra que afina seus instrumentos) é uma das
mais poderosas formas de integrar neurônios, ou grupos deles, e fazê-
los agir cooperativamente por alguns segundos, ou frações de segundos,
de modo a resolver um problema (Fig. 22).

CÓDIGO DIGITAL O ou 1 entre dois neurônios ______

- ->
Iimi

)
- - >
pot. ação
fl passo
mensagem 1
(sim)

CÓDIGO ANALÓGICO entre dois neurônios

- -> ________D li—li Ti


potencial de ação analógica, entre o sim e o não

produziu uma sincronização entre dois neurônios, não apenas transmitiu


um sim ou um não

Fig.22 - Diferença da relação digital e da analógica entre dois neurônios.

O código de barras permite que diversos grupamentos de neurô-


nios (assembléias) entrem em sincronia (se sintonizem). Seria como se,
durante alguns instantes, diversos funcionários, que desempenhavam
suas tarefas rotineiras de dizer sim ou não no departamento concreto,
CÓDIGOS E OSCILAÇOES

entrassem em contato, através do código virtual, para tentar chegar a


um acordo sobre uma certa modalidade de talvez que pudesse servir
de denominador comum. Um funcionário dá uma opinião, codificando-
a numa freqüência. Um segundo funcionário dá outra, codificando-a
numa freqüência diferente. A solução do problema é a sintonização
dessas diversas freqüências. Se você entendeu esses passos, saiba que
está habilitado a entender que:
a) como máquina digital o cérebro pode codificar em seqüências
de O e 1 inúmeras coisas;
b) como máquina digital o cérebro faria operações como se fosse
um computador desses usados nos dias de hoje;
c) através do código de barras (analógico), é possível aumentar a
capacidade de codificar;
d) através da sintonização da freqüência das barras, é possível
colocar em sintonia departamentos diversos, afinar seus instrumentos
e comparar memórias, reunir esforços distantes e finalmente gerar a
consciência de um objeto, cujas partes são percebidas por neurônios
em pontos diferentes do cérebro; através da sintonização na mesma
freqüência, as partes podem ser percebidas na mente como se fossem
uma só coisa;
e) a freqüência recruta o tempo como fonte de codificação, por-
que não importa apenas estar aberto ou fechado, mas sim quanto tempo
e com que intervalo. Inserir o tempo como fonte de codificação é um
dos grandes achados da evolução para aumentar exponencialmente a
capacidade de processamento do cérebro. Daí, os termos código e
processamento temporais.

SÍNTESE

Quando se estuda o cérebro e sua relação com a mente, o grande


desafio é desvendar o código que os neurônios utilizam para representar
objetos e relações entre objetos.
A concepção digital nos fornece duas maneiras de entender a
codificação: a primeira associa um neurônio a um objeto; a segunda
associa conjuntos de neurônios (três ou quatro) a conectivos lógicos.
As redes neurais foram uma tentativa de romper a barreira da
concepção de mente baseada em regras lógicas. Não eram capazes, inici-
almente, de instanciar o conectivo lógico "ou exclusivo". Foram desacredi-
tadas como modelo até que, com o recurso do neurônio extra - da camada
oculta—, passaram a resolver os problemas de separabilidade linear.
O SÍTIO DA MENTE

As redes neurais seriam, então, capazes de instanciar todos os


conectivos, sem precisar com isso pagar o preço de separar o programa
do nível físico, como veremos mais adiante. Porém, a codificação
temporal genuína não seria nem uma nem outra. Lançando mão de
conjuntos de potenciais de ação, faria do analógico a fonte temporal de
representação.
O neurônio constituiria a base da instanciação do digital simples
(objetos), do digital lógico (sentenças e conexão lógica entre elas) e ainda
de uma terceira via de codificação: o código de barras.
Temos, então, dois códigos: o digital e o analógico. O primeiro
codifica objetos e conexões lógicas entre eles. O segundo extrai da
variação do intervalo temporal entre os potenciais uma nova fonte de
codificação.

1. ligação intacta
Thl
Th2

ThS

sincronização entre o tálamo


e o córtex

(:tálamo
2. ligação rompida
2WVVI
Thl
Th2-
Th3 ±i

Circuitos tálamo-corticais exibindo, na porção de cima,


sincronização; na porção debaixo, note com as ondas
dessincronizam. Esses circuitos entre o tálamo e o
córtex são os mais importantesoara a geração de
consciência e controle da atenção.4
ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

Capítulo 7

ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

A mente humana é uma espécie de palco onde são encenados


todos os fatos da vida. Mesmo se fecharmos os olhos, continuaremos a
ver, sentir, cheirar, pensar e representar um mundo mental. O proble-
ma do código está justamente nessa peculiaridade: enquanto a mente
parece por demais intuitiva e familiar, o cérebro parece distante, não
intuitivo, mostrando-se presente apenas nas enxaquecas. A mente é
cheia de objetos do mundo, de emoções e planos. O cérebro, órgão
mole e cinzento, tempestade de potenciais elétricos. Definitivamente,
sem um código de transposição, esses dois mundos, mente e cérebro,
seriam inconciliáveis.
As pessoas estão acostumadas a viver num mundo de imagens,
de mesas, de cadeiras, de pessoas, de palavras escritas ou faladas, de
raciocínios construídos com palavras, de emoções que são medo, dese-
jo, ódio, rancor, etc. De repente, começamos a falar da mente humana
sem fazer referência a nenhuma dessas coisas. Em vez disso, detivemo-
nos até aqui apenas em sinais elétricos, sinapses, mensageiros, portas
(limiares), etc. Pois imagine que esse é o código escolhido por uma
empresa para cifrar tudo o que ocorre numa determinada reunião.
Durante essa reunião, as pessoas falam palavras em linguagem corren-
te, desenham, sentam-se, levantam-se. No entanto, o que sai como
relatório final de tudo o que se passou ali é uma infinidade de códigos
de barra que traduzem (codificam) todas as informações (Fig.23). 1
No exemplo abaixo, suponha que João e Paulo sentem-se à mesa

co

Fig.23 - Reunião de dois funcionários numa sala sendo codificada sob a forma
de oscilações (códigos de barra).
O SÍTIO DA MENTE

para discutir um determinado assunto da empresa. O presidente, cau-


teloso, quer que tudo seja codificado. João, Paulo, imagens, sons, odo-
res, palavras, sensações corporais (por exemplo, se a cadeira é confor-
tável ou não), a deliberação final, tudo será transformado, por uma
supermáquiria de codificação de cenas, em código de barras (que vi-
mos anteriormente serem osdilações).
Inventada por um cientista genial e recém-adquirida pela empre-
sa, a supermáquina é um cérebro artificial capaz de traduzir cada peda-
ço de informação para o mesmo código de barras que um cérebro humano
usaria ao assistir à reunião. É exatamente isso o que fazemos: percebemos
o mundo através de nossos órgãos sensoriais - visão, olfato, paladar, au-
dição, tato - e codificamos todas as informações em códigos de barras que
vão trafegar pelos neurônios.
A máquina comprada pela empresa por enquanto não existe. Não
sabemos ainda que códigos de barras traduzem cada pedaço das cenas
do mundo. Portanto, não há pessoa neste mundo que possa, olhando
apenas para a mensagem codificada, extrair o conteúdo da reunião.
Mas qualquer cérebro faz isso. Se, num lance de ficção científica,
injetássemos a mensagem codificada da reunião no cérebro de qual-
quer um de nós, ela apareceria exata em nossa mente. 2
Existe um código que traduz as cenas do mundo (externo e inter-
no) em oscilações neuronais (código de barras). Essas oscilações, quando
sincronizadas, é que fazem aparecer no palco da mente as cenas como
as percebemos. Se a máquina do cientista maluco conseguisse cifrar a
reunião em código de barras neuronal, seria código para ninguém botar
defeito. Nos dias de hoje, o único jeito de decodificá-lo seria enxertando-
o num cérebro.
Por ora, não sabemos como o cérebro traduz cada pequena parcela
do mundo para códigos de barras. Olhamos para a atividade cerebral
através de eletrodos enxertados nos neurônios, de eletroencefalogramas
(EEG) e de outros métodos que captam atividade elétrica e vemos apenas
uma série infindável de oscilações em freqüências diferentes. O que está
ali: uma tempestade elétrica, ruído puro, distante da forma e dos conteú-
dos mentais? O cientista sabe que ali estão todos os códigos de barras que
traduzem as experiências do indivíduo (Fig. 24).
Muitas pessoas, quando observam a atividade elétrica do cérebro
num eletroencefalograma, por exemplo, fazem o papel de um espião
da empresa concorrente que olha o código de barras que a máquina
maluca gerou para codificar a reunião. Acham que aquilo não quer
dizer nada e desistem. 0 cérebro codifica a informação do mundo e
ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

I
rrenina na mente

-
>1
ca ' 001 -

menina no m,,nrIn

11111 1 1 II II 11111 1
menina no cerobro

menina nos olhos

Fig.24 - Menina no mundo sendo codificada em código de barras no cérebro e


posteriormente, decodificada, para que apareça a menina na mente.
depois a decodifica para que ela apareça de modo compreensível na
mente. Mas a mente está no cérebro e ela própria também é código de
barras. Como entender isso, então? Volte para a Figura 24. A impressão
que dá é a de que a menina no mundo é idêntica à menina na mente e
que a primeira se transforma na segunda diretamente, sem passar pela
confusão do código de barras. Ao contrário, no mundo não existem meni-
nas, nem na mente, nem no cérebro. Só existem códigos de barras (oscila-
ções em diferentes freqüências) em toda parte (Fig. 25).
A mente humana é uma espécie de aparato que permitiu que
códigos de barras no mundo (oscilações) e códigos de barras no cérebro
(oscilações) adotassem um denominador comum que é uma menina
visual, uma menina falada, uma menina escrita, etc. A medida que nos

r
desenvolvemos desde crianças, vamos aprendendo a correlacionar

ou menina (linguagem)

1
III II II III
mundo

Fig.25 - O mundo é feito de oscilações captadas pelo cérebro, codificadas através


de outras oscilações e, finalmente, decodificadas pela mente.
O SITIO DA MENTE

objetos do mundo (oscilações) com objetos do cérebro (oscilações).


Estabelecida essa primeira sintonia entre a estação de rádio-mundo e o
aparelho de rádio receptor-cérebro, passamos a correlacioná-la com outra
classe de oscilações: a linguagem (Fig. 26).
Um animal e uma criança pequena têm apenas reações de tentati-
va de sincronização das oscilações do mundo e das oscilações de seus
cérebros. Porém, não há objetos no mundo, tais como acreditamos per-
ceber com nossa mente. O que há são oscilações luminosas, sonoras,
etc. Se conseguirem sincronizar mundo e cérebro, surgirá um potencial
III II II 11111
mente (linguagem)

III II II liii III II II 11111


mundo cérebro
Fig.26 - Três ordens de eventos oscilatórios: mundo que é codificado, cérebro
que codifica e linguagem que os traduz e interpreta.
incrível, permitindo que se executem variadas operações concretas ou
imaginárias, externas ou internas. E isso o que acontece com um
morcego, que se guia através de oscilações vibratórias captadas pelos
ouvidos. Sua navegação não pressupõe uma tela mental, mas apenas o
acoplamento sincronizado de mensagens sonoras do ambiente e do seu
radar nos ouvidos. Fica difícil dizer se há mente num animal ou se há
mente num bebê muito pequeno. 3
Imagine, agora, que se foram estabelecendo relações entre oscila-
ções do mundo e oscilações do cérebro. Aos poucos, aparece uma on-
da de sintonia entre as oscilações cerebrais que, unificadas, constituem
a mente (Fig. 27). A medida que diferentes modalidades sensoriais e
também simbólicas (linguagens) de falar de um "objeto" do mundo
foram sendo criadas, primeiramente elas se sincronizaram com o cére-
bro e depois entraram em sintonia dentro dele, entre si, criando aos
poucos uma unidade nos objetos percebidos que não existe no mundo. A
imagem e o cheiro de uma mulher parecem fatos do mundo e no mundo,
mas certamente chamá-la "mulher" é uma disposição arbitrária.
O processo de integração formou mulheres, cheiro de mulher,
nomes escritos e falados de mulher na mente, que é apenas um depar-
tamento virtual que sincroniza (sintoniza) todas as oscilações (ou códigos
de barras) concernentes a um dado objeto. Esse objeto, agora na mente,
ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

menina fala a

4 menina escrita
-9 1 II 1 1

isualL_
IIIl!!)eriI1 v

ot mundo cérebro

Fig.27 - Esquema completo de oscilações ambientais e oscilações cerebrais. A


sincronização de eventos cerebrais e ambientais seria responsável pela recepção.
A sincronização de diferentes oscilações cerebrais (cada uma processando uma
parte do objeto externo), pela unidade da percepção."

parece ter uma unidade, que é retransmitida através do ensino, da língua,


da tradição, da literatura, da arte, de modo a constituir uma imagem
mental do mundo. -
Não éa mente ci_copia o mundo. Eo mundo, fragmentaslo em
osdilacões, aue se parece com a unidade síncrona dos móduloscere-

Cida instância de um objeto é uma oscilação: a imagem da menina,


seu cheiro, sua posição, seu nome, a grafia, etc. Cada estímulo desses
chega a nós como um código de barras. O cérebro aprende a captar
essa oscilação, o que significa criar uma oscilação sintonizada,
processando cada módulo da menina em um departamento concreto
da empresa-cérebro. A integração da menina através de departamentos
virtuais advém, contudo, de uma segunda capacidade do cérebro: a de
sintonizar as instâncias internas da menina numa imagem única no palco
mental. Essa capacidade parece ser o passo inicial para a formação da
mente.
Por integrarem oscilações ambientais, também os animais são ca-
pares de criar imagens mentais parciais (parciais porque não dotadas
de linguagem).Como o cérebro humano tem diante d um arsenal
cias
ïe1 de instâdscrijõesticasda1 i
una qfaz ç Ta mui n
Finalmente, a mente tem a capacidade de tomar essa imagem
una e transmiti-Ia através da linguagem oral ou escrita, criar símbolos
com ela, fazer arte a partir dela, estudá-la, cantá-la em prosa e verso.
O SITIO DA MENTE

A mente se volta para o mundo, redescrevendo-o através da


linguagem e da ação. Nascida do departamento virtual que unifica as
oscilações, cria cada vez mais descrições dos objetos, que se incorporam
a eles. Com oo (tanto o tempo da evolução do ser humano como
o da evolução do indivíduo), não é a oscil açã o fragentada, mas a
, gem mental rica inter conecta ayé5 ~ dos departamentôs virtuais
que seipn maisíorte.J'or isso. ao inspecionarmosncsn inteljpr,
aue temos imagens dn.inundo e não osdilaçõe neuropis. A
oscilação, raiz de todo o processo, parece estranha à mente parte do
-

cérebro capaz de formar departamentos virtuais e acoplar, por sintonia,


pedaços de informação do mundo. A unidade resultante da
sincronização, de inicio externa (exossincronismo) e posteriormente
interna (endossincronismo), é constantemente usada para reinterpretar
o mundo. Por isso éomu ndo que se parece cada vez mais com nossa
mente (n i tssaje que lança mão pa ~04 ^ ":9 ^
mente que se parece com o mundo.

MENTE E COMPUTADOR: UMA ANALOGIA

Qualquer pessoa que já teve a oportunidade de usar um compu-


tador tem diante de si: um monitor; um gabinete, onde há uma placa-
mãe (há um processador central e winchesters para memórias); e um
modem, que liga o computador à linha telefônica. De modo geral, a
placa do computador executa todas as funções através de circuitos, o
monitor mostra os cenários de trabalho e o modem permite a recepção e
transmissão de dados através da linha telefônica. Há, portanto, os se-
guintes níveis: o físico, da placa (han1ware) o do programa (softwam e o
monitor, que reflete o resultado da interação do programa com a placa.
O hardware é um aparato físico que contém determinadas rotas
de tráfego para correntes elétricas. O software é um conjunto de instru-
ções que pode modificar algumas áreas do hardware (abrir ou fechar
portas, como foi visto no exemplo do neurônio) de maneira a fazê-lo
funcionar de acordo com essas instruções. Entre elas, a de apresentar
um "ambiente amigável" na tela.
Imagine que, para escrever a letra A, você precisasse diitar 0001
no teclado e visse escrito 0001 na tela. Não seria nada fácil. E por isso
que os programas são elaborados de maneira a permitir que, digitan-
do-se "A" no teclado, apareça "A" na tela e seja gravado 0001 no
hardware. A imagem no monitor é programada para que se pareça ao
máximo com o mundo do usuário, tornando os comandos intuitivos.
ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

O modem é um instrumento físico que transforma mensagens do


computador em códigos que podem ser transmitidos pela linha
telefônica (ou por outro meio, como ondas de rádio). Ao chegar ao
outro lado da linha, o código transmitido é decodificado, reconstituindo
a mensagem em outro computador. Se escrevo A no teclado, vejo A na
tela, mas gravo 0001 na placa do computador. O modem recebe o 0001,
transforma-o numa linguagem codificada pré-acertada entre as redes
de comunicação (isto é, estipulada, arbitrária, combinada) e transmite-
o. Do outro lado da linha, outro modem decodifica a mensagem e
transforma-a em 0001, que vai aparecer na tela como A.
Há uma série de processos análogos no aparecimento da mente
no cérebro humano. Imagine um bebê. Num primeiro momento, ele
não se lembra de nada do que se passa em sua mente. Porém, aos
poucos, vai tendo contato com o mundo, constituído de oscilações que
lhe entram pelos órgãos sensoriais; vai sendo inserido na comunidade
de seres agentes e falantes de um mundo recortado de acordo com
suas mentes e sua linguagem. O que acontece então? A medida que o
bebê cresce, os objetos vão estabelecendo sincronismos perceptivos com
seu cérebro. A unidade interna, também resultante do sincronismo de
partes de objetos percebidos, vai se amoldando de acordo com o mundo
que lhe está sendo apresentado. Esse mundo de cadeiras, olhares, rosa
e vermelho é constituído na mente do bebê como se essa mente fosse
uma tela de computador que apresenta objetos coloridos, recortados
em lixeiras, envelopes, tesourinhas, etc. Sua mente ad uire assim a
cara do mundn?-Nn- dnuire asara do m e~=ntes de nossos

Isquivalè a levar para casa um computador novo, desses com


programas amigáveis, ligá-lo na tomada e ver na tela - toda feita de
imagens bem definidas, coloridas, de gente correndo, de lixeiras e papel
picado - um mundo igualzinho ao nosso. A mente é a tela? E e
Para vári os efeitos é a tela, e é bom que seja,?ae isso deve
niuiita coisa. Mas que e um pïobiema e quea tela fica turva,
asiageilorradas, o papel não encesta na lixeira. O que você faz? Mexe
no monitor e tenta sacudir a lixeira? Não adianta. Joga o computador fora?
Não, você chama o técnico e mostra o defeito, pedindo a substituição do
monitor. O técnico olha para você e começa a digitar comandos estranhos
no teclado. De repente, aparecem na tela não mais lixeiras e letras do
alfabeto, mas seqüências de símbolos, de números, de instruções, numa
linguagem desconhecida. Você vê mensagens do tipo "se... então" (lembre-
se do "se... então" visto nos conectivos lógicos). Pergunta ao técnico o
O SITIO DA MENTE

que é aquilo e ele responde estar verificando, no nível dos programas,


se há alguma instrução errada. Não acha e procura dentro do gabinete. Ali
um circuito funcionando mal é substituído ou soldado, e a tela volta a
mostrar tudo bonito como antes.
Embora a aparência do mundo seja a que nos acostumamos a ver
na tela do computador e no palco da mente, quando há certos problemas,
a mente é apenas resultado de operações de software e hardware que
estão por trás dela. Por vezes, é o software que tem um defeito e precisa
ser reescrito. Por vezes, é o hardwareque apresenta falhas e precisa ter
um circuito consertado ou substituído. Raramente é o monitor que
precisa ser trocado, balançado, etc. Portanto, cuidado: a mente da
maneira como se nos apresenta é apenas monitor, resultado de
operações. O hardware-cérebro e o software-experiência que cada um
gravou em suas vidas é que estarão por trás de nossos problemas e de
nossa própria existência. Nas situações triviais, não há grande prejuízo
em confundir a tela com a mente, podendo com isso até mesmo ser
eficaz dar um conselho para o monitor, afagar-lhe o ego ou esfregar-lhe
um paninho na cara; nas situações patológicas, o equívoco torna-se
explosivo.
, Pensar sobre a origem cerebral da mente é fundamental na hora
de investigar a disfunção mental. Quando ela ocorre, embora queira-
mos alisar a tela, sacudi-Ia, implorar-lhe que funcione, colocá-la de cas-
tigo, não adianta. Se o problema for no software (que não está na tela),
será preciso analisá-lo, para descobrir o que está apagado, faltando ou
entrando em conflito, e reescrevê-lo. Este é o papel típico das chama-
das psicoterapias. Se o problema for na placa (hardware), o único jeito
de solucioná-lo será agindo diretamente sobre ela. Este é o caso típico
em que se usam meios (remédios) que interajam com o nível físico
íntimo cerebral.
A confusão sobre o sítio da mente e o modo como ela surge pode
levar a freqüentes mal-entendidos e à ignorância a respeito da forma de
lidar com cada nível e compartimento do sistema.

SOBRE ORIGEM DAS CONVENÇÕES


QUE POSSIBILITAM SINCRONISMO

Resta o problema do modem e seu análogo com a linguagem. Nas-


cemos com um modem dentro do cérebro. A maior parte dos animais
tem sistema de comunicação, mas aquele que possuímos, capaz de
gerar linguagem escrita, falada, arte, ciência, é infinitamente mais sofis-
ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

ficado. A convenção é fundamental para entendermos uma oscilação


interna que, a fim de possibilitar que nos comuniquemos via linguagem
(via modem) , produz um 0001 no cérebro como a letra A de maneira que
o receptor, ao ouvir a letra A, faça uma oscilação dentro de si análoga
ao nosso 0001.
Na história da humanidade, os diversos sistemas culturais uni-
formizaram de maneira mais ou menos explícita convenções que per-
mitiram que o meio externo comunicasse exatamente os mesmos códi-
gos de barras internos (Fig. 28). A cultura e o passado de milhares de
anos do ser humano garantem que haja estabilidade entre todas essas
séries de eventos e que apareça, em sistemas de símbolos (entre estes,
a linguagem), a uniformidade capaz de provocar os mesmos estados
internos (os mesmos códigos de barras) diante de um símbolo arbitrá-
rio-convencional-compartilhado (a palavra, por exemplo).

convenção
MENINA
1(0
4,
mente receptora 1 mente emissora

cérebro receptor cérebro emissor

Fig.28 - A linguagem como órgão interno cerebral (como se fosse um "modem ") e
convenção externa usados para a comunicação humana.

Mas onde estariam e como seriam os objetos reais do mundo, se


no fundo não há mesas e cadeiras, cores e príncipes? Claro que há
objetos reais no mundo, só não sabemos se eles têm a forma com que
nossa mente os vê ou se têm outras formas. Se você descer à intimida-
de da matéria, saberá que a continuidade que se vê numa mesa escon-
de uma descontinuidade no nível atômico e assim sucessivamente. Então,
por que vemos mesas no mundo e no nosso palco mental? Porque esse
modo de ver foi se fixando, graças à experiência, à adaptação, ao uso
da linguagem, durante milhares de anos.
O SÍTIO DA MENTE

Imagine que um ator "real" está sendo filmado no estúdio de uma


telenovela (Fig. 29). Sua imagem e voz serão transformados em oscilações
elétricas na filmadora, que as transformará em ondas, que irão para o
satélite, que as mandará para sua casa, onde sua televisão decodificará as
oscilações, recriando na tela a imagem e a voz do ator.
A parcela visível e familiar da mente equivale à tela da TV. Todos
nascemos e morremos olhando para essa tela. Por vezes, funciona mal
ou é motivo de pesquisa. Neste caso, o objeto para onde vamos olhar
depende do enfoque. O psicólogo, o sociólogo, o humanista, o antropó-
logo, o jurista olham para a mente-tela tecendo considerações sobre o
ator, sobre o enredo, sobre a mensagem, etc. O médico, o engenheiro, o
físico, o matemático, o biológo olham para a mente-circuito (como se
olhássemos para dentro da TV), claro que com o bom-senso de dar
uma espiada na tela também.
A tela é a parte intuitiva e amigável da mente. A TV inteira é o
cérebro. O conjunto de processos pelos quais a TV capta ondas,

SATÉLITE

, .r o
,

aparelho de W

Fig.29 - Eventos intermediando a transmissão de uma cena num estúdio e sua


captação por um aparelho de televisão. As codificações sucessivas desse processo
podem ilustrar a estabilização da conexão de objetos no mundo e objetos na mente.

transformando-as em imagem na tela, é a parte cerebral dedicada a


produzir a mente. É mente também, mas de uma maneira menos intui-
tiva. É a mente processo e estrutura. Aquela que nasce do neurônio e
forja, através do código de barras, um determinado tipo de reunião. 5
ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

Mas há um código, uma convenção que permite transmitir e cap-


tar as ondas que carregam a imagem do ator. E mais, há o ator. Onde
estão o ator e os códigos que transformam sua imagem num análogo
seu na minha TV? Estão perdidos no passado da espécie humana.
Demoraram milhares, talvez milhões de anos para garantir que "objetos
reais", transformados em oscilações, fossem decodificados como
oscilações e aparecessem como cópias quase perfeitas desses objetos
na nossa mente ou tela.
Há objetos à nossa frente o tempo todo. O modo como os vemos na
tela da mente está comprometido com a história do ser humano e com o
modo como enfrentou o meio e a linguagem. Parte de nossa mente é
uma tela que retrata esses objetos, esse modo de ver o mundo, os pen-
samentos, os valores e a condição humana. Pensar que a tela, resultado
de um processo que se dá no cérebro, é o todo da mente é engano fatal.
Normalmente, é o que suporta raciocínios voluntaristas e mágicos acerca
dos "poderes mentais". A mente, além de tela amigável, é um processo
de codificação temporal e de recrutamento de comitês que se dá no
cérebro de cada um de nós e que se serve da história da espécie para
garantir a estabilidade de certos passos convencionais.

SÍNTESE

A mente pode ser vista de diferentes maneiras: como conteúdo,


parece-se com o mundo; como processo que se desenvolve através do
recrutamento dinâmico de comitês via sincronização, é totalmente es-
tranha. Para uma série de atuações, basta que a consideremos uma tela
de computador e a utilizemos com as ferramentas intuitivas. Esta é,
porém, apenas sua aparência, que resulta de um processo de codificação
que está por trás dela e do qual participam o cérebro e os códigos. O
cérebro prepara as fôrmas onde se encaixam as funções e conteúdos
mentais. A história evolutiva da espécie humana garante que haja esta-
bilidade e norma no encaixe das formas e conteúdos fornecidos pela
cultura e introjetados para a mente nas fôrmas preparadas pelo cérebro.
Quando a mente pergunta pelo seus limites, a resposta não está
na tela, comaauerem visionários e
responsável pelo procesEde execução de tormas e nflistóii
garante uniformidade àquilo que os códigos têm de dinâmico e arbitrário.
Uma boa forma de entender o quanto há de lei física, de arranjo
funcional e de estipulação arbitrária no processamento cérebro-mental
é pensar no caso das telecomunicações. Para que um documento trafegue
O SíTIO DA MENTE

por satélites, cabos de comunicação, estabelecendo comunicação entre


dois simples caixas-eletrônicos existem diferentes níveis de operação.
Existe um nível físico do caixa-eletrônico enquanto máquina; existe
uma operação de transformação de seus comandos em uma tela fácil de
ser compreendida (normalmente até conversam com o cliente pedindo
que aperte essa ou aquela tecla); existe uma transformação das operações
do nível físico em sinais de comunicação que vão estabelecer contato
com outro caixa-eletrônico. Nessa operação de comunicação pode haver
níveis de sincronização de tempo para que as duas mensagens, em dois
locais diferentes do mundo possam ser cotejadas e conferidas, níveis de
operação em rede, níveis de realização de máquinas virtuais, níveis de
enlace, etc. Há uma série de passos para que se estabeleça a relação de
comunicação entre dois caixas-eletrônicos. Algumas são físicas
propriamente ditas, outras são programas com suas leis próprias, outras
são estipulações convencionais que permitem a comunicação entre dois
aparatos físicos. A estabilização de convenções comunicativas ao longo
da história da espécie humana (filogênese) e durante o desenvolvimento
de cada indivíduo até a maturação de seu cérebro e mente (ontogênese)
depende de um aparato físico especial, que é o cérebro; de um arranjo
estável de formação de comitês, que são as funções mentais; de um
arranjo particular de comitês específicos de cada um de nós, que são as
vivências individuais, gravadas na nossa experiência biográfica; de um
arranjo estável num nível superior através dos valores médios da
sociedade em que vivemos e, finalmente, de uma convenção oculta que
está depositada na história da espécie humana através de milhares de
anos que permite garantir que a representação interna de cada fato
mental é quase-equivalente ao uso de uma expressão da linguagem que
o comunica para os outros seres humanos. 6

Exemplo de um circuito cortical responsável


predominantemente por processamento de visão.
SINCRONISMO E FUNÇÃO VIRTUAL

Capítulo 8

SINCRONISMO E FUNÇÃO VIRTUAL

0 cérebro é uma fôrma, tal qual uma placa de computador,


onde vão se realizar operações do tipo "sim ou não" e outras do tipo
"talvez". A operação do tipo "sim ou não" é um caso extremo da ope-
ração do tipo "talvez": o digital é uma simplificação do analógico. 1
Todo tipo de operação no cérebro (seja digital, seja analógica) é
responsável por um determinado produto. A mente não é o produto
de qualquer operação cerebral. Há centros neuronais responsáveis pelo
controle do ritmo respiratório, por exemplo. Essa operação não tem,
nem de longe, qualquer relevância para a mente, embora possa ser
afetada por estados mentais (imagine o caso de uma pessoa ansiosa
que respira involuntariamente de maneira muito rápida, arfante). Con-
trolar a respiração é um produto não mental. Controlar a memória é
um produto mental. Os produtos de um processo se agrupam em caixas
específicas, cada uma das quais é uma função. Algumas funções são
mentais, outras não. A função memória é mentaa função respiração
(çaso,controledsDiracão\
no não, embora possa haver interação
entre elas.
Imagine o exemplo da empresa, recebendo papéis que devem
ser corretamente endereçados. Chegam inúmeras propostas de com-
pra e outras de venda. Cada proposta é uma unidade. Reconhecida a
natureza dessa unidade, ela será enviada a um departamento concreto
- no caso, para o departamento de compra ou para o departamento de
venda; em caso de dúvida, para um departamento virtual. Desse
processamento sai um parecer que inclui a proposta, o caminho
percorrido nos departamentos concretos ou virtuais e a decisão final.
Decisões finais são produtos que podemos agrupar em classes. Aquelas
que dizem respeito a compr,ar vão para uma caixa, aquelas que dizem
respeito a vender vão para outra.
No cérebro há unidades - grupamentos ou assembléias de neurô-
riios - que, devidamente excitadas por um impulso - potenciais locais,
potenciais de ação, códigos de barras -, executam uma operação ou um
O SITIO DA MENTE

processamento. Dessa trinca formada por neurônios (unidades), estímu-


los elétricos (carregando informação) e processamento surge um produto.
Esse produto pode ser, por exemplo, um elemento da memória, um ele-
mento da percepção, etc. Cada tipo de produto é reunido numa caixa
específica: o elemento de memória vai para a caixa memória, o da percep-
ção para a caixa percepção e assim por diante. Cada caixa dessas
corresponde a uma função cerebral. Algumas, dependendo da estipula-
ção, serão também chamadas de funções mentais.
Dizer que a mente é isto ou aquilo carrega um certo grau de conven-
ção. Para alguns, o cérebro, órgão físico, pode até pensar, mas jamais
sentir. Para outros, pode decidir, mas jamais julgar eticamente. Essa con-
fusão é o que subjaz às diversas classificações da mente. O que costuma
estar por trás de muitas delas é a tentativa de mostrar que, a despeito de
parecer inusitado, sistemas físicos como cérebros e computadores podem
pensar, sentir, ter fé e decidir. Basta, para isso, que tenham complexidade
tal que seus departamentos concretos sejam também capazes de organizar
comitês de acordo com uma lógica e um código mentais.
Cérebros são fôrmas onde se encaixam as formas e os conteúdos
mentais. Sem a fôrma não há encaixe da forma e muito menos harmonia
de conteúdos. As oscilações e o sincronismo preparam fôrmas. Os produ-
tos, estados mentais, são conteúdos que, agrupados em classes, constitu-
em funções ou formas mentais.
Todas as funções mentais são funções cerebrais, mas nem todas
as funções cerebrais são mentais. Sempre que encontramos um gru-
pamento de neurônios num animal dizemos que ele tem um sistema ner-
voso. Isso acontece até em animais de escala muito distante da nossa,
como as lagostas. Quando uma parte desses neurônios se desenvolve numa
região especifica, dizemos ter aparecido um sistema nervoso central (em
oposição ao sistema nervoso periférico, que no homem é representado
pela medula, nervos, etc.) ou um cérebro.
No caso da lagosta, há um circuito especializado de neurônios
que, frente ao estímulo recebido pela pata que é tocada, processa infor-
mação de forma que o produto seja uma mensagem para retirá-la. Jun-
tas, uma região do "cérebro", uma gama de estímulos e uma gama de
processamentos, geram um produto: retirar a pata. Tudo isso seria a
função "retirar a pata" ou função motora ligada à defesa. (Perceba que
as funções se agrupam em hierarquias). Trata-se de um processamento
cerebral não necessariamente mental. Uma moça que delicadamente
retira a mão de um jovem que a assedia executa uma função cerebral
nítida de recusa ou dissimulação mental. Entre a lagosta e a moça há
SINCRONISMO E FUNÇÃO VIRTUAL

várias diferenças. Retirar a pata, no caso da lagosta e mesmo do ser


humano - não no flerte, mas na queimadura -, não seria uma função
mental. Você já imaginou se sua mente tivesse de estar ciente de tudo o
que seu cérebro está controlando a cada momento? 2
O controle do nível de oxigênio no sangue também é regulado
pelo cérebro. Há um estímulo, um processamento e um produto, no
caso, uma ordem de correção para o sistema. A função como um todo é
o controle central da respiração (porque há outros mecanismos não cen-
trais de controle da respiração). Novamente, o controle é não mental,
salvo no caso do ator que se finge arfante para representar expectativa;
ou no caso do ansioso que visita pela quinta vez no mesmo dia o pronto-
socorro com uma dispnéia suspirosa. Essas funções são cerebrais, nem
sempre também mentais, a menos que se lhes agregue, como
exemplificado, consciência, propósito e outros atributos mentais.
Devemos, assim, delimitar as funções mentais. O fato de que há
um subconjunto de funções mentais no conjunto de funções cerebrais
ajuda a entender que a mente não é necessariamente prerrogativa do
ser humano. Porém, a porção mental dos animais é minúscula em relação
à nossa. Isso varia de espécie para espécie - um macaco tem muito
mais mente, nesse sentido, que uma lagosta. Quanto mais evoluído o
animal, maior a quantidade de funções cerebrais que são funções
mentais. Imagine a quantidade de neurônios recrutados para executar
a função de ler e compreender um texto ou para retirar graciosamente a
mão, sugerindo que o outro veja nisto um sim.
Dissemos nos primeiros capítulos que a codificação em barras,
em oscilações, em conjuntos de potenciais de ação numa determinada
freqüência (intervalo entre eles) foi o elemento decisivo na forja da
mente. Isso deve ser verdade, mas é preciso, para entender, que se atente
para o exemplo da água em ebulição. Quanto mais unidades de
temperatura são colocadas na água líquida, mais quente ela fica, até
que, de repente, evapora. Esse salto qualitativo é importante para
compreender alguns processos no cérebro humano. Quanto maior o
número de unidades pr tesçde sesintoai
mos estamos dci surgjnntn Assim, num certo sentido, qual-
idupla de neurônios que se sincronize através de códigos de barras
está usando o estilo mental, ou departamento virtual. A mente humana
deve ter surgido da imensa capacidade de grupamentos de neurônios
se sincronizarem em diferentes partes do cérebro, unificando informação
dispersa e setorial num objeto complexo e de contexto rico.
A mente foi surgindo à medida que se estreitava a convivência
O SITIO DA MENTE

entre a antiga empresa (aquela que toma decisões rápidas, do tipo "sim
ou não") e a nova empresa (aquela que decide nos departamentos
virtuais através do "talvez", de escalas entre o sim e o não). Os processos
não se excluem. Para certos fins, o cérebro pode seguir o processamento
digital e, para outros, recrutar os departamentos virtuais.
Vejamos como isso ocorre (Fig. 30). Imagine apenas quatro uni-
dades de processamento. Pela ligação tradicional, A poderia conectar-
se com B e C conectar-se com D (haveria divisórias nessas ligações).
Entra sim em A, sai sim; entra sim em B, sai sim. Note, contudo, que
houve variação de valor no processo. E como se o sim da entrada, de
valor 1, tivesse se enfraquecido na passagem pelo departamento A e
saído apenas 0,85 de sim. Como o departamento concreto é do tipo
"sim ou não", o 0,85 seria sim, por isso seguiria sim para o B. Porém,
no departamento concreto abaixo - C conectado com D -, a seqüência

entrada sim (1) saída sim 0,85 entrada sim 0,85 saída sim 0,56

móduIo Á1 miduI B

sincronização na freqüência

módulo C
L Módulo
)

entrada não 0,23 saída sim 0,56 entrada sim 0,56 saída sim 0,85

Fig.30 - Para situações triviais, temos a ligação digital do módulo A com o módulo
B e do módulo C com o módulo D. Porém, há uma sutileza: para todos os efeitos,
números próximos de 1 são interpretados como 1 e números próximos de O são
interpretados como O. Se quisermos descobrir novas relações entre os módulos,
poderemos, através do exame da freqüência de cada um deles, reagrupá-los. Neste
caso, A sincroniza D e C sincroniza B. Trata-se de um mecanismo hipotético de
coexistência entre o processamento digital e o analógico.

digital é: entra não em C, sai sim; entra sim em D, sai sim. Examinando
os valores (como não são legítimos O ou 1), temos valores cruzados.
Isso permite que A estabeleça uma relação virtual com D (ambos têm
0,85) e B estabeleça uma relação virtual com C (ambos têm 0,56). Essa
relação virtual ocorre graças a um meio de captar as nuanças entre o O e
o e agrupar unidades de acordo com sincronismo (ou sintonia) e não
SINCRONISMO E FUNÇÃO VIRTUAL

taxativamente através de O ou 1. O exemplo é simplificado e didático,


mas percebe-se que, para certos processamentos, temos A e B, C e D;
para outros, A e D, B e C.
No que diz respeito ao processamento, é possível entender que o
digital é uma aproximação do analógico. Se forço meu funcionário a
responder sim ou não, tenho meios de responder sim para 0,99 e para
0,51. Cuidado, porque nem sempre o valor é apenas uma reta dividida
exatamente ao meio. Há várias maneiras de estabelecer, por aproxima-
ção, quando se deve tender para o sim e quando se deve tender para o
não. Porém, paralelamente, uma resposta segue um curso e a outra,
que sintoniza esses valores, toma outro. Parece que a mente se serviu
desse segundo caminho para enriquecer seu processo de aprendizado,
criação, etc.
Imagine que, após uma reunião, dois funcionários responderam
sim, porque pressionados, porém com grau de confiança 0,51; dois
outros responderam sim com grau de confiança pleno. Pode-se deduzir
que esses dois pares têm visões diferentes do sim, o que numa lógica
de "talvez" deve gerar interessantes recombinações.
Mas isso é somente parte da história. Por quê? Porque estamos
aqui definindo um estilo de processamento. O analógico seria uma
condição para o surgimento da mente. O produto mental, classificado
em função mental, seria o resultado (e isso contém forte dose de
especulação) do analógico somado à sincronização. As funções mentais
seriam aquelas que ocorrem entre partes não necessariamente bem deli-
mitadas pelas divisórias (na verdade, deve haver outras divisórias em
níveis microscópicos, intracelulares, etc.), mas que são capazes de entrar
em sincronia se submetidas a determinados estímulos (Fig. 31).
Suponha que, num cérebro hipotético, estejam designados alguns
caminhos ou circuitos (ou departamentos concretos) por onde a passa-
gem de informação é obrigatória e do tipo digital. Essa estruturação é
interessante porque o processo decisório caminha mais rápido. Do ponto
de vista biológico, talvez ela seja responsável por funções mais básicas,
de valor adaptativo inegável e que não convém questionar. Desse
processamento podem surgir regiões de sintonia em certas freqüências.
Essas, em coro, podem realizar processamentos mais complexos em
que os níveis de ambigüidade e novidade requerem operações mentais
ou conscientes.
Teríamos, assim, processamento digital-cerebral concomitante a
processamento analógico-mental. As regiões que realizariam pro-
cessamento mental, com produtos mentais e funções mentais, seriam,
O SÍTIO DA MENTE

A e O função mental
1
1 função
cerebral

L cerebral
função

C e B função mental

Fig.31 - Modo didático de apresentar a coexistência entre departamento concreto-


digital e virtual-analógico. O primeiro seria uma 'função cerebral" e o segundo,
uma 'função mental'. Efetivamente, só há departamentos cerebrais em níveis
diferentes, porém ,fiara efeito de interpretação, é como se num certo nível tivéssemos
uma disposição fisica das partes e uma arranjo funcional-arquitetônico do todo.
A mente estaria assim para o cérebro como a arquitetura está de uma certa forma
para a engenharia.

assim, mais dinâmicas e virtuais do que as nitidamente cerebrais (de-


partamentos concretos). Isto é fato se observarmos que o controle mo-
tor sobre um dedo da mão é mais fácil de seguir, em termos de depar-
tamentos concretos, do que a imagem mental de um indivíduo pensan-
do numa zebra. Quer dizer, comandar um dedo seria mais "cerebral" e
mais concreto do que pensar na imagem de um animal.
Os deDartamentos virtuais nodem ser mais ou menos fixos.. Se

zar certas operações mentais, é bem possfM& '" t '


mesma esfratéga - o departamento virtual tenderá a ser parecido.
J~
çk_llãjr
~

Iiiituações absolutamente novas, a possibilidade de combinar


módulos diferentes através das freqüências deve servir ao aprendiza-
do, à criação e à inventividade.
Portanto, o estudo da mente passa pelo estudo das funções men-
tais, que parecem derivar de um estilo analógico de processamento entre
unidades neuronais e cuja localização física em departamentos concretos é
de reconhecimento bastante difícil. Melhor é olhar para padrões que se
repetem no tempo e para ondas de sintonia entre regiões cerebrais a fim
de fixar as áreas preferenciais de ocorrência da função x ou y.
SINCRONISMO E FUNÇÃO VIRTUAL

SÍNTESE

Na primeira parte deste livro, examinamos as condições para que


o cérebro reorganize seus módulos concretos, criando, através de códi-
gos analógicos, fôrmas onde se depositarão as formas e os conteúdos
mentais. Essas formas e conteúdos são em grande parte herança da
cultura e da linguagem. Tornaram-se possíveis pela ação contínua de
cérebros sobre o meio e deste sobre eles.
Definindo-se codificações, pode-se optar pelo digital, de forte apelo
lógico. Isso possibilitará fazer interessantes programas computacionais
mas que em nada - na minha opinião - estarão simulando a mente.
Como a forma mental que adotarei na próxima parte está fortemente
calcada na consciência e como parece estar bastante ligada ao processo
de sincronização entre populações neurais, acredito que uma codificação
analógica no plano das freqüências de disparo de potenciais capta a
transformação do cérebro físico em mente virtual.
Algumas das implicações fundamentais desse processo são:
a) essa mente é forma e conteúdo que se encaixa nas fôrmas pre-
paradas pelo cérebro;
b) como no exemplo das várias televisões, a mente é um modo de
agrupar partes para que a interpretação do processo resultante pareça
una, embora a tela grande seja apenas uma abstração;
c) como a mente se serve de um componente físico de sincroniza-
ção para preparar as fôrmas do mental, cabe descobrir que formas e
conteúdos devem preenchê-las;
d) descobertas as fôrmas, as formas e os conteúdos, as leis de
ligação entre fôrmas e as leis de ligação entre formas, estaremos habili-
tados, desde que garantida a estabilidade no uso de convenções,
fortemente calcada na história evolutiva do ser humano, a construir
máquinas que tenham mente e interajam em sociedades como a nossa;
e) provisoriamente, temos condições de forjar uma ciência robus-
ta da disfunção mental, o que nos permitirá unificar dois processos
terapêuticos situados em planos diversos: a psicoterapia e a psico-
farmacologia.
O SÍTIO DA MENTE

ôt, ~t
~

.. 1
'rnr
iJ )
iy D 11 BETSJ1EÁ Li).
Exemplo de uma mapa de funções mentais e
respectivas localizações cerebrais, típico do
século XIX. A frenologia, ou como se usa hoje
em dia, o localizacionismo, procurava situar
cada função mental em um "departamento
concreto" cerebral. Funções mentais como a
amabilidade, o espírito combativo, a auto-
estima, o amor pela aprovação, a benevolência,
a causalidade, o amor, entre outras, eram todas
localizadas em algum ponto do cérebro,
construindo mapas freno lógicos. A doutrina se
inicia com Franz ioseph Gail que viveu entre
1758e 1828.
PARTE II
FORMA E CONTEÚDO MENTAL
0 SÍTIO DA MENTE
FUNÇÕES MENTAIS

Capítulo 9

FUNÇÕES MENTAIS

presentar as funções mentais depende de escolha de método


e de sistema conceitual. Por considerar a consciência a grande
característica da mente humana, adoto a sincronização de módulos
cerebrais como o mecanismo responsável pela formação dos chamados
departamentos virtuais. A idéia de que a sincronização de módulos
esteja por trás da consciência é uma das tônicas da ciência cerebral
contemporânea. A simples formação de um departamento virtual, ou
comitê, pelo mecanismo de recrutamento já criaria, em nosso modelo,
um átomo de consciência.
O processamento digital (sim ou não) seria, segundo a explicação
da parte 1, do tipo cerebral. Quando os módulos cerebrais conseguem
estabelecer códigos "talvez", sintonizando freqüências, dão origem a
representações que constituem uma das bases da consciência. A
consciência - isto é, o conjunto das funções mentais conscientes ou
funções mentais capazes de se tornar conscientes - é a base da mente.
Eis o esquema conceitual que estamos utilizando para estabelecer a
ponte entre o cérebro-fôrma e as formas e os conteúdos mentais, enten-
didas primariamente como formas e conteúdos conscientes.
Problemas claros e básicos têm departamentos concretos dedicados
a resolvê-los. Problemas difíceis e ambíguos requerem progressiva
virtualização. Alguns deles, básicos ou dispendiosos demais (pareceres,
consultoria), podem ser terceirizados.
Imagine que a limpeza de nossa empresa passe a ser feita por
uma empresa externa. Embora os funcionários contratados venham até
a nossa empresa para limpá-la, a sede da empresa responsável pelo
serviço está em outro lugar. Este exemplo é crucial para que entenda-
mos algumas peculiaridades da cultura e dos meios de que dispomos
para recrutar conteúdos mentais em departamentos terceirizados -
escolas, bibliotecas, etc.
Cumpre salientar que, em determinadas formas de conceituação,
desde que haja código capaz de estabelecer contato com a mente ter-
ceirizada, algumas funções mentais estão no mundo e não no cérebro.
O SÍTIO DA MENTE

Também no caso de departamentos concretos, como a audição, podemos


terceirizar funções através de próteses auditivas artificiais. Não deixam
de ser departamento concreto enxertado, maximizando ou recuperando
uma função cerebral.
O que significa terceirizar? Significa retirar uma função da estru-
tura da empresa de modo que não ocupe lugar de departamento con-
creto e possa ser recrutada à medida que haja necessidade, reduzindo-
se custos. A pressão biológica realizou algo semelhante. Uma das fun-
ções do aprendizado, da invenção, da cultura escrita e oral é justamen-
te retirar do cérebro certos departamentos que podem ser "terceirizados".
Pense na função da escrita. Não nascemos sabendo escrever, po-
demos sobreviver sem sabê-lo e, ao mesmo tempo, temos meios de
aprender e automatizar a escrita de tal forma que se torne departamen-
to concreto (ou virtual permanente) no cérebro.
A mente permite estabelecer relações tais entre o cérebro e o
mundo que delas resultem departamentos concretos e até virtuais fora
do corpo, alocados na cultura, na ciência e na tecnologia. Nem toda
informação precisa estar previamente gravada, já que pode ser trans-
mitida de maneiras diversas; prescindindo de experiência direta. Para
que tudo isso ocorra é preciso que haja uma separação entre atitudes
voluntárias e atitudes involuntárias ou automáticas. Ou seja, é preciso
que haja um ato de vontade. Portanto, uma das funções básicas da
mente é estabelecer relações com o mundo, possibilitando que haja
sincronização de módulos antes devotados ao processamento de sim e
não e, ao mesmo tempo, operar com propósito e vontade, de maneira a
estabelecer departamentos terceirizados no mundo.
A mente também se confunde com a linguagem, porque nossa
interação com o mundo se dá, em grande parte, através dela. Falamos
no início deste trabalho de tigres ameaçadores. Miútas vezes, ore
auej ãQã oust.irr reende não é o perigo real e imediato, e sim

que, dependendo do resditãdo da negociação de um acordo de paz, é


possível que o país A alie-se ao país B para invadir o país C. Por trás
dessa ameaça, há um esquema muito mais complexo do que o
aparecimento à nossa frente de um tigre que coloca em marcha nossos
temores. Mais ainda: a possibilidade de reversão da situação (por meio
de manifestações públicas, negociações diplomáticas ou outras formas
de pressão) depende de consciência, da vontade e da linguagem.
que, tornando-complexos, exigem soluções
varia S
Nao na o certo e o errado, mas graus diversos de toiiii
FUNÇÕES MENTAIS

partido de uma decisão ou de outra não implica abandonar ou enfren-


tar o tigre (caso do tigre, do sim ou não, da fuga ou luta), mas escolher
cenários de ação sobre o meio. Esses cenários dependem da capacidade
de representação consciente de cenários possíveis e da habilidade de
pensar em cada um deles, de agir voluntariamente e de comunicar es-
tados, hipóteses, decisões e argumentos. A consciência, a linguagem e
a vontade constituem avanços que permitem a operação humana em
contextos opacos e situações ambíguas de talvez. E, como vimos
anteriormente, também a construção de departamentos concretos e
virtuais no mundo - escolas, livros, ideologia e justiça -, depende de
uma capacidade voluntária de transmitir conhecimento e de uma
vontade que recrute tais departamentos quando necessário.
Se a mente é, num certo sentido, departamento virtual, pode surgir
em qualquer ponto da escala animal em que haja uma codificação de
freqüências. Contudo, sem o instrumento da unificação dessas sintonias
no todo da consciência, sem sua operação voluntária sobre si mesma e
sobre o mundo e sem a linguagem, não há como imaginá-la complexa e
bem desenvolvida em outros animais que não o ser humano.
A idéia de representação como base das operações mentais é
fundamental. De uma certa maneira, mais que símbolos simples,
representações são cenários sobre os quais nos debruçamos com graus
variados de incerteza. A manipulação dessas representações-cenários
através de regras lógicas ou de outros modos de relação é um dos cernes
da vida mental que, devidamente formatada pela linguagem, formula
heurísticas (soluções gerais aproximadas) sobre cenários com graus variados
de incerteza (Fig. 32). _____

MENTE -
LINGUAGEM ( pensamento
emoção
vontade
MUNDO
CULTURAL
f operações mentais

prendi sincronização
MUNDO uma
NATURAL
percepção —9
CÉREBRO

Fig.32 - A mente como resultado da interação entre a linguagem, a vontade, o


pensamento e a emoção, todos os quatro ocorrendo no palco da consciência. A
linguagem é capaz de estabelecer um elo com o mundo natural e com o cultural.
As operações mentais seriam aquelas que, resultando da sincronização de grupos
de neurônios, servissem de base para a constituição de "átomos" de consciência.
O SÍTIO DA MENTE

Veja na Figura 32 os módulos horizontais processando sim ou não -


o que chamamos de operação cerebral - e os módulos diagonais,
sombreados, que sincronizam na freqüência, processando talvez, em lugar
de sim ou não, o que chamamos de processamento mental. Essa capacidade
de duplo processamento estaria na raiz do surgimento da mente, na medida
em que possibilita existirem departamentos virtuais permanentes ou tran-
sitórios, que são blocos de atividade consciente. A consciência, em conjun-
ção com a vontade, pensamento, emoção, memória e linguagem, é que faz
com que a mente adquira seu estatuto pleno de ação sobre o mundo, que
se divide em duas parcelas: um mundo natural sobre o qual agimos, que
transformamos e do qual nos defendemos; um mundo cultural, onde os
departamentos repousam "terceirizados" para serem recrutados na medida
da necessidade e da circunstância.
Para ser entendida, a mel carece nãnapenas do um stilr mrjl
rocessamento cerebral, mas também daSpacide d ilQ
mental fazer usoconsciência e de outras funções menaisara agir
o mundo, extraindo dele departamentos ali
ra. Esse processo lembra um pouco um indivíduo que, tendo- --- d1..
'da, roeta-a em sua mente, sai à procura de umliwro ou rezitaoe
trae o assunto, encontra-o e volta para casa a fim de estr 1hn
cj
Os animais não têm, segundo minha hipótese, a mente completa
porque, embora possuam a capacidade de forjar sincronizações ou
processamento mental em seus cérebros, falta-lhes consciência plena,
linguagem desenvolvida (e com ela a ordem lógica do pensamento) e
operações de vontade sobre o mundo.
Por serem extremamente funcionais e úteis, as funções mentais
talvez sejam departamentos virtuais com tal estabilidade que passam a
ter rotinas próprias, locais preferenciais de reunião e membros quase
vitalícios.

SUBDIVISÃO DE FUNÇÕES

Há diversos meios de se classificar funções mentais. Adotaremos


aqui o esquematizado na Figura 33. Todo processo mental é um processo
cerebral, mas nem todo processo cerebral é mental. Processos mentais se
caracterizam pela recombinação sincronizada de módulos Todos
são conscientes ou passíveis de se tomar conscientes, distinguindo-se.njre

e o sonho.
FUNÇÕES MENTAIS

processos cerebrais (digital)

Fig.33 Subdivisão de funções. Todo oprocesso mental é cerebral; todo o processo


-

mental é consciente ou passível de tornar-se consciente; loo,a consciência é o pano


de fundo da vida mental, surgindo por sincronização de modulos neuronais.

M.
icidadeíaen mnfnra\ de modos de encenacão e
transmissão de conteúdos. Ç2JUI'zQa 42exãonalidade.e .o sonho.entram
epguanda.seagrea um sistema de
situação em que o sistema deve assurnjr uma roupagem e
1inTè uma reconbfriato guaealeatór u~ (sonjiq~.j.rve de
ensaio par. ennações ftUuras o de ..pesade10 pe1ojracassos
idnsA Ql_eurã onãapÁssa de consciência iluminada, facho de
IuzÁue uijpa ai.iental.

SÍNTESE

A mente surge de um estilo mental de


se que a sincronização de módulos pela f
O SITIO DA MENTE

linguagem, podem agir sobre o i4oçriando e recepcionando partes


de produtos de outras mentes ao longo da
história).
Mente, nesse sentido, é igual a consciência (ou aquilo que pode
se tornar consciente). Entre as várias modalidades da mente (funções
mentais), distinguimos: atenção, percepção, memória, vontade,
pensamento, afetos ou emoções, personalidade, motricidade, linguagem,
juízo e sonhos.
Assim, a mente surge de um estilo cerebral de processamento
(do digital vamos para o analógico). Isso suporta inicialmente a forma-
ção de módulos de consciência (por sintonização de padrões) e
posteriormente enseja a formação da linguagem, da vontade (através
das quais se opera sobre o mundo e se forja a cultura), da memória, da
percepção, do pensamento, dos afetos, da personalidade e do juízo.
Dizer que a consciência está por trás da concepção de mente
significa que:
a) a mente surge pelo estilo de computação XãQ

b) as funções acima expostas são 2artzneniosda_consciência,


ou vir a ser, de modo3ue, ou setem unia
ou, quando se trata de uma "vontade não conscienté capaz de,
e10 pensamento e pela lingu ejbêJ pcia
(esclareceremos este ponto mais adiante).
U-se
gúçlii A mente-processo, enquanto consciência como suporte, surge
graças ao processamento analógico. Sua função parece estar ligada ao
processamento de contextos opacos e de decisão ambígua. Seus con-
teúdos são os objetos que povoam nossa introspecção.
CONSCIÊNCIA

Capítulo 10

CONSCIÊNCIA

A consciência, verdadeiro nó do mundo, é um produto do


cérebro (enquanto conteúdo) e uma função (enquanto forma). O pro-
cesso pelo qual é engendrada depende basicamente da sincronização mo-
mentânea de populações de neurônios que representam diferentes aspectos
do mundo externo, interno, concreto e abstrato. Seu surgimento está
vinculado a um estilo analógico de processamento de informação (código
de barras, sincronização), que reúne em departamentos virtuais unidades,
assembléias ou módulos de diversos departamentos cerebrais concretos.
Não se pode dizer, portanto, que não haja consciência em outros animais.
E certo, contudo, que o grau de organização que se obteve no cérebro
humano é único na biologia.
Feche os olhos por um instante e, desligando-se da percepção do
mundo, pense numa menina tomando sorvete ou num centauro. Lem-
bra-se do palhaço de sua festa de aniversário de cinco anos? E do nome
do presidente da república? Todos esses fatos precisam de um palco
para representar seus papéis de protagonistas da vida mental - a
consciência. Outras funções mentais (pensamento, juízo, vontade,
emoção) poderão ser os papéis (pai, mãe, empregada, etc.) e seus
produtos (conteúdos), os atores que a cada apresentação atualizarão
argumento e interpretação.
"Você agiu assim porque desejava o lugar na empresa?", per-
gunta alguém. "Talvez, mas não tinha consciência disso", retruca o ou-
tro. Ao contrário de falarmos de um desejo não consciente, falamos de um
desejo que, embora no momento da ação não estivesse acessível, pode
posteriormente ser resgatado no palco consciente imediato. "Ah, agora
percebo que devo ter agido assim porque desejava ter aquele lugar."

consciência

Sua idéia se confunde com a pi6pria idéia de conhecimento.


Quando alguém diz estar consciente de uma coisa, quer dizer que tem
O SITIO DA MENTE

conhecimento dela. Conhecer é estar consciente de algo, representan-


do-o plenamente e exercendo sobre ele poder de discriminação quanto
aos desdobramentos possíveis. Como palco da vida mental, a
consciência é dúplice: reúne, no piano cerebral, as oscilações sincroni-
zadas, exibindo, no piano subjetivo, unidade que desconhece a fusão
oculta de fragmentos de representação neuronal. Tem a capacidade de
colar pedaços de informação (cada unidade correspondendo a um
grupamento que dispara oscilações sob a forma de códigos de barras),
fazendo desaparecer as marcas de reunião num todo coerente e apa-
rentemente uno, graças à sincronização momentânea e à defasagem
temporal - mecanismo análogo à sucessão de fotogramas qué criam a
ilusão de movimento e continuidade.
A consciência parece atemporal, não espacial. Não ocupa lugar
no espaço, não tem a forma de um cubo ou quadrado, não tem cor.
Suas qualidades - subjetiva, não espacial, qualitativa, capaz de gerar
vontade, holista, mnêmica, emergente e intencional - parecem ter sido
suficientes por milênios para distanciá-la do cérebro físico, conferindo-
lhe estatuto de fenômeno humano, objeto de compreensão vedado às
ciências físicas e biológicas.' Não fosse a mente doente objeto concreto,
cansada de tertúlias retóricas, não valeria tentar demolir pelo menos
parte desse edifício aparentemente impenetrável à linguagem e ao
método científico.
Uma mente que adoece, em diferentes níveis é bem verdade, não
pode deixar de ter pelo menos parte de seus fundamentos no plano da
ciência natural. A distinção entre processo, conteúdo e função pode deli-
mitar as porções do mental e da consciência que devem ser tratadas por
este ou aquele método.

INCONSCIENTE

Produtos mentais (conteúdos) podem ser conscientes ou não-cons-


cientes. Funções mentais são, por definição, sempre conscientes. Pro-
dutos não-conscientes podem ser total ou parcialmente não-conscien-
tes. Entre os absolutamente não-conscientes inclua, por exemplo, o con-
trole de torque dos músculos do braço quando se aplica um murro em
alguém, movido por ira e vingança. Embora seja mental o processo e a
função como um todo, há produtos - no caso, o controle de velocidade e
de contração dos músculos do braço - que não estão e jamais estarão na
consciência (embora a consciência preveja a força desejada).'
Pergunte a uma pessoa como faz determinada coisa. As vezes,
CONSCIÊNCIA

ela não sabe explicar prontamente como executa aquela ação (o produ-
to está provisoriamente fora da consciência). Mas, se parar um pouco
tentando explicar, vai conseguir trazer à consciência grande parte das
etapas do processo. Isso costuma acontecer no caso da solução de pro-
blemas. O indivíduo fica olhando para o problema, tenta uma coisa,
tenta outra e, de repente, resolve-o. Pergunte-lhe como o resolveu. Ele
não sabe responder ou não tem consciência de como o fez. Peça-lhe que
descreva o processo. O indivíduo, falando baixinho e descrevendo o
que está pensando, acaba por ter consciência da maioria das etapas.
Um caso interessante de controle consciente e ao mesmo tempo
totalmente não-consciente diz respeito a certas funções básicas do
organismo. Há centros cerebrais que controlam o nível de glicose no
sangue (cuidado, porque pode parecer função eminentemente cerebral,
mas há porção dela ligada à fome e a seus desvios que é fortemente
mental). Você não tem a menor consciência disso nem consegue, se
tentar, ter. Porém, uma das ligações desse processo com a consciência é
o disparo da sensação de fome, a salivação ou o desejo por um prato
de macarrão. Estas são formas de fazer aparecer na tela ou no palco da
consciência objetos ou elementos mentais que traduzem determinados
processamentos cerebrais com vistas a regular o funcionamento do
organismo (Fig. 34).

, _ALCO CONSCIENTE

VIDA MENTAL sincronização de 2 e 3


SUBJETIVA resultando 4 processamento cerebral passível de
prato de _________ se tornar consciente representando
macarrão comida (no caso, macarrão)

'w
processamento cerebral processamento cerebral passível de se tornar
totalmente não-consciente consciente (no caso, sensação de fome)

Fig.34 - Relação hipotética entre o cérebro, a mente e a consciência, todos os três


ocorrendo em diferentes planos de processamento cerebral. O cérebro manipularia
digitalmente a informação. O processamento analógico instauraria o primeiro
passo para a forja do mental. A sincronização de unidades processando
analogicamente serviria de base para a consciência.
O SITIO DA MENTE

O que está exemplificado na Figura 34 é que:


a) todos os processos - 1, 2, 3 e 4 - são cerebrais;
b) o processo 1 é exclusivamente cerebral, isto é, absolutamente
não-consciente;
c) os processos 2, 3 e 4 são mentais;
d) o processo 2 é às vezes não-consciente, mas, passível de se
tornar consciente;
e) o processo 3 é às vezes não-consciente, mas também passível
de se tornar consciente;
f) o processo 4 é a soma dos processos 2 e 3, através de sintonia
via freqüência, e, por definição, é sempre consciente (não podemos
garantir que o processo 1 não colabore também para a formação do
padrão que redundará no processo 4).
A partir desse exemplo pode-se entender a diferença entre o
processo cerebral exclusivo (impossível de chegar à consciência ou de
ser por ela controlado) e o processo mental, que pode ser dividido em
não-consciente, capaz de se tornar consciente, e consciente absoluto.
Normalmente, o que aparece na consciência é o resultado da interação
entre diversos módulos passíveis de se tornar conscientes. Assim, 1, 2,
3 e 4 são processos cerebrais. Porém, 1 é um departamento concreto e
2, 3 e 4 são progressivamente virtuais. Ou seja, 2 e 3 parecem ter capa-
cidade de ser virtuais mais estáveis e 4 é absolutamente virtual.
Lembre-se de que falamos dessa classificação (virtual mais ou
menos permanente) em outros pontos do livro. Certas comissões (de-
partamentos virtuais) tornam-se tão úteis que passam a se reunir cons-
tantemente (o que significaria tornar-se departamento virtual perma-
nente). Outras soluções dependem de exames individualizados e cons-
tantes. O processo 4, que é a consciência por excelência, parece ser um
desses departamentos totalmente virtuais. O processamento cerebral
que os embasa pode mudar de uma experiência para outra. 3
Consciência é, nesse sentido, basicamente virtual. Algumas das
funções e alguns dos produtos que a fundamentam podem ser um
pouco mais bem mapeados no cérebro. E como se se dissesse: a memó-
ria é um departamento virtual mais estável, que costuma acontecer em
algum lugar do 20 ao 40 andar da empresa: Não há departamento con-
creto, mas haveria uma região preferencial, determinada, no caso da
função memória, pela importância da sinapse, dos hipocampos e dos
disparos de potenciais de ação especiais. 4 No caso de um produto
memória, a localização passa a ser quase errática, dependendo basica-
mente de circunstância e tarefa desempenhada.
CONSCIÊNCIA

O processo explicado na Figura 34 é interessante porque contem-


pla etapas vitais nos processos cérebro-mentais. Uma pessoa poderia
por alguma razão acionar o módulo 2 sem ter acionado o módulo 1. E o
caso em que se tem a sensação de fome sem a ocorrência do evento 1,
isto é, o nível de glicose apontado para uma necessidade real de ali-
mento para nutrir o organismo. O mesmo pode acontecer com os pro-
cessos 3 e 4. Aqui, teríamos uma atividade puramente mental, no senti-
do de passível de se tornar consciente ou já consciente. Parece ser esse
o mecanismo que está em jogo todas as vezes que a mente se desgarra
da sua função de controle das variáveis do organismo, debruçando-se
sobre si ou sobre objetos da cultura. O prato de um incrível cozinheiro
(fato externo e cultural) poderia alimentar os processos 2,3 e 4 sem que
para isso tivesse havido a estimulação do neurônio sensível ao nível de
glicose (processo 1). Distúrbios alimentares, alguns psiquiátricos como
a bulimia e a fome por ansiedade, parecem estar ligados a processos
mentais no sentido 2 e 3. A consciência e, sobretudo, o controle sobre a
ação são parciais e obnubilados. 5
A cultura, como departamento mental terceirizado, pode defla-
grar estados cerebrais que se descolam das necessidades biológicas
primárias do organismo. A obesidade é um fato fortemente cultural
que não necessariamente obedece ao descontrole do organismo
(hormônios, etc.), mas sim a níveis mentais de resposta ao alimento.
Ao criarem departamentos virtuais para processar certos tipos
de decisões, "mentalizando" progressivamente o cérebro que os
embasava, os organismos permitiram que, concomitantemente, essa
virtualização se espraiasse para além do cérebro físico através da co-
municação (da qual a linguagem falada é apenas um item), tornando o
cérebro refém de razões que ultrapassam a mera necessidade concreta
imediata. Se a fome pode ser disparada tanto pela monitorização
cuidadosa dos níveis de glicose no sangue (processo 1, absolutamente
não-consciente) quanto pela atividade espontânea ou induzida dos mó-
dulos 2,3 e 4 (processos mentais), passa a desempenhar no ser humano
um papel imediato - satisfação de necessidades biológicas - e um pa-
pel mediato - ocorrência numa cadeia decisória do tipo "talvez".
Cadeias decisórias do tipo "talvez" (lembre-se: não corro ou en-
frento o tigre, mas o domestico, coloco-o num altar, exploro-o num
circo, etc.) são absolutamente dependentes da superação do nível bási-
co de satisfação da necessidade física e da luta pela sobrevivência e
reprodução. Em vez de comer porque a glicose está baixa ou não comer
porque está alta, come-se pela gula ou pela consideração ao compa-
O SiTIO DA MENTE

nheiro de mesa. Na medida em que se torna elemento mental, protago-


nista no palco da consciência, a fome deixa de ser item de sobrevivência
para se tornar fato misto: natural e cultural.
Os próximos capítulos terão a "cara do mundo". Isso não quer
dizer que não sejam cerebrais. Quer dizer apenas, como naquele exem-
plo em que víamos um ator sendo filmado num estúdio (Fig. 29), que a
mente acaba por ter a cara do mundo ou o mundo a cara da mente
como nós a concebemos ou a experimentamos.
O exame da possibilidade de conexões entre os processos 2,3 e 4,
sem que para isso tenha havido atividade do elemento 1, é fundamen-
tal. De um lado, mostra que a mente pode ter uma dinâmica própria,
independente da satisfação imediata das necessidades físicas do
organismo. De outro, que pode haver desregulagem no nível dos pro-
cessos 2,3 e 4 que, embora sejam exclusivamente cerebrais, têm grande
parte de sua sintomatologia brotando no palco da consciência. As
perturbações psiquiátricas são em larga escala assim explicadas, o que
por vezes causa problemas, uma vez que se supõe que não sejam físi-
cas ou cerebrais.
Processos virtuais que processam sincronizações via código de
barras podem ser estimulados diretamente sem o concurso de proces-
sos concretos, cerebrais, exclusivamente não-conscientes. O indivíduo
que almeja o posto de síndico no seu prédio, lutando para ser eleito na
próxima reunião, orquestra uma série de atores no seu palco conscien-
te. Que motivações "cerebrais", no sentido do processo 1, poderiam
estar em jogo? Certamente não parecem ser níveis de glicose.
A mente tem, em alguns casos, uma dinâmica própria através do
pensamento. Podemos dirigi-lo para onde quisermos, o que resulta no-
vamente da capacidade de estabelecer uma sucessão de sincronizações
de processos do tipo 2,3 e 4. Não é certo que não haja um processo do
tipo 1 por trás disso tudo - no caso do nosso candidato a síndico, um
problema de poder e dominação de território, gravado em nossa heran-
ça animal. Antes, tentávamos dominar uma área e fazíamos a corte
para as fêmeas. Agora, somos síndico de prédio e dirigimos carro de
luxo. Talvez tenha mudado alguma coisa para que tudo permanecesse
inalterado.

FREUD E O INCONSCIENTE

A teoria de Freud impressionou de tal forma nosso cotidiano que


acabamos por elaborar uma série de raciocínios errôneos acerca do que
CONSCIÊNCIA

se entende por não-consciente. Segundo a doutrina psicanalítica, existi-


ria uma motivação que nos faria esquecer certos fatos indesejáveis. Esses
fatos continuariam, no entanto, a exercer determinado papel sobre a
consciência, produzindo comportamentos anormais ou estranhos.
Percebe-se que a motivação dos dois tipos de não-consciente aqui
apresentados é diferente. Se, por um lado, dizemos que os processos
cerebrais são totalmente inconscientes, por outro, dizemos que os pro-
cessos mentais são conscientes ou podem vir a ser conscientes. Se a
motivação que leva certo fato mental a situar-se fora da consciência é
de origem repressiva ou apenas uma economia do sistema, não vem ao
caso. O grau de dificuldade de trazer algo à consciência pode
perfeitamente ser explicado por uma hipótese teórica concernente à
censura ou por outra que apenas diz que a quantidade de memória de
trabalho está toda ocupada naquele momento, impossibilitando com
isso que se traga o fato mental ao plano da consciência. Porém, neste
livro os processos não-conscientes, porém mentais, são entendidos de
maneira neutra sem alusão a mecanismos de repressão ou de colapso
de memória de trabalho. Ambas seriam hipóteses que devem ser
conferidas no interior de suas respectivas teorias. Parece claro, porém,
que a motivação por trás de um truque para resolver uma charada
(caso da solução de um problema) é diferente de um impulso
homossexual traduzido em quadro paranóide na consciência (caso da
hipótese psicanalítica para o surgimento das paranóias).
Outra consideração vital diz respeito ao tipo de processo que
chamamos, na Figura 34, de totalmente inconsciente ou cerebral
exclusivo. Voltemos ao exemplo da glicose. Não há dúvida que o nível
de glicose não é elemento capaz de vir à consciência em qualquer
formulação (psicanalítica ou não). Porém, parte de suas implicações
pode vir à consciência sob a forma de sensação de fome ou desejo
ardente por um prato de macarrão. Os processos que consideramos
aqui estritamente não-conscientes (cerebrais exclusivos) seriam de ordem
puramente fisiológica. Mesmo no caso da eleição do síndico, poderíamos
pensar em sistemas não-conscientes de luta pelo poder. Na noção de
inconsciente da teoria freudiana, ao contrário, haveria no inconsciente
elementos mentais impossíveis de serem trazidos à consciência (noção
de reprimido primário). O não-consciente em nossa formulação carece
de sistematização sintática e semântica enquanto que o não-consciente
da psicanálise é essencialmente lingüístico, porém oculto. O que
chamamos de não-consciente não é, de maneira alguma, sinônimo de
uma versão popularizada da doutrina psicanalítica. Pode haver
O SITIO DA MENTE

coincidências, mas elas não fazem com que a teoria aqui apresentada,
inteiramente baseada num sítio cerebral para a mente humana, tenha
relação com Freud e seus seguidores, defensores (ou, pelo menos, assim
considerados) da noção de uma mente desgarrada do corpo. 6

CONSCIÊNCIA E EVOLUÇÃO

A mente, e com ela a consciência, pode ser entendida de acordo


com uma máxima que explica a dinâmica evolutiva: o acaso vai criando
variações e a necessidade de se adaptar ao meio ambiente vai selecio-
nando as mais bem-sucedidas. Trata-se de uma capacidade de proces-
sar informação pelo cérebro que se justapõe às habilidades previamen-
te gravadas. Não convém, pois, pré-programar todas as reações,
permitindo que haja um aprendizado e uma organização posteriores,
quando o indivíduo estiver em ação. A necessidade de modificações
que possibilitem a adaptação a contextos mutantes está na base da pres-
são natural para que organismos capazes de aprender estejam mais
bem adaptados. A mente é, assim, fortemente dependente de
aprendizado.
Grande parte das conexões do cérebro humano estão abertas para
programação posterior. Imagine que tivéssemos nascido com a seguin-
te instrução: se vir um tigre, fuja. Nunca teríamos domesticado tigres,
nem os estudado, nem feito roupas da moda com sua pele. Não teríamos
também, mais tarde, achado politicamente incorreto fazer roupa de pele
de tigre, criando análogos artificiais que a imitam. Animais não têm
zoológicos, não estudam animais, nem fazem roupas com tecidos
sintéticos que imitam suas peles. Nesse sentido, do ponto de vista
evolutivo, mente significa capacidade de aprendizado e de coexistência
de programas pré-gravados com programas gravados posteriormente.
Volte ao exemplo do tigre e veja que você tem de inibir seu medo do
mas esta
é a júnica informação sobre tigres que está no
possrn1eTPzyoce saia correnao ciele e, as vezes, o comine
ara estudo.
Sé—há*o tivéssemos desenvolvido a capacidade de aprender, não
nos adaptaríamos a um ambiente em mutação. Se não tivéssemos de-
senvolvido a capacidade de raciocinar levando em conta o talvez (fujo
sim, fujo não, fujo talvez), não teríamos superado a barreira animal
para criar um ambiente cultural. Porém, se nos lembrarmos do exem-
plo da glicose e da fome, observaremos um fato importante. A mente
CONSCIÊNCIA

significou um aporte de capacidade de aprendizado em situações que


precisariam estar programadas. Por vezes, essas situações estão pré-
gravadas, como no caso da fome ou do medo do tigre. Nesses casos, a
mente pode, dentro de certos limites, inibir a informação prévia. "Fuja",
ordenará o processo 1 da Figura 34. "Não, fique e o domestique",
aconselharão os processos 2, 3 e 4. "Coma", dirá o processo 1. "Não,
faça regime porque você quer ser modelo profissional", argumentarão
os processos 2,3 e 4. Essa capacidade é importante, porque implica não
apenas manipular um talvez, mas, às vezes, entrar em conflito com a
própria ordem que vem dos níveis pré-instalados.

CONSCIÊNCIA E LINGUAGEM

Quando fechamos os olhos e pensamos numa zebra não estamos


necessariamente criando um análogo mental perfeito da zebra, mas um
conceito de zebra, em parte perceptual (isto é, advindo de nossa história
de percepções de zebras) e em parte lingüístico (advindo de nossa his-
tória de nomeações de zebras). Tal representação na mente, e portanto
na consciência, explica porque não se trata exatamente de uma réplica
da realidade o que aparece na nossa consciência quando imaginamos
ou pensamos de olhos fechados, mas de uma forma conceitual do
mundo.
Essa propriedade fundamental da consciência de representar con-
ceitos que não são exatamente idênticos ao mundo confunde-se com a
linguagem - a forma como aprendemos os conceitos vem, em geral, do
exame dos tipos de objetos que estão sob a nomeação de cada um deles
e de explicações sobre o que significam.
Imagine que você é uma criança e está aprendendo o que são
cães. Olhará para diversos tipos de cães e terá a correção dos adultos
para a nomeação: isto é um cão. Aprenderá instâncias de cães: vivos e
mortos, desenhados, separados em pedaços (isto é fundamental para
desenhos animados e para caricaturas), etc. Ao final, o que se terá for-
mado em sua mente é um conceito de cão que se serviu da experiência
perceptual e de uma série de correções e explicações mediadas pela
linguagem dos adultos. Por isso, o cão que você representa de olhos
fechados na consciência (como no caso da zebra) não é exatamente um
cão do mundo percebido pelos olhos, mas um cão que foi se formando
em sua mente graças a uma série de exames do conceito de cão.
Pense no caso da zebra. Você viu zebras e teve sua percepção
confirmada quando falava: "Isto é uma zebra." Se um dia perguntou a
O SÍTIO DA MENTE

alguém o que era uma zebra, obteve como resposta: "Parece um cavalo
listado". Não se disse quantas listas tem deter, mas apenas que é listado.
Fechando os olhos, você é capaz de imaginar uma zebra. Tentando
contar-lhe as listas, não consegue. Por quê? Simplesmente porque você
guardou um conceito que reúne possivelmente um cavalo e listas, não
importa quantas.

mentais, clepencle cia expenencia e ciaia guaflflcacaciecorreçao atrave


alinguagem. Provavelmente isso explica o porquê de termos uma vida
ã1 tão esenvolvida e uma sensação de que o mundo psíquico é nossa
consciência e não nosso cérebro. Mais ainda, explica por que a mente dos
animais não dotados de linguagem (e são todos, exceto o ser humano) é
tão primitiva.
O ser humano é o único animal que transforma radicalmente seu
meio, criando um mundo artificial para viver, constituído não apenas
de casas e roupas, mas também de instituições, livros, escolas, etc. Esse
mundo criado deve ser transmitido, e a linguagem fará parte do
processo. jq tivermos uma linguaca o suficiente para n

para incorporar concej. Cuidado, porque o conceito de zebra é de


um ente natural, mas o conceito de democracia, não. Para que possamos
uma representação cqsi'te d.-&ra, e ncpdnwnte de de-
mocracia, precisamos de uma linguagem precisa ao foriarconceitos.
As noções de aprendizado, mundo em mutação, mundo artificial
(cultura), linguagem e consciência acabam por se entrecruzar. Não
sabemos dizer exatamente qual o ponto de partida, nem quem são
todos os passageiros do processo. Mas podemos formular hipóteses a
respeito, o que veremos a seguir.

CONSCIÊNCIA: VONTADE, LIBERDADE E MORAL

A relação entre a mente e a vontade, a liberdade e a moral é, na


minha opinião, o ponto central de todo o processo mental. A palavra
"consciência" apareceu na Grécia quando se colocou a questão, de
importância vital no direito, de decidir se uma pessoa tinha conheci-
mento ou não do que estava fazendo .7 Qualquer avaliação da responsa-
bilidade de alguém perante seus atos, sejam civis, sejam penais, passa
pela idéia de que seja capaz de "ter consciência" deles. Isso não significa
que não houvesse consciência antes do surgimento da palavra. Antes de
se descrever a lei da gravidade, corpos soltos não levitavam, caíam do
CONSCIÊNCIA

mesmo jeito. Porém, se o termo "consciência" surge da necessidade de


exame das condições internas de avaliação do sujeito de urna ação é porque
essa característica está firmemente ligada ao conceito.
A idéia de que somos capazes de examinar as implicações anteci-
padas de nossos atos (capacidade de planejamento, representação
antecipada, julgamento das implicações de cada hipótese), de decidir
livremente ou por exercício voluntário está na base da vivência consci-
ente pessoal e pública. Quando digo que unia pessoa 1-em consriArrii d€

conseqüências dos seus tos hawendo, portantJ1pi valor agregado a


cada uma das hipóteses
Suponha que alguém roube um banco e vá a julgamento. Ao olhar
o acusado, aquele que julga vai examinar se tinha compreensão do que
estava fazendo, se era capaz de-decidir livremente, de agir por vontade
própria. Se, porém, o estado de necessidade de alimentar um filho estiver
presente, a noção "tinha liberdade de agir diferentemente" ficará de
certa forma prejudicada. Ou, pelo menos, isso servirá de atenuante.
A avaliação moral está intimamente ligada a esse problema. Rou-
bar um banco por necessidade terá um colorido moral que roubar uma
viúva para comprar caviar não tem. Em ambos os casos o que mais
importa não é o ato, nem suas circunstâncias de contorno, mas a
capacidade de fazer incidir sobre o palco mental os protagonistas, as
hipóteses, as ações e os valores morais e éticos.
A consciência - função, processo, conteúdo e vivência - está
intimamente associada ao aprendizado, à linguagem, à noção de
liberdade, vontade e moral. Se esses conceitos são ou não compatíveis
com o cérebro humano, vamos examinar posteriormente.
Através do processamento exaustivo de informações e do agru-
pamento de módulos que, ligados por sincronismo, constituem os
"departamentos virtuais", o cérebro cria em nossa mente a oportunida-
de de termos consciência. A consciência é a mais
mentais nãojiá um neurônio nu unia região cerpbrl
ela. A lesão em uma via nervosa resulta em uma mão paralisada. Raras
Tões localizadas conseguem abolir a consciência. Isso caracteriza o que
chamo de departamento menos concreto e mais virtual.
Lembrando que a mente significa um estágio evolutivo nas em-
presas biológicas, claro está que o processamento do "talvez" será fei-
to em departamentos virtuais. Se uma bomba explodir no 30 andar de
O SITIO DA MENTE

uma empresa, poderá destruir o departamento de cobrança, mas


dificilmente destruirá a comissão que se reúne mensalmente para
estudar investimentos. Isso mostra que as funções mentais tendem
a ter largas áreas de representação. Essa noção de representação
espraiada costuma ser chamada de representação distribuída. Nas
redes neurais é comum citar a representação distribuída nos pesos
de conexão entre os neurônios como uma característica semelhante
ao cérebro humano. Isso explica o porquê de não haver perda de
memória durante o processo de perda de neurônios (o que ocorre
durante toda a vida). Também explica em parte o processo de
virtualização dos departamentos. A consciência não poderia surgir
do processamento local de informação digital sob a forma de
manipulação lógica porque careceria da sucessiva distribuição do
processo de sincronização, responsável por recrutar cada vez maior
quantidade de neurônios, brotando quando essa quantidade passasse
por um ponto crítico de transição de fase, como vimos no caso da
água líquida e da água vapor.
Se metade do cérebro explodir, muitas das funções mentais
poderão ser abolidas. Não pense, porém, que essas funções se
localizem de maneira tão específica que se possa dizer: este é o
centro da emoção, aquele é o centro da linguagem e assim por diante.
Muito menos se pode dizer qual é o local da consciência, a mais
pulverizada das funções mentais, capaz de:
a) adaptar-se ao mundo dinâmico, em transformação;
b).instanciar decisões do tipo complexo (talvez);
c) aprender;
d) transmitir conhecimento;
e) formar departamentos virtuais para processar decisões
novas;
f) formar departamentos virtuais terceirizados que funcionem
como departamentos auxiliares na execução de determinadas tarefas
complexas.
O grau progressivo de especialização dos cérebros ao longo
da escala evolutiva vai tornando a mente cada vez mais complexa.
Podemos encontrar algumas das funções de "a" a "f" em outros
animais. Jamais encontraremos todas.
A linguagem é fundamental para entender que não só não
encontraremos todas, como também encontraremos sucedâneos de
consciência numa série de objetos e relações culturais.
CONSCIÊNCIA

VIDA ME
OBJETIVA
5
palco consciente público

palco consciente
privado
comunicação indivíduo
edificações
arte linguagem VIDA MENTAL
ciência ___________ SUBJETIVA—
política _______
moral e costumes
filosofia mental
teologia

idéias
história _rebraI
valores
expectativa
julgamento CÉREBRO
outros cérebros
animais
átomos
galáxias neurônios "virtuais"
objetos naturais

Fig.35 - O indivíduo é forjado à custa de processo de sincronização cerebral que


lhe prepara a consciência individual. Porém, pela comunicação com a mente de
outros indivíduos surgem 'fenômenos conscientes" coletivos que retroagem sobre
o indivíduo, Há, assim, em cada um de nós enquanto sujeitos, um misto de mente
cerebral e de mente virtual absoluta. Como veremos adiante, ao contrário dessa
idéia afirmar qualquer "imaterialidade" ou "espiritualidade" de uma porção do
menta outrossim, o primado do "codigo mental" sobre a "matéria
cerebral'.
CONSCIÊNCIA E TERCEIRIZAÇÃO

A capacidade de comunicação por meio de símbolos, a capacidade


infinita da linguagem, a capacidade de aprender, de transformar o meio
ambiente, de construir um ambiente artificial e de criar objetos culturais
inseriram elementos ricos no processo mental-consciente. Este ultrapassa
os limites do cérebro individual e, através da comunicação e de uma
noção de "sincronização cultural", permite que a mente de cada um
tenha departamentos terceirizados na mente dos outros e nos objetos
da cultura (Fig. 35).
O fato de a consciência poder, por meio da linguagem, estabelecer
"sintonia" através de "neurônios virtuais" com outros cérebros e com
outros bancos de dados (cultura) amplifica brutalmente a capacidade
do sistema de processar informação. O departamento virtual não é apenas
a porção da mente que processa o "talvez", mas também sua interação
O SÍTIO DA MENTE

com outros departamentos recrutados de fora (a tradição cultural) e a


interação com outras cabeças pensantes. O indivíduo que surge dessa
mente está na interface da mente privada e da pública. E um misto de
sua história pessoal e da história de seus antepassados, de seus
circundantes atuais, de seus desejos e da expectativa que os outros têm
deles, de suas idéias e dos fóruns externos que as corrigem, moldam e
censuram.
Todo o processo de forja da mente adveio da capacidade do cére-
bro de processar aprendizado, de inibir o processamento do sim ou não
e de chegar aos contextos opacos do talvez. Mais ainda, adveio da sua
capacidade de criar uma cultura, uma comunicação e remodelar o pró-
prio conceito de mundo natural. Não tenha dúvida de que um macaco
não vê galáxias mesmo que olhe num telescópio. Galáxias são parte de
um mundo natural absolutamente "informado" pela cultura. A mente
do animal é pouco desenvolvida porque:
a) seu cérebro, embora processe graus de virtualização através
do talvez e seja capaz de aprender algumas coisas, vê somente o mun-
do natural, povoado de comida, reprodução, ameaças e grupamentos
não éxatamente sociais;
b) quando olha no telescópio, não vê galáxias, mas apenas um
borrão luminoso;
c) não forma cultura e não se comunica de maneira sistemática
através da linguagem (comunica-se com alguns códigos muito pobres,
e, ainda que se venham com tentativas de ensinar macacos - tão próxi-
mos de nós em matéria cerebral - a falar e escrever, a capacidade que
demonstram não chega perto da de uma criança de 2 ou 3 anos de
idade).
O cérebro humano foi ao mesmo tempo um salto e uma ponte. A
capacidade de transformar o digital em analógico, embora não exclusiva
do ser humano, representou um passo decisivo para a consciência, um
salto do tipo explicado no exemplo da temperatura de fervura da água.
Durante o processo de encefalização (aumento do número de neurônios),
houve um momento em que o cérebro deu um salto qualitativo,
tornando-se capaz de fazer algumas coisas novas." Se você entender
que acréscimos muito pequenos podem provocar uma mudança de
fase, abandonará a idéia simplista de que, afinal, não teríamos tantos
neurônios a mais do que os macacos que justificassem quantitativamente
tantas diferenças, recrutando idéias esotéricas para explicar a transição
da mente animal para a humana.
Se o cérebro foi um salto graças à quantidade de neurônios e ao
CONSCIÊNCIA

processamento analógico, foi também ponte porque veio acompanha-


do da linguagem, com a qual se pôde realizar uma série de transforma-
ções no meio natural, criando uma cultura e uma nova forma de
interação criativa.
A consciência pode se amplificar pela comunicação e retroagir
sobre o nível dos neurônios. A mente é, assim, uma propriedade emer-
gente da interação de neurônios que pode ser ampliada através da
linguagem, fazendo de cada cérebro um novo neurônio numa grande
mente que não pertence a cérebro algum (cuidado porque há aqui uma
forte dose de alegoria e figuração). Talvez esta última etapa do processo,
aliada ao fato de que estamos submersos num mundo que parece
mental, tenha feito com que não tivéssemos intuitivamente a noção de
quão cerebral é o sítio da mente.

A CONSCIÊNCIA EA UNIVERSALIDADE DOS


PROCESSOS ABSTRATOS E VIRTUAIS

Uma determinada quantidade de neurônios chega a um ponto de


mudança qualitativa, de transição de fase - como no exemplo da água
que entra em fervura quando se aumenta a temperatura de 99 para 100
graus -, e passa a se comportar globalmente de uma nova maneira: o
cerebral torna-se mental, o digital torna-se analógico, o comunicacional
rígido toma-se linguagem.
Olhando para um indivíduo, perguntamos se sua mente está em
seu cérebro. De maneira indireta, sim. Isto é, retire seu cérebro e sua
vida mental irá embora. Mas, como vimos, o conjunto dos atores que
povoam o palco da consciência se beneficia de dois processos cerebrais.
Um é o modo de processar informação. O outro é a capacidade de
estabelecer relações lingüísticas com outros cérebros. Há uma forma de
"mente" que surge da interação entre indivíduos dotados de mente,
bem como da interação do indivíduo com cada objeto da cultura. E
como se tivéssemos a formação de um novo cérebro com três
"neurônios": o indivíduo, o outro indivíduo e um objeto cultural. Essa
interação pode estabelecer novas classes de sincronização (ou
processamento, à maneira de departamento virtual). Não há um cére-
bro ali entre o indivíduo, o outro e um objeto da cultura. Mas existe um
processo de manipulação da informação, que trafega entre os três, que
pode ser da mesma natureza daquele que o cérebro usou para fazer a
mente surgir da interação entre os neurônios. Assim, a noção de uma
mente que se descola do cérebro é verdadeira num certo sentido, mas
O SITIO DA MENTE

não em outro. É falsa quando se pensa que a mente é um espírito que


não obedece às leis do cérebro, nem adoece quando este adoece. E
verdadeira quando se entende que há um processo, de que o cérebro
lançou mão para fazer com que a informação se tranformasse em mente,
que pode ocorrer novamente na interação entre indivíduos ou entre
indivíduos e produtos culturais. Paradoxo aparente, percebe-se assim
que a mente é cérebro porque é nele que surgiu e é nele que até o
momento encontra expressão; não é porque, enquanto processo e
codificação, pode ser replicada em outros meios físicos de suporte:
máquinas e sociedade.
Há cérebro por trás da mente do indivíduo e de seu interlocutor,
como também há cérebro por trás dos objetos culturais, que carregam
em sua simbologia determinada gama de informações mentais e que só
puderam surgir quando se passou a manipular informação ambiental
de forma mental. O conceito de virtual - departamento e recrutamento -,
pedra angular na compreensão da lógica do mental, é mais que analógico.
E sobretudo a ênfase num estilo inteligente de codificação, interpretação
e uso do tempo como eixo suplementar na representação dos objetos
mentais. Por isso é universal e, como boa ciência, desmaterializa objetos
e casos, remetendo-os ao mundo das formas ideais - código puro.
Suponha que se queira transmitir uma mensagem por fax. Colo-
ca-se a folha de papel com a mensagem escrita na máquina. Esta, de-
pois de ler a mensagem, transforma-a em códigos, que são enviados
pela linha telefônica ou pelo satélite para outra máquina que, por sua
vez, os retraduz numa nova folha de papel. A mensagem é o que está
por trás da folha e dos caracteres e pode ser capturada por um proces-
so (no caso do fax, a digitalização) que guarde a chave da recriação
posterior do objeto, através da decodificação. Esse objeto papel escrito
não precisa trafegar pela linha telefônica. O que trafega é a possibilidade
de ser codificável através de um processo.
A mente é uma forma que o cérebro descobriu de processar in-
formação. Não precisa por isso estar confinada em nossa cabeça, como
a mensagem de fax no que tem de essencial não carece do envio do
papel. A cultura também não tem mente na medida em que não tem
cérebro, porém, como linha telefônica e fax, pode instanciar o mental
pela posse do código.
A mente, enquanto objeto, está confinada exclusivamente no cé-
rebro humano; enquanto processo, pode ser replicada em máquinas e
também em meios que sejam capazes de preservar-lhe a razão
codificante. Enquanto objeto cerebral, adoece com ele; enquanto
CONSCIÊNCIA

processo, pode adoecer onde quer que sua natureza funcional esteja
sitiada.
Reinstaura-se, assim, a noção científica de processo, e não só de
objeto, no âmbito de uma ciência do mental. Não se prçppe com o

desce

concr eto e colocar ênfase no processo geral. A mente pode ser então
colocada fora do cérebro, desde que se entenda a noção de processo
mental e de código que prescinde do objeto físico, servindo-se dele
apenas como meio para realizar-se. Isso liberta e aprisiona. Aprisiona
porque devolve a mente para o cérebro, único meio até hoje conhecido
de processar códigos de forma mental. Liberta porque nossa interação
pode, através da cultura e da linguagem, criar diferentes níveis mentais,
superiores, públicos e objetivos, etéreos pela natureza do método
científico, não mais parentes do espírito, mas apogeu da razão, que
antes entendeu o mundo e agora pretende entender-se.

CONSCIÊNCIA E CRENÇA

Há um aparato que dirige nossas atitudes, uma teoria intuitiva


da vida mental, que supõe que haja uma determinada gama de modos
de relação mental com os objetos. Esses modos, chamados intencionais,
são a crença, o desejo, o saber, o temor, a intenção, etc. 9
Quando digo que creio em alguma coisa, há dois elementos em
jogo: a crença e alguma coisa. Quando digo que temo essa mesma coisa,
há também dois elementos: o temor e alguma coisa. Temer e crer são
muito diferentes. Mas aquilo em que se crê ou que se teme pode ser a
mesma coisa. Suponha que digo: "Paulo crê em marcianos". E, em
seguida: "Paulo teme marcianos". O objeto é o mesmo, marcianos,
porém o modo mental é diferente: num caso, é a crença; no outro, o
temor. Esse fato gerou uma série de argumentos na história do pensa-
mento distinguindo a mente da matéria (do cérebro). Acreditava-se que
a matéria não teria capacidade de representar objetos e de se dirigir a
eles com modos internos diversos. A confusão me parece advir da
superposição entre objeto/processo/função e sistemas escolhidos para
descrevê-los:
a) primeiro lugar. c'érebros não cr ê em. nem desejam - em
intencionam, mas avenas processam sinaise1tricos;
mentes
O SITIO DA MENTE

c)jtescrAim pnrqlie já são o resultado de processos crQlJais


retados linüisticamente na consciênciadecada um-na

U) processos cerebrais apenas criam condições de disposição para


se comportar da maneira x ou y.
Quando formulo a seqüência "Pedro se ajoelhou no altar. Por
quê? Porque crê em Deus", faço apenas um recorte lingüístico de atos
cerebrais que se amoldam a essa explicação. Na verdade, o que está em
jogo é um pouco mais complicado. Pedro se ajoelhou (fato). Pessoas
que se ajoelham crêem em Deus (hipótese da teoria intuitiva). Logo,
Pedro crê (conclusão por inferência).
Veja no exemplo que precisei da noção de pessoa ou de indiví-
duo. Pedro é um indivíduo na medida em que comunga numa consci-
ência coletiva e numa mente coletiva informada pela linguagem. Logo,
pode tanto ser objeto da interpretação acima como pode internalizar
essa interpretação. Isso não quer dizer que neurônios creiam nem que
crenças sejam digitais ou analógicas. Tudo são planos de recorte e in-
terpretação de objetos.
O problema da crença e de outros tantos operadores mentais é
que estes supõem uma consciência por trás deles. Essa consciência nasce
da oscilação ordenada e da ação e retroação de fatos mentais sobre o
mundo. Portanto, a consciência individual se parece cada vez mais,
mesmo no seu panorama subjetivo, com o mundo lingüístico e público
que a formatou e cada vez menos com uma vivência subjetiva simples.
Nesse mundo coletivo há pactos e crenças. Falar de neurônios e
sincronismo parece subtrair dele seu vocabulário histórico. No entanto,
cuidado, porque esse vocabulário pode ser apenas a nomeação, num
sistema de descrição posteriormente internalizada, de disposições ce-
rebrais subjacentes.

CONSCIÊNCIA: SUPRA CONSCIÊNCIA E INFRA CONSCIÊNCIA

A consciência, como palco da função e dos atores mentais, é


preparada pela sincronização de oscilações que abandonam a mani-
pulação digital, processando códigos de freqüência. Este mecanis-
mo gera, todavia, juntamente com a explosão qualitativa do acréscimo
de neurônios no sistema, um fenômeno de comunicação complexa,
que, aliado à possibilidade de transformação do meio, faz surgir
CONSCIÊNCIA

novas formas de processamento analógico de informação, novas sin-


cronizações.
O mundo agora é a fonte dos códigos, e a sincronização estabele-
ce, via comunicação, uma nova mente que ultrapassa os limites do corpo
físico. Se isso foi explorado intuitiva e misticamente como
paranormalidade ou como esoterismo, a noção de mente virtual pode,
e deve, reinserir no domínio da ciência a natureza do processo. E a
generalidade e a abstração do processo que estão na ordem do chama-
do processamento mental, não necessariamente a presença de um
cérebro. Vai daí que a "mente" se espraia por vários nós do mundo,
onde quer que haja dois ou três reunidos em seu código, sejam apenas
indivíduos, sejam indivíduos e elementos culturais.
Num primeiro momento, o cérebro processaria informação pré-
gravada de maneira digital (departamento concreto), respondendo sim
ou não a determinada solicitação (é o processo 1 na Figura 35). Com o
passar do tempo, por pressões adaptativas, dar-se-ia a evolução da
máquina cérebro (por acúmulo de neurônios chegando à transição de
fase), surgindo, então, as habilidades de:
a) processar também analogicamente (código de barras, sincroni-
zação, departamento virtual);
b) comunicar-se com outros cérebros de maneira efetiva e criati-
va, transformar o meio e criar objetos culturais.
Essas duas classes de habilidades criariam um departamento vir-
tual, que é um modo de processar informação (processamentos ligados
ao talvez, situações em que muitos cenários são possíveis e defensá-
veis, etc.), correspondendo no cérebro (Fig. 35) aos processos 2 e 3, em
princípio, passíveis de ser trazidos à consciência. O processo 4, a
"consciência" propriamente dita, resultaria da reunião de 2 e 3 através
de sincronizações e o processo 5 é uma etapa posterior de forja do
indivíduo graças à conjunção entre mente subjetiva e objetiva, mundo
pessoal e mundo social e cultural. 10
Toda vez que estabelecemos contato, através da comunicarão,
outros cérebros ou com objetos culturais, temos uma
tipo mente virtuaL Os objetos mentaiiTrito o processamento mental
de outros indivíduos como as obras culturais (resultado da operação
de cérebros ou de outros processos mentais) - podem estabelecer com
nossos processos mentais um processo análogo àquele que se passa no
cérebro para produzir fatos mentais. A "sincronização" gil opstahplpci-
mentodecódios análogos de infer diaçn entrá- m fatos mentais
outrosu aqueles gravados nos objetos culturais) produz uma
O SITIO DA MENTE

,noyajnente que paira acima e nossos cérebros. De certa ormrúne


joàL,1.as mentes e suas herqpças
O mundo natural, sob a influência da mente humana, muda de
natureza. Como vimos no exemplo das galáxias, não somos apenas
manipuladores de impressões sensoriais (o que o macaco conseguiria
ver no telescópio), mas manipulamos conceitos que são explicados em
disciplinas específicas. Peça 2ara iapaolhar um_átomoNão
,

o que olhar Api tál "r" át om nz inpIii(Fig. 35):


a)amadurecer os circuitos neurais 1,2e3através do desenvolvi-
jmento, aprendizado e .treinanienL;
b) ser capaz de representar conscientee (Rçesso 4) o con-

c) ser capaz.,de estabelecer ligações comunicacionais entre..es


proçssos2,j'i mm outros indivíduose
lousas de n' 'me o nível 4, em contato cm esses nuos notc Áq

arizd L si1tonia, etc. pro).


Os processos Z ë5 podem ser trazidos à consciência (e, portanto,
são mentais). O único processo consciente imediato é o 4, que resulta
da sincronização de 2 e 3. Os processo 5 é aquele que pode ser recrutado
através da comunicação com outros cérebros e com objetos da cultura.
E trazido à consciéncia através da sincronização de 2 ou 3 com 5 ou de 4
com 5. Tanto 2 e 3 como 5 não são imediatamente conscientes. Por isso,
chamamos 5 de supraconsciente e 2 e 3 de infraconscientes. A consciência
(processo 4) é somente um palco e uma unidade que cola partes de
processamentos do tipo 2,3 e 5.
A consciência imediata é aquela que se constitui do palco e dos
personagens em cena. Com um pouco de trabalho podemos recons-
truir seqüências através da memória, do pensamento e da linguagem
narrativa.
Imagine a peça Chapeuzinho Vermelho sendo encenada. Num
determinado momento, você vê a cena em que a menina pergunta ao
lobo por que tem um nariz tão grande, uma boca tão grande. ..A
consciência, enquanto palco, aloca naquele exato momento a imagem, o
som e a integração numa tela que permite sua apreensão imediata. Mas
vai além disso. Chega uma pessoa atrasada e pergunta o que está se
passando. Você imediatamente recruta sua memória e faz uma síntese
dos quadros anteriores. Não é preciso recrutar quadro a quadro para
reter o contexto na memória. Feche os olhos e você se lembrará da cor
do vestido da protagonista. A consciência é capaz de estar imediatamente
CONSCIÊNCIA

ligada à cena (ou às vezes, desatenta, viajar até outro extremo do mundo
e se preocupar com o filho que está em férias e não telefonou às 18h,
antes de você sair para a peça). E capaz ainda de acessar a informação
anterior e descrevê-la com o uso da linguagem. E capaz de se antecipar
e imaginar a seqüência dos acontecimentos. E capaz de formular
hipóteses. A consciência é aqui o processo 4, quando imediata, e ainda
a capacidade de recrutamento de processos 2 e 3 (como a memória
imediata e a transcrição do contexto).
Voltando para casa, seu outro filho lhe pergunta qual a moral da
peça. Você tenta fazer uma interpretação do que está além da peça,
sugerido metaforicamente. Para isso, reúne uma massa enorme de co-
nhecimentos. Sua consciência mobiliza o nível 5 de processamento
através da leitura de um artigo de jornal que critica a peça, da discussão
com um especialista em teatro ou de tudo o que está estocado em sua
memória porque já lido, vivenciado ou discutido.
Diante da pergunta de seu filho, você passa a responder "consci-
entemente": "Na verdade, a peça recria o mito do enfrentamento do
perigo e da sedução, nitidamente edipiano, encarnado na figura ambí-
gua do agente familiar." Seu filho, atônito, não entende. Você tem en-
tão de lhe ensinar uma gama enorme de conceitos, tem de mandá-lo ler
e assim por diante. A consciência de seu filho, capaz por ora de estabe-
lecer os níveis 2, 3 e 4, precisará daqui para frente acessar o nível 5 e
sofisticar uma série de mecanismos para que um dia possa entender as
informações contidas em sua explicação. -
, iIiciestá em n1 trte mutação. Para aléjn
de sua vivênciq recrutamemórias
réviosçpj- p íjjpj jj serpm adgwijjçinOs processos de
aquisição de conhecimento, quer pelo exame das circunstâncias
infraconscientes (o que pode até passar pelo lado oculto das motiva-
ções e dos desejos), quer pelo, exame das circunstâncias supracons-
cientes, fazem dela um palco que recebe a cada vez uma peça diferente,
um contexto diferente, uma montagem diferente, uma performance di-
ferente, um conjunto de atores diferente, uma leitura diferente do tema.
Enquanto palco, é apenas a sincronização de módulos virtuais infra e
supraconscientes. Enquanto peça em plena atividade, é uma seqüência
de fatos que recrutam memórias imediatas e conjecturas futuras, tendo
no presente apenas um elo da cadeia.
Considerar a consciência suporte da vida mental é importante
desde que distingamos os fatos agora presentes, os conceitos por ela
manipulados e o concurso da memória, da imaginação e das hipóteses
O SITIO DA MENTE

para que ela possa construir, através da linguagem, narrativas coe-


rentes.
No esquema da Figura 35, percebe-se que a noção de indivíduo
toma parte do palco consciente objetivo e parte do palco consciente
subjetivo. Uma das funções básicas da consciência é a constante alocação
da posição do indivíduo perante um mundo que lhe é externo (um eu
interno, diante de um mundo que lhe é externo). Essa noção de si não
muda, embora seu corpo mude, seu tempo passe e sua mente abarque
cada vez mais conteúdos diferentes (encenações diversas e montagens
diversas).
A consciência tem o papel de fazê-lo estar ciente todo o tempo,
explícita ou implicitamente, de que, a despeito do fluxo de cenas e de
enfoques, você é sempre você mesmo. Isso poderia ser apenas o resul-
tado da produção de sincronizações neuronais (um processamento
mental do tipo 4). Mas se trata, na verdade, de um misto do processo 4
com o processo 5— embora a sensação subjetiva de unidade, a despeito
da diversidade, possa ser uma propriedade de abstração do sistema
nervoso, a correta caracterização do indivíduo como centro de decisão,
pensamento, liberdade, vontade, livre arbítrio e responsabilidade
depende de construções do mundo cultural que, através da linguagem,
se incorporam à consciência.
Essa noção de indivíduo, base de toda a relação humana, privada
e pública, social, política e econômica, depende, portanto, de uma ca-
racterização formada pela mente virtual. À vivência subjetiva, primeiro
plano da operação mental (processo 4) deve agregar-se uma vivência
objetiva, cultural e lingüisticamente moldada. A vivência de indivíduo,
de sujeito, numa sociedade totalitária e repressiva tenderá a ser diferente
da vivência numa sociedade democrática e com liberdade de expressão.
Porém, cuidado com esta última afirmação. Na sociedade repressiva
de molde antigo, a consciência individual é pobre, espelho da tradição
coletiva. Na sociedade livre, porém igorante e formatada pela
propaganda e pelos modismos, também ocorre o mesmo, com ares de
liberdade e identidade. Na sociedade repressiva de molde ditatorial, a
consciência individual pode florescer porque ameaçada em seu brio;
também a coletiva pode florescer, ainda que reunida em segredo, pela
busca do ideal comum. Na sociedade moderna, livre, porém ignorante,
a consciência individual é a internalização de um ideal médio de
comportamento ditado pela mídia e a coletiva é desideologizada,
concreção de ideais fugazes de solidariedade sob a forma de caridade
focal e assistencialismo.
CONSCIÊNCIA

A mente, naquilo que tem de genérico e de princípio de


embasamento, forja no cerebral sua unidade na diversidade, mas se
molda pela cultura para formar o produto final - a noção de indivíduo,
sujeito da ação e do pensamento. A noção de sujeito e de personalidade
que estão por trás da mente talvez sejam os traços essenciais da função
biológica que ela desempenha.
O tipo de sociedade criada para enfrentar os desafios naturais,
tornando-nos aptos a sobreviver, é organizada através de diferentes
instituições. As leis, a moral, os costumes, a ética, o direito, as trocas,
as relações econômicas são todas dependentes da noção de sujeito-
agente. Essa noção está no âmbito da consciência subjetiva e de sua
vivência de unidade na disparidade. Ao mesmo tempo, sofre a coação
e a formatação dos elementos da consciência objetiva, fortemente
moldada pela cultura e pelas relações interpessoais. Eis o porquê de:
a) a mente ter sido tratada e entendida como se estivesse disso-
ciada do cérebro;
b) os fatos mentais se parecerem tanto com o mundo e este mun-
do e estes fatos se parecerem tão pouco com o cérebro;
c) várias vivências incompatíveis da consciência subjetiva entra-
rem em conflito com a consciência objetiva, o que levaria a reprimi-Ias,
esquecê-las ou evitá-las;
d) vários determinantes das ações se situarem muito mais no pla-
no das expectativas externas do que no preenchimento e exame das
condições internas;
e) não haver interesse em explicar a mente em termos puramente
mecânicos, uma vez que isso colocaria em xeque algumas das noções
atadas à noção de sujeito, como a de que é livre e capaz de agir por
determinação de sua vontade;
f) haver uma ênfase absoluta, embora errônea, no poder da von-
tade, do pensamento e das boas idéias, como se o mundo fosse vonta-
de pura, como se querer fosse poder, como se mente fosse uma coisa e
cérebro outra.
Se os animais têm, como querem alguns, graus incipientes de
vida mental e são capazes de processamento analógico, então:
a) o processamento analógico é apenas uma condição necessária,
mas não suficiente, para o processo de forja do departamento virtual;
b) entre as outras condições estão a linguagem e a manipulação
de contextos cada vez mais complexos.
Por contextos complexos não se entenda apenas a trajetória de
escape do animal diante um predador (já vimos anteriormente que is-
O SITIO DA MENTE

so é um problema complexo num certo nível), mas sobretudo a possibi-


lidade de não se reagir instintivamente às situações (fugir ou lutar).
O abandono da digitalização da resposta cria a possibilidade de
se tratarem problemas, antes resolvidos através da fuga ou luta, com
arsenal variado de estratégias (fuga ou luta inclusas). Mas temos de
aceitar que o fato de a mente se encontrar desgarrada do cérebro tem
na consciência objetiva (processamento 5 da Fig. 35) um forte aliado.
Nascidas de um estilo cerebral de processar informação, as men-
tesesparramaram-se, e também seus produtos, por todos os pontos
onde havia mais cérebros em contato. Essa virtualização, basicamente
ligada à abstração do processamento e não ao objeto, tornou a consci-
ência um fato misto, natural e cultural, cerebral e imaterial.
Entender a exata dimensão dessa abstração significa estar atento
à origem cerebral do processo, embora não confinando no cérebro sua
totalidade explicativa. Se isso traz todas as ciências para a base cerebral,
nem por isso faz do cérebro a razão que fundamenta e explica todo e
qualquer saber. A importância dessas cônsiderações situa-se principal-
mente no exame das situações negativas e não das positivas. Não se
pode dizer tudo o que uma mente pode fazer pelo exame de sua gênese
cerebral, mas se pode dizer aquilo que não pode fazer, o que remete ao
estudo das disfunções mentais. Se a vontade, a liberdade e a responsa-
bilidade precisam ser preservadas por constituírem figuras
protagonizadas pela consciência objetiva, deve-se dar a elas o devido
peso e limites, uma vez que a consciência subjetiva tem no cérebro
fatores limitantes. Isso, ao contrário de aprisionar a mente no cérebro,
liberta-a do discurso falso, místico, enganoso e, portanto, disfuncional.
O grande dilema da reintegração da mente no seu sítio cerebral é
manter intocado o estoque de objetos lícitos e funcionais por ela criados
no domínio da consciência objetiva. Essa consciência é virtual por
definição e parda com o cérebro apenas a identidade da abstração e
do código. E preciso, pois, distinguir meio e conteúdo/ forma da men-
sagem. O cérebro é especial porque, até o momento, é o único meio
que codifica informação física tornando-a mental. Não cabe perguntar
se a imaterialidade da mente nos processos 5 é análoga à de qualquer
espiritualidade, porque isso significa confundir a mente processo com
a mente objeto. A mente objeto se confina no cérebro, mas a mente
processo está ali e também em toda a parte. O processo é basicamente
uma noção de computação, de cálculo, que torna o problema interes-
sante por duas razões:
a) em primeiro lugar, porque a mente não é apenas propriedade
CONSCIÊNCIA

de cérebros, podendo ser replicada em máquinas (desde que estas


refaçam toda a peregrinação dos níveis de 1 a 4 e do 5 também);
b) em segundo lugar, porque mostra quando a noção de patolo-
gia mental é cerebral e quando é de comunicação e de processos abstra-
tos de codificação e manipulação de entidades.

CONSCIÊNCIA E MÁQUINAS

Não é de hoje que se supõe que possa haver algo de máquina na


tarefa dos cérebros de gerar funções. Ao longo da história sempre hou-
ve quem propusesse explicações mecânicas para a mente. Houve mo-
mento em que ela foi comparada a um sistema complexo de chafarizes
e fontes. Depois, a uma central telefônica e assim sucessivamente. Si-
tuando-a no cérebro ou em algum órgão do corpo, sempre houve quem
desejasse dar-lhe o statuto de objeto natural, sujeito às mesmas leis
dos corpos físicos/
Quando falamos em explicação mecânica, entendam-se duas coisas:
a) a física, desde Galileu e Newton, seduz como a ciência mais madura
e que mais longe chegou no entendimento dos fenômenos naturais; b)
até o século XIX, a mecânica de Newton praticamente dominou a cena,
sendo o mecanicismo o ideal científico por excelência.
Duas são as razões que permeiam qualquer projeto "mecanicista"
para a mente. A primeira é a necessidade de manter a natureza unificada;
a segunda, explicar a base das patologias mentais.
A mente como fenômeno biológico é uma propriedade do corpo
vivo, particularmente do cérebro. Estudá-la significa trilhar os mesmos
caminhos de qualquer outro estudo científico da natureza. Como não
convém, em qualquer área do conhecimento, que se multipliquem as
substâncias, falar de matéria e de espírito insere complicações terríveis
na estrutura do mundo. Isso não quer dizer que estamos negando a
existência dos valores espirituais. Mas sim que, ao permitir que haja
um reino da natureza e um reino do espírito, ou um reino da natureza e
um reino da cultura, estamos abandonando a estrutura única dos
fenômenos.
Poder-se-ia dizer que isso não tem importância e que "qualquer
pessoa sabe que háo espírito e a matéria". Os mais sofisticados dão até
um argumento interessante: nem matéria há porque a noção física de
matéria foi se evaporando à medida que se descobriram divisões para
o átomo (antes unidade fundamental da matéria). Essas divisões colo-
caram em xeque a noção de matéria porque abaixo de um certo nível
O SÍTIO DA MENTE

não se encontravam mais pacotes de matéria, mas pacotes de energia.


Não teria sentido falar de matéria nem de espírito. A noção de energia
- unidade de tudo - resgataria a noção de espírito, dando-lhe inclusive
ares científicos. A história da mente reserva a cada momento uma
idéia que tenta resgatá-la desse domínio espiritual, recolocando-a
na natureza.
Neste século a computação permitiu que se visse o cérebro como
um aparato que calcula (sentido da palavra computar) sobre cadeias de
símbolos. A mente seria o pensamento e o pensamento, uma computa-
ção sobre sentenças ou seqüências de símbolos. Ao contrário das figuras
mecanicistas anteriores - centrais telefônicas, chafarizes e tantas outras
-, a noção de mente como cálculo ou computação tinha tudo para vingar.
A lógica do século XIX (a lógica matemática) já havia mostrado a
estrutura das proposições que expressam um pensamento completo.
As tabelas de verdade e as regras de manipulação de sentenças permi-
tiam que se construíssem argumentos válidos e não-válidos, bem como
que se verificasse a verdade e a falsidade das sentenças. Se é possível
construir sentenças (ou proposições - aqui não cabe examinar suas
diferenças) e criar meios de deduzi-Ias de outras, sabendo ser válido ou
não o processo, então é possível construir seqüências de raciocínios ou
de pensamento. 11
Pare um pouco e se pergunte o que você faz quando digo: "To-
dos os homens são mortais. Paulo é homem. Logo, Paulo é mortal."
Você verifica a verdade da sentença geral "Todos os homens são
mortais", a verdade da sentença particular "Paulo é homem" e infere
que a conclusão é exatamente "Paulo é mortal". Isso está na base do
pensamento e do raciocínio. A grande capacidade da mente é examinar
a natureza de verdade ou falsidade de sentenças e de validade ou não
de certos argumentos. Cuidado com esses conceitos. Argumentos são
válidos ou não. Sentenças são verdadeiras ou falsas. Quando monto
um raciocínio ou pensamento, na verdade o que estou fazendo é articular
ambos os conceitos. Se um argumento é válido, a verdade da conclusão
segue-se da verdade das hipóteses.
Veja o argumento: "Paulo é careca. Um careca matou um gato.
Logo, Paulo matou um gato." Paulo pode ser careca, um careca pode
ter matado um gato e Paulo também pode ter matado um gato, porém o
argumento acima é não-válido, independentemente da verdade ou da
falsidade de suas sentenças. Pensar seria, assim, ter capacidade de:
a) reconhecer uma proposição ou não (veja a diferença entre
"Paulo é careca", "Paulo é marciano", "Marcianos verdejam alegre
CONSCIÊNCIA

porta". A primeira é uma sentença verdadeira. A segunda é uma sen-


tença falsa. A terceira é uma não-sentença ou não-proposição);
b) reconhecer a verdade ou a falsidade de uma sentença ou pro-
posição;
c) reconhecer a validade ou não de um argumento (articulação de
um conjunto de sentenças tais que, se as premissas são verdadeiras, a
conclusão segue delas);
Esse esquema é uma forma simplificada de apresentar as coisas.
Na verdade, pela validade e pela estrutura dedutiva posso inferir e
provar uma série de coisas. A lógica seria assim uma ciência das
inferências necessárias ou o arcabouço do pensamento inteligente. A
capacidade de inferir, de saber válidas ou não-válidas as inferências e
de examinar a verdade ou a falsidade de sentenças está na base da
concepção de uma mente que é computação. A reboque da lógica, surge
uma forma de fazer máquinas, abstratas ou reais, executarem as fun-
ções acima.
Imagine uma máquina que manipule uma sentença. Se a sentença
for verdadeira, segue em frente através de uma porta aberta; se for falsa,
pára numa porta fechada. Isso é possível graças a dois artifícios:
a) a estrutura digital dos valores de verdade (verdadeiro ou fal-
so, 1 ou O) presta-se a ser replicada em qualquer aparato físico que
possa funcionar com portas lógicas - abertas ou fechadas. Como vi-
mos de maneira sucinta em outros capítulos, as tabelas de verdade
permitem que se computem através de O e 1 vários conectivos lógicos
e, portanto, suportam cadeias de dedução lógica (similares a argumen-
tos válidos e sentenças verdadeiras ou falsas);
b) o aparato pode ser um complicado sistema de vasos comuni-
cantes com água, um prédio cheio de portas abertas e fechadas, uma
máquina com engrenagens em diversas posições, um circuito eletrôni-
co ou um cérebro (lembre-se do potencial de ação, codificando sim ou
não).
A essa propriedade da lógica de falar sobre sentenças, sobre sua
verdade e falsidade e sobre regras de construção de argumentos váli-
dos ou não acresçam-se alguns outros desenvolvimentos posteriores:
a) tudo o que pode ser dito (e portanto pensado) pode ser transforma-
do numa sentença lógica (tese de Quine), podendo ser computado
através de funções recursivas (tese de Chuch); b) tudo o que pode ser
computado através dessas funções recursivas pode ser computado por
uma máquina de Turing.
Com as idéias acima, lançou-se o principal modelo psicológico des-
O SITIO DA MENTE

te século: a mente é pensamento. A lógica é a ciência do pensamento.


Tudo o que pode ser dito e pensado pode ser traduzido em sentenças
lógicas. Todas as conexões entre sentenças lógicas capazes de criar
cadeias de inferência podem ser realizadas fisicamente por uma máqui-
na de Turing. Logo, uma máquina de Turing é uma "máquina capaz de
pensar".
A máquina de Turing é uma idéia abstrata, da qual derivam todos
os computadores. Em princípio, é uma máquina dotada de uma fita
infinita com gravações sucessivas de O e 1. O fato de estar sendo apre-
sentado um O ou um 1 determina seu procedimento no instante seguinte
(apagar, perfurar, mover a fita para a direita ou para a esquerda, etc.).
A singeleza dessa explicação capta um computador ideal. Ideal porque
qualquer computador real não terá a fita infinita, isto é, a capacidade
infinita de memória (pelo menos) . 12
Como construção formal que capta toda a potencialidade da
computação, a máquina de Turing seria capaz de processar todas as
sentenças lógicas que descrevessem pensamentos completos e fossem
traduzidas da maneira correta. Todos os raciocínios possíveis de elabora-
ção por meio dessas sentenças e de suas cadeias de ligação (cadeias de
inferência) poderiam ser executados por ela. Pode ser considerada como
a idéia da qual derivam todos os computadores.
Se nos anos 30 Alan Turing mostra o poder de sua máquina abs-
trata, nos anos 50 os computadores reais tomam-se capazes de provar
teoremas matemáticos. Essa capacidade, antes confinada na mente
humana, impulsiona a idéia de que pensar é computar e de que, se há
um sistema biológico (o cérebro) capaz de pensar, também as máqui-
nas, no caso os computadores, serão mais cedo ou mais tarde capazes
de fazê-lo.
O teste de Turing mostraria a capacidade mental de sua máquina.
Se se colocasse um ser humano conversando com um computador atra-
vés de uma interface que não permitisse reconhecer o interlocutor,
poderia a máquina enganar o indivíduo, fazendo-o crer tratar-se de
uma pessoa e não de uma máquina? Segundo a versão de Turing, isso
seria possível e provaria a capacidade da máquina de pensar. Quem
conhece esses programas rodados em computadores reais sabe que, de
fato, são capazes de enganar uma pessoa por um bom tempo. O que
faltaria às máquinas para que pudessem pensar seria apenas o desen-
volvimento de:
a) arquiteturas computacionais mais poderosas (memória, capa-
cidade de processamento-velocidade);
CONSCIÊNCIA

b) programas que captassem a estrutura das sentenças que estão


por trás do pensamento.
Porém, com o passar do tempo, a replicação de pensamento
inteligente em máquinas não se mostrou tão fácil por várias razões:
a) muitas das sentenças lógicas e das regras de conexão que estão
por trás do pensamento são não-conscientes (o sujeito não tem
consciência de todo o processo);
b) há situações em que o pensamento não computa baseado em
regras, mas em regularidades (padrões);
c) haveria problemas de parada nas máquinas pensantes (situações
em que, existindo regra, a máquina não é capaz de decidir para onde ir
e fica rodando em falso - looping também situações em que não há
como decidir pela verdade ou falsidade de uma proposição, o que
redunda em parada da máquina);
d) a mente não se reduziria ao pensamento, sendo na verdade
pensamento e algumas funções a mais.
Vamos, portanto, examinar os problemas que constituem a base
da idéia da ciência mecanicista e computacional da mente - a chamada
ciência cognitiva - que, surgindo no final dos anos 50 com a prova de
teoremas por computadores, lança as bases da nova visão da mente:
a) o pensamento é uma propriedade do cérebro humano;
b) o pensamento é feito de computação de símbolos;
c) o cérebro é umhardwaree a mente é um software.
Uma máquina dotada de potencial de processamento análogo ao
do cérebro e munida do programa certo poderá pensar. 13

SÍNTESE

A consciência éo grande atributo da mente. Entre suas caracterís-


ticas devem-se distinguir o processo que a engendra, a vivência de
conteúdos e sua função evolutiva.
Se o processo parece ser a progressiva virtualização dos departa-
mentos cerebrais através de códigos analógicos, oscilações e sin-
cronismo, o conteúdo é fortemente moldado pela linguagem e pelas
categorias de senso comum. Sua função biológica pode, pelo concurso
da vontade e da liberdade, redescrever ações e percepções de maneira
a conferir-lhes estatuto de responsabilidade.
A unidade da experiência consciente pode ser perfeitamente
explicada pela defasagem temporal dos módulos de processamento.
Como num filme, em que a velocidade de apresentação dos fotogramas
O SITIO DA MENTE

cria a ilusão de movimento, a unidade do eu e da vivência pode dever-


se às janelas de tempo que unificam porções multifacetadas da vida
mental. Pode ser, enquanto processo de codificação, base de uma forma
privada e outra pública, de uma natural e de outra cultural. Haveria
assim um processo mental na relação do sujeito com os fatos culturais.
A inteligibilidade da cultura, bem como a base de conhecimento
extracerebral situado nas bibliotecas, costumes, moral, permite que se
entenda que, se a mente por ora é privilégio do cérebro, desvendado
seu código e seu processo, poderá ser replicada em máquinas.
A distinção entre consciência enquanto objeto psicológico concre-
to e enquanto processo abstrato que a engendra permite que se reinstaure
o ideal científico do conceito puro. Enquanto objeto, é cerebral até o
momento. Enquanto processo, interpenetra com seus códigos o mundo
da cultura, forja o ser público e pode ser estudada como fenômeno
natural e processo formal.
Uma ciência da mente será computacional, stricto e lato sensu, e
também será uma ciência da consciência. Essa é a ciência cognitiva ou
as ciências cognitivas, visto que são muitos os seus paradigmas, entre
eles o que apresento neste livro.

Um dos primeiros computadores, a Máquina Analítica


de Charles Babbage (1834)
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

Capítulo 11

CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE*

D iferentes fases marcam a história do estudo da mente. An-


tes objeto da filosofia, e em alguns casos da teologia, adquire estatuto
de ciência específica com a consolidação da psicologia no século XIX.
Porém, a história da psicologia e de algumas disciplinas afins, como a
psiquiatria, apresenta diferentes correntes e tendências desde então.
No início do século XX, tentou-se, pela corrente chamada com-
portamentalismo ou behaviorismo, 1 eliminar a subjetividade da psicolo-
gia, procurando fazer dela uma ciência exata nos moldes das outras
ciências naturais. Falava-se então de comportamento e não de mente.
Esta e o cérebro eram tratados como caixas-pretas, não importando o
que se passasse no seu interior. O que era publicamente observável e
testável - o comportamento - tornava-se o objeto de uma psicologia
científica.
Imagine que olho para uma pessoa e lhe pergunto se está ansio-
sa. Não há como verificar se a sentença "Estou ansioso" é verdadeira
ou não, nem se tenho a mesma noção ou conceito acerca de ansiedade
que ela. Posso, contudo, reduzir a ansiedade a uma série de variáveis
físicas passíveis de exame, como eriçar os pêlos, arregalar os olhos,
mudar a cor da pele, exibir uma certa expressão facial, etc. Nesse caso,
em lugar de julgar a ansiedade (variável oculta, mental), estaria exami-
nando seu correlatos comportamentais. O que se supõe no behaviorismo
é que todo comportamento pode ser treinado, condicionado e, de pos-
se de estímulos e respostas comportamentais, objetivamente
determinado.
O beha viorismo foi bastante longe na sofisticação de seus métodos
de condicionamento. No entanto, o esquecimento dos fenômenos mentais

* Este capítulo poderá apresentar algumas dificuldades ao leitor menos


familiarizado com a ciência cognitiva. Não deverá, contudo constituir-se em
obstáculo à seqüência da leitura. O leitor poderá lê-lo mais superficialmente ou
ler apenas a síntese no final. O próximo capítulo voltará ao estilo anterior, mais
acessível e com exemplos de patologias mentais. Numa segunda leitura ficará
clara a importância da malha conceitual aqui contida.
O SITIO DA MENTE

e cerebrais que embasavam o comportamento acabou por colocá-lo em


xeque, além de suscitar críticas, uma vez que nem todo comportamen-
to podia ser explicado por simples exposição e condicionamento. A
mente não podia ser apenas um elo no processo, sendo por vezes o
determinante da ação.
Nos anos 30, os trabalhos de Turing mostravam a possível natu-
reza computacional dos processos de pensamento. Nos anos 50, bastou
que se construíssem programas computacionais capazes de provar
teoremas matemáticos 2 para que, abandonando o pressuposto
behaviorista de uma mente intermediária passiva, se inaugurasse uma
nova disciplina, ou uma nova teoria geral da mente, chamada ciência

- 1) a mente deve ser estudada por especialistas de diversas áreas


(multidisciplinaridade); -
2) a mente deve ser estudada por especialistas híbridos (aqueles
que dominam, ainda que parcialmente, vários nós do conhecimento -
interdisciplinaridade);
3) a mente é não apenas um elemento no processo de mediação
entre estímulos e respostas, mas também um gerador de representa-
ções que determina comportamentos antes de ser por eles determinada;
4) a mente opera submersa num sistema de significação e lingua-
gem que faz com que seus elementos sejam símbolos e suas regras de
pensamentos, a manipulação lógico-computacional desses símbolos;
5) a mente é o pensamento, de preferência o pensamento inteli-
gente.
A ciência cognitiva, que nasce com forte apelo computacional,
reúne as seguintes disciplinas no seu projeto de modelar a mente:
1. as neurociências, porque estudam o cérebro, órgão do
processamento de pensamento em sistemas biológicos;
2. a psicologia, porque estuda a dinâmica de regras e de símbolos
mentais;
3. a lingüística, porque estuda os processos de geração, aprendi-
zado e compreensão da linguagem (como vimos, elemento característico
e fundamental do ser humano);
4. a antropologia, porque estuda o fenômeno humano em seu
surgimento num contexto e cultura determinados;
5. a filosofia, porque através da lógica e da teoria do conheci-
mento cuida do processo de geração de conhecimento e da consis-
tência de teorias;
6. a inteligência artificial, porque estuda os processos artificiais,
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

concretos ou abstratos de criação de máquinas pensantes.


A nova mente surgida com a ciência cognitiva enfatiza os proces-
sos abstratos de geração de conhecimento e de pensamento (no caso, os
processos computacionais). Se, por um lado, essa ciência recoloca a
mente no seu sítio cerebral, por outro lado, ao eleger a computação
como processo abstrato de geração de cadeias de raciocínio, retira-a do
cérebro humano, colocando-a nas máquinas (e quem sabe, no caso de
nossa formulação, em outros processos de interação, como no exemplo
que demos de dois indivíduos ou de um indivíduo e um objeto cultu-
ral). Inaugura uma nova visão porque: a) de um lado, destaca a
necessidade de estudai a mente através do concurso de varias disciplinas
e não de uma só; b) de outro, mostra que o processo computacional
que gera conhecimento pode ser realizado por cérebros e por máquinas.
A colocação das máquinas via processo computacional tem um
duplo efeito: a) enfatiza a natureza material do processo mental (no
caso da mente humana, o seu sítio cerebral de realização); b) m o s t r a
que, ao se conhecer a regra abstrata (computacional), podem-se montar
réplicas pensantes que não terão cérebros como o nosso.
A ciência cognitiva concebe a mente como departamento concre-
to do cérebro humano. Ao mesmo tempo, torna-a virtual porque pro-
cesso abstrato que pode também ser realizado pelas máquinas. Isso é
bom porque, além de afirmar categoricamente a dependência cerebral
da mente humana, possibilita, ao conceber um implementador digital,
que se repliquem processos mentais em máquinas digitais, desde que
corretamente programadas. (Até os anos 70, a concepção digital é
predominante, o que não deve ser confundido com a tese central deste
livro com forte ênfase no processamento analógico.)
A ciência cognitiva dos primeiros dias, aquela dos anos 50 é um
programa fortemente embasado na idéia de que pensar é computar.
Mas a mente não é apenas pensamento. Há uma infinidade de definições
para ela. Optamos por uma em que a consciência seria o palco e as
funções mentais, os protagonistas.
Do ponto de vista histórico, é preciso prestar atenção ao fato de
que uma concepção aceita para a mente é a de que esta supõe três
modalidades diversas de processos: o pensamento, a emoção e a von-
tade. Ou modo de processamento cognitivo, afetivo e conativo. 3
Ao enfatizar os processos de pensamento, a ciência cognitiva tomou
apenas a terça parte da mente (as outras duas seriam a emoção e a vontade) e
por isso se chamou cognitiva ou estudo da cognição. Cognição pode significar
conhecimento, consciência e também pensamento (modo cognitivo).
O SITIO DA MENTE

A concepção digital e lógica do pensamento e de sua realização


em máquinas de Turing (abstratas) ou em computadores concretos teve
grande impulso nos anos seguintes. Esse modo de computar através de
regras discretas e claras (algoritmos) sobre símbolos e cadeias de
símbolos, usando-se conexões entre elas e verificando-se a verdade de
sentenças e a validade de argumentos, estava à cata de uma verdadeira
ciência da vida mental. Isto é, de uma ciência que pudesse descobrir
quais são as regras de processamento do pensamento (análogas às leis
da lógica) e os símbolos da mente (normalmente submersos no sistema
linguístico em que operamos). Lembre-se de que a lógica (pelo menos a
mais usada até então) era uma lógica em que sentenças admitiam apenas
dois valores de verdade, verdadeiro ou falso, 1 ou O.
A idéia, então em voga, era a de que a mente deveria ser conside-
rada apenas na sua terça parte relativa ao pensamento (particularmente
a forma inteligente do pensamento), operação lógica discreta
(algorítmica), baseada em regras e com apenas dois valores de verdade
(verdadeiro ou falso). Tudo o que pudesse ser dito poderia ser traduzi-
do em uma sentença lógica e esta computada através de regras lógicas.
Tal computação, podendo ser realizada por computadores (máquinas
abstratas ou concretas), tomaria o pensamento uma abstração genérica
levada a cabo no ser humano (pelo cérebro) e em outras máquinas
também, desde que replicada a operação. Essa tendência se chamou
inteligência artificial simbólica (IAS). Por quê? Porque haveria símbolos
mentais (os blocos de representação linguística de que a mente lança
mão para se construir) e regras de manipulação desses símbolos (de
conjunção, de negação, de implicação, etc.).
A ciência cognitiva caminharia num leito interdisciplinar durante
muitos anos, tendo nos seus modelos a inteligência artificial simbólica e
procurando fazer a mente se confundir com o pensamento. Essa in-
teligência artificial seria simbólica porque: a) a mente manipula símbo-
los; b) há regras discretas de manipulação (conscientes ou não); c) essas
regras podem ser transformadas em passos computacionais (algoritmos);
d) esse processo pode ser todo ele replicado num computador (por
isso, artificial).
Porém, como vimos na primeira parte deste livro, embora os
neurônios possam ser considerados processadores digitais, a verdade
sobre seu funcionamento está na codificação analógica (frequência de
potenciais de ação e intervalo entre eles). As crises que espreitavam a
concepção logicista e digital da mente eram muitas. Entendê-las é
fundamental para reconhecer os desdobramentos e as tendências atuais
CINCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

da modelagem interdisciplinar da mente. Vamos nos debruçar sobre


quatro crises que considero fundamentais: 1. a crise da mente como
pensamento; 2. a crise das regras; 3. a crise dos símbolos; 4. a crise da
completude. Por trás das quatro há uma crise genérica que chamo de
crise na concepção discreto-digital da mente, o que me leva a propor
uma alternativa analógica de modelo para a mente.

A CRISE NA CONCEPÇÃO
DISCRETO - DIGITAL DA MENTE

As crises enfrentadas pela concepção discreto-digital-lógica da


ciência cognitiva não jogaram a inteligência artificial simbólica por ter-
ra. Pelo contrário, os sistemas baseados em regras, com apelo à separa-
ção entre o nível do programa (software— mente) e o nível do implemento
físico (hardware— cérebro) continuam a ser feitos e há muitos defenso-
res dessa idéia até os dias de hoje.

1. A CRISE DA VISÃO DA MENTE COMO PENSAMENTO

Como disse antes, em diferentes épocas da história do estudo da


mente aparecem tentativas de explicá-la através do apelo a algum pro-
cesso físico. A idéia de uma mente espiritual é incompatível com uma
série de achados. Entre eles, o de que a mente humana depende do
cérebro para funcionar e o de que lesões e disfunções cerebrais costu-
mam provocar distúrbios mentais.
A natureza não faz por via complexa o que pode fazer de manei-
ra simples, prescreve Galileu no início da ciência moderna. Antes,
Ockham4 advertia que não se devem multiplicar as substâncias, mas
tentar explicar o máximo de fenômenos com um mínimo de categorias.
Com isso, na acepção científica, a idéia de espírito não deve substituir a
natureza cerebral da mente humana. Não há menos riqueza, nem me-
nos complexidade, mistério ou grandeza num órgão que processa, com
bilhões de neurônios, o segredo da pessoa, da razão e do sentimento e
que não precisa emprestar da natureza divina sua substância não
material.
A idéia que domina o século XX - particularmente a partir da
sua segunda metade, com o advento da ciência cognitiva - é a de que a
mente humana é um processo computacional, dado que tanto cérebros
como computadores utilizam a mesma regra algorítmica, digital e
O SITIO DA MENTI

discreta para a manipulação de sentenças, construindo inferências váli-


das (pensamento) através de símbolos-sentenças e de sua conexão lógica.
A mente computacional toma-se virtual na medida em que o pro-
cesso que possibilita que cérebros manipulem símbolos é, em princí-
pio, o mesmo que possibilita que máquinas os manipulem. Aos detra-
tores dessa concepção, que insistem que computadores são capazes
apenas de algumas operações mentais, resta dizer: por ora, pois o
computador de que falamos é a máquina de Turing, forma abstrata que
inspira os computadores reais, instâncias parciais da noção abstrata de
máquina computacional.
Se a noção de mente computacional dominou esta última metade
de século, forjando uma superdisciplina - a ciência cognitiva - que
cuida de desvendar os segredos da mente, algumas crises nessa con-
cepção levaram à ampliação ou ao redirecionamento de seus alicerces
conceituais.
A primeira, e talvez mais importante, dessas revisões diz respei-
to a considerar todos os processos mentais como processos de pensa-
mento. A mente é pensamento, mas não é só pensamento ou cognição.
Também é emoção (ou afetividade ou sensação) e vontade (ou conação).
Também é intencionalidade, representação, memória, criação, etc.
O grande problema ao se lidar com a mente, como aliás acontece
em qualquer ramo do conhecimento, é definir o objeto com que se está
lidando. Para os proponentes da concepção computacional, a mente
seria digital (dois valores de verdade) e discreta (baseada em regras
claras, algoritmos, descritível num sistema de tempo discreto), análoga
ao pensamento. De preferência, ao pensamento inteligente. Por quê?
Pelas seguintes razões:
a) a lógica fornece, através de sua sentenças, a noção de pensa-
mento completo;
b) a emoção é item bem mais difícil de definir e modelar;
c) a manipulação de sentenças lógicas gera raciocínios válidos;
d) a inteligência seria a capacidade de manipular sentenças de
modo a fazer deduções, induções e abduções;
e) deduções seriam formas de raciocínio em que as conclusões
estão todas nas premissas ou hipóteses (Homens são mortais; Sócrates
é homem; logo, Sócrates é mortal);
O induções seriam generalizações a partir do exame de muitas
circunstâncias particulares (o sol se levanta todos os dias; logo, amanhã
o sol se levantará);
g) abduções seriam os processos de geração de entidades novas,
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

de criação e inventividade;
h) a inteligência, traço forte e exclusivamente humano, seria a
capacidade de pensar e de fazer as corretas manipulações lógicas dos
símbolos-representações;
i) os formalismos que embasariam as regras de manipulação de
símbolos já estavam prontos na lógica (particularmente no chamado
cálculo de predicados);
j) a tese de Quine (cf. notas 11 e 12 do cap.10) garantia que tudo o
que pudesse ser dito poderia ser transformado numa sentença lógica
(essa tese é posterior, mas exemplifica um processo de quantificação
de entes e sua conversão numa sentença lógica quantificada);
k) a tese de Church garantia que qualquer procedimento que pode
ser explicitamente descrito pode ser computado através de funções
recursivas;
1) a tese de Turing garantia que haveria uma máquina capaz de
computar os problemas computáveis através de funções recursivas
(máquina de Turing);
m) as máquinas reais que imitavam as máquinas de Turing - os
computadores - ganhavam com a microeletrônica poderoso aliado para
se tornarem mais rápidas e mais compactas (os poucos computadores
construídos antes dessa era, além de mastodônticos, tinham capacida-
de de processamento por demais limitada);
n) a arquitetura von Neumann (por volta de 1945) torna-se o
paradigma de arquitetura computacional real: programa armazenado
(instruções e dados são conjuntamente armazenados) e contador de
programa (registro que é usado para indicar a próxima instrução a
ser seguida) 5;
o) a programação dos computadores, baseada na lógica, criava a
possibilidade de controlar a operação da máquina e também começava
a desenvolver linguagens aptas a reproduzir pensamentos inteligentes
(como provar teoremas);
p) surgia assim a mais poderosa alegoria da história das alegorias
mecânicas para a mente, segundo a qual o cérebro é uma máquina real
(um hardware) que implementa um programa (software), que é a mente,
dividida em dois planos distintos: o nível da computação, isto é, da
delimitação do problema a ser resolvido; e o nível do algoritmo, isto é,
das regras de manipulação simbólica necessárias para construir a cadeia
de inferências que resolva o problema (Fig. 36) .6 Essa visão tinha e tem
muita importância e continua sendo usada.
Em primeiro lugar, sabemos que a mente não é apenas pensa-
O SITIO DA MÍNTF

nível da programa (software)


computação mente objetiva alto nível orientado
nível a objetos
nível do algoritmo virtual programa (software)
(regra discreta)
nível da
J mente subjetiva aixo nível, linguagem
assembler
computador
cérebro
implementação nível físico ('hardware)

Fig.36 - Três níveis nos computadores, seguidos de três níveis no cérebro-mente


e, finalmente, três níveis intuitivos para o usuário de computadores.

mento, mas também uma série de outras coisas, como, por exemplo,
consciência. Nem todo pensamento é consciente, nem toda consciência
é pensamento. Uma sensação não é pensamento e nem por isso deixa de
ser consciente ou mental. Um ato falho contém semanticamente um
pensamento ou proposição e, nem por isso, é consciente (caso comum da
pessoa que, muito cansada, inicia uma conferência dizendo: "Estamos
aqui para encerrar a reunião"). Há ainda uma corrente na ciência atual que
advoga a presença de pensamento sem linguagem, mas não cabe aqui
entrar nessa discussão. Neste trabalho, todo fato consciente, ou passível
de ser trazido à consciência, é proposicional e, portanto, está submerso na
linguagem.
Em segundo lugar, a idéia de que o pensamento inteligente é o
que caracteriza a mente é extremamente pretensiosa. Uma das grandes
peculiaridades do ser humano, na sua produção mental, é justamente a
de ser capaz de, às vezes, pensar inteligentemente, às vezes, não. Pen-
sar, por vezes, é tomar decisões em ambientes complexos.
Como vimos anteriormente, o que define o ambiente complexo é
a ausência de uma só solução ou de uma solução certa. Várias são
certas, porém, há algumas mais certas que outras. Sabe-se que a teoria
da decisão segue dois grandes eixos: o normativo (que prescreve como
deveriam ser as decisões) e o descritivo (que descreve como são real-
mente as decisões tomadas por nós, humanos, em certos contextos). A
teoria da decisão normativa deve muito de seu desenvolvimento a von
Neumann e Morgenstern. Baseada em árvores decisórias, reúne proba-
bilidades, teoria dos jogos, etc. A teoria da decisão descritiva deve-se,
entre outros, aos trabalhos de Kahnemann, Tversky e Slovic. 7
Chama a atenção o quanto violamos certos conceitos de probabi-
lidades. Mostre a uma pessoa uma fotografia de uma moça com uma
fita amarrada na testa e roupas indianas (típica de hippie dos anos 60) e
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

pergunte-lhe se se trata de uma: a) caixa de banco; b) caixa de banco e


ativista social; c) enfermeira e cantora lírica; d)yuppiee administradora
de grandes fortunas. O indivíduo dirá, sem pestanejar, que a alternati-
va certa é a b).
A teoria de probabilidades garante que é mais difícil acertar dois
predicados do que um. A alternativa a) traz apenas um predicado (cai-
xa de banco). O indivíduo, no entanto, devido à imagem da foto, viola
esse conceito e arrisca a alternativa b). Isso mostra que entre a decisão
normativa (aquela baseada num sistema mais sólido e, portanto,
potencialmente mais inteligente) e a que realmente ocorre (a descriti-
va) pode haver uma diferença enorme. Tanto nosso pensamento quanto,
por vezes, nossa inteligência violam regras racionais. Talvez a opera-
ção mental inteligente tenha razões que a própria razão desconheça.
Essas duas concepções - de que a mente é pensamento e de que
é inteligente - emperraram parte das investigações sobre processos
mentais. Alguns pesquisadores se defenderam das críticas dizendo que
era preciso primeiramente pesquisar a parte mais objetiva da mente
(isto é, o pensamento) para depois ampliar a investigação para outros
domínios. Isso seria possível se não houvesse uma certa interde-
pendência entre os módulos.
O módulo pensamento é fortemente coagido e influenciado pelo
módulo das emoções e da vontade. O fato de um pensamento ser
consciente ou não também o torna diferente. Se algo é consciente, ou
passível de ser trazido à consciência, pode sofrer correções, testes e
confrontações que não se aplicariam a pensamentos exclusivamente não-
conscientes. Não mencionar o problema da consciência como base do
mental, bem como omitir a emoção e a vontade, tornou esse primeiro
momento da mente computacional (ou mente cognitiva) uma visão
parcial do processo (Fig. 37).

PROCESSO MENTAL MODO

pensamento inteligente COGNITIVO


não-inteligente

sensação EMOCIONAL

vontade CONATIVO

Fig. 37 - Divisão da mente em pensamento, emoção e vontade.


O SITIO DA MENTE

A mente deveria ser considerada em sua tripla faceta, isto é, como


sede dos processos de pensamento, sensação (emoção) e vontade,
agregando-se ainda a todos esses processos a noção primária de
consciência (o palco do mental). Processo mental seria, assim, aquele
que é consciente ou passível de ser trazido à consciência (não-conscien-
te parcial). Processos absolutamente não-conscientes seriam descartados
da mente. Isso, no entanto, traz alguns problemas.
Em primeiro lugar, pode haver funções mentais - como a fala, a
escrita, a compreensão, a imaginação, a memória, a descoberta, o so-
nho, a atenção, a motivação, a percepção, etc. - que precisem de
processos totalmente não-conscientes para serem executadas. Embora
certos processos jamais venham à consciência, são importantes tanto
para entender as lesões cerebrais e suas correlações com a disfunção
mental, quanto para montar uma máquina capaz de processamento
mental. Podemos não ter consciência de certas operações de separação
de letras por contraste luminoso, mas isso não impede que elas estejam
na base da leitura e da compreensão.
Em segundo lugar, o fato de existir interdependência dos proces-
sos mentais faz com que haja pelo menos uma via de comunicação
entre eles. Não se está dizendo que um indivíduo motivado pensa que
2+2 são 4 e que um desmotivado pensa que são 5. Mas sabemos que
fatores de humor, atenção e vontade afetam o desempenho do pensa-
mento, tanto em sua direção quanto em seus conteúdos. Isso será visto
com vagar no item relativo às disfunções mentais, objeto primordial de
estudo da psiquiatria.
Estudar a mente reduzida ao pensamento não foi suficiente para
entender suas inter-relações críticas. Conseguiram-se fazer computa-
dores que provavam teoremas matemáticos e que jogavam bem xa-
drez, mas não se conseguiu fazê-los atingir os graus de compreensão
de situações de locomoção e interação linguística que uma criança de 4
a 5 anos atinge.
Insistiu-se em atribuir ao pensamento a condição de cerne do
mental e à manipulação digital de símbolos, a de cerne do processo. A
teoria que se desenvolveu graças à manipulação de sentenças e de sim-
bolos e através de regras (concepção discreto-digital) estava apta a captar
apenas algumas operações sintáticas da linguagem, começando a
apresentar problemas nas partes semântica e pragmática (responsáveis
pela capacidade de compreender significados e metáforas - cerne da
comunicação humana). As falhas de tal empreitada ficaram claras. Ha-
via que se prestar atenção às outras formas de processo mental, quer
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

de sensação, quer de vontade. Mais ainda, havia que se prestar atenção


aos processos ditos conscientes ou não. Finalmente, havia que se pres-
tar atenção ao fato de que nem todo pensamento é inteligente, no senti-
do de uma teoria da decisão normativa. A concepção de mente como
pensamento inteligente subtraiu do objeto partes essenciais - emoção,
vontade e consciência—, roubando-lhe ainda a possibilidade de sintetizar
um conceito que atendesse à sobrevivência e não ao cálculo.
A mente cognição não captava um todo, embora se defendessem
seus proponentes argumentando que: a) ou tudo é pensamento e o
pensamento é simbólico, digital, manipulado pelas regras; b) ou a von-
tade, o sentimento e a consciência são também manipulações discreto-
digitais, isto é, lógicas, simbólicas de regras sobre símbolos. Neste caso,
a omissão da vontade, do sentimento e da consciência não se deveria à sua
natureza distinta da manipulação digital discreta, mas apenas a uma
primeira escolha do pensamento como objeto de estudo.
O que vingou na história da ciência cognitiva foi justamente a
segunda alternativa. De um lado, apesar de insuficiente, a escolha do
pensamento seria um passo imprescindível para simplificar o objeto de
estudo. De outro, a idéia de uma manipulação computacional, lógica,
algorítmica, baseada em regras de representações-símbolos, incorpora-
ria o processo que está por trás também do sentimento, da vontade e
da consciência. Restava, porém, o obstáculo de princípio: a
interdependência dos processos derrogaria parte do que se supôs ser a
natureza do pensar, não tendo cabimento desacoplar o indissociável. Se
na conta simples não ocorre superposição de vontade e de emoção, no
cálculo de cenários complexos o pensamento é um híbrido, carregando
em seu bojo a motivação expressa e a oculta. Que o digam os tempera-
mentos apocalípticos ou os otimistas empedernidos.
Essas defesas todas são cabíveis, e a idéia de uma mente compu-
tacional, que opera com regras lógicas e símbolos, persiste viva e de-
senvolvendo seus trabalhos. Se, por um lado, este livro defende a
hipótese analógica de sincronização, por outro, é preciso entender que
não há um erro claro na concepção digital, alicerce de muita pesquisa e
sustentáculo de grande parte dos modelos linguísticos de manipulação
mental.
Devido a suas propriedades gramaticais complexas, a linguagem
é ainda hoje muito melhor manipulada pelos sistemas discreto-digitais
baseados em regras do que por quaisquer outros modelos. Muitos sis-
temas especialistas (aqueles que tentam reproduzir como profissionais
experientes tomam decisões) também se fundamentam nessa concep-
O SITIO DA MENTE

ção. Portanto, embora pela didática deste livro tente-se mostrar que a
concepção digital é estanque porque processa apenas sim e não, en-
quanto a mente é uma operação sobre talvez, as coisas não são tão
simples.
Os defensores da concepção discreto-digital dizem que tudo -
pensamento, emoção, vontade e consciência - pode ser reduzido a um
conjunto de sentenças, cuja manipulação se daria de forma lógica através
de certas regras. Essa idéia, expressa em muitos lugares como concep-
ção sentencial da mente, teria, porém, um desdobramento difícil de ser
aceito.
Quando se distinguem um nível de programa (software) e um nível
de implemento (hardware), mostra-se, através de provas matemáticas,
que um mesmo programa pode ser rodado em diferentes máquinas
(isto é, hardwaresde arquiteturas diferentes). Isso (chamado de problema
da múltipla instanciabilidade) tem um impacto brutal: se, por um lado,
garante novamente a condição virtual da mente digital, que pode estar
no cérebro, nas máquinas ou em outras formas de comunicação, por
outro, faz do cérebro humano apenas um dos tipos de máquina que a
implementa (ou dá suporte físico ao programa mente).
Embora esteja de acordo com a concepção abstrata e virtual da
mente, e também com a idéia de que esta pode ser implantada numa
máquina, tal formulação gera um passageiro incômodo: o estudo do
cérebro torna-se desnecessário, visto ser ele apenas um dos possíveis
meios físicos de expressão do mental. Aceita-se o cérebro como arqui-
tetura digital, guiado pela concepção do neurônio, que responde sim
ou não, mas à custa de colocá-lo na prateleira junto de um sem-número
de outras arquiteturas digitais.
O chauvinismo não é biológico. No limite, a mente será código
puro e o cérebro, apenas meio que a realiza. Mas a concepção discreto-
digital e a manipulação de símbolos produzindo cadeias de pensamen-
to paga o preço de criar uma mente cuja natureza de código puro se
situa no plano da programação (software). Ora, o computador, dividido
em processador central, memórias e, sobretudo, distinguindo o nível
do programa e o do implemento, não encontra qualquer similaridade
com o processamento humano cérebro-mental. Não há local cerebral
que lembre um processador central, nem as memórias são alocadas em
endereços fixos como acontece nos computadores.
Se a mente digital paga o preço de ser apenas programa, também
o paga por ter na arquitetura do tipo von Neumann seu paradigma
artificial. Uma arquitetura que, ao distinguir bastante bem processador
- CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

e memórias fixas, não encontra qualquer elo de contato com o cérebro


natural. E lícito, portanto, supor que a mente que brota desse projeto
também carregue suas falácias e crises potenciais.
Tudo isso, seguido de uma série de insucessos que o projeto dis-
creto-digital sofreu na realização plena de mentes em máquinas (acre-
ditava-se que até 1970 muito seria conseguido em matéria de capacida-
de mental dos computadores, o que de fato não ocorreu), abriu cami-
nho para concepções rivais.
Antes de examinar essas idéias, atente para o fato de que se po-
dem encontrar afirmações de que a crise do modelo serial levou a uma
concepção de mente processada fortemente em paralelo. Podem-se ter
vários processadores operando de maneira cooperativa, em paralelo, e
suas operações seguirem o princípio discreto-digital. Estas são não
seriais, mas nem por isso deixam de ser discreto-digitais e baseadas em
regras, com clara distinção entre programa e implemento, software e
hardware, cérebro e mente. Portanto, a mente discreto-digital, embora
ortodoxamente serial, pode ser também processada em arquiteturas
paralelas. O serial e o paralelo não se opõem na medida em que o
digital em oposição ao analógico, o discreto em oposição ao contínuo e
o programa explícito em oposição ao programa implícito é que são as
verdadeiras dicotomias dos modelos.

2. A CRISE DAS REGRAS

Se a crise da mente cognitiva somente geraria desconfianças lá


pelos anos 80, a da mente enquanto manipulação de regras teria início
no final da década de 50, atingindo a maturidade plena na de 70.
As redes neurais são arquiteturas radicalmente diferentes das
anteriores - cujo paradigma é do tipo von Neumann -, inspiradas
num modo hipotético de como os neurônios manipulam informação. For-
temente conectadas, utilizam a noção de aprendizado e treinamento
como regra de processamento. Infelizmente, as primeiras redes neurais
(percéptrons) não eram capazes de realizar algumas funções (já vimos
antes o problema do "ou exclusivo" ou, genericamente, a incapacidade
de processar problemas linearmente separáveis). Por isso, ficaram
relativamente esquecidas até os anos 70, quando, aperfeiçoadas através
de unidades intermediárias ocultas, passaram a processar tudo.
A noção de processamento por rede neural inaugurou um mode-
lo rival para a mente computacional. A suposição anterior de que hou-
vesse um processamento baseado em regras de manipulação de símbo-
O SÍTIO DA MENTE

los-representações cedeu lugar a outro conceito: em vez de existirem,


regras de inspiração lógica a sustentar as operações mentais, há pa-
drões e regularidades, dinâmica e estatisticamente treináveis.
A concepção baseada em regras, inteligência artificial simbólica,
foi substituída, com as redes neurais, pela inteligência artificial cone-
xionista (IAC). Abandonou-se, com o conexionismo, a idéia de uma
mente que executa passos algorítmicos discretos (como a máquina de
Turing), forjando a mente pela justaposição inferencial de cadeias lógi-
cas (leis do pensamento). Abandonaram-se as regras, não necessaria-
mente a concepção discreto-digital da mente.
Uma rede neural, ao contrário de uma máquina de Turing, é um
conjunto de neurônios artificiais que partem da concepção de alteração
no peso da conexão sináptica (também chamada de regra hebbiana, em
homenagem a Donald Hebb 8) através da estimulação positiva ou
negativa dessa conexão (isso já foi visto quando estudamos os neu-
rônios). Uma infinidade de neurônios são conectados através de sinapses.
Cada neurônio tem um valor de ativação e cada sinapse que chega até
ele tem uma força, positiva ou negativa, de conexão. A combinação das
inúmeras sinapses que estimulam o neurônio é integrada, disparan-

\çdal NEURÔNIO ARTIFICIAL COM SAÍDA DIGITAL

212 (+3 x -1)+ (+2x +2)= +1 x +5=5 que é maior que +1:logo, saída +1

NEURÔNIO ARTIFICIAL COM SAÍDA ANALÓGICA

+5
sem limiar

+ 2/ 1 (+3x -1)+(+2x+2)=+lxS=5 que sai inteiro porque não há limiar

Fig.38 Dois tipos de neurônios artificiais usados nas redes: o primeiro


-

com saída digital e o segundo com saída analógica.


CIÊNCIA COGNITIVA EANOVA MENTE

do ou não um sinal para a frente (no caso de um neurônio digital


com limiar) ou disparando sinais de qualquer intensidade, resultan-
te da estimulação do peso e do valor do neurônio (caso de disparo
analógico).
Os dois neurônios artificiais mostrados na Figura 38 são idênti-
cos, com a única diferença que o digital tem uma porta (limiar) e dispa-
ra um sinal sim ou não de amplitude constante (como no caso, já visto,
de axônios que disparam um potencial de ação). O neurônio artificial
analógico dispara a quantidade resultante da conta feita; não tendo porta,
a saída é o número resultante. Isto faz com que varie de um número
mínimo a um número máximo (em linguagem formal costuma-se dizer
que a saída vai de -m a "-m. Intuitivamente: um relógio digital somente
marca um número para cada hora, enquanto o analógico, de ponteiros,
percorre toda a circunferência mostrando os minutos). Isso é analógico. 9
No neurônio artificial usado nas redes neurais, distinguem-se en-
tradas (equivalentes aos axônios, que fazem sinapse com os dendritos,
nos neurônios reais) com um certo valor (veja que, na figura, os valores
são +3 para a entrada 1 e +2 para a entrada 2). As entradas, ou estímu-
los, são multiplicadas pelo peso da sinapse ou da conexão (no caso
acima, cada sinapse tem um valor: -1 inibitória e +2 excitatória, respec-
tivamente) e, então, somadas (poderiam ser multiplicadas, divididas,
etc., dependendo do que se imagine ser uma integração entre os sinais
- lembre-se dos mecanismos decisórios). Temos, assim, +3 x -1 = -3 e
+2 x +2= +4. Considere -3 +4 = +1. Este +1 é multiplicado pelo estado
atual do neurônio, que no caso é +5. Logo, +1 x + 5 = +5 (poderia ser
somado, multiplicado, dividido, etc., como no caso anterior). O +5 re-
sultante terá dois caminhos: no neurônio digital, será confrontado com
o valor do limiar e, por superá-lo (já que é maior do que +1), irá para
frente como +1; no neurônio analógico, o próprio número +5 seguirá
adiante.
A rede neural se utiliza desses dois tipos de neurônios ar-
tificiais, inspirados no funcionamento de neurônios reais (exce-
ção feita aos moduladores, mensageiros, etc.). Abandonar ou não
o digital depende da presença ou não do limiar. Porém, a dife-
rença fundamental nas redes neurais advém do fato de o
processamento não estar ligado à realização de tabelas de ver-
dade e manipulação de conectivos lógicos (que estariam repro-
duzindo as regras lógicas), mas sim à simples evolução e
processamento de números (O ou 1, no caso digital, e -m a -/-m,
no caso analógico) ou vetores. A intensa conexão de elementos
O SITIO DA MENTE

diária

ne

Fig.39 - Exemplo esquemático de uma rede neural com três camadas de


neurônios artificiais.

desse tipo dá origem a diferentes comportamentos em fun-


ção do ajuste dos pesos sinápticos ou pesos das conexões.
No exemplo da Figura 38, imagine que se mudasse o número de
cada sinapse. O número resultante seria diferente. justamente isso q
que acontece numa rede neural durante seu treinamento pqlgjecp mhe-
cer padrões e detectar regularidades. Colocam-se inúmeros neurôms

tiecna pnae ser positiva texcitatona ou negativa ulrn1t2iigJiment-


ançtirônioçntrada (no caso, são dois) com números ou vetores.
Ocorre o processamento, fruto da conectividade, gerando outros
números ou vetores na saída. Se os neurônios na saída são digitais,
podem-se ter: ambos ligados (saída 1 e 1), apenas um ligado e outro
desligado (saída 1 e O), ambos desligados (saída O e O). Se são analógicos,
têm-se valores diversos em cada um deles. 10
Há duas etapas no desenho e uso de uma rede neural. Numa
primeira fase, faz-se o treinamento. Cada resposta para uma dada
entrada é comparada com um objetivo, mandando-se a rede corrigir os
seus valores. Após o treinamento (repetidas apresentações do exemplo
e correção da saída dada pela rede), os pesos estarão todos ajustados
para reconhecer um dado fenômeno. A fase de treinamento é uma fase
de aprendizado. A rede recebe umçajp vetor)e produz unia
ída (outro vetor), gueécomparççQm a saída que seria a certa.
Calcula-se o erro earede ajustpjeus pesos de conexão para ver
se consegue aproximar a sua saída da Li-ce&ta, Concluído o
aprendizado, a rede é capaz de processar não apenaso sina hnico
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

Imagine que uma rede neural deva ser treinada para reconhecer
a fotografia de minha mãe. Coloco a fotografia na entrada (o que é feito
criando-se uma codificação de luminosidade para os pontos da foto) e
vejo o que sai. Toda vez que sai um conjunto de valores, verifico se se
aproxima da fotografia. Se não, mando a rede corrigi-los (para isso
cada rede tem uma técnica de calcular entre o desejado e o obtido e
enviar um número de correção para seus pesos sinápticos, que são
então modificados). Após o treinamento, a rede está pronta para reco-
nhecer perfeitamente a fotografia de minha mãe, o que significa que o
erro (resultado da comparação entre o obtido e o desejado) tenderá a
zero. Se colocar fotografias de minha mãe mais velha, mais moça, em
pedaços, a rede será capaz de "reconstruí-Ias", reconhecendo o padrão
\"minha mãe" em todas as formas possíveis de apresentá-la.
A rede neural é capaz de a renderaCamés-de exemplos tal qual
nós, humã Ros. 1 Dispõe de vários meios para isso, dependendo do
tipo de "professor" que a orienta na fase de treinamento (pode ser
externo ou interno) e do tipo de estratégia que se usa para corrigir seus
pesos sinápticos em função da comparação entre o desejado e o obtido
(podem ser várias as estratégias). 12 Tendo aprendido, adquire tal capa-
cidade de generalização que reconhece não apenas a situação típica (a
fotografia em que foi treinada) como também situações afins (fotos
parecidas, pedaços de foto, etc.). E exatamente isso o que fazemos
quando reconhecemos padrões. Não fosse isso não entenderíamos ca-
ricaturas.
Qual a regra lógica que está por trás desse processamento? Nenhu-
ma. A rede neural vai aos poucos analisando o sinal de entrada e
encontrando nele um padrão. A partir do momento em que o encontra, é
capaz de classificar tanto a situação protótipo como todas as outras.
Encontrar o padrão siznifica percorrer um estaco homogêneo aue não diz
naaa,cnancioneieneteçgiaies aptas a separar o
isso graças ao ajuste de pescsconectividade, capazes de, p
vas interações e correções, aproximar-se da solução para o
nonii1ente jtível através de funçõcompostas.
A rede neural é um sistema complexo de cálculos repetidos e ajustes,
capaz de, pela sucessiva exposição a um espaço amostral, criar nele
separações desconhecidas. Num submarino em que se precisa diferenciar
minas de rochas, envia-se um sonar e vai-se, aos poucos, treinando a rede
para fazer a diferenciação. Num primeiro instante, pode haver (nem sem-
pre há - caso das redes sem professor) alguém corrigindo os palpites da
rede, até que ela aprenda a fazer a distinção (Fig. 40).
O SITIO DA MENTE

À
\
cenário de energia antes do treinamento cenário de energia após o treinamento

Fig.40 - Definida uma distribuição de energia numa rede neural, temos


inicialmente vários pontos de mínima local onde a bolinha pode parar. Após o
treinamento, há apenas um ponto de mínima para a bolinha correr. Essa bacia
toda agora corresponde a um padrão.

A Figura 40 mostra que, na fase de treinamento, muitos são os


pontos em que a bolinha pode parar, o que significa que a rede não
classifica nada. Após o treinamento, cria-se um atrator (ou bacia de
atração) que faz com que objetos deixados em cada ponto escorreguem
para o centro (tecnicamente, convergem para um atrator ou para uma
solução). Isso descreve a capacidade do sistema de pegar tanto a foto-
grafia protótipo como suas partes menos típicas (minha mãe velha,
moça, de vestido, de lado, com metade do rosto coberto por um véu) e
classificá-las igualmente como minha mãe. Tal função é uma forma de
dividir padrões de acordo com certas propriedades estatísticas do sinal
de entrada. Não está sujeita a regras lógicas. E uma regra dinâmica de
aprendizado e ajuste de conexões sinápticas; um estilo de processamento
que pode ser digital ou analógico na conexão de cada neurônio, mas que
é dinâmico no todo, não-lógico no sentido de baseado em regras ou
conectivos e leis de inferência (como era a IAS).
Esse tipo de processamento de regularidades estatísticas, e não
de regras, faria das redes neurais algo mais próximo do estilo cerebral,
embora ainda se servindo de símbolos ou de pedaços de símbolos -
subsímbolos _13 que compõem suas entradas e saídas (isto é, que
interpretam os vetores de entrada e saída). O mental continua presente
na forma da representação simbólica, mas não mais sob a forma de
regras lógicas, de manipulação de conectivos e de tabelas de verdade.
Não há processador central, nem endereço fixo de memórias. O progra-
ma (software) não existe. Tanto o hardwarecomo o software somem, dan-
do lugar a uma representação do problema no peso das conexões. Tam-
bém a capacidade de aprendizado e de generalização lembram a mente
humana. A destruição de alguns neurônios (que é o que acontece nos
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

cérebros com a velhice) não elimina a capacidade de generalizar. As


arquiteturas simbólicas, se tivessem um endereço destruído, simples-
mente perderiam a informação. Os cérebros e as redes neurais não a
perdem tão facilmente porque ela está distribuída no peso das conexões
e sujeita à mudança pelo aprendizado.
As arquiteturas conexionistas constituem um segundo tipo de má-
quinas que imitam cérebros na forja da mente. Colocam em crise a concep-
ção discreto-digital naquilo em que esta se assemelha ao processamento
lógico das regras. Abolem a separação entre o nível do programa e o nível
da implementação. Podem aprender e perdem suavemente a capacidade
de classificar com a destruição de alguns de seus neurônios. Têm
processamento paralelo e não serial, 14 embora isso não as diferencie
das arquiteturas simbólicas cooperativas maciçamente paralelas. Re-
produzem um estilo cerebral de computar a mente baseado no cálculo,
não em regras discreto-lógicas e algorítmicas. Representam grande parte
dos modelos tanto da mente biológica como da mente artificial nos dias
de hoje. Não são boas para processar a linguagem natural, deixando
aberto esse campo para as arquiteturas simbólicas. São alimentadas
por símbolos (ou subsímbolos) e dão saída a símbolos mentais. Aqui,
reside a fonte da próxima crise que examinaremos.
Distinguindo-se objetos e relações entre eles, pode-se procurar a
mente nas relações, sejam baseadas em regras (IAS) ou em regularida-
des (IAC). Se a relação da IAS é lógica, distanciando-se do cérebro pela
adesão ao software como paradigma, a relação da IAC é cerebral,
evanescendo a mente enquanto programa. Porém, os vetores de entra-
da e de saída são interpretados como símbolos, quando na verdade são
conjuntos de números. O cérebro só manipula números sob a forma de
sinais elétricos. já os símbolos são entidades mentais e linguísticas. Por-
tanto, pode-se falar de uma crise da noção de símbolo, o que prepara
terreno para uma nova classe de modelos, na qual não mais apenas
relações estão em jogo, mas também objetos. Qual a relação entre sím-
bolos mentais e sinais cerebrais?

3. A CRISE DOS SÍMBOLOS

A idéia de símbolos e de uma mente que os manipula através de


regras de inferência, criando com isso - como se fosse um programa de
computador - cadeias de raciocínio, planificação, etc., é aparentemente
simples. O símbolo arbitrário, representante de uma outra entidade, é
noção intuitiva e isenta de discussão. Porém, o símbolo de que fala a
O ShIO DA MENTE

ciência cognitiva desde seu início não é somente representante arbitrário.


Daí a possibilidade de, a reboque da crítica, criar-se outra gama de mode-
los (cerebralistas baseados em dinâmica cerebral).
A noção de manipulação de regras pode ser questionada, ante-
pondo-se-lhe alternativa baseada em regularidades. Ambas, contudo,
têm um denominador comum. Diferindo no estilo de relação, acordam
quanto ao objeto - símbolos.

Simbolos arbitrários e dinâmicos

A postulação de que o conhecimento está suficientemente situa-


do (independência funcional) na mente faz com que dois conceitos se
interpenetrem: a noção de símbolo e a de representação. Símbolos se-
riam blocos que constituem a representação do conhecimento na men-
te, captando também outras dimensões. A mente como aparato pro-
cessador de informação deve digitalizar cada porção desta para repre-
sentá-la, como já vimos anteriormente. Para ser digitalizado, cada
símbolo (por exemplo, um número) torna-se uma outra seqüência (num
alfabeto binário, o número 8 viraria 1000 e o número 10 viraria 1010).
Conclui-se que o que se representa na mente não é uma seqüên-
cia fixa de O e 1 para qualquer símbolo, visto que essa capacidade muda
com o aprendizado e a experiência. Posso encontrar modos de codificar
um número de telefone inteiro sem usar o alfabeto binário, mas como
um único símbolo. Portanto, minha capacidade de manipulação vai estar
em constante mudança, não havendo regra fixa que imponha como o
número 8 ou 10 devam ser representados em minha mente. O símbolo
como representante arbitrário é objeto digital que substitui um número,
por exemplo, o8 OU O 10.0 símbolo como porção mutável que preenche
locais da memória de trabalho é mais complexo. Pode ser um número
inteiro de telefone ou uma estratégia completa para se tomar uma cidade.
Há diferentes formatos e dimensões para essa noção de símbolo sobre
os quais se debruçariam as leis do pensamento (IAS) ou as regularida-
des do cérebro artificial (IAC).
Pode-se entender essa situação falando-se dos jogadores de xa-
drez. Até bem pouco tempo atrás acreditava-se que a diferença entre o
bom e o mau jogador estivesse na quantidade de lances que seriam
capazes de antecipar. O bom jogador poderia antecipar as conseqüências
de 5 a 7 lances e o jogador fraco, 1 ou 2. Na verdade, ambos têm a
capacidade de antecipar a mesma quantidade de lances (o que advém
da limitação de suas memórias de trabalho, isto é, do número de cabi-
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

nes vagas para símbolos, normalmente 7). 15 0 bom jogador, mais expe-
riente, é capaz, porém, de condensar em cenários o que o mau jogador
observa apenas pontualmente.
Imagine que, olhando para um tabuleiro, o mau jogador pense:
"Se eu mover a torre para cá, o outro poderá mover o peão para W.
Essa informação tomou um espaço na memória (preencheu uma cabi-
ne). O bom jogador, ao contrário, fará um raciocínio do tipo: "Se eu
ameaçar o flanco do rei, forçarei a troca de damas em alguns lances".
Essa informação tomaria um espaço semelhante na memória de traba-
lho, mas embutindo muito mais desdobramentos.
Não manipulamos símbolos fixos tais como existem no mundo,
nem suas transformações em alfabetos binários estanques. Ao contrá-
rio, construímos todo o tempo blocos de representação de conhecimento
(símbolos) sobre os quais as regras ou as regularidades devem operar.
Dinamicamente recortamos chapas - símbolos -, de maneira cada vez
mais própria (inteligência e aprendizado) para a obtenção de um todo
mais elegante, rápido e funcional (conhecimento e habilidade).
Se vimos até aqui símbolos arbitrários, meros representantes de
outros objetos, e símbolos mutáveis, recortes inúmeros que ocupam
cabines da memória de trabalho, vejamos agora uma terceira categoria
de símbolos.

Símbolos e proposições

Um outro significado de símbolo, claramente identificado com a


idéia de proposição, advém da obra de Chomsky, 16 que critica a idéia
behaviorista de que todo comportamento é resultado de um condiciona-
mento.
Os beha vioristas acreditavam que o aprendizado decorresse da ex-
posição do indivíduo a um certo objeto e que a correta manipulação
deste pudesse ser gratificada ou punida, criando assim condicionamen-
tos. (Não vamos aqui tratar da diferença entre condicionamento clássi-
co e operante.) No entanto, a linguagem se compõe de uma seqüência
finita de símbolos e de uma seqüência finita de regras gramaticais que,
juntas, geram infinitas sentenças bem construídas, isto é, compreensíveis
aos seres lingüisticamente competentes. Essa competência é inata, não
dependente de condicionamento e exposição. Ou seja, se mesmo não
sendo expostos e condicionados a todas as sentenças da língua, somos
capazes de entender todas as suas sentenças, desde que bem construídas,
é porque somos portadores de "símbolos" e regras inatas que não
O SITIO DA MENTE

dependem de vivência, treinamento ou aprendizado e muito menos de


condicionamento. Carregamos de maneira inata a habilidade de reco-
nhecer o caráter proposicional de algo (ser ou não ser uma sentença
bem construída), também chamada de símbolo. Por isso, a essência do
mental está na capacidade de simbolizar e manipular símbolos.
Entidades dinâmicas, dependentes de reordenações orquestradas
por princípios que constituem propriedades aprioridamente e não só
da experiência posterior, os símbolos podem ser recortes de cenários
ou regras heurísticas, como também podem ser apenas alcunha geral
da capacidade de reconhecer proposições.
Tanto a mente como o computador (devidamente programados
com regras profundas) teriam a capacidade de manipular símbolos atra-
vés de regras, criando seqüências cognitivas inteligentes. Os símbolos
estariam em parte já estocados na nossa mente ao nascer (ou progra-
mados no software), sofrendo posteriormente mutações pelo processo
de aprendizado.
Imagine que os símbolos pré-estocados sejam placas de madeira
de diversos tamanhos e espessuras e que o aprendizado e a experiência
sejam modos de cortar peças individuais cada vez mais sólidas, funcio-
nais e econômicas para cada problema (o que variaria também de acordo
com a necessidade). As chapas de diversos tamanhos e espessuras
seriam os símbolos pré-gravados na nossa mente. Os cortes dependeri-
am do tipo de objeto a ser construído e da experiência de fazer objetos
cada vez melhores, com menos emendas, maior economia, rapidez e
elegância. Aprendizado e inteligência seriam assim facetas
complementares do processo - o primeiro, mostrando que caminhos
seguir para otimizar o processo de corte; a segunda, capacitando à
invenção de novos cortes. Cada peça cortada seria um símbolo
reordenado (símbolos dinâmicos em mutação, como no caso dos vários
modos de simbolizar o jogo de xadrez). O célebre ditado "com quantos
paus se faz uma canoa" teria seu equivalente em "com quantos símbo-
los se faz um pensamento", o que dependeria da inteligência, do
aprendizado e, claro, da limitação física dos tipos de chapa de madeira
disponíveis (símbolos prévios) e dos tipos de corte possíveis (problema
computacional tendendo, por vezes, a números muito grandes).
Para construir uma peça, um novato pegaria 10 placas de madei-
ra, dividindo-as em 50 pedaços (o que faria com que 10 símbolos prévios
fossem usados, gerando 50 símbolos dinâmicos novos). Já um indivíduo
experiente poderia usar 7 placas divididas em 30 pedaços (gastando, assim,
30 símbolos prévios e ainda economizando 3 peças).
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

O modo de encaixar as peças varia. Regras fixas seriam um tipo


de encaixe (através de bordas e pinos lógicos); regularidades, um outro
tipo (através do polimento e colagem de certas bordas e superfícies).
Isto é, de posse de símbolos prévios e de símbolos dinâmicos
reordenados (o que já é uma forma de relação), seria possível construir
objetos cognitivos encaixando-os (ou relacionando-os) por meio de re-
gras lógicas (IAS) ou de regularidades (IAC).
Símbolos podem ser então: a) representantes convencionais; b)
objetos dinâmicos que espelham cenários ou heurísticas; c) capacidade
de reconhecer o caráter proposicional ou bem construído de uma
sentença lingüística. Porém, uma última noção costuma acompanhar os
símbolos: a intencionalidade. Fala-se de uma mente capaz de manipu-
lar símbolos, de simbolizar (criar e manipular representações) e de exibir
intencionalidade.

Símbolos e intencionalidade

Uma outra ordem de problemas que se costuma agregar à histó-


ria da noção de símbolo é sua relação com a intencionalidade, conceito
que relaciona modos mentais diversos a objetos intencionais. Desejo,
crença, intenção, temor são modos mentais de se relacionar com esses
objetos. Para um mesmo objeto - por exemplo, "deixar o quarto" -, o
modo mental pode mudar-lhe completamente o significado. "Paulo de-
seja deixar o quarto" e "Paulo teme deixar o quarto" têm "deixar o
quarto" como objeto, mas dois modos mentais diversos - no caso,
desejo e temor -, que significam coisas distintas.
Na história da noção de símbolo e de mente como computação
(manipulação lógica de regras sobre símbolos), há uma forte tendência
de se associar símbolo a representação e intencionalidade. Também o
fato de que, tanto símbolos quanto objetos intencionais e modos
intencionais dependem de uma linguagem para que se possa descrevê-
los fez com que houvesse uma confusão entre esses dois conceitos, por
vezes tomados como quase sinônimos.
Símbolos constituiriam uma espécie de conceito híbrido que reu-
niria, de um lado, modos intencionais (crenças, desejos, etc.) e, de ou-
tro, condições previamente gravadas e reagrupamentos dinâmicos de-
pendentes de aprendizado. No exemplo que demos anteriormente, os
símbolos aparecem como o conjunto resultante de placas de madeira
de tamanhos e espessuras diversos, recortadas para construir objetos.
Nesta acepção, mudariam com o aprendizado e a inteligência porque
O SITIO DA MENTE

haveria múltiplos modos de se cortar as placas. A madeira seria, por


sua vez, de um tipo especial, carregando consigo a noção de
intencionalidade, e cada pedaço, depois de cortado, seria em princípio
descritível por uma expressão da linguagem (sob a forma de uma senten-
ça bem construída ou proposição).
Haveria, portanto, uma habilidade prévia para a linguagem, equi-
pando o cérebro com símbolos primitivos, entre os quais os capazes de
exibir intencionalidade seriam os mais marcantes .17 Reordenados dinami-
camente pela inteligência, esses símbolos primitivos dariam origem a no-
vos símbolos (descrevê-los seria função das proposições). Temos aqui uma
versão de cognição como símbolo pré-gravado, intencionalidade inclusa e
inteligência reordenadora posterior na foija de novos símbolos. (Essa
reordenação inteligente por vezes é chamada de heurística, isto é, um
modo de agrupar pedaços de objeto com vistas ao todo da ação inteligente
sobre o mundo, não vinculado a uma só regra de conexão).
Símbolos são blocos mentais sobre os quais se debruçam regras
ou regularidades. Feitos de chapas intencionais (crenças, desejos, te-
mores) e de uma matéria que por ora se confunde com o tecido biológi-
co que constitui o cérebro humano, seriam cortados de maneiras variadas
(operações cognitivas inteligentes de reordenação). Cada pedaço, prévio
ou reordenado, intencional ou não, seria descntível por uma expressão
linguística. As relações capazes de forjar grandes objetos cognitivos - o
pensamento, por exemplo - adviriam de conexões lógicas (IAS) entre
os blocos ou de conexões dinâmicas (redes neurais - IAC).
Embora cheia de armadilhas, principalmente advindas dos mo-
dos como os diversos autores usaram e usam a noção de símbolo, a
formulação descrita contempla grande parte das diversas acepções
correntes, nem sempre bem explicadas em cada modelo de mente. Fala-
se numa mente capaz de manipular símbolos, definidos de quatro formas
diferentes: a) como representação convencional; b) como recorte dinâ-
mico de heurísticas que preenchem vacâncias da memória de trabalho;
c) como proposições ou capacidade de serem descritos por uma sen-
tença linguística bem construída da linguagem (onde a gramática prévia
e inata seria também, de uma certa maneira, um conjunto prévio de
símbolos); d) como intencionalidade ou capacidade de agregar modos
mentais diversos a objetos de representação.
Embora muitos aceitem que a mente manipula símbolos, no sen-
tido trivial de representantes convencionais de algo, o conceito está
impregnado de um apriorismo genético ou inato exclusivo do cérebro
humano, de uma intencionalidade também especifica e de uma regra
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

dinâmica de reordenação inteligente: símbolos novos e inovadores for-


mados por recortes mentais inteligentes de peças de símbolos intencio-
nais prévios.
Os modelos de mente e de sua relação com o cérebro costumam
examinar as condições de conexão e de relação entre símbolos.
Praticamente não há modelo de como os símbolos emergem no cérebro,
senão pelas representações sensorias e motoras (perceber a cor vermelha
e linhas horizontais, por exemplo; ou mover o dedo indicador) Outro
modo freqüente é o da neuropsicologia que procura relacionar símbolos
mentais com lesões focais no cérebro.
Questionar a relação desses símbolos (mentais e lingüísticos por
excelência) com os sinais cerebrais (digitais ou analógicos), advindos de
um ou de vários neurônios, é tarefa para uma nova classe de modelos.

A DINÂMICA CEREBRAL EA RELAÇÃO ENTRE SÍMBOLOS E SINAIS

O problema da computação discreto-digital reside em dois pla-


nos. Do lado das relações entre objetos, pode-se supor que sejam re-
gras (IAS) ou regularidades (IAC) que manipulam símbolos. Porém, do
lado da caracterização dos objetos, pode-se supor que estes sejam
símbolos, defrontando-se, então, com todos os sentidos e implicações
desse conceito, visto que os símbolos dependem: do conjunto de pre-
disposições do sistema (seja computador, seja cérebro); de sua submer-
são num sistema intencional (capacidade de representar desejos, crenças,
etc.); de sua submersão num sistema de linguagem (que os habilita a
serem descritos sob a forma proposicional); e de sua submersão num
sistema capaz de reordená-los inteligentemente (que os habilita a cons-
tituir raciocínio e pensamento).
Há, dessa maneira, uma complicada noção em jogo quando se
pensa tanto nos tipos de objetos que a mente manipula como no tipo de
ligações entre esses objetos. A visão da mente como um computador
do tipo máquina de Turing supõe que haja símbolos (os objetos) e re-
gras (as relações). A visão da mente como uma rede neural supõe que
haja símbolos (os objetos) e regularidades e padrões entre eles (as rela-
ções).
Duas questões devem ser levantadas ao se pensar na mente e na
sua relação com o cérebro: Qual a relação das regras e regularidades com
o cérebro? Qual a relação dos objetos mentais, por ora entendidos como
símbolos, com o cérebro? Este ponto é fundamental, podendo levar a
noção de símbolo a uma crise ou revisão.
O SITIO DA MENTE

OBJETO RELAÇÃO OBJETO

1 símbolos mentais regras________ 1 símbolos((IAS)


logicas mentais MODELOS
2 símbolos regularidades / 1 símbolos (IAC) SIMBOLISTAS
padrões

3 D.11 ERRA

padrões coletivos regularidades padrões coletivos MODELOS


padrões CEREBRALISTAS

símbolos mentais
c lássicos quânticos
símbolos mentais

Fig.41 - Duas classes de modelos quanto à relação entre objetos: simbolistas,


(IA9;
nos guais os objetos são símbolos e, as relações, regras (IAS) ou regularidades
cerebralistas, nos quais os objetos - símbolos - são constituídos por padrões
cerebrais, e as relações entre objetos, também.

Tanto a inteligência artificial simbólica como a conexiomsta apos-


taram na noção de relação entre objetos (que podem ser símbolos ou
subsímbolos) para desvendar a mente. Numa seriam regras lógicas;
noutra, regularidades. Mas nenhuma delas tocou na emergência dos
símbolos no cérebro humano, objetos sobre os quais se debruçariam as
relações do tipo regras ou regularidades. Era previsível, portanto, que
a noção de símbolo enquanto objeto mental pudesse sofrer crises
conceituais. E também que surgisse um terceiro tipo de abordagem da
relação entre mente e cérebro, voltado de maneira mais radical para a
dinâmica cerebral de geração da mente.
No esquema da Figura 41, mostramos dois grandes enfoques
possíveis para a relação da mente com o cérebro - simbolistas e
cerebralistas. Os simbolistas são divididos em IAS e IAC. Os cerebralistas
serão divididos posteriormente em dinâmica cerebral clássica (DCC) e
dinâmica cerebral quântica (DCQ).
Como vimos anteriormente, as relações podem ser do tipo re-
gras lógicas ou do tipo padrões/ regularidades. Ambas, no entanto,
conectam símbolos dinâmicos, mutáveis com o aprendizado e a expe-
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

riência e submersos na linguagem e na intencionalidade. As redes


neurais foram uma primeira tentativa de superar o fosso entre a mente
e o cérebro (fosso que continuava a existir quando as regras eram lógi-
cas). Usaram, para isso, não necessariamente um processamento
analógico, mas certamente um processamento complexo baseado em
aprendizado, treinamento e busca de regularidades e padrões.
Fortemente dependentes da linguagem, da mente e da intencio-
nalidade, objetos de transformações inteligentes, os símbolos
constituem conceito rico, mas primitivamente mental. Por mais que se
tente, não se encontra similar cerebral para eles, o que redunda em
manter o cérebro e a mente dissociados. Uma tentativa genuína de
unificação de discursos e uma teoria completa devem, portanto, não
apenas questionar o processo de relação entre objetos como também
definir cerebralmente que objetos são esses que servem de base para a
mente.
Objetos mentais, enquanto símbolos, apresentam muitos problemas
de tradução (e, portanto, de conexão) em linguagem cerebral. Para que se
faça a ruptura definitiva, é preciso aproximar os símbolos da dinâmica
cerebral, assim como se fez com as regras lógicas ao transformá-las em
regularidades. Os símbolos devem deixar de ser digitalizados e envol-
tos pela linguagem, tornando-se o resultado de padrões de oscilação de
neurônios (códigos de barras, freqüências). A relação entre os símbolos
- oscilações - será de sincronização.
Nos modelos cerebralistas do tipo dinâmica cerebral clássica -
modelo adotado nesse livro—, os símbolos são oscilações e as relações
entre eles, sincronizações. Tanto o objeto quanto a relação estão de-
finidos numa linguagem cerebral. Vê-se na Figura 41 (em oposição
aos modelos de IAS e IAC que considero primitivamente mentais)
que o objeto é cerebral, no sentido de freqüências de disparo neuronal
(padrões coletivos), e a relação, neural por sincronização (regulari-
dades/padrões). Isso é plausível porque, além de trazer o estilo de
processamento mental para mais perto do cérebro, não só no que
tange às relações mas também aos objetos, a idéia de sincronização
e de freqüências compatibiliza-se com achados acerca da gênese da
consciência, palco do mental.
Se a mente é a consciência, então a sincronização e a oscilação
- conceitos cerebrais - podem ligar objetos e relações do plano cere-
bral ao mental. O artifício para tratar dessa questão passa a ser radi-
calmente diferente dos modelos simbolistas. Em lugar de se lançar
mão de regras lógicas e digitais e de regularidades obtidas em redes
O SITIO DA MENTE

neurais artificiais, olha-se para o cérebro em ação. Esse cérebro emite


sinais que, advindos de potenciais locais e de potenciais de ação, de
fluxo de sangue e de metabolismo de substâncias, são tratados ma-
tematicamente de modo a captar regularidades tanto na representa-
ção dos objetos quanto na relação entre eles. Claro que não se escla-
rece a natureza proposional, nem intencional dos símbolos, porém,
ao aproximá-los do cérebro, fixa-se uma norma única de base neural
para descrever objetos e relações.
Intencionalidade e capacidade proposicional são meios de
descrever em linguagem mentalista e teorias melhor aparelhadas
certas disposições do sistema nervoso de agir como se exibisse
linguagem e intencionalidade essenciais. A essa caracterização de
intencionalidade e proposicionalidade chamamos de hetero-derivada,
isto é qualificada exteriormente e não interiormente - auto-derivada
- como se fosse propriedade específica de cérebros.

INVESTIGAÇÃO DE OBJETOS E RELAÇÕES CEREBRAIS

Os métodos de investigação empírica dos fenômenos que subja-


zem às oscilações (símbolos) e à sincronização (relações) são diversos.
Pode-se captar atividade elétrica através de eletroencefalogramas (EEC)
e de magnetoencefalogramas (MEG). Podem-se captar imagens dinâ-
micas através de ressonâncias nucleares magnéticas funcionais (RNMf)
e de tomografias por emissão de pósitron (PET scan). Seja captando
sinais elétricos, seja captando imagens de funcionamento (através da
detecção de padrões metabólicos, de consumo de oxigênio, de fluxo
sangüíneo), pode-se começar a mapear objetos dinâmicos (nossos antigos
símbolos) e relações dinâmicas.
A matemática e a física entram agora no lugar da lógica para
aparelhar a análise desses sinais e dessas imagens, por trás de cuja
desordem ou até aparente aleatoriedade (caos) pode haver, como mostra
a teoria qualitativa de sistemas dinâmicos, uma ordem oculta e deter-
minada por estruturas.
Alguns sistemas são complexos e sujeitos a intervalos de com-
portamento muito irregular e caótico. Apresentam, no entanto, uma
estrutura interna que os torna muitas vezes previsíveis. A teoria do
caos, das bifurcações, é uma das ferramentas que se utiliza para encon-
trar a estrutura matemática que se esconde sob a bagunça de sinais e
padrões caóticos cheios de ruído. Essa estrutura, bem como certas pecu-
liaridades qualitativo-topológicas, permite que se associem objetos e rela-
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

ções a determinadas distribuições de freqüências. 18


O fazer científico requer que se delineiem planos e hierarquia.
Fundamentalmente, pode-se dizer que há no cérebro oscilações e sin-
cronização. Subindo-se um pouco na hierarquia, encontram-se regulari-
dades em lugar de sincronização. Um pouco mais acima, vêem-se re-
gras no lugar de regularidades. No piano dos símbolos, pelo concurso
da linguagem, as oscilações e o sincronismo transmutam-se em inten-
ções, proposições, etc. Cada nível tem uma linguagem e um sistema
teórico melhor aparelhados para descrevê-lo. A relação do cérebro com
a mente é problema de diálogo intraníveis, interníveis e também inter e
intralinguagens que descrevem cada plano.
A linguagem, principal artífice da mente, sempre exigirá que
certas explicações sejam dadas nos modelos simbolistas, através de re-
gras ou regularidades. Mas esse outro modo de olhar e modelar o
cérebro-mente (modelos cerebralistas), baseado numa dinâmica de os-
cilações e sincronização (no caso dos modelos cerebralistas clássicos),
constitui a concepção que mais chega perto da verdadeira natureza do
sistema nervoso, do cérebro e de uma definição plausível de como o
padrão analógico faz a mente emergir, quer na constituição de seus
objetos, quer em suas relações.
No exemplo da marcenaria, há três etapas para se entender o
funcionamento mental. Sabemos que as placas de diversos tamanhos e
espessuras são dadas previamente no sistema. Em função disso, é com
elas que se terá de construir instrumentos. Cortar a madeira em peças
- um processo sofisticado e sujeito ao aprendizado e à experiência -
constitui os objetos primários (partes). Cortada a madeira, há três mo-
dos de encaixe. O primeiro se dá por regras (IAS); o segundo, por regu-
laridades (IAC); e o terceiro, por um tipo peculiar de sincronização
entre as partes anteriormente cortadas (modelos cerebralistas clássicos).
O pensamento, o raciocínio e os planos seriam decorrentes do objeto
pronto: cadeias de inferências lógicas, no caso da IAS; padrões estáveis
em sistemas complexos após treinamento, no caso da IAC; e sincroni-
zações e consciência, no caso da dinâmica cerebral clássica. Essa dinâ-
mica é um modo de analisar sinais e imagens do cérebro, identificando
padrões de ordem, de freqüência e de sincronização no que parece ser
desordem, caos e ruído absolutos.
A concepção central deste livro repousa nessa maneira de enxer-
gar o problema (modelos cerebralistas, em particular aqueles que
chamamos de dinâmica cerebral clássica). Nela, não apenas as relações
entre objetos é função complexa a ser investigada, como também o
O SITIO DA MENTE

surgimento de símbolos é complexo. Ambos os processos - a foija de


padrões simbólicos e a relação entre eles - estão calcados na dinâmica
analógica dos neurônios, na sincronização de objetos, estabelecendo
relações, e na sincronização de subobjetos (ou objetos primários),
constituindo símbolos.
Não se resolvem com esse modelo vários problemas da mente já
submersa num sistema ligüístico-simbólico. Mas se oferece um para-
digma de ligação entre eventos cerebrais e mentais. Para efeito prático,
certos problemas devem ser modelados através de regras. Em outro
plano, devem ser modelados através de regularidades. Não confundir
o problema prático da modelagem com o problema básico do paradigma
de unificação é crucial. Modelos de dinâmica cerebral visam ao espectro
doutrinário da relação entre o cérebro e a mente, não sendo
necessariamente modelos práticos, no presente momento, para tratar
de problemas específicos. Talvez a dinâmica cerebral seja no futuro o
modo de ver na intimidade os processos descritos pela IAC e pela IAS.
Talvez não. De qualquer forma, parece estar aí a razão que embasa o
surgimento da mente no cérebro e que permite que se replique o processo
em máquinas.
A dinâmica cerebral é formal, matematizável. Porém, ainda está
distante de poder operar em larga escala na solução de problemas pa-
ra os quais a concepção discreto-digital já tem soluções aceitáveis. Do
ponto de vista do direcionamento da pesquisa teórica e da reflexão
sobre como a mente surge do cérebro, não é o pressuposto da eficácia
que deve imperar, mas o da verossimilhança e da proximidade entre a
mente e o cérebro com o menor número de barreiras entre os dois.
Antes de avançarmos, devemos examinar uma última crise na
noção discreto-digital, aquela que fará surgir uma dinâmica cerebral
quântica. Ao contrário do modelo que proponho neste livro - o da dinâ-
mica cerebral clássica, assim chamada por utilizar ferramentas da me-
cânica clássica para tratar o espaço de sinais cerebrais (oscilações e ti-
pos de sincronização) - e que surge em resposta à crise dos símbolos, o
modelo quântico é uma formulação complexa que advém da crise do
modelo discreto-digital em termos de completude.

4. A CRISE DA COMPLETUDE EA DINÂMICA CEREBRAL QUÂNTICA

A noção de que a mente e o computador manipulariam símbolos


através de regras remonta, como vimos, à idéia geral da máquina de
Turing. Em princípio, esta seria capaz de computar qualquer sistema
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

de sentenças e regras, constituindo-se, assim, em paradigma tanto para


máquinas quanto para mentes (concepção do neurônio como aparato
discreto-digital). Há, no entanto, questões muito precisas e tão simples
como calcular uma soma que podem gerar uma parada na máquina de
Turing que as está computando.
As principais razões que estão por trás desse problema são des-
critas pelo lógico Kurt Gõdel (nota 12 do cap. 10), que mostra que há
proposições verdadeiras que não podem ser provadas através da com-
putação de regras escritas num certo programa (isto num sistema
axiomático). Isso significa que muitas questões tornam-se insolúveis
através de passos computacionais.
De maneira geral, os sistemas que conhecemos são, em grande
parte, incompletos. Ou seja, incorporam sentenças verdadeiras que não
podem provar. Esses sistemas são feitos de conjuntos de regras e a
idéia de computação nada mais é do que fazer com que as regras se
apliquem a símbolos, como na máquina de Turing.
O problema é absolutamente radical na medida em que a consci-
ência é capaz de reconhecer como verdadeiras (como é capaz de exibir
o que chamamos de intuição matemática) sentenças que não podem ser
provadas pela computação mental (sujeita ao problema da parada, da
incompletude). Isso gera algumas limitações extremamente interessantes
em nosso exame das acepções da mente e da sua relação com o cérebro.
O problema da incompletude e da parada é mais uma causa da
crise da concepção discreto-digital da mente (esse problema não se aplica
aos modelos analógicos, o que constitui mais um ponto a seu favor).
Algumas formulações para sua superação:
1) a mente seria formada de múltiplos sistemas e a cada vez que
um apresentasse problemas de parada ou de incompletude, outro (o
nível acima) os resolveria; tal concepção faria da consciência e da comu-
nicação com a mente terceirizada as fontes de solução de problemas
desse tipo; 19
2) outra saída seria o apelo à solução individualizada de casos
especiais;
3) a terceira solução é a mais complicada e relaciona-se com a
idéia de dinâmica cerebral, não mais no sentido de aplicação de certos
modelos analógicos à análise de sinais e imagens, mas de uma visão do
cérebro como máquina quântica.
Essa idéia pode ser resumida da seguinte forma: se um sistema é
capaz de gerar proposições insolúveis que sabemos serem verdadeiras
ou falsas, então nossa consciência tem algo que esse sistema não tem. 0
O SÍTIO DA MENTE

sistema é uma versão de mente, supostamente discreto-digital, que com-


puta símbolos através de regras. Se computar símbolos através de
regras é a base da mente e se a consciência é capaz de fazer algo que a
mente não faz, então a consciência é não computacional. Porém, ser
não computacional significa ser não-algorítmica (processo discreto atra-
vés do qual definimos as regras claras de direção para o sistema, no
caso uma máquina de Turing). Se a consciência faz algo que os sistemas
computacionais não fazem (devido à parada e à incompletude), então
ela é não-algorítmica. Qual é o sistema na natureza que é não-
algorítmico? Uma situação específica da física quântica. Logo, a base
da consciência e da mente em geral deve estar em algum processo
quântico que se passa no cérebro.
A tese está toda aí, formulada basicamente por Roger Penrose, 2°
matemático inglês que lhe deu o arcabouço lógico-matemático. De ou-
tro lado, pequisadores do cérebro, como Stuart Hameroff, descobri-
ram fenômenos quânticos no nível dos microtúbulos neuronais (estru-
turas existentes no interior dos neurônios). Assim, a base fundamental
da mente seria uma dinâmica, e nesse sentido falamos de uma dinâmi-
ca cerebral, mas não mais de uma dinâmica da física clássica, e sim de
uma dinâmica quântica.
Para os limites deste livro basta a explicação acima. Parece, aos
meus olhos, um pouco forçada porque há outros fenômenos quânticos
em vários pontos da natureza e nem por isso supomos haver consciên-
cia neles. Além disso, a física quântica requer um série de outras
condições presentes que não parecem estar contempladas no
processamento de sinais no córtex cerebral, base da consciência.
Os microtúbulos estariam presentes em neurônios que, além de
não estarem relacionados com a consciência no ser humano, surgem
também nos animais que não acreditamos capazes de reconhecer se
são verdadeiras sentenças insolúveis. De qualquer forma, trata-se de
uma área muito estudada e que representa uma guinada para a dinâ-
mica cerebral advinda de uma crise da concepção discreto-digital.
Podemos agora completar nosso quadro de dinâmicas cerebrais.
Se na concepção da manipulação de símbolos encontrávamos regras
(IAS) e regularidades (IAC), na dinâmica cerebral encontramos siste-
mas clássicos e quânticos. Nos clássicos, está a concepção de proces-
samento analógico via sincronizações, que defendemos neste trabalho.
Nos quânticos, estão aqueles que supõem que haja fenômeno quântico
por trás da consciência e outros que simplesmente usam a matemática
da física quântica para analisar sinais e imagens (Fig. 42) .21
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

MODELOS CEREBRALISTAS: DINÂMICA CEREBRAL

objetos relação

sincronização
') fretiüência CLÁSSICA

colapso onda ,M QUÂNTICA


evolucão não / dístríb.iÇõe]

símbolos símbolos

Fig.42 - Dois tipos de modelos cerebralistas: a) dinâmica cerebral clássica


(DCC) e b) dinâmica cerebral quântica (DCQ).

ACASO GENUÍNO OU PROVISÓRIO?

Como uma última consideração acerca dos vários modelos, deve-


se falar do acaso. A concepção de uma mente baseda em regras não faz
apelo ao acaso. E bem verdade que sua tranformação em redes neurais
concede terreno ao acaso, mas de uma variedade compatível com o
determinismo: podemos não conhecer todas as variáveis e, portanto, o
acaso, parente da ignorância, seja talvez provisório. Isto é, se não co-
nheço todas as variáveis e parâmetros de um sistema, vou formular
uma aproximação capaz de tratá-lo. A dinâmica cerebral clássica segue
por esse caminho. Havendo problemas também com a noção de símbolo,
rompe com as regras e com os símbolos. Porém, se concede terreno ao
acaso, somente o faz por incapacidade de conhecer totalmente um
sistema. Nesse sentido usa, às vezes, a mecânica estatística, às vezes,
usa a teoria de sistemas dinâmicos. O acaso na dinâmica cerebral clássica
é provisório. Há uma ordem determinista forte ou mitigada que subjaz
ao sistema nervoso, condição teórica da busca de leis de funcionamento
cérebro-mental e também base de uma psicopatologia científica.
A teoria de sistemas dinâmicos. as bifurcações e a noção de caos
são absolutamente com patíveis com um universo ______
avarentemente desordem e acaso, oculta, na'verdTa, im&tr 11 tijp
de ordem. Por isso, chamo-a de dinâmica cerebral clássica e nela situo
toda minha argumentação.
A última forma de dinâmica cerebral, a quântica, insere o acaso
genuíno no cerne do processo. Essa é a interpretação mais aceita para a
mecânica quântica. Se o acaso for essencial, parte integrante do sistema
mental e da consciência, teremos de imaginar que não há determinação
O SITIO DA MENTE

clara para nossos pensamentos e que a vontade não passa de "pulo do


acaso". Se, ao contrário, pensarmos num sistema que é clássico, o acaso
será apenas ignorância, desconhecimento. Haverá direção na razão, mas
a vontade não nos poderá levar aonde queira. Não haverá liberdade
para além da determinação e da estrutura do sistema.
De modo sucinto, há dois grandes meios de se ver a mente: o dos
simbolistas, que pode supor relações por regras ou por regularidades,
e o dos cerebralistas, que pode supor relações clássicas ou quânticas. A
mente analógica é cerebralista e clássica. E isso terá importância crucial
na última parte deste livro, quando formos tratar de alguns dos impasses
da mente na cultura atual.

SISTEMAS E MODELOS HÍBRIDOS

Para terminar esse item dedicado à cognição, ou mais explicita-


mente às formulações que a ciência cognitiva trouxe neste século para o
problema da relação da mente com o cérebro, devemos falar rapida-
mente de algumas áreas que não foram citadas. Na verdade, uma série
de visões da mente se superpõem às anteriores. Não se constituem
território novo que devesse gerar uma nova classificação. Bastam as
quatro anteriores: simbolistas (de regras e de regularidades) e ce-
rebralistas (clássicos e quânticos). Mas, de qualquer forma, alguns
conceitos podem juntar-se a essas quatro grandes correntes.
Chamaremos de sistemas híbridos todos aqueles que reúnam as
posições anteriores ou que, embora apresentando algumas diferenças,
possam ser classificáveis nos quatro níveis propostos.
Qistema híbrido por excelência é aquele que mani p ula símbo-
los, mas que o faz ora com regras, ora, com reularidds (TAS +
Nos atiMis étágiosde pesquisa, é uma concepção compatibilista que
postula que certos processos cerebrais primários - por exemplo, a per-
cepção e os sentidos - teriam um estilo de processamento do tipo rede
neural (IAC). Chegando, no entanto, à consciência e às manipulações
lingüísticas, seria preciso apelar a regras para que se pudessem captar
certas propriedades dos sistemas. Um argumento a favor dessa
proposição advém do fato de que usualmente as redes neurais proces-
sam em paralelo, enquanto as arquiteturas simbólicas computam em
série. Vimos, contudo, que não há necessariamente3pnímii entre
simbólico/ serial. e neural/paralelo.
De qualquer forma, tem-se perseguido um modelo híbrido, mis-
to de rede neural e manipulação por regras, em que a mente seria divi-
- CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

dida em módulos especializados. O processamento seria do tipo


regularidades dentro dos módulos e do tipo regras entre os módulos.
Um dos grandes defensores dessa idéia é Jerry Fodor, 22 que chegou a
propor um modelo de mente modular e de gramática para o mental
(linguagem do pensamento) (Fig. 43).
MÓDULO MENTAL MÓDULO MENTAL

1 IAC (rede neural

relação:
regularidade

i relação através
1 dererasIAS
1 (máquina
de Turing)

Fig.43 - Módulos mentais com processamento interno de tipo rede neural (MC).
Entre os módulos o processamento se daria no estilo da inteligência artificial
simbólica (IAS).
Em princípio, essa concepção compatibilizaria o cérebro e a men-
te, juntando os pontos bons dos dois modelos. Porém, se o leitor olhar
para o nosso quadro, perceberá que essa idéia não escapa da visão
simbolista, isto é, os símbolos estão ali e não há explicação para sua
geração pelo cérebro.
Uma arquitetura híbrida muito mais plausível seria constituída
de três partes, como aparece na Figura 44.
MÓDULO MENTAL
MÓDULO MENTAL

DCC

regularidade IAC ' 117, f )fl!/Ç

regra lógica IAS

Fig.44 - Caso da Figura 43 ampliado. Dentro do módulo mental haveria a


constituição de símbolos através da dinâmica cerebral clássica. Entre símbolos
haveria uma relação do tipo rede neural. Entre módulos haveria uma relação do
tipo inteligência artificial` simbólica, baseada em regras lógicas
Aqui, tanto a rede neural como a computação com regras seriam
duas abstrações que se superporiam progressivamente a padrões esta-
belecidos de sincronização entre populações de neurônios. A sincroni-
zação seria o evento cerebral que estaria por trás de um primeiro sím-
O SITIO DA MENTE

bolo que a rede neural relacionaria através de suas regularidades. O


macrossímbolo formado teria relação do tipo regra lógica com outro
macrossímbolo.
Essa arquitetura híbrida incorporaria três das grandes classifica-
ções da mente, deixando de lado apenas a dinâmica cerebral quântica.
Na verdade, ela exemplifica a posição deste livro, embora tudo esteja
construído de modo a enfatizar o primeiro e mais fundamental passo
da cadeia que é o processamento cerebral analógico.

OUTROS HIBRIDISMOS

Algumas ferramentas têm sido utilizadas na compreensão do


cérebro, da mente e de sua replicação em sistemas artificiais. Trataremos
brevemente desses métodos porque podem estar encaixados em uma das
quatro grandes correntes, apesar de apresentarem peculiaridades que fazem
do modelo resultante um híbrido. Chamamos de outros hibridismos pelo
fato de que às vezes surgem como explicação isolada; porém, no mais das
vezes, acoplam-se a algum modelo já conhecido (mais comumente, às
redes neurais) no afã de aperfeiçoá-lo.

1. Lógicas

A lógica exposta no paradigma simbólico, a chamada lógica clás-


sica, não é a única. E possível fazer uma série de alterações nela e usar
as novas formas para simular e entender a mente. Criam-se, então:
lógicas paraconsistentes; lógicas que tenham mais de dois valores de
verdade (além do 1, O) ou que tenham operadores do tipo "é possível
que", "é provável que"; lógicas que operem com contagens de indivíduos
do tipo "alguns", "muitos", "a maioria" (e não" todos" ou" algum" ou
"nenhum"), lógicas probabilísticas e lógicas não-monotônicas. Há lógicas,
ainda, em que a regra de conexão também tem penetração parcial (isto
é, há uma possibilidade de relação não estrita). T rata -se de lógicas
nebulosaJfuzz, resolverrelações que não estão &m
p----as,, não análõgas às redes neurais, ça

2. Algoritmo genético

Uma outra forma de criar regras de conexão entre objetos é estabe-


lecer uma regra de competição entre hipóteses, como se fossem animais
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

sujeitos à seleção natural. A regra seria de adaptação e sobrevivência e a


organização iria surgindo da interação com o problema, não havendo nem
regulação prévia nem treinamento, como na rede neural. Os elementos
num algoritmo genético sofreriam reprodução e mutação, criando formas
que competem sob a lógica da seleção neutra. Há, como em qualquer
fenômeno genético e natural, uma norma aleatória de produção de
mutações e uma seleção através da necessidade que escolhe a forma mais
apta?

3. Teorias matemáticas e físicas

Podemos usar uma infinidade de teorias matemáticas e físicas para


analisar qualquer porção da mente ou do cérebro. Podemos, por exemplo,
estudar um conjunto de palavras ditas por um indivíduo numa determinada
situação com uma ferramenta física ou matemática, procurando alguma
regularidade ali. O mesmo vale para sinais e imagens cerebrais. Nesses
casos, temos a aplicação de teoria de campo, de sólitons, de wavelets, de
geometrias, de topologia, de álgebras de operadores, de caos, de turbu-
lência, etc.
Quase todas essas ferramentas partem da pressuposição de que
tanto o cérebro como a mente são sistemas complexos, cujo estudo requer
o apelo a uma série de áreas de interface formal, embora tenham diferenças
extremas. Assim, podemos encontrar um trabalho que trata da mente de
um investidor e que analisa a dinâmica do mercado de capitais de risco
através do uso de formalismos da teoria de turbulência dos fluidos.
De modo geral, essa área tem sido chamada de ciência da complexi-
dade. 1 muito, importante que ojo
.
jbjjj.figijr. djjis pls
fundamentais em ciência. As vezes, estamos falando de um método que
descreve a essêníidi -um processo. As vezes, estamos usando um método
apenas como instrumento. Quando se mostra um certo comportamento
"turbulento" no mercado de capitais, está-se mostrando apenas que o
formalismo que trata turbulências em fluidos é genérico e universal o
bastante para se aplicar a outros sistemas complexos. Cuidado, nesses
casos, como uso sem aspas da noção de turbulência no mercado de capitais,
de caos no cérebro ou de caos na literatura. São alegorias ou abstrações de
método e assim devem ser entendidas. No fundo, a ciência é toda feita
dessas abstrações e alegorias. Porém, algumas estão mais próximas e outras
mais distantes da concepção que as gerou. Quando me refiro ao
comportamento quântico de um elétron, estou mais perto da noção de
comportamento quântico do que quando falo de uma "empresa quântica"."'
O SíTIO DA MENTE

4. Métodos de estudo de dinâmica de sinais cerebrais

Vários métodos têm revivido o estudo de dinâmica de sinais. No


córtex motor a distribuição de influências de n neurônios sobre um
seguinte é,siana, portanto determinista. No córtex associativo essa
distribuição é de tipo Poisson, o que faz supor que o nexo de causalidade
entre os eventos não existe. Com o uso de instrumentos sofisticados
físico-matemáticos, pode-se perceber uma flutuação na distribuição,
supostamente aleatória, que tem nexo de causalidade com o disparo do
neurônio seguinte. Grandes avanços podem surgir desse estilo de análise
do sistema nervoso central.

5. Sistemas especialistas

Embora não constituam exatamente uma classificação à parte, esses


sistemas merecem ser comentados. Uma das grandes tarefas da modela-
gem da mente tem sido prever como as pessoas aprendem e como es-
pecialistas resolvem problemas específicos que novatos resolveriam
de maneira diferente.
O sistema especialista consiste numa arquitetura artificial que, par-
tindo do estudo do estilo de pensar e de decidir de especialistas, monta
um conjunto de regras que simulam seu comportamento em certas
situações. O que é interessante, e por isso coloco esse item aqui, é que
muitas vezes o especialista não segue uma regra nem se consegue descobrir
nenhuma regra por trás de suas atitudes. Nesse caso, usa-se uma conexão
de tipo regularidade ou se faz apelo a outras lógicas, o que significa que o
sistema especialista pode ser um aparato artificial que lança mão de uma
série de artifícios já citados tanto nos quatro grandes modelos quanto nos
híbridos. Não tanto para saber se a mente opera dessa ou daquela maneira,
mas para construir um sistema artificial que opere o mais próximo possível
de uma mente inteligente e especialista.
Um sistema especialista interessante é aquele que analisa os ris-
cos de concessão de empréstimos bancários. Os bancos podem ter várias
regras para isso, mas, como todos sabem, há um risco que, às vezes,
pode não ser captado por regras. Esse risco é quantificado através do
treinamento de uma rede neural, usando-se como professor um indiví-
duo que nem sempre sabe dizer que regra usou, mas que foi bem-
sucedido nos empréstimos que deu na vida. O sistema resultante será a
conjunção de algumas regras e de alguns padrões ou regularidades
(híbrido de IAS e IAC) .26
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

6. Teoria da informação

A noção de informação é uma abstração matemática, uma medi-


da de probabilidade de acontecimentos, que faz parte da história do
estudo da mente. Surgiu com Shannon27 e com Gabor. Mede-se - em
bits, no caso de Shanon, e em outras escalas, no caso de Gabor - deter-
minada probabilidade de que uma mensagem seja escolhida numa fon-
te, trafegue por um canal e chegue ao receptor. Tanto mais provável
um fato, menos informação contém. Há dois modos de medir a infor-
mação do ponto de vista matemático. Um deles se serve da física clássi-
ca (mais especificamente da termodinâmica); o outro, do formalismo
da quântica. A informação, em princípio, estará na base de todo o pro-
cesso computacional, seja ele baseado em regras ou não. Tem, portan-
to, uma generalidade que a torna necessária nos computadores e nas
telecomunicações, além de fazer dela excelente metáfora para o cére-
bro. No entanto, porque muito confundida com a noção de informação-
conteúdo, às vezes também se perverte nesse meio.

7. Cibernética

A ciência cognitiva agrega à cibernética a concepção de mente.


Essa disciplina dos anos 50 é uma das grandes contribuições para o
estudo dos fenômenos biológicos e artificiais de controle, através das
noções de órgão controlador, de processo de controle no tempo, de
alças de alimentação positiva e negativa desse controle. 29
Pode-se até mesmo dizer que, quando trabalha com a locomoção,
a ciência mental está fazendo uma neocibernética e, quando investiga a
mente, remete-se a seus conceitos biológico-matemáticos, na medida
em que lida com processos no tempo sujeitos a certa forma de controle.
A noção ampliada de controle voltará ao debate na parte final deste
livro.

8. Termodinâmica de não-equilíbrio

Trata-se do estudo de sistemas complexos, sujeitos a trocas de


energia com o meio e distantes de seu ponto de equilíbrio. Deve-se a
Prigogine 30 o grande impulso aos trabalhos nessa área, que seriam
uma forma de explicar a biofísica de processos de organização nos seres
vivos, flutuações de energia em sistemas termodinamicamente abertos
e longe do equilíbrio que, por uma mínima perturbação, gerariam novas
O SÍTIO DA MENTE

formas de organização - auto-organização devido à ausência de agente


externo que a gere e coordene. Isso pode servir de paradigma, tanto
para casos de reações químicas que passem a exibir padrões regulares,
quanto para explicar como mentes surgem da auto-organização de
elementos cerebrais no nível biofísico das membranas e das trocas de
íons entre os meios extra e intracelular

9. Autômatos celulares

Os autômatos celulares são formas autônomas regidas por regras


determinadas, mas que são afetadas por estados de outros autômatos,
em particular, daqueles que estão próximos. Apesar de os autômatos
possuírem regras bastante simples de funcionamento, a interação entre
eles resulta em comportamentos bastante complexos. O exemplo clássico
é o Jogo da Vida, no qual os autômatos possuem regras de nascimento,
manutenção da vida e morte, como se fossem um bando de animais ou
uma colônia de células de um tecido. O comportamento emergente é
semelhante aos seus análogos naturais, podendo aparecer formas de
cooperação entre os autômatos. Como exemplo prático podemos citar
o funcionamento de uma colônia de robôs sem um controle central e na
qual os robôs aprendem a cooperar entre si. 31

10. Critica/idade auto-organizada

A criticalidade auto-organizada, bem como o foi, em outro


momento, a teoria das catástrofes, é um modelo físico-matemático de
descrever alguns fenômenos que exibem transições de fase. Colocando-
se grãos de areia numa pilha há um determinado momento que um
único grão gera uma avalanche. Deve ser citado aqui pela importância
que o trabalho de Per Bak conquistou nos ultimos anos .32

11. Cinergética

Cinergética é o nome de um movimento que basicamente aplica


noções matemáticas e particularmente de caos, de teorias de campo,
ao estudo do cérebro. O paradigma é de auto-organização, descrevendo
um processo no qual, sem supervisão externa e sem instância
controladora, há, pela dinâmica do sistema, o surgimento de novas
formas estáveis de organização.
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

12. Teoria geral dos sistemas

A teoria geral dos sistemas foi formulada por von Bertalanffy. O


autor propõe uma forma de redução horizontal, isto é, de teorias que,
embora descrevendo diferentes fenômenos, podem ter a mesma estrutura
matemática de solução. Argumenta que a classe de equações diferenciais
que tem solução é pequena, podendo estar presente tanto numa lei que
descreva o crescimento de células quanto noutra que descreva um
fenômeno econômico de oferta de moeda e taxa de inflação. Essa maneira
de encarar o problema mostrando uma estrutura matemática básica que
descreve diferentes sistemas tem outras formulações mais
contemporâneas chamadas de universalidade.

13. Darwinismo neural

Proposto por Gerald Edelman, esse modelo propõe que, na


verdade, há uma seleção natural entre populações de neurônios que
competem entre si para resolver os problemas que se impõem pela
circunstância. O cérebro, mais que aprender, selecionaria rapidamente
grupamentos de neurônios mais aptos a enfrentar determinados
problemas. A formulação de Edelman é elegante e vem acompanhada
de alguns modelos computacionais.

14. Vida artificial

Área bastante nova que, de uma certa forma, é sucessora ampliada


da inteligência artificial. A vida artificial procura sintetizar
conhecimentos biológicos oferecendo modelos matemáticos que possam
auxiliar na compreensão de fenômenos como desenvolvimento,
interação e constituição de sociedade e cultura. Do ponto de vista
filosófico, procura trazer para a arena experimental uma série de
questões antes consideradas "óbvias" por princípio ou por experiências
de pensamento. Não existe um paradigma unificador na área, embora
se possam citar alguns tópicos que dão o colorido multidisciplinar e
inovador da empreitada: construção de robôs reais, que aprendem
submersos num ambiente natural, adaptando-se dinâmicamente às
transformações do meio e da microssociedade em que vivem; também
modelos de computação em nível celular, utilizando-se para isso do
AMP cíclico, podem ser perfeitamente identificados com uma busca
por unidade entre seres biológicos e réplicas digitais ou analógicas.
O SITIO DA MENTE

SISTEMAS DINÂMICOS, BIFURCAÇÕES E OSCILA DORES

A inserção de um tópico acerca dos sistemas dinâmicos visa a


fornecer urna explicação um pouco mais detalhada do ferrarnental físico-
matemático que uso neste livro para construir a hipótese teórica de
formação da consciência a partir da sincronização de populações de
neurômos.
Basicamente, sistema dinâmico é todo sistema que tem, em sua
descrição matemática, grandezas físicas que variam com o tempo
(variáveis).
Pense numa mola sendo puxada. Existe uma equação que
descreve a relação entre a força aplicada na mola e sua distensão ou
compressão. A elasticidade da mola é um parâmetro que deve ocorrer
naquela equação. Uma mola menos elástica precisará de uma força maior
para ser distendida. Perceba que, com o tempo, de tanto puxar e
comprimir uma mola, a elasticidade pode mudar. Por isso, considera-
se a variável de distensão algo que varia numa escala pequena de tempo.
A elasticidade é um parâmetro, permanecendo fixo por muito mais
tempo, embora possa também sofrer variações. Chama-se o fenômeno
de variação de certas grandezas de dinâmica rápida e a variação dos
parâmetros de dinâmica lenta.
Definido um sistema dinâmico, as diferentes condições iniciais -
a força que se aplica e o estado de distensão da mola naquele momento,
por exemplo - influenciam o comportamento do sistema ao longo do
tempo. Os sistemas não-lineares, que se diferenciam dos lineares por
não obedecerem ao princípio de superposição (nos sistemas lineares é
possível dizer que f(a) + f(b) = f(a + b), o que não ocorre nos não-
lineares), podem apresentar sensibilidade às condições iniciais, isto é,
podem, diante de mínimas variações nas condições iniciais, exibir
comportamento radicalmente diferente. Essa sensibilidade é o que, em
geral, se entende por caos nos sistemas físicos clássicos (isto é, regidos
pela física clássica) e deterministas (isto é, regidos por uma lei descrita
sob a forma de uma equação matemática que prescreve o
comportamento do sistema dadas as condições iniciais e os parâmetros).
A descoberta de caos em sistemas determiriísticos e clássicos é
fundamental, tendo revolucionado o cenário científico e também a visão
leiga dos fenômenos. São incontáveis os artigos que apontam caos nos
mais diferentes fenômenos, seja a bolsa de valores, seja a secreção de
hormônios, seja a geração de palavras num texto literário.
Metáforas são bem-vindas desde que corretamente situadas. Pode
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

haver caos nos modelos matemáticos que descrevem modelos de cérebro


(cuidado, porque a ciência faz modelos de modelos; de um modelo de
cérebro formulamos um modelo matemático que descreve certas
propriedades do anterior). Não tem sentido usar literalmente a palavra
"caos" como se se estivesse dizendo que o cérebro é uma desordem.
Caos é, para muitos autores, sensibilidade às condições iniciais, gerando
por isso um poderoso artifício conceitual de análise: quando se vê
desordem em algum piano, como na evolução do índice da bolsa de
valores ou na evolução do potencial de ação sob a forma de código de
barras, pode perfeitamente ser o caso de existir uma estrutura de ordem
por trás dessa desordem. Ordem por trás do aparentemente aleatório é
a grande razão de se investir pesadamente na procura de caos
determinístico onde parece haver apenas ruído e acaso.
Caos ignifica urna maneira
ao acaso ignprâç as
variáveiseprârnetros que desçrevem u.mjenômeno. a1ni da
possil)inclade cie qu. e esse mesmo fenômeno exiba ricos
e rara às
condições iniciais seria, metaforicamente, dizer que, dadas as condições
iniciais quase idênticas de dois gêmeos univitelinos, com o passar do
tempo suas trajetórias podem se tornar absolutamente diferentes.
Alguns outros conceitos devem ser aprendidos para que, ao lado
da noção de caos, tenhamos algumas outras capazes de permitir o
entendimento de certos modelos do cérebro e de sua relação com a
mente.
Voltemos a um exemplo básico. Imagine um pêndulo que oscila
durante o tempo. Se o atrito sobre o pêndulo for positivo - que é o
caso mais real, porque o ar opõe resistência à oscilação -, com o tempo
o pêndulo tenderá a parar. Se o atrito for zero, o pêndulo oscilará para
sempre. Igualmente se o atrito fosse negativo (o que no caso do pêndulo
simples é apenas um exercício de imaginação) o pêndulo tenderia a
lentamente aumentar o valor da oscilação, como uma gangorra que vai
ganhando altura). A equação que descreve o comportamento do pêndulo
é não-linear e, portanto, sujeita à sensibilidade das condições iniciais.
Mas há um conceito extra que pode ser fundamental - o conceito de
bifurcação.
Se o atrito no caso do pêndulo for positivo, qualquer valor, maior
ou menor, fará com que o pêndulo pare em maior ou menor tempo.
Isto é, embora possa haver atrito grande ou pequeno, do ponto de vista
quantitativo, todos eles geram, no limite, o mesmo comportamento
O SITIO DA MENTE

qualitativo. Tome-se um valor de atrito positivo e agregue-se a ele um


número de valor muito baixo. Em ambos os casos, embora ligeiramente
diferentes, o pêndulo parará. Isso é válido também para ocaso do atrito
negativo. Se, um número pequeno é somado a um valor negativo de
atrito ou subtraído dele, o sistema continuará a se comportar
qualitativamente da mesma maneira. A situação muda no caso de atrito
zero. Para esse valor o pêndulo oscila para sempre, mas acima ou abaixo,
mesmo que um número ínfimo seja somado ou subtraído ao valor zero,
há uma brusca mudança de comportamento qualitativo. Acima do zero,
mesmo que valor muito pequeno, ao longo de muito tempo o pêndulo
tenderá a parar; abaixo de zero, novamente um valor muito pequeno,
tenderá a aumentar a excursão do pêndulo. Temos, então, três
comportamentos qualitativos diversos para o parâmetro atrito:
decréscimo de oscilação até parar (casos de atrito positivo), acréscimo
de oscilação até o infinito (casos de atrito negativo) e oscilação harmoniosa
e perene, auto-sustentada, no caso de atrito igual a zero. Como no
valor zero no caso do pêndulo (em outros sistema podem ser outros os
valores de bifurcação) há uma mudança qualitativa de comportamento
do sistema, devido à mínima perturbação para cima ou para baixo,
chamamos esse valor do parâmetro (nessse caso o valor zero de atrito)
de valor de bifurcação; no caso de não-variação no comportamento
qualitativo do sistema diante de uma mínima perturbação, acima ou
abaixo, no valor do parâmetro, falamos em valores ordinários de
parâmetro.
Um sistema como o do pêndulo, nas regiões de valores ordinários
de parâmetro exibe a propriedade chamada de estabilidade estrutural.
No caso do valor de bifurcação, diz-se que o sistema exibe instabilidade
estrutural (conceitos - instabilidade e estabilidade estrutural - relativos,
respectivamente, à variação ou não de comportamento qualitativo, jamais
à variação quantitativa que S ocorre sempre que mudo, ainda que
minimamente, um valor de parâmetro).
Um sistema físico pode passar por valores de bifurcação. Isso
não implica que haja uma encruzilhada, com alternativas voluntárias.
Ora, a bifurcação (de um certo tipo; pois há vários tipos delas) é
responsável pela geração de duas soluções. O sistema vinha oscilando
com um período e naquele valor de parâmetro duplica esse período.
Uma seqüência de bifurcações, isto é, de 2 para 4, de 4 para 8 e
assim sucessivamente, gera uma multiplicação dos períodos. Essa cascata
de bifurcações é uma das rotas de um sistema para o caos. Para certas
condições iniciais pode-se ter uma seqüência de bifurcações e com isso
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

produzir um número imenso de pontos que o sistema visita no espaço


de soluções.
Preste atenção num conceito final: se para valores ordinários o
sistema exibe estabilidade estrutural, sendo por isso previsível seu
comportamento, a partir da equação e de seus valores, no caso de
bifurcação no valor de um parâmetro, surge a instabilidade estrutural.
O caos que pode surgir de uma cascata de bifurcações é, em geral,
estável estruturalmente. Mínimas perturbações num valor de parâmetro
no regime caótico não mudarão sua característica caótica, embora o
formato da solução (chamada atrator) mude ligeiramente.
Com os conceitos de sistemas determinístico e clássico, caos e
bifurcação e estabilidade estrutural, podemos lançar algumas hipóteses
sobre o cérebro e sua relação com a mente.
O modelo gue proponho está hasado na suposiço d e Que.W
neurôfik, ou uma assembléia deles. disnarjJeneiais de ação em

A mente normalmente descrita sob a forma de símbolos mentais.


A inteligência artificial simbólica procurou reunir sob a idéia de regra
lógica a conexão entre esses símbolos. A inteligência artificial
conexionista, por outro lado, tentou, pelo exame das regularidades,
relacionar símbolos de uma maneira que se parecesse com o modo
cerebral. Porém, a grande pergunta sempre será: e os símbolos mentais,
como surgem do processamento dos sinais cerebrais?
Se tentarmos explicar qual é o equivalente cerebral de um gato
sorrindo em nossa mente, não haverá código estrito que garanta que,
dado um gato sorrindo na mente (símbolo), exista um e um só modo de
oscilação de neurônios capaz de carregar a informação "gato sorrindo"
(sinal cerebral). Diante da impossibilidade de traduzir radicalmente
símbolos mentais em sinais cerebrais, caso em que teríamos um perfeito
encaixe entre os símbolos e os códigos de barra que os representam,
pode-se: a) abandonar a tentativa de encontrar um eixo que una a mente
ao cérebro (salvo esse eixo seja tão frágil quanto a tese de que cérebros
são meios físicos como hardwarescapazes de rodar umsoftwarechamado
mente); ou b) tentar renomear os símbolos mentais de tal sorte que
tenham alguma possibilidade de tradução em linguagem cerebral.
O SÍTIO DA MENTE

Garanto com isso que a tese da oscilação e do sincronismo (muito em


voga para explicar a consciência) não é apenas um delírio teórico. A
partir da definição de mente como consciência, defino a conciência como
valor e redescrição, mas para efeito de modelo simples, caracterizo o
controle voluntário sobre a ação como uma das marcas da consciência.
Em oposição a esse controle voluntário há o chamado controle
automático. Jamais se pensou em construir máquinas que exibissem a
alternância de controle voluntário e automático, embora se insista em
perguntar coisas ainda mais complicadas, como "As máquinas são
capazes de ter consciência?"
Definido o binômio voluntário e automático como base da primeira
divisão cerebral do sinal, de tal sorte a saber que algo deve ser
processado pelo modo voluntário e consciente (departamentos virtuais
mais próximos do lobo frontal) ou pelo modo automático e não-
consciente (departamentos virtuais mais próximos do cerebelo), podemos
lançar mão da seguinte hipótese: talvez a maneira como o cérebro
reconhece num sinal, que representa um mesmo objeto (dirigir um carro
no modo voluntário ou no automático, por exemplo), as características
necessárias e suficientes para endereçar seu processamento para o
voluntário ou para o automático (etapa anterior à consciência), seja
justamente a presença ou não de estabilidade estrutural, de valor de
bifurcação ou valor ordinário, na equação que descreve aquele sinal.
Imagine que, se "guiar um automóvel" é um conjunto de oscilações
e sincronizações de grupos neuronais capazes de perceber, integrar e
agir adequadamente, existe uma equação que descreve todos os modos
possíveis de dirigir carros. Essa equação, sendo não-linear, pode exibir
sensibilidade às condições iniciais, bem como valores de bifurcação de
parâmetros, instabilidade estrutural e caos. Um objeto complexo como
"guiar um carro" teria, assim, nas variações de valores ordinários as
formas quantitativas que diferenciam o ato de guiar um carro de tal
tipo ou de outro, com câmbio automático ou manual, por exemplo.
Porém, para os valores de bifurcação de parâmetro, aqueles em que a
variação se faz acompanhar de mudança qualitativa, teríamos uma fonte
de qualificação da função a ser desempenhada. Tudo o que fosse estável
estruturalmente com respeito a guiar um carro seria processado no
modo automático. Tudo que exibisse instabilidade estrutural, situações
novas e aprendizado inclusos, deveriam ser manipulados através da
consciência.
Separar o mental em duas classes apenas de eventos, conscientes
e não-conscientes, qualificando-os através de uma simplificação testável
- CItNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

empiricamente, o voluntário ou o automático, é a primeira maneira de


gerar símbolos mentais (aqui entendidos como duas grandes unidades
que distinguem grosseiramente o processo mental consciente ou não-
-

consciente). A mente, provjoriamente, não seria povoada de gatos , ~p


de rçessorrnemóriaou atenção. Seria apenas o resultado da
pergunta no nível cerebral: há estabilidade estrutural ou não neste sinal?
Atenção, porque essa pergunta se dá antes de toda e qualquer operação
de consciência, sendo por isso uma condição de possibilidade para o
surgimento ou não da consciência. Quando não houvesse estabilidade
na equação não-linear que descreve aquela oscilação, recrutar-se-ia o
modo consciente, resultado, como veremos adiante, de uma redescrição
valorada do problema (ou de uma nova oscilação, que é uma versão da
anterior).
A bifurcação no espaço dos sinais elétricos cerebrais seria um
eixo que delimita a primeira grande separação entre os departamentos
virtuais mentais: o consciente e o não-consciente. Se com isso não
explicamos qual é a norma de ligação estrita entre o gato mental e o
sinal cerebral (regra que creio não existir em princípio, como não existe
nos computadores ligando o softwaree o hardware), pelo menos trazemos
a operação mental básica, calcada na consciência, para um critério
cerebral de decisão, baseado na estabilidade ou não da equação que
descreve o sinal elétrico que carrega a informação a ser processada. A
redução (ou tradução completa) da mente ao cérebro não seria possível
para conteúdos mentais, mas seria possível para a primeira grande
classificação da mente enquanto consciência ou não.
Creio que, no futuro, máquinas que se utilizem dessa partição de
funções, baseando no sinal o critério de separação de tipo de
processamento a ser seguido, poderão começar a exibir embriões de
consciência.

UM MODELO DE DINÂMICA CEREBRAL CLÁSSICA


BASEADO EM MALHAS DE SINCRONISMO

Resta, porém, definir algum modelo básico que simule as idéias


apresentadas. Proponho, como experiência teórica, que se acoplem
duas malhas de sincronismo de fase. A malha de sincronismo é um
aparato capaz de detectar uma fase (resultado da integração das
freqüências) externa e compará-la com uma fase interna de tal sorte
que a malha sincronize ou não com a entrada. Parece difícil, mas
está na base do mecanismo pelo qual muitos rádios procuram
O SITIO DA MENTE

comparadoide fases (externa menos interna)


campa rador de fases
fase (erro da primeira fase menos
extem em fase internada segunda)

malha de sincronismo 1 malha de sincronismo 2


Fig.45 - Modelo teórico de um "átomo" de consciência. A primeira malha recebe
um estímulo sob a forma de uma fase. Se capaz de zerar o erro e sincronizar, não
estimula a segunda malha. Quando incapaz de sincronizar, envia para a segunda
um erro diferente de zero. Nesse caso, a segunda poderá sincronizar com esse
erro ou entrar em caos. A primeira malha é grosseiramente responsável pelo modo
automático e a segunda, pelo modo consciente. O caos na segunda malha seria
uma forma de modelar distúrbios mentais.

acompanhar a fase de uma emissora, capturando-a e mantendo-se


sintonizados.
Uma malha de sincronismo seria ligada a outra. A primeira
receberia o sinal externo (uma sensação ou um comando vindo de outra
parte do sistema gerador de uma ação)(Fig. 45).
Essa primeira malha teria uma fase própria e uma capacidade,
dentro de certos limites, de sincronizar com a fase externa apresentada.
Toda vez que essa fase externa pudesse ser devidamente capturada
pela malha, o erro gerado pela comparação entre a fase externa e a
interna seria zero. O erro é uma fase que resulta da comparação entre
as fases. No modelo simplificado, não alimenta a segunda malha quando
é zero. Isso significa que a primeira deu conta de resolver o problema.
Quando, no entanto, ocorre uma bifurcação na primeira malha, o erro
não consegue ser zerado, o que resulta em enviar para a segunda malha
uma fase que vai alimentá-la, exatamente resultado da incapacidade de
zerar da primeira malha. Essa segunda malha poderá agora sincronizar
com o erro que a alimenta, gerando uma solução para o problema.
Poderá também não sincronizar, gerando a necessidade de uma terceira
malha que processe o erro que a segunda envia. A primeira malha
responde grosseiramente pelo modo cerebral automático. Dada uma
bifurcação (que, no caso especifico desse modelo, é uma bifurcação de
ponto de equilíbrio), essa primeira malha recruta uma segunda que
seria, grosso modo, o processamento consciente, de tal sorte que o erro
tenda a zero.
O recrutamento da segunda malha poderia explicar a sincronização
de módulos automáticos e módulos "conscientes" (como parece ocorrer
CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

no caso da sincronização do tálamo com o córtex ou do hipocampo com


o córtex, gerando consciência). No caso de não surgir sincronização na
segunda malha com o erro vindo da primeira, ocorrendo caos,
poderíamos lançar a hipótese de que esses estados degradados da
segunda malha (caos em lugar de sincronização) fossem modelos de
patologias mentais.
Não teria sentido, nos limites deste livro, apresentarmos os
modelos matemáticos da hipótese geral e do modelo simplificado. Os
conceitos e o exemplo dados servem apenas para assentar a idéia de
que sistemas dinâmicos podem ser interessantes para analisar sinais
cerebrais e para mostrar que, por trás da aparente aleatoriedade do
sinal, pode haver ordem e regra no recrutamento da primeira função
metal precípua: a consciência. Mais ainda, a possibilidade de
determinismo, ainda que caótico, subjacente, pode nortear a pesquisa e
a compreensão do indivíduo quanto ao mecanismo de ação de drogas
que agem no nível quantitativo cerebral. Para situações anormais de
funcionamento mental deve-se modificar suavemente um parâmetro
cerebral - aspecto quantitativo - para lograr alterações qualitativas (ou
topológicas) no plano mental. 37

SÍNTESE

A ciência cognitiva é a grande teoria da mente deste final de século.


Projeto interdisciplinar, surge como reação ao behaviorismo. Resgatando
a noção de mente, estipula inicialmente que o pensamento inteligente
deve ser o cerne da vida mental. Pensar seria, assim, manipular
representações - símbolos através de regras lógicas. A mente se
confunde com um programa de computador, enquanto o cérebro se
confunde com suas partes físicas (placa). Esse modo de modelar a mente
é chamado de ipWji gê,ncia ificiaI. Ólic.4JA) e procura as regras
que relacionam os obje mentais.
Como essas regras não dão conta das relações e como há forte aspecto
de aprendizado e de detecção de padrões no comportamento humano,
surgem modelos rivais que, em lugar de relações baseadas em regras,
computam regularidades. Para isso, utilizam-se de arquiteturas de
neurônios artificiais que, pelas múltiplas conexões e pelo ajuste de peso
entre elas, podem ser treinadas para desempenhar funções interessantes.
asreds iejrais ou inteligência artificial conexionista (IAC).
Embora grande parte dos modelos em ciência cognitiva se enqua-
dre em um dos dois tipos acima, a noção de símbolo que usam é forte-
O SiTIO DA MENTE

mente mental. Os vários sentidos de símbolo enquanto objetos mentais


suscitam confusão na leitura de qualquer texto e na compreensão de
modelos. Símbolos podem ser ntendidíscsmio: a) representantes b)

tais como crenç mo

Tantos significados devem mostrar que manter símbolos como oletos


que são manipulados por regras (IAS) ou por regularidades (IA não resolve,
senão parcialmente, o problema da relação entre cérebro e mente. Por haver
uma nítida relação entre símbolos eprocessamento discreto.digitale por termos
elegido a consciência como palco da vida mental (consciência que parece surgir
através da sincronização de populações neurais), lançamos uma nova classe de
modelos. Neles, genericamente chamados de cerebralistas, procuramos trazer
tanto objetos quanto relações para o plano neural.
Os símbolos seriam, então, oscilações e as relações, sincronização entre
elas (no caso da versão clássica). O impasse da concepção discreto-digital seria
desfeito pela concepção analógica de populações de neurônios. Porém, a dinâ-
mica cerebral que propomos, baseada em oscilações e sincronismo, deve ser
chamada de clássica, por utilizar ferramentas de física clássica. Há modelos de
dinâmica cerebral quántica que surgem de uma complicada tentativa de superar
o problema da parada e da incompletude em sistemas digitais. A consciência
seria não-algorítmica e sua base física seriam fenômenos quânticos no nível de
microtúbulos cerebrais.
Além dos dois grandes blocos de modelos simbolistas (IAS e JAC) e
cerebralistas (DCC e DCQ), há ainda alguns outros hibridismos de que se lança
mão na tentativa de modelar a mente. O mais comum é associar IAS e IAC
Outros hibridismos são citados por representarem tentativas de associar várias
áreas de conhecimento no afã de modelar cérebro e mente.
O enfoque deste livro é a dinâmica cerebral clássica. A análise do sinal
elétrico que gera o símbolo carece de ferramentas matemáticas. Elegemos a
teoria de bifurcações e caos como a principal, por seu compromisso estrutural
como determinismo. O acaso poderá ser provisório, nunca absoluto. Há ordem
I trás do aparentemente desordenado.
Nas próximas partes veremos que são dois os objetivos por trás dessa
escolha: investigar as bases de uma psiquiatria de molde científico e investigar
a natureza de certos comportamentos que, embora possíveis, são eticamente
danosos à espécie humana. Uma teoria determinista da mente e de sua relação
com o cérebro pode nos fornecer alicerce para atingir esses dois objetivos.
PARTE III
A MENTE ALTERADA
O SITIO DA MENTE
-- DISFUNÇÃO MENTAL

Capítulo 12

DISFUNÇÃO MENTAL

0 que melhor representa nossa perplexidade diante da mente


e de seu sítio cerebral é o problema da doença. Se, por um lado, pode-
se viver com uma noção de mente desgarrada do cérebro, por outro,
quando ela adoece, a incorreta caracterização da causa pode custar a
vida. Eis uma das razões deste livro: tratar da fundamentação de uma
mente que, situada no cérebro, pode desregular. A aceitação de que
isso constitui fenômeno normal é pequena. Por quê? Simplesmente por-
que se tem a impressão de que a mente está dissociada do corpo, não
se sujeitando, portanto, às limitações de qualquer sistema físico.
Não fosse tão comum a disfunção mental, não seria tão grave o
erro. Mas, na medida em que tais alterações são extremamente fre-
qüentes (há estatística que indica que 50% das pessoas precisaram ou
precisarão de um psiquiatra pelo menos uma vez em suas vidas), deve-
mos dar atenção especial ao problema.'
Já vimos nos primeiros capítulos que a sinapse constitui o ponto
de transmissão de impulsos de um neurônio a outro. Acompanhamos
também a complicada operação de liberação de neurotransmissores, de
ligação destes aos receptores e de convocação de mensageiros para que
ajam nos genes, mudando a forma e a quantidade de receptores no
neurônio.
A sinapse é justamente um dos locais de desregulagem no cére-
bro humano. Os fatores aue levam a alteracões são basicamente dois: o

ctpre-deferminadas'. A ic1éia de que o trMegn de informrn tem


papel fundamental na desregulagem da mente não é nova e, de certa
forma, conta o quanto a experiência vivida influencia o resultado final
de nossa vida mental. Há, porém, uma série de considerações que devem
ser feitas com respeito ao papel dessa experiência na gênese dos distúr-
bios da mente.
Pode-se pressupor que, pelo fato de originar-se no mundo exter-
no e real, a experiência não guarde relação com fenômenos cerebrais
O SITIO DA MENTE

patológicos. Absurdo tão grande quanto presumir que, por ser a glicose
uma substância externa, um diabético não seja doente.
O diabetes resulta da conjunção de um evento externo (ingestão
de glicose) e da falta de um hormônio interno (insulina) que deveria
processá-lo. Embora externa, a glicose é condição para o sustento do
organismo, assim como os eventos que marcam nossa vida mental, dor
inclusive, são parte de nossa relação com o mundo.
A idéia de que eventos externos sejam, em parte, determinantes
de disfunções mentais não exclui, portanto, o mecanismo interno. Ain-
da que resultante do par agente externo e estado interno uma desre la-
ode ser trata~ maneiunilateral, como e osse exciui-
vamente viven Ru exclusivamente cerebj
víluos com c1uadrosiIosos claroporexemplo, que
dizem que, se tivessem mais dinheiro estariam se sentindo bem. Não
ièm sentido, portanto, segundo eles, medicar seu cérebro se o proble-
ma está no bolso. Esse raciocínio é semelhante ao do diabético que,
após ingerir quantidade excessiva de glicose (evento externo), não acha
por isso ser necessária dose suplementar de insulina (evento de correção
interno). Só que é exatamente nessa situação que o indivíduo mais pre-
cisa de insulina. Quase sempre é um evento existencial externo que
deflagra uma disfunção cérebro-mental.
Outra suposição freqüente diante do mau funcionamento mental
é a de que seu tratamento deve variar de acordo com a causa externa
desencadeante. Contra-senso tão evidente auanto imaginar aue. para
reduzir uma fratura no oerônio um aue caiu do fe-
lhado e outro que levm ou u chute do funhao d em ve de e n--
essar
lhes as pernas, o ortopediEta recomendasse ao primeiro mais cuidado
com telhados e ao segundo mais cuidado çgaselações fili,~
o mesmo ocorre com a patologia mental. Não importa,in-.pi
mero momento, qual a sua causa, mas sim
dve ser "engessado". Num segundo momento, recobrada a função, pode-
se pensar em providências diferentes. Conversar precocemente - através
de alguma forma de psicoterapia - com uma pessoa que apresenta
distúrbio mental, tentando fazê-la enxergar as possíveis razões do seu
desconforto, equivaleria a entregar-se a longas digressões acerca dos
perigos de telhados ou do incômodo de cunhados enquanto os pacien-
tes se contorcessem de dor. E preciso, na maioria das vezes, medicar
sóp.ós-arecapeuco parfliiiciar alguma forma de psicoterapj.
Essa situação, embora caricaturizada, é rotineira, constituindo um
dos principais fatores de ameaça à vida mental. Ela resulta da crença na
DISFUNÇÃO MENTAL

mente onipotente, que desconsidera por completo sua base cerebral e,


portanto, a possibilidade de que venha a titubear, reclamando remédi-
os para a sinapse e não conselhos para o ouvido.
A seleção natural foi, aos poucos, forjando um cérebro cada vez
mais apto a realizar operações complexas. Antes fugíamos de tigres.
Agora os domesticamos, os exploramos, os estudamos... No entanto,
ao criar departamentos virtuais para processar informação ambígua,
esse mesmo sistema gerou um potencial de novidade, de desempenho
e também de disfunção tremendos. Os animais, exceto o ser humano,
vivem em seu meio natural, durante milhares de anos, sem experimen-
tar grandes mudanças. Nós, ao contrário, transformamos quase diaria-
mente o ambiente circundante. Compare a diferença da mente de um
macaco que procura bananas há centenas de séculos com a de uma
pessoa que vê outra pisar na Lua. Se a naturezanos avarelçja
lidar criativamente com sifuacõesiiovas todos osdias, algum ônus deve

e
41 ssas naempresa rArk-hr—a disf unção. O ri11mentau4 medida
em que se vai mais lõnge e-riais rápid.Qdnaxlamento conc ret o_é
cau e oso e pré-gravado. Suas funções estn ali determinadas há milha=
Se

TJ)ébdjii kpir animal é um engenho fantástico; o do ser


humano, uma máquina ainda mais veloz. Cobra-se deste cérebro o de-
sempenho de um carro de corrida e, ao mesmo tempo, a constância e a
pouca manutenção de um carro de passeio. Porém, um carradQrrida
tem de sofrer ajustes constantes tarase adartara cada sihiaca'-nnva.
A mente humana também. Esperar aue alcancemos marcas de tempo

O problema não é tão simples quanto parece. Não se trata apenas


de uma questão de escolha- aceitar ou não a base cerebral do psiquismo.
Qualquer ciência da mente, como a ciência cognitiva, deve abordar esse
aspecto, não de forma dogmática, mas mostrando a origem do equívo-
co de se pensar que a mente tudo pode e que não há um cérebro a
impor-lhe limitações.
Parte da mente é como a tela do computador que usamos em
O SITIO DA MENTE

nossa casa. Se o programa é amigável, parece-se com o mundo intuiti-


vo. Quer-se apagar um arquivo? Basta dar um dique e lá vai o arquivo
para o cesto de lixo. A imagem que vemos na tela (e também a imagem
que vemos no palco mental da consciência) é fácil de ser compreendi-
da. Fomos treinados, auando criancas, vara cue.nossamente tivesse-a

intuitivas e ami gáveis- Por isso, achamos que todos os fatos do mundo
têm a cara de nossas mentes e não a cara do código que usamos para
descrevê-los. Enquanto p alc o, personage pecas. a rnenfeSerfila
iens de ui1TIundooue não pareceto de potençjajjl an d
srapsese de mensageiros, mas sim de pessoas, de mesas,dJjfçis?íes,
de pensa
Pensamento e vontade parecem fatos triviais de nossa vida men-
tal. Mais: temos a impressão de que tudo podem. Podem muito quan-
do manipulam apenas objetos de representação mental. Mas, quando
esses objetos tornam-se ações concretas sobre o mundo e sobre si, as
leis naturais impõem limites a ambos. Vontade e pensamento -aãa

que rege o tuncpnamento c'erPflraL


Se a mente se desgarrou do cérebro na sua capacidade abstrata
de codificar, recriando-se na cultura e tornando-se passível de ser
replicada em máquinas, nem por isso deixou de exigir um meio físico
de suporte. Seja no caso da mente humana, em que há um cérebro por
trás, seja no caso da mente artificial, em que há uma máquina, sempre
existirá um meio físico possibilitando o desenrolar do código abstrato.
A confusão entre a natureza virtual do código e a natureza concreta do
meio físico é que leva à suposição equivocada de uma mente exclusiva-
mente espiritual ou cerebral. Não é espiritUal_porque abstrace
codificação não são sinônimos de espi não e unic amente cerebral
o cere&o é apenas um dos rneioqeodem dar suvorte
eressãnda códigri
A abstração do código não é espírito porque código não presume
ausência de limites, espírito sim. A vontade-código é limitada, a vonta-
de-espfritoé m4gj. A mente-código condiz com çjja~ vidUd
muitas situações de auto-superação, mas tem lim i te -- efidekmef'e-
espírito não cria, inventa; não se supera, i1ude-s9.4to aøcejfiaj
supõe que pode curar-se sozinha por uifíl ato4e voi'adou
"pensamento positivo".
"Penso coisas boas e fico bem" é o que muitos supõem ser
operaç ão E s quecem-se de que, havendo um c érebro
DISFUNÇÃO MENTAL

é
Não se está negando que, mesmo em casos de doença, a vonta-
de desempenhe certo papel. Mas não é tão importante quanto se imagi-
na que seja, particularmente quando há alguma disfunção mental conco-
mitante. Um indivíduo com câncer pode se beneficiar de sua imensa
vontade de superar a doença. Um indivíduo com depressão também?
Não, simplesmente porque no câncer a mente continua a operar de
maneira mais ou menos íntegra. Na depressão, como a mente éaafet-

i3eS4omo se pode, entao f esperar que vontade guej.qjie o peji-


sarnento nense e que a emoção sinta se são eles que estão doentes?
A mente surge praticamente ao nascermos, porque o cérebro já
está preparado para implantá-la. Ao contrário de uma empresa estan-
que, somos duas empresas: cérebro e mente. Uma é cheia de rotinas
que não precisam de muita invenção para funcionar. (Não há por que
modificar a maneira como um cérebro metaboliza glicose, sinalizando
fome.) Mas, para criar coisas novas, aprender, ensinar, é preciso dotá-la

seres numanos, t nor isso que, emboraTIU


a mente tenna base cerebral, a
cremjcu1tiiral confere aela uma vontade ilimitada e um poder
extraordinário de se autocorrigir, mesirjo nas siIiiaes em que a corre-
ção entra em conflito com as leis cereb gú isgilhiaC ent s.
A idéia de controle mental é veiculada por uma série de pressu-
postos médios da cultura circundante. Quando esse controle falha, lan-
ça-se mão de uma forma acessória: a noção de um deus cheio de poder,
vontade e conhecimento. As propriedades da mente (assim como as
pessoas a imaginam), particularmente o pensamento, a vontade, o sen-
timento e a memória, são todas recriadas e amplificadas na concepção
de deus: pela sua vontade suprema, pelo seu conhecimento infinito, pela
sua bondade incomensurável, pela sua onisciência, onipresença e onipo-
tência deus toma-se a mente levada ao limite extremo. Nada mais natu-
ral, pois, que, criados à sua imagem e semelhança, suponhamos ser
formas degradadas dessa mente. E, se deus é espírito, atemporal,
julgamos que nossa mente também o é, estando apenas parcialmente
ligada ao corpo através do cérebro.
A concepção de uma mente que tudo pode, tudo sente e tudo
pensa carrega, ao mesmo tempo, a negação de seu sítio cerebral (aii h4
um órgão físico que, embora cheio de poderestá sujeito a limitaçõej e
siIáidinib15ão com a1guma'ma de divindade.
O SITIO DA MENTE

Para aqueles que querem crer na divindade, sem com isso perder
a racionalidade, deus pode ser uma alegoria que em nada se parece
com nossa mente, nem tem vontade e pensamento como nós os
concebemos. Suas razões, ainda que estranhas à nossa compreensão,
devem ser motivo de silêncio e fé, jamais de contraposição ao conheci-
mento. A idéia de termos sido criados à sua imagem e semelhança -
provavelmente, fruto do temor de que a limitação cerebral empobreça
a vida porque perece como coisa física e não vai além do que as leis
físicas determinám - gera problemas na medida em que faz supor que
somos formas parciais de uma vontade e de um pensamento ilimitados.
Construímos um sistema moral, ético e jurídico baseado na idéia
de uma consciência que sabe, julga, decide e quer. Haverá como man-
ter a mente sujeita ao cérebro sem precisar, ao mesmo tempo, revisar
uma série de cânones comportamentais?
Imagine que um homicida pudesse alegar, diante de um júri, que
não poderia ter agido de outra maneira, pois razões cerebrais o haviam
obrigado a cometer o crime. E um raciocínio neurológico complicado,
mas, nas condições conhecidas de direito e moral, o ato do indivíduo
seria inimputável. Ao se provar que razões cerebrais podem determi-
nar uma ação, quebra-se um dos pilares do direito: a idéia de liberdade
e de conhecimento para agir de maneira diversa.
Suponha que amarrem um indivíduo e injetem-lhe à força uma
substância alucinógena. Soltam-no em seguida, e ele mata, rouba, men-
te e tudo o mais. Será condenado? Não. Simplesmente porque não era
ele que estava de posse de suas faculdades mentais de conhecimento e
de escolha. Era a droga que o tinha envenenado. Ora, uma mente coagi-
da por um cérebro tem igualmente "drogas" internas (neurotransmis-
sores) que a impulsionam. Sem as cordas e a seringa do exemplo aci-
ma, a média das pessoas entende que a vontade e a escolha são sempre
livres e possíveis. Condena-se aquele que pode ter sido coagido por
drogas cerebrais internas e inocenta-se o que foi envenado por via ex-
terna. Interessante contradição: na concepção corrente, se a droga é
externa, somos inocentes; se interna, somos culpados, porque nossa
mente deve ter controle sobre o cérebro que a sustenta. Ou seja, o
cérebro que cria a mente deve estar sujeito a ela.
Essa mente contraditória, parente dos deuses, da moral e do di-
reito, está tão distante da biologia e da física que é praticamente impos-
sível convencer a média das pessoas de seu sítio cerebral e, portanto,
de suas limitações físicas. Quando se lança mão de uma explicação do
tipo: "Esfreguei um pano na tela do computador com defeito e funcio-
DISFUNÇÃO MENTAL

nou", está-se negando a racionalidade. Funcionar, nesses casos, geral-


mente é acidental. O que isso quer dizer? Apenas que, se pegássemos
mil casos de arquivos que não encaixam na lixeira ou telas embaçadas,
a porcentagem das correções decorrentes de se esfregar um pano na
tela e a daquelas devidas ao acaso seriam semelhantes. Ao contrário,
os casos em que fosse feito o reparo adequado, através da substitui-
ção de uma peça, por exemplo, teriam porcentagem de sucesso pró-
xima de 100%.
O argumento irracional insiste, descrevendo situações em que
alguém, contrariando a ordem médica, ficou bom em seguida. Era tido
como incapacitado e irrecuperável, fez todo tipo de esforço quando
deveria ter descansado e curou-se. O absurdo dessa visão está na des-
consideração estatística: não se avaliam casos isolados, mas popula-
ções. Quantas pessoas agindo de maneira idêntica a nosso paciente
rebelde obtiveram melhora? Tantas quantas se teriam curado por obra
do acaso, ou seja, bem menos que aquelas que obedeceram às ordens
médicas.
Imagine que um grande estádio de futebol esteja com as colunas
aparentemente danificadas, correndo o risco de desabar com 100 mil
pessoas dentro. Uma equipe de engenheiros, especialistas em estrutu-
ras, estuda o problema e recomenda a interdição. Entre mil estádios
nessas condições, há perto de uns 50 que, não sendo interditados quan-
do deveriam ter sido, jamais desabaram. Isso prova que o parecer dos
engenheiros estava errado? Não. Nenhum deles afirmou que aquele
estádio iria desabar.
O diretor de uma fábrica, diante do risco de explosão de uma
caldeira chama um engenheiro especialista em termodinâmica para um
parecer. Um mês depois, o engenheiro entrega um parecer cheio de
argumentos afirmando que não há risco de explosão. O diretor,
posteriormente, é criticado por outro que afirma que não havia
necessidade de ter feito gasto tão expressivo com o parecer. "O vigia
noturno também disse que não ia explodir", proclama o irracional, como
se o "não explodir" do engenheiro e do vigia fossem a mesma frase.
Podem parecer idênticas, mas estão submersas em um sistema de
valores e justificativas tão diferentes que são radicalmente opostas, ape-
sar da semelhança superficial.
A concepção de mente que as pessoas têm é exatamente essa.
Embora se diga que adoece, aposta-se no estádio que não desaba ou na
opinião do vigia. E mais, se funcionar, sai-se por aí desacreditando a
ciência, seja ela a engenharia ou a medicina. Quando se aposta no estádio
O SÍTIO DA MENTE

que não desaba, apesar do parecer contrário dos especialistas, está-se


regredindo a uma idade de trevas. Por que idade de trevas? Porque
nela impera o geocentrismo, que afirma que a Terra (mente) é o centro
fixo em torno do qual gira o Sol (cérebro). Porque nela os deuses são
espelhos plenos e todo-poderosos de nossa mente. Porque nela a doença
mental é patologia da vontade, do pensamento e da sensação. Porque
nela, mais ainda, a disfunção da mente é possessão do diabo, dos maus
espíritos e do mau pensamento, enfim, antítese de deus.
A discussão sobre a patologia mental envolve duas perspectivas:
a antiga, que prega que a mente tudo pode; e a moderna, que postula
que a mente pode muito, mas dentro dos limites a ela impostos pelo
cérebro. Todo estudo interdisciplinar da mente humana, incluindo a
ciência cognitiva, visa a preencher as lacunas do conhecimento no que
concerne ao modo como processamos informação. Compreendendo
como se dá rocessamento podeInç s entender. or: a os limites
da mente humana; b) como aumen ar seu rimento pelo apre iza-
do e pela educação; c) como as máquinas podem superar e substituir
algumas de nossas capacidades; d) como são as disfunções cerebrais e
mentais; e) como tratar e prevenir tais disfunções. A questão aqui é,
portanto, situar o presente debate acerca do modo novo e do modo
antigo de enxergar a mente.
Vejamos de maneira esquemática os dois modos (Fig. 48).

A MENTEARCAICA (virtual/abstrata) concreta/física/biológica


1

\ linguagem \ menti
deus moral mente subjetr
divindade
espirito
1 direito
/ sociedade
J objetiva em
/ virtual proces.

A NOVA MENTE

Fig.46 - A nova mente incorpora o sítio cerebral à antiga visão. Aofazer.isso,


remodela alguns conceitos da antiga visão, impondo-lhes limites da estrutura que
processa a informação mental.
DISFUNÇÃO MENTAL

O modo antigo de enxergar a mente, chamado de "a mente arcaica"


na Figura 46, prescreve direta ou indiretamente que ela: a) está de uma
maneira ou de outra descolada do cérebro; b) é de outra substância que
não a física; c) é capaz de escolher através da vontade; d) tem em deus
sua forma absoluta (pensamento absoluto, vontade absoluta, poder
absoluto).
Essa visão, incompatível com a do sítio cerebral, parece garantir a
manutenção da ordem jurídica e social entre os seres humanos. Por
quê? Simplesmente porque perante deus e o direito parece haver ideais
atingíveis pelo exercício da vontade e da liberdade. Quando inatingí-
veis, os transferimos para uma entidade abstrata, chamada divindade,
que os encarna, bem como nosso horror às limitações. Essa deificação
do mental mantém, sob a forma intuitiva, um discurso pseudodiigente,
ignorante e passivo no que tange aos atos e à moral. Atos não são,
nessa visão arcaica, reflexão racional, nem a moral uma conquista do
cérebro animal, valor de ponderação para a vida em sociedade. Atos
são prolongamento da vontade de deus; a doença, alguma forma de
castigo, que requer apelo e oração, não atitude concreta rumo à cura; a
moral, convenção externa e arbitrária, passível de trangressão silenciosa.
Embora errada, essa visão arcaica da mente não deixa de ter al-
guma funcionalidade. Por quê? Pelo fato estatístico de que, se de cada
dez pessoas que se conduzem mal uma está doente e as outras nove
apenas equivocadas, parece ser melhor apostar em idéias que façam os
dez acreditarem que estão longe de deus ou dos bons pensamentos.
Acerta-se em nove, erra-se em um.
Lançar mão de outras idéias ("a nova mente") pode resultar em
um número menor de acertos, porque as idéias são mais novas e me-
nos intuitivas. Nesse caso, seria possível salvar uma pessoa do julga-
mento incorreto, abrindo espaço para que as outras nove - talvez erra-
das no plano puramente mental ou comportamental - se escusassem,
por supostas razões cerebrais, a endossar seus erros. Ao se propor
uma nova visão da mente, há que se fornecer uma base física para a
liberdade, condição de delimitação dos atos que devem ser julgados à
luz de uma vontade que pode corrigir-se e de outra que não pode fazer
frente às determinações cerebrais subjacentes.
De certa forma, a visão arcaica da mente protege o pacto social. A
média das pessoas, juízes inclusive, não acredita num sítio cerebral a
determinar os atos voluntários. Ao se pensar assim, acerta-se muitas
vezes na imputação de culpa àquele que poderia ter agido de outra for-
ma. Isso é bom para a sociedade. Porém, como qualquer teoria errada,
O SITIO DA MENTE

se acerta em alguns casos, essa concepção também carrega consigo um


dano potencial. Voltando à casa, o magistrado que propõe uma visão
antiga depara-se com a depressão de um filho ou a crise de pânico de
um subordinado. Saberá agora distinguir o que pode e o que não pode
ser corrigido e coibido pela vontade?
A nova mente não impede que se mantenham quase intocadas as
estruturas social, jurídica e espiritual do ser humano. Como não há
uma teoria substituta para a vontade e para as práticas espirituais, não
se pode condená-las, salvo naquilo em que entrem diretamente em cho-
que com o conhecimento atual acerca do cérebro.
Se não se conhecem os limites para a mente humana, como educar
as pessoas para que, sem se tornarem conformistas-passivas, estejam,
ao mesmo tempo, cientes dos limites reais de suas mentes? E provável
que possamos fazer muita coisa que não imaginamos poder. Apontar
limites teóricos para a ação cerebral não deve redundar em perdoar a
passividade e a preguiça. Mas também não há lugar para exigir-se de
alguém aquilo que não pode fazer, pela simples suposição que nove
entre dez casos aparentemente semelhantes responderão
adequadamente à repressão e à censura, deixando com isso um totalmente
injustiçado.
A situação é parecida com a de um atleta que treina para uma
corrida. O treinador o estimula para que se esforce na superação de
seus limites. Isso é válido? Sim, e costuma resultar em motivação e
interesse. Mas imagine que o atleta esteja com uma lesão no joelho.
Não adianta exigir, nesse momento, que supere limites. Pelo contrário,
agora é hora de fazê-lo repousar para que possa, quem sabe, voltar a
competir. Ao tentar superar qualquer marca, ou mesmo ao tentar cor-
rer nessa situação, conseguirá apenas agravar o problema.
Com a mente acontece exatamente isso. Porque somos filhos de
uma tradição que olha para ela como se fosse independente do cérebro,
não percebemos que também tem suas lesões. Não percebemos tam-
pouco quão freqüentes elas são, nem qual é o modo de tratá-las. Exigi-
mos que a mente se conserte sozinha ou que enfrente, com o pensa-
mento e a vontade, o problema. O indivíduo chora e mandamos que
engula o choro. Sofre e mandamos que ria. Imagina tragédias e manda-
mos que visualize flores. Não quer sair da cama e mandamos que su-
pere a inércia. Pensa absurdos e mandamos que tenha os pés no chão. E
a mesma coisa que mandar o atleta com o joelho machucado correr
mais rápido do que nunca. Se a sorte ajudar, como no caso dos 50
estádios que não desabam, o organismo agüentará os dois esforços,
DISFUNÇÃO MENTAL

regenerando o joelho enquanto corre. Os outros 950 atletas ficarão lesa-


dos para sempre. E o que é pior, muita gente sairá por aí alardeando
que a melhor maneira de consertar joelho lesado é mandar correr.
A nova ciência do mental afirma que: a)a mente é um processo

estabel P-ntw módjjlns cnncrto: d) no t pnível,


2Ladi-esse&4i,mite) é possível, no entanto. sahr gii
mentP sdregula com certa fari1idadef)jima vz dergi1anão
cabe exigir qij v aaJimteuquç opere em condicões nnrniais g) a
podem ser usadas con.ad itpxço
desde que não entrem em choque com diagnóstirus mMirns
e—
sas~n ou
,15_.Uginalia-mentaLjacilLçom as leis físicas que ~M o cérebro.
Essa nova concepção preserva a cultura, a liberdade e a ação vo-
luntária do ser humano, dentro, porém, de certos limites e baseada não
num sopro divino que nos dá esses poderes, mas na operação cerebral
complexa que os sustenta. No futuro, de posse dos códigos certos,
poderemos conhecer as regras, as regularidades ou as sincronizações
que estão por trás dos fenômenos mais complexos da vida mental, tais
como a moral, o dever, a invenção e a razão. Afinal, são todos produtos
de uma lógica natural, instrumentos de que a natureza lançou mão ao
criar os cérebros, particularmente o do ser humano, para adaptar-se ao
meio e sobreviver às ameaças. Há uma lógica biológica na ética, na
moral, nos costumes, na produção intelectual, na produção econômica
e até mesmo no culto, na religião e na idéia da divindade.
Esse futuro nos reserva, a reboque da concepção e do estudo da
nova mente, uma nova moral, uma nova ética, uma nova educação,
uma nova sociologia, uma nova arte, um novo direito, uma nova eco-
nomia, uma nova administração e talvez até uma nova religião.
Cabe, por ora, uma soluçãp,onciliatÓiia entre ±radicãou
ignorância provLgúúal e a nova ipa. Aquilo que não sabemos explicar
com as novas ferramentas lógicas e formais deve-se manter inalterado,
a menos que entre em conflito com o que já conhecemos da operação
cerebral.
Há que se preservar os usos e costumes e também adotar certa
parcimônia na remodelação precoce de noções como vontade e liberda-
de, agora informadas pelo substrato cerebral. Mas, quando essas vi-
sões estabelecerem confronto direto com o que sabemos que a mente
O SITIO DA MENTE

não pode fazer, a ruptura e a revisão de conceitos deverá ser imediata.


Para as situações triviais, excluída a patologia mental, agir-se-á como
se a vontade fosse plena. Na vigência de dúvida, não se tratará o pro-
blema da vontade como matéria de opinião, e sim como objeto de uma
ciência que lhe estuda as bases cerebrais.
O deprimido não precisa de deus, nem o ansioso de conselhos,
nem o disléxico de castigos, nem o obsessivo de reprovação. Todos
precisam de terapias específicas, muitas vezes auxiliadas por drogas.
Nessas patologias, há um saber científico que prescreve o que fazer e o
que não fazer.
O ignorante precisa de instrução, o preguiçoso de correção, o
tímido de ousadia, o egoísta de limite, o altruísta de louvor, o abnega-
do de prêmio, o solidário de culto. Aqui, como aparentemente não há
matéria científica em jogo, admite-se a confrontação de opiniões. Po-
rém, como defenderei ao longo deste livro, há uma base biológica para
certos comportamentos solidários, o que significa que dividir a renda e
pensar na miséria e na dor do semelhante não são simplesmente ques-
tão de opinião. Muito menos, ainda que pareça, questão de reviver,
com ares biológicos, antigas idéias cristãs. O fato de duas teorias pro-
porem numa determinada situação a mesma conduta não as torna idên-
ticas. O que as distingue - biologia e cristianismo - é como e por que
propõem solidariedade e fraternidade.

OPINIÃO E CONHECIMENTO

Como distinguir quando a mente precisa apenas das correções


usuais da cultura e da tradição (ordem das intervenções calcadas provi-
soriamente na opinião) e quando precisa de remédio que reinstaure o
limite correto do processamento de informação no nível das sinapses e
dos circuitos cerebrais (ordem das intervenções calcadas no conheci-
mento científico, discutíveis apenas entre técnicos habilitados)? Sem
conhecer a articulação dos fatos cerebrais que geram a mente não se
pode intervir em cada porção com exatidão e instrumentos adequados.
Isso, ao contrário de problema para o técnico, é problema de cada um
nas situações mais corriqueiras, na medida em que saber quando recor-
rer à ciência e quando exercer o direito de opinião é matéria pré-técnica.
Admitir o sítio cerebr a ljj.mente . a iirrj sj tampo rnlnear limi-
tes para a ação humana e prçurar as regras de sua £ondu. Como
em qualquer fase de transição científica e também cultural e social, a
nova ciência da mente não pode substituir o juiz no papel de julgar o
DISFUNCÃO MENTAL

delito, nem o pai no de educar o filho, nem o professor no de ensinar o


aluno, nem o chefe no de exigir desempenho do funcionário, nem o
sacerdote no de pedir mais fé ao fiel. Não temos, por ora, regras que
digam como se dão os processos de correção e de incorreção de com-
portamento, nem como substituir a alegoria do amor ao próximo por
um análogo biológico-mecânico. -
Concomitantemente com uma nova visão do mental, surge uma
nova psiquiatria, não mais confinada nos hospícios e tratada como tabu,
mas inserida no dia-a-dia de todos aqueles que entendem os conceitos
básicos de operação cerebral. A disfunção mental deixa de ser estigma,
transformando-se na evidência de que um órgão tão complexo quanto
o cérebro e um produto tão rico quanto a mente constituem fenômenos
delicados e com enorme potencial de desvio.
O limite entre o normal e o patológico é tênue. Por o, a criação
ença caminham lm próximas uma 1a outra. A antiga teoria se
beneficiou do potencial criativo da mente, mas não engendrou um sis-
tema racional de detecção da disfunção. Agiu certo pela via errada em
várias situações, o gue redundou em condenar ao exiJo, ao ostracismo
eulpa muita çente cujo delito único foi ter um cérebro a coordenar
suas mentes. Alem da culpa indevida, a antiga visão da mente Iea
perdas gigantescas de recursos materiais. Calcula-se que se percam 50
bilhões de dólares por ano nos EUA somente com pacientes deprimi-
dos, devido à sua queda de produtividade e às suas constantes visitas
a médicos clínicos com queixas somáticas vagas. Não se computam
aqui os outros bilhões de dólares gerados pela indústria de tratamentos
alternativos, seitas pseudo-religiosas e artimanhas similares de que se
servem os ignorantes e inescrupulosos para oferecer alívio aos doentes.
Analisando o quadro exclusivamente por uma ótica material, creio que
esses dois universos devem ser confrontados, pois desconfio estar aí a
força que se opõe à mudança de paradigma para a vida mental e para
seu sítio cerebral.
Quando o padre pede a seus fiéis que sejam mais amorosos com
o próximo, acerta, fazendo uso da antiga teoria; quando censura o de-
primido, afirmando que está assim por possessão demoníaca ou por
ter-se afastado de deus, erra. Ç2 .aiWaQprofes sgr dá uma nota baixa
para o alunopiiçoso, acerta; quando atine o desatento vítima de
uaifto chefe pecie niaisëiiiéh? a
seus vendedores para que se conquiste um novo nicho de mercado,
acerta; quando exige que o ansioso programe seu cérebro para não suar
nas mãos ao cumprimentar um comprador, erra. Quando unja mullr
O SITIO DA MENTE

pede ao marido ajejaais atençig e diMogue mais comeli;


do supõe ue sua perda delibido devido a uma djpressão se deva k
paixão por outra ou por caaado casamento,ey. Quando um pai
daô filho que leia mais e se instrua, acerta; quando diz que sua falta
de motivação e concentração causados por um quadro ansioso vem das
más companhias, erra. Quando um amigo convida outro para sair e
estimula-o a superar o medo e enfrentar a nova turma, acerta; quando
insiste para que o outro saia da cama, engula o choro e pense em coisas
boas, a despeito de estar com um quadro de pânico, erra. Quando um
governante apela ao amor abstrato pela pátria para obter a coesão da
população, acerta; quando pede auxílio a uma vidente para saber se
pode ou não viajar de avião, erra. Quando um candidato procura exer-
cer a diplomacia não ferindo suscetibilidades, acerta; quando aceita em
público um passe ou um pé de coelho para afastar mau olhado, erra.
Quando um ministro responsável pela moeda solicita que se pesquisem
preços boicotando aumentos abusivos, acerta; quando tenta, pela ilu-
são, negar a realidade, erra. Quando se advogam métodos de emanci-
pação e auto-ajuda supondo que revertam para o bem coletivo, acerta-
se; quando se propõem técnicas de superação dos limites humanos e
biológicos com o fito do sucesso, erra-se. Quando o jornal declara sua
imparcialidade e divulga todas as correntes de opinião, acerta; quando
coloca lado a lado o prognóstico do especialista e a previsão da vidente,
erra. Também erra quando dá o mesmo valor a um congresso sobre os
últimos avanços da biologia molecular no tratamento dos problemas de
memória e a um simpósio de medicina alternativa baseada na anatomia
dos chacras.
A lista é imensa, levantando em certo sentido uma pauta para se
discutir a mente neste final de milênio. A antiga teoria não será por ora
abandonada. Talvez jamais seja, dada a complexidade dos processos.
Talvez jamais tenhamos uma regra mecânica que indique como escre-
ver a Divina Comédia. Mas nem por isso devemos pensar que o funcio-
namento mental se resume à retórica desta ou daquela pseudoteoria.
Pergunte-se sempre, diante da dúvida quanto à aplicação de qual-
quer idéia sobre funcionamento mental: a) a mente do indivíduo ou a
minha estão saudáveis? b) minhas idéias vão de encontro a alguma
teoria científica existente? Se suas idéias se dirigem a um indivíduo que
está com o cérebro e a mente afinados, siga em frente, tendo apenas o
cuidado de examinar se sua proposta não colide com alguma teoria
científica mais consistente. Por exemplo: quando se usa a homeopatia,
está-se entrando em choque com teorias químicas e farmacológicas muito
DISFUNÇÃO MENTAL

mais sólidas; quando se manda pensar coisas boas para "programar" o


cérebro, está-se indo de encontro à neurociência que absolutamente
não reconhece tal prática como válida; quando se impede uma transfu-
são de sangue porque ofende deus, está-se contrariando uma teoria
científica que prescreve o procedimento naquele instante, etc. Tendo
examinado, portanto, se a mente a que se dirigem as idéias está ajusta-
da e se as idéias não violam teorias científicas bem estruturadas, aja de
acordo com sua intuição. Do contrário, procure outra via de solução para
o problema.
E bom acaut -sedianl-e de fcri g"prefendiazer-de nó
r-omens. PareimAni e bom ÂMae£ICUWiwsnas stu.açes cotidia-
nas sãQatitudes racionais que poeflvifr m1iiç iitmos.
O âmite de atuação da mente será dado, de um lado, pela
observação das limitações biológicas e naturais de qualquer fenômeno
e, por outro, pela presença ou não de disfunção mental. Cabe a todos
estarem atentos ao que as teorias científicas dizem a cada época a respeito
de uma série de fenômenos. De modo geral, embora falha, a ciência
ainda é a melhor maneira de falar consistentemente de certos domínios
de conhecimento. Ouvir o parecer de especialistas e supor que são
apenas opiniões a mais, comparando o engenheiro e a vizinha, o médico
e o curandeiro, é pouco razoável. Detecta-se a disfunção mental através
de uma vasta gama de sinais e sintomas. Por sorte, a mente aparelhou-
nos com luzes de alerta que, uma vez conhecidas, indicam que ela está
titubeando. São sinais e sintomas que qualquer um pode ver, pois
funcionam como luzes de um painel acessível ao nosso olho interior e
também ao olhar dos que nos rodeiam.
Imagine que voltamos ao exemplo do computador que passa a
exibir um problema na tela. Quando tentamos resolver o problema so-
zinhos e quando chamamos o técnico?

e quandn se deve chamai o tét-nli-n paga que corriía uma- instrurgWu


,

troque urnap.

SÍNTESE

O problema da disfunção mental, antes de assunto para médicos,


é subproduto imediato de qualquer teoria da mente. Toda vez que
fornecemos a alguém os corretos instrumentos de conhecimento suas
O SITIO DA MENTE

decisões tendem a ser racionais e criativas. Não basta listar sinais e sin-
tomas num panfleto que se distribui de porta em porta. Não perceben-
do a natureza diversa dos discursos, o leigo pensará que o boletim da
Organização Mundial da Saúde tem o mesmo peso do folder colorido
distribuído pela vidente da esquina.
A especificidade das funções mentais, e portanto das anomalias
mais ou menos específicas, levou-me a optar por mostrar uma série
delas acompanhadas de disfunções potenciais. Além de ressaltar a
praticidade de idéias que pareceriam filosóficas ou científicas, exem-
plifica-se, com o cenário cotidiano, a plêiade de quadros com que pode-
mos nos deparar. Por sorte, dada a natureza da forja do mental, é rela-
tivamente fácil corrigir essas disfunções; por azar, situado no plano da
ignorância e do preconceito, muita vez elas não são diagnosticadas pre-
cocemente ou jamais se aceita tratá-las.
Entender a articulação entre o cérebro e a mente permite que se
enxerguem as possibilidades de se agir por opinião ou de se recrutar
parecer técnico. *Sabe-se que a opinião pode ser dada quando não vai de
encontro a uma mente alterada, nem entra em choque com teorias cien-
tíficas que prescrevem o oposto. Grande parte das ilusões que se
vendem hoje em dia sob o rótulo de tratamentos para a mente encontra
ouvidos porque não se educam e instruem as pessoas com uma teoria
séria da vida mental, condizente com o estágio atual do conhecimento
científico acerca do cérebro.
Não há nenhuma intenção de exercer uma tirania do conhecimento,
desdenhando da ordem das coisas que são temática de opinião ou de
fé. Porém, preservar o direito irrestrito de opinião não significa aceitar
a tirania da ignorância, nem tampouco aceitar que se vendam por aí
idéias falsas, ou simplesmente truísmos, sob a aura de ciência. Opinião
é uma coisa, conhecimento é outra. Deve estar claro que uma ciência da
mente, de sua função e desvio, requer bem mais que o saber ingênuo
que se apregoa em muitos púlpitos, escolas, empresas e locais de
trabalho.

)
A MENTE ADOECE

Capítulo 13

A MENTE ADOECE

uando se estuda a função mental, e também as disfunções a


ela associadas, dividem-se arbitrariamente os protagonistas e papéis
da peça que se desenrola no palco consciente. Memória, pensamento,
atenção, sonho, humor, afetividade, juízo, personalidade, vontade e
sonho são alguns desses protagonistas.
Antes de falarmos de cada um deles. e inor escolha didática con-

uma ressalva: estaremos traao exclusivamente d2 mente flnniana.


porque há certas luzes de alerta(sinais e sintomas) que se ace-
dem no caso e sua ci rg4gLE porque exisfeníãisTfiiinções com-
pie não necessariamente ocorreriam em qualquer mente (no caso
do princípio abstrato aplicado a máquinas - teoria geral dos processos
mentais e seus meios de suporte físico). Embora se pudesse omitir esse
detalhe, haveria certamente um equívoco no texto que prejudicaria muito
a compreensão do que é específico do cérebro humano e do que é
genérico. O que é específico não ocorre obrigatoriamente nas
desregulagens mentais em outras máquinas. O que é genérico sempre
ocorrerá, seja em seres humanos, seja em máquinas (e, quem sabe, até
na chamada mente virtual, que interpenetra as relações entre os seres
humanos e destes com objetos culturais).
Vamos recordar alguns pontos. Como urgcérj
humano e mantém com el laãodtermipada, se seçonsegr
imitar ocódigoquo cérebro utiliza para gerar a mente, será possível
construí-la em outros meios físicos. Essa é sua razão abstrata. A porção
que está atada ao cérebro depende de certos desenhos do sistema (mente
humana), enquanto a parte abstrata independe de qualquer sistema
específico para ser implantada, desde que se respeitem suas peculiari-
dades de código (no caso, código analógico, sincronizações, etc.).
Imagine uma mesma operação em máquinas diferentes: datilo-
grafar numa máquina de escrever mecânica e numa elétrica, por exem-
plo. Um datilógrafo muito rápido e batendo com força em duas ou
O SITIO DA MENTE

ou mais teclas ao mesmo tempo pode causar um encavalamento na


máquina mecânica e uma pane na elétrica. O datilógrafo e o erro são
idênticos, porém, as características do sistema fazem com que a anor-
malidade apareça de um jeito na máquina mecânica e de outro na má-
quina elétrica.
tunçao mental no
"encavalamentos". To a vez
ajlapperação da n uma ii-cérebro. Não
receriam num sistema mente-máquina. -
Esses encavalamentos são síndromes pato1ogias, conjuntos de
sinais intomdemonstrarn que a mente está desregulando. No
cihumano, estão basicamente ligados a ciclos rítmicos e marca-
dores de sincronização (caso do sono), assim como a alterações do pen-
samento, humor, crítica, disposição, etc.
Pelo fato de grande parte dessas disfunções poder ser facilmente
diagnosticada e tratada, desde que para isso se abandone a visão antiga
da mente, acreditamos que qualquer obra geral sobre funcionamento
mental deva conter uma parte dedicada a elas. Principalmente porque
antes, na mente antiga, muitas dessas patologias, e também suas mani-
festações, eram tidas como Agora, compreendido o conteú-
livro passam a ser y_cj ssinápticos. Vejamos, a
d deste li,r
seguir, as classes de sinais e sintomas que costumam apontar para
disfunções mentais no cérebro humano.

SONO

Por representar um padrão cíclico no ser humano, o sono se pres-


ta a indicar precocemente muitas das desregulagens da mente. De modo
geral, deve ser contínuo, sem interrupções. Exceção feita às pessoas
que têm necessidade natural de dormir muitas horas (mais de 9, por
exemplo), os chamados longsleepers, ou poucas horas (menos de 6), os
chamados shortsleepers, o normal de sono na população varia de 6 a 9
horas por noite. A forma menos grave de anomalia de sono éainsônia
--
o indivíduo demora bastante a pegar no sono, mas, depois, dor-
me ininterruptamente o número habitual de horas. A segunda9,
inteiân, é a o indivíduo pega no sono, acorda
uma ou mais vezes durante a noite e volta ou não a dormir, acordando
por vezes sonolentç (forma mais branda), por vezes sobressaltado, JJ
sperio,anstiado(forrnamalssé). A terceira forma
é aquela em que o indivíduo praticamente não chega a dormir.
A MENTE ADOECE

Essas três formas - demorar para adormecer, acordar durante a


noite e dificilmente dormir - devem ser comparadas também com o
total de horas dormidas, uma vez que, nas desregulagens mentais, esse
número diminui ou aumenta. Assim, se um indivíduo que costuma
dormir de 7 a 8 horas passa a dormir 5 horas, isso já é um sinal. Se
demora a pegar no sono, mais um sinal. Se tem despertar precoce, sinal
ainda mais forte, e assim por diante.
E raro haver perturbação mental sem que, paralelamente, ocorra
distúrbio de sono. Claro que não é apenas a insônia que indicará uma
disfunção, mas, se existe dúvida quanto à desregulagem de base, uma
investigação a respeito do padrão de sono poderá auxiliar no diagnósti-
co. De modo geral o padrão médio é o que mais interessa, isto é, a
comparação do estado atual com o estado anterior, que só não será
válida no caso de problemas crônicos, em que pode fazer anos que o
sono está perturbado.
O leitor percebe, por este exemplo, porque dissemos que certos
sintomas dependem do tipo de máquina que está rodando a mente.
Não acredito que um computador que tivesse um programa do tipo
mente tivesse insônia quando este desregulasse.

MOTIVAÇÃO

Outro ponto que evidencia a existência de desregulagem é a alte-


ração na motivação. Em geral, a pessoa com disfunção mental apresen-
tará perda ou excesso (exagero) de motivação, dificilmente se enqua-
drará num padrão normal. Por vezes, a desmotivação é física, gerando
queixas de fraqueza e cansaço fáceis. Por trás de muito diagnóstico de
falta de vitaminas ou de alimentação está um sinal de advertência de
tipo motivacional.

CONCENTRAÇÃO

É comum que, nos casos de disfunção mental, a concentração tenda


a se romper ou decair. A perda de capacidade de concentração, a distra-
ção excessiva, a atenção que se volta para os objetos ao redor, por vezes
dispersando-se do foco do problema, incapaz de se fixar num ponto, cons-
tituem indicativos de desregulagem. A atenção voluntária - aquela res-
ponsável pela capacidade de focar um certo objeto ou assunto - diminui,
enquanto que a atenção espontânea - aquela responsável por detectar
quaisquer sinais ambientais—aumenta, levando o indivíduo a distrair-se
O SíTIO DA MENTE

com facilidade e também irritar-se com freqüência devido à intrusão


de estímulos externos e alheios ao problema em foco.

MEMÓRIA

Afora os distúrbios específicos, a perda de memória freqüen-


temente sinaliza a existência de algum distúrbio mental. Pode se tratar
de simples problema ansioso que dificulta a fixação da atenção, mas
ainda assim costuma se fazer acompanhar de uma queixa do indivíduo
quanto à perda de capacidade de memorização, sobretudo de fatos
recentes. Cuidado, porém, porque há distúrbios de memória específi-
cos das degenerações cerebrais senis e alguns outros devidos ao uso
de drogas, álcool, etc. De modo geral, a queixa de memória no adulto
jovem, sem a concomitância de outros fatores patológicos, aponta na
direção de distúrbio de atenção e não de distúrbio mnêmico específico.
Cumpre salientar que os chamados tônicos para a memória ou quais-
quer programas verbais de otimização dessa função costumam não
passar de engodos.

APETITE

Excluídas outras causas orgânicas, a perda ou o excesso de apeti-


te, de maneira súbita, também podem apontar para problemas men-
tais. Acompanhada de ganho ou perda de peso ao redor de três a qua-
tro quilos, não decorrentes de regime de engorda ou emagrecimento,
no período de um mês, a alteração constitui sintoma potencial de
desregulagem.

FADIGA

A presença de fadiga ou de disposição acima do normal (normal


aqui entendido como o habitual do indivíduo na média dos últimos
tempos) afigura-se como sinal de distúrbio da mente (aqui, novamente,
descartados outros problemas orgânicos).

LIBIDO

De modo bastante geral, também a sexualidade está relacionada


a quadros de desregulagem mental. A perda ou diminuição, bem como o
aumento ou excesso de libido (impulso sexual) podem indicar proble-
A MENTE ADOECE

mana esfera mental (mais uma vez, excluídas outras causas orgânicas).

SINTOMAS FÍSICOS

Os chamados sintomas vagos - dores estranhas, formigamentos,


diarréias, constipações, tonturas, vertigens, batedeira no peito (taquicardia),
cabeça oca, etc. - costumam sinalizar desregulagem mental, desde que
excluídas outras causas, normalmente após visita a um clinico. Grande
parte dos problemas psiquiátricos são tratados erroneamente por clínicos
gerais com técnicas mais intuitivas, sem que com isso se ataque a origem
do problema, e ainda prejudicando o paciente.

PENSAMENTOS

.`presenca d prnvimentos inhisitad&míscom demasia, es-


tranhos com idéia de 'k' i p1icál entrea,c_as, com "saca-
'um pouco excessivj'nm peycepções abruptasquanto &QjTIifi-
cãa das coisas, wgueLampá~ão de— alteraçãomental.
Lembre-se de que o que caracteriza a anomalia não é tanto a
verdade ou falsidade de uma sentença, mas a justificação que se dá a
ela. Alguém que afirma ser perseguido pode de fato estar sendo
perseguido; porém, não tentar ustificaro inusitadode sua afirmaç
bem como não ter diïïi as acerc&de sj,constihwni indício. forte

PERCEPÇÃO

As alterações perceptuais, como ver coisa .&wr vozes, costumam


estar entre os mais graves sintÕrna RI ] iUi ( ção men Antes
iior que sejam mensagens com qualquer eudo extra-
sensorial, pense-se no caso da desregulagem cérebro-mental. E comum
que se pense que essas visões, ou às vezes representações internas com
conteúdo sensorial, sejam premonições. Definitivamente, se a natureza
tivesse de selecionar o atributo da premonição como mais apto para a
vida social e mental, todos nós o teríamos. Como não o temos, é muito
mais comum que se trate de histrionismQ, i ressQ..0 v2aric O
primeiro caso de condenaçãoalguém pelo exercício dse tipo de
"poder de previsão" ocorre no século passado na Inglaterra. E
interessante que a comunidade científica nessa época ficou meio dividida
quanto ao caráter charlatão do acusado, o que mostra que nem sempre,
O SÍTIO DA MENTE

mesmo entre os cientistas, a razão é uma constante.'

IRRITABILIDADE E IMPULSIVIDADE

A idéia de que pessoas de pavio curto ou extremamente mal-hu-


moradas são assim por temperamento em geral é equivocada. Irrita-
bilidade, explosividade e impulsividade excessivas alertam para a pre-
sença de problema mental.

SÍNTESE

Apresentamos uma lista de sinais e sintomas que indicam mau


funcionamento mental. São, de alguma maneira, exclusivos do cérebro
humano. Isto é, numa teoria geral da mente, abstrata e implantável
tanto em cérebros como em máquinas, as desregulagens não necessaria-
mente apareceriam nas últimas. Trata-se de peculiaridades da mente
no sistema cérebro humano. Não têm grande valor quando tomadas
isoladamente; porém, quando agrupadas e com duração de algumas
semanas, apontam quase certamente para patologias mentais.
Nos próximos capítulos, que abordam funções e disfunções, se-
rão enfocados alguns eixos básicos da psiquiatria que podem auxiliar
na obtenção daquilo que dissemos ser uma pista de que a mente não
está de posse de todos os seus instrumentos de ação.
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

Capítulo 14

O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

0 pensamento é função mental ímpar no ser humano. Não


por acaso, na primeira concepção da ciência cognitiva, é ele que se
pretende explicar e modelar. Daí, como vimos, o termo cognição. Re-
presenta, ao lado da linguagem, uma das grandes conquistas do cére-
bro humano na escala evolutiva. Até onde podemos inferir, mesmo os
primatas não-humanos teriam formas apenas rudimentares de pensa-
mento. A idéia de que pode ocorrer sem linguagem é defendida por
muitos pesquisadores, embora, a meu ver, o entrelaçamento de ambos
seja inevitável. O pensamento sem palavras normalmente é pobre. Pro-
cessado através de imagens, parece mera manipulação de onceitos

O pensamento surge graças à evolução do tecido cerebral, parti-


cularmente de uma área chamada neocórtex. A gênese dos comporta-
mentos voluntários e a planificação e elaboração de estratégias de ação
são papéis importantes dos lobos frontais. O processo pode ser
consciente ou não. Na maioria das pessoas, a função consciente está
relacionada ao processamento no hemisfério esquerdo, que se liga ao
hemisfério direito através de uma rede de fibras conhecida como corpo
caloso. Em alguns pacientes, é preciso fazer cirurgias que removam a
conexão entre os dois hemisférios, devido principalmente à presença
de tumores ou quadros epilépticos intratáveis. Nesses casos, passa-
mos a ter duas unidades processando pensamento independentemen-
te. Certas técnicas permitem fazer incidir informação em cada hemisfé-
rio cerebral isoladamente. Se fizermos incidir informação visual, por
exemplo, no hemisfério direito de um paciente que sofreu a remoção
do corpo caloso, ocorrerá processamento de pensamento sem
consciência. Coloca-se uma série de fotografias no seu campo visual
específico, de modo que as imagens somente cheguem ao hemisfério
direito. O paciente relata não ter consciência de nenhuma imagem. Pede-
se-lhe, então, que conte uma história qualquer que lhe venha à cabeça.
Ele conta uma em que estão presentes, quase sem exceção, os elemen-
O SITIO DA MENTE

tos das fotografias. Além disso, dá um todo coerente a elas. Se são


fotografias de galinhas, pomar e celeiros, conta a história de uma fazenda
e de algum acontecimento ali ocorrido. Isso mostra que o hemisfério
direito não só processou a informação como a integrou num contexto
coerente, o que indica a possibilidade de processamento de pensamen-
to e raciocínio sem consciência.'
Muito se tem dito sobre o hemisfério esquerdo ser responsável
por pensamentos analíticos e o direito, por pensamentos espaciais. A
idéia é questionável. Mais discutível ainda é o uso que se tem feito de-
la, que inclui de afirmações do tipo "pensar com o lado direito do
cérebro" à aplicação de técnicas que estimulariam tal capacidade, ambas
totalmente desprovidas de qualquer fundamento científico. E certo que
há algum grau de especialização no processamento de linguagem e de
raciocínio matemático e espacial, por exemplo. Só que está absoluta-
mente fora do nosso controle, e não há técnica conhecida que faça o
raciocínio migrar de um ponto a outro.
O pensamento é considerado inteligente ou não, o que motiva a
busca por condições de definição e operação da inteligência. Esse proje-
to, como já vimos em outras passagens deste livro, apresenta algumas
falhas, uma vez que nós, humanos, processamos o pensamento e a
tomada de decisões com critérios talvez não-inteligentes. Ao contrário
de significar burrice, isso aponta na direção de um processo diverso
daquele prescrito na chamada teoria normativa da decisão. A inteligên-
cia tem profundo compromisso com o pensamento, bem como com a
educação e com a instrução. Se há um componente genético e imutável
na inteligência, também há uma enorme contribuição do meio e uma
vasta capacidade de otimizar pela educação os processos racionais.
Porém, novamente, deve-se estar atento: tj otimizacão qçdá atrs
tiyortaj mas,

essencialmente conceitual. Airender sobre a


ta, na daei se trata de iJLeanguIar na Lu— a daJ
posição acercaç ep4,4jpsses cotidianos.
A concepção digital da mente, que coloca o pensamento como um
encadeamento de símbolos através de regras, é apenas parte da explicação a
respeito da gênese de cadeias de raciocínio. A idéia de computar ou de calcular
está de acordo com o que o cérebro faz para processar símbolos. No entanto,
como vimos, muitas vezes esse cálculo não se faz à custa de regras, mas de
regularidades. Mais genericamente ainda, parece resultar da sincronização
sucessiva de módulos neuronais que processam partes da informação.
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

M
I
e testar a maior guanti â e n tre os módulos,
des cart an do as desinter es. Esse processo costuma ocorrer abaixo
do limiar,—,de consciência. Por isso, quando alimenta ~ JQlewa, —

uma teia rica de

As intuições nada mais seriam do que a emergência na


de um padrão estimulado iDor um aporte rico de relacões. C
se lembrar do exemplo da água que vira vapor. Quando chega a 99
graus, basta aumentar em um grau a temperatura para provocar uma
mudança radical no comportamento do sistema. O mesmo ocorre com
a intuição. Temos uma série de relações (sincronizações), estabelecen-
do-se o tempo todo, que representam um aumento na "temperatura"
do processamento cerebral. Em determinados momentos, a "tempera-
tura" aproxima-se tanto do ponto de transição que qualquer evento, até
uma noite de sono, pode colocar o sistema na transição de fase. E nesse
instante que a solução para o problema, a "heureca", brota na consciência
(isto é, no nível mental de processamento). Não há nada de místico ou
de espiritual nisso. Simplesmente, para certos intervalos de energia, o
sistema se organiza de uma nova maneira, e é isso o que emerge na
consciência.
A consciência parece ser a depositária apenas das soluções que o
pensamento engendra abaixo dela. E como se percebesse somente três
estados fundamentais, no caso da água sendo aquecida ou esfriada:
água sólida (gelo), água liquida e água vapor. Todo o processo de aporte
calórico até que a água liquida ferva tornando-se vapor está abaixo da
consciência. Por isso, temos a impressão de que o conhecimento, as
"sacadas as intuições, progridem em saltos. 2
",

Diz-se, com relação aos fenômenos mentais graças a uma doutrina


-

diamadata/t3-, que o todo é mais do que a soma das partes. E iustamente


isso o aue está exemplificado na soma de 100 oartes de temoeratura: se até 99
graus tenho água aauecida, a 100 graus, tenho a emergência de um novo

qualquer sistema físico, o cérebro possui a propriedade de dar saltos, de fazer


as chamadas transições de fase (ou de alterar a topologia do conjunto de soluções
do sistema através da passagem por um valor de bifurcação no espaço de
parâmetros) para certos valores de energia. Isso está presente em muitos fenô-
menos naturais e também no modo como formamos todos a partir dajustapo-
sição de blocos (ou símbolos) ou no modo como realizamos abordagens quali-
tativas novas a partir do acréscimo de quantidades.
O SÍTIO DA MENTE

Tanto a teoria da complexidade como a teoria do caos têm muito


a nos ensinar sobre esses comportamentos, quer em sistemas físicos,
quer em sistemas sociais,quer em sistemas como o cerebral. 4 No cére-
bro, o que existe é uma imensa interação de elementos e um fluxo de
informação ou energia que vai "aquecendo" o sistema até que ele dê
um salto. Isso explica a intuição e o domínio, através do apepdizado,
de certas habilidades que, de início titubeantes, com o treino se tornam

Como principal atributo da mente humana, o pensamento é o


primeiro objeto de imitação para quem pretende construir máquinas
capazes de exibir comportamento mental. A inteligência, no entanto,
como capacidade de estabelecer e testar relações, não é apenas uma
propriedade do pensamento. Embora esteja na moda um determinado
conceito de inteligência emocional, segundo o qual é inteligente aquele
indivíduo que, além de raciocinar bem, é capaz de dominar suas emo-
ções, ele não traz grandes novidades. Qualquer abordagem do cérebro
humano sempre deverá levar em conta a harmonia entre pensamento,
emoção e vontade. Não é uma questão de medir quociente intelectual
ou emocional, mais de garantir o equilíbrio entre os sistemas. Não ape-
nas a inteligência tradicional é uma medida relativamente falha do pro-
cesso de pensamento como também está submetida a fatores emocio-
nais, de vontade e de motivação que terão enorme relevância no de-
sempenho final do sistema (nos comportamentos).
No tocante à inteligência, diz-se hoje em dia que temos não um,
mas vários tipos de inteligência. Entendida como modo de estabelecer
relações sincrônicas entre módulos cerebrais, testando formas novas e
efetivas de abordagem, a inteligência deixa de ser apenas "resolver
com facilidade um problema de matemática". Haveria uma inteligência
discursiva, uma visual, uma sensível, uma ética, etc. Não teria sentido
qualificar de inteligente o gênio matemático e de burro o bom artista
plástico, o bom escultor, o bom músico, etc. Muitas vezes ocorre uma
superposição de habilidades, isto é, aquele que faz bem uma coisa ten-
de a fazer bem outras. Nem sempre, porém, esse fenômeno ocorre, e
podemos incorrer em erros graves quando avaliamos quocientes espe-
cíficos como o matemático ou o espacial, ou, genericamente, os chamados
testes de QI (quociente intelectual) hoje sem muita credibilidade dando
lugar a novas técnicas de abordagem neuropsicológica.
O papel da educação na detecção dos tipos de inteligência, no
seu direcionamento e nas estratégias de compensação das partes mais
fracas é de importância fundamental. Não se trata apenas de reforçar
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

aquilo que o indivíduo sabe fazer bem, mas, sobretudo, de criar meios
de aparelhá-lo naquelas áreas em que tende a não se sair tão bem. Sem
pressão ou comparação com outros mais bem-dotados nesta ou naque-
la área e também sem esperar que o indivíduo de alta inteligência ma-
temática se torne um exímio poeta, é preciso não direcioná-lo apenas
para o cálculo ou para a geometria. Em vez disso, devem-se criar con-
dições para que ele possa exercer outras atividades (poesia, literatura,
redação, artes plásticas), adquirindo confiança também naquelas em
que não está tão bem instrumentado pela inteligência específica.
Essa posição talvez contrarie muitas das concepções em voga.
Claro que o indivíduo tenderá a apresentar melhor desempenho nos
domínios em que tenha maior aptidão específica. Contudo, não aparelhá-
lo nas outras formas de raciocínio poderá, na nova época que se aproxi-
ma, torná-lo menos adaptado e principalmente mais deslocado (o que
redundará em menor equilíbrio emocional).
O pensamento segue uma direção sistemática e seqüencial. Nor-
malmente, o raciocínio transita do particular para o geral, do concreto
para o abstrato, da parte para o todo, do novato para o especialista. Se,
por um lado, devem-se estimular e manter os sistemas de pensamento
seqüencial (de acordo com a concepção digital da mente, mente
manipuladora de regras), por outro, contudo, deve-se incentivar o pen-
samento por analogias, por similaridades, por experiência, por tentati-
va e erro, por descoberta, por devaneio, etc. Isso tenderá a ativar o
processamento da empresa através de seus dois tipos de departamen-
to, o concreto-digital e o virtual-analógico.
Há um paradigma mais ou menos cristalizado de que as porções
ligadas ao pensamento seriam algorítmicas, seqüenciais e, portanto,
melhor captáveis por sistemas de regras (IAS), enquanto que o
processamento de informação de baixo nível, sensorial, seria feito em
módulos de processamento paralelo de tipo rede neura! (IAC). A
concepção de Norman e Shallice propõe até um modelo de módulos
em que há uma entrada de informação pelas estruturas sensório-
perceptuais. Daí, há a ativação de bases de dados prévios que, sob a
ação de filtros do sistema de atenção e supervisão, deixam a informação
passar para o nível das estruturas de processamento psicológico
propriamente dito. Esse modelo é uma variante, em certo sentido, da
tese de uma saída de processamento complexo cerebral que se candidata
à manipulação pelas estruturas ditas mentais?
A crítica é uma propriedade do pensamento, medindo a razoabi-
lidade de certas concatenações de blocos. Julgar e criticar seriam, as-
O SITIO DA MENTE

sim, formas indissociáveis da razão, embora na prática tendam a sofrer


contaminação de outras funções.
Na minha opinião não teria sentido dissociar pensamento de crítica
e de juízo, uma vez que não são apenas as construções de sentenças
lingüísticas (ou passíveis de serem traduzidas sob a forma proposicional)
que respondem pelo pensamento, mas também sua submersão num
contexto de argumentos e cenários discursivos, que absolutamente não
são apenas susceptíveis a avaliações de verdade ou falsidade, mas
também a critérios de validade, coerência, plausibilidade, etc. Essas
todas são funções da crítica e do juízo.

PSICOSES

Genericamente, psicoses são formas de anomalia do pensamen-


to, da crítica ou do juízo. Costumam se manifestar num sem-número
de quadros. Por vezes, uma febre pode levar a um quadro delirante,
assim como a intoxicação por substâncias internas ou externas. Um rim
ou um fígado funcionando mal podem gerar perturbações do pensa-
mento. Também infecções, tumores, drogas, álcool e remédios para
emagrecer. O que ocorre nesses casos é uma alteração na conexão dos
neurônios, quer nas sinapses, quer nos receptores, quer nos mensagei-
ros. Em muitos deles, é necessária apenas a remoção da causa de base,
ou seja, a redução da febre, a eliminação da infecção ou a resolução da
insuficiência hepática. Na maioria das vezes, no entanto, é preciso atuar
em circuitos neuronais mais ou menos específicos. Quem supõe que
tais circuitos sejam vias ligadas exclusivamente ao pensamento, deve
lembrar-se das comissões e dos funcionários que são regularmente recru-
tados para certos fins. Não há dúvida de que determinadas vias neurais,
comumente as que usam o neurotransmissor dopamina, fornecem, com
grande constância, quadros para os comitês que deliberam assuntos da
razão. Mas isso não faz da dopamina sinônimo de pensamento, nem
das vias que a utilizam departamentos cerebrais exclusivos do pensar.
Nas psicoses, costumam-se usar drogas que se ligam aos receptores
de dopamina, impedindo que o neurotransmissor aja. Atuam como falsas
chaves e, portanto, ocupam as fechaduras dos neurônios por onde passaria
informação. Com isso, reduz-se o trânsito desta de um ponto a outro,
mudando-se radicalmente tanto seu processamento seqüencial lógico coma
o código de oscilações (código de barras) do grupamento de neurônios.
Removida a causa geradora da desorganização neural (interna ou
externa, real ou imaginária), muitas vezes a função volta ao normal.
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

Exceção a isso são os quadros em que há lesão nos neurônios ou


produção crônica de receptores anômalos. Parece ser esse o caso nas
chamadas psicpses esquizofrênicas, um dos poucos tópicos de péssimo
prognóstico em doenças mentais.
No envelhecimento, ocorre degeneração de neurônios e de cone-
xões, acompanhada, por vezes, de desorganização cognitiva: perda de
vitalidade intelectual, memória e agilidade de raciocínio. As doenças
que mais freqüentemente geram o envelhecimento são as alterações na
irr igação sanguínea dos neurônios (arterioesc1erose). Mas também há
outras, chamadas demncias de Alzheimer e de Pick (tipo de demência
semelhante ao Alzheimeir, porém afetando áreas mais específicas,
principalmente subcorticais).
Anomalias do pensamento podem aparecer de várias formas. Há
casos em que !pensamento rápido demais tende a estabelecer con.e-
xÕes de superfície entre n rnrd'eitnl e as palav. Um indivíduo diz,
por exemplo: "Estava andando numa área rural, vi uma vaca.., ah, como
eu gosto de leite... você viu a vaquinha do anúncio de chocolate... couro
de vaca tem cheiro forte, mas não se impressione, com café, o leite fica
escuro..." Nota-se uma associação de blocos por semelhança com o
conceito de vaca. Por vezes, essa semelhança é apenas pelo som das
palavras: "Vim ficar... mar... roçar... nadar. Parar para e paradeiro e
nadar nadador e nadamente." Aqui, o pensamento capta apenas uma
relação fonética - de palavras, sílabas ou rimas.
Nos quadros de aceleração (anomalia primária do humor que con-
tamina a função pensamento), podem aparecer associações de superfí-
cie. Já as associações de profundidade tendem a remeter a estruturas
mais complexas. Na lentificação depressiva, também primariamente
circunscrita à esfera do humor, aparecem outros vícios de pensamento.
Um indivíduo deprimido me procura queixando-se de tristeza,
ruma, angústia. Medicado com um antidepressivo, passa rapidamente
a um quaaro ae aceieraçao. 1 elerona-me cuzenao que nao na mais crise,
aque sã empresa está melhor, que suriram muitas oportunidades çl
negócio. rgjnto-1he—s e está no rm L")igmos que estou paranornial.',
res ponde. "Vejo conexões e coincidências em tudo. Uma moca que entra
na minha sala me lembra de_alguque me deu um bom conselho
acerca de investimentos. Que-ma solução para um problema, vejo um
anúncio num outdoore lá está ela." -
Neste caso, a aceleração toca numa estrutura profunda - nesse
caso de origem afetiva ou de alteração de humor -, que começa a usar
o pensamento para forçar uma lógica que não existe. A crítica pode ou não
O SITIO DA MENTE

estar preservada. O paciente mencionado prossegue: "Embora esse esta-


çseja bom, creio que está um pouco exagerado e'Tivez anorF.
Quer dizer, ainda tem juízo, crítica econsciência de que o estadp
paranormal guarda algo de anormal. Retirado o remédio, em dois dias
massa a não ver mais as conexões, sem retornar ao auadro deressio

0 pensamento pode desregular-se por completo tanto em sua


estrutura superficial quanto profunda. Novamente aqui, temos dife-
rentes planos de distúrbios. A desorganização pode atingir o nível do
conteúdo ou o nível da construção.
Uma paciente me diz que "o pensamento tem a propriedade de
atingir o frescor, que as idéias são verdes como um jardim, que há um
refrescante momento em que uma idéia parece uma bala de menta". A
confusão com o uso metafórico da linguagem pode levar o leigo a crer
que esse grau de desorganização é de extrema inteligência. Vai daí que
se deve investigar o contexto em que ocorre. Uma frase surrealista,
como "Abaixo o Mediterrâneo", dita pelo pintor Miró, não é desorgani-
zada, é alegórica. Uma frase como a transcrita acima, dita por uma
pessoa comprometida, é sinal de distúrbio. Não apenas não tem senti-
do como a paciente tende a fazer uma leitura concreta dos conceitos
abstratos. Pensamentos são abstratos, portanto, não são verdes, nem
refrescantes. O conceito não se esgota no exame da frase isolada,
de todo um quadro clínico.
Nos casos mais sérios, não é somente a estrutura das sentenças e
dos conceitos que se perturba, mas a própria estrutura das palavras. O
paciente começa a criar neologismos para descrever suas idéias.
"Descolamento descolante acompativelmente com o pensar", diz um
esquizofrênico. A sentença não tem sentido, e os termos começam a ser
fragmentados, criando-se novas palavras, tão bizarras quanto rabdujiks,
embora o mais freqüente seja apenas a prefixação ou-sufixação de vocábu-
los conhecidos. O pensamento desorganizado, também chamado de de-
lírio hebefrênico, contrapõe-se a uma estrutura de delírio altamente
sistematizada e internamente coerente. O delírio sistematizado -
ante chamado delírio paranóide— não viola a estrutura grai
é bem construído, ainda aue haja um vício de realidadU
J paciente eiutaemromeceraaaos que corroborem suas anrmaçoes cienrantes
(como ser objeto de um complô planetário), respondendo monossilabicamente
que aquilo é simplesmente óbvio. Quando muito indagado pelas razões e
verossimilhança de seu discurso, passa a considerar o interlocutor também um
agente perseguidor na sua estrutura delirante.
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

Uma paciente descreve para mim a seguinte cena:


"Estava andando por uma alameda quando percebi que havia
uma pessoa que queria meu mal no emprego. Sabe, há pessoas que não
desejam o sucesso alheio. Eu, por exemplo, noto que todos se viram
para mim quando chego e que falam de mim pelas costas. Acho até que
há uma conspiração contra mim, organizada por meus colegas e tam-
bém por uma forma de vida que há no universo, recém-descoberta pela
NASA. Ah, claro que esse fato não foi divulgado por não haver interes-
se das partes envolvidas... Sei que mandam mensagens e percebo essa
conspiração quando vejo o jornal na televisão... O locutor fala pensando
em mim, dirigindo-se a mim e sinto que podem captar meus pensa-
mentos através de antenas parabólicas e de tomadas de luz."
Nesta narrativa delirante, a sistematicidade do pensamento está
preservada, verificando-se somente uma concatenação anormal. Se o
indivíduo é questionado sobre como descobriu ou como pode provar o
que diz, apenas mexe a cabeça com um ar de: "Eu sei. Tolo de você,
que não é capaz de ver". Aí está um dos pontos fundamentais do delí-
rio sistematizado: não há crítica, nem tentativa de persuasão ou de
verossimilhança, além de existir, normalmente, uma expresão facial
característica - humor delirante - que denota o estado interno.
A função precípua do pensar parece ser a capacidade de conven-
cer e de provar, e não apenas o de externar-se em palavras. Suponha
que você estivesse num sítio, acordasse no meio da noite e visse uma
nave espacial pousar no seu jardim. O que você faria? Iria aos jornais
contar que viu marcianos? Claro que não, você procuraria alguém, di-
zendo: "Olhe, aconteceu uma coisa que não sei explicar direito, inusita-
da. Talvez estivesse sonhando, mas chamei outras pessoas para garan-
tir que não estava. Todos viram uma luz que podia ser um avião ou um
satélite. Tentamos ligar para o departamento de aeronáutica. Não sei,
pode ter se tratado de uma alucinação coletiva, mas houve algo de
estranho ali."
Um pensamento se caracteriza como delirante não apenas quan-
do fala de coisas inusitadas, mas sobretudo quando faz conexões bizar-
ras, sem se preocupar em construir contraprovas, argumentos de refu-
tação e dúvida. Embora muita coisa seja possível, uma sentença s6
pode ser verdadeira ou falsa. Como o pensamento é. porém . um enca-
deamento argumentativo de sentenças. prevalece na sua análise o cri té-
iida d- e e não o da verdade. Um pensamnto cheio Àesen~
bem construídas. ma&falsas. fala de um mundo oossív1 não necessa-
O critério de disfunção, mesmo nos casos mais
O SITIO DA MENTE

brandos, relaciona-se à capacidade do indivíduo de criar um sistema


verossímil de argumentação e de provas para suas idéias. A violação
está muito mais ligada à validade dos argumentos e à coerência
discursiva do que à verdade das sentenças isoladas. Afinal, existe muita
gente que é perseguida, porém, duvido que por marcianos. Há ditadores
e serviços de informação para isso; não é preciso fazer alusão a extra-
terrestres.
O indivíduo normal tende a duvidar do inusitado, não crendo
enfaticamente em tudo o que diz ou pensa. Sempre que se enuncia uma
opinião precedida de "acho quê", de certa forma, está-se colocando
uma dúvida subliminar.6 Claro que ninguém dirá "acho que tenho cinco
dedos na mão". Mas, se você for falar de uma insuspeitada conspiração
universal contra si, tome cuidado, pois, ainda que o encadeamento das
sentenças possa estar bem construído, faltará um contexto de verifica-
ção e de refutação, advindo da validade, da plausibilidade e da consis-
tência do pensamento.
Pode-se dizer que estes são termos difíceis, conceitos lógico-filo-
sóficos. No entanto, estão no cérebro e na mente, manifestando-se dia-
riamente quando usamos a razão e o bom senso, e também quando os
perdemos. Em lugar de decorar meia dúzia de frases de efeito sobre
administração racional do cotidianõixtraídas de um manual qua1gue,
seria zfuit6 ms o oso4DredeI*oncItos ctmo va1idad[e c-
sistncpar aastrr a
Os distúrbios do pensamento costumam afetar variados níveis
de construção de símbolos e de suas relações. Sejam esses símbolos
palavras e sentenças, sejam relações estabelecidas por regras lógicas,
regularidades ou sincronizações, o produto final será anormal sempre
que qualquer das etapas estiver prejudicada. Pode haver problemas na
formação das palavras, das sentenças, dos raciocínios e do discurso
como um todo. Esses níveis podem se desregular por uma diversidade
enorme de causas, e, muitas vezes, a única forma de corrigi-los é atra-
vés dos chamados neurotransmissores falsos que se ligam ao receptor
de dopamina, impedindo o tráfego excessivo de informação por aquele
circuito.
Algumas alterações elétricas no cérebro também podem suscitar
certos tipos de pensamentos. Não é raro que epilepsias nos lobos tem-
porais originem delírios ou idéias de conteúdo místico (este era o caso
de Dostoiévski). Algumas lesões em áreas cerebrais especificas dão a
sensação de que o pensamento, embora absolutamente correto, não
tem relação com a realidade. Fala-se, aqui, de pensamentos pobres,
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

excessivamente concretos, sem vivência real. Já no caso de deficiências


intelectuais, há dificuldade de aprendizado e tendência à impulsividade,
talvez decorrentes da parca capacidade de abstração.
Muitos quadros primariamente não circunscritos ao pensamento
podem levar à sua alteração secundária. E caso do delírio de ruína ou
de ciúme, comum nos quadros depressivos; do delírio de grandeza,
comum em auadros maníacos; do delírio de falência dos órgãos, na

No delírio de ruína, o

em
i'io aeuno de ciume. aparece uma ciescontiança patoiogicaem
relacão a outra pessoa. normalmente o cônjuge vendo-se conexões
corroborantes em toda parte.. Após a medicação, o indivíduo começa
lentamente a readquirir a crítica, e, por vezes, ao ser indagado se a
infidelidade continua, responde: "E, parece que ela (ou ele) resolveu
dar um tempo com o namorado."
No delírio de culpa, o indivíduo sente-se responsável por fatos
absolutamente bizarros. Uma mãe me perguntou se um tapa na cabeça
poderia causar um tumor cerebral. Respondi que não, questionando
2iê. Seu filho morrera há 20 anos de tumor cerebral, 30 anos após
ela tê-lo repreendido com um tapa na cabeça.
ptro indivíduo me confessou uma culpa incurável por não ter
feito nada vara evitar a guerra do Vietnã. Ouando lhe veruntei o aue

uma audiência com o presidente dos Estados Unidos ou fazer um acamr


vamento na frente da Casa Branca."
o indivíduo, vítima de uma de-
a tal limite aue não
mas apenas o

A maioria desses quadros reage positivamente, de maneira às


vezes rápida e definitiva, aos remédios - em geral, bloqueadores de
1 ação da dopamina conjugados com maximizadores de ação da nora-
jirenalina e serotonina.
Outra forma comum de anomalia é a ruminação excessiva. Mas-

cia, sem conseguir aDortar a mtrusiviclacle cia icieia. em cur 1 s Q1ntnn1

O jçpstuma pensar exaustivamente na mesma coisa. Ain-


O SÍTIO DA MENTE

da que não possa mais resolver nada, continua a ser invadido pelo pen-
samento, o que dá bem conta do caráter involuntário de muitas idéias.
Podem aparecer sugestões de acidentes trágicos, sem que para isso
concorram eventos mais concretos do que uma viagem de automóvel
ou uma sirene de ambulância. Nos quadros depressivos, surgem idéias
recorrentes de morte e, algumas vezes, de suicídio.
O caso dos pensamentos hipocondríacos é exemplar. Acredi ta-s e
que 10% das pessoas que procuram serviços médicos nos EUA sofram
de formas mais ou menos intensas de hipocondria. Nesses quadros, a
idéia fixa relaciona-se a doenças já existentes ou por se desenvolver no
organismo. A sugestionabilidade é intensa. Em muitos indivíduos, no-
se prazer em falar de assuntos médicos e mesmo em invesfig-los.
Um paciente jovem, bem apessoado, aguardava-me na sala de
espera do consultório. Passei por uma porta de onde pude vê-lo. Esta-
va refestelado no sofá, olhar fixo, cara de interesse e prazer. Prestei
atenção e vi que tinha descoberto um livro médico que contém todas as
bulas de remédios no mercado. A avidez com que devorava o livro era
maior do que se fosse literatura erótica.
De maneira geral, o hipocondríaco perde a crença nas instituições
e nos profissionais, jamais se dá por satisfeito com um dianóstico,..e

probabilidade e não de certeza. Centra suas preocupações em si, mos-


trando baixa capacidade de perceber o quanto um outro tópico, este
sim digno de apreensão, pode ter se deslocado para a representação
potencial de doença. E um quadro ligeiramente mais difícil de tratar,
pois, além de remédios, requer alguma abordagem psicoterapêutica.
O paciente do livro de bulas me disse temer que seu rim não
estivesse bem. Consultou a biblioteca médica do lar, pesquisou tudo
sobre próstata. Questionado a respeito de acontecimentos recentes, res-
pondeu com aparente descaso: "Perdi o emprego e não tenho reserva
alguma, mas acho que meu problema é renal."
O caso dos pensamentos obsessivos aproxima-se da condição do
delírio. O indivíduo confere 50 vezes se fechou uma porta, desinfeta o
pão que vai comer, abre a pasta a cada 30 segundos para ver se não
esqueceu seus documentos pessoais. Indagado se acredita que aquilo é
necessário, responde: "Sei que é absurdo, mas, se não faço, sou invadi-
do por um desconforto extremo, físico até." Este é o ponto que o dife-
rencia da vítima do delírio. Jamais acredita no motivo e no conteúdo da
idéia obsessiva, mas age como se acreditasse, pois a não-realização de
rituais absurdos desencadeia intenso mal-estar.
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

Uma paciente que tinha seu holerite entregue todos os meses por
um funcionário homossexual desinfetava o papel com álcool antes de
pegá-lo, tamanho seu medo da transmissão de doenças. Invariavelmente
não sobrava holerite. Certa vez, desinfetou o carro, danificando toda a
pintura da lataria. Foi assim a vida toda? Não, antes de uma relação
sexual extremamente inusitada e fora de seus padrões, jamais havia
sido senão pessoa tímida e ligeiramente metódica.
Além dos quadros acima, temos ainda as chamadas perversões
sexuais. Elas constam de uma série infindável de fantasias e comporta-
mentos acerca de objetos eróticos. Basicamente aferíveis quanto ao grau,
podem ser brandas, representando apenas uma maior inventividade,
ou intensas, correspondendo a patologias do pensamento. Muitas de-
odem vir a reboque de quadros ansiosos e dpressivos. Nestes
casos. embora floridas no aue diz resreito ao objeto sexual, cheias de
e situacões. desfazem-se auando se trata
iãusa de base. --
Um paciente ansioso, depois de ter sua ansiedade medicada, re-
latou que suas excessivas fantasias sexuais com a mulher cessaram.
Antes precisava chamá-la de vagabunda e manter relações com ela como
se estivesse com uma prostituta. Outro paciente, quando deprimido,
tinha intensos desejos homossexuais. A medida que se foi medicando a
depressão, seus impulsos sumiram e ele retomou o padrão heterosse-
xual habitual.
Um paciente com distúrbios no lobo frontal - tumores, degenera-
ção, etc. - pode manifestar uma sexualidade exagerada. E o caso de um
indivíduo de 80 anos que costumava abordar garotas e rapazes ofere-
cendo-lhes recompensa em troca de favores sexuais. Por obra de condi-
ções orgânicas propícias, ele ainda era capaz de ter ereções pronuncia-
das. Veio a meu consultório depois que a filha o viu mantendo relações
com uma cachorra. O exame cerebral mostrou deterioração demencial
extrema, particularmente no lobo frontal. Meses mais tarde, o paciente
já não reconhecia ninguém e não dizia coisa com coisa.
Ética e decoro entrecruzam a racionalidade, a emoção e a vontade.
Embora a primeira concexão de mode1aem da mente tiilie atido ao

entre os módulos mentais. Todos acabam por influenciar uns aos


O paciente deprimido, ainTa que não apresentepatologia
ria do vensamento. torna-se. além dê- temeroso. ansioso. inauietc
cupado ao limite com o futuro. Ao mesmo tempo, sente culpa, às vezes
irracional, pelo passado, só pensa em desgracas, tem medo extremo de
O SITIO DA MENTE

Defende com unhas e dentes a morte

semanas e alguns comprimidos, volta a ter idéias e sentimentos nor-


Os medicamentos alteram as quantidades de transmiSSao no ní-
vel das sinapses; o resultado dessa ação é o que emerge na consciência.
Portanto, se no piano cerebral o que ocorre são acréscimos quantitati-
vos de energia, como no caso da água fervendo, no piano da consciên-
cia o oue atarece são avenas as situacoes1obais: acua gelo. aualiam-

Chama a atenção a capacidade humana de estabelecer cenários


hipotéticos e de julgar seus desdobramentos, testando mentalmente
cada hipótese. Trata-se de um avanço evolutivo que propicia o apren-
dizado e a criatividade, aparentemente prescindindo do célebre proces-
so de tentativa e erro.
O fato de nossa mente testar todas as hipóteses permite explicar
alguns fenômenos. Cada idéia que aporta no cérebro normalmente sus-
cita uma sincronização com todas os significados ligados a ela,
significados objetivos ou vivenciados (cadeira remete a sentar e também
remete à cadeira de balanço da avó). Um indivíduo que faz um seguro
de vida para si e para a esposa, voltando para casa, é invadido por uma
idéia do tipo: "Se ela morresse ou se eu a matasse, ganharia tanto". No
dia seguinte, me procura preocupado, perguntando se no fundo gosta-
ria de eliminar a esposa. O que acontece é que, ao entrar no cérebro, o
conceito "seguro" suscita uma associação exaustiva com todos os seus
significados correlatos, por meio de sincronizações que costumam se
dar abaixo da percepção consciente. O que brota na consciência é a
melhor hipótese, a mais aceita ou a mais trivial. Porém, pode surgir na
consciência algo que adquiriu estado de transição de fase - como a
água líquida que vira vapor. Ao contrário de significar desejo reprimi-
do, representa apenas uma hipótese levantada e possivelmente não
aceita. Isso tem implicações claras.
Talvez não passe de engano supor que sejamos racionais e que
dispensemos o processo de tentativa e erro. Somos, na verdade, má-
quinas que computam todas as hipóteses abaixo da consciência. Não
precisamos testá-las concretamente porque o sistema descarta grande
parte delas. Algumas, por peculiaridades de energia, brotam na
consciência, sem que haja nada que sugira serem melhores ou piores
do que outras. Apenas podem estar num degrau energético semelhan-
te a uma intuição ou à água fervendo. Tomar essas idéias como pistas ou
desejos escondidos pode ser fatal. No caso do ansioso, as constantes
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS -

intuições de acidentes não surgem porque ele realmente preveja "alguma


coisa" que está para acontecer, mas porque as hipóteses concernentes a
acidentes estão permanentemente a 99 graus (como no caso da água)
na sua consciência, prontas para evaporar. No caso do cauteloso indiví-
duo que faz um seguro de vida, a hipótese instantânea da morte da
mulher não expressa desejo oculto, mas sobretudo cautela e energia
depositadas na hipótese de morte (por que faria seguro se não estivesse
de alguma forma valorizando a hipótese em questão?). 7
Percebe-se por aí o absurdo de imputar culpa a alguém pelo sim-
pies fato de pensar algo. A idéia de que pecamos em atos e em pensa-
mentos é absolutamente não-científica. Se não pecarmos em pensamen-
to, jamais seremos virtuosos em comportamento. Grande parte dos
pecados fica abaixo do limiar da consciência e, por isso, não preocupa o
seguidor fiel do texto bíblico. Porém, pode-se inculcar culpa nos outros
pelo desconhecimento de como o sistema nervoso processa hipóteses.
O pecado é um conjunto de hipóteses que devem ser descartadas
por entrarem em conflito com normas morais e costumes. Não há, con-
tudo, por que condenar uma pessoa que aja bem e que diga que, de vez
em quando, vê um pecado insinuar-se em sua mente. A moral repressi-
va deveria saber, como o sabe qualquer adulto de 1nso,Tv
excesso cie atencao a um conceito somente aumenta sua energia, ievan.

Pense numa discussão ou numa exposição. Elege-se um objetivo


sem se atentar para palavras especificas, construções gramaticais e um
sem-número de andaimes da razão. O pensamento está distante das
minúcias que estamos enumerando, situando-se, em grande parte, abai-
xo da consciência. Segundo alguns, razões repressivas estariam por trás
da parcela do pensamento vedada à consciência; segundo outros, ra-
zões de economia energética. Embora constituam pianos distintos, ambas
as proposições não se excluem. Há, sim, pensamento reprimido, por-
que em confronto com normas aceitas de conduta; há também porções
de pensamento não-consciente, porque não interessa gastar cabines de
memória de trabalho com rotinas bem adestradas.
O conteúdo e o objetivo de uma ação poderiam ser medidos por
seu grau de associação a uma transição de fase. Tudo o que representa
apenas transferência quantitativa de calor tende a ficar de fora da
consciência, pois não interessa gastar memória. Veremos a seguir por
que essa hipótese é compatível com a necessidade de soluções para
além do indivíduo.
Se o pensamento é instrumento de decisão e inferência e se a
O SITIO DA MENTE

consciência se preocupa apenas com a transição de fase, o que fazer


quando há uma cascata dessas transições? Explico: a teoria de bifurca-
ções e caos mostra que uma transição de fase pode equivaler a uma
bifurcação. Assim, cada vez que ocorresse uma transição, emergiria
um sinal na consciência. Mas há sistemas com lexos ue podem erar
cascatas de bifurcações. trê uma vêm duas, de duas vêm quatro e
assim até o caos. es e caso, o Ponto evist& mâmico, a consciência
oiver a om1rc49
não por vias paranormais, mas

e desta à
a

Tanto no caso das regras como no das sincronizações, a consciên-


ciá aparece, pois, como mecanismo que supera a parada ou as sucessi-
vas bifurcações.R ndo o modo co mo
devemos fornecer máximo de ligações relevantes para que o sistema,

cfiticã que esbcem sol u ões. Quando estas não surgem, passa-se, atra-
s e transição de fase, para a consciência individual. O mesmo
veuma
se dá da individual para a coletiva, elegendo a cultura como local de
convergência de soluções ambíguas.
A respeito das premonições, da telepatia e de outros poderes
paranormais, cabe salientar alguns aspectos. Em primeiro lugar, qual
seria o interesse biológico em engendrar um ser que conhecesse o
futuro? Ele poderia prever uma série de coisas, mas, pressentindo
também sua morte e a de entes queridos, ou estatelaria deprimido
ou tentaria mudar o futuro. Ora, um futuro que pode ser mudado já
não é, mais futuro e sim mera hipótese. Em segundo lugar, ainda
que existam "mistérios" que não saibamos explicar, não há, até o
momento, qualquer evidência científica que confirme os fenômenos
paranormais, nem que os explique. E óbvio que não devemos fechar
os olhos diante de realidades desconhecidas, mas precisamos tomar
cuidado com o potencial danoso que nasce, por exemplo, da
convivência de uma teoria de última geração sobre a Aids com um
terreiro de macumba. Embora haja valor cultural nos cultos, o modo
incipiente e mágico com que tratam a mente aproxima-os de uma
idade arcaica.
A nova mente, apesar de eclética, não deve pensar qualquer coisa,
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

de qualquer maneira. Se pensar de modo sistemático, descobrirá que


há erros graves em determinadas proposições não-científicas. Isso não
faz da ciência a única fonte de verdade, mas delimita os domínios do
discurso a: aquele que diz respeito a opiniões, que deve ser plural e
livre; aquele que diz respeito ao conhecimento especifico, que deve ser
discutido com a linguagem adequada e com o ferramental técnico
necessário nos fóruns especializados; e, finalmente, aquele que diz res-
peito a questões de fé, que também deve ser livre.
O indivíduo de posse da razão tenderá a identificar claramente as
três categorias, entendendo que, se há liberdade de ação mental na
primeira e na última, na segunda há uma regra de conhecimento a ser
seguida, não cabendo discutir conhecimento com quem não está de
posse dos instrumentos para entendê-lo. A vontade e a liberdade nesses
casos fica bastante reduzida, não se admitindo que por um ato de
vontade alguém construa um prédio sem seguir normas técnicas ou
que se recuse, por motivos religiosos, a receber uma transfusão de
sangue. A ciência de hoje absolutamente não aceita ou prefere não
discutir fenômenos que impliquem ação a distância como telepatia,
telecinese, paranormalidade, etc. Na maioria das vezes, os indivíduos
aue se dizem envolvidos com fatos varanormais são crédulos, engana-

Logo depois de me formar psiquiatra, tratei de uma senhora que


sofria de um distúrbio impulsivo de fundo depressivo. Boa pessoa,
explodia e chegava a se atracar com os familiares. Durante uma dessas
brigas, que vinham se arrastando por três décadas, me chamaram. Me-
diquei-a com antidepressivos e um inibidor de impulsos (que atua na
dopamina, como falso neurotransmissor). Em questão de semanas, fi-
cou absolutamente controlada. O marido, inconformado, procurou o
líder espírita que vinha cuidando dela há anos: "E então, como é que o
senhor me explica isso? Minha mulher está boa e foi um médico que a
curou, não seus tratamentos." O líder espírita, já idoso, respondeu sem
se abalar: "Pois é, as coisas estavam complicadas e pedimos aos espíri-
tos que mandassem um médico. E eles mandaram um dos bons." O
homem se viu perplexo, mas assentiu, dando-se por satisfeito. Já de
saída, arriscou ainda uma última pergunta, em tom de dúvida: "Mas é
um médico tão mocinho!" "Não se preocupe, já é psiquiatra há três
encarnações", disse o líder.
Em princípio, a grande violação em termos de pensamento é a
chamada percepção delirante. Nela, há a reunião de duas sentenças
bem construídas, mas que não têm nexo de implicação, como, por exem-
o 51110 DA MENTE

pio: "Vi um gato e percebi que eu ia morrer." O que há de tão errado


aqui? Simplesmente, uma conexão de significado e uma implicação que
não existem. O pensamento é sobretudo global, direcionado pelo obje-
tivo e pela coerência de propósito. E principalmente o discurso. Aquém
do discurso, o que há é uma estrutura que prescinde da consciência.
Pensar sem consciência é executar alguma rotina cerebral. A transição
de fase, a cascata de bifurcações, a evaporação da idéia ou da sensação
no palco da consciência são os grandes fatos da mente e de sua relação
como cérebro. 0 discurso dacoi ciência, misto de vensamentoroiij-
de e emo ão, é o erne do mental.
Um paciente com alteração crônica do pensamento me dizia: "Es-
tou estressado, com as idéias oxidadas. E a camada de ozônio, oxida o
pensamento. As órbitas cerebrais não fazem uma revolução completa,
de 360 graus. Param antes. Há um desvio na órbita, a cabeça cai para
um lado, a tontura é o descolamento e o fruir de transcendências."
O que nos garante, neste caso, a patologia e não uma metáfora
proposital? O contexto e o discurso como um todo, aí também conside-
rados os atos corporais, os gestos, o rosto, etc. A anomalia é, então,
uma propriedade desse todo. Um pensamento resgatado na sua condi-
ção de objeto de influência das emoções e submerso num discurso am-
plo poderá engendrar a cognição plena, não porque inteligente ou racio-
nal, mas porque consciente e mental.

SÍNTESE

O pensamento, particularmente o inteligente, é o principal foco


da modelagem mental. Porém, se apresenta nítida nobreza em relação
às outras funções, constitui também o processo mais aceito como reali-
zável por uma máquina. "Penr, até admito

Há uma série de anomalias do pensamento, aí incluídas a crítica e


o juízo, genericamente chamadas de psicoses. Podem ser primárias,
quando é o pensamento a função afetada, ou secundárias, isto é,
decorrentes de um sem-número de outros distúrbios primários mentais
e também intra (tumores, por exemplo) ou extracerebrais (infecções,
por exemplo).
O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

Mo _e ciepririaosentam essa
teadê ncia.
Também o fato de se inculcar culpa em alguém que pensa coisas
más é estranho ao funcionamento cerebral. Ninguém é culpado de pen-
sar, porque o cérebro examina todas as hipóteses interligadas a um
conceito. Por vezes, parte desse processo, sob a forma de idéia, ou todo
ele, sob a forma de pensamento completo, emergem na consciência, o
que não significa, necessariamente, motivação oculta ou desejo reprimido.
Para uma operação de cálculo matemático não parece haver de-
pendência extrema entre fatores emocionais e volitivos. Nessa situação,
o departamento virtual pensamento (cognitivo) recruta quase que so-
mente funcionários de departamentos concretos mais especializados
em pensar. Porém, na decisão complexa e na elaboração de cenários,
sejam otimistas ou pessimistas, ocorre forte entrecruzamento de
pensamento, emoção e vontade. Embora se possa exagerar no papel da
emoção na modulação do pensamento, e é o que fazem certas idéias
vendidas hoje em dia, vários casos psiquiátricos demonstram que, o
concurso da emoção, do humor, do afeto e de outros subprodutos aqui
chamados genericamente de emoção, influenciam e direcionam o
pensamento, sobretudo naquilo que tem de discurso e não de módulos
de verdade justapostos.
coerente e válido do aue uma soma simtles de sentencas verdadeiras
ou
0 SITIO DA MENTE
E SEUS DISTÚRBIOS

Capítulo 15

A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

U M dos itens esquecidos por alguns modelos de mente é a


emoção, tópico complexo porque compreende eventualmente uma série
de departamentos cerebrais.
entendê-lcomo humor - deprimido, eufórico, irritável, etc. -, como

Por não se confudir


como pensamento e a vontade, os dois outros grandes eixos de partição
do mental, a emoção pode ser qualificada também como humor, afeto e
sensação.

o pensamento, a
Confundir a mente com o pensamento é roubar dela o exame da
consciência e também as condições circundantes emocionais e volitivas.
A emoção cobre ou adultera as idéias, obnubila ou exalta a von-
tade, fixa ou dispersa a atenção, faz sonhar - às vezes, ter pesadelos - e
interpenetra a personalidade e o temperamento. Ambivalentemente,
está próxima dos outros animais, porque ligada a departamentos mais
primitivos do cérebro humano, e distante deles, porque modela a ra-
zão. A ética, motivo central da última parte deste livro, certamente é a
racionalidade informada pela emoção.
fraterno não são apenas operações de raciocínio; são traços

castas e
Suponha que as idéias e os pensamentos sejam um ator e uma
atriz que representam uma peça no palco da consciência. Ambos têm
um papel no contexto e certas falas. Pode-se vesti-los de preto ou de
branco, optar-se por deixá-los nus ou pintá-los de dourado. Entenda-
se: se as idéias e os pensamentos são personagens e falas (scripz), a
emoção seria as vestes de cada um dos personagens.
Um indivíduo no palco da consciência diz: "Tenho fome". Vestido
de preto, confere à frase um colorido sombrio. Vestido de branco, em-
O SITIO DA MENTE

presta-lhe um sentido espiritual de querer pão para o espírito. Vestido


com farrapos, dá a impressão de fome e miséria. Vestido de smoking,
sugere ironia. Nu, pode expressar despojamento minimalista ou desejo
carnal.
A emoção pode alterar as idéias, vestindo-as com um elemento
novo que pode ou não mudar-lheso sentido. "Tenho fome" não deixa
de ter significado enquanto idéia ou pensamento, mas ganha uma nova
conotação de acordo com a roupa que se lhe coloca. Claro que a lingua-
gem é uma tentativa de fazer com que as emoções também sejam fatos
mentais descritíveis através de pensamentos verbais. Alguém pode de-
clarar: "Ironicamente, tenho fome e não posso comer, tenho sede e não
bebi da fonte da juventude, isso tudo me angustia." A sentença mistura
emoções e idéias, todas, no entanto, retratadas sob a forma de um pen-
samento em que as palavras procuram retratar estados emocionais.
Não se tem acesso ao palco da consciência do outro, mas apenas
às expressões que externa através da linguagem e do corpo. A tristeza
se reflete no rosto e na postura. Olhos mortos, pálpebras baixas, dorso
curvado, fala mansa e titubeante são sinais corporais e comportamentais
da emoção no palco da consciência. Podem, contudo, ser apenas repre-
sentação. O mentiroso e o dissimulador atuam como se estivessem tris-
tes. O ator perfeito, de posse das ferramentas adequadas, traduz em
palavras e gestos um estado interno não verdadeiro. Chora e balbucia,
tremula a voz e exclama: "Não me deixem só!" O político, um dos
grandes artífices da mobilização coletiva através da emoção, usa esse
instrumento para provocar o engano e incitar a adesão. Travestida de
emoção teatral, a palavra comunica, às vezes enfatizando, às vezes ilu-
dindo. Talvez seja essa uma das propriedades ambíguas da mente: a
capacidade de ludibriar não só com palavras, mas também com
colorações afetivas. Ênfase ou ilusão? Eis a questão.
Portanto, a emoção é apenas uma roupagem que, por meio de
certos truques, pode se tornar linguagem. Pergunte a uma pessoa se
gosta ou não de morangos. A resposta é fácil, pois remete a uma
experiência direta de prazer e gosto. Pergunte-lhe se gosta de castigos
físicos. Dificilmente dirá que sim. Em princípio temos aqui os dois ele-
mentos básicos constitutivos do alfabeto emocional: prazer e desprazer,
utilizados para condicionar animais, humanos inclusive.
No bebê já existe um aparato biológico pronto para gravar as men-
sagens de prazer e desprazer, de preferência, sem nenhuma consciên-
cia. Há experiências sérias mostrando que, numa escola, se se conjeça a
elognas sempre que estão vestindo roupa verrne ae o elogio
E SEUS DISTÚRBIOS

mas por outro motivo qualquer), com o tempo, quase


jassamau rniips vermelhas mais freqüentemente. Em outra
experiência, toda vez que um professor anda para o lado direito da
classe obtém dos alunos aprovação (gargalhadas e murmúrios) para
seus ensinamentos. Com o tempo, cresce muito a tendência do profes-
sor, ao explicar algo complicado, de andar para a direita. Num experi-
mento mais complexo, colocam-se eletrodos em alguns músculos da
mão, de maneira que sempre que o indivíduo mova determinado mús-
culo toque-se uma seqüência menos estridente de sons (quando move
os outros músculos a seqüência é diferente, porém sempre estridente).
Com o tempo, aquele músculo começa a se contrair muito mais vezes
espontaneamente, adequando-se à seqüência prazerosa (o mesmo acon-
tecendo para comportamentos que evitam seqüências desagradáveis).
O controle voluntário ou consciente não existe nesses casos. Se o
indivíduo estiver ciente do experimento e dos truques, simplesmente
não desenvolverá aquele padrão de comportamento. Portanto, a emoção,
entendida como alfabeto básico de prazer e desprazer, é elemento
fundamental na nossa relação com o mundo. Ao contrário do pensa-
mento e da linguagem, está presente em praticamente toda a escala
animal.
As partes cerebrais que processam emoções são mais primitivas
e já se desenvolveram em animais inferiores ao ser humano. Um cão
tem estados mentais do tipo prazer e desprazer. Porém, não sente an-
gústia, nem apreensão, nem desejo carnal, nem desprezo, nem êxtase,
nem agonia, nem ansiedade. Estes, entre outros, são afetos exclusiva-
mente humanos, e não sabemos se reais ou se reconstruções linguísti-
cas induzidas pelo aprendizado.
Volte ao exemplo da peça de teatro no palco da consciência. Supo-
nha que primitivamente haja uma peça com poucos personagens e falas
relativamente simples. Esse seria o ambiente natural a que é exposto
um animal qualquer. Há o bom e o mau, o que protege e o que ataca,
ou seja, o que dá prazer e o que dá desprazer. A roupagem emocional
será, portanto, digital. Com a progressiva complexidade das peças,
emoções ambíguas entram em jogo. Qqie dá prazer tamUm causa
temor e o que causa temor também oferece recompensas. As emoçõ
no ser humano dão colorido analógico, seitois qup se Psgotam no
iqueísmçdita1 dojrazer ounã
Um indivíduo que deseja e teme um encontro vivencia uma mis-
tura de prazer e desprazer não mais descritível de acordo com uma
lógica simples de adesão e aversão. Por vezes, deseja-se o que é arris-
O SITIO DA MENTE

cado e abre-se mão do que dá satisfação. A cultura humana insere uma


série de cenários novos que admitem nuanças tais que os sentimentos e
as emoções ultrapassam os graus simples e primitivos. Pergunte a al-
guém se sente prazer em seguir estritamente as normas morais. A re-
núncia pode ser desprazer imediato com o fito de conquista futura. Re-
definir a emoção, originalmente desejo e aversão, prazer e desprazer, é
tornar o digital analógico. p frio na barriga de excitaçãoemedo éuma

A redefinição analógica da emoção não é intuitiva, nem automáti-


ca. Uma criança não sabe descrever suas emoções em termos de tipos e
tonalidades. Sabe no máximo dizer se gosta ou não. Com o tempo, pela
interação com outros seres, vai sofisticando seu aparato de definição.
Quando um adolescente declara estar "de bode" expressa um estado
complexo. Um pessoa mais versada na linguagem culta pode dizer que
há uma hesitação ansiosa, um medo leve misturado com um desejo
tênue. Conseguir enunciar os atributos de uma emoção como a angús-
tia, o vazio, a náusea diante da ausência de sentido das coisas, o caráter
enfadonho e morno de uma relação é fruto do adestramento da capaci-
dade de descrever o antes digital em padrões sutis e intermediários, ou
seja, em padrões analógicos que varrem o espectro entre o bom e o
mau. Essas emoções complexas são semitons agregados a idéias. Não
são mais roupa preta ou branca nos personagens do palco da consciên-
cia. São idéias vestidas de preto e branco, saia curta, cinto verde-limão
e brinco na orelha.
O único alfabeto legitimamente digital éo do prazer e desprazer.
Isto é, há apenas departamentos concretos que respondem à indaga-
ção: prazer, sim ou não? De maneira similar, o bom e o mau também
são digitais. Porém, na medida em que se relativizam os tipos emocio-
nais - que deixam de ser meramente prazer e desprazer, assumindo
cada qual significado próprio—, a mente passa a demandar um aparato
analógico que forme tantos departamentos virtuais quantos conceitos
se tenham para expressar emoções. Esses conceitos devem ser apren di-
dos através de intro ççõesda definição egua1ificaçõejjgüstics,
do treinamento e do contato com outros seres humanos.
Pense numa criança e em sua progressiva capacidade de descre-
ver a ansiedade. Num primeiro momento, se ansiosa, vivenciará ape-
nas uma sensação de desconforto. A medida que os circundantes
passem a indagar-lhe o que sente, estabelecendo uma significação es-
pecifica para aquela sensação e descrevendo os sinais e sintomas que a
acompanham, a criança irá adquirindo capacidade cada vez maior de
A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

expressar que está sentindo ansiedade. A introjeção ou interiorização


do significado é a parte dependente de contexto na formação dos
conteúdos mentais. 1
A mente, seja ela pensamento, emoção ou vontade, requer o re-
crutamento de departamentos concretos (que, inicialmente, seriam dois:
prazer e desprazer) e o reagrupamento destes em departamentos vir-
tuais (ansiedade, angústia, etc.), o que depende de: a) haver candidatos
adequados nos departamentos concretos; b) haver submersão num con-
texto rico e complexo; c) haver interação com outros seres já dotados de
mente; d) haver manipulação lingüística que auxilie na forma de recruta-
mento.
Vejamos um exemplo disso no tocante às emoções. Imagine que
seja preciso estabelecer a diferença entre ansiedade e angústia. Há quem
argumente não se tratar de discriminação legítima (o tema é intrigante,
pois há línguas que não fazem certas distinções), até porque uma série
de sinais correlatos aparecem na definição de ambas, tais como aperto
no tórax ou na boca do estômago, palpitação cardíaca, nó na garganta,
frio na barriga, etc. Porém, de modo geral, distingue-se uma da outra
pelo objeto que as provocam. Assim, o ansioso seria aquele que sente
apreensão ou desconforto em relação a determinado fato que está por
acontecer, uma pendência. Também o angustiado manifesta apreensão
ou desconforto, só que independentemente de qualquer situação ou
contexto pendente. 2
Em última análise, o que realmente legitima a diferenciação en-
tre angústia e ansiedade? E certo que ambas nascem de um mesmo
departamento concreto, vinculado a sensações desagradáveis. No en-
tanto, a comissão virtual que se reúne no caso de uma seria algo dife-
rente da que se reúne no caso de outra.
Ao tratarmos especificamente das emoções, podemos cogitar
quanto o aparato lingüístico adultera ou modela nossa percepção de-
las. A descrição de uma emoção orgânica e sintética diante de um qua-
dro abstrato não significa senão uma trucagem lingüística. O mesmo
vale para a angústia, a ansiedade e o medo?
Sabemos que a criança manipula pobremente os conceitos
emocionais. Será que sente angústia mas não é ainda capaz de qualificá-
la? Ou será que a incapacidade de qualificar altera a qualidade do próprio
sentir? No primeiro caso, a emoção é primitiva em todos os seus semi-
tons. No segundo, a biologia fornece um léxico digital - prazer e des-
prazer - sobre o qual a linguagem opera, qualificando e nomeando
estados intermediários. 0 virtual e o analógico, base do mental, consti-
O SITIO DA MENTE

tuem um refinamento do que o digital antes delimitava. O cérebro já


está preparado para dizer sim e não diante do prazer; a mente distin-
gue variada gama de estados intermediários, às vezes à custa de
inflacionar o sistema com graus variados de bom e mau. Por isso, a
consciência opera na faixa do que é ambíguo e analógico. Abaixo dela,
por economia, basta a qualificação preordenada e digital.
Quando experimenta um desprazer do tipo desproteção, carên-
cia, fome, a criança sente, na verdade, graus variados de desprazer.
Somente com a emergência da consciência e da qualificação lingüística
dos estados é que começa a discriminar conceitos. Aí, sim, terá a
sensação de que o desconforto é carência, perda de auto-estima, orgulho
ferido, humilhação, etc.
Sejam todas as sensações primárias, sejam apenas o prazer e o
desprazer entidades básicas redefinidas e reordenadas em departamen-
tos virtuais pela experiência, pela interação e pela linguagem, a verda-
de é que as emoções constituem uma roupagem fundamental que qua-
lifica e modula nossa vida mental.
linguagem
aprendizado
interação/imitação

prazer 1 1 desprazer

depto. \ depto.
virtual virtual
(
ansiedade) \ angústia

prazer 1 1 desprazer 1 1 prazer

concreto departamento concreto departamento concreto

Fig.47 - Diversos departamentos concretos e modulares de processamento de


prazer e desprazer, aptos a fornecer quadros para a formação posterior de
comissões virtuais, lingüisticamente convocadas, de emoções como ansiedade e
angústia.

O quadro da Figura 47 conta-nos apenas que os departamentos


virtual- mentais são reordenações de departamentos concreto-digitais. Se
antes o sistema era capaz de classificar emoções em prazerosas e desagra-
dáveis, com o aprendizado da linguagem, com o treinamento e com a
imitação, consegue agora formar pequenas comissões virtuais, analógicas,
aptas a distinguir ansiedade de angústia. Num certo sentido, isto é cere-
bral e não é, do mesmo modo que a mente como um todo é cérebro e não
A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

é porque é código. Ou seja, nasce no cérebro, mas pode ser abstraída e


reimplantada em outro meio físico qualquer, desde que se preserve o
código.
Na figura anterior, colocamos tipos de prazeres e de desprazeres
porque certamente já existe alfabeto prévio que distingue uns de outros
ou que os toma mais suscetíveis de condicionamento. Talvez o alfabeto
inicial seja constituído apenas de dois departamentos concretos: prazer e
desprazer. Mas, ao longo dos primeiros meses de vida, através de alguns
reforços positivos e negativos, esses elementos básicos vão assumindo
formas já levemente modificadas. Daí a separação em mais de dois depar-
tamentos concretos.

LINGUAGEM E ESTABILIZAÇÃO DE SIGNIFICADOS

A garantia de que a sua angústia e a minha sejam as mesmas é


fundamental. Embora não se tenha certeza de que, num dado instante,
a sua comissão cerebral corresponda exatamente à minha, pode-se as-
segurar, via mecanismos de aprendizado e de recrutamento de partici-
pantes, que a classe das suas angústias é análoga à das minhas. A ga-
rantia vem da estabilidade de definição da linguagem e do modo de
treinamento sociolingüístico do conceito nos indivíduos (Fig. 48).
concepção discretp-digital dos conceto: uma
Caixa especftica para cada entidade

ansiedade angústia

concepção anaIógico-sirjçrnica dos


conce,tos:7á /rúItipIOS
representantes dIter?ns que
teneiem a ser categopzados num
mesmo (ladrão

ansiedade angústia

região de
mínima energia,
garantida pelo
lingüístico

Fig.48 - Duas concepções para os conceitos. A digital é estrita e depende de


definição precisa. A analógica, é dinâmica e depende de treinamento. Nela costuma
haver um representante mais legítimo, protótipo, e os outros tendem a convergir
para ele num cenário de minimização de energia.
O SITIO DA MENTE

Curiosamente, a noção discreto-digital é que reclama conceitos


claros e precisos. Há nela uma certa dificuldade de aceitar a idéia de
versões degradadas de conceitos, como, por exemplo, a angústia de
Paulo e a angústia de João. No caso analógico, a sincronização e a dinâ-
mica de formação dos conceitos garantem que cada um deles seja uma
bacia de atração, e não um departamento digital em que se deve ter
definição estrita e precisa. Portanto, seja a sua angústia uma forma
menos típica, seja a minha uma forma mais típica, ambas escorregarão
para o fundo do atrator.
A superação do fosso entre os protagonistas sociais pode ser fei-
ta pela garantia de: a) equivalência estrita entre as comissões virtuais
cerebrais (como se pudéssemos dizer que o estado elétrico de seu
cérebro quando pensa em um gato é idêntico ao meu estado cerebral
quando penso no mesmo gato); b) definição precisa de conceitos, isto é,
através de condições necessárias e suficientes - e regras claras; c)
equivalência de dinâmica de aprendizado através da estabilização
dinâmica de conceitos ao longo da história da espécie humana e do
indivíduo. A mente analógica deste livro se utiliza da terceira garantia.
Percebe-se pelo quadro da Figura 48 que a concepção discreto-
digital exigiria que toda angústia fosse perfeitamente definida, de modo
que coubesse num departamento concreto. Mas a mente se forma como
departamento virtual, dinâmico, relacionado com a história do concei-
to, de sua experiência e do meio em que ocorreu o treinamento do seu
uso. Portanto, ainda que num determinado instante dois indivíduos
descrevam duas angústias não exatamente idênticas, a utilização do
termo e sua inserção na bacia dinâmica daquele conceito estabelecerão
a equivalência entre ambas. Isso é fundamental, porque de certa forma
aparelha a linguagem com um mecanismo para superar o subjetivismo
e designar estados internos que são os departamentos abstratos.
A queixa de muitos pacientes de que os psiquiatras fazem diag-
nósticos com base na conversa, solicitando poucos exames neurológi-
cos, revela os seguintes equívocos: a) as pessoas encaram o cérebro
apenas como departamento concreto, ou seja, como a parte que é capaz
de ser captada em exames neurológicos (quase todos os departamentos
concretos podem ser captados nesses exames, embora no nível de
mebrana e de fluxo de íons através de canais haja igualmente
departamentos muito mais difíceis de captar através de exames
rotineiros); b) ignoram que a linguagem, entendida como ferramenta
que forja as categorias mentais e os departamentos abstratos e virtuais,
apesar de imperfeita, garante uma certa estabilidade para os conceitos,
A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

o que é imprescindível para que possa ser usada como instrumento de


precisão diagnóstica.
Embora inicialmente desaparelhada para descrever emoções, com
o passar do tempo e com a experiência, a linguagem passa a definir e
formar conceitos de emoções. A partir daí, torna-se capaz de retraçar a
objetividade que diagnostica o mau funcionamento dos departamentos
virtuais.
Peça a um indivíduo que relate uma experiência de física num
laboratório. Ele não saberá nem por onde começar. Depois de aprender
as teorias e de se acostumar com o jargão da área, passará a saber como
fazê-lo. O meç dá com a linguagem quando instada a descmver
pensamentos e emoções. Se não houver treino, aprencli7.ado e intrção,

serão mais pobres porque aparentados da forma digital nriniitiva. nãc

LESÃO E DISFUNÇÃO

Se o leitor entendeu os mecanismos de formação de conceitos - e


os conceitos emocionais prestam-se a isso melhor que quaisquer outros
-, está apto a entender os dois tipos de patologia básica do cérebro.
lesões cerebrais podem atingir tanto os departamentos concrtç!
como os virtuais)juvja de um caso a outro são os pos de Iesõea.e
os mecanismos que as produzem. Voltemos à nossa empresa. Imagine
que se joga uma bomba no 10 andar. Que departamento sofrerá com isso?
Aquelue está no l' andar. Há, porém, alguns tópicos a considerar:
ay)a bomba jogada no 1 0 andar pode ser de vários tipos. No cé-
rebr , poderia ser um tumor, um derrame, um cisto, uma infecção,
uma intoxicação ou uma falha nos receptores e neurotransmissores. No
nosso exemplo, isso se traduziria como uma avaria nas divisórias e
paredes do departamento concreto
9 supondo que a bomba tenha explodido num departamento,
devemos investigar quantos funcionários ali presentes foram mortos
ou se tornaram incapacitados. E possível que a explosão tenha des-
truído ou danificado apenas as paredes e divisórias, deixando quase
todos uncionários intactos;
c) preciso verificar quanto uma bomba pode interferir num departa-
mento v]rtual. Isso porque a explosão no l' andar pode ter atingido, por acaso,
uma comissão virtual ali reunida naquele instante ou uma sala em que costuma
se reunir um comitê virtual (há equipamentos específicos para as reuniões);
O SITIO DA MENTE

d bomba pode ter explodido ju'stamente num departamento


cujação fosse guardar os códigos de formação de departamentos
virtuais (códigos de recrutamento, de substituição, etc.).
Essas considerações são fundamentais na medida em que mos-
tram todos os tipos de anomalia que podem ocorrer nos cérebros. Se o
departamento de compras for danificado, nem por isso a empresa dei-
xará de comprar. Mas, se a bomba lesar todos os funcionários do de-
partamento, talvez a empresa tenha dificuldade de treinar uma nova
equipe para aquela função. Seum_departamento virtual for atingido,
à aiit-enõr. deverá ser recrutada. Se o
local de reunião esse departamento virtual é que for demolido 1 yr•
se-á construir um outro, parecido com o orginaL E, sea explosão afeta
um local onde se auardavam códigos de recrutamento. será t)recisc
recomeçar cio zero cante de proolemas
As situações acima dão bem conta do que se passa nos desarran-
jos cerebrais. Os distúrbios específicos são aqueles em que o departa-
e nto de compras (ou qualquer outro departamento concreto ou virtu-
allé lesado; os não-específicos, aqueles em que não apenas o departa-
ento de compras é lesado, mas também a capacidade de executar a
operação de compra. Isso vale tanto para a empresa cérebro como para
a empresa máquina que produza mente. A primeira é feita de certo
tipo de divisória e seus tijolos são células. A segunda é feita de outros
tipos e seus tijolos são chips. Uma bomba que explode dpartamerifo

Primordial para se entender a inter-relação de pensamentos,


emoções e outras funções mentais, a distinção entre lesões é tarefa que
depende da definição de onde elas ocorrem. As lesões físicas atingj
mpre algum departamnfn (rnnrrtQ Q" virtua]).daempresafcérei2to

pbnente virtuais. 1'çÇaSJr (p1.rQ yfrfii1 fÇI41 Q IT1+Ij


jçi) apresentam possibilidades diferentes decorreção.
Se um departamento concreto for afetado, deveremos investigar
se somente as divisórias ou também os funcionários saíram lesados.
No primeiro caso, será preciso descobrir se não se tratava de uma sala
usada para reuniões de algum departamento virtual que se servia dos
equipamentos ali existentes. As vezes, o que importa é a disposição
física da sala (imagine que aquele fosse o único departamento concreto
cuja disposição física permitisse reuniões do tipo arena ou conferência).
Se a lesão tiver uma certa magnitude, ficarão prejudicadas tanto as
A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

atividades digitais do departamento como algumas comissões virtuais


que se reuniam ali ou que utilizavam seus funcionários.
No entanto, a lesão poderá ocorrer no departamento virtual. Será
parcial, quando atingir uma comissão em reunião, ou total, quando
atingir um mecanismo de seleção de participantes para aquela comis-
são. A lesão virtual completa é aquela em que determinada comissão
esgota sua capacidade de resolver certos problemas, sendo então con-
siderada uma má comissão ou uma má estratégia.
Observe que é no último caso que a lesão se dá no nível virtual
absoluto, não atingindo nenhum departamento ou empresa, mas sim o
produto mente que está naquele instante disfuncional tanto em cérebros
como em máquinas. Grande parte da confusão das pessoas acerca da
natureza imaterial da mente ou da gênese "emocional" dos distúrbios
mentais e intelectuais advém da insuficiente compreensão desses níveis.-'

[o PENSAMENTO PODERIA SER UM MEIO DE


(REDESCRE VER AS EMOÇÕES E A VONTADE?

As emoções são parte integrante do cérebro humano. Constituem


departamento concreto que, de determinada maneira, nos habilita à
interação com o meio. Não basta somente uma idéia, um personagem,
j3Qpalco cc)Iiência. E preciso também saber com que roupas essa

Se as emoções, em princípio, podem ser retraduzidas em senten-


ças lingüísticas, há um modo de torná-las pseudopensamentos: "Tenho
uma apreensão que me inibe a vontade de ser." Esta sentença expressa
uma emoção, e a expressa sob a forma de um pensamento. Logojão é

ões retraduzidas em senten


bJQsãjjnipulacão Difícil será garantir que as emoções
retraduzidas pela linguagem tenham condições de substituir as emo-
ções humanas, internas e acessíveis apenas ao sujeito que as sente.
Numa concepção de linguagem precisa em que o significado é
dado por definições estritas, não há como assegurar que as sentenças
expressem objetivamente as emoções, pelo simples fato de que não
temos tais definições precisas para elas. Contudo, numa concepção em
que o significado é o conjunto de situações treinadas por um partici-
pante da linguagem que aprendeu quando usar um termo, há um crité-
rio dinâmico de formação de bacias de atração._A garantia de que
utiliza um termo advém do tr nepto das
O SÍTIO DA MENTE

múlti las aparições daquele termo em situações concretas, devidamen-


te corrigidas pela comunidade de usuários daiinguagem. As máquinas
seriam, então, capazes de manipular pseudopensamentos (ou emoções
traduzidas em sentenças), se aparelhadas com um significado dinâmico
das expressões, advindo da submersão na comunidade social e
lingüística. Não importa aqui que tenham emoções genuínas ou apenas
meios de expressá-las adequadamente sob a forma de sentenças. De
certa forma, é isso o que acontece com o ser humano e há quem suponha
que o único meio de reproduzir mente em máquinas é fazê-las interagir
desde a "infância" com um ambiente real. Constroem-se, para isso,
robôs que passam pelas mais variadas fases da adaptação ao meio.
Não é só treinar a navegação do robô no espaço— item difícil de modelar
-, mas também treinar sua navegação na esfera dos significados mais
obscuros da linguagem e da comunicação que motiva essa aposta
científica.
Fazemos uso de expressões para descrever nossas emoções. Te-
mos, ao lado das sentenças, posturas corporais que auxiliam na signifi-
cação, mas que poderiam perfeitamente ser replicadas se muníssemos
máquinas de caretas, de olhares tristes e de coluna curvada. Essa possi-
bilidade é fundamental porque nos permite, a um só tempo, entender
de que forma criamos empresas-máquinas para produzir mentes (algo
diferente de simples programação lógico-digital) e qual o papel da emo-
ção na gênese e na alteração do pensamento. Podemos, assim, fazer
uma tabela de equivalência para os graus sucessivos de abstração mental.
No afã de se descobrir o que caracterizava o produto mente, lan-
çou-seaidéia de queéra ô pensamento, tentando-se construir réplicas
artificiais capazes manipular símbolos através de regras lógicas (mo-
delos de inteligência ártificial simbólica). Mais Tarde, construíram-se
réplicas que mpulavam símbolos através de regularidades (modelos
de inteligência artificial conexiomsta ou redes neurais artificiais).
Porém, a gênese dos símbolos é tarefa mental coMRlexa. uma vez
que eles não são dados pela linguagem, mas formados a partir da
inter a ção deçpartamentos concretos com a linguagem e o meio cultu-
, Assim, é licito provisoriamente supor que as entidades lingüísti-
cas, como "gatos", "cadeiras" e "angústia", possam ocorrer em senten-
ças que expressam símbolos. A procura inicial seria então pelos meca-
nismos de ligação entre esses símbolos. No entanto, para entender a
disfunção mental em humanos e algumas limitações dos modelos arti-
ficiais de mente existentes hoje em dia, é necessário entender também a
formação dinâmica (via sincronização) de símbolos. E ela que nos
SEUS DISTÚRBIOS

garante, por ora, a legitimidade das sentenças que descrevem emoções


e nos capacita a compreender por que a gênese das disfunções mentais
em seres humanos tem forte componente emocional.
resa cérebro, o papel da vontade e da emoção é funda-
mental para explicar a mente e o pensamento. Nas máquinas, não é
necessário ter exatamente vontade e emoção. O importante é garantir o
modo dinâmico como as sentenças que descrevem a emoção e a vonta-
de se formam. Entender isso é básico porque:
a) nem as máquinas precisam de emoções e vontade para produ-
zir mentes;
b) nem os seres humanos podem compreender a mente sem com-
preender a gênese dinâmica dos conceitos e a interdependnci-dcis
setores cognitivo (pensamento) - rnn+ivn (vontade) e afetiva (ewoçoes
Voltando à nossa empresa, imagine que uma forma qualquer de
lesão (a bomba) altere: a) as paredes de um departamento concreto; b)
o quadro de funcionários daquele departamento; c) o quadro de funcio-
nários de um departamento virtual; d) o modo de convocação desses
funcionários; e) o resultado das deliberações de um certo tipo de
comissão (só que, neste caso, é mais difícil pensar numa bomba).
Suponha, por exemplo, que um fato novo tenha modificado radi-
calmente os hábitos dos consumidores, tomando os antigos modos de
pensar de uma comissão virtual irremediavelmente ultrapassados. A
seqüência acima mostra que há diferentes graus e maneiras de se afetar
departamentos concretos e virtuais.
Em geral, é mais fácil corrigir um r'roblema ocorrido num denar-

num dpmento concreto, onde se requer que se remendem divisórias


(lembre-se de que não há regeneração de neurônios - divisórias
- no cérebro humano). Por isso, a neurologia se ocupa mais
freqüentemente dos departamentos cerebrais concretos, enauanto a
pjatria se concentra nos departamentos virtuais (há quem prefira
chamá-la de neurologia da função superior, ou de neuropsiquiatria).
Isso também explica por que os métodos estáticos (tomografia, resso-
nância nuclear magnética, etc.) avaliam bem os departamentos cerebrais
concretos, enquanto os métodos dinâmicos (PET - tomografia por emis-
são de pósitrons, eletroencefalogramas de vários tipos,
magnetoencefalograma, mapeamento cerebral ou bram mapping, etc.)
captam melhor os departamentos virtuais. Finalmente, explica
cabalmente por que alguns problemas confinam-se na empresa-cérebro
(por peculiaridades do meio físico), outros na empresa-máquina (por outra
O SITIO DA MENTE

sorte de peculiaridades do meio físico) e outros ainda no produto mente


(por problemas básicos aos dois no que tange à codificação). Uma ciência
da mente deve distinguir esses três níveis.
De posse do conhecimento atual, pode-se dizer de maneira esque-
mática que: a) problemas de paredes e divisórias são específicos da
empresa-cérebro; b) problemas de departamentos virtuais são específi-
cos da empresa-cérebro, mas trazem à luz modos de construir e operar
uma empresa-máquina (no que diz respeito ao modo dinâmico de
formação de símbolos, entre eles os símbolos emocionais e os volitivos);
c) problemas do produto mente são comuns a quaisquer instâncias de
mente, seja em cérebros, em máquinas ou em meio de contato entre
agentes mentais (patologias de comunicação e patologias culturais).
Há uma progressiva virtualização nas funções mentais. Assim, se
o pensamento, a emoção e a vontade são departamentos virtuais quase
fixos, comportando anomalias mais ou menos claras, a "tomada de de-
cisão sob risco", função básica da mente, é grau ulterior de virtualização,
recrutando elementos dos três anteriores. Nesse recorte, pensamento,
emoção e vontade quase constituem depa~igmenflô s_concretos em face
da comissão encarr e eada de tomar decisões. Isso explica o processo
contínuo de degraus de concretude e de virtualização que caracteriza
as empresas geradoras do produto mente.
Nascemo s aparelhados com uma pequen&gama de departamen-
tos concretos, bem est ibelecidos para enfrengitalmente situações
conhecidas h ntjlhares de anos. Porém, uma das principais peculiarj-
dades do sistema mental é sua capacidade de criar uma dinâmiç
seleção dentro da empresa que se forma. Rapidamente, alguiis depar-
tamentos virtuais são gerados por pressão ambiental: na esfera do vei

esfera da emoção, pela superação do


na esfera da vontade, pela eliminacã
de comportamento, contrapondo-se à noção de dever, Esses departa-
mentos funcionam agora como derartamentos auase concretos. e novos

A infinidade de modos de pensar, a quantidade inumerável de sen-


tenças bem construídas, a impossibilidade de se formular uma teoria
científica definitiva e final, todos esses aspectos da mente devem-se à
gramática ou às regras (via sincronização) de formação de novos depar-
tamentos virtuaise de concretização de departamentos virtuais já bem-
sucedidos. O que talvez mais chame a atenção nesse processo é que
os elementos (no caso, neurônios e assembléias deles) podem estar
E SEUS DISTÚRBIOS

em diferentes planos, responsabilizando-se em cada nível por uma


função.
O neurônio está sempre disparando potenciais de ação do tipo
tudo ou nada e códigos de barras. Os modos de usar essas duas infor-
mações irão se rearrumando vela pressão, experiência, contexto. avren-
dizado e formuGção de hipóteses acerca do fut ur o. Mais ainda, os ele-
mentos de recompensa, aversão, dor e bem-estar estarão o temvo todo,
aso ao rep.ranumano, exercenuo papei tunciamentai na escorna
de soluções. Assim, o vavel da emocão é arear-se aos juízos. Cada

plano dasldéias e pensamentos; válido ou não-válido (no plano do


argUTnnt(s); certo ou erra 1 tiCflS? g'aavel
ou desagrável (no plano da emoçãoCono todas essas perguntas se
interpenetram, particularmente diante de contextos complexos (é mais
raro que haja essa superposição para saber se 2 + 2 são 4 ou não), é
difícil imaginar que não haja um forte componente emocional no
pensamento e vice-versa.

FORMAÇÃO DINÂMICA DE NÍVEIS DA VIDA MENTAL

A dinâmica de formacão da mente obedece


vir-

ede alteração do estilo de conexão entreis partes através de mudanças


sinápticas e de mensageiros (dentro do neurônio). Se uma comissão é
bem-sucedida numa tarefa, privilegia-se sua resposta digital; se está
em fase de estudo de problemas novos, privilegia-se sua resposta ana-
lógica. Nascemos com tendências mentais sob a forma de um vocabulá-
rio priiiitivo que, no caso das emoções, é prazer ou não. O reordena-
mento aos elementos em comissõese a tormação cimamica de novos

voso, acabam por forjar a mente. Porém, essa mente não é idêntica em
cada um de nós. Tanto menos burilada, sem cair no extremos, menos
capaz de distinguir nuanças. O cérebro oferece uma capacidade imensa
e ociosa de distinguir sutilezas, refinando &acão e a percepção. Cum-
pre-nos buscá-las ativamente.
Para certos fins, um elemento de um departamento concreto po-
de desempenhar outra função num departamento virtual, que, por sua
vez, pode funcionar como "concreto" para um terceiro nível de virtua-
lização. No limite, a idéia de identidade (eu sou um sujeito), embora
O SITIO DA MENTE

departamento concreto (ou se é ou não se é) no que tange à capacidade


de ser uma só pessoa em meio ao fluxo ininterrupto de informações, é
departamento virtual único porque representa a soma de todas as lem-
branças daquele indivíduo em especial. 6
A identidade tem um pé na ciência e outro no caso isolado, na
história. Vai daí que certas peculiaridades da mente são inabordáveis
por uma teoria geral. Ou seja, não há ciência geral do que é vivenciado
por cada indivíduo porque o processo é único. Há somente ciência da
regra dinâmica de formação dos departamentos virtuais, de sua estabi-
lização e de sua candidatura a fornecedor de elementos para um novo
departamento virtual.
Imagine o caso de João da Silva, um neurônio (na verdade, são
milhares, às vezes milhões deles). Ao nascer, João da Silva está ligado a
um departamento concreto, responsável pela sinalização de desprazer.
Em questão de semanas, a pequena empresa (no caso, um bebê) sofre
uma violenta cólica intestinal após mamar. Cria-se, imeditamante, um
departamento virtual para tratar daquela informação ambígua (prazer
do leite e desprazer da cólica). Lá está João da Silva. Com o tempo, esse
departamento torna-se concreto para lidar com ambigüidades alimen-
tares. Toma-se agora um copo de pinga e, apesar de queimar o esôfago
(desprazer), vem uma sensação gostosa de embriaguez (prazer). Novo
departamento virtual deve ser criado, porque agora o binômio é ligei-
ramente diferente do anterior. Chama-se João da Silva para participar
dele. Resolvido o problema, anos depois, o indivíduo toma um porre,
bate na mulher, perde a família e o emprego, caindo deprimido na ca-
ma. Lá está João da Silva no novo departamento virtual, desenhado
para cuidar de uma depressão. João está, e esteve, em diferentes depar-
tamentos concretos e virtuais. E um elemento crítico quer no proces-
samento de desprazer, quer em binômios (prazer/ desprazer), quer, fi-
nalmente, em depressões. Sua atuação em cada um deles varia de acor-
do com sua função digital (nos concretos) ou analógica (nos virtuais). O
resultado da deliberação do departamento virtual "depressão "kgm
tenha João como elemento crítico (r,or r'ertencer a tantos outros depar-
tamentos

Joãoda Silva ter a história que tem nos vários departamentos acabará
por pesar no estilo de deliberação que sairá dali.
Se ave depressão e
êxtase estético não são idênticos. Há uma norma de convocação destes
macroconceitos cognitivos, conativos e afetivos que não se pode redu-
A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

zir à lógica estanque de departamentos concretos, nem pode prescindir


deles como fornecedores de quadros para participar das novas comis-
sões. Essas novas comissões terão sua história biológica num lado, por-
concretos, e sua
e linüística no outro. roraue é esta
as conussOes virtuais progressivas.'
Em última análise, para situações cada vez mais complexas - e a
operação global da mente é uma delas -, praticamente todo o sistema
fornecerá quadros para comitês virtuais de existência rápida ou dura-
doura. Por um lado, portanto, não faz sentido dizer que existe um dis-
túrbio especifico desta ou daquela função, ou que o pensamento é au-
tônomo em relação às outras funções mentais. Por outro, tomando-se
como exemplo a formação de um departamento virtual que tem como
elemento-chave João da Silva, neurônio originário de departamentos
emocionais ligados à aversão, percebe-se que a correção e o entendi-
mento daquele departamento passarão necessariamente pela maior ên-
fase na figura de João da Silva (um neurônio afetivo, e não da área do
pensamento, da vontade ou da memória).
Isso será crucial na compreensão da escolha de certas drogas, e
não de outras, para corrigir determinados distúrbios - embora, pela
natureza dinâmica e progressiva dos comitês virtuais e de seu mau
funcionamento, acabe-se muitas vezes usando um coquetel de drogas,
cada uma delas atuando em certos setores cognitivos ou conativos (que,
no caso cerebral, seriam comparáveis aos circuitos e aos tipos de
neurotransmissor). Também por essas razões existem, apesar de me-
nos aceitas, hipóteses sobre a gênese única das patologias mentais. 8
Seria única na medida em que há afecções maiores ou menores de co-
mitês virtuais muito amplos. Não seria única na medida em que certos
elementos que participam dos comitês têm sua história mais ligada a
determinados setores do que a outros.
Por serem complexas, as disfunções mentais contam com a parti-
cipação de quase todos os elementos, havendo, portanto, contaminação
extrema de vários departamentos e funcionários. O significado dessas
disfunções, pelos mesmos motivos apontados para a gênese dos con-
ceitos lingüísticos, não se reduz a binômios como prazer/desprazer,
certo/errado ou bom/mau, ainda que, para certos efeitos, tenhamos
nessas formas primitivas elementos críticos de correção, decisão e atu-
ação. Cada disfunção terá sua classe preferencial de drogas e terapias.
1) Embora cada quadro de disfunção mental apresente uma certa
classe de sinais e sintomas preferenciais, é muito comum que coexis-
O SITIO DA MENTE

tam distúrbios de varias funções. Assim, numa depressão pode-se ter


um delírio, numa psicose um quadro de pânico, numa esquizofrenia
arborescência de pensamentos, etc.
2) A abordagem diagnóstica serve-se bastante da linguagem e da
interação com o indivíduo para descobrir e tratar o problema.
3) Dependendo do nível da disfunção, serão necessários mais re-
médios e menos psicoterapia, ou vice-versa. Raramente se precisará de
um só dos dois (pelo próprio mecanismo de formação de conceitos via
aprendizado e linguagem, o papel diagnóstico e terapêutico da segun-
da é inquestionável). Em geral, a psicoterapia é um processo
lfficacão de conceitos foriados durante a história de cada um de nós.

lógica, uma o1icãçatravés de sincronizacões descnnhdji.


4)0 papel da emoção na base dos distúrbios mentais deve-se ao
fato de que a mente não foi forjada para pensar e sim para interagir. Em
toda escala animal temos algum mecanismo de apreciação afetiva de
determinados eventos. O pensamento é uma construção posterior do
cérebro humano, capaz de resolver uma série de impasses, mas, ainda
assim, servindo sempre ao propósito principal de interação de indivíduos.
5) Uma máquina que não tenha essa função poderá resolver teo-
remas; no entanto, será pouco mental na medida em que sua função
precípua é o pensamento e não a interação afetiva (ligações sólidas com
vistas à reprodução e à defesa).
6) A maneira de resolver esse impasse é dotar a máquina de pseu-
dopensamentos que descrevam emoções. Ou fazê-la passar pelo cuida-
doso treinamento e evolução de conceitos sociolingüísticos que estão
na base da formação de grupos, clãs, famílias, sociedades e estados.
7) A simples procriação não capta a dimensão da afetividade na
mente humana, como o desprazer não capta a dimensão de uma ansie-
dade ou de uma depressão. Escrever um livro pode ser um ato afetivo
até mais nobre do que amamentar mecanicamente um filho numa loja
de shoppingcenter.

DESRECULA CEM EMOCIONAL, AFETIVA E DO HUMOR

Um indivíduo subitamente acorda mais cedo que o normal. Cin-


co horas da manhã, ainda escuro. Os olhos se abrem, de repente, secos.
Há um aperto no peito, uma sensação de desconforto na cama, uma
impossibilidade de virar para o lado e voltar a dormir. A idéia de sair
da cama, no entanto, provoca medo. Sente-se incapaz de enfrentar
E SEUS DISTÚRBIOS

qualquer desafio. Preferia morrer. Aliás, pensa cuidadosamente num


modo de se matar que não provoque escândalo nem perda da cobertu-
ra do seguro. O choro irrompe, a angústia se instala na boca do estôma-
go. Corre para o banheiro e evacua em jato. Diarréia incontrolável. Uma
dor no peito suscita o medo de um enfarte. O pensamento se desorga-
niza, rumina idéias e não consegue fugir dos temas negativos. A mu-
lher, ainda dormindo, subitamente se torna infiel. Há uma série de indí-
cios que sugerem infidelidade. E a criança no quarto ao lado, ainda
bebê de oito meses. Uma irremediável culpa invade a mente. Não tem
sido bom pai para aquela criança! Não tem transmitido a ela o sentido
da vida. Também pudera, não é capaz de fazer qualquer coisa boa.
Apesar do carro importado na garagem, da casa própria, da remunera-
ção mensal satisfatória e dos cinco livros que escreveu, celebrados como
preciosidades, sente-se agora incapaz de pagar até mesmo a conta da
padaria. Uma sensação de ruína material invade-lhe a mente. Também
de ruína intelectual. Sua obra não vale nada. Levanta-se da privada.
Não tem vontade nem de se barbear nem de tomar banho. Desce para o
café. Ele, que sempre cedo já descia de terno, elegante e vaidoso, abre a
porta da cozinha, cabelo desalinhado, barba por fazer. O olhar é morto,
as costas encurvadas. A fala é rouca e débil. Com a voz embargada,
pede o café. Chega-lhe um suco, pão, geléia, iogurte, chocolate quente.
Tem uma sensação de náusea e inapetência. Coloca um pedaço de pão
na boca e quase vomita. Um prato mais condimentado e sofisticado,
nem pensar. Angustiado, o pensamento não pára e não se desvia da
morte e da destruição. Ouve-se a sirene de uma ambulância na rua.
"Será alguém de minha família?", pensa. "Minha filha está dormindo
no vizinho. Será que escorregou no banheiro e quebrou a cabeça?" A
empregada pede dinheiro para pagar o encanador. Tinha dado 50% de
adiantamento. Quando vai fazer a conta, hesita, titubeia e tem dificul-
dade de chegar ao resultado. Detalhe: sempre foi o melhor aluno de
matemática do colégio e da universidade. Um de seus livros é sobre
matemática avançada! A memória está prejudicada. O raciocínio tam-
bém. Tenta ler o jornal, mas não consegue se concentrar. Lê mas não
entende. Quando vê, leu várias linhas e não se lembra. Os barulhos
desviam sua atenção, perdida no ambiente, incapaz de focalizar um
objeto especifico. Seus movimentos parecem mais lentos, assim como
seus processos mentais. Uma sensação de tristeza esquisita, dolorosa,
está presente. É diferente de qualquer outra tristeza que jamais tenha
sentido. As vezes é dominado por uma inquietude extrema. Não pára
quieto, andando de uma lado para o outro. Assiste a uma cena emotiva
O SÍTIO DA MENTE

e começa a chorar. Qualquer coisa provoca o pranto fácil. As crianças


descem para o café. Algazarra. Irrita-se com o barulho, com qualquer
pequena coisa. Dá uns gritos, reação explosiva que absolutamente não
é de sua natureza. Quando a mulher desce e o vê naquele estado, per-
gunta-lhe se não vai trabalhar. Há uma reunião importante. Subitamen-
te começa a sentir um medo indescritível. O coração acelera, o ar falta,
a garganta sufoca, a cabeça gira, as mãos formigam, a barriga dói. So-
brevém uma sensação de desmaio. O suor frio toma conta das mãos e
dos pés. A cabeça parece oca, feita de algodão. A vista embaça, apare-
cem pequenos pontos luminosos no cenário, como se fossem diminu-
tos vagalumes. Uma sensação repentina de desespero e ansiedade dá a
impressão de que algo terrível vai acontecer, de que está prestes a
morrer. Levado para o hospital próximo, é examinado pelo clínico de
plantão. Nada de anormal, senão as manifestações de um quadro de
ansiedade aguda. Todas, absolutamente todas as funções fisiológicas
(pulso, pressão, temperatura, batimento cardíaco, sangue e urina) es-
tão normais. Toma um calmante, passa a crise. Sobra uma sensação de
cansaço profundo. Volta para casa e dorme um pouco. Mal adormece,
começa a sonhar. Roteiro de ruína e personagens ameaçadores. Acorda
de sobressalto. Passam-se os dias e o quadro não melhora. Há momentos
menos ruins, no final da tarde, e momentos insuportáveis, no início do
dia. Lentamente vão-se desenvolvendo idéias de doença oculta. Uma
sensação de falência dos órgãos, caso raro, aparentemente desconhecido
na medicina. O fato de que os exames estão normais não convence.
Devem estar errados. Devem ter sido trocados! Toma vitaminas, bebidas
alcoólicas. Não adianta. O álcool ajuda por algumas horas. Depois, as
sensações voltam ainda mais intensas. Um amigo é chamado e diz que
o caso é falta de fé, talvez um encosto. Rezam juntos, procuram um
padre que o abençoa. Finalmente, vai a um centro tentar afastar os
maus espíritos. Em vão. O quadro continua igual, com algumas oscila-
ções. Há perda de peso acentuada, mais de dois quilos em poucos dias.
O sono é absolutamente irregular. O desejo sexual é zero. Nem ereção,
nem fantasias. Cisma então que precisa mudar da casa onde mora.
Quem sabe ali haja alguma coisa. As pessoas da vizinhança sabem
demais de sua vida. Deve ser inveja. Além do mais, os gastos são imen-
sos. Coloca a casa à venda. Ao sentar-se à mesa de negociação com um
comprador, é levado pela conversa do outro. Acaba fazendo uma pés-
simo negócio. Com o dinheiro arrecadado, compra um sítio. Pretende
abandonar a vida da cidade grande, com certeza a causa do seu "estresse"
emocional. Fecha o escritório, cedendo lugar a sócios menos capacita-
E SEUS DISTÚRBIOS

dos. Culpa uma série de episódios do passado pelo seu infortúnio.


Acha que nada pode resolver seus problemas. Planeja, agora com
detalhes, como dar fim à vida. Providencialmente alguém traz um psi-
quiatra à sua casa, ainda não entregue ao comprador. Reluta em aceitar
que se trata de uma desregulagem mental e que precisa de remédios
que atuem nas sinapses. Acaba tomando. Vinte dias depois está
recuperado. O remédio, apesar dos efeitos colaterais, colocou em or-
dem um série de conexões entre os neurônios. Não só atuou nos
neurotransmissores como alterou a dinâmica de formação dos receptores.
As idéias de ruína se foram. Agora há crítica do quadro. Tratando-se con-
tinuamente com remédios e discutindo seus problemas com o médico,
retoma a vida normal.
Nosso protagonista sofreu uma violenta crise de depressão.
Por sorte, pouco antes de cometer um desatino, foi socorrido e
tratado. Não era portador de nenhuma maldição ou loucura. Estava
apenas com a máquina desregulada por certas formas de mau funci-
onamento em algum ponto da empresa-cérebro. Ao contrário de
constituir um caso a mais na fantástica onda de relatos médicos,
esse é um caso exemplar. Diagnostica um impasse do nosso tempo
quanto ao reconhecimento e à aceitação da disfunção mental e do
sítio cerebral, responsável tanto pela grandeza da mente como por
muitas de suas desregulagens.
A depressão retratada acima é rara. Na maioria das vezes, não
há concomitância de tantos sinais e sintomas. Descrita como foi,
serve de guia para uma série de fenômenos que refletem a
desregulagem mental. Muitos quadros não têm sequer 20% dos
sintomas mostrados, nem 20% de sua intensidade. Também não
começam de repente, mas vão-se instalando lentamente ao longo de
dias, semanas, meses, anos. Formam uma extensa lista de quadros
definidos sob o rótulo de doenças afetivas. Aí estão as depressões,
as manias, as ansiedades, o pânico, as fobias, as bulimias, as
anorexias, as obsessões e compulsões, os transtornos irritáveis, as
impulsividades e as distimias (depressões leves crônicas). Estas
últimas talvez sejam as mais difíceis de se diagnosticar e, passando
despercebidas, deixam para sempre uma poeira na mente do indiví-
duo. As pessoas em volta, e muitas vezes o próprio indivíduo afetado,
pensam que é traço de personalidade ou sinal dos tempos.
Pela natureza deste livro, farei um apanhado breve dos dis-
túrbios que costumam ser classificados como afetivos (ou das emo-
ções, dos afetos, do humor, dependendo da classificação que se use).
O SITIO DA MENTE

DEPRESSÕES

Existe uma enorme variedade de quadros depressivos - de um


leve estado de desmotivação e perda de rendimento ao embotamento
generalizado e mesmo a psicose (alteração grave do pensamento, com
delírios). Apesar de haver uma predisposição genética marcante para a
depressão, a gama de pessoas afetadas por ela é tão grande que se pode
até pensar tratar-se de uma resposta mais ou menos "natural" do cérebro
a determinadas situações.
A depressão pode ocorrer sem um fator desencadeante, sem uma
situação objetiva que frustre ou atemorize o indivíduo. No entanto,
mais comumente, a influência externa exerce papel fundamental na sua
gênese, acendendo o pavio da bomba. Também é comum as pessoas
dizerem que, por haver uma causa externa - por exemplo, o desempre-
go, as dificuldades financeiras—, não se trata de distúrbio cérebro-men-
tal. Errado: o fator externo age agredindo ainda mais um sistema que já
tem determinadas propensões a adoecer. Portanto, é nesse momento
que se torna ainda mais necessário regular as variáveis cerebrais.
Um paciente me procura no consultório dizendo estar à beira do
suicídio. Não vem por livre e espontânea vontade, mas trazido por
uma amiga que desconfiou de alguns comportamentos seus. No pri-
meiro contato, mostra-se choroso, olhos inchados, fala inaudível, cabis-
baixo. Conta-me que, aos 60 anos de idade, devido a algumas mudan-
ças na economia do país, está em vias de fechar as três pequenas em-
presas que lhe haviam garantido, até bem pouco tempo atrás, um nível
de vida de classe média alta. Agora, não retira dinheiro nem para co-
brir o aluguel. Deixou sua antiga casa, instalando-se provisoriamente
num pequeno apartamento. Pôs à venda todos os móveis. Por vezes,
sequer tem dinheiro para o remédio ou o almoço. Começa um longo
discurso sobre seu fracasso. Impossível fazê-lo entender que muitas
mudanças econômicas penalizam setores inteiros sem que haja qual-
quer noção de valor pessoal em jogo. Sente-se fracassado. Tem abusa-
do da bebida. "Acalma", avalia, embora não fosse, antes disso, pessoa
que abusasse de álcool. Pergunto-lhe sobre o sono. "Durmo umas três
horas e aí acordo", responde. "Dificilmente volto a dormir. Sinto uma
angústia tremenda e uma dificuldade indescritível de sair da cama e
enfrentar os problemas." A concentração está péssima; o apetite, dimi-
nuído; a libido, a zero. Pretende acabar com a vida. Já tem até um
plano, mas quer estar certo de que parecerá morte natural para garantir
à mulher a indenização da companhia de seguros. Resiste à idéia de
E SEUS DISTÚRBIOS

que esteja doente. Com argumentos sofisticados de pessoa instruída e


lida, alega ter direito sobre sua vida. Mais ainda, alega que o direito à
morte é inalienável. Convenço-o a tomar uma medicação: num primei-
ro momento, um bloqueador de recaptura de serotonina e, depois, um
bloqueador de noradrenalina e serotonina. Queixa-se dos efeitos cola-
terais. Boca seca, piora parcial do quadro nos primeiros dias. Hesita,
duvida, mas por sorte acaba tomando a dose certa.
Tempos depois regressa ao consultório. A cara mudou. Voltou a
tentar achar saídas. Ainda não tem nada de concreto nas mãos, mas o
sono, a concentração e a motivação estão bem melhores. Pergunto-lhe
sobre o remédio. "Diminuí por conta própria a dosagem", confessa. "E
não me queira mal, mas mesmo tendo readquirido a capacidade de
trabalhar, continuo com o firme propósito de ir embora, depois de ar-
rumar tudo para minha esposa." Peço-lhe que volte à dose anterior. O
sono ainda não está normalizado e o abuso do álcool persiste. Três
semanas depois de retornar à dose certa, começa a abandonar a idéia
de morte e me solicita que converse com sua família. "Minha filha é um
problema. Não nos damos bem, embora a ame muito", explica. Digo-
lhe que tentarei fazer voltar o dia em que a colocava no colo e lhe con-
tava histórias de fadas. Chora e me abraça. "Você é um pouco padre,
sabia? Obrigado."
De fato, a psiquiatria parece ter algo de religião. Quando não se
consegue entender a riqueza do comportamento neuronal, empresta-se
da religião a figura da bondade e do amor ao próximo. Não é necessário
falar de uma ética religiosa solidária, porque esses já são, desde que
devidamente entendidos, traços biológicos notáveis. Podemos parecer
sacerdotes, mas somos só médicos. Os predicados que a religião
empresta do espírito, subtraindo com isso grande parcela da razão
pensante, nós os pesquisamos e achamos na natureza. Há uma ética
biológica que, infelizmente, tem sido esquecida por profetas da prece
com finalidade pessoal.
no recato da mente solitária, do pensamento e da emoção, uma razão
entre as

áF'ida dor. Não há médico que, diante ddor, não tenha aberto mão
íos para cumprir seu dever jurídico, moral e biológico de
atendimento. Também os primatas o fazem, claro que não em hospitais
aparelhados e decentes como os que servem à população.
Certa vez uma paciente me dizia, após melhorar de um quadro
depressivo ansioso, que pretendia estudar psicologia. "Gosto muito de
O SÍTIO DA MENTE

ajudar os outros", justificou. "Para isso não é preciso fazer curso supe-
rior. Entre para o Exército da Salvação. Ajudar os outros é obri~ ação de
qual uer um. Entender o cé~e a me te so ou os uinhentos",
respon 1. a insistiu: "Mas tão bonito ser médico de almas
euacho
como você." Já sentindo de novo a batina abanar, retruquei: "Isso é
coisa. de religiosos. Eu não cuido da alma, cuido do cérebro." "Como
você é duro e insensível em certas horas", concluiu ela.
Engraçado que, quando falamos de alma e espírito, estamos sen-
do sensíveis. Quando falamos do que está por trás da grandeza da
mente humana e de suas anomalias, somos duros, embrutecidos e
materialistas. Definitivamente, um dos sítios da mente é não se perceber
aue não lhe reduz a randezao fato de sererada vor um cérebro e não
por uma entiaaqg~n~ aoternos a meioa iaae como

A depressão ansiosa é, de certa forma, similar à descrita no iní-


cio. Porém, o choro não é mais o elemento fundamental. Há um quadro
de repetição de idéias, uma desconfiança generalizada e uma insegu-
rança que beiram o absurdo. ape-
lo às soluçõe má cas. Uma paciente costumava passar bem de maio a
ezembro. Em janeiro viajava por um mês com a recomendação de
continuar os remédios. Durante as viagens, sempre inventava alguma
coisa nova acerca de seu quadro. Parava os remédios e na volta, já
péssima, procurava todo tipo de terapia e métodos alternativos. Num
ano, encontrou um bruxo que afastava as doenças dando um grito primal.
Voltou em maio e, depois de quinze dias de medicação, estava normal.
No outro ano, topou com um centro que aplicava uma técnica baseada
em "radiestesia radiônica". Voltou em fim de abril e passou bem o
resto do ano. Na última vez, fez testes complexos de função cerebral,
mapeamentos ainda inconclusivos na clínica médica (embora possam
ser usados em pesquisas). Cortou pedaços de cabelo e mandou analisá-
los nos Estados Unidos. Segundo o médico, faltavam componentes,
vitaminas, no seu sangue, como comprovava o exame cerebral: "Está
vendo está área toda azul? E sua depressão. E azul", disse-lhe o tera-
peuta, fazendo uso de mapeamento cerebral por eletroencefalografia
(brain mappm8), método que tem sido reavivado em pesquisa, mas que,
por ora, demonstra equívoco ou alguma leviandade se usado como
instrumento de diagnóstico clínico. Prescreveu-lhe vitaminas (outra área
com alguma massa de informação científica, mas ainda distante da
operacionalização e da eficácia que se exigem da aplicação clínica) e,
escondidos na fórmula, os antidepressivos que costumava tomar.
E SEUS DSTÜRBIOS

Melhorou um pouco, mas não o suficiente. Pudera, a dose de


antidepressivo estava errada. Voltou ao meu consultório porque não
podia mais pagar o preço das fórmulas. Dei-lhe novamente apenas o
antidepressivo comprado em farmácia e recomendado por qualquer
psiquiatra que conheça um pouco do que se faz nos dias de hoje. Como
de hábito, melhorou duas semanas depois e continua bem até hoje.
Sem vitaminas e com cada vez menos remédios. Que eu saiba, não se
tornou médica de almas. Dedica-se agora a reuniões de um grupo que
diz manter contato com extraterrestres.

TRANSTORNOS IRRITÁVEIS E IMPULSIVOS

Uma das formas leves mais interessantes, comuns e menos


diagnosticadas de distúrbio afetivo são os quadros irritáveis, impulsi-
vos e explosivos. A pessoa apresenta o chamada pavio curto, explode à
toa, torna-se violenta verbalmente, às vezes, até fisicamente. Algumas
variantes da impulsividade não são necessariamente motoras. Podem
ser compulsões pelo jogo, pelas compras, por informação, etc. A carac-
terística que chama a atenção nesses quadros é a possibilidade de se-
rem considerados traços de personalidade. "Ele é assim mesmo, desde
criança não leva desaforo pra casa!", dizem os que rodeiam o paciente.
O tratamento é fácil, como de modo geral o é qualquer tratamen-
to desses transtornos. Há drogas anti-impulsivas que simplesmente "en-
compridam o pavio". Agem em certas assembléias neuronais que atuariam
selecionando estratégias de conduta, que estamos todo o tempo geran-
do. Pode-se dizer que qualquer coisa que nos afeta, entre as muitas
hipóteses de resposta, provoca a explosão, a ira, a violência verbal ei
ou física. Normalmente, estas hipóteses são abandonadas, quer através
da avaliação consciente, do juízo, da ponderação, da cautela e da pru-
dência, quer através de mecanismos pré-conscientes. A depressão e
outros tipos de desregulagem podem alterar este jogo de forças, fazen-
do com que a reação agressiva, irritável, impensada seja mais rápida do
que qualquer outra. Muitas vezes, o paciente se arrepende minutos
depois. Em outras ocasiões, sequer tem crítica absoluta do quanto se
excedeu. A medicação tende a estabilizar o comportamento, fazendo-o
voltar ao normal.
Um paciente, casado havia alguns anos, procurou-me certa feita
dizendo que a esposa já não o agüentava mais. O relacionamento era
bom, mas diante de qualquer impasse, de qualquer pequena briga, o
jovem se alterava e explodia. As vezes, era somente uma alteração ver-
O SITIO DA MENTE

bal: gritos e ofensas. Às vezes, a violência se tornava física: malas que


voavam pela janela, socos em paredes, tapas em sopeiras e até algumas
"sacudidas" na mulher. Nesse caso, o paciente tinha plena noção de que
se excedia, mesmo não conseguindo controlar-se. Medicado com
bloqueadores de recaptura de adrenalina e com um neuroléptico em
gotas apresentou a seguinte evolução: com uma gota ao deitar, passou
a não mais agredir fisicamente a mulher, embora ainda batesse em ob-
jetos e usasse palavras ásperas; com duas gotas, passou apenas a ofen-
der e gritar; com três gotas, salvou o casamento. E curioso que, apesar
de haver um sem-número de outras temáticas psíquicas a serem discu-
tidas e melhoradas, o problema que exigiu dele o bom senso de ouvir
que se tratava de uma desregulagem foi resolvido em questão de se-
manas e atuando-se exclusivamente no balanço de circuitos cerebrais
responsáveis pela geração de agressão e pela inibição e ponderação.
Alguns pacientes perguntam-me se essas medicações não adulte-
rariam o que realmente se é, a personalidade, o modo próprio de ser. A
resposta é não. Quando uma pessoa tem febre e toma um antitérmico,
sua temperatura volta ao normal. Quando não tem febre, o mesmo
anti-térmico (usado como analgésico, por exemplo) não faz com que
sua temperatura baixe ainda mais. Numa febre de 39 graus, 30 gotas de
remédio diminuem a temperatura a 36,5 graus; mas, se a pessoa está
com dor de cabeça e toma as mesmas 30 gotas, a temperatura não cai a
33 graus. Trata-se de uma propriedade dos sistemas de regulação do
organismo. Se não houver um excesso a ser retirado, como no caso da
febre, não haverá atuação naquela função. Assim também, de modo
geral, um antidepressivo prescrito para um indivíduo normal não vai
torná-lo eufórico, embora tire um deprimido da depressão. Uma goti-
nha de anti-impulsivo diminui a irritabilidade do explosivo, mas não
deixa um indivíduo normal sem impulsos, e assim sucessivamente.
Isto significa que, exceto em casos menos freqüentes, o sistema
apresenta índices máximos e mínimos que não estão sujeitos a alterações.
Toda vez que se desrespeitam os pontos de harmonia do sistema nervoso
a medicação tende a reequilibrá-los. Se estes pontos estão em equilí-
brio, a medicação não provoca modificações profundas, salvo efeitos
colaterais indesejáveis e mal-estar. A personalidade como um todo é um
grande ponto de equilíbrio, resultante de diversos outros. E pratica-
mente impossível que um remédio altere uma personalidade, a menos
que esteja fora do normal. Portanto, urna personalidade equilibrada não é
modificada; uma patológica, sim. Vai daí que, pelo uso de uma
medicação, é possível restabelecer-se a personalidade propriamente dita,
E SEUS DISTÚRBIOS

que passa a prevalecer sobre aquela que, "empoeirada" muitas vezes


por algum transtorno crônico, tem-se expressado de uma forma ou de
outra.

DEPRESSÕES PSICÓTICAS

As depressões psicóticas são bem mais raras, mas se caracteri-


zam por uma supervalorização da visão dos outros sobre si. Não raro,
o paciente se sente objeto de atenção excessiva dos outros (ligeira auto-
referência), achando que todos olham para ele, que percebem suas
deficiências, que cochicham a seu respeito. Essa exacerbação da chamada
auto-referência não caracteriza necessariamente um distúrbio do
pensamento. Em geral, a medicação antidepressiva é suficiente para
reequilibrar o indivíduo, embora se possa usar também uma mediça-
ção antipsicótica por um período breve para que ceda mais rapidamente
a estrutura delirante (ou deliróide, quando apesar de sentir o olhar
alheio o paciente tem crítica da anomalia daquela sensação ou idéia).
Essas formas não-primárias de delírio motivados por distúrbio do humor
(depressão) costumam ser chamados em algumas escolas de pensamento
psiquiátrico de delírios catatímicos.
Nas formas psicóticas de fundo depressivo (isto é, com uma
depresão ou alteração primária do humor a gerar-lhes), também apa-
recem os chamados delírios de ciúme, de culpa e de doença. Ao con-
trário de constituir sinais de prudência e vigilância saudáveis, a
preocupação com doenças e morte, a culpa e o ciúme excessivos tendem
a desencadear idéias bizarras e comportamentos anormais. E curioso
que, por vezes, essas manifestações ficam circunscritas a uns poucos
momentos, e, pela tolerância dos outros, pela ignorância e pelo tabu
diante dos distúrbios mentais, o paciente pode demorar anos para pro-
curar ajuda.
O leitor pode entender nessa situação o que chamamos
anteriormente de afecção secundária do pensamento (a causa
primária é do humor). O problema do distúrbio mental é que, ao
não se reconhecer seu sítio cerebral nem sua similaridade com
qualquer outro sintoma físico, ou se aceita passivamente o que é
leve, como no caso de uma ansiedade leve (e normalmente fácil de
corrigir) ou se estigmatiza o que é forte, como no caso de um quadro
paranóide com ameça de agressão a algum inocente (também
impedindo a correção pela falta de tratamento neutro e sem
preconceitos).
O SíTIO DA MENTE

DEPRESSÕES LEVES CRÔNICAS

Falando-se de quadros leves, deve-se sempre estar atento às de-


pressões leves crônicas (distimias), que podem se instalar lentamente
ou resultarem de recuperações parciais (quase totais) de crises de mé-
dio porte não tratadas (ou incorretamente tratada). Comumente, uma
pessoa que teve um quadro depressivo muito doloroso contenta-se com
qualquer melhora. Basta voltar a dormir, ter alguma produtividade e
não pensar tanto em coisas negativas que já acha estar curada.
A depressão leve normalmente se caracteriza pelo empalideci-
mento ou pela exacerbação das funções normais. Aparece, então, uma
pequena irritabilidade ou uma tendência a ficar mais quieto e sério. O
chamado mau humor muitas vezes tem aí sua origem. A rapidez inte -
lectual normalmente cede lugar a uma inteligência mais comedida. Pior
amcia, o espirito empreenaecior cia lu ar a um conservaclonsmo ame-
drontado. Não raro desenvolvem-se pequenas manias de organiz aç ã o,
àisão de mui demtolerância. Oêxito profissional declina. Com
freqüência, carreiras inicialmeiite meteóricps estagnar aprentrnente
sem motivo, sobrevindo uma queda bsnçial!e capacidade prQfis-
iifa1 e de ganho material ao longo de 10,20 anos. Ao contrário dp se
ptratar-se de alguma anomalia, um sem-númeroje outras ex-
plicações são recrutadaQuanojergunta .0 que teria ocorrido ao
moço brincalhão, extrovertido e falante que se tornou um adiïr-
ispectoicom pouco senso de humor, costuma-se ouvir: "Eio

de personalidade. O falante não fica mais


nem o
maj&çauteloso, amedrontado e empobrecido. Por constituir problema
uma

O leitor deve-se lembrar de que por muito tempo admirou-se a


beleza do teto da Capela Sistina, que Michelangelo teria pintado em
tom pastel. Há alguns anos, num dos trabalhos de limpeza e restauração,
descobriu-se que o tom pastel não era senão sujeira. As cores eram
fortes e vivas.
- J di stiir ia também é assim. A personalidade que emerge em-
poeirada não necessariamente é feia e indesejável, como a cor pastel da
Capela também não o era. No entanto, não é real. Basta se tratar o
distúrbio de base, a desreulaem crônica. e as cores reais aoarecemT
fundamental perceber isso porciue nosso cérebro e nossa
E SEUS DISTÚRBIOS

o são campo de provas de críticos dele. Ainda que se possa "gos-


tar" de uma pessoa empoeirada, assim como se apreciam tons pastel,
há outros sinais e sintomas depressivos que impedem a plena realiza-
ção das funções mentais. Muito mais comum do que se imagina, ess
forma de depressão é seaimente uma das razões nara inexlicáe.is
insucessos profissionais, intelectuais e pessoais, muitas vezes conside-

MANIA

Contrariando sua acepção corrente, tecnicamente o termo "ma-


nia" é usado para definir um distúrbio oposto à depressão, caracteriza-
do por humor expansivo, exaltado, acelerado. Há uma felicidade içls-
critível, um otimismo irresponsável, uma crença cega nas boas hiten-
L

ções a1hiA autoconfiaç é extrema, chegando até mesmo ao deli-


rio de grande (caso em que o pensamento já apresenta incursão psi-
cótica). A fala é rápida, as palavras costumam se suceder em cadeias de
associação superficiais. A atenção é quase nula. Pode aparecer a irri-
tabilidade. No quadro maníaco, não raro, oIom humor cede lugar à arro-
gância e à agressividade Mdl Osono é desnecessário. Passa-se a noite
roda trabalhando, tendoJdiasAs associações são gratuitas. Tudo é
um sinal, uma coincidência que comunica algo. 0 erotismo é exager a-
do, Por vezes descabido. Tira-se a roupa à toa. lima senhora-fica-nua
no velono ao sc
pae

Um paciente internado, durante o passeio externo matinal, visita\


uma casa à venda no bairro da clínica psiquiátrica. Toca a campainha e J
faz uma proposta de compra. Seriam 500 mil reais parcelados, com /
uma entrada de 100 mil e oito prestações de 50 mil. Pergunto-lhe como
pretende pagar essa oferta. "Ora, 100 mil é o que vou ganhar no con-
curso x (cujo resultado será divulgado em duas semanas e que tem
milhões de participantes). Os 50 mil mensais virão da empresa de pro-
paganda que vou montar. Espero, já no primeiro mês, estar faturando
uns 100 mil líquidos." Detalhe: o paciente não trabalhava havia 30 anos J
naquele setor, e o país passava por uma recessão incrível.
Outro paciente me liga no meio da noite. "Você melhorou?", per-
gunto-lhe. "Totalmente, estou vendo muitas chances profissionais, fa-
zendo muitos contatos e abrindo várias frentes de trabalho. Creio que
nos últimos dias reverti a situação", responde, como que se esquecen-
O SÍTIO DA MENTE

do de que sua empresa, há três dias, havia dispensado o último funcio-


hário por falta de serviço. "E as idéias estão melhores?", insisto. "Passo
noite trabalhando, durmo duas horas. Ontem tive uma ereção como
não tinha desde os 17 anos. Vejo coincidências em tudo, todos os fatos
parecem ter algo a me dizer das perspectivas futuras. Você não acha que
estou um pouco melhor do que devia?", questiona, depois de me convi-
dar para sair com algumas mulheres.
Aqui temos o início de um quadro maníaco. Ainda existe alguma
estado iiao, embora a vivência seja
prazerosa. Interessante é que esses quadros de aceleração do humor
em uma doença clássica alternam-se com quadros de depressão. E a
chamada psicose maníaco-depressiva (PMD), antes chamada de psico-
se circular.
Não necessariamente todo deprimido tem uma PMD, mas ela
retrata de maneira exemplar a possibilidade de certas desregulagens
transitarem entre máximos e mínimos que vão desde a euforia (acima
do humor normal) à depressão (abaixo do humor normal). A medica-
ção, nesses casos, é feita à base de neurolépticos. Muitas vezes, obtém-
se a estabilização do humor, q uando não há crises de mania.'JJf
depressão, com um sal natural: o carbonato de lítio, que atua no nível

gênicas ligadas à produção e à forma dos receptores. A recuperação,


na
e
da dosagem de certos medicamentos.

ANSIEDADE, PÂNICO, FOBIAS E OBSESSÕES

Entre os distúrbios do humor e da esfera afetiva, está uma das


reações mais comuns na escala animal: a ansiedade. 9 Os animais superio-
res, particularmente os mamíferos, costumam esboçar, diante do peri-
go, a chamada reação de fuga ou luta. Essa reação é possibilitada por
uma descarga de neurotransmissores que age sobre o cérebro e sobre
todo o corpo. Em que consiste a sua lógica? Basicamente em providen-
ciar maior aporte de sangue aos sistemas necessários para desencadeá-
la, deixando de lado os outros, desnecessários naquele momento. As-
sim, os pêlos se eriçam, a respiração se aprofunda e se intensifica, a
pele fica pálida e fria, a digestão pára, o ritmo cardíaco aumenta. Essa
chuva de adrenalina na corrente sangüínea orquestra a defesa do orga-
nismo, atingindo todos os seus pontos.
E SEUS DISTÚRBIOS

Embora normal, essa reação pode ser: a) exacerbada; b) indepen-


dente de perigo real e imediato; c) cronicamente exacerbada; d) instan-
taneamente exacerbada sem motivo aparente.
As alternativas acima espelham o que se passa com o ser huma-
no. Todos já tivemos reações desse tipo quando levamos um susto ou
passamos por um grande perigo. Mas, ainda que tenhamos nosso pas-
sado biológico no ambiente natural, é na sociedade que vamos encon-
trar os análogos ameaçadores - em vez de predadores que provocam
reação de fuga ou luta, pressões sociais, morais e econômicas (ameaças
subreptícias e crônicas). A ansiedade pode ser considerada uma res-
posta fisiológica normal às ameaças ambientais, acrescida das seguin-
tes peculiaridades: a) acontece diante de inimigos não mais necessaria-
mente reais e biológicos; b) costuma ser exacerbada.
O fato de ser exacerbada faz com que desregule uma série de fun-
ções mentais e orgânicas. Assim, não só o rendimento intelectual dimi-
nui no ansioso, como tende a ocorrer uma ampla gama de sintomas físi-
co-corporais: sudorese, taquicardia, palidez, formigamento nas mãos e
nos pés, dor de cabeça, sensação de desmaio, de tontura, de vertigem,
de falta de ar, de garganta fechada, de estômago embrulhado, diarréia,
obstipação, dificuldade de ereção, erupções na pele, etc. Todos eles
podem acompanhar quadros de descarga crônica ou aguda de adrenalina
na corrente sanguínea. Normalmente, têm como substrato uma situa-
ção cerebral de reação de fuga ou luta desproporcional e desregulada.
A ansiedade crônica caracteriza tipos de personalidade que não
têm parada, que se agitam diante de tudo, que não sabem esperar, que
se atemorizam com quaisquer pendências e cobranças, que vêem risco
em todo canto, que estão constantemente preocupadas com o futuro.
Descargas agudas comumente caracterizam quadros rápidos e
de sintomatologia variada, com intensa vivência de morte iminente (qua-
dro de pânico). O indivíduo pode desenvolver medos específicos, as
chamadas fobias ou aversões comportamentais a certas situações, luga-
res e contextos, que aparecem como antevisão de perigo, às vezes não
relacionada com o fator desencadeante da crise. Ou seja, não é que um
ansioso, por razões financeiras, desenvolva uma fobia a gerentes de
banco. Ao contrário, os quadros fóbicos podem surgir sob a forma de
aversão, evitação e mal-estar diante de uma série de situações e luga-
res. Há a fobia social (horror a contatos, a falar em público, a se expor),
a acrofobia (a lugares altos), claustrofobia (a lugares fechados), agora-
fobia (a lugares abertos), etc.
Todas esses distúrbios têm tratamento relativamente fácil. Por
O SíTIO DA MENTE

\vezes, usam-se apenas alguns remédios sintomáticos (ansiolíticos) e


algumas técnicas comportamentais de descondicionamento, como a ex-
posição progressiva à situação geradora da fobia. 10 Em outros casos, é
necessário reequilibrar certos circuitos cerebrais, usando-se antidepres-
sivos (o que mostra claramente a inadequação do termo "antidepres-
sivo", embora sua substituição por bloqueador de recaptura de nora-
drenalina/serotonina, tome difícil para o leigo entender do que se trata).
E importante observar que, mesmo havendo nos quadros ansio-
sos chance de se equilibrar o sistema nervoso sem o uso de remédios,
são eles que mais rápida e eficazmente solucionam grande parte do
problema. Isso, no entanto, não exclui a necessidade, em muitos casos,
de se estudarem as razões ansiosas que fazem com que uma meta
financeira não atingida se transforme numa ameaça tão assustadora
quanto um tigre rosnando na porta.
Na nossa évoca, a ansiedade costuma retratar bem os conflitos
o cérebro se faz mente, a biologia se faz cultura, a co-
mida se taz banquete, o transporte se taz status, o tra balho se faz carr e i-
ra, a carriiie faz concorrência, a concorrência se faz perda potencial

Não sem motivo, a palavra "estresse" é das mais características do


nosso tempo, não significando senão uma generalidade que mede todo
tipo de desconforto da civilização. Mede-se uma ansiedade profissional
pela globalização da economia e pelo alto índice de desemprego. Mas
mede-se também uma ansiedade corporal pela alta taxa de doenças
sem causa aparente e pela queda da qualidade e do rendimento profis-
sionais. Genérica em muitas de suas formas, a ansiedade às vezes se
condensa, tomando-se instantânea, como no pânico, ou reativa e insen-
sata, como nas fobias, e exigindo tratamento tão urgente quanto em
qualquer outra situação de desequilíbrio. Embora se localizem eventos
externos ameaçadores, sejam concretos, sejam virtuais, nem por isso,
como no exemplo da insulina para o diabético, o remédio deixará de
trazer alívio e operar a regulagem necessária.
Devido a predisposições cerebrais, bem como devido a fatores
sociológicos, é grande hoje o número de distúrbios alimentares entre
os quadros ansiosos e afetivos mistos. A comida exerce, como o dinheiro
e o sexo, uma função simbólica extrema. Assim, a obesidade, o ap etite
compulsivo e o ideLmeza esquelética deixam de ser qu estão de

Não raramente precisamos medicar certos circuitos erebrais para obter


alguma resposta nessas situações, o que, no caso de uma anorexia ou
A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

de urna bulimina nervosa (comer compulsivo seguido de vômitos), não


se lograria com uma simples conversa ou o apelo leigo à força da mente.
Também a busca mórbida do corpo perfeito leva ao uso de remédios
que agem sobre o cérebro para diminuir o apetite e que estão, ao lado
dos tóxicos e do álcool, entre as grandes causas de desregulagem men-
tal induzida.
Uma das formas mais bizarras de distúrbio emocional é a chama-
da doença obsessivo-compulsiva (DOC). O paciente sofrendo desse mal
apresenta uma propensão exacerbada para a sistematicidade e a orga-
nização excessiva, chegando ao extremo das práticas rituais. As temáticas
obsessivas preferenciais são a higiene e a dúvida. No primeiro caso, o
que se almeja é eliminar o risco da contaminação, atingir o ideal da
assepsia plena; no segundo, há uma tendência reverberante de se con-
firmar se a porta está fechada, se o bico do fogão não vaza gás, etc.
Aqui se enquadra a pessoa que tem todo um ritual de banhos e de
deposição de roupas em escalas hierárquicas de maior ou menor conta-
minação, que aciona o botão do elevador com um lápis, que corta o pão
com luvas de borracha, que espalha pela casa caixas de lenço de papel
ou rolos de toalha para usá-los toda vez que for pegar algo. A mania de
contaminação, de dúvida, de intolerância a erros normalmente vem acom-
panhada de uma maior ou menor sistematicidade diante das coisas.
Certa vez, estava na casa de um paciente. Bati a cinza de meu ci-
garro num cinzeiro. Ato contínuo, sem pestanejar, semblante inalte-
rado, o indivíduo pegou um aspirador de pó que estava ao lado de sua
cadeira, ligou-o, apontou o bocal para o cinzeiro, sugou barulhentamente
as cinzas e continuou a conversar como se nada tivesse acontecido.
Como o indivíduo era fumante, perguntei o que significava aquilo: "De-
testo cheiro de cinzas", respondeu. Tempos depois, vi o mesmo paci-
ente escrevendo a lápis em sua mesa de trabalho. Apagava laborioso o
papel, retirando cuidadosamente, com um pincel de pintor de parede,
os farelos de borracha que entravam pelas frestas da escrivaninha.
E importante observar que esses ideais de perfeição, higiene, lim-
peza e ordem (como medir a caída do cobertor de cada lado da cama
para se assegurar de que há simetria) não são ainda obsessões plenas.
São traços. A doença obsessiva instala-se de fato no momento em que
alguma idéia se impõe e a necessidade de realizá-la torna-se compulsi-
va. Embora absurda, não realizá-la provoca um desconforto físico tre-
mendo e uma sensação de que algo ruim acontecerá.
Uma paciente, já deitada, precisa se levantar, ir ao banheiro, ligar
a luz três vezes e voltar para a cama. Se não o fizer, será dominada pela
O SÍTIO DA MENTE

sensação de que o avião em que viajará no dia seguinte cairá. Percebe o


absurdo desse ato e não acredita semanticamente na sua necessidade.
Mas, se não seguir o ritual, padecerá de um mal-estar físico brutal.
Ainda que a concatenação formal da idéia obsessiva tenha muito de
distúrbio grave do pensamento e do juízo, não é. Primeiro, porque o
paciente tem crítica do absurdo da idéia. Segundo, porque a medicação
que resolve esses casos é a mesma que atua nos distúrbios depressivos
e ansiosos.
Aqui temos um tópico ao qual voltaremos oportunamente. Po-
der-se-ia perguntar se a crítica verbal seria suficiente para caracterizar a
integridade do juízo ou se os atos deveriam estar de acordo com as crí-
ticas verbais. Neste caso, o obsessivo poderia ser considerado um dis-
simulador no que concerne às idéias. Fingiria que está normal lingüisti-
camente, mas agiria como se não estivesse. O debate é amplo.

SÍNTESE

Os distúrbios emocionais são seguramente os mais comuns e mais


facilmente tratáveis. Entre eles estão as depressões e a ansiedade, afec-
ções que debilitam funções mentais.
É importante notar que os conceitos emocionais são forjados à
custa da experiência e da submersão lingüística. A reordenação de de-
partamentos ocorre porque o vocabulário primitivo (prazer e desprazer)
é insuficiente e digital. A dinâmica analógica é justamente a que permi-
te que conceitos como angústia e ansiedade possam indicar nuanças
que aversão ou desprazer não captavam. Isso onera o sistema na forja
de conceitos às vezes excessivos. Porém, para a descrição de cenários
complexos e sobretudo para a consciência, são fundamentais.
Cumpre perguntar se esses conceitos, principalmente os que des-
crevem emoções sob a forma de pensamento, são construções cerebrais
naturais ou produtos da linguagem e da cultura. São as duas coisas, e
aí reside a dupla face do mental.
As máquinas poderão simular a mente na medida em que se ga-
ranta a tradução radical de conceitos emocionais e volitivos em expres-
sões do pensamento. No entanto, isso requererá que se faça uma cuida-
dosa investigação sobre como os conceitos são formados dinamicamen-
te na mente humana e transpostos para a consciência.
PATOLOGIAS DA VONTADE

Capítulo 16

PATOLOGIAS DA VONTADE

vontade é um dos pontos cruciais da mente humana. So-


bre ela segue todo o edifício da sociedade. Supõe-se que sejamos
livres para agir e escolher caminhos. Daí a concepção de uma mente
"mecânica" e material parecer absurda. Resiste-se à natureza cerebral
da mente porque a idéia de espírito ou alma harmoniza-se mais com a
noção de vontade e de livre escolha. Estranho, porque, nas interpreta-
ções teológicas do livro do Gênesis, a expulsão de Adão do Paraíso se
dá justamente quando, por um ato de liberdade e vontade, ele come do
fruto proibido. O ser humano pretendia ser deus, assumindo a posição
de sujeito de escolha e elevando-se da condição de criatura à de criador.
Vê-se aqui a ambigüidade de certas mensagens teológicas: pretende-se
que o ser humano tenha liberdade para escolher o bom caminho, mas,
ao mesmo tempo, delimita-se o campo das escolhas possíveis; sua von-
tade só pode escolher dentro de certos limites. As outras, estas seriam
para deus.'
Uma outra forma de encarar a passagem bíblica, talvez mais radi-
cal, advém do sítio cerebral da mente:deus prescreveria na alegoria do
Gênesis que há matérias de escolha e matérias de aceitacão tácita. Pre-

regia básica da vida e do êonhecimento. Neste caso, não aceitar as limi-


tações cerebrais-ia a mente implicaria na expulsão de outro paraíso:
o cia samciacie e
Há limites para a vontade e para a liberdade. Na concepção poé-
tica do Gênesis, isto estaria representado na proibição de que se pro-
vasse da árvore do bem e do mal. Numa das concepções contemporâ-
neas possíveis, isto se refletiria na seguinte distinção: há matérias sujei-
tas ao debate, à opinião e à vontade e há matérias sujeitas ao conheci-
mento. As primeiras devem ser mantidas como prerrogativas inerentes
a cada um de nós. As outras não são questão de escolha simples. Como
diz o ditado popular, "de boas intenções o inferno está cheio". A von-
tade tem limites, o que nos é imposto qllerpor um deus que está ma
O SiTIO DA MENTE

As estruturas responsáveis no cérebro humano (considerando-se


aqui, como explicamos antes, não haver identidade estrita entre estru-
tura cerebral e função mental) pela geração de vontade, planos e inten-
ções estão alojadas, particularmente, numa área do neocórtex: o lobo
frontal. Como sabemos disso? Pelo fato de uma série de alterações
nesse local estarem associadas a anomalias.'
Os seres humanos são capazes de controlar ações de modo voluntá-
rio e de modo automático. O modo voluntário é lento, atentq., conscien-
tap aprendizado e ao início da realização de uma tarefa O
automático é rápido e não se tem consciência de sua operação.
Imagine que você esteja aprendendo a dirigir um carro. Num pri-
meiro momento, o faz com muita ptencão. lenta e voluntariamente.
Lom o tempo aciciuire aestreza, tornando a açr 1tefl1 at1ca. rapida.e
ão-conscient. Ao se eleger o controle voluntário como conceito repre-
sentante da vontade, pode-se medir o fluxo sanguíneo cerebral (princi-
palmente através de tomografia por emissão de pósitrons - PET scan)
durante a execução de tarefas. Quando há novidade, aprendizado,
ciência e controle voluntário, o fluxo sanguíneo se dirige preferencial-

Se a vontade tem uma região cerebral preferencial de processa-


mento, inã o por acaso área nobre e nova na escala evolutiva, por qu e,
então, não pode ter limitações?
Uma paciente certa vez me indagava a esse respeito: "Você de-
fende que fiquemos passivos e não tentemos nos superar?" "Não",
respondi, "o que estou dizendo é que, por um lado a mente pode fazer
muitas coisas e, portanto, deve ousar. Por outro, há limites para ia"
"Ias como saber quais os limites para a vontade?", insistiu ela. "É
difícil definir esses limites no atual estágio de conhecimento cerebral. O
que se sabe com certeza é que, se alguém tem algum grau de desregu-
lm mental, a vontade não pode consertá-l a ", concluí.
Alguns anos atrás houve um momento crucial na história dos
fatos sociológicos que dizem respeito ao modo como enxergamos a
mente. Logo após a confirmação de que havia um forte componente
genético no alcoolismo, um grupo de alcoólatras recorreu à Suprema
Corte norte-americana, solicitando aposentadoria por invalidez.
Alegaram, baseados nas pesquisas recentes, que eram doentes incurá-
PATOLOGIAS DA VONTADE

veis ou irrecuperáveis e que, por isso, mereciam ser tratados como tal.
A corte decidiu, por 4 votos a 3, negar o pedido, alegando que, embora
houvesse fortes motivações orgânicas para o alcoolismo, ainda restaria
a cada um a possibilidade de, pelo exercício da vontade, ter abandona-
do o vício.
Esse veredicto mostra bem como a mente é vista e como o pro-
blema da vontade e da liberdade são encarados ainda hoje. Descobre-se
vida em Marte, pisa-se na Lua, desvenda-se a física da matéria e a
mente continua sitiada pela ignorância de seu sítio cerebral. Isto é, se
há determinação cerebral para algo, o que pode a vontade fazer? Ou a
vontade também é cerebralmente determinada, o que redunda em
configurar seus limites de atuação, ou está acima do cérebro, hipótese
em que mesmo a determinação subjacente nada conta. Espero que a
decisão da corte tenha partido da primeira hipótese, ou seja de que a
vontade opera cerebralmente dentro de certos limites -, embora haja
predisposição genética, entendeu a corte americana que há margem de
manobra para a ação voluntária.
A vontade pode ser considerada através de três enfoques: a) é
ilimitada e não sofre a coação cerebral; b) é uma ilusão, visto estar
determinada por um órgão físico; c) é uma propriedade que emerge da
complexidade cerebral quando esta gera a mente, sendo uma vivência
que se agrega a alguma instância de controle sobre a ação e a percepção.
A tese deste livro adota a terceira hipótese. Desconfio que a decisão
da corte americana, embora compatível com a terceira hipótese, talvez
seja fortemente influenciada por uma espécie de sincretismo entre a
primeira e a segunda - caso em que a vontade seria algo que paira
sobre o cérebro, tendo suas razões próprias não determinadas por ele.
Embora os desdobramentos aparentemente sejam os mesmos, as im-
plicações de uma e de outra são radicalmente diversas. Uma vontade
emergente do processamento cerebral ainda é física; uma vontade que
paira sobre o mundo físico é de uma natureza que não sabemos explicar,
permitindo qualquer argumento a endossar-lhe o poder.
Poderia se argumentar que a emergência de uma propriedade -
no caso a vontade - é tão inexplicável quanto sua caracterização como
fenômeno espiritual. O dualismo de propriedades, embora com monismo
de essências, adota uma posição de aceitação da irredutibilidade das
propriedades emergentes às propriedades das partes inferiores que se
reúnem formando um sistema. 4 Esse dualismo de propriedades dá
margem a um equívoco ao permitir que a vontade-emergência seja quase
similar à vontade-espírito. Creio que a vontade é uma sensação que
O SITIO DA MENTE

acompanha a sincronização de módulos que processam informação


cerebral complexa e de outros que a redescrevem sob a forma lingüístico-
mental. Nesse processo há uma ação presumida, um piano de ação, e a
sua ambigüidade gera a necessidade de uma instância de processamento
superior. O processamento mental seria uma redescrição do piano de
ação complexa engendrada abaixo da consciência, tendo a função de
resolver impasses - a corroboração ou o abortamento da ação planificada
no nível complexo seriam acompanhados da sensação de atitude
voluntária e livre. A vontade e a liberdade não seriam, assim, funções
mentais, mas sim vivências agregadas à possibilidade de controle das
porções cerebrais superiores - mentais - sobre as porções inferiores,
responsáveis pela geração de pianos motores e interpretações sensoriais.
Há então três instâncias de patologias da vontade:
1) a vontade que se crê ilimitada— porque propriedade do espírito
- é a primeira grande patologia;
2) a vontade que se crê capaz de enfrentar o conhecimento,
tomando-o por matéria de escolha e opinião, é também irrazoável,
constituindo outra defecção patológica volitiva (basta ver na nota 2 do
capítulo 120 caso em que uma ordem judicial determinou a uma doente,
contra a sua vontade, que se submetesse à diálise);
3) a vontade é de uma certa forma a marca da mente, porque
surge juntamente com a linguagem no cérebro humano, diferenciando-
se fortemente como departamento virtual situado preferencialmente na
região frontal (área do neocórtex); como é marca do mental e como
muitos distúrbios mentais se fazem acompanhar de anomalia frontal, é
licito supor que de uma certa maneira toda patologia mental é uma
patologia da vontade, não no sentido de que essa vontade possa superar
o estado patológico, mas, ao contrário, mostrando a limitação de controle
interno do sujeito sobre o processamento cerebral anômalo.
Voltando ao problema da decisão da corte norte-americana,
pensemos até que ponto a vontade poderia agir sobre a disposição
cerebral genética ou adquirida (por consolidação de hábitos e
condicionamentos). Até que ponto alguém, pela força da vontade,
poderia parar de fumar, de usar drogas ou de assaltar a geladeira? O
problema do impulso e de sua base anômala deve ser bem entendido
para que se possa designar quais são as patologias da vontade e seus
limites em condições não patológicas.
O leitor deve se lembrar de que dissemos no capítulo anterior
que, para instanciar funções mentais, os sistemas artificiais não carece-
riam de emoções e de vontade, mas apenas de sentenças que as
PATOLOGIAS DA VONTADE

descrevessem, retratando perfeitamente seu significado. Pois bem, essa


questão torna-se vital quando se trata do problema da vontade e de
suas patologias.
Considero difícil existir no cérebro humano um sistema neuronal
específico (no sentido de departamento concreto) responsável pela im-
plantação da vontade ou da liberdade. O que há é uma designação de
atitudes e pensamentos através de conceitos. Assim, diante de um com-
portamento ou de uma cadeia de idéias, os chamamos de ato livre ou
de ato de vontade. Mas, se grande parte dos significados da linguagem
tem um forte componente cultural e se a cultura tradicional supõe que
a mente esteja desgarrada do cérebro, é fácil entender que aquilo que
se designa como ato de vontade vai muito além do que se poderia
esperar de um ato de "vontade cerebral". (Como apontei no caso da
decisão da corte norte-americana, a vontade que afirmam capaz de deter
o vício não parece ser uma força cerebral que se antepõe a outra, mas
aparentemente uma prerrogativa que emerge de algo que está acima
do processamento cerebral subjacente.)
Imagine a situação de herança genética vinculada a apenas um
gene, como é o caso da determinação de cor dos olhos. O indivíduo,
supõe-se, não tem margem para operações voluntárias sobre a cor de
seus olhos, não podendo alterá-la senão por meio de lentes de contato.
O que ocorre, porém, quando a herança é determinada por um conjun-
to de genes e de circunstâncias vivenciais posteriores - como é o caso
de grande parte das funções mentais? O indivíduo, a despeito de não
poder mexer nos seus genes e no seu passado, teria uma brecha de
vontade e de liberdade para escolher? Creio que não, salvo se considerarmos
que a herança multigênica determina diferentes soluções possíveis para
problemas comportamentais, sobre as quais o controle superior pode agir,
suscitando, ato contínuo, a sensação de ato voluntário e livre.
Se o direito qualifica certas situações como estado de necessidade,
reduzindo a gravidade ou descaracterizando o delito, por que não conse-
guimos enxergar as coações orgânicas como fatores atenuantes ou de isen-
ção de culpa? Será que os alcoólatras que pediram o beneficio à corte
tinham mesmo uma nesga de liberdade para agir de outra forma? Encon-
tramos aqui, novamente, uma série de argumentos não-científicos e pouco
relevantes estatisticamente, do gênero "um indivíduo alcoólatra, com ge-
nética idêntica, deixou de beber". Ora, ciência de caso isolado ou de nú-
meros compatíveis com o acaso simplesmente não é ciência.
O exame da vontade e de sua base neural está diretamente ligado
à nossa concepção dos limites da ação humana, reaparecendo, neste
O SITIO DA MENTE

ponto, a questão da linguagem. Vontade e liberdade são conceitos por


demais contaminados pelas visões culturais que se tem deles. Não acre-
dito que haja sistemas que os relacionem necessária e suficientemente a
mecanismos cerebrais determinados. Há, no máximo, a caracterização
de certas ações controláveis e de outras não.
Toda ação sobre a qual se tem controle poderia ser chamada de
ação livre ou produto da vontade. Por quê? Simplesmente porque, se
havia controle, o sujeito poderia ter agido diferentemente. A liberdade
e a vontade seriam apenas uma parcela das chamadas ações livres e
voluntárias. Isto é, embora a neurociência raramente se arvore em
descrever o sítio cerebral de ambas (liberdade e vontade),
subrepticiamente insere a noção de controle sobre a ação, elemento
que pode redefinir em base neural esses dois conceitos tão atados à
visão cultural da mente.
Toda ação sobre a qual não se tem controle seria, ao contrário,
situação de compulsão, apenas retratatada verbalmente como objeto
de vontade, quer pelo sujeito da ação, quer por seus juízes. Quando
um indivíduo relata que teve vontade (ou não) de fazer algo, não há
garantia de que tenha mesmo havido (ou não) a intenção, apenas se
tem certeza do uso descritivo de sucedâneos lingüísticos de vontade.
Imagine que uma pessoa com determinado perfil metabólico (para
não falar de casos muito mais graves e complicados) diga ter vontade
de emagrecer. Até "mentaliza" (que bobagem!) que quer emagrecer,
mas, no final das contas, não consegue. Passa o dia todo a pão e água,
ou fazendo o regime da moda (sopão, vitamina, shakes e toda a para-
fernália que se renova a cada dia para eclipsar o problema), e à noite
ataca a geladeira com uma incorrigível "vontade" ou compulsão por
carboidratos. Essa pessoa é um desses gordos de pouca força de vonta-
de e de pouca fé? Alguns talvez sejam, outros não. Embora todos afir-
mem a vontade de emagrecer, essa "vontade" é apenas a tradução inte-
lectual de um conceito. Será vontade se houver controle; do contrário,
será compulsão.
Seria interessante examinar as possibilidades de controle que o
sujeito tem sobre determinados atos, seja pelo seu relato, seja pelo es-
tudo de suas condições cerebrais. Nos casos em que mostrasse não ter
controle, não se estaria falando de vontade genuína, mas sim de uma
pseudovontade traduzida no conceito verbal-lingüístico.
Atos voluntários e livres são aqueles em que há comprovadamente
condições cerebrais (e não simplesmente verbais ou imputações exter-
nas) de controle sobre a ação. 0 gordo que pode ser chamado de pes-
PATOLOGIAS DA VONTADE

soa de pouca força de vontade não é qualquer um que tenha falhado


num regime, mas somente aquele que seguramente tivesse controle
sobre seus atos. Esse é exatamente o caso dos distúrbios alimentares,
entre eles a bulimia e a anorexia nervosa. É tolo supor que, pela força
da vontade, esses pacientes possam corrigir seus males, embora
suponham, num deslize verbal, que podem, pela vontade, abortar o
comportamento alimentar anômalo.
Caracterizar cerebralmente o que se entende por controle é difícil.
Lembre-se do exemplo da pessoa drogada contra sua vontade. Um
clérico, dos mais bonzinhos e mansos do mundo, preso por raptores,
recebe injeção de quantidade incrível de drogas alucinógenas. Solto,
comete os piores crimes. E culpado? Obvio que não, porque substâncias
estranhas eclipsaram sua vontade e sua consciência. Pois bem, um gor-
do que não controla sua ingestão de comida também tem "substâncias"
internas, neurotransmissores, que o impedem de agir de outra maneira.
Este, no entanto, é culpado. A diferença é que seus raptores foram seus
pais, que lhe transmitiram uma determinada carga genética, e a droga
não vem por seringas, mas pelo próprio corpo e pela desarmonia de
certos circuitos cerebrais.
Uma nova concepção de vontade deveria emergir do reconheci-
mento da mente como função cerebral. Isso talvez reduzisse a pena e a
culpa de muita gente injustamente acusada. Por outro lado, desapare-
lharia uma estrutura de julgamento social e jurídico baseada numa no-
ção arcaica de mente. Enquanto não formos capazes de fornecer limites
cerebrais para os atos voluntários de modo a instrumentalizar as insti-
tuições na tarefa de julgar, deveremos pelo menos advertir quanto ao
equívoco de se supor que a vontade e a liberdade sejam ilimitadas.
Não sabemos até que ponto um indivíduo tem ou não controle
de sua ação. Podemos afirmar apenas que, nos casos de patologia men-
tal, a possibilidade de que não haja vontade genuína em jogo é imensa.
Ou seja, mesmo parecendo agir de forma intencional e livre, o indiví-
duo não tem nem vontade, nem liberdade intactas. Aqui, a qualificação
de ambas, a presunção de sua presença, baseia-se mais num equívoco
lingüístico-cultural do que numa hipótese de base neural.
Imagine que, no tribunal, um gordo chore e confesse que pode-
ria ter deixado de comer aquela torta de morangos. Expressa com•sin-
ceridade e contrição seu ato de desobediência. Porém, descobre-se, anos
depois de sua execração em praça pública, - que não tinha controle de
seus atos. Mostra-se inequivocamente que, dadas certas condições dos
circuitos cerebrais, há um disparo irrefreável do comportamento come-
O SiTIO DA MENTE

dor de tortas. O indivíduo, que poderia ter sido medicado ou tratado,


foi julgado pela sua transgressão, tendo de confessar, como nos tribunais
da Inquisição, sua culpa e seu arrependimento. Estava convencido de
que poderia ter agido diferentemente. No entanto, como no caso de
passar uma flanela na tela do computador para corrigir um defeito da
máquina, isso não tem valor algum. Mesmo o réu confesso pode ser
vítima da imagem que tem de si. Quando fala de como poderia ter
agido é guiado por uma concepção errada de mente, que lhe foi inculcada
desde a infância. Seu discurso é tão ignorante quanto a acusação. Am-
bos, acusado e acusadores, navegam numa presunção verbal de vonta-
de que, ilimitada, é muito diferente do que pode ser uma vontade cere-
bralmente determinada.
O problema das patologias da vontade tem, então, duas grandes
vertentes: uma diz respeito à qualificação da vontade genuína, aquela
em que há controle; a outra remete à pseudovontade, aquela em que há
apenas a descrição linguística de um ato de vontade. E passa também
pela qualificação ética: o fato de alguém ter vontade de infringir o direi-
to alheio, os costumes ou a lei deve ou não ser encarado como uma pa-
tologia da vontade?
Ter vontade não necessariamente qualifica o crime ou a patologia
(desde que se entenda a diferença entre vontade cultural e vontade
cerebral). Já praticar um ato em flagrante transgressão de uma norma
ou valor aceito caracteriza uma patologia da vontade, por não ter sido
ela capaz de se inibir diante do conhecimento de sua natureza incompa-
tivel com certos valores.
Não precisamos ir longe a ponto de pensar no indivíduo aberrante
que, num determinado momento, declara ter tido vontade de atear fogo
num casal de velhos. A própria descrição do caso é difícil porque, ao
mesmo tempo em que declara ter agido por vontade, o indivíduo revela
não saber o que aconteceu por ter sido invadido por uma compulsão.
Não creio que a vontade tenha, aqui, muito a dizer, senão que há uma
compulsão destrutiva que, apesar de requerer tratamento e encarcera-
mento, não admite julgamento dentro dos limites de um ato realizado
sob circunstâncias normais de controle.
De modo geral, não sabemos quando uma pessoa pode controlar
seus atos, mas sabemos quando não pode. Isso indica a necessidade de se
prevenir e corrigir precocemente qualquer mau funcionamento cerebral.
Se se pretende manter o julgamento da vontade com base na tradição, que
pelo menos se garanta que o sujeito tenha condições cerebrais ideais de
operação. E atente-se para o fato de que condições anormais não precisam
PATOLOGIAS DA VONTADE

ser o extremo da psicose ou do retardo; podem perfeitamente ser


ansiedade ou depressão.
Os conceitos de vontade e de liberdade devem ser totalmente
revistos numa concepção cerebral da mente. Se antes supúnhamos que
os atos podiam ser julgados como voluntários ou involuntários, agora
talvez sejamos forçados a crer que, em grande parte, os atos voluntári-
os são, na verdade, pseudovoluntários. Neste caso, ou se passa a
desqualificá-los como dolosos, ou se passa a fundar a trangressão não
na vontade, no dolo, na intenção e no controle, mas sim no seu potenci-
al destrutivo do interesse comum. Não haveria, assim, conflito entre
uma neurobiologia que explicasse os determinantes cerebrais dos atos
e um sistema social e jurídico que punisse o desvio daquilo que é con-
siderado e aceito como suporte do bem comum. Para situações em que
há flagrante dano à sociedade, não importa a qualificação de voluntário
ou não; para outras, no entanto, isso pode servir de atenuante. Ao
leitor que se indignar com esses exemplos, reportando-se à imensa
massa de evidências vinda dos tribunais, no afã de mostrar que não há
tanta distância assim entre a nova mente e a antiga, argumentarei di-
zendo: às vezes, o tribunal de que falo, esse júri e esse juiz implacáveis
não estão na instituição jurídica, mas na casa, no trabalho e na escola.
Lá, embora haja atenuantes para uma vontade que não se expressa
devido à presença de patologia mental leve, o indivíduo, além de do-
ente, tem de ouvir a cantilena ignorante sobre a suposta vontade que
deveria recrutar para resolver seus males.
Uma noção cerebral da vontade é um dos pontos críticos na
reordenação da cultura e dos costumes com base numa nova concep-
ção de mente. Não apenas a tradição estará ameaçada como todo o
conjunto de soluções dinâmicas processadas por comissões virtuais
nos últimos 25 séculos deverá ser revisto, a menos que se prefira, por
razões de estado, manter a ignorância como base do julgamento do
que se entende por ato voluntário ou não. Num projeto menos
ambicioso, talvez convenha rever os limites da vontade e também seu
grau de afecção nas doenças mentais, quando se faz anômala e, ao
mesmo tempo, mais do que nunca necessária para auxiliar a droga e o
médico. Daí se dizer que sempre haverá algum grau de afecção da
vontade na patologia mental individual. Talvez também na coletiva,
mais sutil, mas ainda assim fundamental para a distinção entre realis-
mo e utopia.
Na próxima parte deste livro - A Mente Organizada -, trato de
alguns eixos sobre os quais se podem alocar outras funções mentais. Se
O SITIO DA MENTE

a consciência é o pano de fundo, o pensamento, a emoção e a vontade


seriam os protagonistas principais de uma visão do mental.
Em A Mente Organizada veremos: a atenção (sucedâneo neuro-
biológico da consciência), função não contaminada durante todo o traje-
to da mente informada pela cultura; a linguagem, obra máxima da bio-
logia e exclusiva do ser humano; a memória, função ambivalente por-
que, mesmo estando presente em toda escala animal, no homem encontra
reformatação absoluta, uma vez que não é só traço, mas também corpo
vivo que norteia a identidade do indivíduo e da sociedade; a personali-
dade, conjunto de tipos de funções que assume contornos novos, per-
mitindo a psicopatia no nível individual e a ideologia no nível coletivo;
o sonho, passageiro também ambivalente porque situado nas entra-
nhas do processo cerebral e, ao mesmo tempo, cifrado na seguinte ordem
ambivalente de razões: de um lado, consciência desacoplada do meio e,
de outro, possível mensageiro do reprimido; e, finalmente, a consciên-
cia, não mais sob a forma de descrição, mas organizando a plêiade de
funções mentais (esboça-se uma teoria para ela).

SÍNTESE

Toda patologia mental é de uma maneira ou de outra uma pato-


logia da vontade. Grande parte delas envolve os lobos frontais, respon-
sáveis pela ação voluntária e fornecedores de quadros para as comis-
sões que forjam o mental.
A requalificação da vontade com base cerebral parece contraditó-
ria. Não é. Passa, porém, pelo exame de algumas peculiaridades: a)
nem toda vontade expressa verbalmente como tal é vontade neural; b)
como a vontade é sobretudo um problema de controle, devemos não só
estudar as razões que levam à emergência da sensação de vontade e de
liberdade na consciência, mas também entender por que mecanismos
se inibem ou se ratificam certos planos.
A vontade de que falamos na linguagem é ilimitada, parente dos
deuses, embora limitada pela alegoria divina. A vontade cerebral é um
vetor que se soma a outros, resultando daí comportamentos que podem
ser imputados cientificamente como voluntários ou não.
PARTE IV
A MENTE ORGANIZADA
0 SITIO DA MENTE
ATENÇÃO

Capítulo 17

ATENÇÃO

A atenção é uma das funções mais críticas do cérebro huma-


no. Também é função mental, por vezes tida como única possibilidade
de reconciliação entre os achados cerebrais e o fenômeno da consciência,
algo capaz de substituí-la, purgando a contaminação cultural do conceito
e mantendo apenas aquilo que pode ser neurologicamente pesquisado.
Atenção e consciência, porém, não são sinônimos e também não são
faces mais neurológica e mais filosófica, respectivamente, de um mesmo
fenômeno. A atenção é mais primitiva e, portanto, presente em qualquer
animal. Nem por isso deixa de ter importância dupla: enquanto função
cérebro-mental pode adoecer; enquanto alegoria coletiva pode desviar.
Um determinado nível çle alerta é fundamental para que haja con-
dição de se pensar em atenção. Este nível, também considerado vigília
plena, é o que mantém o cérebro em constante preparo para desempe-
nhar suas funções, recrutando para seu funcionamento uma complexa
orquestração de subsistemas que vão desde o tronco cerebral até o
córtex (basicamente chamado de sistema reticular ascedente). Pela
natureza da atenção, percebe-se que não é fenômeno exclusivamente
humano, estando presente em praticamente todo o reino animal. O estar
desperto depende tanto de um processo de tonificação de diversos de-
partamentos cerebrais, quanto de um determinado mecanismo cortical
responsável pela seleção de objetos de atenção e interesse. Há, então,
dois mecanismos em jogo: o ascendente, que mantém o sistema apto a
oferecer os candidatos à atenção, e o cortical, que os seleciona, tal fosse
foco móvel sobre protagonistas no palco.
O córtex cerebral está todo o tempo emitindo um "facho de luz"
na direção da informação que chega da periferia (isto é, dos sentidos,
do mundo). Essa informação costuma ter no tálamo e no hipocampo
sua via final de representação. O córtex emite, então, "fachos de luz"
(na verdade são oscilações procurando outras ondas de oscilação para
sincronizar) sobre vários contextos possíveis representados no tálamo e
no hipocampo. A atenção poderia ser assim descrita: devido à prévia
O SITIO DA MENTE

expectativa, interesse, motivação e perigo, certos contextos são


escolhidos e não outros. Dos vários objetos que podem chegar à
consciência, e chegam de uma maneira mais ou menos viva, apenas
alguns se tornam foco de atenção.
Quando um par se estabelece, resultado de uma expectativa
cortical e de uma presença confirmada em uma região subcortical, ocorre
a sincronização. Essa sincronização é responsável pela maior nitidez do
objeto na consciência e pelo recrutamento de esforços generalizados
para se dedicar a ele.
Vamos voltar à empresa hipotética e entender como isso funcio-
na. O antigo modo de encarar o cérebro estava fundamentado na idéia
de que a informação entrava pela periferia e depois de sucessivas análises
chegava aos departamentos centrais. Isso mudou, e a nova concepção é
a seguinte: o córtex envia uma "expectativa", uma teoria, um "ponto
de vista", e a periferia é recrutada para completar ou não aquela hipótese.
E como se a presidência da empresa, em lugar de esperar que as
informações cheguem pelos departamentos concretos mais baixos,
transitando por todas as vias corriqueiras, para só então se manifestar,
passe a conferir, todo o tempo, quais informações estão sendo
processadas nos departamentos de entrada, focalizando de maneira
rápida naqueles que parecem relevantes para a confirmação de alguma
posição.
Essa forma de atuação faz com que, a par do uso das comissões
virtuais, também se use um modo em que a informação transita tanto
de baixo para cima, quanto de cima para baixo. A presidência (ou, no
cérebro, o córtex) evita com isso que informações preciosas possam ser
desprezadas em etapas mais baixas da hierarquia porque o pessoal
menos qualificado não foi capaz de perceber sua importância.
O córtex envia mensageiros à cata de corroboração para suas
hipóteses; poder-se-ia atribuir essa função à consciência, mas para
situações rotineiras cabe à atenção substituí-Ia na tarefa. A atenção faz
o papel de serviço paralelo à consciência, cuidando do exame e da
confirmação de certas hipóteses, sem que a consciência tenha senão
uma participação periférica no processo. Lembra um pouco aquela
situação de filme em que o político que não quer sujar as mãos instrui
de maneira vaga um emissário: "Você sabe o que fazer." Jamais diz
para matar alguém. O emissário sabe que hipóteses deve privilegiar e
que outras descartar, trazendo ao chefe apenas o resultado pronto ou
as discrepâncias. Isso é interessante porque pode iluminar um ponto
de distinção entre atenção e consciência: a primeira, presente em qualquer
ATENÇÃO

animal, segue rotinas gerais; a segunda cria essas rotinas. Se no animal


está pré-gravado o que deve ser foco de atenção, não há motivo para
sobrepor consciência; no ser humano a consciência reparametriza todo
o tempo os novos objetivos, fazendo agora da atenção mero instrumento
de execução. O animal pode ter apenas atenção, na medida em que o
contexto a ser enfocado é imutável; a consciência que comanda a atenção
no animal inferior é sua história biológica e sua posição de sobrevivência;
no ser humano, em cada cabeça pode haver uma sentença, fato que traz
a consciência da história da espécie para a história pessoal.
As hipóteses corticais dirigem o organismo, através da
sensorialidade e das ações motoras, tal fosse veículo de confirmação e
refutação. É como se a própria presidência estivesse todo o tempo
interferindo na função dos departamentos mais baixos, por onde entra-
riam várias informações novas e oportunidades vitais (lembre-se de
que no cérebro não há possibilidade de se dirigir diretamente à
presidência, sendo preciso sempre seguir o caminho físico da periferia
para o centro, ou dos departamentos tradicionais de entrada para o
topo da hierarquia).
Na empresa-cérebro, portanto, temos os seguintes mecanismos
responsáveis pela tramitação de informação: a) de baixo para cima, via
departamentos concretos, sem decisão final da presidência (mais
tradicional); b) de baixo para cima, via departamentos concretos, com
decisão final da presidência; c) de baixo para cima, via departamentos
concretos, com parecer da presidência para que se nomeiem departa-
mentos virtuais e decisão via departamentos virtuais e/ ou presidência;
d) de cima para baixo, via departamentos concretos e via departamen-
tos virtuais, com decisão final dos departamentos e/ ou presidência; e)
de cima para baixo, através de encomenda de pesquisas de mercado,
pesquisas de campo, utilizando as vias acima.
A atenção é, de uma certa forma, um mecanismo que faz os dois
caminhos. Tanto determinadas informações, pela sua relevância ou
perigo, são imediatamente transferidas para a presidência (imagine uma
notícia ou situação de perigo enquanto se faz uma tarefa ou mesmo
enquanto se dorme - é bom perceber isso porque, se toca uma sirene
de incêndio enquanto se está dormindo ou se uma criança chora, o sono
é interrompido), quanto ela também se incumbe de estar todo o tempo
vasculhando o que está chegando, de tal sorte a focalizar a atenção
naquilo que pode interessar.
Esses conceitos suscitam algumas reflexões acerca do cérebro
humano: a) o cérebro está constantemente monitorando o meio ambi-
O SÍTIO DA MENTE

ente; b) não é o meio que formata o cérebro, mas o cérebro que tem
idéias e teorias e as confirma ou refuta com testes de campo; c) quanto
mais treinada for a área central (o córtex), melhor monitoramento das
informações será feito e melhor compreensão da natureza dessas
informações haverá; d) a atenção dependerá de interesse e motivação
(quer dizer, quando a presidência detecta uma oportunidade real vinda
de um departamento inferior, quase paralisa uma série de operações
rotineiras, recrutando funcionários de praticamente todos os departa-
mentos concretos para se sentar em uma comissão virtual e analisar o
fato); e) como há expectativas prévias sendo constantemente geradas
pelas áreas centrais (córtex), o papel da periferia é confirmar ou refutar
a hipótese; f) a consciência está para a atenção numa relação de hierarquia
- mais sofisticada, elege prioridades que a atenção executa.
As teorias geradas no córtex são tão fortes que o sistema tem
baixíssima tolerância à falta de coerência. Por vezes, se não forem dadas
respostas claras de sim ou não pela periferia (pelas pesquisas de campo),
o córtex iniciará uma fantasia ou fabulação.
Esse tópico corresponde a um dos mecanismos mais interessan-
tes do sistema nervoso, merecendo explicação. Quando se amputa um
braço, o indivíduo continua por muito tempo sentindo o braço. E a
chamada dor do membro fantasma. Isso se deve ao fato de que o córtex
está todo o tempo mandando mensagens confirmando a presença do
membro. Como supõe que o membro está lá, dificilmente se desconfirma
sua presença. Ao mínimo sinal de presença dele (as terminações nervosas
do coto continuam a mandar informação), fecha-se uma história de que
o membro continua presente. Com a visão acontece algo parecido:
embora haja um ponto cego na nossa retina (onde não há células capazes
de detectar luz), não aparece um ponto cego na nossa visão consciente.
O sistema se encarrega de preencher aquele ponto cego com uma
hipótese de unidade.'
Portanto, ao lado da geração de hipóteses constantes, o córtex
tem, juntamente com o resto do sistema, uma necessidade de coerência
e de unidade. A coerência e a unidade são responsáveis pela geração
de teorias sobre o mundo e sobre o estado atual do organismo. Os
sentidos têm, assim, o papel de confirmar ou desconfirmar essas hipó-
teses. Quando estão desacoplados, ou funcionam mal, podem gerar
um funcionamento autônomo das teorias corticais, situação em que o
indivíduo fabula sobre algo e não tem condições de verificar-lhe a
verdade ou falsidade. (Veremos adiante que na verdade o córtex é como
que um candidato sem votos; pode ter plataforma, mas não tem assento
no real. Desespera-se com a falta de compreensão e começa a fabular
conspirações, até que desorganiza o discurso. O sonho é uma consciência
não corrigida e prestigiada pela sensorialidade. Embora se mantenha
intacta em alguns momentos, tende a desestruturar-se.)
Um quadro interessante exemplifica a idéia de um córtex que
confirma hipóteses. Um indivíduo que tem sua retina destruída e uma
perda de visão instantânea pode entrar num quadro psicótico em que
insiste continuar enxergando. Perguntado sobre o que está vendo,
começa a fabular uma cena. Nega peremptoriamente a cegueira, embo-
ra esteja absolutamente cego. O córtex, tendo necessidade de fechar
uma teoria coerente, simplesmente elimina a informação de que perdeu
um sentido (neste caso a visão) e continua a processar suas teorias
como se aquele sentido não estivesse ausente. Isso explica, de uma
certa maneira, certos tipos de estado psicótico e algumas peculiarida-
des que serão descritas mais à frente sobre o sonho.
A necessidade de coerência também explica, de uma certa forma,
o porquê de um estado de desconforto que se instala diante da incerteza.
Suponha que a empresa esteja pressionada por resultados e que, diante
de uma oportunidade surgida, não se consegue chegar a um
determinado consenso. As comissões virtuais começam a gerar intrigas
e a tentar fazer jogos de pressão para fazer valer suas opiniões. Isso
leva a um lento processo de deterioração do espírito e do clima da
empresa.
Também no cérebro o que acontece diante de histórias que dizem
respeito a fatos que não fecham, que não têm coerência, que não são
confirmados ou desconfirmados pelos sentidos, é a instalação de um
estado ansioso generalizado. Essa ansiedade pode gerar, na continua-
ção, um comportamento irracional de busca de soluções apaziguado-
ras. A fabulação na ausência de confirmação de hipóteses sensoriais é
parente da ansiedade e da mitomania que não encontra corroboração
para hipóteses mais complexas. A hipótese sobre a visão é uma sentença
isolada que precisa ser verificada ou refutada. A hipótese mais ampla é
um discurso, tendo de ser confirmado não mais pelo exame da verdade,
mas da consistência ou do poder. Geramos hipóteses amplas no mundo
córtico-mental e saímos à cata de confirmação: a aceitação coletiva, o
aplauso, costuma substituir, no nível da hipótese-discurso, o papel dos
sentidos no nível da hipótese-sensonalidade.
O presidente da empresa, diante de um dilema amplo, do tipo
que acabei de chamar de hipótese-discurso, também chamado de
cenário, onde não há uma solução certa e outra errada, mas ambas
O SÍTIO DA MENTE

defensáveis, joga os dados para decidir ou consulta uma vidente.


(Imagine que há uma pendência sobre diminuir a atividade da empresa
a quase zero para não gerar mais prejuízo ou elevar o investimento às
alturas, tentando, com economia de escala, baixar custo e ganhar
mercado.)
Se não há resposta para um impasse dessa ordem - hipótese-
discurso -, jogar os dados será infinitamente mais racional que consultar
a vidente. Configura-se na aposta uma solução para problemas terríveis
como a parada da máquina de Turing (o único problema é que para
resolver a parada da máquina precisaríamos de dados tão perfeitos que
não trouxessem determinismo escondido por trás de sua suposta
aleatoriedade).
Quando se chama uma vidente, o que se está fazendo é procurar
alguém que conte uma história irreal com o fito de fechar a coerência
que está faltando. Faz-se isso, no entanto, com prejuízo de toda a lógica
da empresa e de sua constante busca de excelência, qualidade, transpa-
rência e honestidade. Cedo ou tarde os frutos dessa história mal conta-
da, que serviu apenas para aplacar a falta de consenso naquele instante,
vão aparecer e provocar perdas.
Entender que a mente representa um discurso mais amplo que a
mera sensorialidade ou motricidade animal e que a confirmação e
füáde suas hipóteses carece de exame de variáveis, não mais
veritativas mas também de coerência e plausibilida,grande salt
vara aualauer um de nós. Ao se ioar os dados. mostra-secomiio
que se entendeu a natureza da ind cciso.
A solução através da vidente retrata fielmente o que ocorre hoje
em dia - época tão cheia de incertezas gerando ansiedade que apela às
explicações mais mirabolantes. Quanto mais estranhas e fantasiosas,
falando de vidas passadas, de outros mundos, de espíritos e perispíritos,
tanto mais serão elas que ganharão a confiança como portadoras de
uma coerência de que o sistema precisa. A tecnologia pode ter criado
um paradoxo: gerou tanto conforto que deixamos de ter emprego; gerou
tanto conhecimento para nos fornecer produtos de alta tecnologia que
deixamos de ter que saber qualquer coisa - a nós agora é dado gozar o
mundo da tecnologia de parque de diversões; quando preocupados,
deixemos os duendes ou os anjos resolverem o problema.
Hipóteses corticais mal educadas -
nairracio a e; melhorseria jogar dados, conservando o acaso com
sua aura de mistério e não o travestindo de ilusão qualitativa (a quantitativa
não existe, urna vez que a eficácia da irracionalidade é baixa).
ATENÇÃO

O SENTIDO EXTRA QUE CORROBORA DISCURSOS HIPOTÉTICOS

A ansiedade é, então, um fruto comum de quaisquer histórias


que não fecham, de hipóteses e eorias que, geradas no córtex, não se
confirmam nem se refutam nos sentidos ou no mundo..Equando não se
podem confirmar ou refutar teorias pelos sentidos ou pelo exame direto
g situações do mundo? LEé o caso dos cenários futuros. das teorias
e hipóteses científicas,
Toda vez que estamos tentando prever o futuro, por exemplo o
comportamento da população diante de uma determinada medida
econômica, ou quando estamos formulando teorias e hipóteses científi-
cas, não temos o apelo aos sentidos, nem ao mundo, na medida em que
aquilo diz respeito a um fato futuro ou a um conhecimento ainda não
estabelecido. Nesse momentoq1e o cérebro humano exibe uma de
suas maiores cavacidades. Não trocura exi,licacão em ritos máeicos,
nem gera ansiedade. Pe1o"coiirio, kera a —eãpécie sentido era
que verific tcia, a plausibilidade e a consistência da hipótese.
Cria modelos simplificadDs e testa pedaços da teoria. Cria contra-
argumen contraprovas. Cria experimentos imaginários nos quais a
razão deve investigar os desdobramentos, como se aauilo estivesse de

cria
uma pcela verificável ou, melhor ainda. refutável, e realiza o teste.
Quando essa razão que deveria nortear a mente falha, então é
preciso que o sentido extra s a substituído pela provaeanda e pelo

Tusto aue vence, é o forte. Pascal

desrazão e acabamos assistindo ao inverso: o que é forte se tomou,

mantida. Mas &que 1!reço? 2

PATOLOGIAS DA ATENÇÃO

A atenção é, assim, uma função com forte apelo a roubar um


pouco da cena da consciência. Se, por um lado, a consciência é o palco,
a atenção é o facho de luz que ressalta pedaços da cena. Ambas se
completam e confundem. Não haveria sentido em existir palco se não
houvesse luz, nem luz se não houvesse palco. Representa também uma
função que pode estar desregulada em situações primárias (patologias
O SÍTIO DA MENTE

primárias da atenção) ou em decorrência de grande parte das


desregulagens mentais.
A atenção está primariamente afetada em alguns quadros que se
manifestam preponderantemente na infância e na primeira idade escolar.
A criança tende a não focalizar certas tarefas, a ser irritável, dispersiva,
ter mau aproveitamento, etc. Embora o diagnóstico e o tratamento sejam
tarefas relativamente técnicas, fora do âmbito deste livro, é preciso estar
atento ao fato de que não é com castigos ou permissividade que se
tratam tais episódios.
Distúrbios de leitura, bem como certos casos de excitação excessiva,
podem estar associados a problemas de atenção. Cada um destes quadros
merece cuidado e é importante que se esteja imbuído de uma concepção
cerebral da mente, de sua potencial desregulagem, para que não se
façam experiências intuitivas nem se apliquem métodos de uma
pedagogia discutível para sanar distúrbios mentais. 3
Nas depressões, ansiedades e outros transtornos do humor cos-
tumam aparecer falhas de atenção. O indivíduo relata estar com dificul-
dade de concentração e contaminação excessiva do ambiente. E o que
se chama de perda ou diminuição da atenção voluntária e aumento da
atenção espontânea.
Como dissemos anteriormente, o fato de que a atenção focaliza
um determinado objeto de interesse ou de importância e recruta uma
série de áreas para trabalhar em cima daquele problema exemplifica
alguns dos desdobramentos dos problemas de atenção. A grande pre-
judicada passa a ser a memória. A capacidade de retenção diminui,
bem como o recrutamento de bancos de memória e manipulação inte-
lectual dos dados. Grande parte dos problemas relatados como falta de
memória ou desempenho intelectual fraco está relacionada com
distúrbios primários ou secundários da atenção.
O tratamento pode envolver uma variada gama de exames e o uso
de diferentes remédios. Na maior parte das vezes é sanável, bastando
que se percebam alguns de seus traços e que se procure ajuda
especializada. Antes de se estabelecerem complicadas hipóteses acerca
de dificuldades pessoais, explicações sobre o contexto de vida da pessoa,
seu passado, seu ambiente familiar, é preciso verificar se há alguma
explicação cerebral mais simples, de teste mais direto e de eficácia mais
comprovada. Isso, no entanto, não exclui a possibilidade de que, se o
mecanismo de atenção é dependente de interesse e motivação, estejam
ocorrendo problemas de má adaptação ou de falta de estímulo
adequado.
Uma classe de aula muito hierárquica (é preciso lembrar do exem-
plo do poder dado anteriormente), um ensino muito linear, um trabalho
muito repetitivo, uma falta de correlação e significação para as míni-
mas coisas e finalmente a falta de estímulo à opinião crítica e a uma
certa rebeldia tendem a criar problemas de motivação e interesse que
desembocam em distúrbios de atenção. A pessoa que executa rotinas
de maneira vassnzaeuma esecie de desatento cortical: trai a mente
ue tem de melhor - a criação contínua de cenários novos e de

Como há um claro fenômeno de teste do córtex sobre as informa-


ções que vêm da periferia, quanto mais hipóteses for capaz de gerar,
tanto mais fácil será para a atenção encontrar um meio de sincronizar
expectativas corticais e aportes sensoriais. Isso fala em favor da geração
de um contexto de relações rico e intrigante. ]dayez que um objeto se
esentad?fra.Jito raa e com poas correlações, tem o
,otilal de gerar problemas de motivação. A atenção, nesses casos,

reconhecerem as correlações significativas no


tarae, no campo ao sennao extra que vermca aiscursos e cenanos.
Imagine que uma criança está aprendendo o que é uma cadeira.
Dizem-lhe que uma cadeira é algo que serve para sentar. Toda vez que
seu córtex gerar hipóteses sobre cadeiras vai procurar apenas "sentar"
na periferia como elemento de atenção. Por outro lado, se ensinarem
que cadeiras são feitas de vários materiais, de vá—rias-Tormas,
— que servem
ira a vovó sentar e contar histórias, que podem voar em tábulas, as
hipóteses geradas pelo córtex sob o rótulo cadeira encontrarão um sem-
número de elementos vindos da periferia para sincronizar e despertar
interesse.
Dessa maneira, não há como negar que, se há uma gama de
afecções primárias e secundárias da atenção que merecem tratamento
com remédios de maneira que seja possível voltar ao normal, também
há um enorme despreparo na tarefa de mobilizar atenção e interesse.
Isso não se faz apenas com recompensas materiais, elogios ou com
tirania. Isso se faz, princip a lmente, aparelhando o córtex com uma teia
tão rica que suas teorias encontrem todo o ternpo, nos aportes sensoriais,

que apenas encontrem aí uma atenção provisória serão descaadas_pe1a


siiipoucavali. Outras. no entanto. gerarão imenso poder do
cr iativida de- A atenção, nesses casos, não deixará jamais de estar
funcionando, iluminando todo o tempo candidatos a confirmar hipóte-
O SITIO DA MENTE

ses centrais. Em se conseguindo manter acesa a atenção, e isso se faria


nesse caso através do aparelhamento múltiplo, variado e horizontal do
córtex, o resultado a médio prazo pode ser bastante significativo.
De maneira sim glificada, ode-se dizer que tanto mais atenção se
recruta uanto m a 1 lo se faz o o 1 o de si ica de cada
objeto. (0 estudo e o trabalho deverão ser alimentados ao máximde
significados paralelos, de busca de rela cões múltiplas para cadjma.
Isso reaviva o processo deprocura de respostas relevantes no mundo.
Por outro lado, é-— um fato que, por vezes, essa atenção deve ficar
suspensa, ausentar-se um pouco da sensorialidade e do mundo e
debruçar-se sobre si.

ATENÇÃO E REFLEXÃO

O papel da reflexão, da elaboração de hipóteses internas (o que


não deixa de ser uma atenção que focaliza aquele sentido extra que o
cérebro humano tem, a capacidade de criar), de uma atenção flutuante,
tem grande importância na consolidação de certas teorias corticais.
Se você pensar no caso de nossa empresa, verá que três atitudes
são vitais e complementares: a) de um lado cumpre à presidência pro-
curar em cada departamento concreto sinais que atestem que uma
informação relevante ou uma grande oportunidade está chegando; b)
também cabe a essa mesma presidência manter sua capacidade de cada
vez melhor discriminar novas oportunidades; assim a reflexão, o
pensamento, o estudo e a informação cruzada e horizontal somente a
farão ter cada vez mais condições de perceber um traço análogo a um
grande negócio quando este surgir num dos departamentos concretos;
c) a chamada atenção flutuante é uma espécie de atitude que mostra
que por vezes devemos deixar o sistema semi-alimentado pela
sensorialidade e ao mesmo tempo em condições de operar outras
funções; na nossa empresa isso equivaleria ao presidente que percorre
os departamentos à cata de informações, mas que ao mesmo tempo
não o faz de maneira acintosa, de tal sorte a não inibir o funcionamento
normal desses departamentos.
- Essas três formas de atenção, uma ligada aos sentidos (e portanto
ao mundo), outra ligada à reflexão e ao acúmulo de informação teórica
e intercontextual e, finalmente, uma espécie de síntese de ambas, for-
necem a chave para corrigir de maneira adequada problemas de aten-
ção que não tenham desregulagens neuronais na sua base. Essas deve-
rão ser diagnosticadas e tratadas sem que se faça apelo a explicações
ATENÇÃO

estapafúrdias. Por outro lado, o fato de estar desregulada na maioria


das patologias mentais mostra o quanto temos uma série de fenômenos
inter-relacionados nessas síndromes, embora a afecção primária seja
em um ponto ou em outro.
Grandes inteligências e grandes conquistas são menos questão
de capacidade de processamento e mais capacidade de estar apto a
extrair pistas relevantes de cada processo. As chamadas pessoas dotadas
de grande sensibilidade ou de capacidade de "descobrir coisas" têm na
verdade uma atenção de rastreamento imensa, usando toda a informação
ambiental para, de maneira rápida, corrigir a rota de seu discurso e de
suas condutas.
Há quem defenda que o distúrbio nas desregulagens do humor
seja primariamente da atenção. Enquanto que na euforia maníaca a
atenção está exacerbada e, portanto, enfocando todo e qualquer traço
ambiental como relevante, na depressão haveria uma incapacidade de
correção ambiental de certas idéias que tendem a se tornar ruminantes,
reverberantes e monótonas.
O problema da ansiedade é contraditório em relação à atenção.
Se, de um lado, pode-se imaginar que a ansiedade é positiva porque
demonstra uma mobilização rumo às pistas ambientais, às novas opor-
tunidades que se escondem a cada passo, por outro lado, a pressa e o
desgaste tendem a bloquear mecanismos de recrutamento neuronal que
são fundamentais para a consolidação do pensaiiiento, do juízo e da
memória.

de corroborar ou refutar nossas teorias. Assim, não há como negar que


há uma oposiçãc ntre informação e conhecimento.. Enquaflto o
conhecimento depende basicamente da geração de teias coneeituaisno
_______ e apenas para estimular, através da atenção,
re asjiã.

O que se vê, no entanto, é uma ênfase na atenção como se fosse


mecanismo primário, criando-se uma série de recompensas para que o
indivíduo fique "ligado". Mas, se ficar atento a algo que não sabe ver
(isto é, para o que não existe teoria prévia cortical), tenderá a não fazer
nada ou a fazer grandes besteiras com essa informação. Por outro lado,
a pouca ênfase na elaboração de cenários hipotéticos, o excessivo
pragmatismo e concretude das idéias em voga, do treinamento e da
educação dos indivíduos cria um experimentalismo rudimentar.
O SITIO DA MENTE

A atenção procura somente no mundo, ou no mercado, ou na


satisfação do consumidor uma prova para suas teorias. O fazer teorias
que não digam respeito imediato ao mundo, justamente porque tratam
de mundos possíveis e não do mundo concreto de agora, é pouco
estimulado, e o mesmo acontece com o sentido extra, que não é mais a
visão, o olfato, o paladar, ou o que o valha. É a coerência, a consistência
e a plausibilidade de certos modelos.
A atenção, quando nos tomamos civilizados, mormente agora com
o endeusamento de uma visão de mercado, deixou de ser um atributo
neuronal que vasculha o alimento e evita o perigo. Agora anda à espreita
de oportunidades, de achados, de "tacadas ". Desse jeito, deixa de ser
atenção e passa a ser um par de olhos arregalados, espertalhões, prontos
para abocanhar um negócio, mas dificilmente aptos para gerar interesse,
motivação e empreendimento genuínos.

SÍNTESE

A atenção é uma função importante na relação do cérebro com a


mente. Para alguns seria a consciência purgada de vocabulário filosófico.
Não é. Se a consciência investiga grandes cenários, a atenção executa
pequenas rotinas. Para isso aportam-lhe, dos sentidos, informações. Focaliza
aquelas que são relevantes para uma teoria prévia. Nos animais, essa teoria
não requer consciência porque imutável e gravada na história da espécie.
No ser humano varia em cada cabeça. Portanto, a consciência gera a hipótese
geral e a atenção vai à cata de corroboração e refutação.
As hipóteses, no entanto, podem ser simples ou complexas. A hipó-
tese sensorial busca confirmação nos sentidos. A hipótese discurso,
complexa, busca confirmação em um sentido extra. Não são mais os
sentidos que respondem sim ou não a uma sentença simples. E a razão
que estabelece plausibilidade para discursos, através do exame da validade
e não da verdade.
Os impasses podem ser resolvidos pelo jogar dados; em vez de
consultar a vidente, a percepção de indeterminação de certas respostas é
momento máximo da razão.
Distúrbios da atenção podem ser qualificados tanto do ponto de vista
neuronal quanto mental. Nas patologias mentais de base cerebral há nítido
comprometimento da atenção. Nos distúrbios mais gerais, pode-se dizer que a
atenção está em xeque: a) porque se tomou esperteza; b) porque deixou de ser
busca ativa de confirmação de hipóteses de conhecimento para ser consumo
de versões impingidas pela propaganda e pelo mercado.
LINGUAGEM

Capítulo 18

LINGUAGEM

A linguagem é função específica do cérebro humano, não


existindo nos outros animais, embora se localizem neles traços rudi-
mentares de códigos de comunicação.' Entre suas características, cha-
ma a atenção a capacidade de produzir infinitas sentenças a partir de
um conjunto finito de regras e símbolos. Não é codificação estanque:
pode-se dizer uma mesma coisa de variadas maneiras; isso, ao contrário
de inflacionar a comunicação, permite que se captem sutilezas, próprias
dos cenários complexos.
Há um corpo fixo e profundo de regras de geração das cadeias
significativas. Na superfície distinguem-se outras classes de regras
gramaticais, estruturas lexicais (palavras) e significados transitórios e
mutáveis. Embora possa haver variação extrema na porção superficial
da linguagem, é a profunda sobretudo devido à capacidade que esta
-

tem de gerar sentenças significativas, verdadeiras ou falsas que a faz


-

fenômeno biológico novo e universal para o animal humano.


Uma criança começa a falar. Inicialmente, balbucia palavras
isoladas. Passa, depois, a formar pequenos grupos de duas ou três,
esboços de sentenças. Num salto, em idade mais ou menos fixa, come-
ça a formar frases completas. O sistema evolui bruscamente devido a
rooriedades aue não estão na õ7~

se do exemplo da água a 99 graus e alOO graus; uma palavra, duas


três palavras e, de repente, sentenças.
Um exemplo simples é a seqüência "Papai", "Papai bola", "Papai
bola nenê", "Papai dá bola nenê": este último conjunto de palavras já é
uma sentença completa, embora rudimentar. Observe que investigar
agora sentenças completas constituídas de uma ou duas palavras, como
"Cheguei!" ou "Sou Paulo", apenas confundiria a compreensão.
A criança, até um certo momento, não manipula sentenças, mas
blocos quase concretos; a partir da transição de fase, passa a gerar cadeias
e a flexionar tempos verbais, condição de apreensão de estruturas de
O SÍTIO DA MENTE

tempo e de lugar não intuitivas; também começa a manipular fantasias,


o que, do ponto de vista lingüístico, demonstra aptidão para distinguir
a sentença significativa, porém falsa, da sentença verdadeira. Dizer coisas
"dementirinha", não só é parte da beleza da infância, tambémo
resultado da compreensao máxima da comunicação: pode-se falar
de verdades e mentiras; o significado e uma coisa
ver ade-mitra.
As crianças são capazes de aprender a gerar sentenças e de com-
preender determinadas regras gramaticais sem que sejam ensinadas a
elas regras profundas. Além disso, não há linearidade entre a exposição
à comunidade dos falantes e a geração de cadeias cada vez mais
complexas de sentenças e, finalmente, de pensamentos bem articulados.
A linguagem é um conjunto de peças que se articulam e que
dependem, basicamente, de um sistema que tenha a capacidade de
reagir à exposição ao meio lingüístico. Imagine que no exemplo de água
a 100 graus tivéssemos uma barra de ferro. Essa barra de ferro não
evapora quando se chega a uma temperatura de 100 graus. Também o
macaco - outro sistema - não começa a falar após a exposição
adequada à linguagem.
O cérebro humano está aparelhado previamente para receber uma
determinada quantidade de fatos lingüísticos por exposição (o caso da
criança que está exposta à comunidade humana) e em seguida começar
a construir sentenças por iniciativa própria. A partir de então continuará
exposto, aprendendo novos vocábulos, novas regras; mas a estrutura
profunda já ativada será capaz de habilitá-lo para a comunicação rica
de estados internos.
A linguagem é um tipo de estrutura que aparelhou o cérebro
humano ao longo da evolução, tal fosse um tipo de motor que não se
encontra em nenhum outro animal. Nasce desligado. Coloca-se o carro
em movimento através de vários empurrões (exposição à linguagem).
O motor começa a "querer" pegar, engasgando palavras e subitamente
passa a funcionar plenamente, gerando sentenças. Agora
funcionando, poderá andar por diferentes caminhos e com diferentes
motoristas (esses são as línguas, os significados dinâmicos e o
adestramento das regras superficiais de linguagem). Sem o motor
específico para a linguagem, no entanto, não há deslocamento possível,
bem como sem empurrão, sem estradas, motoristas e roteiros não há
significado na linguagem enquanto instrumento mental.
Esse "motor" esvecffico cara a linguaem.sabe-se hoje, é uma
só entra em
LINGUAGEM

ao estímulo ambiental - veios " francos" de


e
e

2d' ico s e pela manipul ação de aspectos cont scicomunicação.


Há um departamento concreto prévio que, ao entrar em operação,
rapidamente se torna virtual, recrutando inúmeras outras áreas cerebrais
não específicas para a linguagem. O departamento concreto prévio no
cérebro está localizado principalmente nas áreas de Broca e Wernicke,
porque quando ocorrem lesões nessas áreas, costumam surgir déficits
lingüísticos específicos - as afasias -, como veremos mais adiante.
Imagine que uma empresa seja inaugurada, tendo já instalada
uma equipe de técnicos exímios em fazer contas de somar e subtrair.
No dia da inauguração, esses gênios da soma e subtração estão todos
situados no departamento que fica no 3 0 andar da empresa (no caso
do cérebro, esse departamento está basicamente situado nas áreas de
Wernicke e Broca). Inaugurada, começam a aparecer problemas que
envolvem soma e subtração. O presidente percebe a necessidade de
recrutá-los freqüentemente. Eles passam a andar por diferentes locais
da empresa, para freqüentar todas as comissões que são formadas para
resolver problemas direta ou indiretamente ligados às operações
algébricas.
Isso explica: a) por que a linguagem, como qualquer outra função
mental, é dinâmica e, portanto, departamento virtual; b) por que, a
despeito de departamento virtual, tem certas operações que recrutam
maior número de funcionários de departamentos concretos previamente
selecionados para aquilo; c) por que certas lesões no cérebro costumam
afetar departamentos virtuais, embora estejam localizadas em algum
ponto concreto; d) por que a linguagem, em que pese ser fortemente
dinâmica, pode ter lesões mais recuperáveis ou não (isto é, mais
compatíveis com um deslocamento de função para outros departamen-
tos virtuais ou não).
A linguagem é uma função do cérebro humano que, do ponto de
vista de sua história cerebral, envolve regiões preferencialmente aptas
para ela e uma dinâmica de interação com fatos lingüísticos externos
que acabam por fazer com que a sua operação plena seja departamento
virtual, mais ou menos fixo. Do ponto de vista de sua estrutura, é
composta de um conjunto de regras de construção de sentenças (sinta-
xe) e de um conjunto de significados, interpretações e objetos capazes
O SITIO DA MENTE

de ter existência real ou imaginária - por exemplo, "mesas", "átomos",


"justiça" e "centauros" (semântica). Há ainda um fator de contexto que
influencia na compreensão de certas expressões lingüísticas, chamado
pragmática. Imagine que falo a palavra "porco" num açougue ou num
campo de futebol. Em cada local, graças à interpretação contextual,
significarão mensagens diferentes.
Há, ainda, uma acepção mais ampla: a comunicação é um todo
do qual a linguagem é apenas uma parte. A comunicação, capacidade
de estabelecer uma dinâmica de signos, apresenta-se como fenômeno
mais amplo, no qual se define uma linguagem verbal, mas também
uma linguagem gestual, corporal, etc. Se a linguística é a ciência que
estuda a linguagem, a semiótica é a que estuda a comunicação lato
sensu.2 Neste capítulo vamos nos deter na linguagem propriamente dita,
embora muito do que se diga possa ter alguma tradução em termos
semióticos.
Há regras de geração de sentenças a partir de determinados
símbolos que garantem sua boa construção, embora não sua verdade
ou falsidade. Tanto os símbolos quanto as regras são finitos, mas há
infinitas sentenças bem construídas a partir deles. A linguagem seria,
assim, um conjunto finito de simbolos e de regras e um conjunto infinito
de sentenças bem construídas, verdadeiras ou falsas. A interpretação
de cada símbolo e de cada sentença é domínio da semântica. Quando
digo "isto é uma maçã" (tecnicamente se chama ostensão apontar um
objeto e agregar-lhe um nome para que daí surja a compreensão do
significado do termo), apontando uma maçã, ou, mais adiante, evocando
mentalmente algo ("isso é angústia"), pretendo unificar uma operação
que me garanta, no futuro, que toda vez que se use o termo retorne o
objeto, sob a forma de seu significado, na mente dos interlocutores. 3
Graças ao contato com maçãs, aprendemos a usar corretamente o
termo "maçã". Adquirimos a faculdade de, na ausência de uma maçã,
evocar a "imagem mental de maçã". Esse processo possibilita que,
através do significado (semântica), se garanta a existência de maçãs
(ontologia). Ainda, através de uma série de procedimentos, é possível
ensinar a conhecer maçãs ou falar delas. Essa transmissão do conceito
de maçã faz parte das características de cognoscibilidade de maçãs
(epistemologia).
Isso pode parecer trivial quando se trata de maçãs, mas será bem
menos trivial no caso de termos científicos como "gene", de termos que
designam seres imaginários como "centauro" (meio homem, meio cavalo)
e finalmente no caso de termos como "estado".
LINGUAGEM

Uma criança aprenderia o significado de maçã e fada. Com o


tempo, ouviria histórias que falam em ambas, sendo capaz de, através
do significado, garantir a existência mental delas. Indagada sobre sua
existência real, responderia, a partir de uma certa idade, que maçãs são
frutas e existem, e fadas "são de mentirinha".
As condições de descrição da existência mental de ambas, maçã e
fada, e de sua posterior reclassificação em real e imaginária, fazem
parte de uma teoria embutida do conhecimento ou de uma epistemologia
escondida na operação intelectual da mente em formação (teoria mental
intuitiva) .4

DE NOVO AS PROPOSIÇÕES

Há na linguagem, como vimos quando falamos de uma das noções


de símbolo, uma determinada unidade fundamental chamada
proposição.
A proposição é um símbolo que resulta da .boa construção,
conforme as regras, de seqüências de outros símbolos. Se,
aparentemente, a linguagem parece constituída por maçãs e centauros,
fadas e genes, na verdade, por detrás de cada símbolo-palavra há um
conceito que, para explicar o significado, precisa de uma proposição.ou
de um conjunto delas (isto está simplificado, valendo, no mais das vezes,
para o caso dos substantivos).
Uma proposição pode ser falsa ou verdadeira. "Paulo é careca" é
proposição e é verdadeira (Paulo é de fato careca); "Paulo é muçulmano"
é proposição e é falsa (Paulo não é muçulmano); "Paulo verde idéia
roseja arboreamente" não é proposição. Com relação às duas proposições,
podemos verificar se há correspondência com o mundo (com a realidade)
ou não, através da qualificação de verdadeiras ou falsas. A terceira,
não-proposição, não é nem verdadeira, nem falsa, retratando
simplesmente uma operação defeituosa de construção ou ordenamento
dos símbolos. (Quem já fez um programa de computador sabe que a
simples omissão de um sinal pode fazê-lo não funcionar.)
Há duas operações básicas ligadas às proposições: uma é reco-
nhecer se algo é, ou não, uma proposição; outra é reconhecer, quando
se tratar de proposições, quais são verdadeiras e quais são falsas.
Reconhecer o caráter proposicional de uma seqüência de símbolos é
uma propriedade prévia do cérebro, que não depende da inspeção do
mundo, embora seja dependente de um estágio de exposição (o tranco
no motor de que falávamos). Verificar se uma proposição é verdadeira
O SITIO DA MENTE

ou não dependeria de um estudo da realidade. O salto proposicional é


o que acontece na criança quando passa das palavras para as sentenças.
Ela se torna capaz de reconhecer características necessárias para que
algo seja uma proposição; de outro lado, saber se algo é uma maçã ou
não. Constatar que algo é uma sentença é radicalmente diferente de
reconhecer se uma sentença é verdadeira ou falsa.
Há quem defenda que as proposições falsas, porque bem
construídas, têm um estatuto hierárquico superior ao das não-
proposições. Mesmo que não dissessem respeito ao mundo real, diriam
respeito a "mundos possíveis" na concepção do filósofo Alexius Meinong.
Isto é verdade quando articulamos algumas afirmações proposicionais
acerca de fatos desconhecidos e que merecem teste, ou investimento,
no futuro.
"A monarquia é a solução para o país". Esta sentença é uma propo-
sição. Ainda que seja falsa hoje, pode estar expressando uma hipótese de
um sociólogo acerca do futuro. Contém um mundo possível, na medida
em que pode justificar uma série de condições para se tornar verdadeira.
A ciência, os cenários, as hipóteses, as sentenças metafísicas ("E mais
fácil um camelo passar no buraco de uma agulha que um rico entrar no
reino dos céus.") são proposições potencialmente falsas, dizendo
respeito, portanto, a mundos possíveis, fornecendo-lhes certas condições
operacionais e delimitação clara, podendo tornar-se verdadeiras para
aquele domínio. O mundo onde têm existência garantida não é o de
outras dimensões ou galáxias, mas áreas cerebrais que garantem sua
condição de proposição, a despeito de serem potencialmente falsas; o
sentido que as verifica - sentido extra que verifica discursos de que
falamos anteriormente - não é a visão ou o tato, mas a consistência,
validade, coerência e plausibilidade.
Essas proposições sobre fatos hipotéticos, generalizações científi-
cas ou de conhecimento ("A igualdade social é a única saída para a
sobrevivência da espécie humana" ou "O desaparecimento dos Estados
nacionais com a formação de blocos como o europeu é impossível."),
têm existência na mente que as entende e manipula, embora não te-
nham necessariamente contrapartida no mundo real de agora.
A mente é um local onde a linguagem consegue algum grau de
existência para suas proposições falsas, porque são agentes de
comunicação e discussão. Os sentidos se equipam para verificar se as
proposições são falsas ou verdadeiras. A mente, como pensamento,
mas também como emoção, vontade e consciência, se equipa para
manipular hipóteses, proposições provisoriamente não-verdadeiras.
LINGUAGEM

Dificilmente se tornarão verdadeiras dado o contexto complexo em que


ocorrem; apenas verossímeis ou fortes. Verossímeis (porque justas)
quando falam de igualdade, por exemplo; fortes (embora injustas)
quando, em algumas situações sociais e políticas, se utilizam do arbítrio
para executar reformas institucionais.
Se a lógica de verificação de verdade ou falsidade de uma propo-
sição é digital, aquela que examina as proposições-discurso, com base
na coerência, é analógica de tipo talvez. Mais uma razão para crer que o
mental se serve do analógico na forja de suas potencialidades plenas.
De posse desses conceitos, pode-se suspeitar da existência de
uma determinada hierarquia, coordenada pela linguagem, tanto na
atenção quanto na consciência. Pense no que ocorre nas disfunções
mentais expressas pela linguagem (lembre-se de que a linguagem é pra-
ticamente 90% do nosso acesso à função mental). Um indivíduo diz:
"Há uma conspiração contra mim", utilizando-se de uma proposição
que pode ser falsa ou verdadeira. Espera-se dele que tenha crítica tal
que seja capaz de desconfiar da afirmação. A pessoa normal, por per-
ceber que potencialmente se trata de uma proposição falsa, procura
justificar sua visão, cruzar informações, admitindo a hipótese de estar
enganada.
A patologia, ou disfunção mental, não está exatamente em dizer
que algo é verdadeiro quando se supõe seja falso; estaria, ao contrário,
na forma corno se tratam proposições potencialmente falsas, com critérios
digitais - "E verdade e ponto final" - em lugar de apelar para o talvez
analógico - "Creio que pode ser, embora não esteja certo".
Poder-se-ia dizer, então, que há normalidade ou equilíbrio quan-
do se tem: a) a capacidade de distinguir proposições de não-proposi-
ções; b) capacidade de reconhecer proposições verdadeiras; c) capaci-
dade de reconhecer proposições falsas; d) capacidade de expressar
proposições tidas como falsas sob o manto da justificação, da argumen-
tação e da dúvida.
A disfunção mental está fortemente vinculada à linguagem. São
sinais de disfunção, em grau crescente de gravidade:
a) não conseguir verificar a verdade de uma proposição ("Este
rosto é o meu": o indivíduo não conseguiria perceber seu rosto como
sendo o seu - esse quadro, resultante de lesão cerebral em departa-
mento concreto, chama-se prosopagnosia);
b) não ter condição de falar de proposições potencialmente falsas
com dúvida, justificação, argumentação ("Sei que pode parecer absurdo,
mas há uma pessoa que me segue há uma semana. Sei que vocês não
O SÍTIO DA MENTE

estão cientes disso e não perceberam porque ela se esconde quando


outros olham. Bem, claro que pensei que podia estar louco, vendo coisas,
e tomei as seguintes providências...");
c) não perceber que certas seqüências de proposições ferem regras
de coerência do discurso, como a "lógica" patológica da implicação:
"Quando o sinal abriu, percebi que havia uma conspiração contra mim."
Abrir o sinal pode ser verdadeiro, como também o fato de perceber que
há uma conspiração contra si. A implicação de uma para a outra, porém,
não tem sentido. O indivíduo normal poderia dizer que foi casual a
conexão: "Claro que não foi o abrir do sinal que me fez perceber isso,
mas é um fato que, coincidentemente, essa idéia ocorreu quando o
sinal abriu." Nesse caso usou de justificação. No caso anormal, inde-
pendentemente da verdade das sentenças isoladas, tem-se a crença na
implicação. Isso se chama de percepção delirante, sintoma grave de
distúrbio mental;
d) não ser possível separar proposições de não-proposições. A
fala se desorganiza, primeiramente na relação entre os blocos
proposicionais - "A água quente é salgada. Deus nos abençoa no sába-
do" (desorganização no plano da relação entre proposições no discurso)
- e finalmente na própria proposição - "Judas trair Deus pai de nós
volta,perspicantd' (aqui vemos não só uma seqüência não proposicional,
como também o uso de neologismos patológicos) . 5
A operação primitiva da linguagem, e possivelmente aquela que
deriva de algum departamento concreto exclusivo do ser humano, é a
capacidade de distinguir proposições de não-proposições. Operações
mentais posteriores, já ligadas à formação de departamentos virtuais,
serão responsáveis pela capacidade de identificar quais proposições
são verdadeiras e quais são falsas. Explicando: a distinção entre uma
proposição e uma não-proposição é cerebral inata, portanto digital no
sentido de básica. A qualificação de verdadeira ou falsa de uma
proposição e de coerente ou não de um discurso é uma operação
posterior, já dependente dos departamentos virtuais. Porém, pode haver
confusão quando se fala de verificação de verdade ou falsidade de uma
sentença (etapa já virtual de processamento analógico) com o caráter
maniqueísta, de tipo sim ou não, de atribuição de verdade. Se "2+2=
" é sentença verdadeira, digital no sentido de não ser mais ou menos
verdadeiro, nem por isso o processamento que executa esse cálculo é
digital-cerebral de tipo departamento concreto. Cuidado, portanto, com
a confusão: a verificação de verdade ou falsidade é etapa de processamento
analógico, porém o caráter de verdade ou falsidade é digital.
LINGUAGEM

A mente normal não teria dificuldade no exame do caráter


proposicional; a mente inteligente agregaria à capacidade de distinguir
proposições de não-proposições a capacidade de distinguir, dentre pro-
posições potencialmente falsas, quais merecem exame detalhado e,
através de complexos raciocínios, quais devem ser abandonadas. ("A
computação química é a solução para o problema dos chips atuais"
merece exame; "Fui uma princesa medieval há três vidas" merece
abandono.)
A mente anormal teria, no entanto, um forte comprometimento:
não conseguiria ver a verdade de certas proposições verdadeiras nem
justificar e argumentar quando entende serem verdadeiras proposições
tidas como falsas. Seu ponto máximo de declínio se daria quando
passasse a lançar mão de não-proposições no seu contato com o mundo.
Inteligência não parece ser atributo fortemente conectado aos
sentidos. Não costumamos ter dúvida quanto ao expresso na frase
"Esta rosa é vermelha". A dificuldade aparece quando consideramos
sentenças mais complexas: "O cérebro é o responsável pelo
comportamento ético" (plausível, pragmaticamente verdadeira ,6 mas
que exige estudo e complicada trama conceitual) e "A mente é uma
fração das muitas vidas vividas em outras encarnações" (implausível,
pragmaticamente falsa, mas exige apenas um pouco de credulidade,
ignorância e pouca reflexão).
A linguagem é fenômeno inato e adquirido. De um lado está ab-
solutamente bem definida como departamento concreto cerebral do ser
humano. Ausente em outros animais, demostra o quanto foi decisiva
na evolução. Se cérebros evoluíssem simplesmente pela dinâmica de
cada empresa, cada cérebro - de homem, de macaco ou de pássaro -
teria evoluído nos últimos milhares de anos. Porém, cérebros permane-
cem mais ou menos estáticos, bem como as realizações de macacos e
de pássaros têm se mantido mais ou menos as mesmas nesse mesmo
período. Nós, seres humanos, no entanto, mudamos a cada dia. Esse
fenômeno se deve à porção adquirida da linguagem (nos seus conteúdos)
e à porção inata (na possibilidade de construir infinitas sentenças) e, de
maneira mais ampla, à comunicação e à plasticidade (capacidade de
gravar diferentes programas) do sistema nervoso central.
Não é de se estranhar, portanto, que praticamente todos os
fenômenos ocorridos do indivíduo mental para cima (psicologia,
sociologia, economia, etc.) pareçam domínio das ciências humanas, com
pouca relação com o mundo físico ou biológico. Os conteúdos
discursivos são domínio das ciências humanas e, pela sua dinâmica,
O SITIO DA MENTE

dificilmente podem ser objeto de generalização sob a forma de leis


científicas. Porém, as formas que possibilitam o surgimento desses
conteúdos são absolutamente dependentes da existência do
departamento concreto linguagem e de desenvolvimentos dinâmico-
analógicos posteriores do cérebro-mente. Há então um elemento
estrutural na linguagem capaz de permitir que alguns contornos dos
discursos das ciências humanas sejam delimitados através do exame de
leis cérebro-mentais (leis que ainda não existem, mas que serão
formuladas com o avanço do conhecimento). Essa condição de contorno
ficará clara quando defender, mais à frente, a hipótese de que, algumas
posições tratadas como matéria de opinião no plano das ciências
humanas, podem ter, nas leis cérebro-mentais e na biologia evolutiva,
condição de discriminação. Doutrinas econômicas rivais podem parecer
matéria de opinião, embora no nível cérebro-mental possa haver um
critério que as diferencie quanto à verdade, validade, eficácia e justiça.
A arte da argumentação, do trabalhar com proposições suposta-
mente falsas e dar-lhes, juntamente com os discursos, um significado
de verossimilhança, de verdade pragmática, de consistência, dependerá
novamente do cérebro, capaz de dinamicamente polir e encaixar partes
do processo, e da mente, capaz de agregar-lhes método e linguagens
(algumas formais), construindo, através da inteligência e dos modelos,
objetos únicos - as teorias - que podem ser submetidas à verificação,
refutação e testes de consistência, coerência, adequação e plausibilidade.
Em que pese haver um série de componentes contingenciais e
culturais numa porção de superfície da linguagem, sua estrutura for-
mal profunda repousa na capacidade prévia do departamento concreto
selecionado no ser humano para gerar proposições a partir de símbolos
primitivos e de regras. Alguns críticos da concepção cerebralista da mente
vêem na linguagem, porque dotada de regras, justamente a impossibilidade
de enxergar no cérebro senão um instanciador dessas regras. O cérebro
seria, assim, um "hardware" e a mente um "software" construído por
regras. Isso é parcialmente verdadeiro na medida em que tanto o cérebro,
através do processamento analógico, não deixa de ter o digital como
um caso particular, quanto a gênese de cadeias se dá por símbolos e a
gênese de significados conceituais e contextuais se dá por dinâmicas de
regularidades.
Pergunte, então, para qualquer pessoa como construir determina-
das sentenças e ela responderá com algumas regras. Porém, salvo algu-
mas poucas palavras - aquelas aprendidas por inspeção direta -, a per-
gunta acerca do significado de conceitos e de expressões estará na depen-
LINGUAGEM

dência da exposição a exemplos e submersão no universo dos seres


habilitados a usá-los. Quem pretender entender gíria terá que estjunp
com jovens e com uma comumciacieque use ag
asreu1aridades e não as regras aue definem o
Com os termos científicos esse problema é ainda mais crucial: o
termo "depressão", usado por um leigo, praticamente não tem sinonímia
com "depressão" no sentido médico. Condutas gerais, esquemas de
ação, são ainda mais difíceis de ser definidos através de regras simples.
Pergunte a ahuém como é ser fino e cortês em diferentes culturas e.
embora se dêem
sçptado após uma submersão nos hábitos daquela cultura. A idéia
de que regras possam substituir a complexa operação cerebral na
constituição dinâmica da proposição e do significado é parcial e
insuficiente. Somos seres submersos em reuJandadesSe regras su-

ção. São, na verdade, outras regras profundas, que não conhecemos


exatamente e que devem se confundir com complexas operações das
áreas devotadas à linguagem no cérebro humano.
As patologias da linguagem são inúmeras, mas cumpre mostrar,
de uma maneira clara, que o exemplo dado de um departamento
inicialmente concreto e logo em seguida virtual explica, em parte, grande
número de distúrbios linguísticos. Alguns merecem maior atenção, e
vamos analisá-los em seguida.

AFASIAS

Certas lesões cerebrais, particularmente em áreas de linguagem


(Broca e Wernicke), costumam gerar deficiências. Prejudicam-se assim:
a) a capacidade de recepção dos discursos; b) a capacidade de geração
e articulação dos discursos; c) a capacidade de compreensão dos
discursos.
Essa divisão de afasias (existem muitras outras) é extremamente
elucidativa porque mostra a diferença entre o receber, o despachar e o
integrar cada informação no cérebro. Embora as lesões sejam mais
específicas, não há um critério tal que permita dizer que tal lesão (no
lugar x) resulta tal deficiência (na função y). A afasia receptiva prejudica
a compreensão da linguagem; a motora, sua articulação. A afasia de
integração seria aquela em que há prejuízo de uma série de etapas de
manipulação da informação. Podem ser dificuldades de alocação de
certas memórias específicas, bem como dificuldades fonéticas,
O SÍTIO DA MENTE

morfológicas, sintáticas, semânticas e pragmáticas. O termo afasia se


presta a um uso muito amplo quando entendido como distúrbio na
integração de certas funções mentais com nítida afecção cerebral
subjacente. O discurso de uma pessoa com um tumor cerebral em lobo
temporal (onde estão áreas de linguagem) poderá produzir uma perda
de expressividade, diretividade, agudeza e inteligência no discurso. O
diagnóstico não será feito jamais sem que se unam o aspecto mental -
no caso, o discuros do paciente - e o aspecto cerebral - normalmente,
testes de aferição anatômica e funcional (ressonância nuclear magnética
e PET scan - ou qualquer outra medida de função dinâmica cerebral).
O tópico é extenso e não poderíamos nos alongar. Importa, no
entanto, ressaltar que as lesões acontecem em pontos específicos. Isso,
ao contrário de mostrar que há departamento concreto, apenas reforça
a tese de que os departamentos virtuais têm intenso recrutamento de
elementos vindos de pontos específicos. Assim, se por um lado há lesão
e deficiência, também pode-se retreinar uma série de funções. Isto é,
reconvocar outras comissões, dentro de certos limites que estão
exatamente definidos pela profundidade e extensão das lesões.
Um dado importante é que, embora não tenhamos necessaria-
mente que usar o canal expressivo ou receptivo da linguagem, seu uso
deficiente (que acontece em afasias) leva progressivamente a uma
deterioração na manipulação mental do significado; ou a uma espécie
de demência. Isto prova que, embora a periferia sensorial ou motora
possa ser apenas porta de entrada ou de saída do significado, o sistema
somente funciona em harmonia quando todas as portas estão operando.
A perda de capacidade intelectual, mesmo em lesões periféricas, pode-
ria ser entendida metaforicamente como uma espécie de "membro
fantasma na linguagem".

DISLEXIA

Crianças podem apresentar dificuldade de leitura, embora sem


dificuldade para entender a palavra falada e com desenvolvimento in-
telectual normal. Os graus dessa afecção são vários.
Importa salientar que até há alguns anos se considerava este
problema de fundo fortemente "psicológico". Embora ainda exista
alguma evidência nesse sentido, o problema parece estar ligado a
uma dessincronização de eventos (códigos de barra, oscilações)
numa certa região cerebral. Há uma anomalia anatômica que
justificaria uma má integração, via sincronização, do estímulo visual
LINGUAGEM

e de outras estruturas envolvidas na compreensão da palavra lida.


Têm-se conseguido alguns resultados interessantes adotando uma
variação na freqüência com que as ondas sincronizadas chegam a certos
pontos cerebrais, sem que para isso se tenha que culpar os pais, deitar
20 anos no divã, deixar a criança sem diagnóstico ou tratá-la com certas
pedagogias truculentas (do tipo daquelas que recomendavam tapas na
mão de canhotos).
Nas desregulagens mentais propriamente ditas, os problemas de
linguagem são vários e já foram tratados em outros pontos. O papel
dessa linguagem, em situação normal, na recuperação dos indivíduos
(psicoterapias baseadas na linguagem) será discutido em um próximo
capítulo, quando tentarei mostrar a compatibilidade entre as drogas e a
linguagem no tratamento das desregulagens, desde que não se queira
que um faça o papel do outro, e desde que a indicação de cada um, ou
de ambos, seja adequada. 7

SÍNTESE

A linguagem é um dos grandes artífices da mente e da cultura.


Inicialmente departamento concreto exclusivo do cérebro humano, torna-
se virtual pela exposição ao meio. Se carrega consigo a capacidade
potencial de reconhecer a natureza proposicional de uma seqüência de
símbolos, posteriormente deverá equipar-se para manipular regras
superficiais da gramática, significados e discursos.
O exame da natureza proposicional ou não de uma seqüência não
deve ser confundido com sua natureza verdadeira ou falsa. Se não há
problema com a verdade de sentenças que falam de objetos ins-
pecionáveis diretamente - "isto é uma rosa" - ocorrem dificuldades
com sentenças que falam de hipóteses. Nesses casos a boa construção
não é apenas da sentença, mas também do discurso. Não é feita apenas
na linguagem ordinária corrente, mas também através de outras como
a lógica e a matemática. Discurso, modelos e teorias carecem de um
sentido extra que examine sua verossimilhança. Não dizem respeito a
fatos concretos e verdadeiros. Dizem respeito a fatos possíveis e,
portanto, devem merecer cuidadoso exame para sabermos se são
também plausíveis.

que teorias são verdadeiras ou taisáEais plausível dizer que


alguém sofre de insônia porque seus centros cerebrais estão
O SÍTIO DA MENTE

desregulados que dizer que era guarda-noturno em outra encarnação.


A relação da linguagem com a patologia mental faz-se, então,
imediata. Vê-se, inicialmente, a deterioração da capacidade de verificar
a verdade de uma proposição, seguindo-se a incapacidade de distin-
guir proposições de não-proposições e, finalmente, adotando-se for-
mas não-proposicionais com o fito de comunicação.
A inteligência e a mente estão muito mais ligadas à capacidade
de trabalhar com proposições potencialmente falsas, criando condições
para distinguir as legitimamente falsas daquelas que podem ser teorias
e generalizações científicas. Também o refinamento da comunicação de
estados internos, condição para que a mente supere sua barreira de
isolamento, requer um significado e uma capacidade sutis de
compreender e gerar diferentes sentenças. -
As patologias primariamente de linguagem podem ser muitas.
Citamos as afasias e as dislexias, à guisa de exemplo, particularmente
porque nas primeiras ocorre deterioração pelo não uso de certas capa-
cidades e pelo fato de as segundas, antes consideradas disfunções
psicológicas, serem hoje sabidamente cerebrais, resultantes da não-
sincronização de funções ligadas à compreensão da escrita.
PERCEPÇÃO E AÇÃO

Capítulo 19

PERCEPÇÃO EAÇÃO

atividade motora e a sensorial são, ao contrário do que possa


parecer, fundamentais para o entendimento da mente e de sua aparição
no cérebro humano. A mente não é avenas um intermedirin entrp a rr-

mente na geração de pçctativnori de planos motore


Imagine, por um instante, o que significa motricidade e percepção.
Nossa empresa precisa de portas de entrada para todo e qualquer do-
cumento e de portas de saída para suas deliberações. A empresa-cérebro
comportaria, assim, as vias de chegada, de decisão e de açãoção
e motricidade ou percepção e ação são as vias de cheg a da e de saída . s
nossas conexões reais com o mundo. Sem elas a mente faz Parte do
inárido devaii, do sonh elab cio futuro
rçgitação enganosa ou ciênciajpianh.
O problema da ação é fundamental. Uma pessoa jamais tem acesso
a qualquer coisa que se chame mente, senão à sua própria. E assim
mesmo, somente se tem acesso à porção consciente da mente (ou passí-
vel de tornar-se consciente). Será que o que não podemos acessar cons-
cientemente nos bastidores da complexa operação cerebral é também
mente? Não, porque não se ganha nada ao afirmar que a mente é uma
operação complexa levada a cabo pelo cérebro; se a operação é
inacessível à introspecção, tanto faz chamá-la de mental ou de cerebral.
Grande parte do problema da comunicação humana advém de
uma assimetria entre os falantes: eu sou uma mente que procura ex-
pressar em palavras e em atos minhas motivações (ou dissimulá-las)
enquanto que o outro é um aparato receptor, um corpo, que, suponho,
decodifica minhas palavras e gestos, criando uma imagem interna do
significado da comunicação. Há um potencial de equívoco neste canal
assimétrico de comunicação. (Há quem defenda que a mais difícil dualidade
da condição humana não é aquela da relação da mente como cérebro, mas
sim aquela da relação do eu-mente com o outro-corpo.)'
Na outra pessoa, nosso interlocutor, só podemos ver a ação ou a
O SÍiio DA MENTE

motricidade; sua fala é motora, o gesto é motor, a musicalidade e a


ênfase da voz são motoras, o olhar é motor (o que lhe confere
expressividade é uma determinada gama de movimentos não perceptí-
veis), a expressão corporal é motora, a rigidez estática é motora (por
ausência de atividade e hipertonia muscular), o semblante é motor,
bem como o sorriso e o choro; o grito é motor; o delito é motor. Tudo,
no final das contas, é ato advindo dos músculos corporais. A mente é
uma eminência parda que se infere esteja por detrás desses atos. Pou-
cos supõem existir mente, pelo menos complexa, por trás dos atos
motores do gato ou do cão. Muito poucos aceitam haver mente por trás
das ações de um robô.
A única coisa objetiva neste mundo é a acão, linguagem pública
ou corPoral, aue
j. Essa linguagem pública é o meio de se testarem e refutarem opiniões
e teorias. Imagine que uma pessoa diz ter um gato com três patas no
quintal. Respondo que não acredito, e a pessoa me convida a ir até o
quintal observar o gato. Pronto, a dúvida está dirimida. "Ver com meus
próprios olhos" é uma expressão popular que retrata este estatuto
intersubjetivo de comunicação, teste e objetividade.
Num certo momento da história recente (início do século XX)
tentou-se - através do chamado positivismo lógico ou Circulo de Vie-
na - eliminar todo o apelo a entidades não-observáveis (não passíveis
de teste sensorial e objetivo e de uso de uma linguagem pública de
confronto). A mente deixou de existir, passando a ser apenas o
comportamento (vertente positivista na psicologia chamada
behaviorismo). Comportamento observável nada mais é que motricidade,
ação final do sistema que realiza alguma tarefa, quer falando, quer
gesticulando, quer produzindo sinais físicos.
Foi em vão essa tentativa. Há mais entre o estímulo sensorial e a
resposta motora do que se imagina. Há o cérebro e a mente, que mais
do que meros intermediários da informação que vem do mundo e para
ele volta, são na verdade os maestros de qualquer operação. Porém,
não há dúvida de que a mente é, de uma certa forma, inacessível. Passível
de inferências, de hipóteses, acaba por ter no produto final motor sua
expressão. j'.Tão há como testá-la senão observando a ação-
comportamento. Ouanafirmo que uma determinada droga age em
tal funcão mental, testo e comrovoiha atirmacão, exibiiin

no corpo que age de outra torma, no sembL


suave dezenas de músculos, e assim sucessi
PERCEPÇÃO E AÇÃO

de nós, a seu modo, tem


dos
paradoxo: o que é público, fundamental e objetivo é justamente aquela
porção motora e comportamental de nossas mentes. A mente isolada
em cada um de nós seria, assim, pouco confiável no que diz respeito ao
contato público e ao uso de linguagens precisas de comunicação. Esse
paradoxo tem dois encaminhamentos. Primeiro, não há sentido em
esperar que somente o que é observável seja confiável, porque sabemos
que a maior parte dos discursos relevantes diz respeito a fatos não
diretamente observáveis. Segundo, na verdade o que pensamos ser
esse acesso privilegiado de cada um à sua própria mente não passa de
uma ilusão criada à custa do aprendizado e da linguagem. Lembre-se
do exemplo: supor que a mente é feita apenas da tela do computador e
que não tenha circuitos por trás.
Seríamos, nesse sentido. seres Dúblicos aue seíinemtrivadc-p

de cada um. Somos só cérebro ao nascer, adquirindo mente graças às


fôrmas prévias; porém, ela é moldada nos seus conteúdos à imagem e
semelhança do mundo circundante. No caso da aceitação da patologia
mental, fica patente o quanto incorporamos o discurso da cultura e não
a percepção do nosso corpo: apesar de percebermos o choro fácil, as
noites insones e a falta de concentração, não queremos aceitar que o
cérebro adoeceu. Por isso, a mente que percebemos em nós, supondo
privada, é extensão da média de opiniões do público a que nos
submetemos.
A esfera da ação (e portanto a esfera da motricidade) é mental.
Uma mesma sentença dita em tons de voz variados tem diferentes
conotações. Um modo de olhar muda o sentido e a confiabilidade de
uma frase e de uma atitude. Tudo isso é coordenado pelo cérebro e faz
parte do imenso arsenal de fatos que subjazem à comunicação humana.
Tudo isso é mente, consciente ou não. Embora não se tenha a menor
idéia de uma série de atos e percepções, pois ocorrem abaixo da
consciência, eles são comunicativos, a despeito de não-intencionais..a
sorriso que nega e o tapa que confessa a paixão são contradições
O SÍTIO DA MENTE

sem obras motoras, concepção inversa à que diz haver pecado por atos
e pensamentos. A mente não é senão graçda açãoçl
percepção, não cabendo imputar-lhe culpa por pensar ou d,-tal
tivesse controle absoluto sobre si.
Está aí circunscrita a separação entre pensamento e ato motor.
Porém, como já vimos, o sistema precisa verificar todas as hipóteses
para escolher uma para agir. O ato, enquanto esfera objetiva e pública,
é o único elemento confiável da cadeia, embora não se desgarre da
mente que o sustenta e esta não possa ser totalmente explicada por ele.
Se pudéssemos explicar o todo da mente peios atos e comportamentos
o behaviorismo teria 'iigado como teoria psicológica definitiva. Nem
todo ata--C, consciente, porém a maioria deles é mental. Podemos
comunicar, através dos atos, conjuntos de fatos interpretáveis à luz da
linguagem sem que tenhamos consciência desses fatos.
Grande parte do poder de algumas pessoas de se sair bem numa
série de reIioiiamentos repousa na capacidade de verceber os atos
+ motores do outro atestanÇdle uma maneira bastante
onde se deve Ó-Jiscurso; essa percepcão rode ser conscient
ou não, certa ou errada Imagine duas pessoas conversando. Há uma
"ie de fatos motores entre elas. Cada uma produz palavras, gestos e
entonações no discurso, etc. Temos acesso apenas a uma parcela da
comunicação, aquela que se dá no plano da inteligibilidade. Por outro
lado, cada uma delas tem acesso apenas à parcela consciente da comu-
nicação, que não é exatamente expressa. Dois sujeitos são capazes de:
a) produzir fatos mentais conscientes e não-conscientes; b) agir através
de sua motricidade veiculando parte dos fatos conscientes (modulando
o que se transmite ou não) e também veiculando parte dos fatos não-
conscientes; c) perceber e julgar conscientemente porções da ação alheia;
d) perceber e julgar não-conscientemente porções da ação alheia. Um
observador é capaz de: a) perceber conscientemente os atos inteligíveis
que ocorrem entre os dois sujeitos conversando; b) perceber, embora
sem consciência, outros atos entre ambos. Pense em todas as
combinações possíveis dessa interação e em todos os potenciais acertos
e equívocos que podem gerar.
Grande parte da vida mental se dá nos seguintes planos: a) fatos
mentais internos, conscientes ou não; b) ações conscientes; c) ações
não-conscientes; d) percepções conscientes; e) percepções não-
conscientes. De maneira geral, as ações são parte da consciência, porque
são uma expressão do que pensamos, sentimos ou desejamos; são tam-
PERCEPÇÃO E AÇÃO

temos controle consciente. Assim se dá também com o outro. O sujeito


que observa de fora não tem acesso a qualquer estado mental dos
sujeitos que estão conversando, mas apenas às porções inteligíveis de
seus comportamentos, mesmo que não-conscientes. Cuidado, porque
a inteligibilidade pode confundir-se com a consciência, mas não são
sinônimos.2
Por definição, inteligibilidade seria a qualidade daguilog
passível de ser compreendido ou explicado. Assim, todos os atos seriam

compreensão. falo, ainda, de que devemos conhecer as vontades d


sgjeito, Alguém. como vimos atrás, podedizerensar
vontade de algo e agir rmri são n ã o fivsse. e vice-versa.

PERCEPÇÃO, AÇÃO E CONSCIÊNCIA

Uma teoria da mente deve explicar os seguintes fatos: a) aparen-


temente, a mente surge como uma inibição à ação e uma seleção-
amplificação da percepção; b) embora nossa ação e nossa percepção
sejam muito amplas, apenas parte delas é consciente; c) a inteligibilidade
das ações pode ser muito maior do que imaginamos, desde que
tenhamos o devido instrumento para qualificar as ações conscientes, as
não-conscientes e aquelas que, ainda que se mostrem de uma forma na
consciência, têm outro aspecto na porção não-consciente.
Vamos explicar estas três afirmações. Podemos, de maneira ge-
ral, dizer que há três grandes porções nos cérebros: uma ligada aos
estímulos sensoriais (do mundo exterior e do corpo), uma ligada às
ações motoras e, entre as duas, a porção de integração e processamento.
Quanto mais triviais as operações, mais podemos designar circuitos tais
que, dado um determinado estímulo, tenhamos urna certa resposta. Para
isso precisaríamos de muito pouca integração intermediando o estímulo e
a resposta e, portanto, precisaríamos pouco da mente. Porém, quanto
mais complexo o meio, mais temos que decidir entre estímulos que
admitem variadas respostas. Mais ainda: não só o ambiente model&o

Nestes dois casos precisamos de aparatos capazes de integrar e


balancear as informações sensoriais e, cotejando-as com estados prévios
(com expectativas prévias) do cérebro, gerar (ou inibir) ações. Isso
explica a lenta formação da mente como processo intermediário. Mas o
O SÍTIO DA MENTE

sujeito da ação tem consciência de apenas uma parcela dessa mente.


Não só há pensamentos, vontades e emoções que podem escapar ao
campo da consciência, como também há atos motores que, embora
cheios de significado, não são perceptíveis ou explicáveis por ela.
Então, qual seria a função desses atos motores na explicação da
mente e por que escapam à consciência? A medida que adquirimos
mente, lingua ge m e comunicação ,p.í ~ demo amplificar, péT
o coi ii toe..nsso poder de captar
sinais ambientais (lembre-se do exemDlo do maestro aue comDarado
ao noviço em
vista da ação m otora, também podemos adestrar
Assim, embora não-conscientes, podemos trei-
nar movimentos até que se tornem
Eino não pensa em nenhum dos movi mentos que vai executar em
detalhe, mas apenas num todo. Também um esportista não pensa em
cada músculo que deve ser contraído para que haja perfeição ao
arremessar a bola. Ao contrário, apenas deseja fazer a cesta ou passar a
bola. Na verdade, a ação motora é silenciosa na mente. Um indivíduo
de excelente performance motora pouco faz em termos mentais para
ue haja graça e precisão em seus atos; ou, pelo menos, pouco faz do
(ponto de vista consciente. Grandes esportistas e bailarinos contam que,
se pensarem num ato motor (pelo menos durante sua execução), não
conseguirão quase nada na prática.
Pois bem, o que está ejogo aQui é a.nossibilidade de que a

selecionar e

entre
temos ainda uma

Por ora, pouco se conhece a esse respeito, embora haja grande massa
de informações dispersas sobre o tema. O que falta é o esboço d "ma

QQras não-conscientes.
O cerebelo, antes tido apenas como controlador motor, é hoje
considerado atuante nas funções mentais. 4 Poderíamos citar algumas
PERCEPÇÃO E AÇÃO

hipóteses para explicar a função da motricidade na vida mental: a) a


motricidade é o oposto da mente; b) a motricidade é uma porção não
elaborada da mente; c) a motricidade é a porção primitiva da mente
(não formatada pela cultura); d) a motricidade é um análogo de mente
primitiva, enquanto o pensamento é sua faceta mais nova.
Todas as hipóteses poderiam ser defendidas. Creio, no entanto,
que o papel da motricidade (e de uma certa forma também da percep-
ção) numa teoria da mente seria descrita de forma a distinguir três
ordens de ações: reflexas, complexas e conscientes.
As ações motoras seriam descritas, assim, em:
a) ações reflexas: já selecionadas antes do nascimento e durante
os primeiros dias de vida, representam mecanismos rápidos e univer-
sais de proteção;
b) ações motoras não-conscientes: grande parte do controle da
ação motora seria não-consciente e impossível de se tornar consciente,
como no caso de controles finos de músculos, aceleração, tensão, etc;
c) ações motoras conscientes: na verdade seriam análogos motores,
isto é, não seriam movimento, mas idéia de movimento e assim por diante.
Como as ações motoras acontecem quase que totalmente fQdQ
consciência, poderíamos dizer que todas as ações aprendidas,
treinadas e nis.gíveis de serem obietade decisão são "mentais" no sentido
não estarem pré-eravadas em todos os
dem, assim, da história de treinamento e aprendizado de c a da um, ci as
circunstâncias, etc. Se um ato motor reflexo é algo que acontece sempre,
em todos os indivíduos de uma espécie, um ato não-consciente motor é
algo que varia de indivíduo para indivíduo, tanto na adoção ou não de
certo comportamento, quanto também no modo de realização. A parcela
consciente é apenas uma pequena idéia do movimento, de alguns de
seus traços gerais. E o desejo de encestar a bola, o desejo de iniciar a
dança, o desejo de falar fino. O resto se passa no automático. O que
parece estar em jogo quando se avalia quanto os atos motores
comunicam, a despeito de ausência de intenção ou consciência, é:
a) somos, no final das contas, seres jjgQsàão e não à reflexão;
teria fu nção de intermediar a a ção;
c) uma super ~
valoriW
ac2
mos do meio na 'amos vara as jad
d) grande parte da mente continua a processar a informação tal fosse
em ambiente natural e, portanto, com menor quantidade de consciência;
e) a ação no ser humano se torna responsável e passível de ser
chamada a justificar-se (não há macaco que seja chamado pelos compa-
O SÍTIO DA MENTE

nheiros para justificar ou explicar alguma ação sua: se agir em desacor-


do, será reprimido por meio de alguma outra ação);
f) a parcela da ação que é consciente é apenas aquela que é passível
de ser chamada a explicar-se quanto aos motivos.
Parece que mantemos ligado o canal de comunicação não-
consciente porque isso caracteriza a nossa mente e o nosso processamento
básico de informação conflitante. Não há necessidade de consciência
para que se processem ações complexas. Toda vez que processamos

situações contiltantW. Absolutamente não há regra geral para expilcá-


la. É uma rede neural que tem pesos de conexão e componentes
diferentes em cada um dos seres humanos. Porém, essas ações requerem
uma justificativa, uma razão, um discurso que as explique. Assim, vai
lentamente se sobrepondo à intermediação neural e estatística
(regularidades) uma redescrição parcial através de discursos de
justificação, de valor e de motivos.
Esse discurso é apenas uma parcela das ações motoras, às vezes
inconsistente com essas mesmas ações, e é formado pela linguagem e
pelas suas regras superficiais e profundas. Essa é a parcela consciente da
ação, que se transmuta em seus diversos análogos mental-linguísticos:
pensamento, emoção, vontade, etc. Minha hipótese é que haja o seguinte
cortejo de acontecimentos:
a) cérebros de outros animais também aprendem e desenvolvem
mecanismos complexos de intermediação entre estímulos sensoriais e
ações motoras;
b) a mente, definida como intermediário complexo entre o estí-
mulo e a resposta, está presente em qualquer animal, em graus crescentes
de complexidade;
c) grande parte das razões internas e intermediárias aparecem
sob alguma forma na ação motora;
d) com a progressiva culturalização do ser humano, que envolve
valores, normas, justificações e responsabilidade, é preciso traduzir as
regularidades neurais do plano das ações aprendidas, treinadas para
um discurso de regras lógicas passível de justificar-se e defender-se;
e) esse plano engloba, então, a formação de um análogo da ação,
um discurso sobre a ação e a percepção, que é a consciência;
f) esse discurso capta, da ação e da percepção, uma parte ex-
PERCEPÇÃO E AÇÃO

plicável (justificável, defensável), inibindo aquelas ações que violem


determinados valores e ratificando as aceitáveis, somente terá
possibilidade de ser considerado ato mental (no sentido de cons-
ciência) aquela parcela dos atos que esteja sujeito à redescrição
através das regras lógico-lingüísticas e que seja passível de inibição
ou ratificação (Fig.49).

mente consciente ou passível de se tornar consciente

redescrição da ação e da percepção


representação / redescrição
sob a forma de regras lógico-lingüísticas
diagrama ção da ação / percepção
função
em funções mentais
4f ratificação
e inibição possível da ação / perc
sociológica
JUSTIFICAÇÃO
inferiores e
ação
ação reflexa aprendida!
treinada
função
ererefIexa jãã
_ ações motoras biológica
percepção
aprendida/ > AÇAO
treinada percepções

mente não-consciente
(processamento complexo)

CÉREBRO MUNDO

Fig.49 - A mente é apresentada como redescrição dos


atos cerebrais complexos. Por ser redescrição, não é có-
pia, mas alternativa valorada. Pode inibir ou ratificar as
ações motoras complexas cerebrais. Surge muito mais a
reboque da justificação da ação e da aposta em certos ce-
nários que requeiram responsabilidade, do que pro-
priamente como aparato de processamento complexo.

Seríamos, assim, uma espécie de dupla personalidade. Uma em-


presa cuida da ação, outra cria inventários da ação, não cópias, para
que possa haver defesa dessa ação. A mente, enquanto aparato
complexo, processa a relação entre os símbolos através de regularidades.
A consciência processa a relação entre os símbolos através de regras. A
relação entre a mente neural e a consciência lógico-lingüística se dá sob
a forma de sincronização e memórias. Tudo se passa, então, da
seguinte forma:
a) o cérebro vem ao mundo com um estoque de reflexos pré-
gravados;
b) diante do ambiente complexo, precisa aprender novas ações,
novas percepções, bem como ser capaz de inibir ações e percepções
O SÍTIO DA MENTE

reflexas. Esse aprendizado com base na experiência se utiliza do modo


neural de relação entre objetos (do tipo redes neurais), fortemente
baseado em regularidades;
c) diante do surgimento de normas de contato, de convívio, de
obediência e de responsabilidade, é preciso criar uma redescrição em
símbolos e regras da ação e da percepção tal que se possa defendê-la
ou justificá-la;
d) aparece, então, uma nova complexidade que não é mais da
ação ou da percepção, mas do valor da ação e da percepção redescritas.
Essa complexidade exige que se crie uma nova forma de discurso sobre
a ação e a percepção, calcado nas regras de ligação entre símbolos
(também eles mutáveis e sujeitos à influência do aprendizado, inteli-
gência e valor). Essa nova redescrição é consciente ou passível de se
tornar consciente. Sua função é criar um discurso sobre a ação e a
percepção baseado no valor destas.
Se a mente é uma representação do mundo, processando a per-
cepção e a ação em situação complexa com a finalidade biológica da
adaptação, a consciência é uma representação da mente com a finalida-
de sociológica da adequação e da obediência. Pode, assim, inibir ou
ratificar toda ação ou percepção inferiores. Quando não pode, é apenas
uma pseudo-representação linguística, não caracterizando fato cere-
bral, mas apenas proposição falsa. 5
Uma vontade ou um pensamento conscientes que não são capa-
zes de inibir ou ratificar a ação e a percepção são proposições (porque
bem construídas), mas são falsas. Não são, assim, imputáveis. As
proposições conscientes verdadeiras são aquelas que descrevem a ca-
pacidade da consciência de inibir ou ratificar um determinado curso
da ação motora e da percepção sensorial. A consciência seria, assim,
uma espécie de representação distorcida da ação e da percepção. Infiel
porque não é símile, mas versão; distorcida porque submetida ao impera-
tivo do valor e da adequação, nem sempre compatíveis com uma
biologia que reclama deliberações imediatas. A consciência civil pode
inibir a fome em ato de protesto, assim como a convicção do papel
religioso pode inibir o imperativo da reprodução e perpetuação gênica
pela castidade.
Um suicídio por uma causa civil ou por uma idéia é um fato
aparentemente contrabiológico. A representação consciente é capaz, pelo
exame do valor da ação redescrita, de se antepor à razão animal, que
clama pela sobrevivência, inibindo circuitos de autodefesa. Dessa forma,
percebe-se que a mente (enquanto complexidade cerebral aprendida e
PERCEPÇÃO E AÇÃO

moldável) é um conjunto de operações complexas que integram a


sensorialidade e a ação. Essa integração se dá sob a forma de regulari-
dades fortemente dependentes de treinamento e circunstância. Não
haveria necessidade de consciência se não fosse o estilo de interação
que a linguagem e a sociedade requerem. Nelas não é apenas o conjunto
das ações individuais visando à sobrevivência que é objetivado, mas o
conjunto coeso do grupo que se supõe mais adaptado. Nesse sentido, a
formação de uma sociedade exige que os indivíduos passem a ser
constituintes de um novo organismo que deve sobreviver. A lógica da
sobrevivência do grupo social exige agora que se inibam e regulem
alguns comportamentos individuais. Isso se faz pela linguagem e pelas
normas. A medida que aparecem as normas e o valor, é preciso que
cada indivíduo crie um análogo da ação e da percepção capazes de,
após redescrição, serem valorados. Esse análogo é a consciência, ou a
mente, propriamente dita. Somente é eficaz quando capaz de inibir ou
ratificar o nível inferior, isto é, o nível das operações complexas que
podem por sua vez inibir o nível das ações reflexas. A Figura 50 mostra
os patamares hierarquizados dos quais somos constituídos.
código
menla !
sem
cérebro
controle coletivo de atos e percepções
sanção
1 mente
>- enquanto
consciência
redescrição valorada de *Is e percepçÕes
cérebro
com inibição
código
menTal
e percepçôes aprendidas
1 - enquanto
mente

cérebro
[ ,n,2_'
ição / modulação J complexidade

sem
código — atos e percepções reflexas
menTal
li!!

Fig.50 — Hierarquia de surgimento de


processamento complexo, por oposição ao ' •J
processamento reflexo, e a partir de então dois '
níveis plenamente mentais: o da consciência in-
dividual e o da mente coletiva. Á mente, enquan- . .
to código e inteligibilidade, se realiza na
consciência e é passível de ocorrer em outros
meios: máquinas e sociedade.

O esquema da Figura 50 explicaria:


a) o fato de, na situação de perigo imediato, as hierarquias respon-
derem de baixo para cima (o reflexo fala antes do mental, o mental fala
antes do consciente, o consciente individual fala antes do coletivo);
O SÍTIO DA MENTE

b) o fato de que cada passagem de nível implica numa interpreta-


ção e, portanto, numa ligeira distorção: o mental (complexo) pode criar
variações desconhecidas dos limites normais para a espécie; o consciente
pode criar interpretações valoradas de fatos parciais e ligeiramente
distorcidos do mental não-consciente (e isso se deve ao fato de que essa
via precisa se adequar a certas coações da linguagem), o consciente
coletivo distorce, de alguma forma, os modos individuais de consciência
(e isso se deve a imperativos de poder, ordem, etc.);
c) como o mental consciente é uma reinterpretação, através da
linguagem, de fatos mentais que operam com regularidades, há um
estreitamento de significação para se adaptar aos símbolos e regras da
linguagem (semânticas e sintáticas) e aos imperativos morais, éticos e
jurídicos daquele grupo;
d) quanto mais progredimos de baixo para cima, mais se perdem os
elos de causalidade e mais se acentuam os elos de significado;
e) quanto mais ascendemos, mais o ser natural se torna dever social;
f) quanto mais caminhamos de baixo para cima, mais analógico
se torna o processamento (como vimos, para desempenhar o papel de
catalizador de relações em cenários complexos); porém, paradoxalmente,
pelo concurso da linguagem, mais se encarcera o domínio do discurso
na rigidez das sentenças, dos argumentos e dos valores digitais de verdade;
g) para compensar isso, o discurso se desinveste de seu caráter
de conhecimento e se torna opinião: quanto mais alto na hierarquia,
mais o discurso do conhecimento se torna discurso de poder;
h) como o ápice da hierarquia é não-cerebral (consciência coletiva)
e como a base é cerebral, presume-se que a mente (que está na interface
entre o individual e o coletivo) não é cerebral. Isso confunde em lugar
de esclarecer. E cerebral porque ali está sua gênese e sustentação. Porém,
num outro plano, é um código e uma interpretação, abstração de seu
meio físico de suporte e ênfase na sua característica de inteligibilidade.
Substância única, não é nem a matéria cerebral nem a errônea natureza
espiritual; é a natureza dos códigos e sua decodfficação possível. A isso
chamo de monismo dos códigos ou de monismo criptográfico.
Se pensarmos na nossa empresa, poderemos ter algumas idéias a
partir do processo descrito no diagrama anterior. Imagine que inicial-
mente a empresa se limite a repassar o que entra para a saída de acordo
com uma regra prévia. A empresa não transforma nada, apenas realiza
a operação de ligar a uma dada entrada outra dada saída. Com o tempo,
percebe-se que há a necessidade de processar um pouco a informação
que entra porque as saídas podem ser muitas. Treinam-se, então,
PERCEPÇÃO E AÇÃO

funcionários e departamentos para fazê-lo. À medida que a empresa


começa a operar dessa maneira, inicia-se um lento processo de adesão
às regras do mercado. Nele há uma determinada responsabilidade pelo
produto diante dos consumidores. A mente, assim, é apenas o processo
complexo de buscar, via departamentos concretos ou virtuais, soluções
cada vez mais criativas e inovadoras. Porém, com o progressivo
engajamento no mercado aparece a necessidade de fazer relatórios de
todos os processos de dentro da empresa para que ela possa se defender
de alguma acusação. Esses relatórios são, então, elaborados enquanto
se executam as tarefas mentais. São, no entanto, outros funcionários e
comissões que os elaboram, como interpretações do processo mental em
curso em outras comissões.
As deliberações da presidência, no que diz respeito à responsabi-
lidade da empresa, se baseiam nestes relatórios. Tanto os cenários
futuros, quanto a justificativa dos atos passados usam esses relatórios,
que de uma certa maneira espelham grande parte do processo real,
mas também têm limitações inerentes à linguagem que usam. Esses
relatórios é que fornecem material para a consciência. A decisão
consciente pode, assim, inibir ou ratificar processos nos níveis inferio-
res. Além disso, a presidência é direcionada, de uma certa forma, por
uma pesquisa de mercado em que se avaliam a imagem da empresa, os
novos rumos do público consumidor, novas legislações, etc. Tanto esse
nível do mercado pode moldar, por coações mais ou menos explícitas,
a tarefa da presidência e dessas comissões de consciência, como tam-
bém a consciência pode interferir nos processos de produção real.
Uma outra imagem que pode ser usada é a de que, se o cérebro é
uma fábrica capaz de produzir um fantástico produto chamado
comportamento (mente no sentido de operação cerebral complexa), a
consciência (mente propriamente dita) é atividade burocrática, estando
todo o tempo monitorando o produto, mudando-lhe algumas
especificações, e sofrendo determinadas coações do meio consumidor.
Atenção: essa atividade burocrática é cheia de departamentos e a
fábrica é cheia de máquinas. Não confunda o estilo de divisão em
departamentos concretos da parte burocrática da empresa com a divi-
são de funções na parte industrial (ou na planta) da fábrica. Grosso modo,
• parte burocrática é a mente complexa, a parte industrial é o cérebro e
• parte consciente - mente propriamente dita - é o conjunto de
determinantes macro e microeconômicos da gestão (bem como das
influências pessoais, sociais, etc).
Nessa perspectiva, a mente e a consciência são, de uma certa
O SÍTIO DA MENTE

forma, um estilo de gerenciamento da produção de ações e de


percepções. Modulam e coordenam estes dois. Mais ainda, pode-se,
através disso, entender que por vezes há atividades desacopladas ou
ligeiramente estanques: uma festa de aniversário no departamento de
compras mobiliza um série de fatos na estrutura gerencial e não tem
relação com a parte industrial. As vezes há uma greve dos operários e
se interrompe a produção de fatos motores e sensoriais; porém,
continuam as atividades gerenciais, e assim sucessivamente. Muitos
fenômenos são independentes, ou quase. Quando pensamos em
hierarquias, é preciso que se entenda que cada nível tem algumas
dinâmicas próprias. Por isso, não tente explicar todo comportamento
social em termos individuais, nem todo comportamento individual em
termos neuronais, nem todo comportamento neuronal em termos de
herança biológica.
Porém, se há uma certa independência dos níveis, nem por isso
deixa de existir uma razão que interpenetra a hierarquia. Embora seja
difícil perceber qual razão é essa, certamente não se deve pensar que,
porque no limite a mente é código, (e portanto é possível fazê-la aparecer
nas máquinas e em outros fenômenos culturais), ela deixa de ter relação
com o cérebro. Empresa só com escritório e sem produto e fábrica não
capta a realidade da interação cérebro-mente-sociedade.
A única fonte de discurso de conhecimento, e não de discurso de
opinião e de poder, para entender a codificação genérica de qualquer
fato mental consiste no entendimento de como cérebros codificam
mentes e mentes codificam consciência. Até o momento somente
conhecemos um aparato físico - o cérebro - que manipula um código
especial - a mente.
Convém avisar aqueles que hoje se encantam com o estudo de téc-
nicas gerenciais válidas para qualquer produto, de que, para entender o
gerenciamento da empresa mente, é preciso conhecer a fundo as etapas
do processo de manufatura do produto cérebro.
Visto isso, poderíamos dizer que toda afecção, ou desregulagem,
tem como resultado final uma alteração no produto: isto é, na ação ou
na percepção. Porém, quando esta afecção se resume aos níveis apenas
de reflexo ou de processamento não-consciente (mental porque com-
plexo e passível de ser moldado pelo aprendizado), seu enfoque é
neurológico. Toda vez que há uma migração para as vias de redescrição
valorada dos fenômenos (através da linguagem) no campo da
consciência, a afecção é psiquiátrica.
Se concorrem fortemente elementos essencialmente da alça que
PERCEPÇÃO E AÇÃO

vai do mental-complexo para o consciente, o distúrbio tende a ser


endógeno, ou tende a ser tratado através de drogas. Se o distúrbio
atinge principalmente a via que segue do consciente para o. mental-
complexo, o distúrbio precisa, paralelamente, de abordagens através
da linguagem (psicoterapias). Se o distúrbio afeta a alça dirigida da
consciência individual à consciência coletiva, recomendam-se terapias
de adequação comportamental e reeducação. Se o distúrbio ocorre na
alça que vai da consciência coletiva para a individual, o problema tende
a requerer "terapias" políticas, ideológicas e até mesmo desestabiização
de certas ordens estabelecidas.

ANOMALIAS DA PERCEPÇÃO E DA MOTRICIDADE

Como toda redescrição ou interpretação, os distúrbios mentais


são, de uma certa forma, distúrbios da consciência e da linguagem
(porque seriam, a primeira a sede do mental, e a segunda o canal de
tradução do fato neural complexo em proposições).
Dessa forma há algo de perceptual e motor nas patologias men-
tais quando: a) ocorre um escape motor ou sensorial sem a devida
correção consciente; b) ocorre um escape na interpretação consciente
de fenômenos motores e perceptuais; c) ocorre uma anomalia na gêne-
se e planificação de atos motores pelo nível consciente.
O caso a) é exemplificado pelas anomalias de controle do impul-
so, em que há explosividade e comportamentos imotivados. Normal-
mente agressivos e explosivos, tendem a sofrer de um retardo da ação
corretiva e inibidora da consciência. O caso b) é exemplificado pelas
alucinações de qualquer natureza (visual, auditiva, etc). Nessas situações
interpreta-se como estando no campo perceptual um objeto que de fato
não está (pode ser até mesmo um discurso completo, como vozes que
dizem coisas ou que têm tom imperativo). Ocorre uma falha no processo
consciente, não se é capaz de rotular determinado fenômeno como
fantasia ou engano. De uma certa forma há também mau funcionamento
das partes mentais complexas e da interpretação posterior. Os pacientes
costumam reagir bem a medicamentos que competem com os receptores
dopaminérgicos dos neurônios de alguns circuitos cerebrais. O caso c)
é mais difícil de retratar porque envolve uma série de planificações
conscientes e geração de metas. Muitos dos distúrbios do lobo frontal
costumam estar relacionados com esta anomalia de tipo c). De maneira
geral são eles a marca fundamental da desregulagem mental-psiquiátrica
pura sem afecção primária de regiões neurais não-conscientes.
O SITIO DA MENTE

Seria absolutamente impossível inventariar todos estes casos aqui.


E interessante notar que, de uma certa forma, o que ocorre na
interpretação consciente é uma perda de informação. Então, se há, por
um lado, ganho pela valoração e pela possibilidade de inibição ou
ratificação, há também perda de alguns elementos. Assim, o que subjaz
às nossas decisões resultantes de processamento complexo pode pas-
sar dissimulado nos atos, sem que o sujeito tenha consciência ou con-
trole disso. De uma certa forma as intuições têm muito dos vestígios -
que emergem na consciência - de algo que se dá de maneira complexa
no plano neural-complexo. Refazer o possível trajeto de um objeto
relativamente anômalo pode reconstruir-lhe a razão embasante; aí
repousa a possibilidade de a interação psicoterapêutica acessar o
reprimido-censurado ou, simplesmente, porque complexo, a porção
do discurso não devidamente capturada pela linguagem intencional-
consciente. Chegamos a um aparente contra-senso: se a linguagem
poderia ser insuficiente para redescrever um objeto complexo, como
poderia agora descortinar-lhe a estrutura? Porque a linguagem não é
apenas a coação isolada da proposição, mas o todo consistente e inter-
relacionado do discurso. Pelo exame do discurso, como se fosse teoria
que busca plausibilidade e coerência, a interpretação do fato infra-
consciente através da interação lingüística faz papel semelhante à
construção de teorias científicas. A boa psicoterapia é, assim, hipótese,
não tendo sentido agregar às suas asserções o rótulo de verdadeiro,
mas, como na ciência, apenas o rótulo de plausível, coerente e válido.
Por vezes é desconsiderada por não ter compromisso com uma ciência
geral da vida mental, mas com uma hipótese geral do fato individual,
particular e biográfico.
O discurso que transita na consciência é mais lingüístico-lógico e
calcado em regras, ficando as regularidades que espelham o
processamento neural complexo perdidas no nível de baixo e apare-
cendo escondidas nos comportamentos e nas ações motoras - os
enganos aparentemente sem intenção, os lapsos, e outros fenômenos
denominados parapráxis.
A observação destes fenômenos intencionais mas ocultos (se é
que se pode falar de uma vontade não-consciente) tende a explicar
grande parte das razões ou regularidades silenciosas à consciência ou
que nela brotam apenas como intuições vagas.
O discurso consciente é excessivamente contaminado de pensa-
mento (portanto de linguagem, de regras e de lógica). Vemos no campo
da consciência, no entanto, uma série de nuvens de sentimentos (difíceis
PERCEPÇÃO E AÇÃO

de descrever), de intuições (difíceis de explicar), de impressões e de


fantasmas. São eles as parcelas que não conseguem ser descritas pela
linguagem e pelas regras, mas ainda assim brotam, vítimas do estilo
neural de processamento de regularidades experienciais e significativas
numa ordem de redescrição através da interpretação. O analista é, assim,
uma consciência acessória que pode redescrever o redescrito (o que é
trazido pelo paciente), possibilitando o acesso às motivações profundas.
A consciência, no seu dever de justificação, tende a abandonar,
quando excessivamente lógica, ou supervalorizar, quando excessiva-
mente despreparada, os vestígios do processamento neural subjacente.
Por trás deles pode haver censura ou apenas pane nos filtros que trans-
ferem informação do módulo complexo para o consciente. E preciso ter
cuidado, portanto, com a interpretação de qualquer ocorrência bizarra,
sonhos inclusive. O preceito da plausibilidade, coerência e uma certa
dose de ceticismo devem estar todo o tempo norteando esse processo.
Se no plano da observação dos comportamentos vemos uma série
de atos não-conscientes, que, na verdade, chamam a atenção pela
constância, devemos estar atentos a duas coisas:
a) esses atos podem ser resíduos não encarcerados pela linguagem
de processamento neural de experiências, tendo, portanto, muito a dizer
desde que se ache a linguagem certa e o sistema adequado de
abordagem;
b) sempre há quem queira, com uma linguagem linear e típica da
consciência, explicar estes fenômenos através de um apelo mágico e
irracional a entidade ocultas.
Enquanto a primeira atitude é saudável e enriquecedora, a segunda
é irracional. Escolher entre uma e outra é tarefa da razão e da coerência.
Também o fato de que há fenômenos inexplicáveis em cada nível deve
ser entendido como processamento autônomo, muitas vezes sem maior
valor explicativo. Da mesma forma que temos uma festa de aniversário
no departamento de pessoal e o sabor do bolo comido não tem nada
que ver com a linha de montagem, também certas idéias e intuições não
têm nada que ver com o mundo ou com a realidade. São apenas
peculiaridades de cada departamento, concreto ou virtual, que nada
comunicam acerca do processo mental como um todo.
Saliente-se então que, quando falamos de ação e percepção,
estamos falando de um organismo que, dotado de mente e de consciên-
cia, ainda assim é feito para interagir. Sua ação visa à manutenção de
sua linhagem genética e à sua defesa; sua percepção visa ao reconheci-
mento do inimigo e à busca de alimento. A ação visa ao estabelecimen-
O SÍTIO DA MENTE

to de alianças com o grupo para que se possa defender de uma série de


intempéries. A percepção visa à escolha de parceiros para a cópula ou
para a formação de grupos.
O ser humano tem uma mente-consciência que se junta à men-
te-complexidade. Embora seja criatura frágil em uma série de quesi-
tos (força, velocidade, tempo de dependência da mãe) pode, pela
comunicação, estabelecer grupos coesos e solidários. Quando essa
mente se encanta consigo, gerando sucesso a qualquer preço, sitia-se
a espécie e a labuta natural que nos dotou de um meio de formação
de elos sociais.

SÍNTESE

Ação e percepção são as portas de comunição da mente corno


mundo. Presentes nos animais, tornam-se complexas à medida que nos
aproximamos do ser humano. Se mente for entendida como
processamento complexo e não previamente programado, então ani-
mais têm graus progressivos de vida mental. Porém, pelo concurso da
linguagem e da formação de sociedades, a ação e a percepção, já
complexas, tiveram de criar redescrições de si próprias. Não o fizeram
por meio de mera cópia, mas sim, através do filtro da linguagem e da
memória, de tal sorte que à ação presumida ou à percepção presumida
viesse a se juntar um discurso consciente.
A consciência seria, então, uma redescrição valorada d.qu&Q
processamento complexo gerou como ação ou percepção possíveis. Além
'de dirimir dúvidas, solucionar (através da retirada de ambigüidades
que impeçam a solução trivial ou a convergência da solução para um
atrator) aquilo que não pudesse ser suficientemente processado no ní-
vel complexo, a consciência se tomou uma versão valorada e significativa
da ação e da percepção. Em vez de ser mera cópia delas, interpreta-as,
corrigindo-lhes a rota. Nesse sentido, inibe ou corrobora ao

Os distúrbios da motricidade e percepção podem ser inúmeros.


Quando disfuncionante em níveis primários, a percepção tende, na
ausência de objeto externo próprio, a criar a sensação de sua presença.
Pode-se alucinar com vozes, imagens, odores. Nesse caso usam-se
remédios; porém, deve-se estar atento à possibilidade de pensamentos
anômalos utilizarem-se de objetos perceptuais, criando com eles um
PERCEPÇÃO E AÇÃO

discurso delirante que se parece com a alucinação. Nesses casos, não é


mais anomalia da percepção, mas sim do juízo e da coerência no discurso,
que envolvem conceitos perceptuais.
A anomalia motora pode aparecer tanto nas paralisias de fundo
"emocional ", como também nas anomalias de controle do impulso. A
violência, quando não inibida pela consciência, pode representar
alteração do processamento complexo ou da consciência valorativa.Há,
como de hábito, tanto mais se sobe rumo à consciência, um misto de
fató cerebral e uma forte herança biográfica e cultural. Por isso, a mente
era complexa torna-se cons'incia nara iustincar seus atos e

ente iigaaa ao munqo aos sennaos e aa motriciaaae, mas


si atravésda refle.
0 SÍTIO DA MENTE
MEMÓRIA

Capítulo 20

MEMÓRIA

D iferentes formas de memória estão presentes no domínio


da natureza e da cultura. Fala-se desde memória no sistema imunológico
(as células de defesa se lembrariam de agentes agressores já conhecidos)
até memória cultural (um conjunto de fatos preservados que caracteri-
zam a identidade histórica). São muitos os sentidos e as instâncias do
conceito. No cérebro humano, ao lado da consciência e da linguagem, é
um dos elementos essenciais para se entender a vida mental.
Enquanto fato biológico, a memória está essencialmente ligada à
mudança de determinados padrões face à experiência. Não é necessá-
ria muita coisa para falar de seus mecanismos: basta que uma proteína
altere sua configuração para se poder dizer que há uma marca da
experiência e, portanto, um elo futuro de reconhecimento do passado.
Da mesma forma, uma pegada no chão é memória: mecanismo pelo
qual se pode, no presente, inferir algo que se situa no passado.
Seria bastante fácil defini-Ia como qualquer marca estrutural que
carrega consigo uma codificação do evento tal que permita a atualiza-
ção deste no futuro. A pegada deixaria informação para que, no instan-
te futuro, se pudesse saber algo do passado: o fato de alguém ter pisado
naquele lugar. Essa definição e esses mecanismos são tão amplos que
praticamente tornam o conceito aplicável a qualquer domínio, natural
ou artificial; presente ou passado. Um fóssil é memória na medida em
que permite a retirada de uma variada gama de conclusões acerca do
passado. E um mensageiro do tempo, mas não é só o traço, a marca
deixada; é sobretudo sua inteligibilidade. Nesse contexto entra o código.
Imagine que eu e você temos um código para certas situações.
Passo numa árvore e deixo escrito: 909090. Tempos depois você passa
por ali e, vendo aquilo, interpreta o código como veículo da seguinte
informação: o último e o primeiro devem ser apertados três vezes; volta
para casa e aperta a última letra do alfabeto de seu computador, depois
a primeira, três vezes, ZAZAZA, e... apareço do outro lado da linha
telefônica. 0 que é a memória? 0 traço na árvore, o código que relaciona
O SÍTIO DA MENTE

9 a Z e O a A ou a interpretação posterior? Tudo, de uma certa maneira.


Portanto, quaisquer pedaços da cena da marca na árvore e eventos
posteriores são candidatos a ser interpretados como partes de um
processo retratado genericamente pelo conceito de memória.
Essa característica permite que circuitos elétricos se comportem
como memória, que certas séries matemáticas tenham memória, que
certos eventos sejam memória. O processo é tão geral e amplo que
permitiu desde a construção de computadores até a forja de uma
identidade cultural.
Todos os traços - como a marca na árvore— são inteligíveis, desde
que haja um receptor hábil para decodificá-los. Vamos, então, examinar
as três etapas cruciais do processo: o traço, o código e o intérprete.

MEMÓRIA E TRAÇO

O cérebro humano utiliza uma série de alterações estruturais para


gerar traços de memória. Essas alterações podem se dar na freqüência
dos potenciais de ação, na sua amplitude (tamanho dos mesmos)' e na
efetividade com que o potencial se transmite para a célula seguinte.
A alteração de amplitude é um dos mecanismos mais rápidos de
processar memória. De uma certa forma tem a possibilidade de
incrementar a efetividade de ligação entre dois neurônios. Em seguida,
observa-se a alteração de freqüência de conexão (código de barras).
Essa, embora aparentemente ligada à codificação, pode perfeitamente
sinalizar como memória imediata. A terceira alteração, aquela que diz
respeito à efetividade da conexão entre dois neurônios, depende
basicamente de que se empreendam alterações nos receptores do
segundo neurônio.
Esses receptores, como vimos, podem ser considerados como
fechaduras. Aumentando-se a quantidade de fechaduras e a facilidade
de encaixe das chaves (neurotransmissores) aumenta-se a eficácia da
ligação. As alterações de receptor são, dessa maneira, fenômenos de
mais longo prazo, porque implicam mexer nos genes de dentro do
neurônio (via mensageiros) para que se altere o "mix" de produção.
Produzem-se mais ou menos receptores e com formas variadas.
Outros elementos que devem estar relacionados à memória no
cérebro humano são os moduladores de ação sináptica (hormônios,
neuromoduladores, etc). Da mesma forma que algumas drogas apagam
ou prejudicam a memória (como o álcool), também algumas
"substâncias" internas podem amplificá-la e gerar eventos que
MEMÓRIA

colaborem nas alterações de estrutura que subjazem a ela.


Contudo, ao contrário do que muitos apregoam, dificilmente há
remédio para a memória, fato que deve ser ressaltado sempre. Além
disso, como já foi dito, grande parte de seus distúrbios são, na verdade,
distúrbios secundários motivados por alterações na atenção, humor,
etc. Alterações na freqüência ou na amplitude do potencial de ação, ou
ainda na força da conexão sináptica entre os neurônios são como
"pegadas" que deixam informação para posterior reconhecimento.
Cuidado para não pensar que a memória é um ente já
interpretado. Assim como não há muita informação numa pegada na
areia, também uma simples alteração de receptor ou de conexão entre
neurônios não é suficiente para ser chamada de memória. 2
Os diferentes tipos de traço e os locais envolvidos no cérebro são
responsáveis por variadas subfunções mnêmicas: por exemplo, há uma
memória de curto termo e uma de longo termo. A primeira, basicamente,
é a que se usa quando vamos fazer uma ligação telefônica e guardamos
o número de cabeça. Se demoramos um pouco, ou logo após
desligarmos, ele desaparece da consciência. A memória de longo termo,
ao contrário, é aquela quase perenemente gravada, recrutável a qualquer
instante. São as lembranças desse tipo (também chamadas "memórias
antigas") que povoam a vida mental das pessoas idosas. Menos capazes
de gravar fatos novos na modalidade curto termo, os mais velhos evocam
constantemente o passado remoto (longo termo). Ao contrário do que
diz a interpretação psicologista apressada, eles não são vítimas da
melancolia, da saudade de coisas antigas, mas simplesmente recrutam
as memórias mais bem gravadas e distribuídas.
Entender a relação entre a memória de curto e a de longo termo é
vital para a compreensão de algumas peculiaridades do cérebro humano.
O leitor deve estar familiarizado com computadores. Quando se
está trabalhando num editor de texto, por exemplo, vão-se escrevendo
coisas na tela, corrigindo, arrumando, etc. Se não se der um comando
de salvar ("save"), o trabalho não é gravado no disco rígido ou no
disquete. Se o computador for desligado antes de se salvar o arquivo,
ou se acabar a luz (tremendo azar), adeus trabalho. O texto, enquanto
somente na tela, está numa forma chamada memória de trabalho ou
memória RAM do computador. Ela é capaz de armazenar
provisoriamente as informações. Se não for dado um comando de
salvamento para que elas sejam gravadas no lugar adequado,
simplesmente aquilo vai embora. Importante: não seria possível salvar
diretamente no local seguro (a não ser que se estivessem fazendo cópias
O SÍTIO DA MENTE

de arquivos já prontos). Por outro lado, a memória de trabalho (RAM) é


apenas um intermediário necessário, funcional mas não suficiente, para
fixar definitivamente a informação.
Esses conceitos vão nos ajudar a entender uma série de coisas
(embora cérebros sejam muito mais antigos que computadores, é fato
que nos dias de hoje quase todo mundo entende de computadores,
mas continua desconhecendo qualquer coisa fundamental acerca de
cérebro e, por decorrência, de mentes). Os fatos externos, e alguns
internos, entram no cérebro, ficando alojados por algum tempo na
memória de trabalho (ou de curto termo) situada principalmente no
hipocampo. E ali que se dá a capacidade de guardar um número de
telefone enquanto se está discando. Passado algum tempo, pela ação
do interesse, importância, reforço, atenção, ocorre um "salvamento",
gravando-se a informação de maneira distribuída em vários pontos do
cérebro (longo termo). Tornou-se mais fixa, como se tivesse sido grava-
da no disco rígido de um computador.
Porém, há uma distinção fundamental entre a memória humana e
a memória do computador. Enquanto no computador cada informação
está num endereço (ou local) preciso, a memória humana de longo termo
está bastante distribuída pelo cérebro. Se lesarmos o disco do
computador, ainda que seja uma lesão minúscula, perderemos uma
série de arquivos. No cérebro, ao contrário, isso não ocorre. Perdemos
milhares de neurônios todos os dias, mormente na idade avançada, e
nem por isso se perdem as lembranças antigas e bem fixadas. Estando
distribuídas, somente com lesões amplas ou perdas maciças de
substância cerebral elas se perderiam.
Ao contrário, o circuito do hipocampo, que se comporta como
porta de entrada, tal fosse a tela e a memória RAM do computador, é
mais sensível ao envelhecimento. Quando não gravamos os fatos
recentes, temos um problema no mecanismo de "salvamento"; o que
está no hipocampo não é enviado de maneira correta para os arquivos
definitivos. Além de ocorrer com freqüência no idoso, isso também se
faz presente em casos de intoxicação alcoólica, degeneração de
hipocampo (por doenças vasculares, etc.), uso de algumas drogas (como
os calmantes) e de tóxicos.
Isso tudo chama a atenção pelo grau de entrelaçamento e depen-
dência da memória e das outras funções mentais, particularmente a
consciência. Quando pergunto a um indivíduo o que fez ontem à noite,
estou pedindo que tenha consciência de um fato passado. Articulam-
se, concomitantemente, a consciência do episódio e sua memória. Ao
MEMÓRIA

não se conseguir reavivar uma lembrança, ferem-se dois pilares da vida


mental: continuidade e unidade.
E raro haver perda de memória antiga; porém, pode haver problema
na gravação de fatos novos, bem como nos mecanismos de busca dos
antigos. O primeiro provocará problemas sérios de adaptação porque
vivemos de usar memórias constantemente estocadas (por exemplo, o
indivíduo ao tentar fazer um troco não se lembra de quanto lhe foi
dado). O segundo, idem, porque o indivíduo não terá acesso a
informações imprescindíveis na sua orientação e no reconhecimento de
sua identidade - são indissociáveis, para fins de funcionalidade, o fato
de estar gravado e o de ser passível de resgate— gravar mas não resgatar
pode trazer quase tantos problemas quanto não estar presente.
A perda de memória pode, num determinado momento, pertur-
bar a navegação no tempo e no espaço ("não sei que caminho fiz para
vir até aqui, nem em que mês estamos") e, finalmente, pode romper a
própria identidade. A despeito do fluxo do tempo, e da mutação do
corpo, cada um continua sempre sentindo a unidade de pessoa, malgrado
a diversidade de sua história.
Em algumas situações primárias ou secundárias de distúrbio,
podem aparecer alterações da vivência do "eu" com dificuldade de
integrar o passado num todo único que corresponda à identidade. Nos
quadros emocionais extremos o indivíduo age normalmente, embora
com ar de autômato. Indagado algum tempo depois sobre o que se
passou, não se lembra de nada. Isso ocorre nos quadros dissociativos
(também chamadas de psicoses histéricas) e em grau menor em varia-
dos estresses emocionais, dores agudas, perdas, acidentes, etc. -
Uma paciente, em um episódio de intensa dor emocional, teve
esse tipo de comportamento. O filho, ainda pequeno, ficou dias numa
UTI entre a vida e a morte. A mãe não arredou pé da sala de espera,
dormindo ali mesmo num sofá improvisado. Conversava com as visitas
como se estivesse dentro da normalidade, embora visivelmente cansa-
da e prostrada. A criança acabou por se recuperar. A mãe jamais teve
lembrança de grande parte do episódio, do que falou, pensou ou ouviu.
Esse tipo de evento pode aparecer em situações de dor intensa.
Um outro "eu" assume o controle do comportamento, engendrando
comportamentos potencialmente patológicos. A perda de lembrança dos
detalhes é o mais comum; a perda total de lembrança e o comportamento
em total desacordo com os padrões representam graus extremos.
Certa vez, atendi um paciente no hospital da universidade. Tinha
sido trazido pela polícia por estar violando túmulos num cemitério
O SÍTIO DA MENTE

próximo. Iniciado o tratamento, apresentava quadro emocional


exacerbado com componente de confusão e desorganização do pensa-
mento. Quando o quadro remitiu, pude perguntar o que se passara.
Não tinha muita lembrança dos episódios da crise. Antes, contou-me,
tinha ficado desempregado por muito tempo. Como não conseguisse
colocação em sua área de trabalho (se não me falha a memória, era
sorveteiro), acabou por aceitar emprego no necrotério. Tinha de levar
os corpos por um túnel subterrâneo que liga alguns prédios contíguos
(realmente um lugar tétrico). Passado algum tempo, desenvolveu o
quadro. Perguntei-lhe se não se sentia mal com seu novo emprego.
Respondeu, com uma indiferença sintomática: - Não, nem ligo. Claro
que ligava, tanto que acabou por desenvolver um quadro de psicose
dissociativa. Chama a atenção o fato de não sabermos se a afecção é
primária da memória, ou uma desorganização generalizada das funções
mentais, memória inclusa.
Se a consciência é palco onde se desenrola a ação mental, a
memória é a protagonista por excelência. Sem ela não há a menor possi-
bilidade de roteiro e crítica. Quando falamos em consciência, fica claro
que há três características para ela. A consciência-estado diz respeito às
sensações experimentadas num dado instante: o gosto da maçã, a dor
aguda e pulsátil, etc. A consciência enquanto processo é, na verdade,
uma atualização de memórias num fluxo único. Dela dependem a
estrutura única do "eu", a identidade e uma certa coerência para o
curso do tempo. Quaisquer anomalias que interfiram com a memória,
seja de curto, seja de longo termo, acabarão por afetá-la, de uma maneira
ou de outra, em seu processo de contínua atualização. Finalmente, a
consciência-função redescreve, valorando-os, os processos complexos
que se passam abaixo dela; necessita da memória e da linguagem, que
a formatam e atualizam de tal sorte que a mente, complexidade cerebral,
possa se tomar mente consciente.

OUTRAS CLASSIFICAÇÕES PARA TIPOS DE MEMÓRIA

Algumas outras distinções clássicas para tipos de memória são:


explícita x implícita/ procedimento x declaração/ semântica x episódica.
A memória explícita é aquela que me permite saber que sei.
Perguntam-me quem é o presidente da república e sei responder. A
memória implícita é uma faceta normalmente não-consciente (pelo
menos após treinamento e aprendizado), um saber operacionalizar
soluções, embora sem consciência de uma série de etapas do processo.
MEMÓRIA

A memória de procedimento é um saber como fazer, algo que me


permite, por exemplo, saber andar de bicicleta. Nem sempre é consciente
e pode não ser descrita por regras (como resolver uma equação do
segundo grau) ou por regularidades (como rebater uma bola no jogo de
tênis). A memória declarativa é aquela que estoca fatos, normalmente
sob a forma de proposições ou imagens. "Juan Carlos é o atual rei da
Espanha" seria um exemplo.
A memória episódica diz respeito a fatos contextuais e biográficos,
ao contrário da memória semântica, que diz respeito a conceitos. Posso
perguntar a uma pessoa qual é o teorema de Pitágoras: algumas pessoas
se lembram da fórmula (semântica), outras se lembram da aula em que
isso foi dado, da cara do professor, da roupa que usava (episódica).
As três classificações acima, não são excludentes uma em relação
à outra. Qualquer um desses tipos de memória pode apresentar
distúrbios, havendo situações em que há problemas na articulação de
explícita com implícita; outras vezes, de procedimental com declarati-
va; outras vezes, de semântica com episódica.
A investigação dos distúrbios mnêmicos e do comprometimento
ulterior de outras funções mentais precisa ser feita levando em conta
aspectos minuciosos que não podem ser descritos apenas sob o rótulo
geral de memória.
Quanto a esquecer aquilo que incomoda, versão psicanalítica dos
distúrbios de memória, que já penetrou na cultura popular, é fato que,
se não tão amplo e genérico como poderiam pretender os teóricos do
século passado, o mecanismo de fato existe.
Existe uma tendência de unidade, coerência e proteção no sistema
nervoso, de tal sorte que muita informação conflitante tende a ser abortada
ou a não preencher condições para ser estocada. Se as amnésias decor-
rentes são processos reprimidos pela ação de alguma função coercitiva ou
protetora é difícil afirmar; porém, é certo que muitas vezes esse episó-
dio esquecido, reprimido ou não, deixa sinais em alguma narrativa. Por-
tanto, a noção de "não gravado" ou "não acessível" pode ser revista e
interpretada como: gravado, porém de difícil recuperação plena.
E fato também que certos esquecimentos são fortemente propo-
sitais e obedecem a uma lógica de se poupar o sistema de agressões.
Uma paciente de Freud, com uma paralisia histérica, relata no transcor-
rer da terapia que, quando sua irmã morreu, teve um pensamento
imediato de que ficaria com o cunhado para si. Esqueceu-se da idéia,
repressão ou não, e desenvolveu a paralisia. Trazida a lembrança à
consciência, cessou a paralisia.
O SITIO DA MENTE

Ainda que em versões mais simples, esse mecanismo repressivo/


defensivo pode existir, estando na base de muitos comportamentos
anômalos. Digo que pode existir, porque nem podemos afirmar sua
constância, nem padronizar sua remoção. Quando se aplica um crivo
científico à psicanálise, verifica-se que ela é muito mais um conjunto de
idéias ricas e interessantes, dificilmente padronizáveis objetivamente e, o
que é pior, extremamente sujeitas às interpretações simplistas que a
descaracterizam no seu escopo de validade potencial (um discurso
sistemático sobre conteúdos biográficos e funções mentais).
Um quadro limite, afecção primária ou não de memória, é a múltipla
personalidade. E normal nesses doentes uma história de violência e
abandono na infância. Cindem-se o comportamento, as regras, a moral, as
memórias. Há relato de diferentes padrões de imagem cerebral durante a
vigência de cada uma das personalidades. Embora rico o tema, deve-se
tomar cuidado com: a) ,a dificuldade inerente ao próprio conceito de
personalidade múltipla; b) o fato de aparecerem diferentes padrões de
imagem (captados por um PET scan) não é privilégio desses casos, mas é
quase uma constante no mecanismo virtual de reunião dos comitês mentais
dentro do ambiente cerebral.

MEMÓRIA E CÓDIGO; MEMÓRIA E INTERPRETA Ç4O

Não é qualquer traço ou código que está apto a ser memória. No


momento não sabemos exatamente como é que a memória é codificada no
cérebro, sendo posteriormente resgatada e trazendo consigo a lembrança.
Se toda memória é uma marca física, nem toda marca física é
memória. O problema do código e o da interpretação são cruciais. A idéia
mais aceita é que ocorre alteração na conexão dos neurônios - freqüência,
amplitude, força de conexão - e isso se reflete no comportamento global
do circuito. Como não há tigres e casas no cérebro, mas apenas sinais, a
transmutação dos conceitos em sinais, e a destes em subtipos chamados de
memória se apresentam como um problema não resolvido. Codificação e
interpretação, etapas da formação de memórias, são na verdade o nó górdio
de toda a relação entre entidades mentais e cerebrais.
A alteração estrutural da conexão neuronal é capaz de servir como
memória. Para entender isso imagine que tenho um brinquedo com
bolinhas que devem correr por diversas canaletas. Se aumento a largura
de certas canaletas e diminuo a de outras, as bolinhas tenderão a passar
mais vezes pelas canaletas mais largas. Isso é uma modificação estrutu-
ral que leva a uma mudança no comportamento global. Esse é o
MEMÓRIA

mecanismo por excelência de que lança mão o cérebro para fixar lem-
branças. Ao contrário de uma canaleta ser um tigre e uma bolinha, um
leão, é como se cada caixa com canaletas e bolinhas representasse um
objeto. Modificações no comportamento global da caixa seriam
modificações no objeto que ela representa.
Exceção feita a certos objetos da percepção que têm departamen-
tos concretos (as caixas, no exemplo anterior) mais ou menos bem
delimitados (e até eles têm algo de departamento virtual, como se fossem
departamentos concretos que ora estão num local da empresa e ora
estão em outro) 3 , a maioria deles é representada através de comissões
dentro do sistema. Vamos ver como poderia ser feita a representação
de "leão" num cérebro. "Leão" seria um circuito, ou um conjunto de
circuitos reunidos em comitês, que retrataria todos os fatos relacionados a
leão (com o fim de formar o conceito de leão).
Num primeiro momento, um conjunto de neurônios (módulos)
associaria a visão de um leão (do primeiro leão de minha vida) com a
palavra leão (que estaria noutro conjunto de neurônios). Com o tempo,
a associaria a outros conjuntos de neurônios, como aquele que repre-
senta mamífero, leão da Metro, leão de chácara. Toda vez que se
estabelecesse uma nova conexão, algumas ligações seriam reforçadas.
Memória e representação são, de certa forma, análogas porque o
mecanismo que aumenta a conexão entre propriedades tanto pode estar
por trás de memorizar quanto de representar um conceito. No caso de
leão e das sucessivas instâncias e qualificações de leão (de pelúcia, da
Metro, etc.), cada grupo de neurônios vai aos poucos codificando o que
ele representa (o que vai depender de uma série de fatores dentro do
módulo, também eles dependentes de memórias) e as conexões com
outros módulos.
Uma vez que essa conexão dentro do módulo para formar
microconceitos (o leão visto é o resultado de uma operação de conjun-
ção de vários elementos visuais, como textura, profundidade,
luminosidade, contorno, cor, etc.) já é um mecanismo que depende de
experiência, memória e capacidade de delimitação, teremos: a) opera-
ções dentro dos módulos e entre os módulos (intra e intermodulares);
b) cada módulo contém inúmeros outros possíveis no seu interior.
O processo de representação e de classificação depende dessas
relações intra e intermodulares (módulos são conectados através de
feixes nervosos), de tal sorte que se possa refinar o conceito e suas
relações com outros. Refinar um conceito é operar dentro do módulo,
mas também, em outros níveis, estabelecer relações com outros
O SÍTIO DA MENTE

micromódulos alheios. Parece difícil? É, mas é o que deve estar por


trás de um trocadilho rápido, de uma conexão rica, significativa e
aparentemente rnsuspeitada. A conexão não prevista entre módulos, e
sobretudo entre partes de módulos, é o que refina o processo de
descoberta e invenção.
Essa série de conexões depende de memória, mas tem certas
peculiaridades: a) cada módulo não é um departamento concreto, mas
virtual; b) cada conexão não só é memória, como também aumento de
representação do conceito; c) tenho condições de aferir se uma dada
ligação é vivida, imaginada, aprendida, etc. Isso tanto pode fazer parte
de ligações com outros módulos como também pode ser alguma
peculiaridade no código de ligação (como pôr um dígito a mais no
código para que significasse vivido ou aprendido, etc.).
Fato notável é que nossas memórias têm um traço além de seu
conteúdo. Posso saber que sei algo, mas que me esqueci. A diferença
entre dizer que não sabe e dizer que sabe mas não se lembra é justa-
mente o fato de que, na memória, há conteúdos que podem estar es-
quecidos ou não e marcas que indicam que o arquivo está lá. E como se
na tela do computador e, portanto, em uma consciência plena e de
trabalho, ficasse sempre uma lista de fatos gravados na memória. Poder-
se-ia responder rapidamente se um arquivo está gravado ou não.
Conseguir abri-lo na tela seria outro problema. Porém, essa concepção
encontra um problema: perguntamo-nos por um conteúdo, não pelo
nome de um arquivo. A articulação entre o conteúdo e o nome do
arquivo, ou o conceito resgatável pela operação de lembrar, encerra
grande parte da perplexidade que ainda temos diante da relação das
formas mentais com as fôrmas cerebrais.
Ao sabermos como é que os departamentos virtuais codificam a
informação que devem representar, estaremos desvendando, ao mes-
mo tempo, fatos sobre representação e sobre memória. Porém, essa
memória, ela própria, é virtual, comissão, ou departamento concreto?
Se estimularmos certas áreas do córtex (o que pode ser feito durante
cirurgias cerebrais sem anestesia geral), o indivíduo relatará a evocação
de certas imagens ou recordações. Isso falaria a favor de um mecanis-
mo de departamento concreto (porque com local determinado)? Creio
que não. A lógica da comissão permite lançar a hipótese de que se
tocou com o eletrodo um local em que se reunia uma comissão. Este,
porém, nem sempre é único e o mesmo. Isso dissocia comissão e local
no plano da identificação estrita, afastando a ingenuidade, que já
apontamos -em outros pontos deste livro, de crer em determinadas
MEMÓRIA

afirmações como: a memória está no hipocampo, a vontade no lobo


frontal, e assim por diante.
Num cérebro há marcas (por alteração de ligação entre neurônios)
e correntes. O código é, no cérebro, o caminho preferencial por um
lugar ou por outro e o disparo de neurônios numa ou noutra freqüência.
O problema da interpretação está ligado a recortes feitos no cérebro,
por meio de gabaritos (ou máscaras). Isto é, o cérebro, mudando as
conexões, prepara as fôrmas, enquanto a interpretação garante que
certas formas e conteúdos mentais se encaixem nelas.
Imagine que vou mandar uma mensagem para uma pessoa. Mando
um quadro como o da Figura 51.
conjunto de neurônios gabarito 1 gabarito 2

HHHCHH
POL APA
1 LOSUA
AL TACF IALTA,.. A
om respectivas freqüências

P A
/ SUA
ALTA A
Fig.51 - Conjuntos de neurônios disparando em diferentes freqüências o que no
esquema correspond a letras diferentes. Uso dois gabaritos, ou máscaras, para
recortar ou salienta?( apenas alguns aspectos da informação.

Nessa figura pode-se ter idéia de um mecanismo de representa-


ção e memória no cérebro humano.
A constituição de cada quadrado é mais ou menos fixada de
antemão pelo organismo (no caso de representar fatos já esperados e
importantes na adaptação do organismo) ou então é constituída, com o
tempo, pela experiência. Nesse processo entram mecanismos de
memória, porque é possível variar as freqüências de cada neurônio
(cada letra é um neurônio disparando numa freqüência).
Constituído o bloco, tem-se ali a representação de um objeto. A
experiência pode mudar o bloco, alterando as freqüências no que diz
respeito à conexão, amplitude, etc. A interpretação do que seja o bloco
é uma. A informação a ser decodificada virá, então, dos gabaritos. O
tamanho do gabarito é uma informação. Os seus "buracos" são outra.
Há no cérebro blocos e freqüências. Os gabaritos são, aos poucos,
fornecidos pelo meio, pela cultura, pelas relações com os outros e pela
O smo DA MENTE

submersão na linguagem. O cérebro prepara os blocos, que são fôrmas


para a mente. Cada gabarito se encaixa, através de seus buracos, nas
formas mentais. As letras que aparecem são os conteúdos mentais.
Portanto, embora a mente seja capaz de realizar a operação de
encaixar gabaritos (e isso é a interpretação), esse fato é fortemente
dependente do meio cultural, social e natural em que se vive.
O fato estritamente cerebral é a geração de blocos, a alteração de
freqüências dentro dos blocos (fato de memórias). Isso é o que subjaz
à preparação das fôrmas, quer para conceitos, ajustando freqüências,
quer para relações, ajustando sincronizações.
A delimitação do bloco (também ele algo que envolve relação
entre microobjetos internos) e suas freqüências dependeria de memó-
ria e de objeto de representação, e ainda de gabaritos que se estendem
a outros blocos e também podem ser interpretados como um mecanismo
de sincronização.
As fôrmas cerebrais seriam preparadas nos blocos e nas relações
entre eles, de tal sorte que os gabaritos nem fossem necessários. Haveria
um paralelismo entre as fôrmas cerebrais e as formas e os conteúdos mentais.
A interpretação é, assim, algo que permite falar em linguagem mental de
objetos e relações que têm, no plano cerebral, blocos e relações equivalentes,
ou encaixáveis. A garantia de estrita equivalência nasceria da lenta história
de adaptação de cérebros e indivíduos a um meio de comunicação.
Embora didática, a idéia do gabarito para gerar a interpretação,
que se forma sob a influência de contextos de aprendizado, cultura,
sociedade, história pessoal, não é necessária se houver um mecanismo
que, através de freqüências, gere os "gabaritos" invisíveis.
Dessa forma se entenderia como a marca (alteração estrutural na
ligação, com conseqüente alteração na freqüência), o código (geração
de freqüências e sua correlação com objetos internos ou externos) e a
interpretação disto (via sincronização) fazem parte de um mecanismo
que pode estar encerrado no cérebro. O processo de interpretação da
marca e do código e de sincronização deles numa linguagem mental
pode ser entendido como uma harmonia pré-estabelecida ou como uma
lenta convergência de duas retas: a cerebral e a mental. Na verdade
essas duas "retas" seriam o fluxo de soluções das equações que
descrevem o processamento cerebral e o mental, ambos oscilações e
sincronização de módulos que geram conjuntos de potenciais de ação.
No cérebro, a palavra, a interpretação, o significado e tudo quanto diga
respeito ao que chamamos de linguagem e mente são oscilações e
sincronização entre módulos dinâmicos.
MMÕRIA

Se num primeiro momento podemos ter sido apenas um cérebro


e suas freqüências (primórdios do ser humano enquanto espécie), com
o tempo estas freqüências se associaram a objetos, depois houve sua
alteração, criando-se memórias, e finalmente a sincronização como me-
canismo de interpretação de informações em cada bloco e nas relações
entre blocos. Isso permitiu que se amplificasse a capacidade de repre-
sentação e a possibilidade de recombinação de módulos e de partes de
módulos em novos blocos inteligentes.
O traço (que no final das contas muda a freqüência, a rota de conexão,
etc.), o código (freqüências e contornos do bloco) e as sincronizações
intrabloco e interblocos são os mecanismos responsáveis por representar,
aprender, memorizar e localizar. Veja na Figura 52 que as letras desaparecem
e que o que se tem são freqüências e sincronização: foi por isso que dissemos
que os gabaritos se tomam invisíveis.

7a experiência (memória # formação de bloco)

r O9Oi \ 0.7 0.7 0.3


0.80.7 0.7 experiência intrabloco / 0.8 0.7 0.71
0.4 0.8 0.8 com alteração de freqüência 0.4 0.8 0.8
via memória

interpretação interpretação
0.8 tanto as freqüências quanto
0.7 0.7
as posições podem
0.8 0.7 0.7 representar aspectos 0.8 0.7 0.7
0.8 0.8 do bloco
0.8 0.8
Fig.52 - A alteração rápida de freqüências e a sincronização entre regiões faria com
que se prescindisse de 'gabaritos "para interpretar informações no interior de cada
bloco.
As intimidades maiores destes processos são ainda hoje total-
mente desconhecidas. Sabemos que muito provavelmente não têm
nada que ver com a forma como computadores alocam memórias, as
representam e manipulam centralmente sua procura. Isso é importante
porque, se o cérebro é computador, não é do tipo que conhecemos nos
dias de hoje.
O problema fundamental, e isso será tratado no esboço de uma
teoria da consciência, é que a memória sem a consciência é fenômeno
que se estende por toda a parte. No ser humano, sua característica de
ser interpretável e cognoscível torna-a indissociável da consciência.
O SÍTIO DAMENTE

SÍNTESE

A memória está presente em todo processo que gere uma marca


física em algo e sua posterior interpretação por alguém, resgatando-
lhe o conteúdo original.
Se no cérebro a marca é a alteração de sinalização entre neurônios
(através de alteração de potenciais de ação, de amplitude e freqüência
e de conexão sináptica entre neurônios), o código e a intrepretação
requerem, mais que uma teoria da memória, uma teoria da mente. Por
isso, só tem sentido falar do código e da interpretação como elementos
do processo de formação de memórias relacionando-os com a
representação e a consciência.
O cérebro prepara fôrmas para que ali se depositem as funções
mentais. Prepará-las é tarefa de reforço de conexões e representação.
Como se fosse um bloco, cada conceito poderia, pela mudança de
freqüências e sincronização, mudar de comportamento. Preparada a
fôrma, sobre ela se depositam gabaritos ou máscaras, que são
interpretações relevantes à luz das categorias mentais. No entanto, a
idéia de máscara é virtual, porque a simples mudança de freqüência e
sincronização já cria contornos invisíveis. O gabarito que estabelece
correlação entre fôrma e forma é dado, tanto pela harmonia pré-
estabelecida entre os fatos mentais (e portanto lingüísticos) e os fatos
cerebrais, como também pela lenta história da espécie humana no
forjar o encaixe perfeito.
Como fatos lingüísticos e sociais são cérebro também no que
concerne ao meio que os implanta, embora passíveis de abstração
porque códigos, a harmonia entre o mental e o cerebral não passa de
harmonia entre dois planos do cerebral. Pelo concurso da linguagem, a
ordem superior, aquela responsável pela consciência privada e públi-
ca, se investe de prerrogativas que não se esgotam no indivíduo, nem
na sociedade de hoje, pois resultam da própria história da espécie. Daí
sua capacidade de se encaixar na ordem inferior, cérebro concreto e
operação complexa de cada um de nós desde o nascimento. Há, então,
duas ordens: o cerebral e o mental; e o cerebral complexo e focado no
indivíduo e o cerebral consciente focado na história da espécie humana,
habilitada para a linguagem e para a formação de sociedade. Sem
memória, essa história não teria como estabilizar a ordem cerebral e a
mental, nem a cerebral da espécie e a cerebral do indivíduo, seja através
de memória gravada em nosso corpo, seja através de memória gravada
nas nossas instituições.
PERSONALIDADE

Capítulo2l

PERSONALIDADE

V oltando à nossa empresa-cérebro, veremos algumas


peculiaridades no que diz respeito ao seu produto, a mente. E comum
que uma empresa apresente seu produto em diferentes modelos, como
faz uma indústria automobilística, por exemplo. O cérebro humano não
é exceção a essa regra. Há vários modelos de mente. Cada modelo é
uma personalidade. O conceito não é fácil porque há uma série de fatores
que se interpõem:
a) certas desregulagens mentais podem perfeitamente mascarar
conclusões acerca da personalidade;
b) o papel da experiência anterior na gênese de certas característi-
cas, ou pelo menos na sua amplificação/expressão, também confunde
o diagnóstico sobre a personalidade;
c) patologias orgânicas intra ou extra-cerebrais podem levar a uma
alteração da "personalidade" que não necessariamente seria de se rotular
como expressão de um modelo da fábrica cérebro (assim, a personali-
dade desenvolvida por um epiléptico não é exatamente caracterizável
como sendo modelo saído da fábrica).
Pelas três razões acima, percebe-se que o conceito de "modelo" de
mente, vulgo personalidade, não seria totalmente preciso e envolveria
muitas variáveis. Um dos grandes problemas da psiquiatria e, portanto, da
aferição das desregulagens mentais e de seu encaminhamento, reside
justamente na distinção entre 5 grandes classes de problemas: a) problemas
endógenos (de fundo orgânico ou simplesmente tratáveis com remédios)
agudos; b) problemas endógenos crônicos; c) problemas contextuais; d)
problemas histórico-biográficos; e) problemas de personalidade.
Seria muito fácil se não houvesse superposição de sintomas e de
sinais nas 5 classes acima. Mas há. Em medicina raramente temos sinto-
mas que, isoladamente, atestam uma doença. Um coração disparado
pode ser paixão ou infarto. Um corpo gordo pode ser desleixo ou des-
nutrição. Uma febre pode ser gripe ou câncer. Um olhar triste,
manipulação ou depressão.
O SÍTIO DA MENTE

Isso complica bastante as coisas e, portanto, as considerações sobre


personalidade e sua base cérebral terão como pano de fundo dois as-
pectos básicos: a questão da confusão entre patologia leve e personali-
dade e a questão da chamada personalidade insensível ou amoral. Claro
que, como disse acima, talvez não tenha sentido começar a estabelecer
uma série de sinais, sintomas e características que pudessem diagnosti-
car tipos de personalidade. Há tratados inteiros sobre o problema e,
como vimos nos 5 eixos acima, pode haver grande confusão de sintomas
de um lado ao outro. Lembre-se do exemplo da pessoa que, antes alegre,
tomou-se calada e séria de 15 anos para cá. Não era personalidade. Era
depressão leve crônica. Isso quer dizer que qualquer tristeza ou serie-
dade é depressão? Se pouco intensa e duradoura, seria então rotulada
como depressão crônica? Claro que não.
Qualquer abordagem do problema da personalidade requer que
se tenha em mente que não há muito sentido em mudanças bruscas de
estilo ou de modelo de comportamento.
O problema do distúrbio agudo é fundamental, mas relativamente
fácil. Por tratar-se de alteração marcante no tempo e no espaço, há uma
grande chance de ser percebido como evento anormal. Salvo por aqueles
- muitos, diga-se de passagem— que mesmo diante do problema agudo
tendem a reagir supondo que qualquer coisa que não causa febre, dor
ou feridas pelo corpo não é doença e não merece ser tratada.
A personalidade é, assim, uma peculiaridade do cérebro no que
diz respeito à formação da mente, que tenderá a ter certos comporta-
mentos previsíveis diante de certas situações.
Se voltarmos ao exemplo da empresa, mesmo que façamos a
nomeação de comissões virtuais, sabemos que alguns grupos são ex-
tremamente conservadores; outros extremamente atirados, ousados e
inovadores.
Personalidades são, de maneira geral, este tipo de traço geral
que indica certos estilos de atuação dos departamentos concretos e
virtuais de uma empresa-cérebro específica. Pode-se dizer que se a
empresa-cérebro se encarrega de produzir pensamento, emoção e von-
tade, e também consciência, humor, juízo, memória, aprendizado,
percepção, há estilos diferentes de produzi-los, interpretações diferen-
tes de um mesmo roteiro.
Todo mundo sabe que as pessoas são diferentes, ou que pelo
menos obedecem a certas grandes classes de tipos. Extrovertidos e
introvertidos, falantes e calados, bem-humorados e mal-humorados,
cerebrinos e motores, racionais e emocionais, concretos e abstratos,
PERSONALIDADE

pragmáticos e essencialistas, são algumas das classificações possíveis.


Não se avalia uma personalidade por um traço mental especifico,
mas por uma propriedade que emerge do todo. Não é exatamente uma
função que é normal e outra não. Por princípio, a questão da
personalidade está diretamente ligada a um certo aspecto final do
funcionamento do todo. Caracterizá-la como mais isso ou mais aquilo
seria pouco proveitoso, se assim pretendêssemos estar dizendo algo
como: um tipo de personalidade é mais propenso ao pensamento e
outro, menos.
Já foi visto que sistemas complexos fazem aparecer característi-
cas no todo que não se esgotam pela análise do comportamento das
partes. Portanto, está sob suspeita um tipo de afirmação de que al-
guém é mais "pensamento" enquanto outro é mais "emoção". Aceita-
remos provisoriamente que se diga, no máximo, que o que aparece dá
a impressão de haver predomínio da emoção sobre a razão, etc. Isso é
fundamental porque, embora tenhamos em mente que a emoção e o
pensamento podem rivalizar, na concepção deste livro há determina-
dos análogos de emoção (isto é, emoção traduzida em pensamento) nas
operações da consciência.
Se personalidade é ato (comportamento) mais autodescrição (vinda
da introspecção e da descrição lingüística de como se é), então pelo
menos a segunda parte deverá ficar reservada para esta ressalva perti-
nente à consciência. Isso terá importância ainda na caracterização de
um dos quadros mais complexos de distúrbio de personalidade: a anomia
(ausência de normas) ou amoralidade.

PERSONALIDADE E HERANÇA

Há uma série de evidências de que a personalidade é determina-


da por herança multigênica. Quer dizer, ao contrário da cor dos olhos
(herança de um só gene), seriam vários os genes que se misturariam
para dar o desenho final do modelo personalidade.
Se pensarmos na empresa, isso quer dizer que, na verdade, te-
mos: a) produção de carros (tipo de produto); b) diferentes modelos; c)
cada modelo com cores e painéis diversos; d) o uso de cada carro em
muito determina juízos e impressões a seu respeito.
Há o carro compacto, de cor vermelha e com opcionais de luxo;
temos ao lado um carro grande, de cor branca, sem opcionais, adapta-
do para ser ambulância, ou preto, tipo perua, adaptado para carro
funerário. São todos carros da mesma empresa, de modelos diferentes,
O SÍTIO DA MENTE

de 2 ou 4 portas, perua ou coupê, cores diferentes e opcionais diversos.


Afora alguma biague, o exemplo dá bem conta da dificuldade de se
classificar personalidade. Como os opcionais e cores variam conforme
os modelos, posso ter uma séria confusão. Às vezes o compacto é de
luxo e o "carrão" é táxi.
O alfabeto primitivo que define as grandes disposições de perso-
nalidade parece ser ligado a 4 grandes comportamentos. Isso não é
uma hipótese, mas uma constatação em ratos, após fazer-se uma puri-
ficação gênica de tal sorte a obter o máximo de expressão de um tipo e
ro.1 Em ratos ai,ns experimentos mostram a re onderância
Lar acterísticas como sen o sicas ara uma definição da
a i a e: a o social (luta or ser líder b evi amento de

de bem-estar L2
Essas quatro características podem ser medidas através de alguns
comportamentos e, além do mais, podem ser amplificadas pela purifi-
cação gênica de tal sorte que, ao fim do processo, praticamente apenas
uma das quatro persista na população. Na verdade, na população não
submetida à purificação, a personalidade seria uma mistura das quatro
facetas acima descritas.
A despeito de podermos definir a personalidade como algo que
tem forte componente hereditário, e isso explicaria a hipótese dos tra-
ços fundamentais acima relatados e sua possibilidade de purificação, a
semelhança de personalidade entre gêmeos univitelinos é de 50% e em
bivitelinos é de 25%. Isso quer dizer que, embora tenhamos grande
correlação gênica, essa não atinge os 100% (caso dos gêmeos univitelinos),
a despeito de seu meio de criação ser o mesm.
O argumento de que univitelinos têm 50% porque são criados
juntos esbarra em duas evidências que mostram o quão fundamental é
a genética: a) os bivitelinos têm 25%, embora crescendo no mesmo meio
(isto é, genéticas bem parecidas, mas não idênticas, fazem o papel do
meio ser de no máximo 25%); b) os univitelinos tendem a ter correlação
de personalidade próxima dos 50%, mesmo quando separados e criados
em ambientes totalmente diversos. 3
O traço de liderançã é básico, encontrado em toda escala animal,
fundamental para um determinado tipo de hierarquia dos grupamentos.
Lagostins já exibem relação de dominador e dominado. Devido a uma
distribuição de sinapses e receptores de serotonina, vemos lagostins
isoladas respondendo, com uma determinada intensidade, à estimulação
das pinças: quando tocada, a pinça é retirada. Isso se processa através
PERSONALIDADE

de um circuito neuronal relativamente simples .4 Se o lagostim está


sozinho, esse comportamento de retirada tende a ser de uma amplitude
(digamos 5). Quando retiramos lagostins do isolamento e os colocamos
juntos, em meia hora estabelece-se um comportamento social: os que
têm características de dominador não mais retiram a pinça quando
encostam no outro (ao contrário, deixam-na acintosamente) e os
dominados passam a retirar a pinça com mais intensidade que antes
(mais que 5), quando tocam no dominador.
Isso mostra o quanto a hereditariedade e, portanto, como vimos,
a distribuição de circuitos neurais e de receptores nas sinapses têm
importância crucial no desenvolvimento de relações sociais; porém,
elas não se esgotam nessa mesma hereditariedade (pode variar de algo
em torno de 20 a 50%, sendo o restante devido ao meio). Um lagostim
tem tendência de liderança e outro tem tendência à submissão ou ao
evitamento de perigo. A genética de distribuiçn de receptores e,
portanto, de modelo de comportamento ou personalidade, estaria pré-
em
uãcontece com casamentos durante 30 anos!.
traço e evitar riscos é bastante marcante também. Percebe-se
cedo a criança que teme situações novas e é tímida em excesso, enquanto
outra é atirada, às vezes até um pouco inconseqüente. O tradicionalismo,
seguindo regras e acreditando demais em instituições, é nitidamente
um modelo básico. Chamo a atenção do leitor para o fato de existir
forte componente genético neste comportamento, que não é apenas
produto de um meio repressivo e vitoriano. Há pessoas que adoram
regras, disciplina, hierarquia severa e outras tantas derivações. Libere-
se um conservador e podem aparecer coisas incríveis! O "certinho" e o
reacionário são, muito mais que fenômenos somente políticos e econô-
micos, um determinado perfil de personalidade. Até mesmo o namoro
com o autoritarismo, com as ditaduras e com a repressão policial
escandalosa são traços genéticos ou pelo menos fortemente vinculados
a uma personalidade básica.
A última forma de primitivo de personalidade, a busca do prazer
(hedonismo), é também defensável na medida em que vemos pessoas para
quem um determinado componente de imediatismo sensorial parece
predominar sobre qualquer outra coisa. A sensualidade desmedida, a
supervalorização da moda, do orgasmo, a renúncia ao estudo, o afugentamento
da dor e o amor pelos sentidos retratam um pouco esse modelo básico.
Vamos, então, fixar alguns pontos no que concerne à personali-
dade. Em primeiro lugar há nelas forte componente hereditário, embo-
O SÍTIO DA MENTE

rã se possam creditar ao meio posterior influências enormes. Em


segundo lugar há uma série de combinações de elementos fundamen-
tais e de tendências, tal que no final o que temos parece um showroom
de concessionária de automóvel: o modelo barato emperiquitado e o
caro em promoção sem nenhum acessório. Além do mais, há a cor, o
uso e o contexto. Se carro preto pode significar enterro, também signi-
fica autoridade ou distinção. O verde abacate é cafona na década de 70
e vira, porque metalizado, última geração vinda da Itália na década de
90. Personalidade de padrão básico único, essa somente vemos em
ratos geneticamente purificados. Nos seres humanos, o que temos é
combinação em proporções diversas de unidades fundamentais.
Se a personalidade é um modelo (sendo a mente um carro que
sai da empresa cérebro), haverá ainda muito por fazer, e isso será tarefa
do meio e da biografia, até que se cristalize a personalidade de cada
um. Podemos definir alguns grandes eixos, sempre respeitando
pequenas diferenças naqueles que serão classificados aqui ou ali. Fi-
nalmente, deve-se ter em mente que há uma distinção entre a
personalidade de uma pessoa e as patologias que podem mascarar
sutilezas de diagnóstico, quer da excentricidade, quer da anomalia.

CLASSIFICANDO PERSONALIDADES

Proponho classificar os elementos primitivos que compõem a


personalidade e seus respectivos eixos: a) quanto à ação ativos ou
passivos; b) quanto à sensaçp: sensíveis ou resistentes; c) quanto à
ïiraç: imediatos ou mediatos. O porquê de adotar essa classifica-
ção advém da própria formulação deste livro. Definiriam-se operações
mentais complexas no que concerne à gênese da ação e da percepção;
às duas agrega-se, posteriomente, a consciência, local de valoração e
intrepretação dos cenários que emergem do plano complexo.,..Se
i.tmíssemos, então. o cérek.ês funções, teríamos ações,
percepções (ou sensações) e consciência enquanto valoração da acãiie
da ercepção. Essas três grandes categorias seriam resposáveis pela
gênese a complexidade comportamental e também por uma ética que
não se manifesta de forma tão evidente nos animais.
Esses três eixos definiriam as características básicas: o ativo tenderia a
p1orar o meioçtabe1ecer relacões de descoberta e criação. Q..passyQ

pçoaçonstâiica. k inquietude costuma ser traço do ativo, enquanto


que a astenia (ou "ser devagar") tende a ser traço do passivo)
PERSONALIDADE

Os sensíveis seriam aqueles que tendem a supervalorizar as


sensações físicas: tanto podem ser hedonistas (aqueles que só buscam
o prazer) quanto hipocondríacos. Os resistentes teriam baixa estimulação
pelo ambiente, tenderiam a pouco valorizar elementos ambientais/
perceptuais: aqui se reúnem o indivíduo que, quase enfartando, vai
jogar tênis porque supõe que está com gases, e o tipo que não acha que
o menino de pé no chão no farol de trânsito seja problema social, mas
sim "culpa dos pais, que devem ser vagabundos", justifica-se.
Quanto à valoração, tendemos a encontrar os imediatos e os
mediatos: se os imediatos tendem a valorizar fins instantâneos, lucro
fácil, recompensa mensurável, abastança e paridade, os mediatos ten-
dem a valorizar elementos futuros, regras gerais, comportamentos
morais e de dever. Se o imediato é pouco moral é porque sua ética é
cambiante, variando de momento para momento, o mediato oferece,
por vezes, a outra face, odeia fazer justiça com as próprias mãos,
entregando a função às entidades abstratas - Estado incluso - que res-
pondem pela ordem supra-individual. O imediato tende a fazer julga-
mentos pontuais e locais, enquanto que o mediato tende sempre a erigir
dos fatos particulares alguma generalização, seja ela sobre o ser, seja
ela sobre o dever (Fig. 53).

Fig.53 - Três eixos definidores de classificação hipotética de personalidade.


o SF110 DA MENTE

Na Figura 53 proponho que uma classificação possível (há muitas)


para os constituintes básicos da personalidade sejam três eixos que
varrem o espaço (determinam-se três dimensões).
A personalidade de cada um seria um ponto desse espaço que
reúne um pouco de cada um dos três componentes. A opção pelo
esquema se deve ao piano geral em que situo o problema da mente
como balanço entre ação, sensação e valoração. Como todo esquema
de personalidade, o truque consiste em definir, à luz da tabela, o que
seria a característica de um tipo ou de outro: assim, pode haver um
indivíduo que é líder com forte sensibilidade, forte senso de mediatismo
e ativo (dificilmente o passivo vira líder). No entanto, é fundamental
diferenciar esse líder de outro que pode ser imediato e resistente, o
que, no mais das vezes, resulta em tiranos populistas.
Importante notar que no esquema acima estamos privilegiando
um modo de olhar o sistema nervoso. Há muitos outros. O papel da
experiência será examinado posteriormente. O problema apontado no
início deste tópico acerca das possibilidades de confusão entre distúrbio
endógeno crônico, contexto, personalidade e biografia se toma essencial.
De modo geral não se dê por satisfeito com mudanças de personalidade:
alguém que, tendo sido de um jeito, de repente ou lentamente foi
mudando. Isso deve ser especialmente válido para os casos de pessoas
que, inicialmente alegres, tomaram-se mais sérias, tristes e recolhidas.
Pelo menos o que caracteriza o modo de ser de uma pessoa, com
pequenas variações, deve manter-se ao longo da vida. Como regra
prática, basta enfatizar que se a personalidade tende a ser relativamente
fixa, o distúrbio - como éo exemplo de uma depressão leve crônica -
costuma ter um início relativamente claro no passado. Patologia se
trata, personalidade praticamente não. Por isso a importância do tópico
que trata de suas anomalias.

PSICOPATIA

A avaliação das chamadas psicopatias ou distúrbios de persona-


lidade é bastante complicada. Até que ponto estamos diante de uma
personalidade anormal ou de um distúrbio endógeno crônico? Por
vezes um distúrbio mental atípico pode simular psicopatias.
Uma série de conceitos que procuram caracterizar neuroses como
ego-distônicas e psicopatias como ego-sintônicas (no caso de a neurose
representar um corpo estranho ao eu e a psicopatia, um corpo em
harmonia) caem numa excessiva verborragia, por vezes pouco funda-
PERSONALIDADE

mentada em termos da base cerebral da mente e de seus desvios.


Por outro lado, é fato que certas tentativas assépticas de se desti-
tuir a psiquiatria e a psicopatologia de teoria (DSM III e 1V) 5 acabaram
por fazer da psicopatologia um conjunto parcial e pobre de sinais e
sintomas. Se antes a psiquiatria podia ser criticada por seu excessivo
culturalismo, hermenêutica e influência psicanalítica, agora pode ser
criticada por uma crença simplista numa base biológica para o
comportamento, sem que haja teoria e articulação conceitual dessa
estrutura biológica (cérebro), da linguagem, da relação interpessoal e
do fenômeno único da biografia do indivíduo concreto em situação. Se
antes os psiquiatras podiam parecer homens cultos, porém menos
eficientes, agora correm o risco de ser apenas técnicos sem noção de
todo para entender o fenômeno humano, quer na situação normal, quer
na desviada (o que redunda em insuficiência para diagnosticar os casos
atípicos de interface entre patologias).
Isso acaba por se retratar na classificação da patologia mental e,
particularmente, na condição de diagnóstico da chamada psicopatia.
Por quê? Simplesmente porque a psicopatia tem, via de regra, mau
prognóstico em termos de tratamento.
A caracterização dessa ou daquela perturbação de personalidade
coloca o psiquiatra na condição de árbitro da conjunção entre natureza
e cultura, apontando prontamente os desvios que fogem da norma.
Antes de atividade meramente técnica, o psiquiatra é ungido com um
poder secular de julgamento sobre o normal e o patológico. Se isso não
deve suscitar desvios, desmandos e excessos, também não deve atirar
a disciplina numa ascese ignorante, desengajada e com uma visão pobre
do fenômeno biológico. Afinal, são os psiquiatras que, em última
instância, deveriam estar habilitados a antever comportamentos que,
inadequados, podem ou devem ser corrigidos.
O diagnóstico da psicopatia é, assim, um dos momentos-limite
dessa atuação. Porque não é mais simplesmente rotular uma
personalidade. E afirmar o caráter patológico de um modelo quando,
em princípio, não podemos afirmar que haja "patologia" em modelos.
Há toda uma ideologia e uma visão do mundo por trás dessa
posição. Claro que, embora desconhecendo grande parte dos funda-
mentos, a visão de suspensão de juízo do psiquiatra é politicamente
correta - mas é social e politicamente alienada.
Ao fugir da arena da avaliação da personalidade como patológi-
ca, o fazemos deixando ao sabor das opiniões o julgamento do compor-
tamento. Não raro é das mãos dos psicopatas que brotam as maiores
O SÍTIO DA MENTE

violações de pactos de vida social e de civilização. Assim, antes que o


leitor possa pensar que a disfunção mental é causa comum de delito ou
crime, ao contrário, é a psicopatia que parece estar na raiz de grande
parte dos chamados comportamentos de quebra de regra social.
Se são muitos os distúrbios de personalidade, havendo autores
que listam mais de 10, sendo todos eles vasos comunicantes
diferenciados apenas pela predominância de alguns traços, é a chamada
personalidade amoral, fria e insensível que merece nossa atenção nesse
instante. Praticamente todos os outros diagnósticos são problemáticos
e difíceis, particularmente no distinguir grandes gêneros - por exemplo,
distinguir uma depressão endógena de uma neurose depressiva e de
uma personalidade depressiva. Mas o diagnóstico do psicopata frio e
insensível, amoral, está ainda presente entre nós e também em qual-
quer tabela diagnóstica. Reconhecê-lo, não entre os piores crinúnosos de
antecendente brutal, mas no seio da comunidade, pode ser fundamental,
vez que sp,a meu ver, grande parte dos pseudolíderes que acabam
pdar valores e re1ções humanas, sociais e econômicas.
O problema, do ponto de vista de uma teoria da mente, natural e
artificial, situa-se numa característica dos sistemas. Em princípio, o lobo
frontal é responsável por uma série de planos. Aparentemente ali se
situa um elo importante para a atividade ética (departamento virtual
quase estável, fornecedor de quadros para comissões posteriores,
comitês de comitês). Alguns casos de lesão das regiões frontais resulta-
ram em distúrbios de valor moral. O indivíduo se torna insensível, não
reage a riscos, não parece ressoar diante dos contactos humanos.
O psicopata insensível tende a ser estranho no contato. Ligeira-
mente sedutor, revela rapidamente uma faceta de total desengajamento
da relação. Da mesma forma que adere, abandona sem a menor justifi-
cação. Impulsivo ou desinteressado, costuma, de vez em quando, ter
reações imprevistas. Agride, rouba, mata, tortura, maltrata. Após o
fato, quando questionado sobre as razões, não tem bons motivos, ou
simplesmente diz que não sabe por quê. Não costuma ter remorso,
nem convence nas suas desculpas ou no seu afeto falso. Tenta seduzir
através do choro ou do argumento. Tudo soa pobre e sem valor. O ato
não tem valor, nem positivo, nem negativo; por isso, de vez em quando,
faz algum absurdo. As razões, também não as tem. Não se inflama,
não justifica com veemência. Não se arrepende. Até na dor, no remorso
e na culpa é de uma superficialidade total. Pode ter impulso por
drogas, álcool e alimentos. Durante anos tenta-se de tudo e nada se
consegue. Um belo dia passa a fazer regime. Perfeito. Não tem muita
PERSONALIDADE

justificação nem para os atos certos que faz. É superficial e com uma
sensibilidade para atos e relações que parece falsa, premeditada,
interesseira e vazia.
O amoral é um diagnóstico limite em psiquiatria; mormente quan-
do não podemos exatamente afirmar se aquilo é ou não uma doença, na
medida em que é um modelo. Teríamos que ter uma teoria da conduta
e uma teoria da moral para que pudéssemos afirmar que suas ações
são desviadas. Mas, de uma certa forma, não há cabimento em falar de
essências plenas e atemporais em qualquer fenômeno biológico. Não
tem sentido falar que uma determinada variação é boa ou má. Tudo
que há no organismo é um algo para um determinado ambiente.
Metabolizar oxigênio não éo único meio de respirar. Dentro em breve
uma mutação que produzisse uma respiração via monóxido de carbono
tomaria os habitantes das grandes cidades mais adaptados.
Lembre-se: o acaso cria a variação e a necessidade cria a seleção.
Essa é a máxima que descreve o binômio acaso/necessidade na teoria
da evolução. Não há propriamente um valor agregado a qualquer função
ou conteúdo biológico. Portanto, a amoralidade não necessariamente é
má ou patológica. A sua resistência ao tratamento - diria até que não
existe tratamento - faz com que tenhamos algumas dúvidas quanto ao
seu caráter realmente patológico.
Suponha que uma empresa produza um modelo de carro que
esteja totalmente em desacordo com regras firmadas por algum órgão
de controle. Não haverá mercado oficial para esse modelo, não porque
bom ou mau. Simplesmente porque a trinca modelo-mercado-
fiscalização não funciona. Claro que nos casos do psicopata amoral
tenderíamos a pensar em algo mais nobre que o mercado e a fiscaliza-
ção. Por razões advindas da própria variabilidade e adaptação, somos
obrigados a dizer que certos modos, ou modelos mentais, têm menor
funcionalidade adaptativa. Mas essa funcionalidade adaptativa será
relativa a um meio, a uma sociedade. Mude-se a sociedade e o modelo
pode se tornar adaptado. Isso me causa perplexidade, e é o fator de
sítio da mente que examinarei na última parte deste livro.
Qualquer fato mental é um fato primeiramente biológico e, por-
tanto, foi a variabilidade que dotou o ser humano de linguagem e de
interatividade capazes de estabelecer sociedade. Essa sociedade pas-
sou pela construção de determinados pactos de convívio e de valor.
Esse valor lentamente foi sendo introjetado pela educação religiosa,
política, civil, etc. Aquele indivíduo que não tem capacidade de agregar
valor ou sentimento aos seus atos está em desacordo com o meio que
O SÍTIO DA MENTE

conhecemos hoje e que exerce sobre o indivíduo a sua pressão seletiva.


O mecanismo de eliminação na sociedade humana pode não ser a não-
sobrevivência, e sim, a não-pertinência a um grupo. E fato que o
psicopata puro, legítimo, tem dificuldade de participar até de grupos
de marginais. Porque incapaz de agregar valor e regra às suas condutas,
não sabe respeitar códigos e, portanto, mesmo o código dos imorais lhe
é estranho.
Lembre-se: é muito diferente falar de imoral e de amoral. O pri-
meiro tem códigos de conduta, embora estranhos à norma moral mé-
dia; o segundo não os tem, dissimulando por algum tempo com pseudo-
adesões. O psicopata imita valores, mas não os incorpora. Veste-os,
mas não se convence deles. De um dia para o outro pode tirar esse
verniz de valor, incorrendo em delito franco. Porém, novamente, o
conceito de delito aqui apresentado pode ser muito mais abrangente
que os tipos penais.
Se pensarmos numa teoria biológica da moral e de sua gênese
(ou pelo menos apogeu) na espécie humana, a consciência, estrutura de
reverberação valorada de atos e percepções, deve estar alterada no
amoral. Sua mente seria apenas aquela parte que processa informação
complexa; sua consciência seria apenas a parcela que resolve o que o
processamento cerebral infraconsciente não encontra como solução para
casos triviais; a legítima consciência, plena, privada e também pública,
essa seria defectiva no amoral.
Não há nada mais humano que a figura que Dostoievsky retrata
em "Crime e Castigo". O criminoso (embora não incriminado) expia
sua culpa até que, prestes a enlouquecer, se entrega. Nagisa Oshima
retoma o tema em seu filme "O Império da Paixão". Remorso ou
culpa, antes poderosos aliados da valoração dos atos pretéritos, porque
mal utilizados pela moral repressiva burra, tomaram-se alvo da liberação
moderna dos costumes. Com a liberdade bem-vinda, liberados do falso
moralismo, somos agora vítimas de guinada oposta: a perda de ética
na relação, ou sua relativização, pode ferir cânones adaptativos.
A mente foi projetada para resolver problemas complexos. A
consciência (pelo menos uma parte dela) foi surgindo, aos poucos, para
enfrentar a justificação de atitudes com valor implícito. Criou-se, assim,
um discurso da ação e um discurso do valor. O psicopata falha no
discurso do valor porque não estabelece as ligações de sincronização
entre ato e redescrição valorada de ato, nem é capaz de integrar
intelectual, emocional e volitivamente a estética, a ética e a funcionali-
dade dos atos perante o semelhante.
PERSONALIDADE

Hanna Arendt, quando fala do julgamento de Eichmann,


criminoso de guerra, em Jerusalém, procura explicar a superficialidade
com que o acusado se porta diante do tribunal como a" banalidade do
mal". A seu ver, a transgressão mental seria uma falha do pensamento,
da crítica ou da razão. Talvez uma teoria de final de século nos explique
que neurologicamente não é exatamente uma falha do pensamento,
mas da integração, ainda não-consciente, de ato e valor, de hierarquias
do mediato. Isso diz respeito a altruísmo, valor, condescendência,
compaixão, estruturas embrionárias no animal, plenas no ser humano
e regulamentadas no ser social.
A sincronia entre ato e valor seria, assim, deficiente no psicopa-
ta. No plano da descrição cerebral de sinais, pode ser anomalia de
parâmetros; do ponto de vista biológico e social, é variação que carece
de um meio para adaptar-se. Por ora, é sinal de má adaptação; quem
sabe no futuro se torne fator de supremacia. Tudo depende do contex-
to, ou do formato da personalidade social, depositária média das partes
que a constituem e também dos valores da tradição.
Deve-se estar atento porque uma mente desgarrada de sua con-
dição cerebral não diagnostica depressão, não a trata, e pior, não vê no
amoral a variação que destrói. Pensa em ambas, anomalia leve com
remédio definido e variação sem conserto, tal fossem apenas reflexos
da história pessoal.
Isso significa um novo sítio para a mente quando, assolada por
aqueles que não têm valor, se vê incapaz de julgar-lhes com o crivo da
espécie e não com a atenuante da biografia.
Os amorais são irrecuperáveis porque são cérebro, e portanto,
matéria viva; ao mesmo tempo são irrecuperáveis porque talvez nem
sejam doença, mas variação, modelo que não chegou ainda a satisfazer
as demandas do meio. Esse meio não os eliminou porque os nossos
mecanismos de seleção e adaptação são um pouco diferentes dos da
natureza pura. Por vezes incensamos o psicopata leve.que nos engana
e
1 que deve
Assim são certos
ãIên.u-õ.--f- revivência de
1a1az1Lp•7.w-• 4•' - 1Laz1II11J V 1..i.1iUJ.

A personalidade poderia ser entendida como uma determinada gama


de especificações do modelo do carro seguida de uma série de
penduricalhos que se vão colocando no decorrer da vida. Imagine um
carro de porte pequeno saído da agência de automóveis. Vermelho
O SÍTIO DA MENTE

tomate, servirá durante alguns anos a um jovem estudante. Zeloso e


imitador de padrões da época, corre o jovem a colocar um aparelho de
som potente no carro. Tão potente, o gravador terá tantas caixas
acústicas que o porta-malas será eliminado, criando-se ali uma mega-
caixa de ressonância. Alguns tomam tanto lugar com os auto-falantes
que nem lugar para estepe há. Para não dizer malas! Os vidros serão
rapidamente trocados. Pretos, espelhados e com convexidade do tipo
"bolha". A supensão será rebaixada, ficando o carro a 7cm do chão. Os
pneus são trocados por talas largas e rodas de titânio, tal fosse um
bólido de corrida. O motor vê sua carburação modificada para um tipo
turbinado. O ronco é ensurdecedor devido a uma caixa de amplifica-
ção de som do escapamento. A direção deve ser substituída por um
padrão que lembre o de carros de corrida. Tão pequena, parece um
ovo! Os bancos originais são substituídos por outros de couro com
encosto de cabeça especiais.
Aquele que ri do exemplo não deve ter memória ou não presen-
ciou o que se fazia nos anos 70, e ainda se faz em muitos lugares.
Parado num sinal, a personalidade daquele carro pode agora ser com-
parada com a do modelo similar de um funcionário de banco que
manteve originais todos os acessórios. A cor marrom não tem um
penduricalho. Somente um plástico no vidro: "Deus é vida". Os bancos
ainda têm o plástico original para a proteção do estofamento, exceto o
do motorista que tem uma manta japonesa de massagem dos chacras.
São dois modelos idênticos, diferentes apenas na cor e em alguns aces-
sórios (têm pequenas diferenças por serem de anos diferentes, também:
num deles o pára-choque é envolvente e de fibra, enquanto que no
outro é parcial e de ferro; os retrovisores são retráteis e acompanham a
linha do pára-brisa no modelo mais novo e no mais antigo são de tipo
convencional). 6
A personalidade é mais ou menos isso. Temos uma forma básica
de modelo que pode então ser recheada de acessórios. Também o fato
de aquele primeiro carro estar todo enfeitado não é fato eterno. Depois
de alguns anos, o jovem estudante pode retirar todos os acessórios,
pintá-lo de outra cor e deixá-lo com o motorista, que passa a usá-lo
para levar comida aos porcos no sítio.
Julgar personalidade e sua base biológica é difícil. Todos os fatos
mentais são de uma certa forma assim, mas é fato que, se não há grande
variação no modo como cada um de nós percebe a cor vermelha ou a
torre de televisão, o modo como lidamos com nossas mentes e a
colocamos em exposição no mundo varia brutalmente. 0 fato de variar
PERSONALIDADE

não permite, no entanto, que se faça qualquer adaptação. Nem tudo é


possível. Imagine que um pároco compra o carro envenenado do jovem.
Obviamente a paróquia quer algo mais sóbrio e funcional. Procurará
novos acessórios. Não é qualquer um que serve, apenas aqueles que
são compatíveis com aquele modelo original. Assim, certas rodas não
servirão naquele modelo, bem como certos bagageiros, caçambas, etc.
Isso dá bem conta de limites e coações básicas na estrutura do
modelo. Qualquer definição de personalidade é uma forma de caracte-
rizar os aspectos essenciais do modelo. Os pendíiricalhos, usos,
acessórios, serão fatos posteriores. Naquilo que é essencial ou genético
podemos ter algo da ordem de 25% responsáveis pelo modelo básico.
Provavelmente os outros 75% se devem aos acessórios, cor, uso, etc.
Ao meio, enfim. Por isso o fator sitiante do meio, quando a mente deixa
de servir à sua vocação primária, a desvia para o mau uso de suas
aptidões. Ou o meio a endossa, preparando-lhe novamente fôrmas, ou
educa, repisando a trajetória que vai do cerebral ao mental, do privado
ao público, da ação ao dever.

PERSONALIDADE SOCIAL E AXIOMA COLETIVO

__pode, então, ser entendida como uma espécie


.cortina
de de fumaça, de roupagem externa 4pr. O grande detalhe é
que o externo tem a capacidade de se tornar igualmente interno. Na
personalidade, assim como na consciência, é difícil dizer se o que vem
antes é o individual ou o coletivo.
Há, nos fatos mentais, grande complexidade. Quando deixamos
de processar respostas monótonas diante do meio eassamos a ele er
j&operaçpossíveis para as mesmas entradas,
rqiierr lima fn~ dose de complexidade de processamento e jug-
uenFn- Essa complexidade é, em parte, já a razão da mente, mas a
mente propriamente dita surge quando nos tornamos conscientes de
uma parcela dessa complexidade de atuação e percepção do meio. A
personalidade, de uma certa forma, é um meio de estabilizar decisões,
de parametrizá-las. Como? Vamos lembrar-nos das teorias científicas e
do problema da verdade como um todo.
Teorias não são verdades últimas, são verdades provisórias. Isso
tem acontecido, de maneira geral, com a ciência no curso de sua histó-
ria. Há um nítido componente arbitrário em qualquer ramo do conheci-
mento Mesmo no malsuro e preciso domínio da matemática há una
série de axiomas e prinAtivos a partir dos quais se constroem derivações
O SÍTIO DA MENTE

A geometria pode partir de axiomas em que retas paralelas não se


encontram (geometria euclidiana) ou pode admitir o contrário
(geometrias não-euclidianas). São duas concepções axiomáticas que
fundam uma série de derivações e interpretações bastante precisas.
Portanto, há de haver um conjunto axiomático, arbitrário e contingente
de suporte para as interpretações complexas.
A personalidade seria, assim, um desses sistemas para situações
complexas. Se para situações mais triviais essa axiomática pode estar
fundada em primitivos de ação e de percepção, para situações comple-
xas esses primitivos são o conjunto de andaimes de personalidade que
sustentam uma visão do mundo e de si. Assim, a justificação, o valor, e
o significado da ação, da reflexão e da percepção passarão por um
crivo de construção de "teorias" sobre o mundo e sobre os fatos, internos
e externos.
Essa "teoria", que é basicamente o resultado do processamento
mental que atualiza a cada momento uma expectativa em relação ao
futuro, uma interpretação do passado e uma valoração do presente, é
guindada por uma sustentação da personalidade. Tanto no plano indi-
vidual quanto no social há axiomas que norteiam as possíveis soluções
de convergência.
Esse conjunto de axiomas, de pontos de referência arbitrários,
existem no plano individual e no social. A ideologia, a moda, a propa-
ganda e a "espiritualidade" são fortes candidatos a eixos por onde
transitam os modelos de personalidade social.
Dê-me um problema que deva ser interpretado pela mente. Esse
problema, se fácil e circunscrito à percepção ou à ação, usará de
primitivos neurológicos (é o caso da discriminação de objetos, de ações
motoras, etc). No caso de ações complexas, de paradoxos existenciais,
de posições sociais, políticas, econômicas, o que está em jogo é a escolha
de uma certa gama de primitivos axiomáticos que sustentem a
construção analítica da interpretação e da ação.
Personalidade pode ser medida como um estilo de reação diante
de certos fatos existenciais complexos. Imagine que para certos fatos é
preciso medir o desempenho e o estilo de ação dos dois carros descritos
páginas atrás. Embora bastante diferentes nos penduricalhos, não são
capazes de fazer certas coisas: correr a mais de 200 km/hora, manter a
aderência em situações x ou y, andar na lama tal fossem jipe, etc.).
Embora diferentes, têm uma série de atuações comuns, de usos, de
reações e de limitações. Isso, de uma certa maneira, é o resultado do
balanceamento de fatos mentais e de estilos de processamento. A soma
PERSONALIDADE

constitui uma personalidade, talvez um terço de base genética (chassi,


carroceria, etc.) e dois terços dependentes do meio (cor, acessórios,
modificações e usos).
Esse conjunto deve servir diante dos problemas ambientais como
uma primeira matriz de valoração e de colocação do problema. Se para
fatos perceptuais e motores somos bastante iguais, para fatos mais
complexos, que envolvem interação, valoração e conduta, somos bas-
tante diferentes. Isso sugere que a quantidade de fatos e a complexidade
de caminhos pode seguir muitas e diferentes vias. Porém, se há em
meio à complexidade e à pluralidade de ações alguns denominadores
previsíveis, isso se situa em algo que está para além ou aquém do
contexto.
Esse além ou aquém é uma gama de informação axiomática que
sustenta as operações decisórias. Lembre-se de que esse panorama é
inquestionável. Os fatos que se seguem são mais ou menos precisos,
mais ou menos certos. Na matemática posso dizer com precisão se
uma determinada derivação (dedução, indução, análise) está certa ou
não. Não posso, no entanto, discordar dos axiomas ou questioná-los. Se
aceitos, o resto estará em condições de ser avaliado como certo ou
errado. Se isto é verdade para tantos domínios, vemos recriado, no
contexto do conhecimento, o binômio evolutivo acaso/ necessidade ou
variação/ seleção. Com uma sutil diferença: na personalidade social,
não é o acaso que gera a variação; é a força que a impõe. Essa força
pode ser explícita na censura e na repressão, ou subliminar na educação
e propaganda. Imposto, explícita ou implicitamente, o axioma, agora
personalidade social, o resto se torna necessário, lógico, meridiano.
Tanto na ciência quanto na política pode haver algo de arbitrário que
antecede o lógico e racional. Tome-se aquele que tomar o acaso que
cria variabilidade na natureza como análogo do forte que impõe o tom
da lógica social. O raciocínio pode estar perfeito, e normalmente está;
segue-se da má escolha da porção axiomática.
Os axiomas seriam, assim, sustentação para a decisão e para a
elaboração de inferências. Pode haver sistemas de axiomas rivais, com`
omo.
a geometria de Euclides e as não-clássicas. Todas elas são úteis para.
fins específicos. São pragmaticamente verdadeiras em função de certas
aplicações.
Um exemplo provisório desta formulação é minha hipótese de `
que há proposições inquestionáveis de base que servem para uma in-
terpretação posterior da ação, da percepção e da moral.
Podem estar na base de alguns matizes de personalidade sociar.
O S(TIO DA MENTE

São rivais e deve-se exercer sobre elas opção voluntária ou não; crédu-
la ou crítica; ciente da mente-cérebro ou ignorante. Talvez o exame do
sítio cerebral da mente, de sua condição de predicado adaptativo, possa
auxiliar na escolha de melhores sistemas axiomáticos que sustentem as
deliberações advindas dessas personalidades sociais. Vejamos algumas
delas:
a) todo ser humano deveria ter acesso garantido ao alimento, à
saúde e à educação básica X apenas os que se esforçam e são capazes
devem ter acesso a isso;
b) a preocupação com o semelhante é fundamental X a preocu-
pação consigo e com os parentes próximos - linha direta - é funda-
mental;
c) a preocupação com as futuras gerações é fundamental X a
preocupação com a atual geração é fundamental;
d) nem todo ato errado é proposital X todo ato deve ser entendi-
do como proposital;
e) o perdão é absolutamente essencial na relação humana X a
punição é absolutamente essencial na relação humana;
f) o dever deve ser modulado pelo prazer X o prazer deve ser
modulado pelo dever;
g) a oferta de moeda inflaciona X a estrutura complexa da econo-
mia inflaciona (sendo a moeda apenas um dos elementos);
h) a liberdade individual é o bem maior X a igualdade de oportu-
nidades é o bem maior;
i) a liberdade tem limites X a liberdade só é liberdade quando
ilimitada;
m) o prazer é um dos elementos da realização X o dever é um
dos elementos da realização;
n) ser é fundamental X ter é fundamental;
o) a verdade é fundamental X a eficácia é fundamental;
p) os fins justificam os meios X os meios definem os fins.
Esse conjunto de afirmações, não necessariamente espelhando
duas colunas rivais, mas rivais em si (é tarefa de cada um escolher em
cada item sua posição axiomática), creio, tem servido de axioma donde
derivam várias ações, percepções e valorações da parcela pública e social
de nossas mentes.
• Suponha que, se devo agir em situação humana complexa, devo
estabelecer um conjunto de axiomas que dirigirão minha geração de
raciocínios, respostas, inferências, valores e sensações. De maneira geral,
muitos são os paradoxos e as situações antagônicas na vida e na ação.
PERSONALIDADE

Agir, perçeber e v or.en-situaçãocomplexa,


Qua máxima expressão. é difícil. Sem pontos de partida. corremos o
risco de paralisar a ação, a percepção e o juízo.
A personalidade é um misto de hereditariedade (norma posta) e
jurisprudência (resultado médio das coisas concretas já julgadas/apren-
didas) que define o patamar axiomático da ação, da reflexão e do julga-
mento. Por ser um axioma, é inquestionável e intratável; é a parte
variável e casual do conhecimento. O que decorre a partir de então
pode ser avaliado como lógico ou não, certo ou errado, adaptado ou
não. Em toda formulação, mesmo na matemática mais precisa, há algo
de arbitrário que antecede a derivação mais ou menos rígida.
A ciência tem procurado a relação entre os símbolos mentais;
vimos que a natureza desses mesmos símbolos tem de ser elucidada,
antes de qualquer apelo às relações decorrentes deles: regras, regulari-
dades ou sincronização. Também a mente social tem relações análogas;
procurar-lhes os símbolos, suas instâncias de aparição e, como propo-
nho, seu compromisso com a adaptação da espécie e não do indivíduo,
pode auxiliar na discriminação dos axiomas da personalidade social; se
arbitrários porque convenções no plano da mente sem corpo, podem se
tornar necessários no plano da mente cerebral.
O acaso cria a variabilidade e a necessidade cria a seleção. O
acaso cria os axiomas e as formas de personalidade. A necessidade
cria os raciocínios e os argumentos, bem c omo as acões e reflexc
Defini ti v que há inqIjAnstionáX211~~
ções a xiomáticas do conhecimento. A verdade é sempr e vragmát
As teorias são sempre provis. a aptação ao meio é sem

Toda a articulação de hipóteses e teorias segue, a meu ver, a


ordem ambivalente do acaso e necessidade. O acaso, fonte de variação,
é benéfico em muitas situações. Na teoria da evolução, as mutações
nos genes vão criando pequenas ou grandes variações nos seres. Sobre
essas novas características se debruçará o meio ambiente, selecionando
a melhor adaptada. Há acaso na formação de novos traços pela obrá
das mutações; há necessidade pela conjunção desse novo traço e sua
adaptação ao meio. Não há uma direção universal no processo de
mutação, nem há, no processo de seleção, valoração universal. Uma
característica nova será selecionada com relação a um determinado
contexto.
Essa constante alternância entre o acaso que cria a variação e a
necessidade que cria a seleção inspira quase todos os ramos do
O SITIO DA MENTE

conhecimento e de sua atuação. As escolhas prévias, de método, de


axiomas, de valores, são arbitrárias, impossíveis de discussão. Sobre
elas pode-se construir cadeias de raciocínio mais ou menos rígidas e
precisas. Essa cadeias de raciocínio são a parte sujeita à razão e à
inteligibilidade; são necessidade passível de exame, confronto e debate.
A personalidade amoral, no piano individual, e alguns conjuntos
de axiomas da personalidade coletiva, me parecem levar a um impasse.
Se entendermos que há arbitrariedade e aleatoriedade no processo de
escolha ou geração dos axiomas, não teremos como fazer frente a duas
variações que têm povoado nosso meio: do ponto de vista individual, a
amplificação da pouca ética nas condutas; do ponto de vista coletivo,
uma ênfase no individualismo e na realização privada. Se, do ponto de
vista individual, esses dois axiomas, um individual e outro coletivo,
podem ser apenas acaso que cria suas variações, do ponto de vista
coletivo, ambos são ameçadores. O individual porque levará ao colapso
do coletivo. O coletivo porque simplesmente corrobora e formata os
novos indivíduos. Pense no círculo vicioso que vai se instalando com
esses dois fatos: ética decrescente e individualismo.
Defendo que aquilo que é axioma no nível social, político e
econômico, pode ser derivação ou lei numa outra ciência. A biologia
evolutiva deve nortear as escolhas de axiomas porque a ética é fator de
equilíbrio para a formação de grupos sólidos e o individualismo é
absolutamente danoso em matéria de perpetuação da espécie, salvo em
situações específicas em que a luta pela sobrevivência é isolada e egoísta.
Do ponto de vista psiquiátrico, a correção de distúrbios de
personalidade deve ser entendida com cautela. As melhores técnicas
de tratamento envolvem processos de ressocializacão e submersão numa
nova LtOS. ociaiizar e
são maneiras de NO 1deJçãQ,
ter os memores axic e construir s ua s
o de arbitrário em o processo de
racionalidade. Se conviver com uma _q-ug-uão pode
nfaxmazm
ias, que não perca .enos, o ideaLde
saivaguaraar a epç ino momento des
. solidariedade entre as ssoas sao axioma
fi orac V11(
P c1-r.

A personalidade é externa porque muito mais moldada pelo meio


que pela hereditariedade. Ela, bem como grande parte da mente, é, na
PERSONALIDADE

forma, um conjunto pouco acessível de regras e regularidades. Como


conteúdo é um discurso em parte herdado e em parte aprendido pelo
convívio com os outros. Assim, se é interna no sentido de patamar a
partir do qual se darão os raciocínios, também é externa na medida em
que é fortemente moldada, para além da genética, pelo meio e pela
história. Incorpora-se lentamente ao mundo interior uma visão de
mundo que inicialmente é externa.
Dessa maneira pode-se falar em determinantes sociais, culturais
e políticos da personalidade, embora se deva ter em mente que a varia-
bilidade dos modelos é grande e que dentro de cada modelo há uma
série de adaptações (cores, acessórios e usos) que podem tornar enor-
mes a complexidade e a margem de correção. Isso tem importância
para que possamos estabelecer uma hipótese acerca das personalida-
des com forte componente amoral. Se parecem ser totalmente não-
funcionais para o convívio social, para a sociedade como entendemos
até hoje, nem por isso podem ser colocadas como variabilidade indevida
ou errada de princípio.
Isso faz com que tenhamos um dever de escolher a sociedade
que tornará um tipo ou outro de personalidade adaptado. Espero que
não se deixe caminhar a personalidade social de tal sorte que suas
escolhas axiomáticas preparem terreno para que, no plano individual, o
amoral seja o super-homem do futuro.

SÍNTESE

A personalidade é uma função complexa. Transita por eixos


básicos que nos animais podem claramente ser liderança,
tradicionalismo, etc. No ser humano são muitas as suas formas e também
os eixos em que é classificada.' Adoto uma classificação, acorde com o
fio condutor do livro, baseada em três características: quanto à ação,
quanto à. percepção (ou sensação) e quanto ao valor.
O valor, mediato ou imediato, aparece aqui como sucedâneo da
consciência; pelo menos em sua parcela fundamental. O amoral, varie-
dade individual de personalidade considerada patológica, é um
diagnóstico-limite da psiquiatria. Talvez limite porque obriga à revisão
da própria noção de anormal, uma vez que estamos diante de algo que :
pode ser apenas variação, modelo de mente.
Se a variação pode criar aberrações, e isso está contemplado na
percela de acaso que cria variabilidade, a necessidade é que cria a
adaptação. Isso é teoria evolutiva pura.
O SfTIO DA MENTE

Portanto, se o psicopata pode ser variação, e se há algo de


axiomático e arbitrário no pólo casual do processo, há que pensar no
meio que vai torná-lo adaptado ou não. Esse meio, falando de modelos
de mente, não é mais o natural, mas o social. Dependendo da socieda-
de que tomarmos como base média de onde partem as atuações
individuais, corre-se o risco de fazer do amoral o grande sucesso de
amanhã. Por pouco tempo, no entanto. A mente, entendida como sem
limite, espiritual e instrumento de sucesso individual pode se deixar
seduzir por variedades levemente psicopáticas. Porém, se entendida
como predicado adaptativo da espécie que fundou e permitiu a reunião,
terá no elogio da relativização da ética a perda de sentido para o público
e para o privado. individual de tipo
amoral e a sociedade que jieprearou o bguete: aespécie entrará
ëiicolapso, talvez extjnão.
O SONHO COMO FUNÇÃO

Capítulo 22

O SONHO COMO FUNÇÃO

A última função mental que devemos examinar é o sonho. Ao


contrário do que algumas correntes científicas defendem, o sonho pode
ter importância crucial no exame da mente. Não se animem, porém,
aqueles que vêem nele o mensageiro do inconsciente: não há evidência,
até os dias de hoje, que endosse a visão do sonho como instrumento
diagnóstico. Isso não impede que se opine, que se gerem hipóteses
sobre mecanismos, mas com o cuidado de duvidar de qualquer teoria
que afirme com certeza a relação entre sonho e mente, sonho e
premonição, sonho e revelação, etc.
O sonho é extremamente interessante porque associa elementos
de consciência com ausência de ação motora, controle, vontade e forte
incoerência na narrativa. Sua importância decorre do fato de que, se a
consciência é seu principal elemento, palco como defini, o sonho é uma
forma interessante de consciência que nos permite fazer algumas
aferições sobre o modo de funcionamento do cérebro humano e sua
relação com o meio externo. Ele pode ser entendido por uma vertente
objetiva e por outra subjetiva. Não há sonho, como não há vida mental,
objetivos. E objetivo para o sujeito, dado imediato ou diretamente
acessível.
A noção de objetividade é pública. O domínio público é aquele
em que o discurso e os objetos são aferíveis e experimentáveis por
qualquer um. Quando digo "esta cadeira", apontando na direção de
uma, refiro-me a um objeto público. Quando falo da cadeira que tenho
em minha mente (ou em minha consciência) estou falando de algo a
que somente eu tenho acesso. Por isso, há na história do pensamento
uma dicotomia extremamente complicada: objetivo x subjetivo, ou
público x privado. O sonho é objetivo para o sujeito, o que quer dizer
subjetivo. E subjetivo para qualquer outra pessoa porque apenas descrito
pelo sujeito que sonha. Essa faceta pode ser contraposta a um aspecto
objetivo: costuma ocorrer numa fase do sono chamada de REM (ou de
movimentos oculares rápidos).
O SÍTIO DA MENTE

O sono tem diferentes fases, que compreendem diferentes traça-


dos eletroencefalográficos (EEG). E na chamada fase REM que ocorre a
maioria dos sonhos (podem acontecer, raramente, em outras fases). O
sono REM é objetivamente avaliável pelo traçado do EEC e também
por outros registros (atividade muscular, movimentos oculares).
Posso acessar o sonho por duas vias: uma subjetiva, que é seu
relato; outra objetiva que é o estado de sono REM. Na verdade a
situação é mais complicada, porque o relato do sonho não é o sonho,
mas sua lembrança (devidamente deturpada pelo fato de haver má
memorização nos sonhos -. devido ao estilo de processamento de
memória de curto termo e à ausncia quase total de "salvamento"
para memórias de longo termo). (
O sonho experienciado pelo sujeito se dá durante o sono. O rela-
to se dá na vigília. Durante a experiência propriamente dita, a vivência
de sujeito está bastante comprometida: não se tem controle sobre o
sonho (às vezes há um pouco) e não se tem a firme sensação de ser o
sujeito que se é (o sujeito acordado não é o sujeito quando sonha). O
sujeito, quando sonha, se caracteriza como sujeito apenas pela sua
posição diante do objeto sonhado (" sou um sujeito perante o sonho"),
não estando presentes os outros elementos que caracterizam
plenamente "ser um sujeito" - controle, coerência cognitiva, vontade,
liberdade, ação, percepção do ambiente e capacidade intencional de
valorar cenários complexos, ratificando ou inibindo-os.
O sujeito que sonha é apenas uma percela da predicação do su-
jeito da vigília. Ainda assim é sujeito parcial e consciência parcial; nisso
reside a função do sonho, quer como instrumento biológico, quer como
argumento que nos levará a forjar uma hipótese: a consciência cerebral
do animal pode, no máximo, se assemelhar à nossa consciência onírica;
a consciência plena, depende da vigília, da sociedade e da capacidade
de valoração das ações complexas.
Sabe-se que há ocorrência de sonhos em fase REM de sono por-
que, se despertarmos pessoas durante essa fase, quase que invariavel-
mente descreverão estar sonhando. Quando acordados durante outras
fases do sono, dificilmente relatam experiências oníricas. Há três modos,
então, de encarar o sonhar:
a) o sonho objetivo para o sujeito (subjetivo no sentido público)
enquanto sonha;
b) o sonho descrito pelo sujeito, degradado pela má memorização,
pelas lacunas e pelas descrições meio forçadas ("não tenho muita
certeza ... mas parece...");
O SONHO COMO FUNÇÃO

c) o sono REM, fase do sono objetiva publicamente em que há


alterações no EEC e em outros registros objetivos da atividade cerebral
e corporal.
Durante sua ocorrência, o sonhar é estranho. Raramente tem, como
também outras imagens mentais, contornos nítidos. Lembre-se da
impossibilidade de discriminação de propriedades de imagens mentais
- é impossível contar o número de listas da zebra imaginada. A coerência
também costuma estar ausente. Há sonhos lineares, normalmente
narrativas fáceis. Há outros desordenados, onde não apenas a estrutura
e o desencadeamento das coisas não faz sentido, como também há
alterações de indivíduo e de lugar:" Havia uma casa de fazenda, que
na verdade era minha casa de praia. Abaixo da horta, havia um barranco
e para lá do barranco estava o mar ... Uma pessoa estava enterrada na
areia, mutilada, aparecendo uma série de escaras. Uma senhora de
cabelos longos dizia algo ... Não conheço a senhora, mas no meu sonho
era minha tia fulana de taL..Chegou um trator, o maior trator do mundo
e tomou conta de tudo..." Esse sonho descreve alterações de lugar: a
casa de tal lugar que está em outro lugar; de pessoa: uma pessoa que
não conhecia, que no sonho era a tia fulana.
Este sonho foi relatado logo após uma cirurgia de extirpação de
tumor. Embora não houvesse percepção clara, nem suspeita, quando
sugerida a relação entre o corpo mutilado do sonho e a sensação
proveniente da operação, houve assentimento; quando se sugeriu a
relação entre o "tomou conta de tudo" e o medo de metástases, houve
também assentimento.
Quando eu escrevia este livro, horas a fio no computador, dormia
pouco, excitado pelos vestígios do dia. Uma pequena luz que aponta a
hora no despertador digital me invadiu, mais de uma vez, o curso do
sonho. Eram luzes paralelas que divergiam numa estranha deformação;
a elas se agregava o estalo do assoalho, dilatação normal da madeira;
ambos, luzes que se tornam estruturas paralelas divergentes e estalos no
assoalho, imperceptíveis à consciência e narrativa oníricas, suscitam a
vivência alucinatória de uma casa prestes a ruir. Procuro com a mão
minha mulher, protegendo-lhe o corpo, tentando evitar que caia no fosso
prestes a se abrir no meio do quarto. Acordo assustado. Outra noite, os
tipos humanos no sonho são parametrizados pelos tipos e tamanhos de
letras usados no programa do computador.
Cientificamente, nenhum experimento feito até hoje mostrou
relação significativa entre conteúdos oníricos e alguma mensagem
específica. Isso põe por terra, até o momento, afirmações categóricas
O SITIO DA MENTE

sobre sua condição de intérprete e mensageiro do inconsciente (em


ciência não é permitido balançar a cabeça, tal fosse um delirante, dizen-
do: "eu sei que há, somente jamais se achou").
Mas isso não põe por terra a possibilidade de que a mensagem
tenha algo que ver com experiências prévias, idéias, temores, etc. Inter-
pretar um sonho, processo de geração de hipóteses e discursos, pode
possibilitar a discussão acerca dos estados mentais de uma pessoa.
Minha concepção acerca das terapias mentais baseadas em
interação verbal é essa. Ainda que não se possa afirmar categoricamen-
te uma série de relações - justamente pelos aspectos dinâmicos e
pessoais ligados à sua formação -, o processo de reordenação e classi-
ficação em novas categorias fornece aos centros superiores (córtex
associativo) nova teia de relações, de tal maneira que se o interlocutor
se encontra ilhado em encruzilhadas afetivas e subcorticais, pode agora,
pela consciência e pensamento, ponderar novas e insuspeitadas relações
que resolvam impasses. Nesse sentido o processo é uma reconstrução
de elos possíveis, pela mão da interpretação, de tal sorte a fornecer ao
outro novas maneiras de classificar objetos e relações. O processo não
deixa de ter componente didático, de pesquisa e de geração de teorias
e hipóteses.
Certa vez tive um sonho com duas mulheres: uma era pessoa
ligada às lides financeiras; outra às lides intelectuais. Claro que no
sonho não apareceram essas duas conotações. Era como se tivesse so-
nhado estar dividido entre o amor por Margaret Thatcher e por Simone
de Beauvoir. Acordei e contei para minha mulher. (Não tinha parado
para analisar, mas a verdade é que não me fazia muito sentido a eventual
mensagem desse sonho.) "Parece que você estava dividido entre di-
nheiro e cultura" disse ela. Parece bizarro porque o que relatei para ela
e para mim mesmo não foi a qualificação de fulana ligada a dinheiro e
beltrana ligada à cultura; relatei apenas a ocorrência das duas senhoras.
De fato, na época estava sobrecarregado, dividido entre o trabalho de
consultório e a produção de uma tese acadêmica. Dividido entre dois
senhores - no sonho, duas senhoras - devia decidir o que privilegiar -
o trabalho melhor remunerado ou o acadêmico.
Por que não me foi imediatamente óbvia a associação? Isso cos-
tuma ocorrer e, antes de ser devido à repressão ou censura, é proble-
ma de memória e tipo de processamento cerebral. O sonho é um
• recrutamento na consciência de imagens conceituais que dizem respei-
to a fatos vividos, apreensões e hipóteses, sem que haja controle
.voluntário de percepção e de motricidade ou memorização eficiente.
O SONHO COMO FUNÇÃO

Esses elementos juntos nos serão vitais para entender algumas das
hipóteses que emergem de sua análise como fenômeno mental e sua
relação com o cérebro.
Durante a fase REM do sono há:
a) desligamento de atividade sensorial e motora;
b) padrão de EEG muito semelhante ao estado de vigília, isto é,
consciência e atividade(s) mental(is) normais;
c) ausência parcial de controle voluntário;
d) ausência parcial de crítica e coerência;
e) consciência e vivência que lembram situações de vigília,
parecendo "reais".
Os fatos a) e b) são objetivos. Os outros, subjetivos.
Pela descrição, depreende-se ser o sonho um estado' mental
fantástico para pensarmos algumas de nossas idéias sobre a mente e
sua relação com o cérebro e o mundo. Pelos itens listados podemos
perceber que, se o EEG é praticamente igual no estado de vigília e no
sono REM, então a atividade elétrica é também semelhante. Vimos,
desde os primeiros capítulos deste livro, que a forma desta atividade
elétrica é o que define o objeto a ser codificado e também a sua
manipulação. Portanto, se definimos a consciência como a principal
função mental, o palco onde ocorrem as outras funções, e se a
consciência, ainda que degradada, aparece no sonho, a despeito de
estarem desligadas as vias sensorias e motoras, então a consciência
elo menos parte dela) é função que depende exclusivamente da porção
cerebral envolvida no sonho.
Se a consciência é algo que emerge durante o sono, a despeito de
estarem desligadas as vias motoras e sensoriais, então o cérebro sem o
meio é suficiente para gerar consciência e vida mental, salvo se
imaginássemos que não temos nem consciência nem vida mental, mas
apenas memórias, estas sim recrutáveis das imagens perceptuais e
motoras. Isso tem importância porque houve quem pensasse ser a mente
apenas uma folha em branco em que a experiência escrevia suas marcas.
Porém, se a consciência no sonho é degradada, os aspectos
ausentes em relação à consciência da vigília são: a) controle; b) coerên-
cia; c) capacidade de memória de longo termo; d) capacidade de críti-
ca/juízo; e) unidade plena da sensação de ser o sujeito da ação/cena.
Se a consciência pode acontecer, ainda que de forma degradada,
fora do contato com o meio, então o cérebro é suficiente para gerá-la.
Porém, para gerar os itens a), b), c) e d) listados acima, parece necessário
o contato com o meio através da ação e da percepção. Controle, coerii-
O SÍTIO DA MENTE

cia, capacidade de memória, crítica/juízo e sensação plena de ser o


sujeito da cena dependeriam da ligação motora e sensorial com o mundo.
Isso pode mostrar os limites da consciência, seus circuitos princi-
pais e as funções que, embora atribuídas a ela, não são puramente
cerebrais-autônomas, mas cerebrais engajadas na relação do cérebro
com a ação, a percepção e valoração.
Poderíamos dizer que o sonho é a consciência cerebral autônoma e
a vigília, a consciência cerebral engajada com o meio, seja pela ação, seja
pela percepção, seja pelo valor? Mas se o engajamento é responsável
pela coerência, então a geração de plausibilidade, verossimilhança e
verdade são funções do acoplamento da consciência com o meio. Também
o controle voluntário, antes de função exclusiva do cérebro autônomo,
seria função do cérebro em contexto. Também seria a geração de memória
de longo termo, de reforços, de unidade subjetiva do "eu".
Isso tem importância crucial no nosso esquema porque, de uma
certa maneira, uma série de funções ou de faculdades mentais são muito
mais dependentes da ação e da percepção do meio do que se poderia
supor. Por outro lado, a consciência, em sua faceta autônoma, é
puramente cerebral, mas insuficiente. Se mantivermos a noção de que
a consciência é a principal função mental, o palco onde se desenvolvem
as outras funções, seremos levados a corroborar algumas das hipóteses
mais modernas sobre cérebros:
a) o cérebro é órgão ativo e não passivo, gerando todo o tempo
planos e ações (o que estaria endossado pelo estado de consciência do
sonho);
b) o meio ambiente é apenas um reforçador de teorias, um ele-
mento que corrige, verifica e refuta hipóteses geradas pelo cérebro -
portanto, tanto a ação motora quanto a sensorial seriam apenas instru-
mentos de correção de planos gerados centralmente;
c) a coerência discursiva é plena na vigfli (exceção feita às psico-
ses) e parcial no soriio;kgo. o meio é fundamental para a maniitnço
da coerência;
d) o controle voluntário é pleno na vigília e raro no sonho; logo, o
meio é fundamental para a vontade;
e) a noção de unidade do "eu" é plena na vigília e rara no sonho;
logo, o meio é fundamental para ela;
f) a fixação de memórias é plena na vigília e parca no sonho; logo,
o pleno funcionamento dos circuitos de acesso à memória e de gravação
dependem do meio.
Poder-se-ia inferir que, se unidade do "eu" e coerência discursiva
O SONHO COMO FUNÇÃO

são conceitos mais complexos, as únicas funções mentais que parecem


deficientes no sonho são a memória e o controle voluntário. Por serem
ou não dependentes do meio, pode-se dizer que são fundamentais para
a plena atividade consciente (aquela que ocorre na vigília). Logo, o
exame das condições de consciência no sonho pode me ajudar a elaborar
duas hipóteses fundamentais:
a) a consciência plena depende de memória e de controle volun-
tário (além da vivência subjetiva de consciência, que também está
presente no sonho);
b) os estados psicóticos podem ser encarados como análogos do
sonho, embora mantidos os contactos motores e sensoriais com o meio.
A psicose seria, assim, uma espécie de estado onírico em que memóri-
as, juízos, controle e unidade do "eu" estão deficientes. O estudo do
funcionamento cerebral no sonho e de seu correlato com a vigília nor-
mal pode ser, então, uma pista para entender alguns estados de altera-
ção mental (particularmente as psicoses).
O sonho é, assim, um elemento fundamental que mostra a gêne-
se cerebral autônoma de consciência. A ausência do meio no sonho
pode explicar a ruptura da memória, do controle e da unidade do "eu".
Mas se a memória talvez dependa do reforço ambiental, a vontade e a
unidade do "eu" pareciam não depender. Em sendo verdadeiro que
dependem, posso imaginar uma nova função para o meio, para a socie-
dade, na foija da vontade (ou pelo menos do controle voluntário) e na
unidade do "eu".
O cérebro seria, assim, capaz de gerar proposições e o meio seria
encarregado de verificá-las. Porém, pode-se indagar se os sonhos de-
sorganizados são proposições ou não (embora não esteja em questão
se são verdadeiras ou falsas pelo desacoplamento com o meio ambiente).
Diria que uma hipótese de trabalho seria a seguinte:
a) a consciência plena gera proposições e verifica se são
verdadeiras ou falsas;
b) a consciência onírica gera proposições e não-proposições, mas
não as verifica porque está desacoplada do meio;
c) a psicose gera proposições e não-proposições, tendendo a to-
mar proposições falsas como verdadeiras e, nos casos extremos, não-
proposições como comunicativas.
Do acima dito, ficariam duas questões fundamentais.
1) O sonho proposicional mereceria interpretação; o não-
proposicional seria apenas aleatoriedade neural (disparo de assembléias
ao acaso, como se fossem departamentos fazendo treinamentos), a não
O SÍTIO DA MENTE

ser que haja uma estrutura proposicional oculta (ou metaproposicional).


2) O fato de a psicose tomar não-proposições como comunicati-
vas poderia ser um problema em outro setor; afinal, poesia concreta é
não-proposicional, comunica e é não-psicótica. No caso, também um
nível metaproposicional seria requerido, no nível de blocos de discur-
so e não apenas de unidades proposicionais de discurso, para esclare-
cer o problema.
Sonhos são fascinantes. Animais sonham e podemos inferir por
aspectos objetivos que conteúdos estão sendo sonhados .4 Pela atividade
de órgãos sensoriais e outros parâmetros, podemos inferir que estão
tendo sonhos visuais, táteis, etc. Porém, no ser humano adquirem
especial significado, uma vez que o problema da consciência é
fundamental na discussão sobre a nossa mente. Também a linguagem
permite um grau de sofisticação e aprofundamento no exame dos seus
conteúdos e funções./
Para a moderna ciência cerebral, sua principal função seria fixar
memórias guardadas da vigília. Para certas hipóteses de redes neurais
sua função seria apagar más memórias.' Não psicanaliticamente, mas
energeticamente irregulares.
De qualquer forma, vale mencionar o fato de que a relação entre
consciência, memória, vontade e unidade da pessoa são fundamentais,
dependendo de variáveis cerebrais autônomas, de ações e percepções
sobre o meio. O sonho nos comprova a tese de que, embora haja im-
portância em todos os pólos, quem gera a consciência é o cérebro,
cabendo ao meio apenas corrigi-Ia. O cérebro produz o sonho, a realidade
o enquadra.

HERMENÊUTICA E PSICOTERAPIA

Estudar conceitualmente o sonho nos descortina, no modelo des-


te livro, uma hipótese para a consciência. Mais ainda, permite que de-
fendâmos uma concepção compatibilista quanto aos tratamentos das
disfunções mentais.
O sonho mostra que a consciência tem muitos de seus predicados
ligados ao ambiente. Controle, vontade e liberdade, antes de atributos
internos, são o resultado da operação de um palco consciente corrigido
pela sensorialidade e pelos testes motores.
O cérebro fornece fôrmas onde se encaixam formas e conteúdos
mentais. Se uma fôrma define o encaixe, uma forma define um análogo
desse encaixe no plano das regras lingüísticas. Se o cérebro fornece
O SONHO COMO FUNÇÃO

moldes através de sincronização de módulos, formas mentais são basi-


camente sentenças quantificadas gerais de relação de entidades e de
predicados. Conteúdos são os candidatos a substituir essas variáveis
quantificadas, gerando proposições.
O cérebro produz o molde y através de sincronizações. A sentença
quantificada do tipo "Existe um x, tal que se x é S, então x é P" é uma
forma mental que se encaixa na fôrma cerebral. Elementos que
substituem x, S e 1' são conteúdos mentais (símbolos). Assim, para x =
Sócrates, S = homem e P = mortal, temos "Existe Sócrates, tal que se
Sócrates é homem, então Sócrates é mortal ". Há diferentes níveis de
conteúdos mentais, já interpretados. Cada um pode supor cadeias de
interpretação que são dinamicamente definidas pela interação do
cérebro com o meio ou pela correta substituição dos termos nas sen-
tenças significativas.
O cérebro fornece fôrmas. A mente fornece formas, estruturas
quantificadas e predicadas tais que permitam sua substituição pelos
termos da linguagem.
Alterações primárias das fôrmas cerebrais precisam de medicação.
Alterações de formas mentais costumam requerer ambos os tratamentos,
afinal entre a fôrma e a forma há uma relação de quase-identidade.
Alterações de conteúdo e, sobretudo, de correta alocação de entidades
e seus predicados, mormente nas situações complexas, requerem
também retreinamento de conexões dinâmicas que aparelhem o sistema
na forja de significados. Aí entram as psicoterapias, baseadas em
reclassificação e busca de interpretações, não ocultas pela repressão,
mas obscuras à inteligibilidade cortical.

SÍNTESE

O sonho nos interessa de maneira fundamental. Como exibe


consciência, embora degradada, estando o organismo desacoplado do
meio, então suponho que a consciência tem uma parte fortemente ligada
ao cérebro e outra ao meio. Aquela ligada ao cérebro não é capaz de
produzir coerência, controle e vontade. A vontade, tal qual concebemos,
deve ser a tradução de uma vivência numa sentença. Ocorre na
consciência, bem como a sensação de liberdade. Mas se ocorrem na
consciência plena e vigil, mas não na onírica, então deve haver algum
equívoco no processo.
Não temos, na verdade, geração de vontade e liberdade na
consciência. Porém, ela, de posse de seus instrumentos de correção
O SÍTIO DA MENTE

sobre o processamento complexo que ocorre no nível infraconsciente,


pode inibi-los ou ratificá-los. Isso é suficiente para a vivência de vontade
e liberdade, quando o que ocorre é apenas a correção de programas
prévios, resultado da operação complexa de módulos não-conscientes.
A consciência puramente cerebral é desorganizada, sem controle,
sem clara noção de sujeito. O meio adestra em nós a coerência e também
a unidade do sujeito privado e público.
Sem linguagem e sociedade, esse meio natural poderia gerar
consciência parecida com a do sonho. Talvez com a função, ainda assim,
de solucionar - nesse caso a noção de conteúdo ou forma reprimida, ou
pelo menos no suficientemente clara para ficar no nível da complexidade
-, poderia ser revivido.
A consciência do animal não-social e não-lingüístico seria algo
que se assemelha à nossa consciência onírica. Parca mas ainda assim
com função. A consciência plena teria dois senhores a coordená-la: o
cerebral e o social. Daí ser uma teoria do mental tão difícil porque no
próprio cerne de sua operação ocorre a interface entre natureza e cultura.
A unidade somente pode ser resgatada pela redução da natureza à
cultura - tudo seria discurso sobre objetos de conhecimento - ou pela
redução da cultura à natureza - tudo seria fruto de hierarquias
superponentes com a finalidade de coesão do grupo.
CONSCIÊNCIA: CONTEÚDO, VIVÊNCIA E FUNÇÃO

Capítulo 23

CONSCIÊNCIA: CONTEÚDO, VIVÊNCIA E FUNÇÃO

C érebros são comuns na escala animal. Aparecem em formas


de vida muito inferiores ao ser humano que já esboçam graus de controle
sobre a ação e sobre a percepção.
Quando deixamos de ser totalmente pré-programados e passa-
mos a incorporar memórias e aprendizado, calculando vários tipos de
ação sobre o meio, passamos a requerer cérebros cada vez mais
complexos. Se a mente for encarada como processamento complexo,
aprendizado e mecanismo decisório de solução de problemas baseado
em memórias e riscos, então podemos considerar que há mente em
animais menos complexos que o ser humano; como também pode haver
consciência, mais rudimentar e parcial - tal ocorre no sonho. Porém,
com o tempo, o cérebro humano incorporou dois mecanismos
fundamentais: a linguagem e certas áreas (neocórtex) que talvez sejam
capazes de replicar ações e percepções planificadas, ou presumidas.
O cérebro paciente virou cérebro agente. Agindo sobre o meio
através da comunicação, criou estágios de reunião cada vez mais avan-
çados. Esses estágios de reunião acabaram por embrionar sociedades.
Essas sociedades foram aos poucos criando normas de convívio, de
conduta e centraram o problema da responsabilidade de cada um no
par ação/ percepção e respectiva justificação. Com o tempo, não eram
mais apenas os atos e as percepções que significavam algo, mas
sobretudo a sua justificação.
A justificação, as razões de um ato, seu caráter voluntário ou
intencional, livre ou coagido, passaram a constituir uma parte funda-
mental do juízo das ações. Mentes capazes de processamento comple-
xo e de formas degradadas ou parciais de consciência (como a cons-
ciência no sonho) se viram obrigadas a criar uma consciência complexa. .
Essa consciência não era mais complexidade de ação. Mas era comple-
xidade de monitorização sobre a ação. A consciência serviria, então, de
intérprete da ação presumida, de sua redescnção valorada com finali-
dade de justificação. Ação presumida porque o processamento cerebral
O SÍTIO DA MFNTF

complexo criaria inicialmente planos de ação e planos de percepção. Se


esses planos não apresentam conflito ou ambigüidade, convertem-se
em ato ou alimentam outros processos, sem que para isso tenhamos
consciência do que se passa. Quando ambíguos, do primeiro esboço de
ação ou percepção (que chamo de presumidos), não se passa ao ato,
mas apresenta-se a ambigüidade para julgamento da consciência. Essa
representação, no entanto, não é cópia. E versão filtrada pela linguagem,
pelas memórias, e investida de forte valoração. Graças ao neocórtex há
espaço de sobra para que se possa trabalhar com ações e percepções
presumidas e suas redescrições conscientes valoradas e formatadas pela
linguagem e memória.
Se toda ação é complexa, a consciência se encarregaria agora de
recriar a ação passada ou de projetar a ação futura com vistas a identi-
ficar nelas os elementos de defesa no tribunal da responsabilidade. O
contexto da justificação é parcial em relação às ações passadas e futuras.
Não é réplica, porque, se a ação é complexa, não há como recriá-la na
perfeição. Muito da ação foge à consciência e também à percepção.
Porém, os elementos lingüísticos de descrição da ação e da percepção
(proposições e discursos), estes sim, devem estar presentes na
consciência em caso de necessidade.
A consciência plena (humana) seria, então, formada de lingua-
gem, dever de justificação, neocórtex (particularmente frontal) e sin-
cronização (a ação complexa é uma oscilação, sua redescrição valorada
seria outra oscilação e haveria uma sincronização de ambas).
A consciência parcial poderia, então, surgir em qualquer ponto
da escala animal. Seria tão fundamental quanto em nós o sonho é
fundamental para a vida mental. Porém, no ser humano a consciência
plena surgiria porque:
a) a linguagem cria aos poucos um padrão de convívio social
cheio de normas de dever e de justificação;
b) o neocórtex é capaz de criar um análogo valorado da ação,
uma interpretação formatada pela linguagem (afinal é a linguagem que
será usada para acusar e para defender);
c) os análogos valorados da ação serão os conteúdos de consciên-
cia;
d) a sincronização da ação e da redescrição valorada da ação será a
consciência-sensação (ou conteúdo);
e) a consciência terá condições de inibir ou ratificar certas ações
futuras e de refletir sobre ações passadas;
f) se a consciência é forma valorada que serve à socialização, então
CONSCIÊNCIA: CONTEÚDO, VIVÊNCIA E FU

também nos graus supracerebrais haverá alguma forma de consciência,


controle, inibição (coação, repressão) de atividade inferiores;
g) desta forma tanto a consciência cerebral passaria a ser o mais
cultural dos fenômenos biológicos, como a sociedade em algumas de
suas facetas seria o mais natural dos fenômenos culturais (Fig.54).

indivíduo
consciência

reflexos (
Aé8
processamento significa 8*
/I\,4j\/j A* (leve ser 8*
complexo

\menriJ______-
mundo
,j, 1 sensação / repressão

linguagem
indivíduo

a
ações
reflexos
processamento
complexo

consciência
emória

Fig.54 - Dois indivíduos reunidos em sociedade. Distinguem-se os


seguintes níveis - o reflexo, o complexo, o consciente individual e finalmente
o "consciente-compartilhado ou coletivo ", que coordena determinadas
ações de ambos.

Na Figura 54 podemos ver que a consciência individual teria


aparecido graças a quatro elementos: neocórtex (mais ou menos res-
ponsável pelo surgimento da consciência como redescrição valorada da
ação/ percepção), sincronização (forma de codificação do mental), de-
ver/valor e linguagem.
A linguagem cria a comunicação, que retroage sobre o cérebro
pedindo por consciência. A consciência plena cria um análogo valorado
da ação, através da linguagem, e sincroniza (inibindo ou ratificando, te
O SITIO DA MENTE

necessário) com a ação. Como é código mental, também sincroniza com


a sociedade (reunião de indivíduos e fatos mentais, memória, valores,
etc.), que exerce seu papel físico através da pena e virtual através da
ideologia, da educação, da política, da religião, dos costumes, da moda,
da censura, dos heróis, etc.
A consciência surge aos poucos na história da espécie humana,
como um resultado da ação cerebral (lingüística e comunicacionalmente
habilitada) sobre o meio. Quando o meio vira sociedade, retroage sobre
o cérebro e o faz engendrar consciência plena (consciência onírica mais
coerência, memória, vontade, noção de sujeito, etc.). Os fatos sociais, as
dinâmicas, são progressivamente mais complexos. Por isso, de um lado
há no nível social uma profusão de regras, e de outro parece haver
uma profusão de opiniões. Quanto menos regras, mais opiniões.
Se o nascimento de todo fato social é, ao longo da evolução do
ser humano, o mecanismo cerebral parafraseado pela linguagem, deve
haver um fundamento natural e biológico numa série desses fatos.
Isso é fundamental porque o instrumento de escolha da ética, da
sociedade, dos costumes e das relações econômicas pode, e deve, ter
uma base evolutiva e biológica. O reino da opinião pode ser contido
pelo apelo biológico. O reino do dever pode ultrapassar seu aspecto
positivo e contingente para voltar a fundar-se na ordem cerebral
humana que o engendrou.
Quer dizer, mesmo para entender os códigos da cultura e da
sociedade, mesmo para poder avaliá-los como bons ou maus, é preciso
olhar para o código mental que o cérebro inventou, porque ali está,
juntamente com a história evolutiva, a norma para decidir o que é bom
ou mau. Não há lugar para uma opinião qualquer. Há uma ética natural
e talvez alguns aspectos biológicos que podem auxiliar na concepção
do direito e da economia.
A procura pelo código deve-nos fazer debruçar sobre o cérebro
no presente e ao longo de sua história evolutiva (biologia comparada
inter e intra-espécies). A consciência plena (e a meu ver a mente como
eu a entendo) é, assim, fenômeno que surge da pressão da sociedade
pela ação e pela justificação ou versão da ação. O fenômeno recruta
grande parte do cérebro para ocorrer porque (Fig.56):
a) há que gerar ações e percepções complexas (A é B);
b) há que gerar ações lingüísticas (geração de proposições);
c) há que criar redescrições valoradas da ação (A* significa B*),
ande A* é redescrição ligüística de A, significa é redescrição linguística
Aè é, B* é redescrição linguística de B;
CONSCIÊNCIA: CONTEÚDO, VIVÊNCIA E FUNÇÃO

d) há que sincronizar (e aí aparece o valor) A é B e A* significa B* ;


e) A* significa B* é um conteúdo da consciência;
f) (A é B) sincronizado (A *significa B é a função valorada ou a
consciência plena (inibitória ou excitatória - vulgo vontade - da cons-
ciência);
g) consciência plena é função e sensação (parte que aparece no
sonho);
h) a consciência varre grande parte do córtex, uma vez que estabelece
ação em três tempos e em três locais: em ta ação, em t +1 a redescrição da
ação, em t+2a sincronização de memórias de te de z'#-1.1
Também o fato de que o crucial numa teoria da mente, enquanto
departamento virtual e não concreto, é o código (de recrutamento, de
interpretação, etc.) permite ver o quanto de "mental" na forma de código
inteligível há na cultura, na sociedade e nas relações humanas. Isso faz
com que, com as devidas ressalvas e cuidados metodológicos, possamos
afirmar que há uma nova mente que surge da ação entre os seres
individuais, agora cada um deles neurônio de um novo cérebro social.
Ali, a ação será parafraseada em estruturas de consciência normativa,
moral e jurídica. Os costumes e os olhares exercerão papel. Também a
propaganda e outros meios.
A ordem redescrita nessa consciência mais ampla não é mais o do
A é 13, nem do A* significa B*, mas a do A** deve ser B**. Novamente,
o A é redescnção via linguagem (ou comunicação) de A*, o deve seré
redescrição de siqnifica, o B é redescrição de B* .2
Assim, o cérebro humano, ao longo de sua história evolutiva
(filogênese), foi criando códigos e oscilações que correspondiam ao
ambiente e à progressiva estrutura da ação motora e intelectual sobre
ele. Esses módulos passaram a representar o meio e as ações possíveis
sobre ele. Esse meio, quando social, retroagiu sobre os cérebros,
impingindo-lhes normas de redescrição valorada da ação através da
linguagem.
O cérebro continua a ser somente oscilação (freqüências). Tanto a
sincronização de freqüências para criar objetos, quanto para criar ações
ou redescrições consiste apenas em sinais elétricos. O recorte destes
sinais no cérebro real se dá através dessas sincronizações - esse é o
gabarito real. Porém, a progressiva submersão do indivíduo na sociedade
e na linguagem faz com que, lentamente, vá aparecendo uma tela onde
se vêem apenas gabaritos linguístico-sociais e simbólicos.
Essa mente é a cara do mundo. Esses gabaritos que recortam
códigos e freqüências parecem com a forma como a linguagem descrie
O SÍTIO DA MENTE

o mundo. Na verdade esses gabaritos não são reais; sãpnasomundq


mental externo, social e lineüístico internalizado. Por isso a mente aue
dentro do cérebro é acenas gabarito de sincronizações parece ao

de uma
se parece com

Podemos, com isso, lançar algumas bases de uma naturalização


da cultura ou de uma culturalização da natureza cerebral e mental. A
importância disso é investigar até que ponto os padrões ditos livres e
avançados de conduta apontam na direção da preservação da espécie.
Mais ainda, essa estratégia abre a última parte deste livro, que investiga
essa mente descerebralizada, código puro que reúne os indivíduos,
protagonistas do teatro social, cultural, econômico e político.
Será que este fim de século, que já sitia a mente porque a desco-
nhece em seu sítio cerebral, também não está produzindo fatos sociais,
econômicos e culturais que podem colocar em risco nossa sobrevivên-
cia como espécie?

SÍNTESE

Uma teoria da consciência poderia ter o seguinte esboço. Se as


ações são complexas no nível cerebral, há uma ordem paralela que
percebemos como mental. Ou o mental se torna sinônimo de cerebral, o
que é bom para educar pessoas sobre patologias e sua correção, ou
então é preciso distingui-los.
A sele dotou o ser humano de quatro elementos gue podem
ter sido fundamentais tara a emereência do aue chamamos de estilo

e o vaior sociais; e a
sincronização de múltiplos módulos cerebrais (essa não exclusiva do
ser humano).
As ações complexas, e também as percepções, quando triviais
não recrutariam consciência. Quando ambíguas e conflitantes,
necessitariam dela. Mas o que seria a consciência? Uma redescriçãq de
ações resumidas que devem ser confirmadas ou abortadas.
Apresentam-se, então, essas ações devidamente formatadas Dela
e pelas memór ias. U- que en
te ~ a ação pendente vai orada e
CONSCIÊNCIA: CONTEÚDO, VIVÊNCIA E

A consciência terá a função de valorar, inibindo ou ratificando, aquela


ação. Essa é a consciência-função. A sincronização da ação presumida e
da ação redescrita na consciência gerará a vivência de consciência
(consciência-sensação) por intenso recrutamento de unidades neuronais
(a vivência brota a partir de uma transição de fase do sistema - é tal a
quantidade de elementos necessários para a operação que praticamente
o sistema todo está representado naquela reunião virtual e, portanto,
essa representatividade espraiada e quase plena gera a sensação de
auto-inspeção).
As situações ambíguas no plano da consciência individual
poderiam ser novos elementos que se apresentam à consciência pública
para que se tente dirimir dúvidas, ratificando ou abortando planos.
Essa seria uma esfera de ação e retroação do indivíduo situado numa
cultura e interagindo mentalmente com o semelhante, bem como com
os objetos culturais.
A complexidade e a multiplicidade de cenários geraram múltiplas
soluções; porém, muitas vezes essas soluções não são estáveis ou podem
até não existir (ou numa linguagem já vista, pode ser incompleto o
sistema formal que as descreve, gerando no caso proposições
indecidíveis). Nesse caso recorre-se, com a finalidade de estabilizar o
sistema, ao plano superior: do cerebral ao consciente, deste para o
coletivo.
A vontade não é uma propriedade da consciência, como também
não é a liberdade. Porém, a consciência pode abortar ou ratificar planos
e versões que nascem da parte cerebral complexa. Quando se ratifica
ou inibe um plano inicialmente não-consciente tem-se a sensação (com
tradução discursiva proposicional) de que se agiu livremente ou por
vontade. O único erro é que a vontade não gera um plano, apenas o
corrobora ou inibe.
0 SuiiO DA MENTE

Pi
PARTE IV
A MENTE SITIADA
0 SÍTIO DA MENTE
SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

Capítulo 24

SUCESSO, EXCLUSÃO
E SOBREVIVÊNCIA

0 fascínio e a ignorância provocados pela mente humana


advêm de sua natureza complexa e de sua relação com o cérebro e com
a cultura. Mas a mente não é só cérebro e nem só cultura. E um código
que permite a formação dinâmica de objetos (símbolos), relações entre
símbolos (ações e percepções) e a valoração lingílisticamente mediada
de planos de ações e percepções (consciência). Nasce no cérebro
humano por artifício de sua complexidade biológica, capacidade inata
para a comunicação (produção de linguagem) e progressiva
capacidade' do neocórtex de representação neuronal de fatos e
redescrição destes.
Com o passar da história do cérebro humano foram-se criando
estágios de cultura (mimética, mítica e teórica).' Essa progressiva
complexificação da sociedade foi requerendo que surgisse um sistema
de deveres e penas que orientasse e regulasse a conduta dos
participantes. A consciência, inicialmente uma formação embrionária
- possível de existir em outros animais, talvez de forma semelhante
ao estado de consciência de nossos sonhos - foi incorporando a fun-
ção de monitorar, regular e valorar ações e percepções. Inicialmente
externa, introjeta-se pela lenta ascensão à idade adulta, condição de
emancipação civil e penal. Introjetou-se, antes, pela história da espé-
cie humana (filogênese) e introjeta-se em cada um durante o desen-
volvimento do cérebro e do indivíduo-sujeito-pessoa (ontogênese).
Essa consciência, cerne e palco de nossa vida mental, é parente
das condições cerebrais de sincronização sucessiva de atos/ percepções
e valores e também da cultura e da sociedade, que requerem não
apenas ações, mas também justificativas plausíveis para elas. Essa
lenta interação entre o cérebro humano e o meio foi criando a mente,
fenômeno de consciência que replica, no indivíduo, a ordem pactuada
da sociedade. A consciência se investe, assim, de um discurso
internalizado de normas e razões. E cérebro porque sempre foi. Mas
também é código que possibilita sua replicação em máquinas. Também
4
O SÍTIO DA MENTE

é código que faz surgir uma dinâmica mental em toda reunião humana,
em toda interação com os objetos da cultura.
Essa mente-consciência, que surge inicialmente pela ação do cé-
rebro sobre o meio, depois do meio sobre o cérebro e, finalmente, pela
ação do meio externo sobre o meio interno, não mais mundo físico e
mundo cerebral, mas esfera social pública e social privada (consciên-
cia), acaba tendo sérios problemas. Esses problemas todos sitiam a
mente, colocando-a em risco como função cerebral de adaptação do ser
humano ao seu meio cambiante.
Entre os motivos de risco para sua função biológica estão o não-
reconhecimento de sua natureza cerebral (seu sítio cerebral) e também
o não-reconhecimento de sua condição biológica de sustentação.
O primeiro grande perigo reside na negação de que a mente, como
qualquer função advinda, de um órgão do corpo, pode adoecer. Antes
de problema menor, de simples escolha ou opinião, a disfunção mental,
quando não diagnosticada e tratada, rouba da mente sua possibilidade
de plena expressão. Grande parte do insucesso que se teima em creditar
às mazelas do espírito tem fundo nas mazelas da mera disfunção
cerebral. Se no final do século pretendemos ser modernos, usufruindo
de todo o conforto que a tecnologia nos oferece, também a mente deve
saber reconhecer-se delicada, corrigindo a tempo suas anomalias, sem
preconceito e ignorância.
Nã o há nada mais desesperador que ver gente insistindo em t ratar
dis - ios m . como fosse coisa normal, falta de força de vonta-
de-falta-de "vergonha na cara', fase, etc. Rouba-se, assim, t,or um
mecanismo perverso, a possibiidãdide cada um encontrar a Dlen
seu potencial. Isto não só gera dõfëliunfftjiacão, como
cie viciacie e cometitivictacle.
Num mundo em que se fala tanto de otimiza o Ueprocessos, de
enxugamento de estruturas, de busca de "qualidade total", seria fator
de progresso e revolução passar a encarar a mente como função cerebral,
'rica e criativa, mas ao mesmo tempo sujeita à doença e motivo de
terapêutica medicamentosa há muito conhecida.
• O segundo grande perigo, razão desta última parte do livro, é
rftais sutil ainda, merecendo reflexão e debate. Se o reconhecimento
condição cerebral da mente é fator imediato para a percepção e
;encaminhamento de anomalias (e isso não é pouco), também é fator
mediato para a percepção dos limites da produção humana e de seu
direcionamento biologicamente fundado. Quando a mente se percebe
cérebro e toda a cultura também - em que pese esta ser não-cerebral na

o
SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

substância, mas cerebral no código - então, a história evolutiva e a


adaptação passam a servir como elementos de discriminação para as
ações mentais boas e más.
A mente, ao contrário de livre para produzir opiniões, passa a ser
coagida pela classe de conhecimentos que descrevem o que é adaptativo
e fundamental para a sobrevivência. Converter em matéria de escolha o
que pode ser matéria de conhecimento é fundar um pluralismo pseudo-
democrático e burro. Respeitar as tolices que se dizem sobre a mente não
é politicamente correto - é inconseqüente.
A mente, reconhecida como função que interpenetra o social e o
cultural, mas que deve sua gênese ao fato biológico, pode auxiliar nas
discussões de opções sociais, econômicas e políticas. Nesses três planos
poder-se-ia entender legítima a escolha da diretriz a ou b. Porém, trazen-
do os três para sua base de sustentação - a mente e seu cérebro - pode
haver um discurso de conhecimento que auxilie na escolha entre as alter-
nativas a ou b.
Se ao final deste século vemos surgir uma "consciência" ecológica
que não passa da organização social e política de uma percepção de base
natural, também a economia, o direito e a política poderiam passar pelo
mesmo crivo.
Mas não, a mente sitiada continua a apostar na liberdade de
opinião, levando consigo também as matérias que não deveriam estar
sujeitas à liberdade de expressão por razões técnicas e biológicas.
O segundo randerisco ocorre auando não oercebemos existir

dariquezas.
O consenso superficial, supostamente democrático, pode acobertar
uma tirania da ignorância. Aquele que sentado à frente de uma mesa
exclui com uma penada um terço da massa laboriosa do processo
social está, sem percéE èr, contra a natureza. Não é de estranhar
que um desses ministros, bem preparado, diga-se de passagem, outro /
dia corria para pedir o telefone de uma vidente que estava num festejo.
Também, tempos antes, o governo brasileiro contratou os serviços de (
uma vidente ou paranormal para tentar achar o corpo do político
Ulysses Guimarães, perdido no mar após um desastre de helicópterô. j
Triste imagem: navios quase modernos da marinha nacional sendo guiadoj
pela vidente em busca do corpo desaparecido.
Porque não somos capazes de distinguir opiniões de conhecimento
nos assuntos da mente e da cultura, aplicamos um discurso elíptico;•,
fundamentado no correto pressuposto de respeito à opinião e ao
O SÍTIO DA MENTE

consenso democrático, mas em nítido conflito com razões biológicas


fundantes.
O desemprego estrutural, já há 20 anos sem solução, parece confir-
mar essa hipótese. Qual o fundamento biológico de se deixar profissionais
competentes e bem formados à míngua porque o mercado não pode
absorvê-los? Será que o avanço na produtividade justifica a criação de tal
massa de excluídos? Não podem ser chamados de não-adaptados, porque
isso redundaria na necessidade de sua extinção. A lógica da seleção natural,
parafraseada nas relações sociais e econômicas, é parcial, burra e caricata.
Considera-se o insucesso má-adaptação, mas não se aplica a extinção
conseqüente, tranformando-a em exclusão social.
A mente que se percebe originada do cérebro e a consciência que se
percebe originada de uma sociedade não podem pensar que qualquer
atitude social é justificada pelo consenso ou pelo mercado.
Convoque-se um plebiscito para julgar se o espaço é curvo. Os que
optarem pelo sim perderão feio. Sem esse conceito não há física moderna.
Convoque-se um plebiscito para saber se o altruísmo e a compaixão têm
sólidos argumentos biológicos. Metade dos votantes acerta a resposta, mas
pela razãõ errada. Religiosos empedernidos pensam ser a resposta um man-
damento de deus. A outra metade, medrosa por causa do perigo vermelho
(por sorte, já banido pela vitória neoliberal!), responde que cada um deve
cuidar de si. Tal fosse a questão do espaço curvo, parece-me existir unia
razão teórico-científica tão forte para defender determinadas atitudes
perante a espécie humana quanto para defender a curvatura do espaço da
física de Einstein.
A mente, ao se pensar espírito, acende uma vela para deus e outra
para o diabo. Ignorante do sítio cerebral, engendra uma mistificação das
razões biológicas, que são as legítimas fontes de endosso da necessidade
de comunhão entre os seres humanos. Saindo da igreja, onde é
espiritualizada uma ética que deve ser biológica, reaviva um mercado
selvagem onde o próximo vira concorrente.
Sem ingenuidade, vejamos até que ponto a mente foi selecionada
para o sucesso pessoal ou para servir à espécie.
Quando a razão deixa de formular políticas públicas, exercendo
altruísmo genuíno e se dedica a uma batalha intestina de eliminação do
empregado (dizem ser simples corte de "gorduras" que oneram a produção),
de ,usca incessante do lucro, fere sua função, usando mal aquilo que a biologia
lhe deu.
O mais fraco, alijado do mundo competitivo, perece na favela ou
nas filas de assistência ou recolocação profissional. 0 mais forte é elimi-
SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

nado pela violência crescente, pelo ressentimento das massas alijadas


do processo produtivo.
As fronteiras da miséria e da fartura, antes territoriais, separando
os países centrais dos periféricos, deslocam-se rapidamente para o seio
da cidade. Hoje em dia não há mais país central e país periférico. Há
bairros e zonas de ocupação recriando no espaço urbano a antiga
dicotomia de regiões ricas e pobres, dominadoras e dominadas. Os
guetos de pobreza contrastam com os condomínios ricos. O rosto da
cidade moderna é ambíguo porque faz coexistirem padrões de vida de
civilização moderna e plena e outros de exclusão feudal.
Duas classes convivem nessa cidade: a dos bem-selecionados
pela cultura desinformada e a dos excluídos, subempregados, desem-
pregados, massa ignara que põe o conjunto em risco. O bem-sucedido
se coloca à frente de um grande império. Se a natureza, que, supõe-
se, deu-lhe os meios de sucesso, garantiria sua perpetuação genética,
pode não haver tempo, eliminado que é pelo seqüestro, pela bala
perdida ou pelo assalto seguido de assassinato no farol de trânsito.
Parece-me que uma teoria completa da mente humana e de sua
relação com o cérebro acabará por naturalizar algumas das chamadas
ciências humanas. Se isso não é verdade completa, porque não me parece
interessante reduzir a sociedade à mente, como também não é
interessante reduzir a mente ao cérebro, também não se deve esquecer
que alguns contornos programáticos podem ser delineados pela história
biológica da mente e da sociedade.
Como vimos no caso da personalidade, há um denominador
comum que permeia o conhecimento: os fundamentos, axiomas ou
postulados são inquestionáveis; o que se pode é esperar uma lógica
da dedução a partir destes elementos arbitrários (dedução lógica a partir
de uma base pactuada). Personalidades e consciências seriam, assim,
postulados a partir dos quais fundamos as inferências sobre a percepção
e a ação. Se isto é verdade do ponto de vista individual, também õ é do
ponto de vista coletivo: as personalidades sociais seriam, assim,
ideologias.
Pode-se então imaginá-las como conjuntos de fundamentos arbi-
trários pelos quais se norteiam a ação e a reflexão sociais. A economia'
assim pensada poderia supor dicotomias de personalidade: economia
centralizada x livre iniciativa; propriedade privada x propriedade
pública; inflação x crescimento; modernização x emprego; estado
assistencialista x estado mínimo; progressista x conservador; etc.
Hoje em dia parece ter havido uma vitória de um conjunto de
O SÍTIO DA MENTE

axiomas: modo de produção não-estatal, ênfase na propriedade privada,


mercado como fator regulador por auto-organização, questionamento
do intervencionismo estatal, abertura dos mercados para o mundo
(globalização) através da formação de grandes conglomerados
comerciais, forte ênfase na educação básica e na saúde (pelo menos
como consenso verbal), formação de quadros para o emprego e
necessidade de se manter a inflação domada e as contas públicas
equacionadas para que o crescimento se encarregue de gerar os divi-
dendos do progresso.
Do ponto de vista do conhecimento (e não da mera opção, opinião
ou imposição), essa visão tem alguns pontos a seu favor:
a) há uma experiência histórica que aponta no sentido de ser
esse modelo o que melhores condições gerou para aqueles países
centrais que o aplicaram e também para algumas potências emergentes
(sudeste asiático);
b) assistimos à falência de um dirigismo e de uma burocracia que,
se têm a virtude de equacionar alguns problemas, subvertem liberdades
individuais e encarecem a intermediação entre produtor e comprador,
onerando pela intermediação, dirigismo, ineficiência e corrupção.
Do ponto de vista contrário, pode-se dizer que há, pelo menos,
dois problemas nessa concepção:
a) a distribuição de renda quase nunca segue o aumento da ren-
da nacional, gerando um paradoxo perverso de acumulação e concen-
tração em face do crescimento;
b) há um contingente planetário de seres humanos miseráveis
excluídos do processo de crescimento; se antes distantes dos países
centrais, agora começam a invadi-los em fluxos migratórios oficiais ou
clandestinos, ou então sob a forma de desempregados crônicos, em
alguns pontos assistidos por mecanismos de securidade que podem
estar em risco com o imperativo de corte de despesas públicas e de
intervenção estatal.
O que isso tem que ver com a mente humana e com a elaboração
de uma teoria sobre ela? Temo que a mente, selecionada para maximizar
& mão entre os elementos da sociedade, pode estar desgarrando-se
súa função biológica, fazendo o elogio da individualidade e do
LI e aDanclonanclo qualquer vocação solidária. Antes de a

ser apenas uma visão oposta, fora de mo a. carece-me


num pressuposto biológico. Se o mercado reinventou um
imitar a
1W1Lst*TSJI i its)U(4skI(1 sIs)i (4u1
SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

a
oram os aesem
mercado e à sociedade. ou então deve-se eliminá-los.
Claro que ninguém pretenderia defender a eliminação (ou pelo
menos muito pouca gente, uma vez que ressurgem os discursos radi-
cais, sectários, neonazistas, ressentidos e psicopatas no mundo con-
temporâneo) desses proscritos modernos. A peste que antes era infecção
agora é "vírus" de computador .3 Se a biolo gia nos ensina que osmenos
a ptos serão eliminados pela força da necessidadefão a alternativa é
diminuir o conceito de menos apç, incorporandn-os mercado e
remo deIando as idéias que os excluem.
Pode haver risco, ou pelo menos amplificação de formas anôma-
las de conduta mental, quando não se percebe que os discursos sociais
são um prolongamento de nossa adaptação ao meio; quando não se
percebe que a sociedade humana é uma forma de ambiente que exerce
papel de seleção; quando não se percebe que a variabilidade cria uma
diferença e que cabe ao meio criar-lhe a necessidade responsável pela
boa adaptação.
A mente está sitiada quando privilegia um discurso de opinião e
de doutrinas rivais, quando o que está em jogo é um problema bioló
de adaptação e seleção; quando não percebe que não importaniianto
avanço se alcance se multidão acabará por tocar à nossa porta, sob

Se um mecanismo é capaz de gorar tant a perda de integridade


do indivíduo e de seu grupamento geneticamente próximo (famíli a,
esse mecanismo éerverso biologicamente. Aqueles que defendem
uma ordem inquestionável nos axiomas, fazendo da ideologia um
motivo de credo e não de ciência, acabam por não perceber que, se a
ideologia é a personalidade do corpo social, ou este corpo se apressa
por engendrar uniformidade e equilíbrio, ou então perecerá pela
assimetria de seus membros. /
As personalidades são variadas e resultado da combinação-de
um conjunto de eixos. As atuações econômicas e políticas também
Não há exatamente semelhança entre o modelo de carro rebuscado,
cheio de acessórios, e outro despojado do tipo ambulância. Assimpje
mos países em que há mecanismos extremamente sofisticados de pr-1fr
teção ao desempregado, enquanto que em outros ainda exi'ste na
forma arcaica e selvagem de não-atendimento às camadas menos
O SÍTIO DA MENTE

favorecidas (seguridade social, assistência médica, seguro-desempre-


go, creches públicas). Porém, o modelo liberal de redução do estado,
de eliminação dos gastos sociais, em que pese não se reduzirem muitas
vezes gastos militares e com socorro ao capital, de privatização desen-
freada de setores de infra-estrutura, pode pecar ao não perceber que,
sem determinadas facetas estruturais de intervenção e regulação, o meio
poderá gerar dois mostrengos: a) acumulação e segregação extremas;
b) pulverização do poder em formas não-governamentais de
representação, nas quais a burocracia e o desvio de antes se tornariam
legítimos (e não transgressões), justificados por uma ética de concor-
rência e sobrevivência.
Se os discursos parecem ser avaliados na arena das ciências hu-
manas, seria tempo— ao perceber a lenta história biológica de formação
de sociedade e de formação da consciência e da mente individuais - de
repensar a função da biologia evolutiva como instrumento de pondera-
ção sobre os axiomas. Assim, se parece axiomático defender a maior
ou menor participação do Estado na economia, colocando-se os
oponentes em campos rivais, tal fossem presa e predador, o uso de
elementos biológicos pode ajudar a discriminar sem paixões o melhor
ou pior conjunto de fundamentos e hipóteses. Isto é, aquilo que parece
ser axioma no plano social e político pode encontrar, no nível inferior
da hierarquia - na história biológica da espécie - condição de se tornar
argumento e derivação, sujeitos ao debate e à prova racional, não apenas
à vitória representativa ou à luta sangrenta.
Lembre-se de que no capítulo sobre personalidade falei que não
há justificativa biológica exata para supor o psicopata amoral como
doente. Pode ser apenas uma variação que está à espera de uma
sociedade em que se torne o paradigma de adaptação. Creio que, se
não tomarmos cuidado, esta sociedade estará em vias de se forjar para
o próximo milênio. Os que não são psicopatas amorais e, portanto, têm
pouca probabilidade (pelo menos do ponto de vista genético) de ter
psicopatas na sua prole, devem estar atentos para o fato de que alguns
dos valores que supomos universais hoje se tornarão inaplicáveis no
mundo que estamos preparando para amanhã.
O que será do filho de um de nós quando, já resignados, consta-
tarmos que, mesmo com a melhor formação do mundo (graduação,
pos-graduação, aulas de computação, cursos de línguas, dentes saudá-
véis), há uma chance de que se encontre entre os 20% cronicamente
desempregados?
Como vamos aconselhá-los sobre o casamento? Será que não vã-
- SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

mos aceitar que a delação se torne um valor? Imagine que delatando o


colega que cola nas provas o estudante terá chance de passar um rival
para trás. Como ensinar-lhes valores coletivos, se a própria noção de
coletivo estará sob a forma de uma meia dúzia de repartições públicas
(Estado mínimo) e o resto estará nas mãos de conglomerados
transnacionais que pouco pensam em especificidades regionais e hu-
manas? Se um político tende a honesta ou desonestamente aludir ao
bem comum e ao atendimento aospobres, como garantir o mesmo
discurso de um presidente de empre$ diante do conselho de acionis-
tas? Nem de bricadeira caberia uma proposta de manter um lucro
negativo no atendimento com telefonia de uma população pobre do
sertão. Esse discurso, em que pese muitas vezes demagógico, está na
essência do compromisso dos representantes públicos com suas bases,
ou currais, eleitorais.
Não quero com isso dizer que há uma moral política e uma dou-
trina econômica fundadas exclusiva e suficientemente na natureza
evolutiva do ser humano. Seria forçado dizer que a biologia redimiu
certas concepções socialistas. Porém, talvez seja forçoso. Digo que o
modo de produção capitalista e a exaltação de um mercado que regula
a economia seriam defensáveis se houvesse mecanismo de eliminação
dos menos adaptados. Em não haverdo, creio que a biologia pode
apontar-nos um conjunto de discursos rivais em que o peso não deve
estar apenas na experiência de baixar a inflação ou de fazer carros em
menos tempo e com menos empregados. Deve estar na funcionalidade
deste ou daquele discurso com uma visão de médio e longo prazo da
adaptação do ser humano a essa sociedade que vai se desenhando.
A preocupacão ecológica é bandeira ambígua do nosso tempo: a

um planeta aue nos fornece energia, alimento e ar rara respirar, tam-

A CIÊNCIA EA SATISFAÇÃO DO CONSUMIDOR

A idéia de um mercado soberano infringe um dos cânones da


ciência. A verificação de uma teoria - cpu de seu sucesso - depende
de mecanismos primários em qualquer ramo da ciência para se analisar
sua consistência, coerência e completude.
Fosse o mercado o senhor das decisões sobre a ciência e estaria-
O SÍTIO DA MENTE

mos até hoje com a mecânica geocêntrica, muito mais adequada na sua
época para certos cálculos, enquanto a nova teoria, heliocêntrica, ainda
falhava em alguns deles. Se tivéssemos tido uma comissão de
departamento de vendas a julgar os dois produtos, geocentrismo e
heliocentrismo, lá pelo século XVII, não teríamos saído do lugar. Os
consumidores, entre outros a Igreja, teriam ficado bastante mais satisfeitos
com a eliminação daqueles produtos novos. Cuidado, porque a lógica
parcial de consumidor e de sua satisfação não mudou de lá para cá.
A idéia de que o sucesso define a estrutura de produção é pérfid a e

iiiânto ducesso do produto Se a mente humana criou maravilhas


científicas nos últimos 500 anos, não foi graças ao mercado que
aplaudiu um produto e torceu o nariz para outro. Pelo contrário, como
sabemos há muito tempo, as revoluções científicas são feitas contra
um determinado paradigma e, portanto, geram incompreensão do
consumidor, que somente ama a tecnologia, o produto, não a ciência
em sua atitude racional perante o desconhecido. A tecnologia para o
consumidor, em lugar de ser subproduto determinado pela ciência,
torna-se requisito primeiro, fetiche consumista, pretendendo
determinar a pesquisa científica.
Eleger o mercado como órgão invisível regulador da boa escolha
e do bom caminho me parece ser um atraso na concepção de dinâmica
das teorias científicas e do conhecimento .4 Pelo mercado regulam-se as
trocas, otimizando a produção; pelo voto, renovam-se os líderes,
aperfeiçoando-se as instituições. Tanto na primeira situação, quanto na
segunda - democracia representativa - há um mesmo vício oculto no
eleger a verificação e a satisfação como critérios norteadores de ações.
Para situações mais ou menos estáveis o mecanismo de verifica-
ção, ou satisfação, ou representação simples, pode ser bom; nos
momentos de crise ou transição, como este pelo qual estamos passando,
verificação, satisfação, unanimidade podem ser um eclipse racional co-
letivo, um desconhecimento arriscado do que é boa ciência.
§e alguém pretender retrucar dizendo que a ciência erra, direi
menos os
dizer
da bio-

mentes e sobre a gênese mental de sociedades A consciência que


retroage sobre o cérebro é a mesma que deve agora resolver o problema
do desemprego e da pobreza.
SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

O político que, como o diretor de vendas, olha para o voto como


instrumento de satisfação do consumidor costuma, a par de boas ações
e de um saudável policiamento e controle de sua atividade, evitar
medidas antipáticas, passando a flanar com o impossível e com o
demagógico. Rende mais votos mentir sobre uma série de variáveis. A
mente humana, acostumada que está a não se enxergar como fenômeno
natural que nasce do cérebro, adora comprar uma utopia, seja ela
mística, voluntarista, populista ou demagógica..
Quando, no entanto, olhamos para o modo como o mercado se
organizou para melhorar as condições de produção de certos bens e
para otimizar as trocas nacionais e internacionais, vemos ainda dois
problemas que afrontam a história da biologia e, portanto, a história da
adaptação de variedades biológicas ao meio.
Em primeiro lugar, o meio sempre foi restrito ao domínio de
locomoção do indivíduo. A seleção natural é mecanismo local. Não há
globalização, nem telefone, nem avião no modo como o meio opera a
seleção do mais apto. Quando colocamos uma idéia de maior ou menor
aptidão de certos produtos, ou de certos indivíduos submetidos às
variáveis ambientais - não mais locais, mas planetárias/ globais -,
creio que infringimos mecanismos de seleção e adaptação. Se um animal
é bem adaptado a um meio, tende a fixar ali sua residência e gerar
prole. Se, por outro lado, um chato importar um animal melhor, é claro
que aquele primeiro tenderá a desaparecer. A importação de produtos
e a globalização de mecanismos de seleção sobre o mais adaptado são
mecanismos que precisariam ser pensados à luz da biologia que nos
criou e trouxe até aqui.
Em segundo lugar, a idéia de produto com excelência máxima é -
também não-biológica. Quem disse que leões receberam o ISO 9000 dê
melhor espécie? Quem disse que montar um nenê com robô industrial, :
com 40% menos empregados e com melhor relação custo/lucro, é -
biológica? O acaso cria a variação e o mercado cria a seleção. Porém, o
produto não muda, simplesmente perece ou vinga.
Estamos brincando de fazer seleção natural intraproduto e não.
interprodutos. Quase vale dizer que, se carros não apresentas~.
adaptação, deveriam ser substituídos por carroças; não por carros mon
tados por robôs. A biologia parece endossar isso. Além do mais, a
idéia de adaptação não é "qualidade total", nem ser o melhor. .'
Ninguém pode dizer que haja algum elemento de valor eterno '.
no mecanismo de seleção/ adaptação. Variações não são boas ou más.
Simplesmente são melhores ou piores para um determinado meio.
o sfiio DA MENTE

trouxeram adaptados até aqui não parece ser biolÕgjc&j'txle soar


biológica, mas quando vemos que o efeito colateral é excluir global-
mente grande parte da população humana, vale perg11nfarrue
essa gente não podia olhar um pouco mais a fundo para a história
evo lutiva da espécie. dos cérebros. das mentes e das snciedades
Uma última ordem de considerações é que a propriedade priva-
da, as heranças e o mecanismo de acumulação tendem a criar uma
multidão de excluídos que passarão (e já o são) a ser evitados nos
casamentos. O que acaba acontecendo é que, se o capital procura o
capital para realizar fusões, a genética tenderá a se empobrecer por-
que a suposta eugenia tenderá a concentrar aptidões específicas e,
eventualmente, esse comércio viciado do genoma acabará por mudar a
feição da espécie. Essa crítica, no entanto, não me parece ser de médio
prazo, tendendo a ocorrer ao longo de muitas gerações, e talvez já
tenha acontecido até aqui, sem globalização e telefone.
A mente está em risco, em seus conteúdos, funções e perver-
sões, patologias comunicacionais, quando seu mundo social deixa de
ser mundo da espécie humana e passa a ser mundo de títulos e de
propriedades; também mundo da doutrina do mercado e da aceitação
passiva e cínica do desemprego e da mortalidade infantil?
Esta última parte do livro trata, então, dessa mente sitiada por-
que lhe aumentam brutalmente as patologias (ansiedade por exemplo)
e, ao mesmo tempo, sua função adaptativa me parece fadada a ser
questionada pelo próprio modelo de sociedade, de cultura e de
economia que estamos deixando vingar às portas do próximo século.

SÍNTESE

A idéia de que a satisfação pode ser critério de avaliação de teorias


é um arremedo de biologia evolutiva. A teoria da mente deve ser
cerebral, embora o mercado consumidor prefira consumir pseudoteorias.
Ao perceber-se cerebral, a mente que forja o social poderá distinguir no
plano dos dicursos de opinião alguns argumentos em favor de uma
corrente ou de outra. Não reconhecer a necessidade de resgate da massa
humana excluída do progresso constitui ameaça à espécie.
Verificar uma teoria, satisfazer o consumidor e legitimar-se somente
pelo voto são todas situações de ignorância acerca do mecanismo de
geração de idéias novas. Ao contrário de serem populares, encontram
resistências e se não as enfrentassem não teria havido progresso.
MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

Capítulo 25

MERCADO, PODER CENTRAL


E CÉREBRO HUMANO

U M dos conceitos mais usados nos dias de hoje, embora com


alguma ligeireza e desconhecimento profundo, é o de auto e hetero-
organização. Inicialmente emprestada de certos ramos complexos,
de sistemas termodinamicamente longe do equilíbrio, a noção mostra
que, a despeito de não haver qualquer controlador central, há, com a
dinâmica do sistema, uma capacidade de organização explicada pela
estrutura físico-matemática de seus elementos e não pela vontade,
instrução ou controle de algum agente.
Auto-organização' e informação 2 são conceitos surgidos para
descrever propriedades de certas reações químicas (relógios biológicos)
e de telecomunicações, respectivamente. Foram "importados" como
metáforas para justificar conceitos psicológicos e sociológicos.
Metáforas são bem-vindas desde que sejam entendidas como ele-
mentos hipotéticos de inspiração. Porém, se é verdade que cérebros
exibem auto-organização em relação a suas funções superiores, mentais,
sem que haja um supervisor central, nem por isso podemos rapidamente
eleger o mercado como elemento de auto-organização de sociedades e
de grupamentos sociais e econômicos. Aponte é rápida e inconseqüente
- como todo modismo -, lançando mão de um conceito e aplicando-o
generalizadamente, sem as devidas adaptações.
Sustenta-se que, se a biologia mostra a riqueza da emergência de
padrões de ordem em sistemas não-regulados por agente externo (por-
tanto auto-organizados), então o princípio pode, e deve, aplicar-se em
qualquer nível. Se há auto-organização num certo nível cerebral, também
há intervenção reguladora. Não fosse assim não haveria educação, nem
socialização. Um dos melhores caminhos para se fazer pseudociência é
importar afoitamente conceitos, tranformando-os em ideologia. Importar
sem o devido cuidado e, sobretudo, sem preservar-lhes a estrutura
conceitual - essencial para fazer deles conhecimento -, tomando-lhes
apenas a estrutura superficial, a fachada-fetiche que se presta a torná-
los justificação presumida de um conjunto de opiniões ou políticas.
O SÍTIO DA MENTE

Se o cérebro pode exibir auto-organização, nem por isso está


legitimada a crença de que a auto-organização do mercado é mecanismo
endossado pela biologia. O meio que selecionou o cérebro é o mesmo
há milhares de anos, enquanto a moda, as ideologias e as pressões
econômico-políticas mudam com muito maior velocidade. Se é para
usar metáforas biológicas para endossar este ou aquele sistema de idéias,
então deve-se fazer corretamente a leitura de equivalência de níveis e
protagonistas. Seleção natural não é análogo de seleção do mais apto
socialmente. Auto-organização pode ser sinônimo de livre-mercado,
mas nem por isso redunda em boa adaptação, o que somente é obtido
com a interferência reguladora externa. No cérebro esta interferência
externa provém da educação e da socialização; na economia provém da
interferência estatal direta ou sob a forma de regulamentação.
O que pode ser auto-organizado é um padrão que oscila durante
milhares de anos até que se estabiliza. Quando temos um meio
cambiante de ano a ano, de modelo a modelo, esse meio, agora merca-
do, não pode mais selecionar nada. Portanto, a auto-organização terá
que, forçosamente, ser hetero-organização, isto é, presença de um
elemento externo que pode ser um governo autoritário e centralizador
(o que é indesejável) ou, então, um conjunto de princípios relativamente
fixos que definem axiomática ou ideologicamente as ações, sob a forma
de leis, instituições fortes (não necessariamente governamentais) e
valores coletivos.
O paradoxo fundamental que advém do conhecimento que se
tem no momento acerca dos sistemas complexos, cérebro e mente in-
clusos, é que há uma dinâmica de auto-organização envolvida. Essa
dinâmica garante ordem a despeito da ausência de controle central.
Porém, ao mesmo tempo gera comportamento imprevisível do sistema
para certos valores de seus parâmetros (por exemplo o valor da taxa
de juros num sistema econômico ou a dose de antidepressivo num
quadro de pânico). Essa imprevisibilidade é também, paradoxalmente,
fonte de criatividade e de incerteza.
Imagine que, se podemos fazer previsões quanto ao comporta-
mento da inflação diante do aumento da taxa de juros (normalmente
cai a inflação), para certas situações um aumento na taxa pode levar ao
efeito oposto ou pelo menos a um efeito imprevisível. Do ponto de
vista da complexidade isto é explicado como sendo uma região de
comportamento não-previsível do sistema. Outros diriam que isso
corresponde a uma transição de fase, como no caso da água a quase
100 graus que subitamente muda de comportamento. Os analistas
MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

podem arriscar explicações para esse fenômeno. Por exemplo, no caso


do aumento da taxa de juros, pode haver uma sinalização de
desequilíbrio incontrolável nas contas públicas, com o governo toman-
do dinheiro para financiar o déficit. A partir de uma determinada taxa
pode haver desconfiança dos agentes econômicos e, ao contrário de
aceitar comprar títulos públicos, podem dirigir suas reservas para
moedas fortes e ativos (imóveis, etc.). Numa corrida às compras cai a
poupança, desestabiliza-se o sistema e ocorre uma majoração predató-
ria e defensiva dos preços.
O exemplo acima, saído da macroeconomia, visa a mostrar o
efeito paradoxal dos sistemas complexos. Esses sistemas estão presentes
em toda a natureza, desde o mais simples organismo até o nosso cérebro;
também estão presentes nos sistemas sociais, econômicos e políticos.
A idéia de auto-organização, moda hoje para analisar sistemas
complexos, pode servir de forte argumento no afã de tornar mínimo o
Estado e quase ausente sua intervenção reguladora, deixando para um
mercado soberano o papel de regulação e de organização. Porém, o
que se aprende com os sistemas complexos é que, se para certos valores
de parâmetros há uma auto-organização interessante, para outros
valores desses mesmos parâmetros podem ocorrer caos ou turbulência,
isto é, comportamentos anômalos onde determinadas previsões se
tornam simplesmente impossíveis.
A noção de caos num sistema complexo não é sinônimo de caos
na linguagem corrente. O caos pode ser fonte de variabilidade, o que
torna o sistema interessante; porém, como imprevisível, torna o controle
e a antecipação praticamente impossíveis. Se auto-organização e
complexidade são paradigma de variação e inventividade, também são
sinônimos de, para certas situações, imprevisibilidade e surgimento de
comportamentos estranhos. Pois bem, a dinâmica da auto-organização
e complexidade pode ser ótima fonte de variação, mas, ao mesmo
tempo, devem-se manter os instrumentos de interferência externa
(hetero-organização) para que, quando se visitarem regiões de
estabilidade disfuncional, seja possível corrigi-los.
O argumento que uso neste sentido é simples: tanto cérebros quanto
o mercado são capazes de auto-organização. Porém, sem que exerçamos,
através da educação sobre o indivíduo e da intervenção sobre o mercado,
o papel de hetero-organização, podemos ver surgir um monstro com vida
e estabilidade suficientes que não se possa mais controlar.
Em cérebros há estados estáveis (porque não duram alguns
segundos, mas meses, anos) em que o sistema está nitidamente
O SÍTIO DA MENTE

disfuncional e ao mesmo tempo, pela auto-organização, não é capaz de


se autocorrigir. A psicose, a depressão, a ansiedade, a doença obsessivo-
compulsiva são alguns dos exemplos de auto-organização e de estabi-
lidade em certas regiões anômalas (estabilidade porque não duram
uns poucos segundos, prolongando-se por meses e anos a fio). Na
economia sabemos que há outros estados estáveis análogos advindos
da auto-organização, que igualmente carecem de intervenção externa e
não simplesmente auto-regulação. A inflação alta com crescimento zero
(estagflação) é o melhor exemplo desse tipo. Cérebro e mercado são
passíveis de uma analogia advinda da biologia evolutiva. Se o acaso,
ou a auto-organização, cria a variação, a necessidade, a hetero-
organização cria a seleção. A variabilidade e inventividade seriam
parentes da complexidade de cérebros, mercado e outros tantos
sistemas complexos. Ao não impor-lhe uma norma externa e necessária,
que na biologia é responsável pela seleção, não há como evitar que a
anomalia se torne estável e duradoura.
Tanto para cérebros quanto para a sociedade há uma dinâmica
rica que cria a variação. Chamo-a de dinâmica de pathos. Porém,
paralelamente, se não agregarmos uma dinâmica externa de correção e
controle, que chamo de ethos e que é parente da ética individual e
coletiva, não há como garantir que o resultado seja funcional.
A tese central deste livro é: a mente é uma ordem de fenômenos
no cérebro humano devido à sua

e do dev r c letivo. O ethos, ao contrário de ser uma


iria externa, está ca ca o no desenho do siste
rma aue não se conce a uma dinamica de oaixões
ao mesmo tempo seconceDa um
paiTã forma ão a mente mdividuaLtrangormando
ão dqã ações,.No-mlai
e econômico o mesmo esquema deveer coDiado-

uma ética coletiva qurmeie as

K Figura-7W i strasãiduas ordens com exemplos


esquemáticos. A complexidade e o acaso criam a variação, os estados
possíveis; a necessidade, hetero-organização, seleciona o que é bom ou
não .3 Essa figura deve servir de base para uma reflexão acerca da
natureza dos sistemas complexos. Se a variabilidade de estados
possíveis; muitos não-previsíveis, é parente da criatividade e da
MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

PA TI-/OS: estados possíveis de um sistema complexo em sua


evolução no tempo

/ estado 2 \ auto-organização
'\ ( instável be
estado 1
/ \ funcional )nigna
estado 3
\ funcional 1 auto-organização
instável
\ maligna
disfuncional

7 estado 4

hetero-ozaçao ( estável Os estados estáveis e funcionais (1)


necessária instáveis funcionais (2) e instáveis
disfuncionais (3)tendem a ser benig-
ETHOS
nos: porque o sistema tende a voltar
para o estado estável que é funcional.
O estado 4 é complicado porque é
estável e disfuncional. Não tende a
necessidade dr
intervenção 1 voltar para o outro estável e funcio-
nal (1), a não ser que se aja na chama-
da auto-organização através de
mudança de parâmetro.

Exemplos de sistemas acima descritos


evolução natural, do ser, casual (pathos): o acaso cria a variação

estável funcional instável funcional instáveldisfuncional estável disfuncional


alucinações depressaão
estados mentais quando ansiedade
normais pegando no sono psicopatia
ou acordado psicose

moderado inflação baixa


crescimento e estagnação
e inflação e ausência de
inflação baixa crescimento e inflação
moderadamente
ascendente

evolução forçada, do dever ser (/i): a necessidade opera a seleção

A auto-or;anização pode ser traço de sistemas naturais, artificiais e culturais: são


por definição criações que devem atingir uma organização está vel e funcional. Aí
está sua evolução natural benigna. Seu pt/ias.
Quando a auto-organização possibilita a visita de estados disfuncionais e estáveis,
a correção de fora se impõe. A auto-organização dá lugar agora à intervenção
reguladora, reinstauradora da justiça, da ordem e do equiibrio. Essa intervenção
de fora e forçada é chamada de ~ Não se pode deixar estável um sistema
disfuncional, o que redundaria em aberrações para a espécie humana. Num Certo
sentido, ~ é sinônimo de ética.

Fig.55— O pathos como índice dos estados possíveis do sistema auto-


organizado e o elhos como elemento corretor, hetero-organizado, de seleção
de estados possíveis, desejáveis e funcionais.
O SÍTIO DA MENTE

invenção, também é parente da anomalia e da disfunção. O modo como


conduzimos o desenvolvimento da mente humana é todo baseado em
regulações: agimos regulando o cérebro através da educação, do
aprendizado e, finalmente, através do prêmio e da sanção. Há uma
preocupação de se manterem mecanismos de correção de rumo para
que, a par de uma brecha enorme para individualidade e criação, o
cérebro e seu produto mente possam se desenvolver dentro dos limites
desejados. Quando há uma desregulagem, anomalia estável, durando
mais de algumas semanas (normalmente 4-8 semanas) procuramos
intervir no cérebro através de drogas que reinstaurem os parâmetros
adequados de comunicação entre os neurônios.
Até os anos 50, quando não havia ainda muitas drogas
psiquiátricas, o remédio (a despeito de outras terapias então existentes)
era deixar o sistema se reorganizar ou se regular. Mas cuidado: tanto a
regulagem posterior diante da anomalia é difícil quanto é pouco
provável que, dada a estabilidade do novo estado, o sistema se dirija
ao normal anterior.
Se as drogas possibilitaram a intervenção hetero-organizada sobre
o cérebro disfuncionante, e isso constitui uma visão da psiquiatria como
um ethosno plano do indivíduo— qual será o "remédio" que usaremos
- para intervir nospathos coletivos de agora, mormente quando vemos
alguns indicadores preocupantes de desemprego estrutural, valores
éticos sendo abandonados e um individualismo desenfreado minando
os valores de coesão e compaixão para com o semelhante?

AUTO-ORGANIZAÇÃO E PATHOS;
HETERO-ORGANIZAÇÃO EETHOS

A noção de auto-organização é paradoxal em se tratando de uma


série de fenômenos. Se não temos um gerenciador central, uma vonta-
de e uma ciência que dirijam os rumos do sistema, também não temos
quaisquer acepções de bom e mau, de certo ou errado nos estados
visitados, com maior ou menor estabilidade, por um desses sistemas.
Um sistema complexo, como uma reação entre alguns elementos
:químicd's, não tem qualquer compromisso com o bom e o mau estados.
Uma reação de um explosivo não gera culpa ou remorso no sistema.
ihâ'ciTpa ou acepção de bom e mau numa ab6bque, nascendo
dez vezes maior que o normal por auto-organização, alimenta dez
criai%ças. Os sistemas complexos simplesmente visitam diferentes
regiões ç1ecomportamento. As vezes explodem, às vezes geram belas
MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

figuras na tela do computador (fractais), às vezes exibem propriedades


insuspeitáveis (a nitroglicerina em dose baixa alivia a angina, em dose
alta explode). Nenhum desses sistemas complexos tem a menor noção
do que seja certo e errado, bom ou mau, estado normal ou patológico.
Deve existir uma mente que os escolha e controle, evitando a
pílula que exibe a propriedade emergente de ser abortiva, embora seja
desenhada para tratar de gastrite. Também há que regular até que ponto
a abóbora que alimenta milhões de pessoas não tem certos elementos
químicos que os farão ter câncer dentro de mais ou menos 10 anos. Em
suma, se auto-organização é uma propriedade interessante exibida por
sistemas complexos, também é perigosa na medida em que o sistema
não tem qualquer compromisso com um estado ou com outro. Claro
que não há sistema que tenha compromisso com uma ação ou outra.
Compromisso, responsabilidade e valor são predicados da ordem do
emos, da consciência individual enquanto versão analógica valorada da
complexidade cerebral, e de alguma consciência coletiva, versão
analógica valorada dos múltiplos sistemas econômicos e políticos
aparentemente rivais no plano das opiniões. Porém, se há um ethos
individual baseado na biologia cerebral, também deve haver um ethos
coletivo baseado em algum sucedâneo biológico. Definitivamente não
parece que certas posições políticas e econômicas sejam simplesmente
uma questão de opinião ou de adesão através de voto ou de satisfação
do consumidor-eleitor. Ao se ler certas doutrinas sociais, políticas e
econômicas sob a ótica da biologia evolutiva pode-se-lhes criar um
novo critério de decisão não baseado na propaganda ou opinião, mas
no conhecimento e na razão.

ESTABILIDADE E FUNCIONALIDADE

No caso dos sistemas não-complexos, que não exibem a chamada


auto-organização e que, portanto, não visitam estados estáveis
imprevisíveis de funcionamento, podemos claramente qualificar o que
é bom funcionamento e o que é mau funcionamento. Um rádio de
pilha não exibe complexidade - ou funciona ou não funciona, não
havendo terceira hipótese. Se o mesmo rádio fosse complexQ, talvez
não fosse possível distinguir entre o mau funcionamento e certos
estados novos surgidos da auto-organização. Simplesmente o rádio não
teria nenhum compromisso com os estados, como qualquer sistema
não tem, nem haveria clara distinção de finalidade e de função, coisa
que é relativamente evidente nos sistemas não-complexos. Um rádio
O SITIO DA MENTE

de pilha serve para receber ondas de rádio e transmitir música e no-


tícias. Uma máquina complexa capaz de exibir estados diversos pode,
ao mesmo tempo, ser um instrumento de cura ou um instrumento de
destruição, como demonstra o controle de propriedades emergentes
e auto-organizadas de substâncias radioativas.
Portanto, a idéia de que haja uma soberania na noção de auto-
organização e que se deva deixar ao sabor da organização invisível
qualquer processo pode redundar em aberrações funcionais. Uma
empresa que descobre aos poucos que, através de uma série de métodos
antes usados para fabricar sabonete, agora pode com pequenas altera-
ções fabricar armas radioativas está usando auto-organização e com-
plexidade para um fim que não o inicialmente proposto. Nesse caso,
há uma certa dose de facilidade para se decidir que a substância que
facilmente se reorganiza de sabonete em bomba nuclear deve ser proi-
bida e controlada. Mas no caso de um mercado que organiza toda e
qualquer instituição, corre-se o perigo de não estarem tão claros
os processos bons e os maus.
Se a complexidade e a auto-organização são parentes da estabili-
dade de fenômenos como o desemprego estrutural, bem como paren-
tes dos ciclos de crescimento e de estagnação, também é fato que não
necessariamente a boa solução está apenas na condição de estabilidade
do sistema. De urna certa forma temos aqui um paradoxo que sitia a mente.
Quando a auto-organização e a complexidade geram a anomalia
no cérebro, cumpre rapidamente corrigi-Ia. E o que fazemos todo o
tempo em medicina e, particularmente, em psiquiatria e neurologia.
Porém, na medida em que estamos corrigindo, estamos supondo que
haja estados bons e maus, ou estados funcionais e estados disfuncionais.
O mercado que, através da complexidade suas demandas, organiza
seus preços não tem uma ética, como aliás não seria de supor que haja
ética num sistema auto-organizado. Não há ética na natureza que
seleciona o mais forte e nem no mercado implacável que atira ao
ostracismo uma marca, uma carreira ou um velho sábio.
Nessa instância não há que haver ética nem julgamento de valor.
A auto-organização é capaz de criar a variabilidade, nesses casos
extrema e estável. A necessidade deve orientar a escolha. Voltando à
Figura 55, há enorme quantidade de estados interessantes; porém, entre
eles, alguns são desejáveis e outros não. Deve haver um princípio
hetero-organizante, isto é regulador, que discrimine estados
disfuncionais, imputando o bom e o mau a partir de uma determinada
axiomatização ou ideologia.
MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

A complexidade pode ensinar a montar carros em duas horas


sem operários e apenas com robôs. Também pode criar um mapa da
riqueza e da miséria. Também pode internacionalizar a produção, fa-
zendo com que cada fábrica seja um centro de produção de partes,
nunca de um produto completo.
Essas situações todas podem gerar progresso na medida em que
criam variabilidade. Mas se a intervenção necessária é o que organiza e
valora o que é bom ou mau, não teremos condição de vislumbrar
progresso ou retrocesso.
O paradoxo da mente, do cérebro e da sociedade repousam to-
dos na mesma situação de sistemas complexos. Bem-vinda a
variabilidade trazida pela complexidade. Bem-vinda a não intervenção
em certas etapas do processo, o que cria progresso e invenção. Porém,
se educamos o cérebro e a mente, se corrigimos a anomalia mental,
também os estados auto-organizados de complexidades sociais e eco-
nômicas devem ser corrigidos. O não-intervencionismo, a falta de
controle e a nova época de idolatria da auto-organização criam, a um
só tempo, os seguintes fenômenos:
a) a complexidade cria a variabilidade e a estabilidade julga o ser
bom ou mau do sistema, isto é, tudo aquilo que é estável é bom e o
que não é estável é mau;
b) o não-adaptado deve, também ele, agora seguir o que manda
a complexidade (mas o indivíduo e a empresa devem seguir o outro
sistema complexo auto-organizado - o do mercado livre - que dita as
novas regras, sendo também eles sistemas complexos);
c) a não-intervenção propicia uma espécie de perda de valor fun-
cional ético dos atos e dos produtos, para que apenas o sucesso seja
critério de estabilidade de decisão (ora, vimos que há estados estáveis
funcionais e disfuncionais, ou éticos e aéticos);
d) com o tempo, o mercado, a sociedade e a economia formatam
um novo conjunto de valores ou de preceitos de conduta;
e) mentes e cérebros, enquanto complexos, passam a se subordi-
nar a essa nova ordem, que de coletivo não tem nada, salvo se comple-
xo for confundido com coletivo;
f) aquele para quem a sociedade deve trabalhar agora trabalha
para ela. Aquele que deve gerar o valor da sociedade na verdade con-
some e se conforma ao novo paradigma gerado pelos bem-sucedidos.
A sociedade, antes representação de anseios e de valores, é agora
complexidade à cata de auto-organização. Se fosse critério de funciona-
lidade, a auto-organização que iguala e emancipa a todos, ótimo. Se, no
o sírio DA MENTE

entanto, for aquela que concentra riqueza, exclui dois terços da hu-
manidade e desemprega 20 a 30 por cento da força adulta produtiva,
então talvez a sociedade, antes coletiva e representativa, seja agora apenas
mercado, complexidade e auto-organização sem ética qualquer.
A mente está sitiada quando deixa de ser geradora de políticas
públicas e econômicas, e de leis aue visem ao bem comum, passando a
ser passiva e
ção. Se num
Porque assim FiTiXlSI] ascen-
são social, então a nova mente deve agora rapidamente se reorganizar
Eara seguirgue sl?iornou estável e bem-suredido pela mão invisível
do mercado.
O paradoxo que vejo, então, neste final de século para a mente é
que, se o poder absoluto central tiraniza e subtrai a liberdade individual,
também uma auto-organização sem controle, baseada no mercado e no
sucesso pessoal, pode criar um vetor de tirania aética sobre o indiví-
duo e uma mutação constante de seus valores para, rapidamente,
responder às exigências do mercado e do consumidor.
Quando o consumidor é apenas o comprador exigente que recla-
ma por mercadoria bem feita e barata, isso é bom. Quando esse
consumidor agora é o chefe, o cônjuge, o colega (o amigo é conceito
antigo),4 então a mente não mais gera valores perenes, mudando rapi-
damente para satisfazer as novas exigências de seus consumidores.
A mente-cérebro forjada para a reunião e para a comunicação se
isola na medida em que dissimula e espreita a oportunidade da
emboscada, do bote econômico. Deixa de ser mente estável porque o
valor moral, antes determinante da função, agora é determinado como
produto. Mude-se o consumidor e a ética muda, podendo até se tornar
obsoleta.
Quando a auto-organização e a complexidade visitarem estados
estáveis em que ética e solidariedade deixem de ser produtos da moda,
à mente restará mudar rapidamente. Isso sitia porque desestabiliza
tradições, valores, criando indivíduos ambíguos ou então ressal-
tando a virtude do amoral.
A mente está em perigo quando o sistema usa a noção de auto-
organizacão e de comvlexídade de maneira incomoleta. Usando-a rara
diar e deixando que apenasa estabilidade diga se ékQw
inhando para possíveis estados de perversão social,
e patoingias miyiaiaiss_ue, no
ser normal, somente tirarão o bem-estar almejado e, no psicopât
MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

amoral, só Qfarão adquirir cSoIntomos de liderança quando, em princípir,


ele deveria estar policiado e excluído.
São dois, portanto, os maus usos que se faz da relação entre o
cérebro e a sociedade: de um lado, supondo que a mente é instrumento
de sobrevivência individual, perde-se a visão de que a adaptação é de
uma espécie e não de um indivíduo. Segundo, a auto-organização,
embora rica, pode ensejar estados estáveis, porém, disfuncionais. Se
auto-organização segue a lógica dos estados possíveis (pathos), há que
haver um mecanismo hetero-organizado de imputação e correção sobre
o nível anterior (ethos). Isso é similar à biologia evolutiva, na qual a
dinâmica do acaso cria estados ricos, aptos a serem selecionados. Mas a
necessidade que opera a seleção é da ordem externa do ethos. Se na
escolha de uma espécie não há direção de bom ou mau, porque esse
vetor que seleciona é um meio natural fortemente estável, por outro
lado a transposição desse meio para a figura do mercado como
instrumento de seleção perverte o processo. Nesse microssistema onde
o mercado pode suscitar auto-organização há que haver hetero-
organização ética, tal que o pressuposto de estabilidade da espécie esteja
salvaguardado.
A consciência, privada e pública, não é senão instrumento de
hetero-organização das ações complexas que se passam no cérebro. Se
a consciência privada surge pela redescrição valorada de ações e
percepções presumidas, filtradas pela linguagem e pela memória, na
consciência coletiva essa mesma redescrição deve agora seguir
pressupostos de tradição, estabilidade e valor moral. Do contrário, dois
serão os efeitos da confusão: primeiro, a lógica do mais forte criará uma
guerrilha urbana que jogará por terra toda a conquista da modernidade;
segundo, tomando auto-organização como paradigma, sem que para-
lelamente haja intervenção reguladora externa, num certo plano suce-
dâneo da ética individual e coletiva, poderemos eleger o amoral, avesso
ao pacto e à reunião, como paradigma de homem da nova era.

SÍNTESE

A noção de auto-organização é uma das modas importadas dos


sistemas físicos para explicar e justificar certas posições político-
econômicas. Complexidade e auto-organização são capazes de criar
variabilidade; porém, os estados novos e imprevisíveis que se criarem
poderão ser funcionais ou disfuncionais. Por isso corrigem-se cérebros.-
pela educação e mercados pela regulação, Essa interferência externa é
O SITIO DA MENTE

imprescindível para que os estados imprevisíveis estáveis não se tomem


monstros incontroláveis. Do ponto de vista cerebral, patologias como a
depressão seriam exemplos de auto-organização que gera estados
estáveis e disfuncionais. Na economia, a estagflação seria exemplo
semelhante. Porém, nem sempre é tão fácil notar a disfuncionalidade
de certos estados novos e estáveis. Isso me parece estar ocorrendo
com a ética que deveria permear ações individuais e coletivas. Ao se
defender a auto-organização como paradigma único, a estabilidade do
sistema parece ser indicativo de sucesso. Algo se toma estável, portanto,
deve ser bom. Mas sabemos que a estabilidade pode ser disfuncional e
que o sucesso pode ser um mau critério de verificação de algo. Pelo
sucesso se teria jogado fora a teoria heliocêntrica; pelo sucesso se
mantém um sem-número de cânones em flagrante desacordo com o
bem coletivo. Esse é resultado de incensar toda e qualquer atitude de
sucesso pessoal a despeito de infração ética. Após ter sucesso, vê-se
muitas vezes o indivíduo como vitorioso, relativizando-lhe as
transgressões e o dano de seu exemplo para os outros. A auto-
organização como fonte de variação é boa, mas não prescinde de um
controle externo sobre seus estados estáveis disfuncionais. O sucesso
de certas idéias e políticas atuais pode ser um mau critério para atribuir-
lhes funcionalidade, visto que nem o sucesso é da ordem do ethos, nem
é bom método de avaliação da correção de sistemas teóricos e
complexos.
Se o cérebro carece da correção da educação e da cultura e se a
mente individual parece surgir graças a um balanceamento entre
variação e seleção, acaso e necessidade, paixão e dever, então todos
esses elementos devem ser respeitados na discussão de uma ética
coletiva e de uma nova consciência social.
ÇUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

Capítulo 26

QUANDO A CULTURA
SITIA A MENTE

A o longo do livro examinei o grande problema que resta por


resolver neste final de século: a mente humana e sua relação com o
cérebro. Disse que a mente tem a cara do mundo (ou que o mundo tem
a cara da mente) e que ao mesmo tempo ambos parecem não ter a
menor semelhança com um cérebro que dispara potenciais elétricos,
com sinapses e neurônios. Se tem a cara do mundo (e, portanto, da
cultura, tendo sido por séculos motivo de estudo das chamadas ciências
humanas) e na verdade é cérebro, que tal arriscar dizendo que a cultura
deve, então, ter um pouco da cara do cérebro? Isso terá repercussão
sobre inúmeras instituições humanas - culturais, econômicas, políticas,
sociais, jurídicas, morais - e também nos costumes, na vida pública e
na vida privada. Não é minha intenção reduzir os fenômenos humanos
à biologia. Creio que em certas situações o critério de decisão para
dirimir impasses, aparentemente axiomáticos no nível da cultura, pode
ser o exame de condições biológico-evolutivas, fato que tornaria o axioma
arbitrário no nível superior e, portanto, matéria de opinião e crença; e
derivado de dedução e argumentação no nível inferior, portanto, matéria
de conhecimento. Nesse caso a escolha de certas posições supostamente
arbitrárias e aparentemente indiscutíveis no plano cultural, social e
político pode ser matéria também de conhecimento, o que elimina o
recurso à força, subtituindo-a por uma razão de matiz biológico.
Se o discurso científico e biológico sobre a mente e a sociedade
pode se tomar mais denso e formal, o discurso meramente cultural
pode roubar-lhes argumentos preciosos muito além de uma retórica de
persuasão. Entre a perda da fluência, às vezes enganosa, das ciências
humanas, porque supostamente baseada em opinião, e a busca de
fundamento denso que possa dar um basta na proliferação de "saberes"
que nos têm paralisado na solução dos problemas da fome, pobreza e
desigualdade, ficarei com o segundo. Pode parecer pretensão,
insanidade, credulidade ou sandice, mas urge tomar a desigualdade
motivo de conhecimento, o que talvez a retire da condição de objeto de
O SÍTIO DA MENTE

escolha, ou de chaga intocável da condição humana, fundando uma


nova sociedade biologicamente solidária e fraterna.
A proposta, então, é fazer um apanhado rápido de várias situa-
ções que podem sitiar a mente humana. Sitiar porque pressionam er-
radamente; porque exigem dela adaptações impossíveis ou, então,
desvaloradas e antiéticas. Ao contrário de ser a ética mercadoria fora
de moda que vai ficar no passado ou, então, na mentira de certos dis-
cursos demagógicos, parece ser ela uma das principais conquistas
animais.
A par da característica egoísta do gene, há um embrião ético já
nos mamíferos superiores que poderia fazer a moral deixar de ser tema
das ciências humanas, voltando ao leito das ciências naturais. A
vantagem seria, como dito anteriormente, reforçar o discurso da
responsabilidade e da decência como necessários para a sobrevivência,
mostrando o quanto a atual perda de valores conspira contra todos
nós, em que pese ser defendida como competitividade. 1
Há dois grandes motivos de sítio da mente.Em primeiro lugar o
não-reconhecimento de seu sítio cerebral e, portanto, de sua condição
de objeto de estudo das ciências biológicas e não das humanas. Isso, ao
contrário de cercear as outras disciplinas, visa apenas a colocar um
basta na concepção atrasada acerca da disfunção mental. O segundo
ocorre na medida em que, submersa num contexto social, cultural e
econômico que se criou graças a ela ao longo da história do ser humano,
a mente se vê ameaçada em algumas de suas funções, correndo, assim,
maior risco de adoecer. Adoecer porque o meio muda rapidamente,
porque exerce sobre ela pressão desmedida e irracional; adoecer porque
alguns dos elementos que parecem pluralizar a sociedade não são senão
formas frívolas e superficiais de expressão de individualidade; adoecer
porque o valor e a ética parecem estar na contramão de uma série de
novas estruturas de funcionamento do mundo social, político,
econômico, jurídico e moral. Adoecer, enfim, porque, a par do avanço,
parece haver sinais nítidos de esgarçamento do tecido social, meio de
expressão e educação das mentes individuais e da personalidade
coletiva.
Os painéis que se seguem abrem debate acerca dos eventuais
•movos de sítio para a mente humana no próximo século. Como em
tdo1esforço de antecipação e de geração de hipóteses, pode-se incorrer
aqui num projeto de prestidigitação apocalíptica. Por outro lado, apon-
tar arbigüidades pode ser uma forma de lançar pautas para discussão
e reflexão. Além. da mente cerebral, também seu alicerce baseado na
QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

coesão social deve suscitar, no mínimo, uma reação de posicionamento


de cada um.
Portanto, como complemento da mente que não se esgota no
cérebro mas se espraia pela cultura e pela sociedade, de tal forma que
mais se assemelha ao mundo que ao cérebro, pensemos um pouco
sobre o futuro e sobre as ameaças que nos rondam desde que a mente
passou a ser instrumento de emancipação do indivíduo e não liame
entre os protagonistas de uma sociedade biologicamente determinada.

IMPUTABILIDADE E CULPA

Há diversas roupagens para o problema da responsabilidade. De


uma certa forma toda a nossa relação com as pessoas se baseia nessa
questão. A idéia de uma consciência prévia, de uma premeditação e de
um entendimento faz supor que haja intenção num ato. Por outro lado,
o episódio involuntário, casual, deixa de ter relevância, salvo trate-se
de negligência, imprudência ou imperícia. No caso de negligência, no
entanto, não se alude apenas à involuntariedade, mas também à
possibilidade de ocorrer um determinado fato, visto que o agente
prepara, ou deixa de evitar, certas condições. As figuras do dolo e da
culpa, no direito, assumem diversos trajes e cumpre rever estes
conceitos à luz de uma nova ciência da mente. Do contrário, corre-se o
risco de avançar no que tange à compreensão do fenômeno mental,
mas permanecer atrasado no que concerne à regulação da atividade
mental expressa em atos passíveis de sanção.
Vamos deter-nos um pouco nesse problema, enxergando-lhe de
início algumas das mais profundas ambigüidades que consigo imaginar.
A vontade parece ser algo que emana de um espírito, parente da
vontade de deus, emprestada ao ser humano na sua dimensão de cria-
tura. Porém, sabe-se haver base neural para ela, ou pelo menos para os
chamados atos voluntários e conscientes. Poder-se-ia dizer que se ti-
véssemos uma imagem cerebral de PET scan de um indivíduo quando
age, saberíamos se este ou aquele comportamento foi voluntário ou
não. Se voluntário e consciente, veríamos fluxo sanguíneo preferencial-.
mente nas áreas cerebrais frontais. Se automático e não-consciente,
veríamos este fluxo nas áreas posteriores cerebrais.
Duas razões me impedem de propor tal critério: dificuldades
técnicas para manter pessoas conectadas todo o tempo a PET scans e
dificuldades conceituais do critério. A primeira razão é jocosa.4 A se-
gunda merece comentário.
O SÍTIO DA MENTE

Quando se elabora uma teoria cerebral da mente, enfrenta-se


fatalmente a questão: será que é possível haver vontade e liberdade de
ação numa estrutura física ou esses dois conceitos não passam de
ilusões? Imagine que alguém dissesse conhecer o estado de todos os
neurônios e suas descargas elétricas num dado momento, prevendo
com isso a ação futura 2 (já vimos que isso seria impossível porque, se o
cérebro é sistema complexo, pelo menos para alguns valores de
parâmetros não há como prever-se os comportamentos futuros, em
que pese estar regido, ele o cérebro, por leis estritamente
determinísticas). Estariam descartadas tanto a vontade quanto a
liberdade, visto existir determinação física estrita nos atos? Creio que
não, pelas seguintes razões:
a) em primeiro lugar a vontade e a liberdade são conceitos que
ocorrem com bastante intensidade em nossa mente (claro que nossa
mente é misto cérebro, misto mundo, sendo difícil dizer qual a base
neural da experiência mental de vontade); em princípio não me agrada
a idéia de que algo está num sistema biológico sem função ou como
engano; portanto, deve haver algum correlato neuronal (base da fun-
ção que desempenha e não de sua vivência) para a vontade e para a
sensação de liberdade;
b) as pessoas que tentam associar vontade e liberdade com acaso
e desconhecimento (casos em que haveria fenômeno quântico no cérebro
- acaso genuíno - ou em que haveria acaso parcial pelo desconheci-
mento de todas as variáveis em jogo - acaso relativo) não me parece
fazer justiça à força dos conceitos: primeiramente, não me parece que o
que está por trás da vontade e da liberdade do indivíduo seja a
correlação com um acontecimento quântico em seu cérebro; em segundo
lugar, uma liberdade que fosse correlato mental de ignorância não seria
liberdade.
Portanto, devemos encontrar uma razão para a vontade e a liber-
dade que permita embasá-las cerebralmente e manter a estrutura de
imputação tal qual a conhecemos. A ambigüidade que pretendo tratar
diz respeito ao seguinte: se aceito o sítio cerebral para a mente devo
aceitar, ato contínuo, que liberdade e vontade são conceitos que
descrevem processos cerebrais. Porém, ao aceitar que alguém, a des-
peitp de cerebralmente determinado, tem liberdade de escolha, com-
prometo-me com a compatibilização aparentemente tortuosa entre
determinação física e liberdade.
Parece-me que o direito diria que o fato de haver determinação
física invalida a liberdade de agir e a imputação. 3 Por outro lado, quando
QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

dizemos que não houve intenção estamos dizendo que não há culpa,
embora a falta de intenção seja tão cerebral quanto a liberdade. Ou
bem há um mecanismo cerebral que garanta uma peculiaridade tal à
vontade, à liberdade e à consciência (ou compreensão) que se mante-
nham os julgamentos nos moldes atuais, ou então deve-se rever a
própria noção de intenção, voluntária ou não, porque ambas são
coagidas pelo cérebro. Isto é, proponho uma solução compatibilizadora
que, se não muda radicalmente a expressão da vontade enquanto fato,
muda-lhe o rosto enquanto evento gerador subjacente.
Se não houvesse base neuronal para a liberdade e a vontade,
sendo ambas apenas ilusões, seria imperativo adotar uma forma de
direito que imputasse atos, e não intenções ou compreensão. Um
direito positivo não examinaria a condição anterior ao crime (ou ao
delito), mas simplesmente diria que este está ou não de acordo com
a norma posta, e de maneira mais distante com o bem coletivo e
com a ordem. 4 Creio que o preço a se pagar seria alto, uma vez que
conhecemos os absurdos do behaviorismo, e podemos imaginar que
julgar comportamentos criminosos, em lugar de julgar criminosos,
poderia colocar em xeque grande parte do avanço do direito subjetivo
nos últimos trezentos anos. Não houvesse base neural para a
vontade, teríamos que, ao aceitar a determinação física para os atos,
redesenhar um direito baseado apenas na correção do desvio
comportamental (uma espécie de padronização arbitrária de
condutas). O direito, revistas as noções de consciência e de vontade
de base neural, pode cumprir seu papel histórico de imputação e
também mitigar seu aspecto positivo, voltando à base natural não
de uma justiça ideal, mas de uma justiça biológica. Para além dos
delitos e das penas, esse novo direito poderá educar a mente coletiva,
regulada não apenas pelo instrumento jurisdicional, mas pela
tradução das etapas que medeiam a forja da mente: o reflexo se
torna complexo e este se torna consciência individual, versão valorada
de atos e percepções ambíguas. A inexorabilidade da pena deve ser
reflexa. A condição processual, onde se pode examinar a pluralidade
de motivos, é complexa e a jurisprudência que avalia casos especiais
deve nutrir-se de um exame das condições de operação valorada e
cognoscitiva do agente biológico do delito.Um direito baseado numa
base neural para a vontade pode refinar seus instrumentos de sanção
e prevenção, guiando-se pelo exame das circunstâncias cerebrais
subjacentes a qualquer ato. Talvez com isso se alterem alguns
julgamentos críticos e paradigmáticos.
O SÍTIO DA MENTE

BASE NEURAL PARA A VONTADE

O leitor há de se lembrar da tão repisada noção de sincronização


de populações de neurônios como base universal do código e da
operação mentais. Pois bem, vejamos qual é uma explicação neural
para a consciência e, por conseguinte, para a vontade livre.
Há um célebre experimento em que se manda um indivíduo
apontar um facho de luz numa tela quando tiver vontade. O facho fica
girando e quando o sujeito aponta mede-se a atividade cerebral. Quan-
do diz ter tido vontade de apontar, acabando por tocar na tela, ocorreu,
300 milissegundos antes, uma forte onda cerebral nas regiões frontais
do cérebro. Isso seria prova de que a vontade e a liberdade que emergem
na consciência são apenas posteriores a uma atividade preparatória do
cérebro que nada tem de consciente, voluntária ou livre? Até algum
tempo atrás minha interpretação de tal fenômeno era que a liberdade e
a vontade seriam enganos conscientes que, embora em desacordo com
a base cerebral da mente, resguardavam as noções sociais, jurídicas e
teológicas de liberdade e de vontade. 5 Hoje tenho uma visão diferente.
Diria que há três instâncias no cérebro humano. Primeiro, a ativi-
dade basicamente reflexa em que a uma determinada estimulação
corresponde uma única reação. Quando tenho situações mais complica-
das, tenho um sistema complexo que deve ponderar acerca de múltiplas
possibilidades de ação. A partir de uma dada estimulação (que pode ser
externa ou interna) há uma série de ações possíveis. Aí reside a
complexidade de operação cerebral. Não há necessidade de mente para
que o cérebro opere em regime de extrema complexidade, porém se
fizermos necessária a supervenlência de uma nova ordem complexa - a
mente -, então teremos de conviver com duas séries paralelas - o nível
do processamento cerebral e o nível do processamento mental.
A sociedade que constituímos reclama não apenas por ações, mas
também pede que elas sejam justificadas. Cria-se, então, um terceiro
mecanismo, que julgo ser a base da consciência, em que certas ações e
percepções (ainda presumidas ou em fase de exame) são reinterpretadas
à luz da linguagem, da história e da memória, no afã de criar uma versão
da ação. Essa recriáção é muito rápida e tem condições de inibir ou ratificar
planos engendrados na esfera não-consciente (assim como o complexo
inibe a ação reflexa). Toda vez que se inibisse ou um esquema de ação
ou de percepção, ter-se-ia uma sensação de consciência e mais, se teria
uma sensação de dar consecução à ação ou de abortá-la, o que serviria
de base neural para o que chamamos de vontade livre (Fig.56).
QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

via 1 ' A deve ser B

inibição
ratificação Çmóna
biçãO
AéB
ser B ou C ou D
sso
processo complexo

F* 56 - A consciência é posterior à gênese do plano do ato. A vontade e a


liberdade não surgem da planificação de um ato, função complexa não-
consciente, mas de sua ratificação ou inibição enquanto ação possível ou
desejável.

Na Figura 56 descreve-se a seguinte hipótese: há na ação externa


o resultado de dois processos: um complexo, não-consciente, que
desenha cenários de ação (devido a estímulos ambientais e ao recruta-,
mento de memórias); outro que é o recrutamento de um monitor da
ação presumida (do potencial de uma ação), que é a redescrição
consciente dessa ação.
Quando ocorre a redescrição consciente, temos que o conteúdo é
consciente. Quando as duas ordens (a da ação presumida e a da consci-
ência como ação redescrita) sincronizam, há a mobilização de tantas
áreas cerebrais que se dispara a vivência da consciência (lembre-se da
água a 99 graus) e também a possibilidade de ratificar ou abortar o
esquema da ação.
Quando se ratifica, há a vivência da vontade e quando a ação é
abolida, temos a vivência da prudência ou da liberdade de escolher
como agir. Tem-se, assim, uma explicação para a consciência e para a
vontade. A consciência seria feita de três elementos: função, processo e
vivência. Pela redescrição valorada (processo) através de sincronizações
estabeleço um análogo (conteúdo) da ação e da percepção.
A sincronização entre processo complexo e processo consciente
gera a vivência consciente pelo recrutamento de inúmeras regiões cere-
brais, o que deve suscitar transição de fase no sistema. A função da
consciência é monitorar valorativamente a ação e a percepção presumi-
O SÍTIO DA MENTE

das. Presumidas porque o processamento complexo está todo o tempo


engendrando planos de ação e planos de percepção. Quando triviais,
seguem o curso direto, sem concurso consciente. Quando ambíguas,
tanto as ações quanto as percepções presumidas, cria-se-lhes através
da sincronização um análogo consciente.
Esse análogo será capaz de gerar um comportamento de inibição
ou ratificação. A vivência consciente do análogo se somará a vivência
da inibição ou da ratificação. Esta deve ser suficiente para gerar o
conteúdo de vontade e de liberdade.
Com isso espero mostrar que há uma base cerebral para a sensa-
ção de vontade e de liberdade. Ao contrário de meros conceitos da
linguagem corrente, haveria substrato neuronal para elas. Isso garante,
a um só tempo, que se podem manter as formas atuais de imputação,
responsabilidade, atenuante e agravante para os crimes (e também para
certas situações civis, como contratos) e também que o critério de
examinar a justificação e a descrição lingüística das motivações de uma
ação são totalmente cerebrais.
Talvez muita gente não se importe com o ser ou não cerebral,
mas creio que, pela razão básica desse livro, é interessante equipar o
direito com uma vontade e uma liberdade de base neural, uma vez que
talvez possamos resgatar um direito natural, não mais de parentesco
divino, mas de base biológica.

SUJEITO PÚBLICO E PRIVADO

O sujeito, misto de cérebro, mente e mundo, tem uma feição pú-


blica e outra privada. O sujeito privado é a mente individual, de acesso
único. Feche os olhos e perceba, no intimo de seu recato, o que é mente
privada. Aquela que por vezes não externa o que pensa. Que por edu-
cação ou por dissimulação não coloca para fora o seu interior. O sujeito
público é um misto de comportamento e de idéias. Comportamento
porque não é necessário dizer nada para que se passe uma impressão.
O vestuário, os gestos, os adornos, os locais freqüentados são condições
de definição de uma feição pública do sujeito. A feição privada por
vezes êcoberta o dissimulador, o embusteiro, o falso. Não diria que a
mente está sitiada porque não externa todo o tempo seus estados inter-
nos. Isso seria pueril e muito provavelmente a mente, ao permitir a
dissimulação, está exercendo uma faceta de adaptação, tal fosse o
camaleão que troça de cor de pele para se confundir com a folhagem e
não ser devorado pelo predador. A dissimulação consciente é adaptativa,
QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

sobretudo na forma de uma astúcia necessária com os centros de poder,


como disse Mauro Santayana.
A degradação do sujeito privado nos dias de hoje constitui sítio
para a mente porque não há mais consciência do panorama privado,
nem consistência, nem valor. Muitos de nós, hoje em dia, esboçam
uma faceta curiosa: são sujeitos públicos, guiados pela moda e pela
expectativa alheia; o privado, evanescente, pobre e pouco desenvolvido,
passa a ser mera sensação corpórea. O sujeito privado, manietado pela
moda e pela alienação, tornou-se uma espécie de hipocondríaco coletivo.
Hipocondríaco porque o plano da mente privada é apenas espaço de
queixas corpóreas (uma das funções da mente no monitorar o corpo);
coletivo, porque os outros estados internos não são reflexão e espaço
de construção de hipóteses, mas apenas a internalização dos anseios
coletivos. A conduta não é mais o resultado da elaboração interna, mas
é determinada pelo coletivo massificado, ficando o estado interno como
pseudo-sujeito privado, apenas atualização interna do que querem o
modismo e o olhar alheio.
Essa nova conduta, introjeção passiva da moda, da política, dos
costumes, é uma subversão que faz o público determinador do privado.
Embora compatível com sociedades extremamente rígidas, conserva-
doras e imutáveis, e também com sociedades justas e fraternas, na
nossa atual, alienada e manietada, torna o indivíduo privado uma
extensão manipulável de um público fundado no poder e não na reunião.
Na sociedade antiga, o sujeito - invenção ou amplificação do
ocidente, particularmente pós-estado moderno - é pouco desenvolvi-
do, sendo o plano do privado apenas projeção e internalização do an-
seio médio público. Sem entrar no mérito, digo que essa situação é
adaptada. Porém, se associarmos liberdade e participação política -
características da sociedade atual - com sujeito privado alienado, em-
pobrecido culturalmente, massificado pela mediocridade de certos
meios de comunicação e entretenimento, então teremos conjunção
preocupante. A mente desse pseudo-sujeito contemporâneo é pobre.
Exime-se por ter poucas idéias, por pensar pouco, por meditar pouco,
por ler pouco, por escrever pouco.
Esse indivíduo moderno é mente privada pobre e sujeito público
medíocre porque exposto a uma sociedade em que tradição, cõnstân-
cia e hierarquia são mercadorias fora de moda e sua inventividade e
capacidade são incapazes de gerar projetos pessoais decentes e criativos.
Esse indivíduo deseja, pensa que pensa, tem "opiniões", é arrogante
na sala de aula, não respeita a cultura, somente o dinheiro, e assim por
O SÍTIO DA MENTE

diante. Muda com a velocidade da nova coleção de moda européia.


Usa boné de time de basquete americano, embora nossa tradição nesse
esporte seja menor; veste-se da maneira ditada pela "moda" atual: temos
de três botões para os adultos, neo-grunge para os adolescentes (sempre
com elementos disfarçados e casuais de grifes caríssimas) e anos 60
revisitados para as mulheres. Amaldiçoa seu bom carro tão logo sai o
novo modelo com frisos cromados de outra cor, faróis ovais e não mais
quadrados e air-bags laterais, frontais e dorsais (ótimo, assim quem
sabe somente mate os outros nas colisões que provoca por excesso de
velocidade, imprudência, abuso de álcool e drogas). Vota quando
obrigado, mas não procura saber as plataformas do candidato e muito
menos a orientação ideológica do partido. O candidato é um produto
que é escolhido na gôndola do supermercado ou na vitrine do shopping-
center. Exerce, assim, seu dever e direito de cidadão contribuindo para
a falência do sistema representativo e da própria idéia de democracia.
Aliás, descrê dos regimes, julga a ideologia e o conflito direita-esquer-
da superados. "O muro de Berlim caiu", exclama em alto e bom som,
sem ter sequer a sofisticação de ler Fukuyama 6 para endossar um pouco
suas sandices políticas. Não crê que haja um espaço de manifestação
pública salvo em seus encontros frenéticos na casa noturna ou na
vernissage de recém-adeptos ao mundo das artes. Namora com o
autoritarismo e com a ditadura. Exalta a intervenção absoluta no plano
político, mas renega qualquer interferência do estado em sua vida
privada. Queixa-se dos impostos, dos govemantes e também dos maus
serviços públicos.
O indivíduo caminha para uma inversão de papéis. A mente pú-
blica, que de conservadora e imutável nas sociedades tradicionais passa
a espaço de liberdade de expressão e de respeito à pluralidade de
gostos e opiniões, é agora o algoz da mente privada. Não exerce sobre
ela função controladora explícita. Opera, ao contrário, com duas
sofisticadas armas subliminares: semeia a ignorância e dita os compor-
tamentos através de modas e tendências.
O cérebro, acossado, não pode encontrar aí estado estável. Por
quê? Porque, como vimos ao longo deste livro, não é o meio que deter-
mina térbro-mente, mas o contrário. Em vez de folha em branco em
que anfA, a experiência e agora a moda e a propaganda escrevem suas
categorias ogérebro é o forjador primeiro de uma visão de mundo.
Quando eixa de ser agente do processo de construção do ser coletivo,
devidamente arnarado em uma sólida estrutura privada, culta e
equilibrada, deixa de ser agente para ser paciente de um processo
A CULTURA SITIA A MENTE

coletivo burro e alienado. Isso se chama, travestidamente, de liberdade,


mas na verdade a abolição da censura e a massificação de meios
provisórios de comunicação e de educação mais subjuga que liberta.
Se a mente não está preparada, no piano privado, para elaborar a
liberdade e para manipular os conceitos que se lhe aportam com rapidez
imensa, deixa de ser livre para ser apenas tela onde se impressionam
os fotogramas do videochpe do filme de 30 segundos anunciando uma
nova calça de brim ou um movimento incrível de consciência ecológica.
Salvemos as árvores e as baleias para que os mendigos e os excluídos
possam ter vez no próximo capítulo.
Os anos 80 e 90, véspera da passagem de século e de milênio,
parecem ter acabado por solidificar a alienação e o individualismo.
Caíram as últimas bandeiras românticas e utópicas de igualdade. A
dialética da polarização cedeu lugar a um consenso (entre outros o de
Washington)7 estéril e desengajado. O coletivo passou a ser lugar apenas
do congestionamento de trânsito e do perigo dos assaltos à luz do dia.
A idéia de êxito pessoal tomou o lugar de preocupações com a sociedade
como um todo. A aceitação da conduta imoral para lograr certos fins
passou a ser vista com olhar pragmático em lugar de provocar repulsa.
O sentimento de solidariedade se dirigiu para árvores e baleias,
deixando o semelhante à mingua. A idéia de revolução e o desejo de
transformar o mundo deram lugar a um consumismo frenético de
produtos de tecnologia mais sofisticada. Paradoxalmente essa tecnologia
sofisticada cria uma desvalorização do trabalho. O técnico tem que ser
sofisticado para poder consertar um aparelho, mas não consegue cobrar
de acordo com o valor do que faz, preferindo-se nesse caso
simplesmente jogá-los fora - aparelho e técnico. De uma só penada
consegue-se desvalorizar o trabalho, a manutenção, exacerbando o
simples jogar fora e comprar um novo. Se isso faz uma economia andar,
também sitia porque aliena e descompromete. Não se conserta nada,
substituindo-se o circuito ou o aparelho como um todo.
Nesses últimos anos assistiu-se a uma liberalização enorme nos
costumes. Se do lado dos adultos houve uma regressão no que diz
respeito à sexualidade devido ao temor da Aids, do lado do5 jovens
assistiu-se a um encurtamento brutal da infância e a um a1bmento
insuportável da adolescência. O sexo e o flerte com caiiasode ser
rápido e sem compromisso. Também o compromis erante a
sociedade e a responsabilidade parecem cada vez mais disttes.
A mente privada, educada, lida, com temppara - reflexão e
para a fantasia, não tem mais lugar. A velocidade e a facilidade com
O SÍTIO DA MENTE

que se pode expô-la a um leque de diversões rouba-lhe o tempo do


crescimento. Rapidamente se expõe ao mercado que decide o que de-
verá consumir, deixando de ser centro de determinação de políticas
pessoais para ser apenas órgão repassador de políticas - ou
propagandas - públicas. Foram derrubados os Estados absolutistas e
as ditaduras, mas a liberdade alienada e manietada pela propaganda
pode não ser tão menos nociva. Com o agravante de que algumas
ditaduras tinham compromisso moral com certas idéias e o mercado e
a propaganda são amorais por definição, não se podendo cobrar-lhes
moralidade ou atribuir-lhes imoralidade. Muda-se o publicitário que
faz a imagem de um candidato com toda a facilidade. Faz hoje campanha
para um e amanhã para outro de partido oposto. Não há que temer:
levou-se a idéia de ética para um plano de estabelecimento do contra-
ditório. No direito a função do advogado é defender seu cliente, culpa-
do ou inocente, para que, estabelecidas as duas versões, do acusante e
do acusado, possa o juiz decidir. Pois bem, se isso é chamado de
contraditório - e acho que não é por acaso 8 - também uma série de
ações humanas neste final de século se legitimam como tais: há que
estabelecer o contraditório, deixando para alguma instância
superveniente julgar. Mas com essa forma de comportamento não haverá
jamais decisão superveniente senão aquela que brotar do mercado (deu
certo, viu? vendeu bem, viu? elegeu-se, viu?) ou da estabilização do com-
portamento amoral como norma da nova era.

O LUGAR DA ÉTICA

Na Figura 55 apontei quatro estados possíveis para um sistema


complexo. Estáveis-funcionais, instáveis-funcionais, instáveis-
disfuncionais e estáveis-disfuncionais. A relação entre os três primei-
ros chamei de pathos e a relação entre esses três, particularmente o
primeiro, e o quarto é o que chamei de emos.
Por quê? Porque há um acaso que cria variabilidade, para seguir a
máxima de Darwin. Dessa forma, muitos são os estados estáveis-
funcionais e não apenas um. Isso é o que garante plasticidade e riqueza
aos sisteipas complexos. Pode haver muitas soluções estáveis e funcio-
nais, o quê dá uma margem de criação e inventividade ao sistema. Porém,
o preço qe áè paga por isso é a existência também de inúmeros estados
estáveis-disfuncionais. Os estados instáveis não me preocupam excessi-
vamente porque, para falar em termos de energia como nas primeiras
partes deste livro, esses estados tendem a migrar para outros, estáveis.
QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

Se os estados funcionais, e mesmo os instáveis-disfuncionais, são


parentes do acaso que cria a variação, há que impor-lhes um vetor de
seleção. Aí entra o papel da necessidade. O acaso cria a variabilidade e a
necessidade cria a seleção. Essa dicotomia entre acaso e necessidade é
central na teoria evolutiva e também no modo como devemos enxergar as
dinâmicas mentais privadas e públicas neste final de século. O cérebro
humano, na sua fantástica variabilidade, cria, além do processamento re-
flexo (que nem é tão reflexo e nem tão simples como pode parecer), um
processamento complexo e, ainda mais, um processamento consciente-
mental. Artefato biológico notável, cria variabilidade todo o tempo e gra-
ças a isso há invenção, progresso, aprendizado e um sem-número de outras
facetas nossas conhecidas. Porém, também visita regiões estáveis de
patologia do ser privado (depressões, ansiedades, fobias, psicoses, etc.) e
de patologia do ser público.
As primeiras foram cuidadosamente examinadas na maior parte
deste livro. A patologia do ser público, antes de mera auto-organiza-
ção de tecidos sociais, econômicos, políticos, jurídicos e morais, é também
cerebral (e portanto biológica e natural) na sua base e fundamento.
Toda ordem de relações auto-organizadas, sem a interferência no
sistema complexo, é o que chamo de relação depathos, porque seguem
a dinâmica natural do sistema, as flutuações incontroláveis, sendo cabível
analisá-las mais sob a ótica da paixão e da emoção que pela ótica da
razão. Essa, ao contrário, ao escolher entre várias alternativas, exerce
uma função necessária chamada effios. Os termos são emprestados do
termo grego e de uma certa forma podem se confundir com a noção de
afecção criadora e potencialmente patológica (pathos) e com intervenção
decisória e racional (ethos). Esse ethos empresta raiz à palavra "ética",
enquanto depathos deriva a palavra "patologia".
Se o pathos é da ordem das coisas que se criam e se inventam no
seio da auto-organização de cérebros, mentes e sociedades, também é
parente da patologia e da disfunção. Há, assim, um estado de inter-
venção da razão, das drogas e das idéias que reinstaura o domínio
adequado. Quando o sistema auto-organizado, dominado pelo que
chamo de dinâmica dopathos, visita estados estáveis-disfuncionais, há
que impor-lhes, pelo uso de agentes externos, vetor que os desloque
da condição de estabilidade disfuncional para a restauração da stabili-
dade funcional.
Um dos grandes motivos de sítio da mente e, portanto, do ser
humano, neste momento histórico, é não perceber que, se aufo-organi-
zação cria variabilidade, há um vetor de necessidade que escolhe e
O SÍTIO DA MENTE

seleciona. A ordem da necessidade e da seleção não é auto-organizada,


mas sim hetero-organizada. É de fora para dentro, de cima para baixo,
do todo para a parte, e assim por diante.
No piano da concepção antiga, é a razão que verifica, entre as
múltiplas instâncias emocionais, qual deve seguir em frente. Há um
primeiro esboço de ética quando se submete a paixão ao exame da
razão. Porém, dois outros elementos fazem parte desta hetero-organi-
zação, ou interferência reguladora ou necessária: o uso dos fármacos
que corrigem a anomalia da mente privada (primeiro grande sítio da
mente) e o uso de certos conceitos que devem nortear a escolha das
formas estáveis no plano público, imputando-lhes, ainda que sejam
estáveis (isto advém da ordem da auto-organização e do acaso criador),
o crivo da necessidade, da razão e da adaptação natural.
Defendo que a terceira forma de organização estável, aquela que
ocorre na mente pública e, portanto, afeta a sociedade como um todo,
deve também sofrer esse exame da razão e da condição de estar ou não
de acordo com os princípios da evolução e seleção naturais. A ética, os
valores, as condutas que estão acima de qualquer indivíduo isolado
mas coordenam a média das atitudes coletivas de cada um de nós,
antes de invenção cultural ou teológica, são requisitos evolutivos.
Animais não são apenas estoques de genes isolados lutando pela
sobrevivência. São também uma espécie toda à cata de reconhecimen-
to. Portanto, sem cooperação e atenção à decência, igualdade,
atendimento aos mais fracos, não é um indivíduo que está em risco,
mas a espécie toda. 9
Se o acaso cria uma série de organizações e variações, cabe a um
outro plano de interferência regular os bons e os maus estados. Aí está
o que chamo de effios no plano dos sistemas complexos e de ética no
plano de cérebros, mentes e sociedade. Não perceber que o mercado
se tornou soberano, que a vitória financeira se tornou critério de bom e
de mau, que a interferência passa a ser vista com olhar enviesado, sitia
a mente. Sitia porque a coloca à deriva dos agentes externos e das
auto-organizações que sobre ela exercem papel. Há tirania num
panorama externo que impõe suas normas, irracionais e aéticas, de
sucesso e 'de vantagem. Isso cria pessoas que cedo concorrem pelo mais
simples bocado de bolo e que fatalmente perdem a noção de ser humano
no que diz respeito à comunhão e à troca. Além disso, como citava em
outro ponto, de nada adianta esse sucesso porque cria efeitos colaterais
fatais:
a) de um lado desmerece a mente como medida de todas as coisas:
QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

o sucesso é externo e não interno. Isso cria ansiedade, depressão e


perversão moral;
b) de outro lado coloca em risco o bem-sucedido porque torna-
se vítima fácil dos excluídos, seja no sinal de trânsito, no seqüestro,
seja na corrupção que, instalada, tende a onerá-lo sob a forma de
conluios, propinas ou nas pesadas somas que paga a advogados
para resguardar seus interesses, tão granIe é o medo de contratar
ou pactuar algo com alguém.
Quer dizer, há dois efeitos da perda de uma ética que deveria
regular nossa escolha de sistemas estáveis. Um é a progressiva
ansiedade e o potencial descontrole daqueles que participam dessa
corrida pelo sucesso (que em nada parece lembrar o engrandecimento
pessoal, lento, progressivo e sólido). Outro é a possibilidade de que se
tome o estável por funcional, fazendo com isso confusão tremenda e
nociva: nem tudo que é freqüente é normal (pode ser que fosse freqüente
matar pessoas em tais circunstâncias em tais épocas, nem por isso
alguém defenderia que isso é normal). A idéia de que há um
desemprego tecnológico e uma exclusão de grande parte da humanidade
de um processo de competição, reengenharia, globalização, me parece
retratar bem a confusão entre estado estável (parece bastante estável) e
nem por isso normal. Digo normal do ponto de vista da espécie humana
e de sua viabilidade futura.
Assiste-se, assim, a um progressivo modismo e consumo de mer-
cadoria de alta tecnologia sem que com isso se mude a visão que o
homem comum tem da ciência. A ciência, antes de produzir a célula
fotoelétrica que aciona a descarga no mictório do aeroporto, pensa no
ser humano e na natureza, procurando afastar-se do discurso emocio-
nal e arcaico, construindo lentamente uma razão que explique cére-
bros, mentes e sociedade. Consumir preservativos eletrônicos, extasiado
pelo fato de conterem ch.zp que toca música, enquanto se descrê do
estudo, da paciência da pesquisa, rindo da razão, comungando cõm
bruxas, duendes, atraso e outras coisas que tais, é um sinal de mente
que, sitiada, se divide entre o moderno para consumir e o arcaico para
viver e pensar.
A crise dos valores morais acaba por afetar a própria pujança
econômica porque, em primeiro lugar, sabe-se que a pérda de
certos mínimos de padrão ético redunda em perda de pródutividade
e de acumulação de riqueza; 10 porque, em segundo lugar, sabe-se
que a falta de educação ética, desde a família e a escola, cria um
potencial psicopático social que acaba por sitiar a cidade e as
O SÍTIO DA MENTE

intituições, palcos de investimento e de confiança dos agentes


econômicos.11
Portanto, a cultura pode sitiar a mente, na medida em que, apro-
veitando-se de sua suposta pluralidade de personalidades, fizer o elo-
gio da menos funcional delas - a amoral e individualista. Não sitiará
quando, voltando ao leito da comunidade biológica, perceber o coletivo
como meio de amplificar e viabilizar o bem-estar de todos.

SÍNTESE

A vontade e a liberdade podem, se entendidas como sopro divino,


eclipsar a razão que as julga. Os sistemas complexos (aqui descritos
como sistemas dinâmicos não-lineares) são um bom análogo explicativo.
Para regiões chamadas de valores ordinários de parâmetros e de
estabilidade estrutural comportam-se de maneira previsível; nas regiões
de instabilidade estrutural e valor de bifurcação de parâmetros exibem
imprevisibilidade no que tange ao estado futuro. Cascatas de
bifurcações levam ao caos.
Se para intervalos normais (parâmetros ordinários) a decisão
calcada na suposição de uma vontade livre e soberana, parente dos
deuses, não muda muito o que seria feito no caso de uma vontade de
base neural, em outros casos, talvez de instabilidade estrutural,
diferenciá-las é fundamental.
Uma vontade de base neural é condição para a forja de um novo
direito em muito igual ao atual nas regiões de estabilidade estrutural,
porém algo diverso nas regiões de bifurcação.
A vontade pode parecer quimera, dado que o sistema que a realiza
é determinístico e mecânico. Porém, minha hipótese é que o cérebro
esteja todo o tempo forjando planos de ação e de percepção. Quando
esses planos são triviais (ou numa linguagem mais técnica, quando há
solução atratora para esse nível de processamento) não há a necessidade
de recrutar a consciência (ou a mente lato sensu) . Quando algo impede
que o processamento cerebral infraconsciente seja capaz de agir ou
perceber algo, então cria-se uma redescrição desse plano motor ou
sensoriaPnas regiões neocorticais. Essa redescrição deve ser filtrada
pela linguagem e pelas memórias. O sinal deve sofrer um estreitamento
tal que se converta em proposição. Essa conversão gera um conteúdo
que é o problema não resolvido na instância infraconsciente devidamente
filtrado pela linguagem. Esse conteúdo sincroniza com o conteúdo
anterior (infraconsciente) gerando a vivência de consciência. Desse
QUANDO A CUlTURA SITIA A MENTE

processo surgirá a ratificação ou inibição do plano motor ou sensorial.


Também fará surgir urna correção de parâmetros no piano infraconsciente
tal que no futuro um problema análogo possa ser resolvido sem apelo à
consciência.
Os processos de ratificação ou inibição é que me parecem ser os
análogos da vontade e da liberdade. Não somos livres para querer
porque as ações que suscitarão vivência de vontade e liberdade estão
todo o tempo sendo planificadas abaixo da consciência. Somos livres
no entanto para ratificar ou inibir cenários hipotéticos de ação ou
percepção que nos brotam na consciência.
Claro que há dois modos de coagir um indivíduo: reprimi-lo
através do filtro ou educá-lo para que cada vez mais o sistema infra-
consciente não encontre solução automática nas ações e percepções
potencialmente danosas ao effios.
A antiga noção de educação pretendia talvez exercer controle sobre
o filtro: a transgressão não chegaria à consciência, nem por isso se
garantiria que não se concretizasse em ato. Mais ainda, essa moral
repressiva de tipo vitoriano somente fez amplificar uma série de
distúrbios mentais. A educação lenta e o reforço dos valores garante
que a um só tempo se enriqueça a teia de conexões infraconscientes, o
que resultará gerar ausência de solução atratora toda vez que se incorrer
em potencial afronta a uma norma de ethos, mantendo-se o filtro da
consciência tão amplo quanto possível, para que, uma vez recrutada,
possa exercer o papel de ratificação ou inibição da melhor maneira.
Para as situações-limite um esboço de teoria neural da vontade
pode modificar alguns dos julgamentos que fazemos acerca do caráter
intencional e delituoso dos atos e percepções.
0 SÍTIO DA MENTE
A MENTE EDUCADA

Capítulo 27

A MENTE EDUCADA

U m dos problemas cruciais ligados ao desenvolvimento dos


chamados sistemas auto-organizados é a possibilidade de ao mesmo
tempo se organizarem em estados estáveis funcionais e disfuncionais.
Para isso, como dissemos anteriormente, opathoscria a variabilidade e
o ethos cria a seleção. A educação é a grande arma para executar correções
sobre o cérebro-mente. Por isso a seleção nos dotou de um sistema
moldável e programável. Tanto no piano individual, quanto no coletivo,
tanto na casa, quanto na escola, na empresa, no consultório, o paradigma
que deve nortear políticas privadas e públicas de constituição do ser
humano pleno é a educação. Plena, horizontal, fortemente embasada
em ética e responsabilidade e, sobretudo, continuada ao longo de todas
as etapas da vida.
Algumas considerações superficiais são necessárias a respeito de
formas e meios ligados à educação: em primeiro lugar, a par das disci-
plinas tradicionais, surgem áreas novas que misturam as antigas e um
pouco a mais; segundo, o computador velozmente vai adquirindo a
possibilidade de substituir o ser humano nas tarefas em que há regras
bem definidas. Esses dois elementos devem mudar brutalmente nossa
visão no tocante às diversas pedagogias. Primeiramente, é preciso
conjugar o antigo modo de transmissão de conhecimento (aulas
expositivas, matérias clássicas, etc.) com um novo que desenvolva
rapidamente a interface entre as disciplinas (zonas opacas de intersecção
que devem demorar muito para serem executadas por computadores).
Em segundo lugar, é preciso estimular o gosto pela descoberta e pelo
prazer no estudo. Se antes era possível imaginar que um indivíduo
saíndo do 20 grau ou da escola profissionalizante ou da universidade
podia passar o resto da vida sem estudar, isso hoje é uma piada. Segu-
ramente a cada cinco anos deverá haver reciclagem geral. A especifica
pode ser necessária até em menor espaço de tempo. Além da transmissão
de conhecimento especifico, deve haver forte ênfase no estudo conceitual
geral, sem facilidades para resolver exercícios já feitos em aula. Para
isso, cumpre estimular o filho ou o aluno a realizar as mais diferentes
o síTio DA MENTE

tarefas, variando da matemática ao teatro, do estudo da língua à leitura


diária de jornais, do esporte ao uso intensivo de computadores, seja no
aspecto prático de manipulação de programas, seja no aspecto teórico
de aprendizado sobre linguagens, lógica e fundamentos de eletrônica. A
carga horária deve ser aumentada e os professores devem ser extrema-
mente bem formados. As salas de aula não devem jamais passar de 20
alunos, particularmente nos primeiros anos de formação (10 e 20 graus).
Deve-se mesclar a aula expositiva, a disciplina, o rigor na avaliação, de
estilo antigo, com atividades absolutamente livres, seminários em que
a figura do professor deve apenas orientar e jamais impor ou dogmatizar.
Valores éticos gerais de convívio e respeito ao semelhante devem ser
ensinados, repisados e integrados com a família e a comunidade local.'
Mais do que nunca, se ideal perene, estamos num momento em
que o amor pelo estudo e o dever de executar bem as tarefas tornam-se
imperativo moral e não mais exigência curricular ou familiar. E preciso
pensar seriamente em duas questões a esse respeito: a) por que as
crianças e jovens não gostam de estudar?; b) por que construímos, pelo
menos em alguns países, um sistema em que entregamos nossos filhos
para serem educados por professores, mas ao mesmo tempo quase
nenhum de nós sonha com a carreira de professor para um filho,
mormente se for de nível básico?
Ambigüidades como essas são fatores de sítio para a mente hu-
mana. Além de descobrir-se cérebro, cabe a ela ter as condições ade-
quadas de desenvolvimento e aprendizado. Sem isso, estamos cami-
nhando para uma separação terrível do mundo: aqueles que natural-
mente desejam estudar e progredir, formando uma elite intelectual, e
aqueles que, não estudando, acabam por estimular subterfúgios, às
vezes pouco éticos, para desculpar seu passado e para empreender
seus negócios.
A ridicularização do bom aluno, a afirmação de que a escola só
ensina "teoria" e que "na prática a coisa é outra" são verdadeiras chagas
para uma sociedade que pretende emancipar-se. Como a nova ciência
do cérebro já conhece alguns elementos do processo de aprendizado,
raciocínio, memorização, solução de problemas, cabe ouvi-Ia. Mas
cuidado: não sabemos ainda o suficiente para derrogar o antigo ensino,
tradicional e calcado em hierarquia, disciplina, avaliação rigorosa,
disciplinas tradicionais e reprovação. Portanto, cabe mesclar o ensino
antigo com o novo, de tal forma a beneficiar o aluno de duas formas de
ver as coisas: uma vertical e tradicional, outra horizontal e participativa.
Um último fator de sítio da mente é o fato de que as crianças,
A MENTE EDUCADA

ainda em idade precoce, podem desenvolver quadros neurológicos e


psiquiátricos importantes. Esses quadros costumam atrapalhar bastan-
te na escolaridade e devemos estar aptos, pais e professores, a
diagnosticá-los e encaminhá-los às instâncias certas de tratamento.
Nesses casos somente os especialistas podem diagnosticar, embora,
quando impossível manter avaliação de todos os alunos, deva-se orien-
tar pais, professores e psicólogos escolares, praticamente todos não
habilitados para esses diagnósticos, para que possam discernir entre o
mau aluno e o aluno deficiente, deixando de aplicar seus corretivos
inócuos para a patologia e brutalmente danosos para o aluno.
Quanto ao uso de computadores, e particularmente o uso de
redes de computadores - internas (intranets) e externas (internet) -,
cabe fazer aqui algumas ponderações vitais, válidas em todo o espectro
da idéia de educação.

COMPUTADORES E INTERNET

É certo que o computador revolucionou nossa vida. Desde a má-


quina em si, poderosa ferramenta, até a sua comunicação via linha
telefônica com outros computadores. Essa comunicação, através das
chamadas redes, entre as quais a Internet é a mais ampla, está-se
tornando quase popular nestes anos 90. Pelo preço de uma ligação
telefônica local e mais uma taxa paga a um provedor de acesso, pode-
se acessar o maior banco de dados do mundo (há algo em torno de
trinta milhões de homepages na WEB (World Wide Web) 2 ou o correio
eletrônico. Há quem veja no correio o grande instrumento da rede, à
medida que possibilita a troca de informações em tempo real e por
preço baixo. Na esfera científica é revolucionário seu papel, bem como
nas empresas delineia novos tipos de gestão (intranets).
As homepages, febre atual, devem ser vistas com um pouco mais
de cuidado. Embora reúnam muito mais virtudes que defeitos, são uma
espécie de supermercado de informação. Verdadeiro caleidoscópio pós-
moderno, ansioso, de tipo videoch, que recria na forma high-tech o ideal
da enciclopédia francesa.
A Internet tende a ser barata, fácil de acessar (desde que superadas,
no caso de certos países, ambigüidades como uma linha telefônica custar
4.000 dólares!), permitindo democratização de acesso à informação, à
pesquisa, bem como uma interessante e inquietante pulverização dos
meios tradicionais de controle. Interessante pela criatividade dos estados
possíveis (dinâmica dopathos); inquietante pela ausência de correção e
O SITIO DA MENTE

regulamentação, confundida no atual pluralismo desenfreado com


censura (carência da hetero-organização ou dinâmica do emos).
A rede, no entanto, não substitui uma boa biblioteca e a pesquisa
feita nesse meio. Como, no entanto, não há biblioteca em qualquer lugar
opathosé positivo. Com computadores e conexões telefônicas pode-se
fazer de qualquer lugar, mesmo no interior do sertão, um ponto de
busca e de pesquisa, sendo nesse caso um ethos defensável porque
igualitário. Porém, há elementos nopathosda rede, ou nos modos como
se expressa, que podem causar apreensão.
Um deles é a rapidez de acesso e a possibilidade de "navegar"
sem direção, que subvertem a tradicional ligação da mente com o espaço
e com o tempo. Se a mente foi forjada para estar ligada a um corpo,
executando suas potencialidades em função de variáveis de tempo de
procura e de necessidade de deslocamento, pode-se desenhar uma
mente algo diferente com a evanescência digital das fronteiras.
Outro problema diz respeito à possibilidade de a rede conter qual-
quer tipo de informação e de permitir a reunião de qualquer grupo de
interesse sem grande possibilidade de controle. Se isso é revolucionário
quando imaginamos o menino do sertão que pode trocar informação
com outras pessoas do mundo acerca de um determinado interesse,
também é fator de perigo quando um indivíduo psicopata, antes recluso
e envergonhado, pode, na solidão e privacidade de seu escritório,
cooptar interessados em fazer ressurgir o nazismo. A possibilidade de
reunião virtual pode colocar alguns problemas sérios na medida em
que a mente, forjada para estar acompanhada de um corpo físico,
encontra agora a possibilidade de soprar virtualmente pelo mundo.
A pesquisa sem direção, sem nítido elemento conceitual que possa
digerir e organizar a informação, pode criar pseudoculturas, idiot-
savant5.3 Isso é nefasto e pode resultar em uma espécie de modismo do
meio usado (o que está acontecendo agora), como se fosse chique nave-
gar pela rede, quando o livro permanece embolorado na estante da sala
sem jamais ser consultado e lido. Cuidado porque num tempo em que
o cinema de três horas deu lugar ao filme de propaganda de 30 segundos
e o tratado de 500 páginas deu lugar ao xerox do resumo de notas de
aula, a rede pode amplificar e institucionalizar um conhecimento sem
base e sem direção.
A exposição à informação dispersa e veloz pode amplificar qua-
dros ansiosos na medida em que a solidificação de memória e a formação
- de unidades de contexto é quase impossível. Lembre-se de que o cérebro~
mente está todo o tempo tentando fazer uma síntese unitária da
A MENTE EDUCADA

informação que lhe chega dispersa. Se esssa informação é em quantidade


enorme e muito rápida, não é demais imaginar que surjam patologias
ansiosas, além da ignorância travestida de modernidade, pela exposição
a contextos diversos e pouco sintetizáveis.
Um outro problema que diz respeito ao uso do computador e
das redes é a amplificação de elementos de isolamento, travestidos de
comunicação. Nossa comunicação foi selecionada para ser essencial-
mente corporal e também lingüística. Quando deixamos de ser corpo
presente para ser apenas palavra transmutada em caracteres na tela
estamos amplificando uma função, mas estamos também amputando
a forma biológica de comunicação. Lembre-se de que grande parte da
ética, da cidadania e da democracia surgem pela reunião física em
pequenas comunidades de interesse e convívio. Isso foi a base do de-
senvolvimento da democracia americana, com as comunidades de bair-
ro, os conselhos de escola, a reunião dominical na igreja, etc. Com o
advento da mobilidade de emprego, tornando o indivíduo móvel pelo
país, mudando não só de emprego como de cidade, houve uma pro-
gressiva perda de identidadade de cidade, de bairro, de quarteirão, o
que, se de um lado criou um pseudocosmopolitismo chique, de outro
parece ter conspirado contra a idéia de propriedade, de identidade
física com a comunidade e de fomento de elementos de controle ético e
político.
Como diz Christopher Lasch em seu último livro a esse respeito:
o indivíduo de elite, moderno, morador das grandes cidades, fez de sua
casa um marco de passagem, sempre em trânsito para uma vemissage,
um concerto de música, um novo restaurante exótico, etc. 4 Essa negação
da identidade com o lugar, com a comunidade, esse pseudo-
cosmopolitismo chique e b/asé deve ter importantes conseqüências numa
ética e numa política que suponham participação comunitária.
O uso do computador pode se tornar obsessão e estereotipia; o
isolamento do contacto via rede, sem que se exponha o corpo físico,
amplifica e protege a fobia social e um pedantismo de não procurar
encontrar no vizinho virtude que valha. Se o correspondente do outro
lado do mundo parece melhor porque mais letrado, mais parecido com
você e acorde com seus interesses, ótimo. Não creio que seja pouco.
Mas é com o vizinho que você vai conversar para encetar um abaixo-
assinado contra a prefeitura, com os filhos dele é que os seus vão brincar
e finalmente é ele que você tentará convencer quando, em campanha
por um partido, perceber que há uma mobilização necessária.
Toda temática global é vital porque ressalta o caráter do ser
O SÍTIO DA MENTE

humano enquanto espécie. Porém, quando essa reunião se faz pela


virtualização do corpo físico, pode redundar em novas concepções de
uma mente coletiva que, embora estável, pode ser disfuncional. Além
disso, nem toda temática que merece reunião é global. Não teria senti-
do conclamar um sueco para fazer coro contra os políticos que desvi-
am dinheiro destinado ao Nordeste seco do Brasil.
O computador é arma fundamental nessa virada de século. Pode
mudar o perfil do emprego, quando cada pessoa pode ter em sua casa
um pequeno escritório e prestar serviços. Isso faz de cada indivíduo
um autônomo, diminuindo custos sociais do emprego e também me-
lhorando a qualidade de vida, uma vez que não se precisa morar nos
grandes centros urbanos para trabalhar.
Por outro lado, tem dois efeitos curiosos: de um lado, a idéia de
uma empresa virtual e pulverizada retira dela algo de seu compromis-
so com a sociedade. Passa a ser apenas algo que presta serviço bom e
barato. Mas deixa de ser a reunião, no espaço físico da empresa, de
pessoas que se identificam com seu nome e com sua tradição.
Outro elemento que diz respeito ao uso dos computadores é a
sórdida faceta consumista que apresentam. A cada ano surge modelo
mais veloz e os programas, cuidadosamente escolhidos e desenvolvi-
dos, reclamam por novas máquinas. Isso, além de criar consumo (o
que talvez seja bom), cria ansiedade inovadora, espécie de modismo
no que antes era lápis, papel, cérebro e biblioteca. Nesse sentido
podemos, sob a aparente imagem de trabalho, estudo e educação, criar
um novo modismo e consumismo alienados, agora relacionados com
os modelos de modem, tela e capacidade de memória. A cultura que
antes podia ser julgada pelo desempenho numa olimpíada de
conhecimento pode dar lugar a uma competição do tipo "qual é o
maior?", quando se comparam a velocidade do processador e a
capacidade de memória. Quando se vai ver que uso se faz de toda
essa velocidade e memória (a cada seis meses há algo mais rápido no
mercado e os programas são atualizados, forçando o indivíduo a um
consumismo frenético e supostamente engajado), ao contrário de ser
fichário de toda uma área de conhecimento, é apenas para joguinho de
guerra nas estrelas e pouso de avião supersônico.
Quanto ao fato de ser a mente analógica e o computador digital,
o que trairia o Wciocínio, creio que isso é um argumento estapafúrdio.
O computador é rneio, é eletrodoméstico fantástico, ponto. Se alguém
vai de cima para baixo com um aspirador, se tem orgasmos com a
compra de um novo microondas, ou se fala no celular o dia todo para
A MENTE EDUCADA

ocupar o tempo livre no trânsito, então o computador será mais um


item nesse fetichismo ansioso, alienado, frívolo e consumista. Se for
entendido como algo que se acrescenta ao tradicional no afã de propiciar
aprendizado, cultura e emancipação, ótimo.
A mente que não entender essas idéias, preparando-se para esta-
dos estáveis eventualmente disfuncionais que podem emergir dessa
nova cara do mundo, estará sitiada por uma forma de passividade diante
dos grandes grupos, que não estão produzindo velocidade e memória
para auxiliar o engrandecimento da pessoa, mas apenas para manter a
roda de produção e consumo andando.
Não seja antigo, e consuma tudo que puder de computadores e
redes, mas lembre-se de que a mente continua a mesma e não há uma
revolução do lado de fora se não houver algo proporcional do lado de
dentro. Do contrário você será uma das muitas ignorâncias sólidas que
andam pelo mundo, rapidamente substituídas pelo computador,
gabolas do objeto que têm em suas mesas, sem ter mudado em um
milímetro seu compromisso moral com a cultura, conhecimento e
educação.

DROGAS

Uma das formas de estado estável-disfuncional a que assistimos


hoje em dia no comportamento das pessoas, particularmente das novas
gerações, é uma total desinformação quanto ao perigo das drogas.
Ouvem-se frases ignorantes do tipo: remédios para o cérebro são
tão drogas quanto as outras. De duas uma: ou não se usam ambos, ou
se usam ambos. A sandice de tal raciocínio é absoluta.
Os fármacos usados para regular estados cerebrais anômalos são
prescritos e controlados por técnicos qualificados para isso. Não há
sentido algum em colocar-se o leigo a opinar sobre matéria sobre a qual
não entende porque não estudou. Abrir a brecha para tal discurso é
nocivo na medida em que relativiza a opinião técnica, o conhecimento,
em detrimento da mera opinião ou preconceito.
Não há qualquer relação entre um fármaco que visa a reestabelecer
o equilíbrio perdido e uma droga que induz um estado artificial e
contranatural. Se um antidepressivo recoloca parâmetros sinápticos tais
que o indivíduo volte a ser exatamente o que sempre foi4ima droga que
relaxa e provoca uma "viagem" não faz senão intrOdIZir a mentira nos
sentidos e nas idéias.
A despeito da desinformação, até mesmo a mais branda das dro-
O SttIO DA MENTE

gas, a maconha, pode causar danos irreversíveis no cérebro. Quando


fazemos diagnósticos de grande parte dos distúrbios psiquiátricos,
perguntamos se há ou não uso de droga nos 6 meses anteriores ao
quadro. Se houver, deixamos interrogada a possibilidade de ser um
simples cigarro de maconha o causador ou amplificador de um quadro
ansioso, depressivo, psicótico, etc.
Embora o fumo possa fazer muito mais mal para o pulmão,
coração, circulação, não afeta significativamente o cérebro no que tange
ao comportamento e à mente. A maconha, embora muito menos nociva
que o fumo para esses órgãos e sistemas, pode ser veneno para o
cérebro-mente.
A mente está sitiada quando não percebe que as chamadas dro-
gas leves, para não dizer as pesadas (e para não incluir na lista os dano-
sos remédios para emagracer - anorexígenos), podem fazer pouco mal
para o organismo, mas são terríveis para o cérebro-mente. A
permissividade com que se encara tal uso faz com que boa parte dos
jovens de hoje (pelo menos com uso esporádico) sitie a mente por
ignorância e desinformação.
A época em que vivemos está cheia de armadilhas conceituais.
Se já se fala em remédios inteligentes, capazes de reconhecer peculiari-
dades de receptores acabando de se formar no local (como se fosse um
terno alinhavado que acaba de se ajustar no receptor), de manipulação
genética para evitar determinadas doenças crônicas, ocorre em paralelo
um histeria naturalista que em nada tem fundamento. Claro que o
consumo de certos alimentos e uma vida regrada podem, e muito,
ajudar um indivíduo. Porém, carece de sentido usar vitaminas para
além das doses capazes de ser absorvidas pelo organismo, graças a
uma explicação estapafúrdia de tipo ortomolecular; também é pouco
racional apostar no poder curativo de drogas cuja concentração não
atinge os mínimos valores compatíveis com a química do organismo
(homeopatia); finalmente, é irracional aludir ao poder saudável de
comidas do tipo A ou B por razões que contrariam toda a bioquímica,
fisiologia, nutrição, etc. Assim, quando se diz que carne vermelha tem
mais gordura que as carnes brancas há ciência. Quando se diz que a
carne vermelha é indutora de comportamento violento, há nítido estertor
de ignorância e crendice.
Esse disc.rso não tende a ser popular. Muita gente pode ler isto
e dizer : "Coitadoão entende. Para mim fez tão bem. Ah! para minha
amiga também. Aliás, está baseado numa ciência milenar vinda do
Oriente que não é divulgada nos milhares de periódicos científicos sérios
A MENTE EDUCADA

porque há interesses econômicos em jogo." Se alguém disser que os


judeus tinham uma sabedoria moral profunda e que há 20 séculos já
conheciam grande parte dos problemas morais do ser humano, deverei
concordar. Quando me disserem, no entanto, que o não comer carne de
porco de 20 séculos atrás tem, nos dias de hoje, a mesma leitura, terei
de retrucar:' Há 100 anos morria-se de infecção. A mesma pessoa que
usa o jato mais moderno, senta-se na cadeira em posição de flor de
lótus (nada contra, se for ritual para a meditação) e se alimenta e se
conduz com remédios como se vivesse há 20 séculos, ouvindo a
sabedoria de um guru que, mesmo informado quanto à universalidade
de certos dilemas humanos, não entende patavina de biologia e muito
menos de sistema nervoso.
Assumir discursos ambivalentes, modernos no uso da tecnologia,
antigos na compreensão do papel da ciência na forja do conhecimento,
é o fator mais arriscado que nos aflige nos dias de hoje. Quiçá, com o
cuidadoso exame do sítio cerebral da mente possa ser banido, ou ao
menos mitigado. Os discursos contraditórios não são complementares.
Aceitar 'a irresponsabilidade pseudocientífica como "saber" pode ser
tão aético quanto roubar dinheiro público. Deixar os jovens pensarem
que a droga é questão de opção ou liberdade não emancipa ninguém.

ALQUIMIAS MENTIROSAS:A AUTO-AJUDA E


OS NOVOS MÉTODOS GERENCIAIS

Os manuais de auto-ajuda sitiam uma concepção séria e científi-


ca sobre cérebros, mentes e sociedade. Normalmente partem de uma
falsa afirmação: de que uma pessoa que não esteja bem pode, através
de bons pensamentos, direcionar seu bem-estar (isso para não dizer
aqueles que propõem técnicas em que o pensamento pode chamar o
sucesso, a riqueza, etc.). A tolice deste princípio é a seguinte: se alguém
já está bem, não é um manual que vai ensiná-la a pensar coisas boas. Se
visa apenas a transmitir-lhe princípios bons de conduta, então que não
prometa curar nada nem regular o que está desregulado. Por outro
lado, quando a pessoa está com algum distúrbio, prometem pela força
dos pensamentos certos resgatar a tranqüilidade. Não prpcede, porque
o pensamento é um produto do cérebro e não o contrário. Se há maus
pensamentos, não será a intervenção sobre o pensamentv que resgatará
o bom funcionamento cerebral.
Esse tipo de discurso apela para uma vontade arcaica do ser
humano de ser um pouco deus e de ter controle sobre si. 0 controle
O SÍTIO DA MENTE

sobre si, no que tange a certas condutas, sempre será prerrogativa do


indivíduo. Porém, o controle mental sobre o bom funcionamento de
seus neurônios parece ultrapassar os limites razoáveis.
Esses manuais de auto-ajuda lembram um indivíduo que: a) ten-
do um carro que precisa apenas de mais cuidado e polimento, compra
livro especializado que enumera as vantagens em lavar e polir o carro;
b) tendo um carro cujo motor está desregulado, compra um manual
que manda que troque de motorista, de uniforme, de caminho, de cor,
de estofamento, etc. No caso a) apenas se proferiu, sob o manto pseudo-
técnico (normalmente pesquise se esses indivíduos têm algum assento
em fóruns científicos e intelectuais sérios), uma série de truísmos. No
caso b) são ainda mais danosos porque atacam problemas secundários
quando o problema primário não tem nada que ver com eles.
Claro está que as pessoas preferem crer que estão rensando de
maneira errada ou aue um encosto contra elas, em lugar de olhar
um universo complexo, de difícil compreensão e cl
nciactes, acicuentqp e coinciciencias estatisticas.
mente está siti d u d a par do novo, do progresso e da
tecnologia, ca a vez mais acessíveis, aceita esse discurso antigo e
mentiroso de gente que vive de ludibriar os outros ou a si mesmo.
O que chama a atenção é. a quantidade de alusões que fazem
estes autores e autoras ao cérebro. Tanto na auto-ajuda quanto nos
novos métodos gerenciais, aludem ao cérebro como que procurando
dar ares de ciência às bobagens que falam. Praticamente nenhum deles
está autorizado a falar de cérebrQ, a não ser_ que o leitor aceite aue PuMÍL
seu. Acreditar nas
besteiras que falam sobre o cérebro, como pensar com o lado direito e
esquerdo, dirigir as idéias para o lugar cerebral certo, é na verdade
confiar suas vidas e suas mentes a arrivistas, curiosos e sobretudo
enganadores quanto ao que a ciência sabe e o que não sabe nos dias de
hoje sobre o cérebro.
Se há apenas um conjunto de opiniões, por que não colocá-las
sob a forma de "que tal se você tentasse...?" Por que falar do cérebro?
Se são apenas opiniões não aceitas e ridicularizadas pela comunidade
científica, por que usá-las? Diga-se apenas um solene "acho" e vão em
frente. Mas as pessoas pedem para ser enganadas. Pedem que se travista
o discurso de opinião e oportunidade com roupas que pareçam
científicas. Isso lhes dá conforto. Claro, nem poderia haver ciência séria.
A ciência quase sem exceção é pesada, impenetrável e sem respostas
mágicas. Esses vendedores de ilusões, bem pagos, o que lhes dá o aval
A MENTE EDUCADA

do sucesso, são uma chaga que prolifera em todo o mundo e colocam a


mente em xeque por não saber o que consumir e o que estudar a seu
respeito e a respeito do conjunto de mentes que formam sua família ou
sua empresa.
Claro que um cientista sério não vai até uma empresa falar de
cromoterapia, de musicoterapia, de regressão a vidas passadas e mui-
to menos de cérebro, agora dividido em quatro partes.' Vai falar do
pouco que sabemos sobre cérebros (embora muito); vai ser cauteloso
com métodos de motivação que simplesmente tortura mdivídu
e c. ai alar que grande parte do que se está vendendo como novo,
seja a reengenharia, seja a inteligência emocional, sejam as múltiplas
inteligências, não passa de truísmo, de coisa antiga, vestida com roupa
nova e com ares de magia e ciência para vender livros, palestras e
consultorias. Será execrado, tido como conservador e incapaz de se
abrir para outras idéias (a despeito de ler pelo menos 15 revistas
especializadas internacionais). - Creio que além da ignorância e da
credulidade há outros fatores por trás desses discursos.
Parece que o capitalismo, ao promover o indivíduo de sucesso a
despeito de ser um impostor científico, aloca mecanismo de equilíbrio
concorrencial. Consumindo-se aquelas idéias, nenhuma empresa po-
derá jamais atingir qualidade total, o que a tomaria um perigo para as
concorrentes (o que seria apenas questão de tempo, visto que não há
nada menos sujeito a monopólio que a razão e o conhecimento honesto).
E preciso, acima de tudo, criar junto à excelência de certos processos
um pouco de técnicas e idéias grotescas (um pouco de pão para o
mercado e um pouco de circo para o funcionário).
Também parece que a idéia de que se tenham atingido certos
patamares é contrária à ansiedade da acumulação. Portanto, quando se
experimentam patamares rígidos é preciso apelar à pseudociência, à
magia, para se tentar galgar aquilo que o mundo físico já começa a
negar. Inventam-se, assim, metas irreais, para que se mantenha
aceso o desejo de superação.
O leitor há de dizer que funcionam. Algumas estatísticas mos-
tram que não há diferença entre empresas que adotaram técnicas
mirabolantes e outras que seguiram o bom-senso no tratar crises e
coisas que tais. Um número não muito diferente se saiu bem dos dois
lados. Os do bom-senso não foram escrever livros. Os das técnicas
revolucionárias saíram por aí alardeando o sucesso.
Lembre-se: um indivíduo com depressão pode ler um livro de
auto-ajuda e uma empresa em dificuldade pode aplicar cromoterapia
O SiTIO DA MENTE

em sua equipe seguida de reengenharia total em seus quadros. Ambos


podem superar a crise: usar preto em dia de enterro não faz com que
preto cause a morte. Confundir a relação de contiguidade temporal (a
cromoterapia precedeu a recuperação da motivação dos funcionários)
com relação causal (a cromoterapia foi a causa da recuperação da
motivação dos funcionários) é seguramente um dos pesadelos da
humanidade, amplificado nos tempos atuais pela quantidade de
arrivistas de plantão que se servem da má capacitação cognitiva dos
consumidores para ludibriá-los com supostas curas quando na verdade
oferecem apenas emplastros.

HISTERIA E COSTUMES

A reflexão sobre a ambigüidade humana não é nova. A gênese da


histeria está ligada ao fato de o indivíduo assumir um papel contrário
ou em desacordo com o eu. Essa parece ser uma máxima que permeia
as civilizações na medida em que há um elemento de confronto entre a
natureza e a cultura, entre o querer ser e o dever ser.
Uma ética natural teria, por decorrência, a possibilidade de
minimizar esses conflitos, uma vez que tanto a ordem do desejo quanto
a ordem do dever estariam inscrita em nossa condição biológica. Po-
rém, o grande impasse reside no fato de que cada vez mais estamos
caminhando para uma valorização do indivíduo, de sua liberdade, de
seu direito, o que é bom, sem no entanto fazer com que este indivíduo
tenha incorporado um discurso de dever claro e sólido.
Ao garantir-se o direito de cidadania ao discurso individual, às
suas preferências, mas sem dar a esse mesmo indivíduo uma estrutura
interna sólida e culta, temos uma espécie de desejo à solta, sem as
amarras de antes.
Isso desestabiliza porque não há cerceamento externo nem
policiamento interno. Opina-se sobre tudo sem medo e quem quer que
tente reprovar o mau aluno ou apontar as idéias erradas é tachado de
censor ou reacionário. O que deveria ser a superação das amarras da
censura e da tradição para converter-se em pluralidade pensante
tornou-se, graças à moda e à propaganda, uma espécie de desejo en-
dossado pelas liberdades civis.
Assim, tanto família, quanto casamento, costumes, se vêem acossa-
dos na medida em que se deu direito de livre escolha e de livre pensar,
mas não se colocou um pensar nos indivíduos, e sim um simples agir
por impulso guiado por tendências, coleções, meios de informação rápida
A MENTE EDUCADA

e "formadores de opinião". A manipulação do indivíduo através da


massificação é um dos fatores de empobrecimento da vida mental que,
aliado à falta de ética nas relações, têm feito ressurgir o fundamentalismo
religioso. O sujeito com um mínimo de percepção da realidade acaba
por se desencantar e procura a verdade mais fácil (não fumar, não beber,
não comer carne vermelha, etc.) infelizmente, no mais das vezes,
também irracional.
Se a lógica do capitalismo exige que se consuma cada vez mais e
com cada vez maior velocidade, também é fato que a liberdade
individual e os direitos de expressão do cidadão não são um solo ape-
nas para fazer deles consumidores livres para correr às lojas à cata do
último must. Há que se ter em mente que se a moda tem algo de
garantidor da individualidade, em que pese sua aparente frivolidade ,7
também há limites para sua atuação. Se é um comprimento de vestido,
comida japonesa, gravata fina, gel no cabelo, saia de pele de onça
sintética, vá lá. Mas se a moda dita também um comportamento
estereotipado de coleção e de ano para ano, então a liberdade indivi-
dual está em xeque, porque manipulada, e o desejo alienado, travestido
de liberdade.
A garantia de que não nos tornemos histéricos desejantes do
último lançamento de computador, sem que tenhamos uso claro para
ele, usando óculos de marca italiana que antes execrávamos em nossos
avós, e assim por diante, é associarmos à liberdade, ao respeito e à
opinião como valores máximos, uma formação sólida de valores, co-
nhecimento, mundo interior, atividade racional e estrutura clara de
deveres.
A banalidade com que se fazem as coisas hoje em dia caracteriza
o que chamaria de perda de referência ética. Se 20% dos atos aéticos
são cometidos por indivíduos desprovidos de ética e se 20% outros são
nítidas reações, conscientes ou não, contra algo ou alguém, deve haver
60% restantes que são apenas uma forma de desejo que não mede
conseqüências, de expressão de caráter minimalista e muito mais
inconseqüente que mau.
Portanto, quando se discute o imperativo ético há que resgatar-se a
idéia da banalidade do mal de Hannah Arendt quando supõe que os psico-
patas agem da maneira x ou y porque não pensam. Creio que a autora está
errada quanto aos psicopatas, no caso os criminosos de guerra nazistas,
mas acerta em cheio no caso dos 60% de que falo, que são as formas pouco
morais de conduta que se vêem hoje em dia, muito mais por incapacidade
de pensar, de refletir, de raciocinar, de examinar conseqüências, etc.
O SÍTIO DA MENTE

A frieza e o tédio com que vivem os chamados yuppies está bem


tratada no livro de Tom Wolfe "A Fogueira das Vaidades". Não há
muito sentido em mais nada, apenas numa sucessão frenética de atos
impensados ou pensadoè apenas no eixo da acumulação e do sucesso
pessoal.
Há nitidamente um descompasso nas elites que, de repente, nos
seus pensamentos monótonos e frívolos é provinciana a despeito de
viajar freneticamente. Sua cultura de aeroporto não tem feito senão
sitiar a mente humana, que além de cérebro é estômago vazio e pés
descalços.
A mente humana, cerebral e complexa, certamente está sitiada quan-
do sua arquitetura deixa de ser a funcionalidade, harmonia e vanguarda.
Reformam-se apenas as fachadas dos prédios, como se vivêssemos numa
época de cenários e não de edificações. Essa cultura e essa arquitetura de
cenário, prolongamentos de uma mente de cenário também, devem ser
revistas rapidamente. Do contrário, o avanço do próximo milênio pode se
fazer acompanhar de terríveis problemas com nossas mentes, com nossas
instituições e com nossa adaptação enquanto espécie.

SÍNTESE

O papel da educação é fundamental em qualquer projeto de


modificação de comportamentos individuais e coletivos. Se isso parece
trivial, não o é na medida que devemo entender que primeiramente
se estão alimentando conexões que garantam que as ambigüidades serão
transferidas do plano automático para o consciente. Além disso, garante-
se que a educação não será apenas vertical, mas fortemente pluralista e
horizontal; mais ainda, ela deverá conter todo o tempo apelo ao primado
da ética como base da formação da mente,i não por normatização externa,
mas por alusão ao caráter biológico dessa ética.
Afastar a má-compreensão sobre a mente e sobre sua razão
cerebral embasante, seu potencial de devio e o uso que os ignorantes
e inescrupulosos fazem disso é fundamental para que redesenhemos
uma nova consciência.
Uma ciência da mente é cerebral e também deve ser uma exaltação
do caráter ético que subjaz ao apareçimento da linguagem e da
sociedade. Sem entendermos que a mente é feita para interagir e manter
coesa a espécie não iremos a lugar algun- , ainda que para isso façamos
uma ciência cogn tiva tecnológica de construção de robôs que jogam
xadrez com os miseráveis de pés no chão.
CONCLUSÃO

CONCLUSÃO

E m artigo de 13 de outubro de 1996 no jornal "O Estado de


São Paulo", o economista Paul Krugman, do Instituto de Tecnologia de
Massachusetts (MIT), adverte que a previsão do futuro é complexa
mesmo para os fundadores da socioeconomia não-linear (no caso, ele).
Escrevi um livro que é uma tentativa de prevenção contra a não
previsão do futuro. Se de um lado gasto 4/5 expondo como a mente
emerge no cérebro humano, por outro lado, aponto no último quinto
de que forma pode, essa mesma mente, ver-se sitiada por uma série de
falsas pressuposições que ainda norteiam a nossa época.
Situar a mente no cérebro humano tem, a meu ver, duas implica-
ções básicas: prevenir e atuar sobre o distúrbio mental leve, cada vez
mais freqüente; e entender uma dinâmica social, política, econômica e
pessoal em que o dever não é mais imposição da cultura, mas uma
propriedade biológica da consciência. Equilibrados, desejo e dever, há
caminho para a eliminação da histeria social. Mantida a antiga
concepção, de desejo em oposição a dever, continuaremos a ver
ambigüidades brotando e liberdade endossando barbárie.
Vejo uma semelhança brutal entre o atual posicionamento das
pessoas acerca da mente e a sociedade na época de Galileu. Oferece-
se, de uma lado, cientificamente, uma versão sobre as coisas. De outro
lado, o poder, a ignorância e a manipulação insistem em manter a antiga
visão das coisas. Se antes era o Sol que devia mudar, a Terra que devia
converter-se em apenas mais um planeta e não centro de um universo
de dimensão reduzida, agora é a mente que não mais faz o mundo
girar em torno dela, mas gira em torno do cérebro. Isso, ao contrário de
aprisionar e empobrecer, liberta.
Liberta porque a verdade científica é sempre mais ampla, a pon-
to de propiciar avanço. Liberta também porque talvez permita que
dois fatos inaugurem nossa nova conduta: uma aceitação mais racional
das limitações, potencialidades e disfunções mentais; e um critério de
integração e igualdade entre os seres humanos que não o baseado na
O SÍTIO DA MENTE

concepção política a ou b, ou na concepção moral c ou d. Uma concep-


ção que coloca lado a lado a luta individual pela sobrevivência e a
celebração de um ideal universal e biológico de solidariedade humana.
Todas as áreas, sem exceção, deverão nutrir-se dessa nova concepção
quando ser e dever ser, natureza e moral, deixarem de ser antagonis-
mos gerados pela natureza e pela cultura, para serem, ao mesmo tempo,
forças que se equilibram na mente biológica do ser humano.
Acima de tudo, antes de descrer do sentimento e da vontade, a
nova era deve ser um exercício de racionalidade que domina e aplaina
a emoção; racionalidade que introduz a salvaguarda para que o
crescimento seja pleno e nao apenas cronológico; racionalidade que
coloca a ciência a serviço da transformação do ser humano, e não a faz
apenas ferramenta geradora de tecnologia de bem-estar. Ainda que
possamos pensar que abandonar a visão espiritual da mente é negar
uma série de dogmas - e não necessariamente é -, creio que o ser
humano não se tornará nem menor, nem menos belo pelo simples re-
conhecimento de sua natureza biológica. Ainda que haja vozes tentando
impedir o avanço, é preciso que se dividam as correntes e as opiniões
para que enfrentemos o futuro com as armas certas.
Termino citando uma passagem da peça de Bertold Brecht "Vida
de Galileu".7 Galileu discute com o cardeal Barberini acerca da nova
teoria. Num certo instante ocorre o seguinte diálogo:

BARBER(N1 "O senhor está bem certo, meu caro Galíleu, de que vês
astrônom os não estão querendo simplesmente tornarmais confortávelsua
astronomia? ~pensam em ~os ou elipses, em veleidades wiilbime
movimentos simples que es/ão de acordo com oseucéwbiv. Masseapmuvesse
a Deus que as estrelas andassem assim (Desenha no ar um trajeto muito
enredado, com velocidade irregular), o que sobraria dos seus cálculos?

GALlLElhEminência, se Deus construísse ornando assim epete o


movimento de Barberuii), Ele construiria o nosso cérebro assim também
epete o mesmo movimento) de modo que reconheceríamos esse mesmo
movimento como omais simples. Eu acreditona razão.
NOTAS

NOTAS
(recomendadas ao leitor que deseje maior profundidade técnica)

INTRODUÇÃO

1. Cf. Sagan, C. (1996) O Mundo Assombrado pelos Demônios: a ciência


vista como uma vela no escuro. São Paulo: Companhia das Letras.
2. Constitui problema interessante em filosofia da ciência a confrontação entre
o verificacionismo e o refutacionismo. Se o primeiro pode fazer muita coisa ao
confirmar previsões de uma teoria, o segundo é o único critério para fornecer
situações-limite e experimentos cruciais de desconfirmação de uma teoria ou pelo
menos para delimitar seus limites de aplicação. O filósofo Karl Popper foi o grande
responsável pela idéia de uma ciência que se pauta pelo estatuto refutatório de suas
proposições. O verificacionismo pode, ao afirmar que "P implica Q", exibindo em
seguida Q, cair na falácia de afirmação do conseqüente. Essa afirmação é evitada
quando se acompanha "P implica Q" de um "não-Q". Nesse caso se "não-Q então não-
P". Se todos os cisnes são brancos e encontro um cisne branco esse espécime em
nada me serve para confirmar a sentença geral. Mais ainda, se pretender usá-lo como
afirmação da verdade da generalização, estarei incorrendo na falácia de afirmação do
conseqüente. O método de procurar a refutação é o que garante cientificidade a uma
generalização e estatuto lógico à forma subjacente: "P implica Q, não-Q ... logo não-
P" regra de inferência conhecida em lógica como Modus Toilens. Cf. a esse respeito
Popper em obra citada na bibliografia e outras referências de filosofia da ciência e de
lógica. A agudeza dessa regra encontra-se também nos versos de José Régio: "Não
sei por onde vou, Não sei para onde vou, -Sei que não vou por ai!". A ciência,
particularmente nos estágios iniciais pré-paradigmáticos, é muito mais um método
de prescrição de por onde não se deve ir que uma substantivação de soluções já
operacionais. Nota-se a diferença de um discurso sério sobre a mente quando, em
lugar de um conjunto de truísmos afirmativos, se oferecem regras de delimitação da
patologia. Cf. Popper, K. (1975) Conhecimento Objetivo. São Paulo: Ed. Itatiaia e
Edusp. Cf. ainda, a respeito da temática geral do livro, do mesmo autor, Popper,
K.(1994) Knowledge and the Mind-Body Problem: in defence of interaction.
Londres: Routledge. Cf. Regio, J. (1985) Antologia. Rio de Janeirq: Editora Nova
Fronteira. p. 50 do Cântico Negro.
3. Essa noção de psiquiatria como neurologia de função superior é restritiva.
Para iniciar o livro cabe usá-la como argumento forte contra a descerebraliação da
mente. Porém, a psiquiatria é mais que uma neurologia de função superior, encontrando-
se na conjunção da natureza que se faz cultura e da cultura que se pode reconhecer
natureza. As fôrmas cerebrais são preparadas de tal forma que se encaixem nelas as
formas e conteúdos mentais. Embora sejam todas as três oscilações e sincronização
de assembléias neuronais, as formas mentais sofrem profunda coação da linguagem e
O SITIO DA MENTE

os conteúdos mentais sofrem coação da linguagem e da cultura. Portanto a interface


mental e suas formas desviadas restringe-se ao cérebro enquanto órgão que implementa
códigos mentais, porém, não encontra na razão cerebral sua totalidade explicativa. O
grande desafio é entender a articulação dos três níveis e, mais ainda, circunscrever as
patologias de cada um. Pode-se dizer que há três níveis de patologias: as puramente
ligadas às fôrmas cerebrais que requerem medicações para sua correção; aquelas
ligadas à formação de condicionamentos anômalos que carecem de recondicionamento
comportamental; finalmente, há aquelas que se situam na ordem dos significados,
tanto formas quanto conteúdos da mente-linguagem, e que, embora também careçam
muitas vezes de medicação, são basicamente tratadas por terapias de base
psicodinâmica com graus progressivos de interpretação de significados anômalos
associados.

AP 1: CÉREBROS

1. Sistemas nervosos simples costumam não fazer categorizações intraclasse.


Assim, quando dizemos "Se A então B", A e B costumam ser representantes de
conjuntos de um único elemento. Por outro lado, com a complexidade, surge a
categorização intraclasse, o que redunda em que A's e B's são todos os elementos
dos conjuntos A e B. Essas classificações admitem ainda cruzamento e superposição,
não constituindo conjuntos fixos de categorias.

G4R2: NEURôNIOS

1.A complexidade de processamento já se dá no nível do neurônio isolado. Até


recentemente se acreditava que a complexidade e o cerne do processamento surgissem
da reunião de neurônios em assembléias. Uma das figuras centrais deste livro, que
enxerga no neurônio a fonte de complexidade e codificação através de freqüências
variáveis de disparo de potenciais de ação (intervalo inter-espículas), está ratificada,
bem como o status do neurônio isolado como base do processamento complexo, em
artigo de 1997 de ChristofKoch na revista Nature. Cf. Koch, C. (1997) "Computation
and the Single Neuron" in Nature vol.385 p. 207-210.
2. A noção de carga positiva e negativa aqui está sendo usada para facilitar a
compreensão do leigo. Para o leitor mais exigente, como tanto o sódio quanto o
potássio são íons positivos, o que há é que o ambiente em tomo do neurônio está
mais positivo e o interior do neurônio, menos positivo. Essa diferença é capaz de
criar um dipolo que é, basicamente, o processo biofisico de membrana capaz de
engen&ar toda a complexidade de sinalização no cérebro humano. Para facilidade de
compreensão, estipula-se que mais positivo é positivo e que menos positivo é negativo.
Esse dipolo, resultado da diferença de concentração relativa de cargas elétricas no
interior e no exterior do neurônio, bem como da migração dessas cargas através de
processos ativos e passivos através da membrana é responsável, às vezes, por
flutuações de ponto de equilíbrio. Muitos autores tratam esse fenômeno com idéias
NOTAS

advindas da termodinâmica de não-equilíbrio (sistemas abertos, estruturas dissipativas),


procurando mostrar que, em determinadas condições, pode ocorrer auto-organização
de um determinado padrão e posterior migração dessa onda de despolarização para
regiões cerebrais vizinhas. A depressão alastrante é um exemplo desse fenômeno,
bem como uma série de outros fenômenos "epileptóides" parciais no sistema nervoso
central. Cf a respeito de termodinâmica de não-equilíbrio, mais a frente, a obra de
Prigogine. Cf. a respeito de depressão alastrante e de outros fenômenos de auto-
organização na biofisica do fluxo íônico na membrana, Fernandes de Lima, V. e Hanke,
W. (1996) "The Role ofSpatio-Temporal Dissipative Structures in the Physiopathology
of Functional Syndromes in the Central Nervous System" in Coleção Documentos
IEA-USR Série Ciência Cognitiva.
3. Pela natureza deste livro, usamos acima apenas descrições alegóricas do
processo de decisão ou integração. De maneira mais técnica podem-se estipular ou
descrever através de modelos formais ou matemáticos as situações apresentadas acima.
Assim, temos inferências possíveis, lógica nebulosa (fuzzy-logic), algoritmo
genético, autômatos celulares, mínimos quadrados, soma simples, máximos e mínimos,
função radial média, "o vencedor leva tudo", gradiente descendente, regra delta, entre
outros. Há mais de 20 tipos diferentes de mecanismos de decisão que se pode atribuir
a neurônios nas redes neurais artificiais. Não se sabe se o sistema nervoso humano
integra de maneira tão variada a informação ou se perfaz apenas uma soma simples ou
uma soma vetorial. Creio, embora não haja garantia de isomorfismo entre os algoritmos
decisórios em redes neurais artificiais e neurônios reais, que o exemplo de uma
multiplicidade de modos de decisão captura a riqueza que está por trás da integração
de potenciais locais vindos dos dendritos, devidamente amortecidos pelas
propriedades de cabo, e finalmente integrados no corpo celular. A riqueza de modulação
das seqüências de potenciais de ação, não apenas disparo digital, parece confirmar a
necessidade de variados mecanismos de integração de informação no corpo celular.
O leitor não deve se preocupar com esses nomes e técnicas acima, bastando entender
o exemplo do pai, da mãe e do filho. Seja no exemplo, seja na alusão que fazemos
nesta nota, está implícito o número diferente e enorme de possibilidades de regras de
jogo que ordenam o sentar-se à mesa de três correntes diferentes, de pesos diferentes,
vindas de locais e em instantes diferentes. Embora explicada coloquialmente, aqui
está uma das grandes "sacadas" da natureza e, posteriormente, da chamada replicação
do comportamento humano em máquinas - a "inteligência artificial".
4. Limiar, na verdade, é uma propriedade fisica de transição brusca de fase,
retratada por uma não-linearidade numa equação matemática. Uma vez atingido um
determinado valor - limiar - inicia-se um processo rápido que corresponde à "porta
aberta". A geração do potencial de ação põe em marcha uma série de fenômenos
iônicos ativos, não mais simples migração de cargas pelo dipolo, mas bombas de
membrana que incrementam o transporte seletivo de íons pela membrana. Com isso
surge uma diferença de potencial rápida e aguda chamada potencial de ação, que,
graças a esses mecanismos de bomba e ao isolamento do axônio pela bainha de mielina,
progredirá intacto, sem perda, até o terminal pré-sináptico do axônio. Ali se darão os
O SITIO DA MENTE

fenômenos de transdução de energia elétrica em quanta de neurotransmissores.


5. Para aqueles que quiserem ir um pouco mais a fundo no problema, vamos
apenas rememorar que os impulsos que deram origem às três correntes nos dendritos
são de amplitude variável, além de terem localizadores no tempo e no espaço diferentes.
Isto é, tanto amplitude, quanto posição e instante são diferentes (além de duas outras
diferenças não tratadas no âmbito deste livro, que são o fato de poderem ser correntes
negativas - hiperpolarizações - e de que a taxa de decaimento da corrente ao longo do
dendrito também é um ponto critico porque sujeita a processos fisicos de dispersão,
bem como a "shunts" ou curto-circuitos no trajeto). Portanto, as correntes dendríticas
ou potenciais locais, em oposição ao potencial de ação, são fenômenos essencialmente
analógicos. Migram até o corpo celular e lá, após integração, se houver limiar, são
digitalizados como potenciais de ação. O potencial de ação considerado como digital
faz perder a riqueza de informação analógica contida nos diferentes aportes dendríticos
locais. Considerando-se, como é o modo mais contemporâneo, a codificação analógica
do potencial de ação em pulsos de freqüência variável, podemos imaginar que haja
um homeomorfismo entre a complexidade analógica da reunião de potenciais locais
e a complexidade analógica dos múltiplos potenciais de ação. Entre ambas há um
fenômeno digital no que diz respeito ao caráter tudo ou nada do potencial e a uma
não-linearidade devida à presença de limiar. Sobre a moderna concepção de potencial
de ação como codificador de propriedades e sobre sua capacidade de carregar
informação no intervalo entre eles e não apenas na sua média de disparo (antiga
concepção), cf. Fujii, H., Ito, H., Aihara, K., Ichinosse, N. e Tsukada, M. (1996)
"Dynamical Cell Assembly Hypothesis - Theoretical Possibility of Spatio-temporal
Coding in the Cortex" in Neural Networks, Vol. 9. No 8, pp. 1303-1350. Esse artigo
será essencial para entender que a regra de aprendizado e memória pode ser analógica
e captável através de uma análise de intervalos inter-espículas. Mais a frente, veremos
importante análise desse mecanismo na gênese de memória (e também, pode-se supor,
de mapas cognitivos) no hipocampo. Cf. Tsukada, M. et. al. "Hippocampal LTP Dependa
on Spatio and Temporal Correlation of Inputs" na nota 4 do capítulo 10.
6. Atenção porque nesta alegoria do código de barras está contida ainda uma
das grandes temáticas da ciência cognitiva: há, nos quatros exemplos de código de
barra, 4 "tokens", porém, são quatro "types" ou tipos diferentes (como no caso de
termos a seqüência bbbb, onde se encontram 4 "tokens" e apenas 1 "type"). Os
argumentos em favor da irredutibilidade do mental ao cerebral encontram nessa
distinção sua maior força. Argumenta-se que todo processamento mental é
processamento cerebral, isto é, que há sempre um "token" cerebral codificando a
informação mental. Essa tese, chamada de "token-identity", não implica dizer que
haja projeção ou redução dos tipos mentais em tipos cerebrais. As generalizações da
esfera mental seriam não-projetáveis nos "types" cerebrais. Esse argumento é
irrespondível, valendo também para o caso de tentativas de redução de níveis de
programa a níveis de hardware em computadores. Minha estratégia no livro será
tentar erigir uma partição na esfera do mental, não de tipos como cadeiras ou gatos,
mas de funções. Essa partição terá como grande alavanca a separação entre consciente
NOTAS

e não-consciente. Definidos os "type" mentais conscientee não-consciente, através da


caracterização como controle voluntário ou automático, tentarei mostrar que o "type"
funcional-mental pode ter projeção, e portanto, redução, numa linguagem cerebral,
definindo-se bifurcações como condições necessárias e suficientes no nível do sinal
para que se faça a projeção e identificação de "type". Cf. a respeito da crítica às
tentativas de "type-reduction", Fodor, J., (1975) The Language of Thought. Harvard
University Press (pp. 1-26). A respeito da minha tentativa de redução via partição de
funções mentais, consulte Del Nero, H., Maranca, A. e Piqueira,J. (1997) "Topological
Computation and Voluntary Control: the possible role ofthe neocortex and the very
aim ofcognitive science" in Coleção Documentos IEA-USP Série Ciência Cognitiva.
Sobre a importância de bifurcações em neurologia e função cerebral cf., por exemplo,
1) Milton, J. et. ai. "Complex Dynamics and Bifurcations in Neurology" in Journal
ofTheoreticalBiology (1989)138 (pp. 129-147); 2) Milton, J., Black, D. (1995) "Dynamic
Diseases in Neurology and Psychiatry" in Chaos 5 (1) (pp. 8-13).

CAP3: SINAPSE

1.Na verdade, como vimos, não há predicados interpretados na linguagem natural


trafegando pelos dendritos e axônios. O exemplo visa a resgatar a operação de reunião
de predicados e sua transformação posterior num mecanismo de reunião/decisão que
no caso é a aplicação do conectivo "ou" a duas sentenças, gerando uma terceira.
Veremos adiante a representação do neurônio como aparato "booleano" e sua
interpretação como estrutura capaz de realizar a conexão lógica de sentenças.
"Malvado" ou "desdentado" poderiam ser quantificados sob a forma de: "Existe um x
tal que, se x é P, então x é M." O mesmo valeria para o outro predicado e também para
a construção da disjunção "Existe um x tal que, x é M ou x é W.
2.Esse mensageiro não é apenas um, mas vários. Basicamente são oAMP cíclico
e a proteína C. Sua regulação mostra dois aspectos fundamentais: primeiramente,
descreve um processo de regulação de expressão gênica em função da experiência, ao
contrário de suposições que entendessem o gene como estático e totalmente pré-
gravado (a clonagem de um cérebro seria algo que transportaria o "hardware", mas não
o "software", resultado de modificações locais nas conexões entre os neurônios,
mediadas pelos genes mas não contidas no genótipo). Em segundo lugar, esse
mecanismo é fundamental na psicofarmacologia. De maneira geral, o resultado
imediato de uma droga pode se creditar à sua possibilidade de mudar a taxa de
transmissão na fenda sináptica, o que muda o ganho de malha do sistema. Isso pode
inclusive alterar a solução do sistema, o que desloca a topologia, por exemplo, de um
ciclo-limite para um ponto assintoticamente estável. Em muitos distúrbios, no entanto,
essa mudança na taxa de transmissão na fenda não é capaz de promover melhora.
Espera-se, assim, um período de 3 a 5 semanas até que se alterem expressões gênicas
responsáveis pela formação de receptores. Essa propriedade é conhecida como "down-
regulation". Pode-se lançar a hipótese de que quadros com maior componente ansioso
e reativo se beneficiam do mecanismo imediato de alteração de taxa de transmissão,
O SITIO DA MENTE

enquanto as características mais estruturais, como depressão, por exemplo, costumam


requerer o segundo mecanismo. Diga-se de passagem que não há ainda evidência
inquestionável de que sejam esses os mecanismos envolvidos na melhora de quadros
psiquiátricos com o uso de psicofármacos, embora seja hipótese, de longe, de maior
consistência que outras.
3. O item concernente aos mecanismos de ação de drogas é muito mais
complexo. A visão do texto é uma primeira aproximação didática que pode auxiliar
o leitor não-especializado. Sugiro para uma visão mais aprofundada: 1) Barondes, S.
(1993) Molecules and Mental Illness. Nova Iorque: Scientific American Library; 2)
Snyder, S. (1986) Drugs and the Brain. N.I: Scientific American Library; 3) Hyman,
S., Nestier, E. (1993) The Molecular Foundations ofPsychiatry. American Psychiatric
Press; 4) Hyman, S., Nestier, E. (1996) "Initiation and Adaptation: A Paradigm for
Understanding Psychotropic Drug Action" in American Journal ofPsychiaty 153:2;
4) Jeffery, K., Reid, 1. (1997) "Modifiable Neuronal Connections: An Overview for
Psychiatrists" in American Journal ofPsychiatry 154:2. Nesse tópico ainda podem
ser citadas algumas áreas de fronteira: o uso de metodologia de rede neurais para
desenho de drogas, o chamado desenho inteligente de drogas (por exemplo, usando
química combinatorial), e o advento de chips tão pequenos que possam constituir
drogas que se autotransformam ao reconhecer o receptor iii loco. No futuro a droga
poderá conter alguns artificios computacionais tais que, chegando ao receptor, faça
uma varredura (scan) de sua estrutura e, usando matéria-prima local, acabe de polir
seus encaixes para ligar-se adequadamente ao receptor. A bibliografia acerca de uso
de redes neurais no desenho de drogas pode ser achada, por exemplo, em Weinstein,
J., Waltham, M., Myers, T. (1996) "Neural Networks in Drug Discovery" in
International Neural Network Society 1996 Annual Meeting. Lawrence Erlbaum
Associates (pp. 1155-1161); sobre desenho inteligente de drogas cf. Nature
Supplement to volume 384 Issue 6604 Novembro 1996 "Intelligent Drug Design";
sobre nanotecnologia (chips capazes de ter tamanhos da ordem de grandeza de
estruturas como os neurônios) consulte a home-page (bibliografia atualizada e anúncio
de encontros internacionais) de Ralph Merkle da Xerox Company, www.merlde.com ;
endereço eletrônico: merkle@xerox.com ; outra página da web: http://
nano.xerox.com/nano.

G4R4: DEPARTAMENTOS CONCRETOS E V/TUAIS

1. A estrutura hierárquica e modular se chama estrutura de dados. Pode realizar,


devido à complexidade, tarefas extremamente ricas. Um cérebro poderia perfeitamente
ser uma estrutura desse tipo, mas parece que o processamento é analógico e não
digital. Esse é o grande desafio deste livro: mostrar todos os estilos de processamento
e como o cérebro é visto hoje em dia. De toda forma, deveremos aprender bem o
processamento digital, porque creio que, por alguns anos ou décadas ainda, grande
parte dos programas que simulam a mente tenderão a se utilizar desse padrão. Cf a
respeito da chamada "estrutura de dados" (data structures) e sua qualificação como
NOTAS

processamento mental digital Dennett, D. (198 1) Brainstorms. Philosophical Essays


on Mmd and Psychology. MIT Press. (pp.l 09-126.)
2. Grande parte do nosso conhecimento e aprendizado se dá dessa forma. Após
tentativas e erros, migramos para situações estáveis em que há uma regra clara de
procedimento e, com o tempo, uma explicação do porquê de se agir dessa maneira e
não de outra. Pode-se dizer que iniciamos o aprendizado num cenário de energia com
muitos pontos de mínima local, o que é desinteressante; com o tempo, somos capazes
de perfilar alguns poucos atratores, capazes agora de classificar com rapidez as
ambiguidades e também as situações similares ao exemplo aprendido.
3. Uma tese muito interessante no sentido da formação da mente a partir de
elementos de interação social, desde que equipada com um cérebro adequado, pode
ser encontrada em Jaynes, J. (1976), republicado em (1990) The Origin of
Consciousness in the Breakdown ofthe Bicameral Mi. Londres: Penguim Books.
4. Deve ficar claro ao leitor mais exigente que existe uma infindável
superposição de níveis na organização cerebral. Os conceitos de processamento
dinâmico e de formação de comitê não são compatíveis com as noções que
conhecemos hoje de grandes divisões macroscópicas (por exemplo dizer que a emoção
está no sistema límbico ou que a linguagem está na área de Broca) nem são compatíveis
com subdivisões outras do tipo hodologia (circuitaria) neural ou sistema
dopaminérgico x adrenérgico. Porém, se há a possibilidade de se formar um
recrutamento dinâmico no espaço de sinais elétricos, subjaz a isso uma complexidade
estrutural concreta que deve, no nível de biofisica de membrana e fluxo de íons,
possibilitar que se ajustem freqüências determinadas e codificação temporal. Também
certas propriedades de campo na análise do sinal elétrico e de processamento em
células antes tidas apenas como suporte (como é o caso das células da glia) podem
estar envolvidos numa retaguarda concreta à formação das dinâmicas de sinalização
temporal. Ciência, no entanto, implica fazer certos recortes e estabelecer certos níveis
para a ocorrência de nosso vocabulário. Para uma visão de tamanho médio do cérebro,
não é tão essencial que se chegue nem à análise de campos formados por fluxo iônico,
nem a estruturas tão grandes quanto muitos apregoam por aí (a mente é o lado direito
ou o lobo frontal); vale a dicotomia departamento concreto x departamento virtual.
Essa tese tem por objetivo fazer face a uma nova voga de pensamento que procura
estabalecer uma "nova frenologia" ou localizacionismo, na feliz expressão de Miguel
Nicolelis. Ora, nem no nível das áreas primárias há um localizacionismo tão estrito,
havendo dinâmica que faz campos receptivos migrarem enquanto se executa a tarefa.
Também uma certa concepção de neuropsicologia clássica baseada em correlações
de lesões e disfunções precisa ser combatida, porque, se por um lado auxilia no
prognóstico e diagnóstico de inúmeros quadros, não faz senão esclarecer regiões
preferenciais de processamento de certas funções (o que chamo de uma comissão se
reunir, preferencialmente, no 2 0 ou 30 andar) sem, no entanto, explicar a gênese da
função devido a um certo estilo de processamento. Cf. a respeito dos trabalhos sobre
dinâmica em áreas sensoriais primárias, particularmente no processo de detecção de
movimento pelas vibrissas do rato: 1) Chapin, J., Nicolelis, M., "Beyond Single
O SITIO DA MENTE

Unit Recording: Characterizing Neural Information in Networks of Simultaneously


Recorded Neurons" in King, J., Pnbram, K. (1995) Scale in Conscious Experience: Is
the Brain Too Importani To Be Left to Specialists to Study. Lawrence Eribaum
Associates (pp.133-154); 2) Nicolelis, M., Lin, C., Woodward, D., Chapin, J.
"Distributed Processing of Somatic Information by Networks of Thalamic Celis
Induces Time-Dependent Shifts of their Receptive Fields" in Proceedings of the
National Academy ofSciences 90: 2212-2216, 1993; 3) Nicolelis, M. et. ai. (1993)"
Periphereal Biock ofAscending Cutaneous Information Induces Immediate Spatio-
Temporal Changes in Thalamic Networks" in Nature 361: 533-536, 1993. Todos
esses textos se referem à migração dinâmica de áreas sensoriais primárias.
5.0 leitor deve notar a complexidade do problema. Para recepção da informação
visual temos um departamento concreto situado no lobo occipital. Dentro desse
departamento há módulos, ou conjuntos de funcionários, especializados em diferentes
tarefas visuais: detectar claro/escuro, cor, movimento lateral, etc. Percebe-se, assim,
que o cérebro é uma máquina infernal que reúne departamentos concretos em
abundância incomensurável e a eles acresce os departamentos virtuais no plano do
processamento temporal da informação.

G4R6: CÓDIGOS E OSCILAÇÕES

1. A idéia de que haja uma codificação local (place-coding) ou doutrina da


célula única (também conhecida como "neurônio da vovó") deve-se basicamente a
Barlow, Mountcastle, Hubel e Wiesel. Nessa forma de encarar a codificação haveria
uma célula - ou um conjunto delas - que estariam aptas a reconhecer certos objetos ou
aspectos primitivos de objetos: linhas horizontais, movimentos, alfabetos visuais
feitos de objetos côncavos, convexos, etc. Essas células especializadas na detecção
desses elementos primitivos disparariam potenciais de ação em maior número e com
maior freqüência tanto maior fosse a tipicidade do objeto apresentado. De uma certa
forma a codificação de freqüências seria apenas um grau de maior ou menor certeza
da presença do objeto. Veja que isso não torna a codificação na freqüência
desinteressante. Pelo contrário, ela é usada como medida de fidelidade. Porém, a
freqüência medida nesses casos é apenas a média de potenciais de ação disparados,
não importando o intervalo entre eles. Para se calcular a média aplicamos uma
estatística de 1 a ordem, enquanto para medir os intervalos - código de barras (intervalos
inter-espículas) - aplicamos uma estatística de 2a ordem. Embora haja, nas áreas
primárias e secundárias, grande quantidade de assembléias com características do
tipo detecção de um primitivo e freqüência como medida de fidelidade, essa forma de
codificação elemento a elemento se perde totalmente à medida que se progride para
as áreas de associação. Nas áreas de associação o que impera é a codificação realmente
temporal, em que o intervalo entre os potenciais de ação cria diferentes tipos para
posterior manipulação. Essa é a genuína codificação temporal. Cf a respeito da
doutrina da célula única ou da codificação local: 1) Hubel, D., Wiesel, T. (1968)
"Receptive Fields and Functional Architecture ofMonkey Striate Cortex" in Journai
NOTAS

ofPhysiology, 195, pp. 215-243. 2) Barlow, H. (1972) "Single Units and


Sensatioperceptual Psychology?" in Perception, 1, (pp. 37 1-394). 3) Mountcastle, V.
(1957) "Modality and Topographic Properties of Single Neurons of Cat's Somatic
Sensoiy Cortex" in Journal ofNeurophysiology, 20, (pp. 408-434). Sobre codificação
temporal propriamente dita consulte todos os outros textos citados ao longo do livro.
2. Essa é uma maneira de apresentar o trabalho fundamental de McCulloch and
Pitts, que em 1943 propõem o neurônio como instanciador de conectivos lógicos,
mais ou menos no espírito da explicação dada no corpo do texto. Cf. McCulloch, W.
e Pitts, W. (1943) "A Logical Calculus of the Idea Immanent in Nervous Activity" in
Builetin ofMathematical Biophysics 5: (pp. 115-133). Como observam alguns autores,
na verdade poderíamos ter apenas um neurônio processando esses conectivos e três
codificando aqueles em que haja problemas de separabilidade linear - caso do "ou
exclusivo". Prefiro, no entanto, seguir a maneira mais clássica de apresentar o problema
usando três neurônios para os conectivos tradicionais e quatro para o "ou exclusivo"
e outros, desde que os limiares e pesos sinápticos sejam corretamente calibrados.
3. Essa idéia de variação de peso da conexão sináptica deve-se basicamente a
Donald Hebb e ficou conhecida posteriormente, endossando mecanismos de
aprendizado, como sinapse hebbiana. Cf. Hebb, D. (1949) The Organization of
Behavior, N.I.: Wiley, (introdução e capítulo 4 pp. xi-xix e pp. 60-78).
4. Cf. a respeito dessa sincronização, por exemplo, Contreras, D., Destexhe,
Sejnowski, T., Stenade, M. "Control of Spatiotemporal Coherence of a Thalamic
Oscillation by Corticothalamic Feedback" in Science, vo1.274, 1996 (pp.771 -774)
(figura modificada da p.771).

C4P7: ORIGEM DE CÓDIGOS E TELAS

1. Esse exemplo é uma variante do exemplo do quarto chinês de John Searle.


Poderá ser encontrado em qualquer manual de ciência cognitiva e também na obra
citada do autor na bibliografia final. De maneira sucinta diz que, se colocássemos
num quarto fechado uma pessoa que não sabe chinês e que apenas tem, à sua
disposição, caixas com símbolos chineses e um livro sobre como manipular esses
símbolos, essa pessoa, em que pese não compreender a língua, seria capaz de responder
adequadamente qualquer pergunta formulada em chinês que fosse depositada no
quarto. Responderia como se compreendesse chinês, mas na verdade seria apenas
capaz de manipular regras e símbolos. Searle, com esse exemplo, diz que o computador
é apenas um manipulador de regras (sintaxe) e que não tem compreensão genuína
(semântica). Cérebros e mentes não são, segundo ele, computadores digitais porque,
além da manipulação sintática, são capazes de entender significados. O exemplo da
figura no corpo do texto é o de uma sala fechada que codifica em códigos de barra.
Posteriormente há um cérebro a decodificar-lhe a informação. A superação do problema
da manipulação sintática se daria, num primeiro momento, pelo recurso ao analógico,
mas também, como veremos mais à frente, através da sincronização entre mundo,
cérebro e mente, numa cadeia de ressonâncias dinâmicas e adaptativas. Cf.
O SÍTIO DA MENTE

sobre o do quarto chinês Searle, J. (1984) Minds, Brains and Science. Harvard
University Press. (pp. 28-41)
2. Essa hipótese é radical e discutível. Assume-se que haja identidade entre
fatos e oscilações que os representam. Poder-se-ia retrucar dizendo que os códigos
de barra variam de pessoa para pessoa e mesmo, numa mesma pessoa, de momento
para momento. Isso é verdade: porém, como defino a estrutura matemática que descreve
uma oscilação que descreve um objeto cerebral, defino um alfabeto de tipos ("types")
funcionais (voluntário/automático) que pode ser universal para os seres humanos,
imaginando existir uma equivalência da estrutura que descreve a oscilação e a estrutura
dos a prioris cerebrais que servem de base para a formação da mente. A variação que
tem feito muitos suporem que não há identidade alguma de tipo ("typc-identity") poderia
ser variação de parâmetros e de soluções no espaço de estados. A estrutura matemática
geral (uma equação diferencial ordinária ou uma classe delas) seria o que garante a
tese forte de que, injetando aquele código de barras em qualquer um de nós, dado o
fato de termos passado pelo mesmo treinamento ontogenético e filogenético,
estabelecer-se-iam as correspondências mentais adequadas.
3. Essa tese é bastante discutível. Claro está que haveria outras formulações
para o problema que escapariam, em complexidade, da idéia deste trabalho. Entre
elas cite-se o fato de que já nascemos com alguns programas pré-gravados que nos
habilitam a ter uma pequena parcela de mente pré-instalada. Esses programas pré-
gravados não são apenas formas (a prioris analíticos), mas contêm informação
descritiva relevante (a prioris sintéticos, na terminologia kantiana e que gerou
posteriormente um movimento de kantismo biológico). A esse respeito cf. Young, Z.
Programs of the Brain e outros na nota do capítulo 15.
4. A concepção de sincronização externa (exossincronismo) e posteriormente
interna (endossincronismo) pode remeter o leitor a dois corpos teóricos distintos. A
sincronização externa é parente da idéia de affordances de Gibson e ressonância
posterior. O indivíduo teria habilidades prévias (affordances) de estabelecer sincronia
com os fatos do mundo. A noção de sincronização interna é de inspiração nas idéias
atuais de sincronismo de assembléias neuronais. Cf a respeito de exossincronismo
Gibson, J. (1979) The Ecological Approach to Visual Perception. Boston: Houghton
Mifflin.
5. Num certo sentido esse exemplo recria, em versão high-tech, o mito da
caverna de Platão, segundo o qual vemos, dos objetos reais, apenas as sombras que a
luz projeta na parede da caverna. O significado na formulação deste livro advém, no
entanto, não de uma propriedade ideal, mas da convergência dinâmica de múltiplos
osciladores que lentamente tendem a sincronizar, tanto na história do ser humano
(filogênese) quanto na história de cada um de nós (ontogênese). A possibilidade de
que essa ordem seja atingida pelo treino admite uma ordem pré-estabelecida que
torna possível a convergência e sincronização das múltiplas redes conectadas. Nesse
sentido haveria um platonismo que garante a existência das formas ideais, não
triângulos, mas estruturas matemáticas que estabelecem a sincronização, aqui
entendida no sentido amplo de tender a zero a diferença de suas trajetórias. No exemplo
NOTAS

do estúdio há que se considerar ainda toda a gama de conjunções entre necessidade e


convenção que está envolvida num processo de transmissão de dados. O modelo OS!
de comunicação de dados admite 7 camadas, desde o nível fisico, de enlace, de máquina
virtual até os momentos em que se prescrevem certas convenções seguidas pelos
usuários dessas redes. Esse exemplo, comum nas telecomunicações, pode nos servir
muito de figura de discussão. C£ sobre sincronização de redes: 1) Lindsey, W. :"Network
Synchronization" in Proceedings ofthe IEEE - vol. 73, No 10, 1985; 2) Lyndsey,W.
(1972) Synchronization System in Communication and Control. N.J.:Prentice Hall. 3)
sobre modelo OS!, cf. Tanenbaum, A. (1996) 3a edição Computer Networks. Prentice
Hall. (Devo a José Roberto Piqueira a relação entre mente e modelo OS!).
6. Devo grande parte da alegoria desse exemplo baseado em telecomunicações
a conversas com José Roberto Piqueira.

C4R & SINCRONIZAÇÃO E FUNÇÃO VIRTUAL

1. Na verdade a situação é mais complicada, porque temos sistemas discretos e


sistemas contínuos, mas, para efeito de simplicidade, pode-se conceber uma porta com
dois estados: aberta ou fechada ou, então, uma porta com todos os estados que vão
desde o aberto até o fechado, aí incluídos todos os jeitos de estar entreaberta. Também
mais adiante falaremos de cérebro como implementando o digital e mente, o analógico;
isso é uma simplificação, porque não pretendemos dizer que o analógico é um
subconjunto do digital, como a mente é um subconjunto do cerebral. Queremos apenas
dizer que, para situações mais grosseiras, cabe examinar apenas o valor O e o 1 (digital);
para situações mais complicadas caberia examinar todas as nuanças entre O e 1
(analógico).
2. Cuidado aqui, porque, para variar, as coisas são espinhosas. No mais das
vezes, quando falamos em mente, estamos dizendo que a situação descrita não é,
basicamente, uma função mental, o que não impede que a mente possa executá-la,
percebê-la ou estar ciente do que está sendo executado.

CV? 10: CONSCIÊNCIA

1. Cf. o trabalho clássico Herbert Feigi: "The Mental and the Physical" em
Feigl, H., Scriven, M., Maxwell, G. (ed) (1958) Minnesota Studies in the Phlosophy
ofScience vol II: Concepts, Theories and the Mind-Body Problem. (pp. 370-497).
University of Minnesota Press. Nesse artigo clássico está uma das mais detalhadas
descrições dos possíveis atributos que diferenciam o mental do físico - subjetivo
(privado) x objetivo (público), não-espacial x espacial, qualitativo x quantitativo,
capaz de propósitos x mecânico, mnêmico x não-mnêmico, holistico x atomístico,
emergente x composicional, intencional x não-intencional.
2. Na verdade, não se prevê a força desejada em termos quantitativos, mas sim
uma delimitação qualitativa de muita ou pouca força. A representação consciente se
dá sobre qualidades não-captáveis por métodos quantitativos e sim por "cenários"
O SfTIO DA MENTE

mais ou menos nebulosos em que se descrevem qualidades como "muita" ou "pouca


força". A intenção se dá sobre qualidades, enquanto o processo automático calibra
quantidades genéricas e subprodutos parciais que regulam cada articulação e cada
contração muscular durante um soco, por exemplo.
3.Isso ficará mais claro quando examinarmos técnicas de acesso ao cérebro.
Tanto a imagem de atividade neuronal durante a representação consciente de um objeto
(por exemplo o prato de macarrão) como a atividade elétrica embasante mudam com
cada ocorrência do prato de macarrão. A atividade elétrica é acessada pelo EEG
(eletroencefalograma) e a imagem da atividade pelo PET (tomografia por emissão de
pósitron - capaz de detectar áreas de maior funcionamento cerebral e, portanto,
responsáveis pela função naquele instante, colorindo-as posteriormente).
4.Pela repetição e modulação podem-se obter potenciais de ação mais ou menos
pronunciados em amplitude. Esses fenômenos, chamados de long-term-potentiation
(LTP) e long-term-depression (LTD), são vitais para se entender algumas
peculiaridades da formação de memórias. Cf. a esse respeito qualquer tratado de
neurofisiologia apontado na bibliografia. Recentemente provou-se que também a
memória está ligada a processos freqüenciais: neurônios do hipocampo somente
estabelecem a sincronização adequada, forjando com isso memória, para certos
intervalos de potenciais. Isto é, não é apenas a repetição de uma certa media de
potenciais gerando uma potencialização de longo termo, mas sobretudo essa repetição
em certas freqüências inter-espículas de potencial de ação (que é o que estou chamando
de código de barras). Cf. a respeito dessa última afirmação Tsukada, M., Aihara, T.,
Saito, H., Kato, H. (1996) "Hippocampal LTP Depends on Spatial and Temporal
Correlation of Inputs" in Neural Networks, Vol. 9, No.8 (pp. 1357-1365). Esses
circuitos hipocampais de sincronização têm papel fundamental na memória de curto
termo, sucedâneo da memória volátil dos computadores. Também têm função de criar
mapas cognitivos, particularmente de navegação no ambiente. C£ a respeito de mapas
cognitivos e hipocampo (a alcunha genérica é de cognição ambiental) Paillard, J. (ed)
(1991) Brain and Space.Oxford University Press.
5. A hipótese de que não haja processo 1 em jogo não torna a doença psiquiátrica
menos cerebral. Remete-a, no entanto, a circunstâncias "mentais" e conscientes de
estilo de processamento. Além do mais, não há como excluir a presença de alguma
contaminação de processos de tipo 1. Uma responsividade anômala de células cerebrais
a níveis de glicose pode ser um dos pilares que sustentam a aparente natureza puramente
mental de uma bulimia. Nesse caso, apenas o fator 1 é cerebral porque impossível de
emergir na consciência. Atenção: a teoria desse livro centra na dinâmica o processo
de controle no cérebro. Isso pode salvaguardar a morada da vontade e da liberdade
enquanto mecal*smo de controle. Não exclui o fato de que no futuro podemos ter
cada vez maior conhecimento de mecanismos subcelulares que são responsáveis
parcialmente por distúrbios de nível mental. Nesse caso, o que occorreria é que a
psiquiatria, parafraseada num mecanismo de controle dinâmico de planos não-
convergentes (no sentido de sistemas complexos que não encontram atrator para seu
fluxo de soluções) ou não-completos (no sentido giideliano), continuaria intocada
NOTAS

enquanto neurodinâmica responsável pela ratificação ou inibição de planos motores


e sensoriais que apresentam ambigüidade. Isso ficará claro ao longo do livro.
6. Não há dúvida da dificuldade do assunto. Freud jamais pretendeu que sua
teoria se desgarrasse do cérebro. Era um neurologista e parte de sua obra inicial é uma
tentativa de colocar no cérebro humano a dinâmica dos fatos psíquicos anormais. O
que ocorre é que, no desenvolvimento posterior de sua obra, e com o uso que fizeram
dela seus seguidores, a mente se tornou cada vez mais estrangeira ao cérebro humano,
chegando ao cúmulo de se pensar em termos puramente psicanalíticos (de motivações
inconscientes situadas na história do indivíduo) para explicar a gênese das doenças
mentais. Por isso tomamos o cuidado de separar as duas posições e falamos que, de
uma certa forma, a psicanálise implicou numa visão de mente desgarrada do cérebro.
A teoria de Freud poderia ser dividida em duas etapas claras. O Freud da Primeira
Tópica e do Projeto seria compatível com uma visão energética do cérebro, bastante
aproveitável na estrutura dos argumentos que estou defendendo. Nessa Primeira Tópica,
(o termo vem do grego topói, querendo dizer lugar dos conceitos ou de onde se
extraem as premissas da argumentação) Freud propõe a divisão do psiquismo em três
porções: inconsciente, pré-consciente e consciente. Na Segunda Tópica, ou segunda
teoria do psiquismo, Freud divide em três outras entidades: id, ego e superego. A
Primeira Tópica é consistente com algumas teorias aqui apresentadas, embora a carga
de significado por trás das operações inconscientes e pré-conscientes e, sobretudo, os
mecanismos psíquicos descritos, me pareçam diferentes. O Freud da Segunda Tópica
é aquele que estabelece uma clivagem entre o cérebro e a mente. Essa clivagem não é,
em nenhum momento, uma negação de seu sítio cerebral, mas apenas uma hipótese de
que as leis da mente são emergentes em relação às leis cerebrais. Nesse sentido, todo
crítico desavisado da doutrina freudiana deveria prestar atenção a dois fatos:
primeiramente, a noção de mente enquanto programa e cérebro enquanto hardware é
totalmente compatível com a Segunda Tópica; segundo, pode-se discordar da
explicação de uma teoria, mas não da observabilidade (ou empiricidade) de alguns
de seus conceitos. Termos teóricos, quando ocorrem numa teoria, sejam eles "quark" ou
"fase anal", são elementos que devem ser verificados à luz da teoria, nunca
isoladamente. Não há qualquer contra-senso numa teoria usar memória de trabalho e
outra usar repressão como mecanismos possíveis. O que se mede em ciência é a
verossimilhança, refijtabilidade, previsibilidade e explicabilidade da teoria. A posição
defendida neste livro seria parcialmente compatível com a Primeira Tópica. C£ a
respeito da obra de Freud as Obras Completas traduzidas para o português pela editora
Imago. Cf. a respeito de termos psicanalíticos o excelente dicionário de termos:
Laplanche, J., Pontalis,J. (1983) Vocabulário da Psicanálise. Livraria Martins Fontes
Editora. Cf. a excelente tradução e notas de Osmyr Faria Gabbi Jr. pela Editora Imago
do Projeto de uma Psicologia de Sigmund Freud (1995).
7. Cf. Vernant, J., Vidal-Naquet, P. (1981) Mythe e tragédie en Grèce ancienne.
Paris: François Maspero. (pp. 43-74.)
8. Há uma dinâmica não-linear que descreve o crescimento do número de
neurônios no cérebro dos animais. Isso é perfeitamente compatível com a idéia de
O SITIO DA MENTE

transição abrupta de fase quando se chega a um certo acréscimo quantitativo. A


isso se chama de valor de bifurcação no espaço de parâmetros. Um mínimo acréscimo
quantitativo no valor desse parâmetro resulta em modificação dramática na topologia
do espaço de estados (fluxo de soluções). Se o leitor pensar num pêndulo perceberá
que, com atrito, maior ou menor, o pêndulo tenderá a parar. Mesmo para um atrito
muito próximo de zero o pêndulo tenderá a parar. Quando se chega no valor zero o
pêndulo não pára jamais. Por isso se chama o valor zero do parâmetro atrito de valor de
bifurcação. Qualquer mínima alteração desse valor, para cima ou para baixo, altera
dramaticamente o comportamento do sistema Cf. sobre função não-linear e
encefalização; Finlay, B., Darlington, R. (1995) "Linked Regularities in the
Development and Evolution ofMammalian Brains" m Science Vol.268 (pp.l 578-1583).
Chama a atenção que a existência de uma descrição através de sistema não-
linear não somente explica o salto qualitativo através da passagem por uma valor de
bifurcação de parâmetro, como também toma determinística a evolução do sistema.
9. A intencionalidade foi considerada como a "marca do mental". Embora o
conceito venha da Idade Média, encontra em Brentano, no século XIX, sua formulação
definitiva. A diferença crucial entre o mental e o fisico seria devida ao fato de que o
mental é capaz de: a) ter consciência de objetos existentes e inexistentes (cadeiras e
centauros, por exemplo); b) tratar esses objetos através de modos mentais diversos:
temer a cadeira é diferente de desejar a cadeira - ambos têm cadeira como objeto
intencional e modos mentais-intencionais diversos; c) a capacidade de representação
da mente humana não é explicável, no sentido de traduzível, por qualquer linguagem
fisicalista - uma generalização típica das ciências econômicas que diga algo a respeito
de "moeda" não encontra tradução numa formulação geral fisicalista. Moeda depende
de crença e, portanto, são não-enumeráveis os objetos fisicos que serviriam de "moeda".
Ora, para que se garanta a redução de uma lei mental a uma lei fisica é necessário que:
a) todos os princípios-ponte de conexão sejam também leis; b) que o domínio de
explicação seja igual ou maior; c) que se preserve algum grau de sinonímia entre
termos da antiga teoria e da nova; d) que a generalização na linguagem fisicalista não
tenha objetos cujas características descritas na linguagem sejam seqüências não-
enumeráveis do tipo a ou b ou c (moeda pode ser latão, ouro, platina ou papel, e assim
sucessivamente). No caso das representações mentais é preciso ver que representação
pode ser entendida apenas como substituição de um objeto por outro. A representa B.
O mental entendido como representação é intencional por natureza e, portanto: a)
carece de estrutura proposicional para expressar-se; b) carece de estrutura intencional,
de modo intencional (desejo, crença, temor, intenção, etc.) e de objetos, existentes ou
não, sobre os quais aquelas se debruçam. Definitivamente o conceito de
intencionalidade está atado ao conceito de consciência, de mente não-redutível ao
mundo fisico, de representação no sentido intencional e de estrutura proposicional
da linguagem que descreve esses objetos. Mais ainda: a lógica dos operadores
intencionais é diferente das descrições simples: "O atual rei da França é François
Miterrand" é proposição mas é falsa; "Paulo crê que o atual rei da França seja François
Miterrand" pode perfeitamente ser verdadeira. Essa distinção entre o mental e o fisico
NOTAS

guindada pela noção de intencionalidade abriu outra grande vala no século passado.
Passaram a distinguir claramente as ciências da natureza - explicáveis através de uma
estrutura teórica científica - e as ciências da cultura - compreensíveis porque contendo
análogos da mente, que veriam neles uma identificação com seus estados internos.
Intencionalidade e o binômio explicação x compreensão são duas faces da clivagem
radical que chega aos nossos dias entre o mental e o fisico. Mesmo a tentativa de
transformar a mente em software é compatível com essa formulação, porque não há
redução possível das leis do software às leis do hardware. As redes neurais, embora
dêem um passo na direção da redução, no que diz respeito ao modo como relacionam
os objetos, mantêm intocado o estatuto mental puro desses mesmo objetos - símbolos
ou subsímbolos. A tentativa desse livro caminha no sentido de formular uma hipótese
geral sobre a qual possa haver redução de funções, não à maneira da neuropsicologia
que relaciona funções/disfunções e lesões, mas calcando na sinalização cerebral um
princípio suficiente para fazer, através das bifurcações, a partição do voluntário e do
automático. Chamo essa forma de redução de "redução sindrômica de tipo" porque os
tipos (ao contrário dos tokens) reduzidos seriam funções e não entidades ou teorias. As
quatro grandes funções na redução sincirômica de tipo são o controle voluntário, o
automático, o sonho e a psicose. Conhecê-las, significa criar-lhes uma plêiade de
predicados - sinais e sintomas - e não definições estritas. Por isso, empresto a noção
médica de "síndrome": conjuntos de sinais e sintomas que designam novos conjuntos
que são compatíveis com diferentes doenças específicas. Uma insuficiência cardíaca
congestiva (ICC) é uma síndrome caracterizada pelos seguintes sintomas e sinais:
taquicardia, dispnéia (principalmente noturna, quando o indivíduo está deitado),
hepatomegalia e edema de membros inferiores. Podem causá-la diferentes doenças,
por exemplo infarto ou doença de Chagas. O controle voluntário e o automático
seriam "síndromes-funções" que se detectam através de valores de bifurcação e
instabilidade estrutural no plano dos sinais cerebrais que representam um determinado
objeto simples ou complexo. Cf. a respeito de intencionalidade: Brentano, Franz
(1874) Psychologie vom empirischen Standpunkt. Leipzig. Há diversas atualizações
em inglês. Não conheço tradução em português. Sobre intencionalidade há vários
trabalhos interessantes: 1) Searle, J. (1987) Intentionality: an essay in thephilosophy
ofmind. Cambridge University Press. 2) Chishoim, R. (ed) (1960) Reaiism and the
Background ofPhenomenology. Illinois: Glencoe. 3) Dennett, D. (1987) The
Intentional Stance. MIT Press (com uma tentativa de desfazer o caráter irredutível da
intenção, transformando-a em interpretação de um modo de agir ou de uma disposição
do sistema). Sobre o binômio explicação x compreensão e a separação entre ciências
da natureza e da cultura, cf. Dilthey, W. (1980) Introducción a Ias Ciencias dei Espíritu.
Madri: Alianza Umversidad. (tradução espanhola do original alemão). Sobre a redução
sindrômica de tipo, cf. Dei Nero, H., Maranca, A., Piqueira, J. (1997) "Topological
Computation and Voluntary Control". Coleção Documentos IEA-USR Série Ciência
Cognitiva. Sobre teoria da redução, para uma bibliografia bastante extensa, cf. Del
Nero, H. (1992) "Redução e Emergência". Coleção Documentos IEA-USR Série Ciência
Cognitiva.
O SÍTIO DA MENTE

10. A noção de departamento mental terceirizado se assemelha à reunião de


elementos de mundos 1 e 3 de Karl Popper. Popper distingue um mundo 1 povoado
por estados e objetos físicos: inorgânicos: matéria e energia do cosmos; biológicos:
estrutura e ação de todos os seres vivos, cérebros humanos; artefatos: subtratos
materiais da criatividade humana, dos instrumentos, das máquinas, dos livros, das
obras de arte, da música. O mundo 2 é constituído pelos estados de consciência:
conhecimento subjetivo e experiências de percepção, pensamento, emoções,
disposições intencionais, memórias, sonhos e imaginação criativa. O mundo 3 é
constituído pelo conhecimento no sentido objetivo: herança cultural codificada em
substratos materiais (filosóficos, teológicos, científicos, históricos, literários,
artísticos e tecnológicos) e sistemas teóricos (problemas científicos e argumentos
crítcos). Cf. 1) Popper, K, Eccles,J. (1981) The Self and its Brain. Berlim: Springer
Intemational (p.359 e ss.). 2) Popper, K. (1975) Conhecimento Objetivo. op. cit.
li. Esse parágrafo contém enormes simplificações. É preciso entender que: a)
proposições são sentenças bem construídas que, portanto, podem ser verdadeiras ou
falsas; b) a lógica matemática prepara noções como as de função, argumento e valor,
e também uma série de regras de inferência capazes de criar cadeias válidas, a partir
de determinadas sentenças; c) tudo que há (no sentido de ter existência) pode ser
expresso como elemento que substitui uma variável quantificada de uma sentença
lógica (Quine); d) tudo que pode ser dito numa sentença quantificada pode ser
computado por uma máquina de Turing (tese Church-Turing). Logo, o pensamento
seria constituído de objetos que são expressos em sentenças quantificadas e estas
podem gerar cadeias de inferência lógica através de leis lógicas ou sucedâneos das
leis do pensamento. Esse processo pode perfeitamente ser replicado em máquinas de
Turing, ou similares, de tal forma que não haja identificação exclusiva entre a mente
e o cérebro humano. Cf. a respeito de inúmeros problemas de lógica: Kneale, W.,
Kneale, M. (1980) O Desenvolvimento da Lógica. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian. Sobre proposições, função, argumento e valor: Frege, G. (1978) Lógica
e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Cultrix e Edusp. Sobre a existência de objetos
e a quantificação de expressões: Quine,W (1974) La relatividad ontologica y otros
ensayos. Madri: Editorial Tecnos. Sobre a tese de Church-Turing: Johnson-Laird, P.
"How Could Consciousness Arise from the Computations ofthe Brain?" in Blakemore,
C., Greenfield, S. (ed) (1987) Mindwaves. Oxford: Basil Blackwell. (pp 247-257).
(Observação: do ponto de vista histórico, a tese de Quine é muito posterior ao
desenvolvimento de Turing, Church e outros, porém, é tão importante sua qualificação
de existência de algo - ontologia - como sendo a propriedade de substituir uma variável
quantificada numa sentença lógica, que optei por inclui-Ia como uma das teses
fundamentais no processo de transposição do mental-cerebral para o mental-
computacional.)
12. A noção de máquina de Turing é crucial e bastante difícil. Inventada por
Alan Turing em 1936, é um aparato computacional abstrato. Consiste de a) uma unidade
de controle que pode assumir qualquer elemento de um conjunto finito de estados
possíveis; b) uma fita dividida em quadrados, cada qual podendo estocar um símbolo
NOTAS

de um conjunto finito de símbolos possíveis e c) uma "cabeça" de leitura e escrita que


se move ao longo da fita, transmitindo informação da unidade de controle para a fita
e vice-versa. A máquina computa através de uma seqüência de passos discretos. Seu
comportamento num dado instante é completamente determinado pelo símbolo que
está sendo lido pela cabeça de leitura e pelo estado da unidade de controle. A medida
que escreve um símbolo, há uma mudança de estado da unidade que vai influenciar a
geração do símbolo seguinte. O novo símbolo pode ser o mesmo do anterior, bem
como é permitido, num dado passo, ficar no mesmo quadrado da fita ou reentrar no
estado anterior. Certos estados e símbolos podem induzir a máquina a parar (conhecido
como problema da parada da máquina de Turing). O programa de uma máquina de
Turing define sua ação para as várias combinações possíveis de estados e símbolos.
Esses programas podem ser apresentados em diferentes formatos: diagramas de
transição de estado, linguagens similares à assembier, etc. A respeito de máquina de
Turing, cf. Fischer, P. in Ralston, A., ReilIy, E. (1993) Encyclopedia of Computer
Science, N.I.: Vau Nostrand Reinhold, (p. 1379 e ss). O problema da parada da máquina
de Turing está intimamente ligado a alguns teoremas de Gõdel que mostram a
inconsistência, indecidibilidade e incompletude de certos sistemas formais. Sistemas
desse tipo seriam capazes de gerar sentenças no seu interior não sendo, no entanto,
capazes de decidir sobre sua verdade ou falsidade. Ou, de maneira geral, sistemas
impossibilitados de capturar uma porção significativa da matemática, usando para
isso um número finito de axiomas. Essa impossibilidade mostra uma limitação
fundamental do método axiomático. Na apresentação de Gõdel, isso geraria um
problema que requer um nível superior para ser resolvido, ou um metanível. O
problema da parada diante de certas situações e a natureza indecidível de certas
proposições formais apontadas por GL%del são similares. Vai daí que falaremos de
parada da máquina de Turing e de incompletude e indecidibilidade mais ou menos
como um mesmo problema. Fornecer um oráculo para a máquina de Turing (gerador
aleatório de números), recorrer a um nível superior (meta-nível) ou asseverar a
natureza não-algorítmica do processo (tese de Penrose) são soluções relacionadas
ao problema da parada. Cf. a respeito deparada da máquina de Turing: Goldstine, J. in
Ralston, A., Reilly, E. op.cit. (p. 1404-1405). Também confira a respeito do problema
de Gõdel: Nagel, E., Newman, J. (1970)E1 Teorema de Gide1. Madri: Editorial Tecnos.
Cf. a respeito de Gõdel e sua relação com a máquina de Turing, o trabalho clássico de
Lucas, J. "Mentes, Máquinas y Gõdel" in Anderson, A. (1984) Controversia sobre
mentes y maquinas. Barcelona: Tusquets Editores. (p.69 e ss). Sobre o problema da
parada, sobre Gõdel e sobre a formulação de uma teoria não-algorítmica da consciência
cf. Penrose, R. "Mmd, Machines and Mathematics" in Blakemore, C., Greenfield, S.
(ed) (1987) Mindwaves. Oxford: Blackwell. (pp. 259-276). Sobre o trabalho original
de Turing cf. 1) Turing, A. (1937) "On computable numbers, with as application to the
Entscheidungsproblem" in Proc. London Mat. Soc. 2, 42. 2) Turing, A. (1950)
"Computing Machinery and Intelligence" in Mmd, 59.
13. A noção de "hardware" e de "software" já foi vista. De maneira sucinta, o
"hardware" é a máquina (processador, memória) e o "sofware" (programa) é um
O SÍTIO DA MENTE

conjunto de instruções que operam a máquina. De uma maneira esquemática, pode-se


dizer que o "hardware" é um departamento concreto e que o "software" é um
departamento virtual. A noção de pensamento enquanto computação é basicamente
uma noção abstrata ou de departamento virtual, O "software" enquanto departamento
virtual tem as seguintes propriedades: a) não se reduz à máquina, seja ela um cérebro
ou um computador pensante; b) pode ser reprogramado; c) não precisa se sujeitar às
leis físicas do cérebro ou do computador para ter suas leis próprias (no caso, leis lógicas).
Embora essa noção esteja na base da inteligência artificial simbólica, cria uma
dissociação indesejada entre leis mentais (ou software) e as leis cerebrais. Essa
dissociação é chamada de funcional, existindo muitos argumentos em seu favor, como
o da múltipla instanciabilidade: um mesmo programa pode ser rodado em diferentes
arquieturas; a mente é um programa; logo, não é necessário que seja um cérebro que
rode o programa mente. Por isso o cérebro e a mente teriam apenas, como já vimos em
outra nota, uma identidade de token e não uma identidade de type. Esse tipo de
dissociação é conhecido como monismo de essencias (cérebro e mente seriam da
mesma substância), mas dualismo de predicados (as propriedades da mente seriam
não-redutíveis ou explicáveis pelas propriedades do cérebro). Esse tipo de dualismo,
mitigado pela aparência una de substância mas amplificado pela noção de emergência
funcionalista e dualismo de predicados, é tão perigoso, do ponto de vista epistêmico,
quanto o dualismo de essências. Ainda mais, deixa muito pouco aparelhado um projeto
de uma psicopatologia de base cerebral, porém com ênfase também nos aspectos de
significado e articulação das formas e dos conteúdos mentais (que é a tese central
deste livro). Cf. a respeito de funcionalismo, entre outros: 1) Putnam, H. (1975)
Mind,Language and Reality, Philosophical Papers vol 2. Cambridge University Press.
2) Putnam, H. (1988) Representation and Reality. MIT Press. 3) Lycan, W. (ed) (1990)
Mmd and Cognition: A Reader Oxford: Blakwell. 4) Biock, N. (ed) (1980) Readings
in the Philosophy ofPsychology. vols. 1,2. Harvard University Press.

CARil: CIÊNCIA COGNITIVA E A NOVA MENTE

1. C£ sobre o behaviorismo, Skinner, B.(1982) Sobre o Behaviorismo. Editora


Cultrix e Edusp. Para algumas considerações acerca da falência dessa corrente, cf. Del
Nero, H. "Do Behaviorismo às Redes Neurais" in Abrantes, P. (org.) (1993)
Epistemologia e Cogniçõo. Brasília: Editora UnB (pp. 147-169).
2. O programa capaz de provar um teorema matemático é de autoria de Allen
Newell e Herbert Simon. Apresentado no Simpósio de Teoria da Informação em 1956,
chamou-se de "Logic Theory Machine". Cf. a esse respeito, Gardner, M. (1985) The
Mind's New Science: A Histoiy of the Cognitive Revolution. Nova Iorque: Basic
Books (p. 28). C£ também o livro posterior dos autores: Newell, A., Simon, H. (1972)
Human Problem Solving. Englewood Cliffs: Prentice Hall.
3. Cf. a respeito da distinção entre pensamento (modo cognitivo), sensação
(modo emocional) e vontade (modo conativo), Ryle, G. (1963) The Concept ofMind.
Penguim Books (p. 61 e ss).
NOTAS

4. Cf. a respeito dessa prescrição, conhecida como "a navalha de Ockham",


segundo a qual se devem eliminar as categorias desnecessárias: William of Ockham
(filósofo da Idade Média que viveu aproximadamente entre 1285 e 1349) in Aquin,
Alighieri, Scot e Ockham (1985) Os Pensadores. Editora Abril (pp. 347- 412). Cf. a
respeito do princípio de simplicidade de Galileu em sua obra II Saggiatore, Geymonat,
L. (1986) Galileo Galilei. Barcelona: Ediciones Peninsula (pp.l 09-153). Cf. a respeito
de Galileu e o nascimento da ciência moderna, Koyré, A. (1973) Études d Histoire de
la Pensée Scientflque. Paris: Gallimard (pp. 167-274).
5. Sobre arquitetura von Neumann, devem-se consultar algumas indicações. Cf.
Haugenland, J. (1987) Artificial Inteiligence: The Very Idea. MIT Press (pp. 140-146).
Cf. também o trabalho do próprio autor, von Neumann, J. (1958) The Computer and
the Brain. New Haven: Yale University Press.
6. Um dos mais interessantes trabalhos que lança a distinção clara entre nível
da computação, nível do algoritmo e nível da realização fisica é de David Marr. Cf.
Marr, D. (1982) '7sion. N.I.: W.H.Freeman and Co. (p.24 e ss). O nível da computação
basicamente se refere ao objetivo da computação e à lógica que deve ser utilizada
para alcançá-lo; o nível da representação e do algoritmo se referem a como essa teoria
computacional pode ser implementada, particularmente no que tange à representação
da entrada e da saída e o algoritmo responsável pela mediação entre ambas. O nível
da implementação física (hardware) diz respeito a como essa representação e
algoritmo podem ser fisicamente realizados. A noção de algoritmo deve ser
precisamente entendida: "por algoritmo entenda-se um procedimento mecânico-
matemático completo que é bem definido na operação e que pode ser aplicado
automaticamente sem decisões adicionais, juízos ou decisões aleatórias" in Johnson-
Laird op.cit. (p. 260 ).
7.Cf. a respeito da teoria da decisão, Resnik, M. (1987) Choices: Án Introduction
to Decision Theory. Minneapolis: Univeristy of Minnesota Pres. Especificamente
sobre teoria da decisão normativa, cf. von Neumann, J. Morgenstem, O. (1944) Theory
of Games and Economic Behavior. Pnncenton University Press. Cf. sobre teoria da
decisão descritiva, Kahneman, D., Slovic, P., Tversky, A. (ed) (1982) Judgment under
uncertainty: Heuristics and biases. Cambridge Univeristy Press.
8. A idéia de que sinapses alterem seus pesos de conexão, pelo reforço e
aprendizado, deve-se inicialmente a Donald Hebb (cf. nota 3 do capítulo 6). Cf.
Hebb, D. (1948) op. cit.. Essa noção de sinapse hebbiana está intimamente ligada à
concepção de assembléias de neurônios que respondem com maior ou menor
fidedignidade a um estímulo (place-coding). Como vimos, nesses casos a idéia é que
a codificação temporal expresse apenas uma maior ou menor representatividade do
estímulo em relação à área que está em atividade. A noção de codificação temporal
genuína não é compatível com a sinapse hebbiana porque o código está nos intervalos
inter-espículas (estatística de 2a ordem) e não na taxa média de disparo (estatística de
P ordem). A alteração de peso sináptico, nesses casos, é responsável apenas pela
mudança de ganho de malha do sistema, alterando, quando for parâmetro de bifurcação,
a topologia no espaço de soluções. Essa maneira de enxergar o problema é fracamente
o sfTlo DA MENTE

compatível com a sinapse hebbiana, embora aceite sua importância enquanto


parâmetro numa equação diferencial não-linear que descreve a dinâmica da assembléia
neuronal. Para mecanismos de memória e outras modulações devem-se considerar
ainda fatores de variação intra-espícula tais como LTP e LTD.
9. Cuidado: nesse caso é analógico porque varia de -m a +m, não se tratando de
um simples 0 ou 1. No caso do neurônio real, visto no início deste livro, o potencial
de ação não variava de tamanho. O carater analógico era, então, obtido não pelo tamanho
do potencial (como neste caso), mas pela freqüência de potenciais e intervalo entre
eles (código de barras, etc). No disparo de vários potenciais de ação com intervalos
diferentes entre si há, na verdade, uma série de freqüências. Fazendo-se uma trans-
formação de Fourrier pode-se colocar num histograma a distribuição dessas
freqüências todas. Veremos mais adiante que se podem definir intervalos de freqüências
para que haja a sincronização nesse intervalo onde estão presentes muitas freqüências.
Isso é fundamental, porque a sincronização na freqüência ou na fase não exige que haja
apenas uma freqüência em jogo. Além do mais, se houvesse somente uma freqüência
no conjunto de potenciais de ação não haveria medida de intervalo entre eles que se
poderia captar por uma estatística de 2a ordem, o que invalidaria o argumento do código
de barras e faria o modelo voltar para a média de disparos, que medem a prototipicidade
do estimulo face à pré-programação daquele campo receptivo.
10.Repare que no caso de dois neurônios de entrada e um de saída a rede pode
processar também conectivos lógicos. A diferença de uma rede neural em relação a
uma arquitetura digital de tipo simbólica, então, não reside apenas no processamento
digital (a rede neural perfaz tanto o digital quanto o analógico), mas na ausência de
programa separado do nível de processamento, a ausência de um processador central
que controle os passos da rede e a presença de dados e memórias distribuídos pelas
conexões e não estocados em endereços fixos.
11.Num primeiro momento isso foi considerado uma diferença essencial entre
as arquiteturas simbólicas e as conexionistas. As simbólicas não seriam capazes de
aprender, estando todas as regras ali pré-fixadas. Isso, de um tempo para cá, não é
mais verdade, porque também as arquiteturas simbólicas são capazes de aprender
(chamados sistemas de produção). C£ a respeito de arquiteturas simbólicas capazes
de aprender, a arquitetura ACT* de John Anderson in Anderson, J. (1983) The
Architecture of Cognition. Harvard University Press.
12. Há diversas classificações para o tipo de supervisão e para o tipo de
algoritmo que corrige pesos minimizando o erro. Os modos de retroação (feed-back)
sobre a rede podem ser divididos em supervisionados (externos) e não-
supervisionados (não-externos). Entre os supervisionados externos distinguem-se
os não-monitorizados (não-internos) e os monitorizados (internos). Entre os não-
supervisionados (não-externos) distinguem-se os monitorizados (internos) e não-
monitorizados (não-internos). Essa classificação é fundamental para que não se façam
confusões entre rede neural e auto-organização (caso em que não há supervisão
externa) e, também, ao caso particular em que, havendo um algoritmo de organização
interna, a auto-organziação está também em xeque pelo fato de haver uma norma que
NOTAS

organiza a desorganização. A classificação acima pode ser encontrada em Chuchland,


P., Sejnowski,T (1992) The Computational Brain. MIT Press (j.98). Sobre tipos de
redes (26 são citados) e aplicações mais freqüentes, c£ a tabela 1 na p.43 de Arbib, M.
(cd) The Handbook ofBrain Theory and Neural Nelworks. MIT Press. Sobre a figura
40 onde se descreve o método de criar uma bacia de atração num cenário de minimização
local (a global é normalmente impossível) de energia, cf. o trabalho clássico: Hopfield,
J. (1982) "Neural networks and physical systems with emergent coilective
computational capabilities" in Proceedings ofthe National Academy ofSciences 79:
2554-2558.
13. Essa noção de subsímbolo aparece num trabalho de Smolensky e creio ser
criticável. Um pedaço de símbolo, uma propriedade de uma sala de estar (símbolo)
como a de ter móveis (subsímbolo), ainda é um símbolo. O que define um símbolo, a
meu ver, é sua capacidade de ser descrito através de uma proposição. O fato de ser
maior ou menor, todo ou parte, predicado de predicado ou não, consistiria em outro
problema. Há, na comunidade de redes neurais, quem afirme que se poderia partir um
subsímbolo até um limite inimaginável. Isso me parece errado, porque só se poderia
parti-lo até onde as proposições captassem a sua descrição. Ora, meu argumento é que,
se são proposições, o símbolo e o subsímbolo ainda são entidades mentais interpretadas
e interpretáveis na linguagem ordinária e, portanto, distantes do modo cerebral de
forja de objetos e relações. A dinâmica cerebral que proporei ao longo do livro tenta
superar esse impasse. C£ sobre subsímbolo, Smolensky, P. (1988) "On the proper
treatment of connectionism" in Behavioral and Brain Sciences 11, 1-74. Para uma
critica ao conexionismo, cf. Fodor, J.e Pylyshyn, Z. (1988) "Connec-tionism and
Cognitive Architecture: a critical analysis" in Cognition 28: 3-72.
14.Cuidado, porque também o processamento paralelo não é sinônimo de rede
neural. Embora a maior parte delas utilize processamento paralelo e distribuido, as
redes semânticas podem utilizar processamento serial. Também o processamento serial
não é exclusivo das arquiteturas simbólicas, como vimos, podendo haver arquietura
digital com vários processadores em paralelo, processando cooperativamente, sob o
comando de um programa.
15.A memória de trabalho teria uma capacidade finita, como se fosse a memória
RAM de um computador comum. Nos seres humanos parece haver um número mais ou
menos preciso que descreve a capacidade de armazenar símbolos (de qualquer tamanho)
na memória de trabalho. Esse número de "cabines" disponíveis parece ser da ordem de
7 (mais ou menos 2). Cf. George Miller. Cf. Milier, G. (1956) "The Magical Number
Seven, Plus or Minus Two: Some Limits on Our Capacity for Processing Information"
in Psychologi cal Review 63: 81-97.
16. A obra de Noam Chomsky é vastíssima. A crítica que empreende ao
behaviorismo (nos primórdios da ciência cognitiva) advém da incapacidade de se
condicionar uma pessoa para reconhecer todas as proposições bem-construídas da
língua. Se somos capazes de reconhecê-las deve haver um sistema a priori, uma
capacidade inata para a linguagem, que nos habilita a fazê-lo independentemente de
exposição. A contribuição inicial de Chomsky está em "Three Modeis of Language"
O SITIO DA MENTE

em Teoria da Informação de 11/11/1956 no Instituto Tecnológico de Massachusetts


(MIT) (cf. a citação em Gardner, H. op. cit. p.29). Outro trabalho de Chomsky com
versões mais completas de suas idéias: Chomsky, N.(1985) Règles etReprésentations.
Flammarion.
17.A noção de intencionalidade e de capacidade de manipulação semântica,
isto é, de compreensão do que se está processando, é fundamental. John Searle critica
a noção de mente como computação (no sentido de IAS) porque, no caso, a mente,
como o programa de um computador, seria apenas capaz de manipular regras sintáticas.
Embora Searle não seja um dualista, afirma que compreensão e semântica são
propriedades do tecido cerebral. Não explica que propriedades seriam essas e que
forma existiria de replicá-las. Da forma como apresenta o argumento, pode sofrer a
critica de um chauvinismo cerebralista. Concordo com a crítica à noção de manipulação
sintática destituída de semântica. Tanto intencionalidade quanto semântica são
propriedades do cérebro humano (exclusivas, até o presente momento) ao gerar mentes
e, se devidamente abstraídas através do código correto, que é o analógico, e com
outras implicações explicadas ao longo do livro, poderão ser replicadas em outros
meios fisicos, artificiais e quiçá também na interação cultural (onde já estão presentes).
Cf. Searle, J. (1984) Minds, Brain and Science. op. cit. (p.4 1).
18. Como se verá mais adiante, há conceitos precisos concernentes a caos,
bifurcações, estabilidade estrutural e topologias. A existência de um valor de bifurcação
no espaço de parâmetros enseja uma mudança brusca na estrutura do espaço de estados.
Essa guinada topológica é responsável pela alteração qualitativa do comportamento
das soluções do sistema. Analisar sinais elétricos codificados em conjuntos de
freqüências pode nos possibilitar enxergar situações de estabilidade estrutural (valor
ordinário de parâmetros) e instabilidade estrutural (valor de bifurcação). Bifurcações
podem ser de vários tipos. Há uma bifurcação de ponto de equilíbrio, como no caso do
pêndulo, que muda radicalmente de comportamento topológico na vizinhança do
valor zero para o atrito. Quando zero, temos uma série de trajetórias do tipo centro no
espaço de estados, isto é, para quaisquer condições iniciais o pêndulo oscila
harmoniosamente, e de forma auto-sustentada, indefinidamente. Para valores muito
baixos de atrito positivo, temos uma lenta degradação da trajetória de tipo centro
convergindo para um ponto assintoticamente estável. Para mínimos valores negativos
de atrito, o comportamento das soluções tende ao infinito. Há ainda, por exemplo,
bifurcações do tipo "flip" em que o sistema, para valores ordinários, oscila em período
1 e, quando passa pelo valor de bifurcação, começa a oscilar em período 2. Uma
sucessão dessas bifurcações é uma das rotas para o caos (duplicação sucessiva de
período). Embora afirmar que a uma bifurcação pode corresponder um chaveamento
no nível mental (no caso da hipótese deste livro, passar do automático para o voluntário)
seja uma hipótese, em princípio verificável, devem-se colocar alguns reparos na sua
testabilidade: a) em primeiro lugar deve haver muito mais bifurcações no sistema que
alterações discretas de estado (consciente e não-consciente); b) segundo, a detecção
de bifurcações depende de uma estimativa da estrutura que descreve o sistema, o
que é bastante dificil, dadas as múltiplas conexões deste com os outros. No limite, o
NOTAS

cérebro se comporta como estrutura quase toda conectada. Caos, em princípio, não
teria relação estrita com bifurcação e estabilidade estrutural. C£ a respeito de estrutura
omniconectada (quase toda conectada): Milier, R. (198 1) Meaning and Purpose in
the Intact Brain: A philosophicai, psychoiogical, and biological account ofconscious
processes. Nova lorque: Oxford University Press. Cf. a respeito de caos e bifurcações
no cérebro: 1) Xie, M., Pribram, K., King ,J. "Are Neural Spike Trains Deterministically
Chaotic or Stochastic Processes?" in Pribram, K. (ed) (1994) Origins:Brain and Seif
Organization. Lawrence Eribaum Ass. (pp. 253-267). Cf. na mesma obra, Pribram,K.
(ed) op. CII., Fahrat, N., Eldefrawy, M., Lin, S. "A Bifurcation Model ofNeuronal Spike
Train Pattems: A Nonlinear Dynamic System Approach" (pp. 396-433). Finalmente, cf.
na mesma obra, Segundo, J., Vilbert, J., Pakdaman, K. Stiber. M., Martinez, O. "Noise
and the Neurosciences: A Long History, a Recent Revival and Some Theory" (jp.299-
331). Cf. também a importante contribuição de Waiter Freeman sobre caos no sistema
olfatório: Freeman,W. "Tutonai on Neurobiology: from singie neurons to brain chaos"
in Internationai Journai ofBfurcation and Chaos, vol. 2, No 3 (1992). Cf. a respeito
de teoria do caos o excelente livro Fiedler-Ferrara, N., Cintra do Prado, C. (1994)
Caos: uma introdução. São Paulo: Editora Edgard Blücher sobre os artigos seminais
que deram origem à hipótese de sincronizações subjazendo à consciência, cf. por
exemplo Engel, A. et. ai. (1992) "Temporal Coding in the Visual Cortex: new vistas on
integration in the nervous system" in Trends in Neuroscience, Vol. 15, No. 6, (pp. 216-
226). Sobre algumas aplicações de teoria do caos em biologia, cf. Yang, W. et. ai.
(1995) "Preserving Chaos: Control Strategies to Preserve Complex Dynamics with
Potential Relevance to Biological Disorders" in Physicai Review E, vol. 51, No 1, (pp.
102-110).
19. A idéia é simples. Quando um sistema gera uma sentença que não se pode
provar ser verdadeira ou não (alguns sistemas não teriam esse problema e há relações
disso com a consitência, recursividade), então, apela-se para um sistema em outro
nível, em que se resolveria o problema. Isso se chama de resolver na metalinguagem
um problema da linguagem ou de resolver num meta-nível um problema do nível que
está exibindo idecidibilidade e parada. A concepção de que a mente pudesse ter lançado
mão desse artificio para provar certas coisas é defensável, porém, não são problemas
complexos que estão no seio dessa discussão; são problemas bem delimitados. Aquele
leitor que imagina que a existência de Deus é um desses problemas insolúveis e que o
apelo ao texto bíblico serviria de metanível não terá entendido a natureza do problema.
A questão fundamental é que sabemos que uma sentença é verdadeirae, ao mesmo
tempo, o sistema que a gerou não pode provar isso. Ou, de maneira similar, ocorre
parada nas etapas computacionais que estão computando esse problema. Pois bem,
pode-se, ainda assim, imaginar que a classe de computações que nosso cérebro realiza
para forjar a nossa mente (e que não percebemos no palco consciente) contém porções
indecidíveis. Tais porções poderiam, talvez, ser resolvidas pelo apelo à comunicação e
à consciência (enquanto redescrição).
Uma outra classe de considerações é uma especulação: talvez o cérebro
seja uma máquina analógica e a mente que dele brota seja descrita, com muita
O SÍTIO DA MENTE

propriedade, através de linguagens que recrutam concepções discreto-digitais e


algorítmicas. O problema da parada e da completude seriam, assim, defecções que
surgem do estilo de análise de tipo "sistema formal baseado em algoritmos". Não
seria uma limitação inerente ao cérebro, que é analógico, mas inerente a um recorte
discreto-digital algorítmico que se faz dele. A solução do problema da parada através
de máquinas analógicas tem sido proposta por alguns lógicos, entre eles Newton da
Costa. Se o analógico representa um caso que resolve o problema da parada, creio
escapar dos limites desse trabalho, tocando em pontos extremos da matemática e da
lógica que não sou de julgar. Talvez essa idéia seja apenas pauta para discussões futuras.
20. Cf a respeito da tese da não-algoritmicidade do processamento consciente:
1) Penrose, R. (1994) Shadows of the Mina!: a Search for dar Missing Science of
Consciousness. Oxford University Press. 2) Hameroff, S. Kaszniak, A., Scott, A.
(ed) (1996) Toward a Science of Consciousness. MIT Press.
21. O leitor deverá estar atento porque há uma área de neurodinâmica quântica,
diferente dessa hipótese de não-algoritmicidade e microtúbulos. Karl Pribram se
utiliza de um ferramental matemático de física quântica e de teoria da informação de
Gabor para analisar sua hipótese holonômica de cérebro. Nesse caso, prefiro chamar
de dinâmica quântica instrumentalista, em lugar da anterior, que chamaria de
essencialista. Cf, Pnbram, K. (1991) Brain and Perception: Holonomy and Structure
in Figural Processing. Lawrence Erlbaum Associates.
22.Jerry Fodor supõe que para processar o pensamento deve haver uma estrutura
profunda de objetos e relações - uma linguagem do pensamento. Sua concepção de
módulos para a mente é essencialmente proposicional, sobre os quais se debruçariam
as regras. Admite, no entanto, que dentro de cada módulo possa haver processamento
de tipo associacionista, de tipo rede neural. Cf. a esse respeito Fodor, J. (1987) The
Modularity ofMind. Cambndge: MIT Press.
23. Cf. a respeito de algoritmo genético, a obra de seu idealizador:!) Holland,
J. (1992) Adaptation in Natural and Artfl cia! Systems. MIT Press. 2) Holland, J.,
Holoyak K., Nisbett, R., Thagard, P. (1989) Induction: Processes of Inference,
Learning and Discovery. MIT Press. 3) Holland, J. (1995) Hidden Order: How
Adaptation Builds Complexily. Addison Wesley Publishing.
24 . Cf por exemplo 1) Kohonen, T. "Automatic Formation of Wavelet - and
Gabor Type Filters in Adaptative Subspace SOM" in Pribram, K., King, J. (ed) (1996)
Learning as Self-Organization. Lawrence Erlbaum Associates (pp. 223-232); 2)
Murray, J. (1993) Mathematical Biology. Springer-Verlag; 3) Abeles, M (1991)
Corticonics: Neural Circuits of the Cerebral Cortex. Cambndge University Press;
4) Aertsen, A. (ed) Brain Theory: Spatio-Temporal Aspects of Brain Function.
Amsterdam: Elsevier. 5) Rieke, F., Warland, D., van Steveninck, R., Bialek, W. (1997)
Spikes: Exploring the Neural Code. MIT Press.
25. Cabe citar aqui obras que revivem o ideal de primeira metade do século de
tentar localizar padrões fundamentais na dinâmica de sinal elétrico cerebral (EEG e
outras técnicas similares, tais como MEG, brain mapping, potencial evocado, etc.).
Cf. 1) Nunez, P. (1995) Neocortical Dynamics and Human EEG Rhytms. Oxford
NOTAS

University Press. 2) Wong, P. (1991) Introduction to Brain Topography. Plenum


Press. 3) Basar, E., Buliock, T. (ed) (1992) Induced Rythms in lhe Brain. Boston:
Birkhãuser; 4) Pantev, C., Elbert, T., Lütkenhcner, B. (ed) (1993) Oscillatory Event-
Related Brain Dynamics. Plenum Press - NATO ASI Series. Oscilações e sincronismo
de populações neurais podem cumprir as seguintes funções (o que se pode depreender
através de uma leitura extremamente cuidadosa desses diferentes trabalhos): a) podem
ser o meio de criar relógios internos de marcação de janelas temporais, fundamentais
para a marcação da percepção e para a unificação dos processamentos modulares
discretos; b) podem funcionar como portas ou pontes de acesso da informação dos
relês talâmicos para o córtex associativo; c) podem funcionar como mecanismo de
memória; d) podem servir de substrato para a consciência; e) podem servir de meio
para a sincronização de expectativas oscilatórias corticais e determinados "candidatos"
subcorticais (mecanismo de atenção).
26. Cf. a respeito de sistemas especialistas, por exemplo, Chi, M., Glaser, R.,
Farr, M. (ed) (1988) The Nature ofExpertise. Lawrence Erlbaum Associates.
27. Cf. Shannon, C., Weaver, W. (1949) republicado em (1963) The
Mathematical Theory of Communication. University of Illinois Press.
28.Cf. Gabor, D. (1946) "Theory ofCommunication" in Journal ofthe Institute
of Electrical Engineers, 93, 429-441.
29. Cf. sobre cibernética: 1) Wiener, N. (1948) Cybernetics, or Control and
Communication in the Animal and the Machine, traduzido e editado em espanhol
(1985) Cibernetica: o ei Control y Comunicacion en Animales y Maquinas.
Barcelona: Turquets Editores; 2) Ashby, R. (1970) Introdução à Cibernética. São
Paulo: Editora Perspectiva. 3) Para uma visão da ciência cognitiva como continuação
da cibernética, cf. Dupuy, J. (1996) Nas Origens das Ciências Cognitivas. São Paulo:
Editora da Unesp.
30. Cf. Prigogme, 1. (1980) From Being to Becoming. Time and Complexity
in the Physical Sciences. Nova Iorque: W. H. Freeman and Company.
31. Agredeço ao matemático Paulo Blinder por sugestões nesse tópico. Cf.
Nayfeh, B. "Ceilular Automata for Solving Mazes" in Cognitive Computing: Dr.
Dobb 's Jounal (Fevereiro 1993).
32. Cf. sobre criticalidade auto-organizada, Bak, P. (1996) How Nature Works:
the science ofseif-organized criticalily. Nova Iorque: Copernicus, Springer-Verlag
New York Inc.
33. Cf. Haken, H. Stadler, M. (ed) (1990) Synergetics of Cognition. Berlim:
Springer-Verlag.
34.Cf. 1) Bertalanffy, L. (1950) "An Outline of General System Theory" in The
British Journal for the Phiiosophy of Science, vol.I., No. 2; 2) Bertalanf1', L. (1973)
Théorie Générale des Systemes. Paris: Dunod.
35. Cf. Edelman, G. (1987) Neural Darwinism: The Theory ofNeuronal Group
Selection. Nova Iorque: Basic Books.
36. Cf. a respeito de vida artificial, Langton, C. (1996) Artificial Lfe: an
overview. MIT Press. Cf. especificamente a respeito de computação usando
O SÍTIO DA MENTE

mecanismos intracelulares, particularmente o AMP cíclico,: Marder, E. (1996)


"Computing with cyclic AMP" m Nature vol. 384, (pp.113-1l4).
37. a a respeito desse modelo 1) Del Nem, Ii, Manuica, A., Piquen, J. (1997) op. cit. 2)
Dei Nem, H. (1997) Computação topológica e contmle voluntário em arquiteturas naturais e
artificiais. (no prelo).

CAP 12: DISFUNÇÃO MENTAL

1. Cf. a respeito desses números estatísticos: 1) Gentil Filho, V. "Manicômio,


asilo e hospital" no jornal Folha de São Paulo de 26/09/95 (p3); 2) sobre as perdas
americanas apenas com custos indiretos, resultantes da queda de produtividade devida
a depressões, cf. Greenberg, P., Filkenstein, 5., Berndt, E. "O custo invisível das doenças
no trabalho" em Revista Exame, Ed. Abril. 28/02/96 (pp. 86-87); 3) Sobre programas
americanos de alerta à população sobre doenças mentais e o modo de conduzir-se
diante delas, cf. Dimenstein, G. "A ignorância faz mal para a cabeça" no jornal Folha
de São Paulo de 19/05/96 (p.1 -18); 4) Russo, N. "Depressão tira funcionário do
trabalho" em Folha de São Paulo 15/09/96 (p.3-14);
2) C£ a respeito de limitações à vontade irracional, por exemplo, noticia de o
Estado de São Paulo em 01/09/95 "Hospital obtém liminar contra paciente que recusa
tratamento" de autoria de Happy Carvalho: "Rio: - A paciente S.B.R de 28 anos,
internada há 17 dias no Hospital..., recusa atendimento médico. Apesar de sofrer de
problemas renais crônicos, ela não quer passar por sessões de hemodiálise. A diretora
do hospital...moveu uma ação judicial, cuja liminarfoi concedida esta semana pelo
juiz Ruyz Athayde Alcântara de Carvalho, da P Vara Cível da Defensoria Pública,
para que o tratamento seja mantido independente da vontade da paciente" (grifo meu).
A vontade pode ser contrariada diante da irrazoabilidade e irracionalidade auto ou
heterodestrutiva. Ora, a patologia psiquiátrica é o ponto limite dessa situação. Será
que alguém que está perto de suicidar-se ou de agredir a outrem pode, pelo exercício
da vontade, recusar o tratamento, aludindo para isso qualquer opinião e contrapondo-
se ao atual estágio de conhecimento médico a esse respeito? Claro que não, embora
muita gente faça vistas grossas para situações semelhantes em atitude ignorante e
preconceituosa face ao cérebro, à mente e à psiquiatria.

CAR 13: A MENTE ADOECE

1. Cf. a respeito desse processo, conhecido como "Sladev Trial", Milner, R.


(1996) "Charles Darwin and Associates, Ghostbusters" in ScientzficÁmerican, outubro
de 1996 (pp.72-77). /

C4P 14: O PENSAMENTO E SEUS DISTÚRBIOS

1. Cf. a esse respeito, Popper, K., Eccles, J. (1981) The Self and its Brain.
Springer Verlag. (p.313 e ss). Cf. também, Marks, C. (1981) Commissurotomy,
NOTAS

Consciousness and the Unity of Mmd. MIT Press.


2. Essa concepção já foi vista em capítulos anteriores. Diz que a mente computa
sobre transições de fase, ou sobre alterações qualitativo- topológicas, enquanto que
o processamento nas regiões ordinárias de parâmetros, ou fora da transição de fase, é
incumbência estritamente "cerebral" não-consciente. Essa hipótese está de acordo
com o modelo que proponho de processamento cerebral de tipo estável
estruturalmente e de recrutamento de consciência quando há a necessidade de eliminar
a ambigüidade em algo, p. ex. numa região de bifurcação no espaço de parâmetros.
Nesse caso não precisaríamos necessariamente da distinção digital e analógica para
fazer a diferenciação, uma vez que há sistemas de tempo discreto, equações de
diferenças, que podem apresentar estabilidade e instabilidade estruturais e são, ao
mesmo tempo, discretos e digitais, não no sentido logicista da IAS, mas no sentido
de serem algoritmizáveis.
3. Sobre gestalt, cf. por exemplo Kokfa, K. (1975) Princípios de Psicologia
da Gestait. São Paulo: Editora Cultrix e Edusp.
4. Cf. por exemplo um artigo acessível e ilustrativo Horgan, J. (1995) "From
Complexity to Perplexity" in Scientflc American, vol.272, No.6, junho de 1995,
pp.74-79. Cf. ainda uma forma mais densa: Morowitz, H., Singer, J. (ed) (1995) The
Mmd, The Brain, and Complex Adaptive Systems. Santa Fé Institute Studies in the
Sciences of Complexity. Addison-Wesley.
5. Cf. Shallice, T. (1988) From Neuropsychology to Mental Structure.
Cambridge University Press (pp. 328-352).
6. Essa prescrição do "acho que" ou "parece que" remonta à escola dos céticos
gregos (pirronismo). Como se pode provar a equivalência dos argumentos a favor e
contra algo (equipoléncia), prescrevem os céticos que se deve suspender o juizo
último sobre a verdade ou falsidade das coisas, guiando-se apenas pelo que parece
(fenômeno). O cético, ao contrário de se entregar ao imobilismo pela ausência de
verdade última, prescreve que se devem seguir os usos e costumes. As teorias da
verdade pragmáticas afirmam que há verdade provisória num determinado contexto e
até que essa verdade (ou teoria) seja substituída por outra de maior abrangência, etc.
O fazer científico, de maneira geral, é uma afirmação hiperbólica da verdade
pragmática, devidamente ancorado num "parece que" que, ao contrário de expressar
hesitação, afirma algo, deixando aberto o caminho para que novas teorias venham
substituir, pela dinâmica da descoberta, as atuais formulações. Cf. a respeito de
ceticismo, Popkin, R. (1983) La Historia dei Escepticismo Desde Erasmo Hasta
Spinoza. Mexico: Fondo de Cultura Economica.
7. A computação exaustiva de hipóteses e a emergência na consciência de
significados negativos está bem documentada num experimento psicológico simples.
Apresentam-se pares de palavras numa tela para que o paciente leia em voz baixa. Em
seguida, aparece um ponto na tela. O paciente deve apertar um botão o mais rápido
possível, assim que avistar o ponto. Esse ponto pode aparecer no local em que havia
uma palavra de significado ameaçador ou no local em que havia uma palavra neutra ou
positiva. 0 tempo de reação de aperto do botão no paciente ansioso é muito menor
O SÍTIO DA MENTE

nas situações em que o ponto aparece no local em que estavam palavras ameaçadoras.
Cff, a esse respeito, Navon, D., Margalit, B (1983) "Aliocation ofAttention According
to Informativeness in Visual Recognition". Quarterly Journal of Experimental
Psychology, 3 5(a), (pp. 497-512). Cf. ainda uma ampliação desse teste aludindo à
hipótese de que os ansiosos tenham esquemas prévios que privegiam processamento
negativo, Mathews, A., MacLeod, C. (1985) "Selective Processing of Threat Cues in
Anxiety States". BehaviorResearch and Therapy, 23. (pp. 563-569) e, ainda, Mathews,
A., MacLeod,C. (1986) "Discrimination ofThreat Cues without Awareness in Anxiety
States". Journal ofAbnormal Psychology, 95, (pp. 131-138).
CAP 15: A EMOÇÃO E SEUS DISTÚRBIOS

1.A idéia de introjeção de significados é antiga, porém, há que se notar a presença


de dois elementos distintos: não é apenas uma tábula rasa em que a linguagem e a
interação escrevem suas categorias, nem é um a priori sintético (no sentido kantiano)
que define os semitons da introspecção e de sua redescrição lingüística. As condições
de possibilidade de algo ser introjetado, a predisposição prévia para isso, bem como o
estilo de processamento do cérebro humano, unido à capacidade inata para a linguagem,
fornecem os elementos a priori para a submersão futura na comunidade dos falantes.
A introjeção se dará, nesse segundo momento, graças ao artificio da estabilização
dinâmica do significado. Não é platônica a idéia, porque não se ativa uma "lembrança"
já existente de significados, nem esses são garantidos por uma definição estrita. Ao
contrário, os significados introjetados se utilizarão do a priori cerebral para impor-lhe
significados dinâmicos treinados durante a história da comunicação da espécie
(filogênese) e do indivíduo submerso num contexto comunicacional (ontogêse). Sabe-
se que há algumas disposições prévias sintéticas no cérebro humano como algumas
ordens claras de fuga ou de reação diante de estímulos. Prefiro a visão de um kantismo
biológico, fortemente identificado com uma certa corrente da etologia. C£ a respeito
de sintéticos cerebrais a priori e da possibilidade de um a priori biológico ao gosto
kantiano: 1) Young, J. (1987) Philosophy and the Brain. Oxford University Press. 2)
Young, J.. (1978) Programs ofthe Brain. Oxford University Press; Cf. a respeito de
etologia e particularmente a obra de Konrad Lorenz: Lorenz, K. , Popper, K (1990).
L'avenir est ouvert. Paris: Flammarion.
2. O problema da discriminação de vocábulos e da base cerebral para
essa discriminação é um tema fascinante. Muitos gostariam de dizer que os
vocábulos variam de cultura para cultura e que nossa percepção é formatada
por essa submersão cultural. Argumentariam, por exemplo, que algumas
culturas têm apenas poucos nomes para cores e que as línguas ocidentais têm
inúmeros. O culturalismo dessa hipótese sofreu uma derrota fragorosa com
os trabalhos de Eleanor Rosch: a despeito de existir um número maior ou
menor de vocábulos para cores em cada língua, a capacidade cerebral de
discriminação é exatamente a mesma e em número finito. Portanto, em algumas
culturas deve haver subutilização da capacidade de discriminação perceptual
NOTAS

(ou não, porque nessas culturas pode haver qualidades agregadas que fazem
subdiferenciações) e em outras há uma proliferação barroca da nomeação de coisas
que são indistinguíveis. Talvez a diferenciação entre angústia e ansiedade seja de tipo
cerebral compartimentalizavel, talvez seja barroquismo lingüístico. Parece-me que
grande parte das chamadas qualidades psíquicas e vivências são desdobramentos da
linguagem primitiva do prazer e do desprazer e que, na sua maior parte, não são apenas
barroquismos lingüísticos, encontrando solo cerebral apto para diferenciá-las. Cf. a
respeito do trabalho citado acerca de percepção em culturas diferentes: i)Rosch, E.
(1973) "Natural Categories", Cognitive Psychology 4:328-350; 2) Rosch,E., Lloyd,
B. (ed) (1978) Cognition and Categorization. Lawrence Erlbaum.
3. A distinção entre teoria clássica dos conceitos e teoria prototípica é a
seguinte: enquanto que na clássica há uma condição de definição precisa para um
indivíduo pertencer a um conceito (x é ave se e somente se...), na concepção dinâmica
há condições só parcialmente conhecidas (muito provavelmente baseadas em
regularidades e não em regras) tais que, para o conceito ave há representantes mais
específicos (um pardal, por exemplo) e menos típicos (uma galinha, por exemplo). A
idéia que defendo é que tanto conceitos quanto significados advêm de razões dinâmicas
baseadas em regularidades e não de regras estritas e digitais, condições necessárias e
suficientes para a definição de algo. A teoria do significado de Bentham (que utilizo
em minha argumentação) afirma que "significado de um termo é a soma de todos os
significados que esse termo gera nas sentenças bem construídas em que é substituído".
Ora, essa concepção é dinâmica, num certo sentido, e não estática como se o
significado fosse ente único e passível de apreensão por uma definição baseada numa
regra simples. Cf. a respeito da concepção clássica e prototípica dos conceitos 1)
Medin, D., Smith, E. (1984) "Concepts and Concept Formation", Annual Review of
Psychology 35:113-138; 2) Smith, E., Medin, D. (1981) Categories and Concepts.
Harvard University Press. C£ sobre a noção de definição contextual ou teoria das
ficções de Bentham (redescrição de significado pelo esgotamento de ocorrências
em sentenças) em Quine, W. (1979) "Naturalization dela Epistemologia" inRelatividad
Ontológica y otros ensayos, Editorial Tecnos (pp.96 e ss): "El paso de Bentham fite
ei reconocimiento de ia deflnición contextual, o lo que él ilamó de paráfrasis. Advirtió
que para explicar un término no necesitamos especificarle un objeto ai que hacer
referencia, ni siquiera especificar una palavra o frase sinónima; lo único que
necesitamos es mostrar, por cualesquiera medios, cómo traducir todas Ias sentencias
completas en Ias que deva usarse el término".
4. Hoje em dia se aceita que mesmo aquelas patologias supostamente puramente
psíquicas têm alguma falha estrutural nas paredes e divisórias, transmitida por um ou
mais genes. É questão de tempo descobrir o substrato íntimo cerebral de um sem-
número de disfunções ditas psíquicas.
5. Um dos temas mais práticos que decorrem dessa definição de tipos de lesão
seria o problema da reabilitação. Lesões concretas tendem a ser dificilmente tratáveis
por reabilitação, salvo haja um espaço de alocação daquela função em outro
departamento. Quando focais e em certos níveis, pode-se pensar em próteses. É
*
O SÍTIO DA MENTE

fascinante, nesse sentido, todo o tipo de prótese e de adaptação que se faz hoje em
dia, de maneira mais ou menos efetiva: cf. por exemplo, sobre próteses visuais (olho
artificial - lembre-se de que o olho, na sua estrutura interna - a retina - já é uma parte
do cérebro, porque as células ali instaladas são neurônios) Toward the Artificial Eye,
número inteiro da revista IEEE Spectrum Maio 1996; cf. por exemplo, sobre controle
de computadores em lesados tetraplégicos, Lusted, H., Knapp, B "Controlling
Computers with Neural Signais" in Scientflc American. Outubro de 1996.
6. Nesse sentido, creio ser totalmente impossível existir uma ciência do
vivenciado biograficamente, senão pelas suas porções delimitantes, isto é, aquelas
coagidas por uma bacia dinâmica de significados possíveis. A reconstrução quase-
científica do dado biográfico somente é possível no espaço qualitativo em geral,
jamais no exame do caso isolado. Porém, é preciso se perguntar se a ciência também
não faz uso de certas aproximações para tratar os problemas concretos. Quase toda
generalização sob a forma de uma lei científica admite um grau de abstração e
idealização. Porém, distinguem-se a eficácia e a refutabilidade nesses casos que fazem
com que as abstrações da fisica possam ser corrigidas com bem mais eficiência que
as abstrações da psicologia, particularmente aquela que diz respeito ao indivíduo
isolado e histórico. Ao contrário de inserir um relativismo e uma impossibilidade de
uma ciência do vivenciado, é preciso estar atento à possibilidade de que esse vivenciado
seja um barroquismo da circunstância. Afinal, ainda que com cores diferentes, as
formas funcionais e disfuncionais seguem um mesmo grande eixo de coação científica
legiforme.
7. De uma certa maneira o que se está dizendo é que o departamento virtual, no
caso da mente, tem o mesmo estatuto dos termos teóricos na ciência e na teoria do
conhecimento. O termo gene é não-observável, viabilizando-se sua verificação e
testabilidade através de uma série de critérios operacionais. Porém, jamais se pode
reduzir o termo concreto aos princípios operacionais e às sentenças empíricas que
descrevem o processo de observação e verificação das sentenças em que ocorre o
termo teórico. Embora o Positivismo Lógico e, particularmente Rudolf Carnap,
tenham tentado eliminar os termos teóricos no início do século, purgando a ciência
de qualquer metafisica (aqui entendida apenas como alusão a termos não-empíricos),
o projeto não logrou êxito, presenciando-se já nos anos posteriores uma revitalização
da metafisica e de seu papel na estrutra das teorias científicas. O mental seria uma
forma de termo teórico, nesse sentido, que paradoxalmente seria acessível de imediato
ao sujeito. Porém, esse sujeito seria também uma construção teórica que nos
remeteria à única instância empírica real, o vivenciado, e a uma estrutura racional
prévia - o conjunto de soluções atratoras dinâmicas que o cérebro admite. Cf. a
respeito do Positivismo Lógico, Weiberg, J. (1950) Introduzione ai Positivismo
Logico. Giulio Einaudi editore. C£ sobre a revitalização da metafisica na estrutura
das teoria científicas, Sellars, W. (1968) reimpresso em (1986) Science and
Methaphysics: Variations on Kantian Themes. Londres: Routledge and Kegan Paul.
Cf. a respeito de dinâmica de teorias do ponto de vista da sociologia da ciência,
Kuhn, T. (1982) A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Ed. Perspectiva.
NOTAS

8. Cf. a esse respeito, embora tese bastante atacável, Swerdlow, N., Koob, G.
(1987) "Dopamine, Schizophrenia, Mania, and Depression: Toward a Unified
Hypothesis of Cortico-striato-pallido-thalamic Function". The Behavioral and Brain
Sciences 10, 197-245.
9. Cf. trabalho extremiimente interessante sobre ansiedade, embora, como o
anterior, passível de várias críticas, Gray, J.(1982) "Précis of the neuropsychology of
anxiety: as enquiiy into the functions ofthe septo-hippocampal system". TheBehavioral
and Brain Sciences 5, 469-534.
10. Cuidado porque essas terapias são chamadas nos dias de hoje de "terapia
cognitiva", embora não haja correlato direto de seus métodos com a malha conceitual
aqui apresentada como ciência cognitiva. Pode-se dizer, de maneira mais ou menos
geral, que a ciência cognitiva é muito mais condizente com terapias de base
hermenêutica (fortemente calcadas na possibilidade de associações anômalas de
significado pela natureza dinâmica de sua formação no contexto do processamento
cerebral), embora sem negar a validade de técnicas de dessensibilização de afecções
não-semânticas (comportamentais), as chamadas terapias cognitivas, sucedâneos
mais ou menos específicos das terapias comportamentais de inspiração behaviorista
e que, como o behaviorismo, não captam senão uma parte do processo de ligação
das entradas e saídas do sistema. Ainda que se pudesse dizer que estão tentando
modificar "esquemas" internos, conceito caro a uma ciência cognitiva de inspiração
na inteligência artificial simbólica, vale lembrar que a teoria dos esquemas não
supõe penetração consciente, manipulação voluntária e simples descondicionamento
por reforço de novas ligações. Como há significados dinâmicos por trás de grande
parte deles, creio, embora sem desacreditar de sua eficácia, que essas terapias são,
como os atuais critérios diagnósticos (DSM IV), relativamente simplistas do ponto
de vista da articulação teórica que as embasa, tanto do ponto de vista da estrutura
das teorias, quanto da visão de sistema nervoso que propõem. Cf. a respeito de
terapia cognitiva: Dobson, K. (ed) (1988) Handbook of Cognitive-Behavioral
Therapies. Nova Iorque: The Guilford Press.

CA 16: PA TOL OGIAS DA VONTADE

1. Cf a esse respeito Gênesis 1-5 pp. 33-40 Bíblia de Jerusalém. Edições


Paulinas.
2. Cf. a esse respeito, por exemplo, Passingham, R. (1993) The Frontal Lobes
and Voluntary Action. Oxford: Oxford University Press. Cf. a respeito da relação
entre lobo frontal (particularmente córtex pré-frontal) e origem comum das psicoses:
Müller, H. (1985) "Prefrontal Cortex Dysfunction as a Common Factor in Psychoses".
Acta Psychiatrica Scandinava 71: 431-440.
3. O fluxo sanguíneo, medido através de um PET scan, é frontal enquanto o
sujeito está aprendendo. À medida que vai adquirindo destreza, o fluxo sanguíneo
vai migrando para as áreas cerebrais posteriores. Esse seria um excelente critério de
contraste para um experimento em que se testassem, de um lado as bifurcações no
O SITIO DA MENTE

piano dos sinais e, de outro, a frontalização do fluxo (modo voluntário) e sua posterior
cerebelização (modo automático) Cf. a respeito do trabalho com PET scan: Posner, M.
"Seeing the Mmd" in Science, vol. 262, 1993 (pp. 673-674).
4. Já falamos, em outra nota, sobre token-reduction e type-reduction (Cf. a esse
respeito a nota 6 do capítulo 2). A impossibilidade de fazer uma tradução radical do
vocabulário mental em vocabulário cerebral (caso da redução de termos) ou de fazer
uma redução de teorias mentais a teorias cerebrais (caso da redução de teorias) gera
problemas terríveis: por um lado, aceita-se que o dualismo de essência é falso, mas por
outro lado tem-se que aceitar que há uma classificação cruzada entre as séries de
predicados - os mentais e os cerebrais (cross-classflcation). A escola que aceita
preferencialmente a hipótese de token -reduction é a da inteligência artificial simbólica.
Como o software também está dissociado do hardware, tendo suas próprias leis, então
nada mais normal que imaginar a mente também emergindo do cérebro. Cada fato
mental seria um fato cerebral, mas não haveria equivalência de tipos ou categorias
mentais e cerebrais, ou de leis mentais e cerebrais. Esse dualismo de predicados é
perigoso porque reinsere a idéia de que algo não se explica no nível inferior. A vontade
emergente seria, assim, tão não-cerebral quanto a vontade espírito. Por outro lado, é
fato que não há possibilidade de empreender uma redução genuína e radical, fato que
está apontado em Jerry Fodor no 10 capítulo de seu The Language of Thought. O
argumento é tão irrebativel que um dos melhores artigos sobre redução não consegue
propor solução para o problema da impossibilidade de redução do mental ao fisico.
(Cf. Hooker, C. 1981. "Towards a General Theory ofReduction" in Dialogue vol.XX,
1-3).Tem-se, então, duas soluções para o problema: ou se aceita que o mental emerge
e com ele a vontade, impondo limitações de contorno à sua operação, pelo fato de ser
implementado pelo cérebro (o que não garante que outros meios fisicos tivessem essas
mesmas limitações), ou, pelo menos no que diz respeito à vontade, considera-se o
truque: a vontade é uma vivência que se agrega a um modo de controle da esfera
superior cerebral (responsável pelo processamento mental) sobre a esfera cerebral
inferior. A vontade não seria, assim, um ente, mas uma vivência agregada ao controle
e à possibilidade de inibição ou ratificação de planos motores e sensoriais gerados
abaixo da consciência.

Gil? 17: ATENÇÃO

1. Devo algumas dessas idéias a uma conferência de Miguel Nicolelis.


2. Cf. Pascal, Blaise em Os Pensadores, Editora Abril , p. 113 Artigo IV- A
justiça e razão dos efeitos- parágrafo 298: "Justiça, força - E justo que o que é justo
seja seguido. É necessário que o que é mais forte seja seguido. Ajustiça sem a força
é impotente; a força sem a justiça é tirânica. A justiça sem a força será contestada,
porque há sempre maus; a força sem a justiça será acusada. E preciso, pois, reunir a
justiça e a força; e, dessa forma, fazer com que o que éjusto seja forte, e o que é forte
seja justo. Ajustiça é sujeita a disputas: a força é muito reconhecível, e sem disputa.
Assim, não se pôde dar a força à justiça, porque a força contradisse ajustiça, dizendo
NOTAS

que esta era injusta, e que ela é que era justa; e, assim, não podendo fazer com que o
que é justo fosse forte, fez-se com que o que é forte fosse justo".
3. Cf. a respeito das bases cerebrais da dislexia e da leitura de modo geral:
Galburda, Albert (ed) (1989) From Reading to Neurons. MIT Press.

CAP18: LINGUAGEM

1. Sobre o surgimento de linguagem no cérebro humano, cf. 1) Lieberman, P.


(1984): The Biology ofEvolution and Language. Cambridge: Harvard Umversity Press;
2) Pinker, S. (1994) The Language Instinct. Nova lorque: W. Morrow and Co. Sobre
a comparação entre humanos e não-humanos em relação à linguagem, cf. Evans, C. e
Marler, P. "Language and Animal Commurncation: Parallels and Contrasts" in Roitblat,
H. e Meyer, J. (ed) (1995) Comparative Approaches to Cognitive Science. MIT Press
(pp. 341-382).
2. Sobre semiótica cf. Eco, U. (1976) A Theory ofSemiotics. Bloomington:
Indiana University Press. Para as fontes, cf. a obra monumental de Charles Sanders
Peirce: Collected Papers of Charles Sanders Peirceeditados por Charles Hartshorne e
Paul Weiss. Textos escolhidos podem ser encontrados em Peirce, C.(1984) Semiótica
e Filosofia. São Paulo: Editora Cultrix.
3. O problema do conhecimento e da geração de significados por inspeção direta
(knowledge by acquaintance) é extremamente complexo. De uma certa maneira,
sabemos que aprendemos inicialmente por referência a objetos que nos são apontados.
"Isto é uma cadeira" teria a propriedade de iniciar o falante no conjunto de categorias
ou conceitos subsumidos por "cadeira". Porém, há uma série de fatos lingilistícos que
não podem ser explicados pela gênese da experiência direta através de ostensão. A tese
de que todos os significados pudessem ter sua gênese inicial na sensorialidade e na
ostensão é empirista. "Nada está no intelecto sem que antes tenha estado nos sentidos"
é a máxima dessa corrente, embora se tenha agregado, porteriormente, com o
racionalismo, "salvo pelo próprio intelecto". Os feixes de idéias de David Hume que
surgiriam a partir da sensorialidade não são capazes de explicar o todo do pensamento
e da linguagem. A tese dos empiristas é exatamente a via inversa do Positivismo Lógico
de Rudolf Carnap que tentou purgar a ciência dos termos teóricos, tranduzindo-os
radicalmente a termos empíricos, sensoriais ou observacionais. A designação de um
objeto por ostensão não é capaz de capturar-lhe nuanças que carecem de uma estrutura
inata e apriorista (que na minha opinião é o cérebro humano), para que possam ser
corretamente manipulados pela linguagem. C£ a respeito Quine, W. (1960) Word and
Object. MIT Press. Cf. ainda a respeito de filosofia da linguagem, o excelente livro de
Alston, P. (1977) Filosofia da Linguagem. Rio de Janeiro: Zahar Editores. C£ ainda a
respeito do debate sobre apriorismo e empirismo na linguagem, Palmarini, M. (org.)
(1979) Théories du langage, Théories de l'apprentissage: Le débat entre Jean Piaget e
Noam Chomsky. Paris: Ed. du Seuil.
4. A existência de uma teoria mental intuitiva (folk-psychology) não
explicitamente escrita, mas subjacente à vida cotidiana, é fato aceito por praticamente
O SÍTIO DA MENTE

toda a comunidade científica e filosófica que estuda cérebro e mente. Cuidado, porque
essa teoria, embora intuitiva, não garante qualquer relação com realidade e verdade. A
intencionalidade, numa determinada interpretação, é o elemento central da teoria
intuitiva: construímos explicações sobre o comportamento dos outros com base nos
operadores intencionais ("Fulano fez isso porque crê naquilo outro"). A não-garantia
de verdade na teoria intuitiva advém de uma série de limitações. Entre elas, pode-se
citar o caso da fisica clássica. Alexandre Koyré mostra que a fisica intuitiva é a fisica
do ímpeto, grega e antropomórfica (a pedra se move porque transfiro para ela, com o
impulso, o desejo do movimento), e não a física heliocêntrica de Galileu e Newton. O
fato de supormos que a física clássica seja intuitiva advém da educação precoce -
contra-intuitiva - a que somos submetidos desde a infância, quando, olhando para o
céu, julgamos que a Terra está parada. Ora, se a teoria intuitiva erraria no caso da física
clássica, trocando-a pela física antiga, o erro ainda persiste em se tratando da mente. A
psicologia intuitiva, no que concerne à mente, persiste situando-a como fenômeno
não-fisico, capaz de ter crenças e vontade, etc. Esses últimos são apenas qualificações
lingüísticas para atos e disposições de um corpo físico - o cérebro humano. Cf. a
respeito de teoria física intuitiva e clássica Koyré, A. (1973) Etudes d'histoire de Ia
pensée scientifique. Paris Gailimard (pp. 167-228). C£ a respeito defolk-psychology,
Stich, S. (1983) From Folk Psychology to Cognitive Science: the case against belief
MIT Press.
5. O leitor deverá tomar cuidado, porque todas as considerações acerca da
linguagem estão aqui circunscritas ao indivíduo que usa a linguagem com o fim de
comunicar idéias e situações. Todos os seus usos poéticos e metafóricos, desde que
explicitamente convencionados como tais, estão de fora desta análise. De modo geral
há uma corrente que postula que há uma relação entre poesia, literatura, fantasia e
doença mental. Creio que há planos tão diversos em jogo, que isto se presta apenas a
confundir e relativizar uma situação tão grave.
6. A noção de pragmaticamente verdadeira ou falsa é uma maneira de tratar a
verdade, em que a verdade última ou essencial não existe, mas apenas aproximações
momentâneas dela. Deve-se a James e Peirce, entre outros. Há outras teorias da verdade,
como a da verdade essencial e a da verdade formal. Cf. Kirkham, R. (1992) Theories
ofTruth. MIT Press.
7. C£ a respeito de afasia e dislexia: Galaburda, A. (ed) (1989) From Reading to
Neurons. MIT Press. Cf. ainda, especificamente sobre dislexia, Eden, G., et. ai.
"Abnormal Processing of Visual Motion in Dyslexia Revealed by Functional Brain
Imaging" in Nature vol 382, 1996, (pp. 66-69).

CAR 19: PERCEPÇÃO E AÇÃO

1. Gunderson, K. (1972) "Content and Consciousness and Mind-Body Problem"


in The Journal ofPhilosophy vol.LX[X, number 18
2. A idéia de que haja uma inteligibilidade mental não acessível imediatamente
à consciência, associada à assimetria dos sujeitos da comunicação é o que garante,
NOTAS

ainda que dentro de certos limites, eficácia às chamadas psicoterapias de base


hermenêutica (interpretação/decodificação + enriquecimento de conexões analógicas
no encaminhamento da compreensão de conceitos e solução de problemas).
3.A diferença entre compreensão e explicação é fundamental aqui. Compreender
significa estabelecer uma relação de semelhança e empatia. Explicar significa
estabelecer uma rede conceitual capaz de prever e refutar certos desdobramentos do
elemento explicado. Pode-se compreender o relato de alguém que diz sentir medo de
morrer, porque temos uma mente que também é capaz de sentir algo semelhante. Não
se pode compreender a trajetória de uma pedra que cai pela força da gravidade; pode-
se explicá-la. A diferença entre compreender e explicar está na base de uma divisão
aparentemente irreconciliável entre a mente e o cérebro, ou entre a cultura e a natureza.
Cf. a respeito von Wright, G. (1980) Expiicación y Comprensión. Madri: Alianza
Editorial.
4. Cf. a respeito das funções cognitivas do cerebelo 1) Barinaga, M.: "The
Cerebeilum: Movement Coordinator or much more?" in Science vol 272, 1996, (pp.
482-483). 2) Ito, M.: "How Does the Cerebeilum Facilitate Thought7' in Ono, T. et. ai.
(ed) (1993) Brain Mechanisms ofPerception and Memory: from neuron to behavior.
Oxford University Press (pp.65 1-65 8).
5. Imagine o discurso, proferido por um político mentiroso: "Eu quero o seu
bem." É falso porque infringe a ação. Da mesma forma "Eu posso ou quero ir a Marte".
Grande parte do discurso do poder e da religião ( não no tocante a uma fé sem objeto,
mas a uma série de promessas irrealizáveis) é pseudodiscurso, porque cheio de
proposições fhlsas.

CAP.20: MEMÓRIA

1. O leitor poderá voltar aos primeiros capítulos e lembrar-se de que falei que o
potencial de ação é de tamanho fixo. Isso é verdade, mas com estimulação repetida
pode haver geração de uma potencialização de longo termo (LTP-iong term
potentiation) que pode ter amplitude maior que os outros. Este evento, para muitos,
está associado à consolidação da memória, embora seja matéria sujeita a debate se a
potenciação altera a amplitude ou apenas a força da conexão sináptica. (Agradeço a
William Powel por correção a esse respeito, bem como a respeito de erro sobre circuito
de processamento visual).
2. Há alguns anos esteve em moda uma série de hipóteses sobre "substâncias"
de memória. Isto é, a memória seria uma proteína ou um cristal, etc. Cuidado, porque
talvez aqui haja o mesmo equívoco de um recente artigo que declarava existir relação
entre o pH (medida de acidez de uma substância) e a inteligência. Pesquisadores
teriam achado uma relação significativa entre nível de acidez e inteligência. Pode
haver, mas seria a mesma coisa que dizer que porque há sempre bombeiros em lugares
que pegam fogo os bombeiros são causa de incêndios. Ora, a presença de certas
substâncias, proteínas, cristais, para a memória - bem como a alteração de pH
na inteligência - são todos fatos que poderiam fazer parte de uma imensa oiquesração em
O SÍTIO DA MENTE

que o produto final é inteligência, a memória ou qualquer outra função mental. A base
do processo (e não o modo íntimo do procedimento) é uma alteração estrutural na
conexão. Se isso altera pH ou se gera proteínas, é outro problema. Comentários como
o do pH são "erros básicos que merecem comentários ácidos".
3. Mesmo no caso das áreas sensoriais primárias há mapas de representação,
mas estes mapas se deslocam de lugar com o tempo (donde até as representações mais
básicas no cérebro têm uma codificação no tempo e não somente no espaço). Na nossa
figura de explicação, mesmo nestes casos há um departamento concreto do tipo Torre
de Pisa, que se move lentamente com o tempo! Isso faz com que seja perda de tempo
procurar por local ou departamento fixo, até mesmo no caso das projeções sensoriais
mais básicas - p.ex. detecção de fatos ambientais.

CAP. 21: PERSONALIDADE

1. O método de purificação de característica genética lança mão de um artificio que


seria impossível em humanos. Fazem-se determinados cruzamentos de purificação e, ao
longo de algumas gerações, vão-se obtendo linhagens genéticas puras. O mesmo que se faz
para estudar qualquer fenômeno hereditário.
2.Cf. Barondes,S. (1993) Molecules and Mental ilness. Scientiflc American Libraiy
(pg.41).
3.Uma afirmação conservadora diria que pelo menos 25% da herança são seguramente
devidos à genética. Nesse caso os outros 75% seriam devido ao meio. Dá para entender,
então, como o problema da personalidade é complexo, uma vez que fatores de 25% são
bastante grandes. Mais ainda, não sabemos se há linearidade nos 25% primeiros e nos 75%
restantes. Costumo dizer que, se a personalidade é uma edificação, esses 25% devem ser os
alicerces. É impossível construir um viaduto com os alicerces (estrutura) de um prédio de 20
andares. Essa consideração pode ser fundamental para todos aqueles que costumam proclamar
sandices estatísticas sem compreender certas limitações que esses métodos carregam.
4. Cf. Yeh,S.; Fricke,R. e Edwards,D (1996) 'The Effect of Social Experience on
Serotonergic Modulation on the Escape Circuit of Crayflsh" in Science vol 271 p. 366
5.DSM é sigla de Manual Estatístico Diagnóstico para doenças mentais que pretende
uniformizar os procedimentos diagnósticos para esses transtornos. Embora louvável, e de
muita valia para muitas situações, carece de embasamento no que diz respeito ao panorama
teórico.
6.Quem supõe que esses exemplos são absurdos ejocosos em excesso não avalia o papel
da moda, do meio e da propaganda na foija de grande parte dos chamados elementos acessórios
da personalidade.
7. Sobre personalidade, para algumas considerações sobre classificação e psicopatologia,
cf 1) Schneider, K. (1978) Psicopatologia Clínica São Paulo: &L Mestre Jou. 2) Cooper, A.,
Frances A, Sacks M (ed) (1986) lhe PeonaiityDiso,tiery and Neuroses. Nova Iorque: Basic
Books. Essas referências são fundamentais para que se conheçam os outros tipos de distúrbio de
personalidade que não foram tratados no capítulo. (A teoria de personalidade dos três eixos -
ação, sensação e valor - tem por objetivo apenas testar aspectos da teoria geral sobre a mente.)
NOTAS

C4P 22:0 SONHO COMO FUNÇÃO

1.É muito importante que fique absolutamente claro este aspecto. Há dois modos
de ver a importância do sonho: um é o das teorias psicanalíticas que pretendem ver no
sonho material que retrata profundezas do inconsciente, material reprimido, etc.; outra
é apenas ligada ao fato de que o sonho é um estado degradado de consciência, mas que
tem uma série de dados que nos podem ajudar a elucidar suas formas e funções. É
assim um poderoso instrumento para entender funções mentais e sua relação com o
cérebro. Mais ainda, na redução sindrômica o sonho é um dos 4 grandes tipos a serem
reduzidos a uma dinâmica cerebral. Sonhos e psicoses seriam formas caóticas,
resultantes de uma cascata de bifurcações (a bifurcação isolada é condição para o
chaveamento da informação do modo automático para o voluntário-consciente). O
sonho seria uma forma bastante instável de caos, enquanto que a psicose exibiria uma
forma robusta.
2. O leitor não deve se espantar com essa hipótese. Alguns dos maiores
neurobiólogos da atualidade, entre eles Rodolfo Llinás, a defendem com bastante
consistência. Cf. por exemplo 1) Llinás, R., Paré, D. "Commentary of Dreaming and
Wakefulness" in Neuroscience vol. 44, No 3, (pp. 52 1-535), 1991. 2) Winson, J. "The
Meanmg of Dreams" in Scienfic American novembro de 1990 (pp. 42-48). 3) Crick,
F., Mitchison, G. "The function of Dream Sleep" in Nature vol. 304, 1983, (pp.11l -
114). Uma das máximas de Llinás é de que o sonho é a consciência sem a correção dos
sentidos. A consciência seria um sistema autônomo que se utiliza do meio apenas
como fator de correção para suas "hipóteses corticais". "O cérebro tem um ponto de
vista", diz Llinás.
3. Para aqueles que têm um pouco mais de familiaridade com certos sistemas
complexos, particularmente em física, pode-se arriscar dizendo que o sonho é
consciência conservativa ou autônoma e a vigília é consciência forçada ou dissipativa.
4. Alguns trabalhos interessantes a esse respeito têm sido feitos no laboratório
de Cesar Timo-laria. Cf. Timo-laria, C. e Valle, A. (1995) "On the fimctional role of
consciousness" in Ciência e Cultura, vol. 47 (4).
5. Há interessantes trabalhos sobre redes neurais que "sonham". A função seria
retificar bacias de atração adquiridas durante a fase de aprendizado. Com isso, seriam
eliminadas as memórias espúrias. Levado aos extremos, o processo (unlearning
algorithms) removeria todas as memórias. Não quero dizer com isso que o sonho pudesse
eliminar a memória, mas é interessante tópico para o estudo de sua função e das disfunções
análogas. Cf. a respeito de sonhos em redes neurais, ou algoritmos de remoção de
memórias espúrias, Hopfleld, J., Feinstein, D., Palmer, R. "Unlearning has a Stabilizing
Effect in Collective Memories" in Nature vol. 304, 1983, pp. 158-159.

C4P 23: CONSCIÊNCIA: CONTEÚDO, VIVÊNCIA E FUNÇÃO

1. Não vou me preocupar em explicar, mesmo porque seria também uma


hipótese, como é possível que haja eventos e sincronizações em t, t+1 e t+2. Na
O SÍTIO DA MENTE

verdade, o problema da sincronização é também uma aproximação, porque há um


misto de codificação no tempo e codificação analógica no espaço contíguo.
2. Cuidado, porque a noção de consciência coletiva e de sincronização sem
cérebros por trás é alegórica. Serve para unificar o discurso das ciências naturais e das
ciências humanas, mas deve despertar atenção para a imensa gama de besteiras que
pode endossar. Deve-se usar este conceito com cuidado e com a mais estrita observação
dos cânones de consistência do discurso científico. Do contrário, poderá suscitar
conclusão que ouvi certa vez a respeito: "Até que enfim o senhor disse que a ciência
concorda com o meu massagista e professor de ioga".
C4P 24: SUCESSO, EXCLUSÃO E SOBREVIVÊNCIA

1.Essa relação de encefalização progressiva segue uma dinâmica não-linear, o


que talvez explique porque pequenos acréscimos no plano quantitativo geram
comportamento qualitativo dramaticamente diferente. Afinal nosso cérebro não é tão
maior que o do macaco e produz fatos mentais de uma sofisticação impensável no
parente próximo. Cf. Finlay, B. e Darlington,R. op. cit. na nota 8 do capítulo 10.
2.Cf. a tese sobre os três estágios de evolução da mente humana em Donald,M.
(1991) Origins of the Modern Mmd: Three stages in the evolution of culture and
cognition. Harvard University Press.
3. Interessante porque se a peste, antes infecção, excluía, agora é toda a
parafernália moderna que gera seus similares patológicos. Não por acaso, as doenças
da modernidade vão emprestar nomes daquilo que antes foi obra das agressões
biológicas. Talvez não haja tanta impropriedade em se chamar de vírus um programa
que adultera outros. Para uma mente, entendida como código evanescente, não importa
o meio fisico de sustentação do agressor, mas sim sua inteligibilidade destrutiva.
4. Essa lógica do mercado é paráfrase de um verificacionismo que se mostrou
falacioso em lógica da ciência. Se digo que A (por exemplo uma teoria) implica B (por
exemplo um produto dela); se B é verdadeiro, então A é verdadeiro, cometo o que se
conhece como "falácia de afirmação do conseqüente". Faz tempo sabemos que a boa
ciência se faz pela cadeia A implica B, não B (ou B é falso), logo não A (A é falso). Isso
se chama refutacionismo. Cf. Popper, K. (1972) A Lógica da Descoberta Científica.
São Paulo: Editora Cultrix
5. C£ o excelente trabalho sobre desnutrição, apontando para um número de 195
milhões de crianças desnutridas no mundo e suas afecções intelectuais (como digo, ideologia
e neurociência também podem se confundir) Brown, J. e Pollitt, E. "Mainutrition, Poverty
and Intellectual Development" in Scientiftc American Fev. 1996, pp. 26-31

CAR 25: MERCADO, PODER CENTRAL E CÉREBRO HUMANO

1. Cf. Prigogine, 1. (1984) Order Out ofChaos.N.I.: Bantam Books.


2. Cf. Shannon,C. and Weaver,W. (1963) The Mathematical Theory of
Communication. University of Illinois Press.
NOTAS

3. O leitor que não entendeu a noção de estabilidade ou não de um estado deve


pensar no caso de certos fenômenos que ocorrem quando se está pegando no sono ou
se está acordando. Por um lapso de segundo temos, às vezes, nessas situações fenômenos
de alucinação, sensações estranhas, paralisias, medos horríveis, fantasmagorias, etc.
Duram frações de segundo, quando então percebemos que estávamos ainda "meio
sonhando". Esses são os chamados estados anômalos não estáveis porque duram
pouquíssimo tempo. Uma depressão, um quadro ansioso, uma psicose são estados
também provenientes de auto-organização do sistema, mas que exibem uma estabilidade
que dura muito tempo, podendo até durar para sempre, em não se tomando as medidas
cabíveis.
4. Em recente trabalho, desses voltados para organização de empresas, um bem-
sucedido americano prescreve: "Se quiser um amigo, arrume um cachorro ... eu , por
exemplo, tenho dois.". Lamento não fornecer a fonte porque não me prestei a recortar
tal artigo, nem a comprar seu livro.

CAP.26: QUANDO A CULTURA SITIA A MENTE

1.Sobre genes egoístas leia Dawkin, R. (1979) O gene egoísta. Editora Itatiaia e
Edusp. Sobre moralidade em animais, particularmente em macacos, leia de Waal (1996)
GoodNatured: The Origins ofRight and Wrong in Humans and OtherAnimals .Harvard
University Press.
2. Essa formulação é semelhante à proposta por Laplace quando diz que, se
tivesse a posição e a velocidade de todos os corpos do universo, faria qualquer previsão.
Isso ficou conhecido como o "céu de Laplace" porque não há condição de conhecer
todas essas posições e velocidades. Laplace errava em três vertentes ao dizer isso: a
primeira, é que posteriormente descobriu-se que, mesmo em sistemas detenninísticos
estritos como o da época, haveria para certas situações imprevisibilidade (isto é o
chamado caos determinístico); o segundo erro, é que a noção de determinismo causal
evoluiu em fisica clássica para outras modalidades de causa e de fenômenos emergentes
(isto já está descrito em J. S. Mill); o terceiro erro, está ligado à possibilidade de existir
acaso genuíno (e não apenas desconhecimento de todos os fatores) na natureza - esse
é o caso da mecânica quântica. Em todo caso, a paráfrase acima visa a provocar, uma
vez que, a despeito de propriedades emergentes de neurônios, poderíamos pensar que
conhecidos seus estados e locais (o que é tão impossível quanto o céu de Laplace),
poderíamos prever qualquer ato subseqüente daquele indivíduo.
3.Código Penal Brasileiro, art. 28, parágrafo 1°: "É isento de pena o agente que,
por embriaguez completa, proveniente de caso fortuito ou força maior, era, ao tempo
da ação ou da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de
determinar-se de acordo com esse entendimento." A meu ver, aqui está a idéia de que,
em havendo substância capaz de alterar o agente de forma tal que não possa agir
diferentemente, ou que não compreenda a natureza de seu ato, está afastada a pena.
Pois bem, a idéia de uma ausência de vontade, no caso do dolo, ou de compreensão, no
caso da ausência de consciência, constituiria isenção de culpa e de pena. Penso que o
O SíTIO DA MENTE

problema da discussão da base neuronal da vontade, como também a feita anteriormente


para a consciência, é vital para que se mantenha a noção de redução de pena e de
isenção da mesma.
4. Creio, de uma certa forma, que a noção de direito positivo caminha nessa
direção, uma vez que, se tenho uma relação de implicação entre o fato A e B (quando
para "se A, então B" tenho a chamada condição necessária, e para "se B, então A"
tenho a chamada condição suficiente), pode-se construir uma relação lógica tal que o
que está proibido é apenas que o antecedente seja verdadeiro e o conseqüente falso
(podendo haver antecedente falso e conseqüente verdadeiro, bem como ambos
verdadeiros e ambos falsos). Não haveria imputação sem crime, porém pode se construir
algo tal que, de um antecedente falso, se tenha um conseqüente verdadeiro, isto é,
pode-se pensar que, em não havendo vontade, ainda assim pode, em havendo crime,
haver sanção. Ou, dito de outra forma, creio que a noção de imputação de que se
utilizam os juristas positivistas (Cf. Hans Kelsen Teoria Pura do Direito. Martins Fontes)
é parente da lógica que, organizando relações de antecedente e conseqüente, possibilita
que se possa ter conseqüente verdadeiro a partir de antecedente falso. Essa manipulação
de conceitos visa apenas a mostrar que a idéia de uma norma positiva é absolutamente
aceitável, embora as derivações que se fazem a partir dela - instâncias processuais e
também avaliação de mérito -, bem como a escolha dessas normas positivas (no caso
supremo a constituição) devam ser guiadas por alguns conceitos de moderna teoria
cerebral e de constituição do sujeito. Não posso imaginar um direito ilhado numa
norma posta antiquada e muito menos sujeito ao caráter de "positivo" de uma lei que
tramita no Congresso visando a fechar os hospitais psiquiátricos.
5. Cf. Libet, B et. ai. "Time ofConscious Intention to Act in Relation to Onset of
Cerebral Activity (readiness-potential). The Unconscious Initiation of a Freely
Voluntary Act" in Brain 106 (1983). Quanto a minha idéia anterior de que a liberdade
e a vontade não passavam de uma ilusão com finalidade adaptativa (fortemente
influencida pela consistência ainda irrefutável do artigo citado acima), cf. Dei Nero,H.
(1992) "O problema da mente na ciência cognitiva" in Coleção Documentos MA-USP
O leitor deverá, no entanto, prestar atenção que justamente a teoria da vontade que
proponho é compatível com esse achado neurológico. A planificação seria não-
voluntária e não-consciente. A ratificação e a inibição da ação planejada, ou presumida
como prefiro chamar, seriam funções da consciência, seguidas de uma forte sensação
de controle.
6. De modo geral o livro de Fukuyama defende uma idéia de vitória das idéias
liberais sobre qualquer outra forma de organização do estado e da produção. Após a
queda do muro de Berlim e do império soviético, os liberais crêem que a história,
enquanto dialética e antagonismo, terminou. O liberalismo triunfou. O socialismo,
qualquer, é letra morta. Não percebem alguns desses que o próprio capitalismo
vem mudando pela pressão de idéias socialistas. Isto é, não se pode falar de um mesmo
capitalismo quando se comparam a Inglaterra de século XIX, o "welfare-state" e as
sociais-democracias européias de hoje em dia. Cf. Francis Fukuyama (1992) The End
ofHistory and The Last Man. Free Press. Sobre o novo sentido do binômio direita-
NOTAS

esquerda, cf. Norberto Bobbio (1995) Direita e Esquerda: razões e significados de


uma distinção política. Editora Unesp. Para uma crítica severa da concepção de vitória
do neoliberalismos sobre outras formas de organização, cf. Robert Kurz (1992) O
Colapso da Modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia
mundial. Editora Paz e Terra.
7. Consenso de Washington é documento contendo prescrições neoliberais para
políticas de ajuste em países que queiram se inserir na economia global. Nas suas
primeiras versões faz apelo essencialmente monetarista, redução de gastos públicos,
privatizações rápidas, economia de mercado com livre concorrência, etc. Em suas
versões posteriores já inicia a inclusão da ênfase na educação e no aspecto social como
fatores também importantes.
8.Parece haver confusão simples entre contrário e contraditório. Contrário poderia
dar a idéia de estabelecer equilíbrio entre os opostos. Contraditório alude a inconsistente.
Pelo menos em lógica, é o que os termos querem dizer. Não creio que seja tão acidental a
confusão entre o direito de defesa que estabelece o contrário possibilitando a decisão pelo
equilíbrio, e o processo de criação de argumentos inconsistentes, contraditórios, que visa
somente a embaralhar a mente do julgador e caricaturizar a idéia da justiça e do direito.
No direito, a idéia de contraditório seria apenas a de contradizer, mas o uso livre de que
lanço mão acima visa apenas a aclarar e discernir o que chamaria de bom processo,
distinguindo-o do que chamaria de mau ou pseudoprocesso (como procurei distinguir
o bom e o mau discurso).
9. Cf: John Dewey (195 1) The influence ofDarwinism on Philosophy. Peter
Smith, e também a obra citada em outro ponto de Frans de Waal (1996) sobre a ética
nos animais.
10.Relatório de organismo internacional mostra que, medido o grau de confiança
no semelhante e nível de riqueza, pode-se estabelecer relação linear: quer dizer, quanto
mais se confia mais rápido é o contrato e o cumprimento, retirando intermediários
legais excessivos e hesitações atemorizadas contrárias ao espírito do empreendedor.
11.Algumas experiências em escolas primárias americanas, mobilizando crianças,
famílias e comunidadades para padrões éticos básicos têm diminuído sensivelmente a
violência e a repetência.

C4P 27: A MENTE EDUCADA

1. Cf. 1) Lickona, T. (1991) Educating for Character: how our schools can
teach respect and responsibiliiy. Bantam Books. 2) Bruer, J. (1995) Schoolsfor Thought.
MIT Press. 3) McGilly, K. (ed) 1995 Classroom Lessons: integrating Cognitive Theory
and classroom practice. MIT Press. 4) Hirsch, E. (1996) The Schools we Need: why
we don 'thave them. Doubleday. 5)Bruer, J. (1996) The Culture ofEducation. Harvard
Umversity Press. 6) Wilson, K., Daviss, B. (1994) RedesigningEducation. Henry Holt
and Co.
2. Quando se falar de Internet há que distinguir dois usos diversos: as páginas
(home page) da chamada WEB que dispõem de imagens, som, textos, em suma, dos
O SITIO DA MENTE

chamados recursos de multimídia (tal fosse um CD ROM) e o correio eletrônico


(electronic mail ou abreviadamente e.mail), que é usado para trocar velozes mensagens
a custo praticamente zero, e também para realizar conferências com outras pessoas em
qualquer parte por preço insignificante. A importância da Internet é inegável, embora
seu potencial de mau uso seja enorme. C£ um interessante artigo a esse respeito Huang,
M., Alessi, N. "The Internet and the Future of Psychiatry" in Ámerican Journal of
Psychiatry 153:7, 1996, (pp. 861-869).
3. Expressão francesa antiga que denota o indivíduo que detém uma infinidade
de informação pontual sem articulação entre elas, sem conhecimento genuíno.
4. Cf. C.Lasch (1995) The Revolt ofthe Elites and the Betrayal ofDemocracy.
Nova Iorque. W.W.Norton Co.
5. Segundo meu amigo Paulo Blinder, matemático e estudante de rabinato, essa
observação seria válida para todas as pessoas que não os judeus. Estes seriam, segundo
Maimonides em Mishnê Torá, Hiichot Melachim (cap. 9 e 10) os sete mandamentos
para os descendentes de Noé: 1. Proibição de adorar falsas divindades. 2. Blasfêmia. 3.
Assassinato. 4. Incesto e Adultério. 5. Roubo. 6. Comer carne de animais vivos (e
outras expressões de crueldade). 7. Obrigação de estabelecer leis e tribunais de justiça.
A campanha para a divulgação desse texto (Campanha Rebbe de Lubavitch), citado e
fornecido por Paulo Blinder, é de Rabbi Menachem Mendel Schneerson ZTK"L.
6.Confira a esse respeito um livro de sucesso nos EUA que já trata o cérebro não
mais pelo prisma de direito e esquerdo dos antigos manuais de ajuda empresarial;
agora são quatro as partes. Cuidado que com o tempo serão tantas que você terá de
treinar tiro ao alvo para mirar as idéias nos locais certos. Cf. Ned Herrmann (1996) The
whole Brain Business Book: unlocking the power of whoie brain thinking in
oganizations and individuais. McGraw Hill
7. Cf. Gilles Lipovetsky (1991) O Império do Efemero: a moda e seu destino nas
sociedades modernas. Companhia das Letras.

CONCLUSÃO

1. A citação é da tradução brasileira de Bertold Brecht (1991) Teatro Completo


vol. 6. Vida de Galileu. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra. Um comentário de meu bom
revisor e amigo Anderson Andrade Depizol complementa: "Quod nonfecerunt barbari,
fecerunt Barberini." (O que os bárbaros não fizeram, fizeram os Barberini.) Na época
em que Galileu foi julgado pela Inquisição, o papa também era um Barberini (Urbano
VIII).
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INDICE REMISSIVO

ÍNDICE REMISSIVO

Á
-a de Broca 309, 317
a priori, sintético e biologia, 482 de integração 27, 29,
abdução 160 de Wernicke 309, 317
ação consciente 327 motora 27
ação e motricidade, 32 1-338 sensorial 27
anomalias da percepção e motricidade Arendt, H. 367,451
335- 338, presumida x redescrita 427 argumento, válido 150, não-válido 150
acaso 132, 187-188, 197, 371 arterioesclerose 235
acetilcolina 71 assembléias de neurônios 82, 109, 263
afasias 317 assembier, linguagem 161,
afetivo modo 157 atenção, 122, 277, 295-305
afetividade, 249 e reflexão 304
disfunção afetiva 266-281, doença afetiva espontânea 225, 302
(cf.disfunção da afetividade, humor e emo- patologias da 301-304
ção) 269 interação afetiva em máquinas 266 sensorial 304
affordances, 464 voluntária 225, 302
álcool 281, 342 ato falho 162
alcoolismo 284 atrator, 179, 199, e significado 259
algoritmo, 158, não-algorítmico 186 atrito 197
genético 190 auto-referência 275
alimentares, distúrbios 127, 280-281 automático, atitude 120, controle 200
alucinação 335 autômatos celulares 194
Alzheimer, doença de 235 axioma, 370
amígdala 72 coletivo e personalidade social 369-374
amnésia 347 sistema axiomático 185
AMP cíclico, 459, e computação, 480 axônio 36
analógico, 42, 62, 68, 82, 92, 96, 109, 114,
127, 138, 143, 169, 252-253, 482 11
e formação da vida mental 263 Babbage,C. 154
e neurônios 157-158 bacia de atração (c£ também atrator)
anorexia 269, 280, 289 Barlow, H. 462
anorexígenos 281 Bak, P. 194
ansiedade 54, 56, 111, 127, 240, 243, 269, behaviorismo 155, 175, 322
278-281, 299, 485 Bentham, J. 483
ansiolíticos 56, 280 benzodiazepínicos (calmantes, ansiolíticos) 56
antidepressivos 54-55, 280 bibliotecas 119
antropologia 156, bifurcações, 182, 196-202, 231
e descriminação de cores, 482 cascata de 198
apetite, anomalias do 226, 280-28 1 e separação de modo voluntário e
aprendizado, 52, 86, 114, 132-134,136, automático 201
174-176, 251, 263, 284 binário, alfabeto 174
cérebro e ensino 303 brain mapping (mapeamento cerebral) 261
em redes neurais 170-171, Brecht, B. 468
área, Brentano, F. 467
O SITIO DA MENTE

bulbo 73 e córtex 298


bulimia 127, 269, 281, 289 consistência e verossimilhança 300-301
sonho e consciência 382
c cognição 157
caixa-preta 155 cognitivo, modo 156, terapia cognitiva 485
camada intermediária, (camada oculta) comissões
e redes neurais 89, 167 (cf. também comitês e
campo, teoria de 191, departamento virtual) 59, 263, 265
caos, 182, 196-197, 232 comitê,
rota para o 198 (cf também comissões
captura, e departamento virtual) 63, 66, 107,
faixa de em malhas de sincronismo 202 completude 159, 184-186,476
Carnap, R. 484 complexidade, 31, 75, 142
categorias (c£ conceitos) ação complexa 327
causalidade 192, 332 e ambiente complexo 162
cenários de ação 121 teoria da 232
censura, comportamento 155
e consciência 337, e sonho 380 compulsão 269, 288
ceticismo, 480 computação 92, 124, 148, 150
cerebelo 72-73, 326-327 e prova de teoremas matemáticos 156
modo automático 284 manipulação lógico-computacional 156
cérebro, fôrma 119 computador, e mente 102-104, 149, 353-354
chinês, quarto (J; Searle) argumento do,463 comunicação 310
chip 258 conativo, modo 157
Chomsky, N. 175 conceito, 133-134, 263, 349
Church,A. 151 concepção analógico-sincrônica
cibernética 193 (prototípica) 255-257, 483
ciência, 120, 141 concepção discreto-digital
cognitiva 153 (clássica) dos 255-257,483
cinergética 194 concentração, anomalias da 225
circuitos, 79 tálamo-cortical 96 condicionamento 15
Circulo de Viena 322 condições iniciais, 196
codificação, sensibilidade a 196
e neurônios 84, e mente 107-109 conectivo,
código, 83, 97, 143, 255, 331 ou 48, se...então 85, e 84, 97,
de barras 43, 47, 64, 76, 81, 109, 97-101, lógico e neurônios 85
105, 125, 342 conexão entre neurônios 85
de comunicação 307 conexionismo (cf. redes neurais e IAC)
de convocação 67, 258 confirmação de hipóteses 297-298
e consciência 332 conhecimento 125, 218-221, 283, 332
e memória 341 consciência, 111, 119,125,181,254
monismo dos códigos 332 coletiva 332
puro 140, 166 critica 75
temporal 92-96, 107 e direito 134
virtual 95 e sinais cerebrais 203
coerência, estado, processo e função 346
ÍNDICE REMISSIVO

ética 332 de poder e de grandeza 239, 277


imediata 144 de doença 275
infraconsciência 142 supraconsciência 142 catatímico 275
objetiva 148 percepção delirante 315
processos não-conscientes 125 deliróide, pensamento 275
sociologia, adequação e obediência 330 demência, 235, e afasia 317
teoria da 325-335, 387-392 dendritos 36, 87
Consenso de Washington 433 departamento concreto, 59-76
conteúdo 148 divisões no 70,
contextos, virtual e mente 63
opacos 138, complexos 147 depressão, 54, 57, 266, 269-273
controle, 193 ansiosa 272, depressões psicóticas 275
voluntário 200 leve crônica (cf. também distimia) 276
da ação e da percepção 288, descoberta 350
anomalia do controle do impulso 335 desemprego 400
corpo caloso 72, 229 desnutrição 492
corpo celular 36 despertar precoce ou insônia terminal 225
correio eletrônico (ou e.mail) 443 determinismo 187, 196
córtex, 72, 96, caótico (caos determinístico) 203
e atenção 295 dever ser e consciência 391-392
e região subcortical 296 dever social e ser natural 332
costumes 147 diagnóstico psiquiátrico e linguagem 256
crença 141 diencéfalo 72
criatividade 75, 114 digital, 42, 62, 68, 82, 92, 96, 114, 109, 119,
cnticalidade auto-organizada 194 127,138, 151, 157, 169,252
cultura 120, 137 e serial 167, e paralelo 167
cultural, objeto 139 dinâmica cerebral (cf. modelos cerebralistas)
dinâmica, lenta 196, rápida 196
D dipolo 456
da Costa, N. 478 direito 147
darwinismo neural 195 discreto-digital,
DCC (dinâmica cerebral clássica) 180, 183, concepção 164, 184
186-187, 189, sistemas e linguagem 165
DCQ (dinâmica cerebral quântica), 180, discurso, 300
184- 187, instrumentalista 478 hipótese-discurso 299
decisão, sobre a ação e sobre a percepção 330
tomada de decisão sob risco 262, disfunção mental, 130, 207-209, 257-259
teoria da 162, 230 (normativa) e sinapses alteradas 53-57, 77
teoria da 162 (descritiva) e caos 202
dedução 150,160 e eveiftos externos 208
delírio, 236, 266, 275 e ciência cognitiva 209
de culpa 239, 275 e verossimilhança 238
místico 238 e linguagem 313-314
de ruína 239, 275 dislexia 317-318
de ciúme 239, 275 distimia 269, 276
de falência dos órgãos 239 DOC doença obsessivo-compulsiva 281
O SiTIO DA MENTE

doença mental (c£ também patologia mental e estabilidade estrutural 198


disfunção mental) estados,
dolo, 291 estáveis x instáveis 414
qualificação jurídica e vontade cerebral 291 funcionais x disfuncionais 414
dopamina 71, 234, 335 estímulo-resposta 156
Dostoiévski, F. 239, 366 estresse 280
down-regulation, 459 estrutura de dados (data structures) 60,460
drogas-fármacos (remédios), 266, 274, 335 ethos,
escolha de 265 e alterações quantitativo- e hetero-organização 412-419
qualitativo-cerebrais 203, inteligentes, 460 ética, 249,424, 432-436, e biologia 217
drogas-tóxicos 281, 445-447 euforia, humor eufórico 278
DSM IV (Diagnostic and Statistical evolução, teoria da e consciência 132-133
Manual ofMental Disorders) 363 experimento de pensamento 301
dualismo, explicação x compreensão 469
de propriedades 285,471
mente-corpo 321, F
eu-mente e outro-corpo 321 fabulação 298
fadiga, sintoma 226
E falácia de afirmação do conseqüente, 455
ecologia 433 falso 150
economia, 315 fase 201
centralizada x livre iniciativa 401 Feigl, H. 461
delman, G. 195 filogênese 108, 391, 397
educação, 441-443, contínua 230 filosofia 156
EEG (eletroencefalograma), 98, 182, 261, fisica, 182, clássica 186
e sonho 378 fobias, 54, 269, 278-281,
ego-sintônico/ego-distônico, acrofobia 279, agorafobia 279,
e personalidade 363 claustrofobia 279,
emergência, 82, 126 social 279
de propriedades e vontade 285 Fodor, J. 189, 478, 486
emoção, 122, 249-282 folk-psychology 487
e redescrição lingüística 259-263 fome 127, 129-130
em máquinas 260-261, forma 148
disfunção emocional 266-281 formalismo lógico 161
encefalização 27, 32, 467 Fourner, transformação de 474
endógeno, distúrbio 335 frenologia, 116, 460
energia, 149, mínima local 172 freqüência
envelhecimento 55 e codificação temporal 92-93
enzima 49 e código de barras 92
epistemologia 310 Freud, S. 130, 347, 466-67
escola 119 fuga ou luta, resposta de 28, 278
espaço ainostral 171 funcionalismo, 471
especialista, sistema 165 função 80
especialização 61 função mental, 109-110, 119-123
espírito 140, 148-149 localização 73, virtual 109,
esquizofrenia 235, 266 subdivisão de 122-123
INDICE REMISSIVO

1
Gabor, D. 193 IAC inteligência artificial conexionista 168,
Galileu Galilei 149, 159 177-178, 183, 233, 260
Gail, F. 116 IAS inteligência artificial simbólica 158,
gânglios da base 72, 78 177- 178, 183, 233, 260
gaussiana, distribuição 192 identidade (c£ sujeito e indivíduo) 264
gene 49-50 ideologia 146, 370,419
generalização, e redes neurais 173 implemento fisico 166
genética, predisposição e disf. mental 284 impulsividade 56, 228, 273-275
geocentrismo 214,405 imputabilidade 212, 330,422-425,493
geometria, euclidiana 370, não-euclidiana 370 incompletude 185 (c£ também completude)
gestalt, teoria da 231 inconsciente 126, 130
Gibson, J. 463 independência funcional 174
globalização 402 indivíduo 146 (cf também sujeito)
Godel,K. 185, 471 indução 160
inferências necessárias, 91,
m
III e argumentos 91, e pensamento 91,
Hameroff, S. 186 e raciocínio 91
hardware 88, 153, 159,316 inflação 401
hebbiana, sinapse 168 informação, 139, teoria da 193
hebefrênico, delírio 236 insônia 56
hedonismo 359 inspeção direta, e significado 316
Hebb, D. 168 instabilidade estrutural 198
heliocentrismo 406 integração/decisão,
hemisfério cerebral, 72 nos neurônios 40-43
esquerdo 229-230, direito 229-230 inteligência 67-68, 76, 153, 156, 175-176,
hereditário, 230-23 1, 305, 315, 319
herança multigênica 287, artificial 156
e norma posta 373 e avaliação neuropsicológica 232
hermenêutica e psicoterapia 384-385 e formação de comitês 76-77
heurística 176 e educação no desenvolvimento da 233
hierarquia, 61, e mente 334 inteligibilidade, e consciência 325
hipocampo, 72, 128, 295, 344 intenção 141
sincronização com o córtex 202 intencionalidade, 126, 177-179, 468-69
hipocondria 240, 361 modos intencionais 177
hipótese, 135, científica 301, objetos intencionais 177
que brotam na consciência 242 e proposição e linguagem 178
histeria 347 auto-derivada 182, hetero-derivada 182
histograma, 472 interdisciplinaridade 156
holista 126 internalização 146
home-page 443 Internet 443
Hubel, D. 462 interpretação, memória e gabaritos 351
humor, 249 introjeção,
disfunções do 266-281, e significado e conteúdos mentais 253
expansivo, acelerado, exaltado e mania 277 introspecção 252, 323
O SITIO DA MENTE

M
intuição, 231, 336 malha de sincronismo (PLL) 201
teoria mental intuitiva 142 mania, 57, 269, distúrbio maníaco 277
matemática 185, e ansiedade 247 mapa cognitivo, 465
e depressão 247 máquina, 151, pensante 157
inventividade 350 Marr, D. 472
involuntário 120 matemática 182
irritabilidade 228, 269, 273-275 matéria 149
mau humor 276
J McCulloch, W. 88,462
juízo 122, 234 mecanicismo 149
jurisprudência 373 medula 72
justiça 301 MEG (magnetoencefalograma) 182,261
justificação, Meinong, A. 313
e mente 327, e consciência 387-392 membro fantasma, 298, dor no 298
fabulação e 298
memória, 122, 127, 341-353
Kant, 1. kantismo biológico, 482 classificações de tipo 346-348
Kahnemann, D. 162 de curto termo 343, de longo termo 343
Kuhn, T. 484 de procedimento x declarativa 346-347
de trabalho 131, 174, 344
fl e código 348-353
I,aplace, P., céu de 493 e identidade 345
Lasch, C. 443 e interpretação 348-353
lembranças e vivência biográfica 264 e navegação 345
lesão, 135, e disfunção mental 257-259, e potencial de ação (amplitude do) 342
concreta 259-259, virtual 258-259 e traço 342-346
lexicais, estruturas 307 em computadores 166
liberdade 134-136 e função cerebral 494 explícita x implícita 346-347
libido, anomalia 226 semântica x episódica 346-347
limiar 41,85,92 sintomas de disfunção 226
lineares, sistemas 196 mensageiros 49-53, 68
linguagem, 100-101, 108, 120, 122, 131, mente, 107-108
134, 307-318, do pensamento 189 arcaica 214, nova mente 214
lingüística 156, 310 e computador 102-104, 140, 160
lítio 57, 278 e fôrmas cerebrais 352
lobo frontal, 72, 229, 241, 284, 335, formas e conteúdos mentais 108, 115, 352
e modo automático 284, parietal 72 e ordem jurídica 215
occipital 72, temporal 72, e delírio místico e patologia 149
238, e ética 364 e telecomunicações 108
localizacionismo 116,461 e valoração 331
LTD (long-term-depression) 466 objetos mentais 143
LTP (long-term-potentiation) 466 processo, conteúdo, função 122, 140
lógica, 151, paraconsistente 190, teoria determinista da 201-204
probabilística 190, não-monotônicas 190, mente-corpo, problema, 461
fuzzy 190 looping 153 mercado 411
INDICE REMISSIVO

mesencéfalo 72, 78 virtuais 137


metáfora 164 neuropsiquiatria 261
microtúbulos 186 neurotransmissor 46, 71
mídia 146 Newton, 1. 149
Miii, J. S. 493 noradrenalina 71, 239, 280
mitomania 299 Norman, D. 233
mnêmico 126
moda 146,370
modelos cerebralistas 174, 179-182 (cf. obesidade 129
também DCC e DCQ) objetiva, vivência 146
modelos híbridos 188-190 objetivo x subjetivo 377
modelos simbolistas 179-182 observável, termo 323
modem 102-106 obsessão, 269, 278-281
modo automático 284 pensamentos obsessivos 240
modo voluntário 284 doença obsessivo-compulsiva (DOC) 241
modulação, de ação sináptica 342 Ockham,W. 159
modularidade 60 oníricos, conteúdos (cf. sonho)
Modus Toliens, 455 ontogênese 102, 397
monismo, ontologia 310
de essências 285, 471 opinião 218-221, 283, 33
criptográfico 332 ordem e caos 197
moral 134-136 organização, auto 194,409-41,5, hetero 409-415.
Morgenstern, O. 162 oscilações, 83, 93, 110, '
Mountcastle, V. 462 e formação de símbolos 181
motivação, e relógios de tempo, 479
anomalias 225, interesse e atenção 298 e portas lógicas, 479
motricidade, 122, e mente 326-327 e memória, 479
multidisciplinaridade 156 e consciência, 479
múltipla instanciabilidade 166, 465 e atenção, 479
mundo, natural 122, cultural 122 osciladores 196-203
mundos possíveis, e significado 312 OS!, modelo e mente, 465
Oshima, N. 366
N ostensão (inspeção direta) 310, 487
não-lineares, sistemas 196 ou convencional 89
nanocomputação, nanotecnologia, 469 ou exclusivo 88-90, 167
necessidade 132, 371
neocórtex 65, 229, 284 P
neologismos, e patologia mental 236 padrões,
neurociência 156, 288 reconhecimento de e redes neurais 170
neuroléptico 56, 278 pânico 54, 266, 269, 278-281, 279
neurologia, 261, 334 parada, da máquina de Turing 153, 185
de funções superiores 261 paradigma 233
neurônios, 32, 35-44, 71 paralelo, computação em paralelo 167
e conectivos lógicos 84-87, 88-95, parâmetro 196
artificiais 88, valor de bifurcação 198
e codificação temporal 92-95 valor ordinário de 198
O SITIO DA MENTE

paranóia, 131, delírio paranóide 236 local 42,47, 109 de ação 42-43,47, 86,
parapráxis 336 (ato falho) 92, 109, 199, e oscilações 93
Parkinson, mal de 53 pragmática 164, 310
Pascal, B. 301, 486 prazer, 250, desprazer 250
pathos, e auto-organização 412-419 Pribram, K. 478
patologia, da comunicação 262 Prigogine, 1. 193
cultural 262, mental e caos 203 primatas não-humanos 229
Penrose, R. 186,477 princípio de superposição 196
pensamento, 122, 150, 156 privado, sujeito 138, 323
aceleração do 235 probabilidade, teoria de 162-163
e corroboração 237, e refutação 237 problemas, solução de 127
e ruminação 239 processador central 102, computadores 166
pobres e concretos 239 processamento, temporal 89, 95, mental 122,
sem consciência 229 128, cerebral 128
seqüencial 233 processo abstrato 139
percepção, 122, 321-338 programa, 152
delirante 246, 314 pré-programar 132, atenção e consciência
presumida x redescrita 429 297,327
percéptrons 167 propaganda 146,370
personalidade, 122 355-357 proposição 150, 162, 175-177, 311-316
ativo x passivo, sensível x resistente, propriedade, privada x pública 401
imediato x mediato 361, amoral 364-367, propriedades emergentes 81
social e axioma coletivo 369-374 prosopagnosia 313
lassificação de 360-362 proteína C 459
distúrbios 55, 363-369 pseudopensamentos,
e bem-estar 359 e emoção e vontade 259-260
e evitamento de riscos 359 psicanálise 131, 348
e herança genética 3 57-360 psicofarmacologia 115,460
e liderança 358 psicologia 155, 156, 315
e tradicionalismo 359 psicopata, psicopatia
múltipla 348 (cf. personalidade, distúrbios da)
perversões 241 psicose, 55, 234, 266, 383
PET scan, (tomografia por emissão de depressões psicóticas 275, histérica 345,
pósitrons) 182, 261, 284 dissociativa 346, circular (cf. PMD)
Pick, demência de 235 psicoterapia, 115, 208, 266, 3 35-336
pirronismo, 487 e hermenêutica 384-385
Pitts, W. 88, 463 psiquiatria 164, 219, 261, 334, 355, 363-364
place-coding 462 público, sujeito 138,323 público x privado 377
planejamento, e hipótese 135
PMD (psicose maníaco-depressiva) 278 Q
poder 301, 332 qualitativo, 197-198, salto 111, 138
Poisson, distribuição de 192 quantitativo 197-198
ponte 72 Quine,W. 151
Popper, K. 455
Positivismo Lógico 322 R
potencial, raciocínio 75
ÍNDICE REMISSIVO

RAM (random-acccess-memory) extra" e corroboração de hipóteses 301


memória volátil do computador 343-344 sentença, 150, bem construída 176
reabilitação 67,483 separabilidade linear 90-91, 167
receptor, 46, 48-49, e memória 342 serial, modelo 167
recursão (função recursiva) 161 serotonina 71, 239, 280, 359
redes neurais, 89, 95, 167-173, 328-329 Shallice, T. 233
treinamento 170, e minimização do erro 170 Shannon, C. 193
redescrição valorada, e consciência 201, 328- significado, 156, 308, 332
330, 338-339, 387-392 estabilização dinâmica do 255-263
redução, (cf. tradução) 181, 201, 285, 323, sim ou não, resposta tipo 109, 113-114
horizontal 195, símbolos, 105, 137, 153, 156, 174, 181,199
sindrômica de tipo, 469 mentais 59, primitivos 178,
de termos 485, de teorias 486 macrossímbolo 190
reflexão 304-306, 327 sinais cerebrais, 59, 141,
reflexo, ação reflexa 327 e símbolos mentais 199
refutação, de hipóteses! teorias 297-298, 301, sinapses, 32, 45-58, 71, alteradas 53-57,
455 excitatónas 71, 87, inibitórias 71, 87
regras, 156, força da 87, peso de 92, 169-170
conjunto finito de 307, lógicas 88, 95 sincronização, 94, 104-107, 110, 119, 125, 189
gramaticais e linguagem 175, inatas 175 cultural 137 1.

regularidade estatística, redes neurais 167-168 e atenção 295


relação entre símbolos 199 e circuito tálamo-cortical 96
REM (rapid eyes movement) e dessincronização 96
fase do sonho de movimento e formação de símbolos 181
oculares rápidos 377-379 e freqüência 114
representação, 76, 119, 121,156, 158, 174, ' e teoria da consciência 388-391
330, 350, distribuída e consciência 136, exo 102, e endossincronismo 102
distorcida e consciência 330 sintaxe 131, 164, 309
repressão, 131, 147, (reprimido primário) 131 sintomas e sinais de disfunção mental 224-228
responsabilidade, 134, e mente 328 sintomas fisicos vagos e disfunção mental 227
resposta tipo talvez 62 sistema,
RNM, (ressonância nuclear magnética) axiomático social 372
RNTvIf (ressonância nuclear magnética especialista 165, 192
funcional) 182, 261 híbrido 188
ruído 182 límbico 73, 75
nervoso central 27, 30, 110
nervoso periférico 110
Sagan, C. 455 de produção (,production systems) 467
Santayana, M. 429 sistema reticular-ascendente 295
satisfação do consumidor, e ciência 405-408 sistemas dinâmicos 196-203
save, comando para gravar informação 344 teoria geral dos sistemas 195
semântica 131, 162, 164, 309, 474 Slovic, P. 162
semiótica 310 sociedade 387
sensação 164 sociologia 315
sensorialidade, software 79, 88, 102, 153, 159, 316
hipótese-sensorial 299, 306, "sentido sólitons 191
O SÍTIO DA MENTE

sonho, 122, 299, 377-384, 491 verdade, 150, 308, 311-312


e consciência 377-384 valor de verdade 151, pragmática 315
e inconsciente 379-380 teorias da verdade, 488
e fixação de memórias 384 verificação, de teorias 301,455
e redes neurais, 491 verossimilhança 313, 318
sono, anomalias do 224 vetores 169
stress (cf. estresse) vida artificial 195
subjetivo, 126, vivência subjetiva 142, 146,256 vigília e atenção 295
subsímbolos 172,475 virtual, (cf. também comissões, comitês, e
sujeito, 147 (c£ também indivíduo) departamentos virtuais) e mente 253
e sonho 378, público x privado 428-432 visão,
circuito cortical da 108,
II artificial 483
tabela de verdade 85, 88 vitaminas 272
tálamo, 72, 78, 96, 295 vivenciado, ciência do 484
sincronização com o córtex 202 voluntário, 120, 201, 284, pseudovoluntáno 291
talvez, resposta do tipo 109, 113-114, 119 voluntarismo 107
tecnologia 120 von Bertalanffy, L. 195
temperatura 231 von Neumann, J.'161-162
teoria, cientíca 30t, 370, cortcal e geração arquitetura von Neumann 161, 166
de hipóteses e teorias 296-298 vontade, 120, 134-136, 283-292
» . oeirização e mente 119 1-120 » cultural 290, cerebral 290, e redescrição
• tennodinâmica, 493, de não-e'quilíbrio 193 lingüística 259-263, em máquinas 260-261
k,~~n 458 identily, reduction, 458,486 : determinação cerebral da 285, 426-428
' Primeira e Segunda, 466-67
pica, contrariação da, 480
topologia 182, 231
tóxicos (cf. drogas-tóxicos) 281
tradição 146 ivavelets 191
tradução (cf. também redução) 181 WEB (world wide web) 441
transição de fase 69, 136, 231, 243, 308 Wiesel, T. 462
tronco cerebral, e atenção 295 winchester 102
turbulência 191 Wolfe, T. 452
Turing,A. 151, 156, 469-70
máquina de 151-152, 158-179, 300
teste de 152
parada (cf. parada da máquina de)
Tversky,A. 162
Iype, 458 identily, 462
type-reduction, 459

U
universalidade 139, 195

v
validade 151
variáveis 196
NÃoENcoNnANDoEsrEL1vRo,
SOLICITE PELOTEUFAX(011)211-405 OU 813-5701
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