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NELSON RODRIGUES

AMORAL COMO
UM BICHINHO
DE AVENCA
Uma madrugada, saio da Grande Rese-
nha da TV Globo e passo no Antonio’s. Le-
vava comigo a fome da madrugada e sonha-
va com um bife.
Entro e dou de cara com o Aloysio Sal-
les. Ao me ver, ele ergue o gesto e faz esta
saudação parnasiana: — “Tudo é um do-
mingo de regatas!”. A exclamação soou nos-
tálgica como um apito de trem na distância
noturna.
O Antonio’s estava apinhado. Mas nin-
guém entendeu o súbito e diáfano “domingo
de regatas”. Só eu entendi. E houve, ali, en-
tre mim e o amigo, uma compreensão ful-
minante e total. Aloysio falava o idioma da
memória, que eu conhecia e os outros não. A
geração do Antonio’s tem pouco passado.
Para a rapaziada de hoje, o Pavilhão
Mourisco deixou de ser paisagem, deixou de
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ser domingo, e repito: — o Pavilhão Mou-
risco é uma linha de ônibus. Aloysio pôs di-
ante dos meus olhos um translúcido domin-
go de soneto. Eu via de novo o Pavilhão
Mourisco. Homens de fraque e bengala; e os
chapéus inverossímeis das mulheres.
No “domingo de regatas”, a mulher era
mais chapéu do que vestido. Não sei se me
entendem. Ah, o que as mulheres levavam
na cabeça por toda a Belle Époque. O sujeito
não via o rosto, a beleza, os dedos e os anéis.
Não. Só via o chapéu e a imitação de uvas,
cerejas, ameixas, que vinha por cima. Essa
natureza-morta fascinava inclusive os velhos.
Falo do “domingo de regatas” e, no en-
tanto, vejam vocês, o que me interessa é o
“domingo de missa”, de uma beleza muito
mais antiga. Eu não vou à missa, isto é, qua-
se não vou. De vez em quando, porém, sou
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tocado pela graça do domingo. E, então, levo
à primeira igreja do caminho a minha fé en-
vergonhada e relapsa.
Foi o que aconteceu, no último domin-
go. Entre parênteses, não sei se foi Pio XI
(foi Pio XII, sim) que viu Deus. Estava num
jardim e viu, fisicamente, Deus. Lembro-me
de que o Paris-Match fez, a propósito, uma
reportagem de dez ou doze páginas. Ora,
não me espanto que alguém, papa ou não,
veja Deus. O que me assombra, realmente
me assombra, é que Deus não seja visto, a
toda hora e em toda parte por todo mundo.
Quanto a mim, tenho esta certeza obses-
siva: — eu hei de vê-Lo. Ele é alguém tão
pessoal, plástico, tangível como Victor Hugo,
Deus com as barbas de Victor Hugo, as so-
brancelhas de Victor Hugo, sobrancelhas tão
ásperas e eriçadas como as cerdas bravas do
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javali.
Volto ao meu “domingo de missa”. En-
tro na igreja em pleno sermão. Está falando
um jovem padre. Ah, quando estou na igreja,
e vejo o sono dos círios nos altares, e o frê-
mito das rezas, sinto angústias tremendas.
Há em mim o despertar de velhas culpas e a
memória de não sei que abjeções.
Começo a ouvir o jovem. E que diz ele?
Diz o seguinte: — “Eu não aceito mais a
confissão de criança. Criança não peca”. E
repetia, crispado de certeza fanática: —
“Criança não peca”. Não esperei nem mais
um minuto.
Criança não peca. Com um piparote, ele
derrubava todas as culpas infantis.
Doeu-me que alguém visse na criança
um ser mínimo e tão amoral como um bi-
chinho de avenca. Vim para a rua, entrei
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num café. Pedi ao garçom: — “Carioqui-
nha”. E, mexendo o café, tinha a sensação de
que o sermão degradara a criança. Se é ver-
dade que um menino está isento do bem e
do mal, então é um pequenino canalha.
Lembro-me de coisas que eu fazia, aos
oito, nove anos, e que me causaram lesões de
sentimentos ainda não cicatrizadas. Um dia,
dei um tapa num menino. Ainda tenho o seu
nome: — Ernesto, filho da lavadeira. (A la-
vadeira, bem velhinha, era cega de um olho.
Certa vez, eu a vi discutindo com uma fre-
guesa. A outra chamara a velha de “mulher”,
“essa mulher”. A lavadeira pulou: — “Mu-
lher é a senhora!”. Foi presa. Ao voltar do
distrito, soluçava na rua: — “Eu não sou
mulher! Eu não sou mulher!”.) Mas, como
eu ia dizendo: — dei na cara do garoto.
Dar na cara. Não sei se nos outros povos
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e nos outros idiomas a bofetada tem a mes-
ma transcendência. Mas, para o brasileiro, a
bofetada é sagrada. Criei-me ouvindo o adul-
to dizer: — “Se alguém me der na cara, eu
mato, mato!”. E a minha mão estalou na ca-
ra do filho da lavadeira. Depois, num circo,
vi o mesmo som quando os palhaços se es-
bofeteavam no picadeiro. Mas eis o que eu
queria dizer: — essa bofetada marcou-me
fisicamente.
Fui varado por um sentimento de culpa
que ainda hoje, quase meio século depois,
me persegue. De vez em quando eu começo
a me sentir um pulha. Sofro como um réu.
Sou réu, mas de que, meu Deus? E, de re-
pente, há um clarão interior e vejo tudo. É a
bofetada que ainda está em mim, é culpa que
não passa. Eis o que aprendi no episódio in-
fantil: — é melhor ser esbofeteado do que
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esbofetear.
Antes de passar adiante, desejo notar
que a consciência infantil tem um dramatis-
mo que nós, adultos, já perdemos. Dois dias
depois do sermão recebo uma carta quase
anônima. Digo “quase” porque a senhora
(era uma senhora) assinou apenas com as
iniciais. Contou que era minha vizinha no
tempo em que eu morava na travessa An-
grense, em Copacabana. E deu a idade: ses-
senta anos.
Veremos, em seguida, como a idade é,
no caso, um dado fundamental.
Imaginem que esta senhora é uma cató-
lica, digamos assim, de berço. Nunca, em
momento nenhum, sua fé conheceu uma
dúvida. E há dez, doze ou quinze dias, ela
entrou numa igreja para se confessar. O pa-
dre que a atendia habitualmente, velhinho e
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santo, estava morre, não morre. Teve que
recorrer a um outro, salubérrimo e progres-
sista.
E não imaginava que ia passar por uma
dessas experiências de vida que ninguém es-
quece. Começou a falar. O confessor ouvia
só. Houve momentos em que a pobre senho-
ra imaginou que o outro estivesse dormindo.
E, súbito, o padre pergunta: “Que idade tem
a senhora?”. Disse, espantada: — “Sessenta”.
O outro insiste: — “Sessenta? A senhora
disse sessenta?”. Percebeu que o padre ia
num crescendo de irritação. Ele continua: —
“E a senhora vem pra cá com sessenta
anos?”.
Aterrada, balbuciou: — “Como? O que é
que o senhor está dizendo?”.
E o progressista: — “Isso não é idade de
se pecar, minha senhora. Aos sessenta anos
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ninguém peca. Quer dar seu lugar à próxi-
ma? Passar bem, minha senhora”. A pobre
levantou-se. Saiu dali, como se fugisse. Apa-
nhou o táxi, soluçando. Está chorando até
hoje.

[O GLOBO, 10. 01. 1968]

APEDEUTEKA GUINEFORT, 2015

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