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Apenas saiba que te amei

Abigail Somavilla

Ainda estava no ar o som das treze badaladas. Nem bem soara a décima terceira
e estarrecidos estavam os habitantes do pequeno reino. Fazia já quase meio século da
última vez que soaram treze badaladas, e na última vez, não foram badaladas tristes mas
badaladas de alegria pois chegara ao fim o reinado do Rei Cão, como seus súditos
secretamente o chamavam. O Rei Cão fora o pior rei que o pequeno reino conhecera.
Seu pai e o pai de seu pai haviam dado paz e prosperidade a todos num longo período
onde as guerras eram apenas uma triste lembrança. Haviam se curado todas as mágoas.
A aura de alegria oriunda do castelo cercava os habitantes e não havia quem não
sorrisse ao ver passar quem quer que fosse, do menor ao mais elevado socialmente, e
aclamasse com voz alegre sua presença. Por mais que os tempos fossem difíceis, não
havia miséria. Do castelo saiam carroças e carroças do melhor alimento e ouviam-se
boatos de que o rei, em súplica aos deuses, passava dias sem por nada além de água em
sua boca. Porém, quem morava no castelo sabia que o rei abdicava livremente de suas
refeições para que cada um tivesse um grão a mais do que comer. Por isso mesmo, se
apresentava esquálido, envolto nas grandes vestes que pareciam não mais pertencer a
ele, mas a alguém que tivesse no mínimo o dobro de seu tamanho. Lágrimas rolaram
dos habitantes quando o bondoso rei partiu. Seu esquife, dada sua magreza, comportaria
mais três ou quatro reis de seu tamanho se fosse o caso. Ali, o poder inerte tirava
soluços de cada um que passava para sua triste despedida.
Esse bondoso rei tinha um filho. O único. Primogênito. O Cão. Sim. Porque por
mais que insistissem em dar-lhe tudo e tornar-lhe bom, queria sempre mais. Tornou-se
mimado e mesmo insuportável. Sua família nunca soube o que fazer. Eis que agora o
bondoso rei está morto e a triste sina do reino está nas mãos do único filho que era já
um jovem, a pouco passado da puberdade. A coroação é feita, em pequenas pompas,
afinal, todos ainda cultivavam o luto. Mal sentou ele no trono e pronunciou as palavras,
Cobrem as dívidas atrasadas dos impostos dos cidadãos, ou tragam a mim a cabeça dos
que não puderem pagar. O espanto cobria o rosto de cada um. Vários tentaram fugir,
mas eram capturados nas estradas. O número dos que tiveram a dívida prorrogada pelo
rei era muito grande, e por isso foi grande também o número dos que foram dizimados
nesse dia que entrou para a história do pequeno reino. Daí para diante, nunca se viu
tanto sangue no reinado do rei Cão. Como um verdadeiro cão, necessitava marcar
território onde pisasse e não havia exceções. O reino passou a ser odiado por seus
vizinho sob constante ameaça, e tão logo passou da prosperidade a miséria que num
piscar de olhos apenas se via a dor e a tristeza onde reinava a alegria. Para alegria de
todos, o reinado foi curto comparado aos outros, numa das constantes guerras, o rei teve
a cabeça decepada, e poucos foram os que choraram sua morte.
Estava o reino sem rei. O cão não havia tido filhotes, e era cria única de seu pai.
O que faremos? Perguntavam todos. A resposta foi obtida por uma mulher, dada por
bruxa que morava nos limites do reino. Através de infusões e chás, viu que o antigo rei
possuía um bastardo que vivia com uma velha na floresta. A tradição, acima de qualquer
aspecto, mandou que se chamasse o menino. Com grande solenidade irromperam em
uma procissão adentrando os limites da floresta. Em uma pequena casa, de madeira,
cheirando a fumaça. Viemos em busca do filho do rei bondoso, gritaram. Era
indiscutível a semelhança do menino com o antigo rei. Não havia motivo nenhum para
que se duvidasse de sua paternidade. Em sua humildade, seguiram, o menino e sua mãe
adotiva, para o castelo, onde ele foi coroado rei, dessa vez sem luto algum, numa grande
festa que durara duas semanas. Em sinal dos tempos bons que prenunciavam, uma
comitiva do reino vizinho veio oferecer a princesa, filha do rei vizinho, em casamento
ao novo rei. Esta era bela. A mais bela dos reinos adjacentes. A festa de casamento
quase se seguiu à festa de coroação. Os dois pareciam feitos um para o outro: ela sorria
se ele sorrisse, e se sorrisse ela, era ele quem sorria. O reinado do filho do rei bondoso
foi próspero, e consertou tudo que o Rei Cão havia feito de errado. As alianças foram
refeitas, e a rainha era feliz.
Algo curioso: enquanto o rei envelhecia normalmente, seus cabelos tornavam-se
pouco a pouco grisalhos e a força era tirada de seu corpo pelas forças do destino, a
rainha mantinha a beleza do casamento. Sua pele não retinha uma única ruga, seu cabelo
brilhava ao sol como brilhou no dia do casamento. Suas formas eram as mesmas, dado
que não tinha dado nenhum filho ao filho do rei bondoso. Isso encantava a todos e com
certeza encantava ao rei. Perguntou um dia à rainha, O que acontece para que te
mantenhas bela por todos esses anos? Acaso não chega a ti o peso dos anos? Tu pareces
mais com uma filha minha que com a rainha que ocupa meu leito a noite. Após muito
relutar, e após grande insistência, a rainha revela o pacto feito com uma feiticeira
bondosa do seu reino. Eu me manterei bela enquanto for amada. Em meu reino o amor
de meus pais me bastava, aqui é o teu amor que me basta. Além disso, só morrerei
quando a idade me puser corcunda e não mais ser amada. Por isso me aflijo, ó bondoso
esposo, tu partirás, e eu restarei. Sozinha, neste castelo frio. O amor dos teus súditos não
me bastará. Isso desfez em prantos o rei, que abraçado a ela confessou que nunca
deixaria de ama-la, nem que a morte os separasse, fato que, por chacota do destino,
aconteceu na manhã seguinte. A rainha, abraçada ao rei, ao acordar, sente-o mais frio
que de costume, ela chama-o, várias vezes, sacode-o, grita. Não quer aceitar o que
parece-lhe ser. Com seus gritos, entram os guardas no quarto real e ao ver os prantos da
rainha com o rei pálido no colo adivinham o que aconteceu. Soaram treze badaladas.
Uma após a outra. Cada uma mais fúnebre, triste e dantesca que a outra. O rei morrera.
Ninguém podia acreditar. Era o filho do rei bondoso e por isso amado e respeitado por
tudo que fizera. Além disso, deixara só a bela rainha. Os corações masculinos, que não
se encontram no peito, e sim dentro das calças, mal tiveram tempo de chorar o rei e já
falavam entre si, Quem esquentará a cama da rainha? um mais exaltado que o outro
falava dos dotes corporais da rainha, fazendo asco às suas mulheres e às demais que
passavam.
Após o tempo de luto, fez-se silêncio. Entristecidos, ninguém ousava uma nota
de alegria. Abarcados em seus próprios afazeres, aos poucos esqueceram a rainha que os
governava, discretamente, dentro de seu castelo. Chorara o tempo todo de luto. Agora,
preocupava-se com sua morte. Morrerei sozinha, pensava ela. Não mais serei amada e
perecerei. Um único homem arrancava seus olhares e discretos suspiros. O cozinheiro.
Sim. Aprendera a humildade com o falecido marido. Não havia para ela distinção de
classe, apenas papeis diferentes em um mesmo mundo. Por vezes olhavam-se,
largamente, um sorriso, outro sorriso, porém não passava disso. A cada nova refeição, a
rainha imaginava que o prato era feito para conquista-la, e atrevia-se a sorrir para o
cozinheiro real que apenas curvava-se em sentimento de honra. Cada prato trazido era
mais saboroso que outro, o que alimentava as esperanças da rainha novamente
apaixonada. Mas como farei eu? Ele é apenas o cozinheiro, uma rainha não devia
apaixonar-se pelo cozinheiro... Ah, meu coração, quanta dor escondes! Como farei para
que me ames ó gentil cozinheiro? Como farei para provar do mais saboroso prato dos
teus lábios que insistes afastar dos meus? Quero teu amor, necessito de ti para
permanecer neste mundo... Após a noite de sono, mal dormida, a rainha resolve tentar
algo novo: Conquistá-lo-ei através das riquezas. Nenhum homem resiste às grandes
riquezas do mundo. Assim, a cada dia, deixava uma de suas joias como presente ao
cozinheiro que suplicante lhe rogava que poupasse seus agradecimentos. Tamanha
humildade! Pensava a rainha. E dia após dia, via ela que isso não funcionava com tal
criatura. Semanas depois, pensou, Recorrerei a um método que não falhará! Dispensou
suas servas, e pediu que apenas voltassem no dia seguinte. Após a janta, chamou-as,
como não soubesse não estarem. Onde estão elas? Preciso que me ajudem com meu
banho! Ao não ouvir resposta, voltou-se para o cozinheiro e pediu, com um pequeno
sorriso: Ajudas-me com meu banho? Ao que ouve em resposta, Minha Rainha, tudo
para vos servir. Grande esperança se acendeu no coração da desesperada rainha. Pediu
que enchesse de água de quente a tina e despudorando-se, aos poucos foi tirando cada
peça de roupa, ciente de que o cozinheiro a observava. Os olhares já não eram discretos.
A rainha encarava-lhe, olhos nos olhos, e o cozinheiro não podia esconder sua
admiração diante de tão belo corpo. Não havia nada entre eles, apenas uma grande tina
de água quente e as roupas do cozinheiro. Porque não tiras tu também estas roupas?
Pergunta a rainha. O cozinheiro, encabulado começa lentamente, sem tirar os olhos do
formoso corpo, a tirar sua roupa. Com o devido respeito, pede que a rainha entre na tina
e começa a banhar-lhe. O membro ereto demonstrava que desejava o corpo da rainha,
no entanto, seus olhos diziam a si mesmo que não podia. Não era certo. A rainha não
tinha mais o que fazer, vendo a situação do cozinheiro, soube que ele ainda não podia
ama-la. O amor está bem longe do desejo sexual, pensou ela. Deixou que terminasse o
banho e o dispensou, após, deitou-se para uma longa vígilia antes do sono.
O tempo passava. Após a morte do marido todos viam que a rainha começava a
apresentar os primeiros sinais de um envelhecimento bastante tardio. Um que outro
cabelo começava a despertar do leito em tons de cinza. Quando sorria, nas raras vezes
em que o fazia, uma pequena ruga se formava no canto dos olhos. Apesar disso, a
beleza da rainha continuava a ser admirada por todos do reino e dos reinos vizinhos.
Isso a assustava, o medo de padecer sozinha e sem ser amada a tomava por completo.
Várias foram as tentativas de fazer com que o cozinheiro se apaixonasse por ela. Todas
vãs. Ele continuava demostrando o respeito devido pela rainha, talvez um pouco mais
próximo apenas, ele chegava-lhe, riam, conversavam por horas.
Um dia, o cozinheiro chegou-lhe, no sorriso de sempre, numa extrema alegria
como a tempos ninguém o via. A rainha esperançosa logo começou a insistir-lhe que
falasse. Por certo vai dizer que me ama, por favor deuses, que seja isso. Contudo, a
resposta que teve do cozinheiro foi outra. Casar-me-ei! Em breve! Já está tudo
devidamente preparado e quero que tu estejas ao meu lado! Quão grande dor sentiu o
coração da rainha. Apenas comparada a dor com que perdeu o marido. O único que ela
amou depois da perda casar-se-ia com alguém que talvez ela mal conhecesse. Tinha que
perguntar, disfarçando na voz o princípio de choro: quem é a tua venturosa futura
esposa? A resposta tira-a de si. A camponesa de que o cozinheiro lhe falara era sua
irmã. Sangue de seu sangue. Retirada do mesmo ventre. Desesperou-se e saiu a chorar
compulsivamente banhando o chão do castelo com suas lágrimas por onde passava. Por
semanas ninguém a viu. Por semanas trancou-se a pão e água. Batiam-lhe à porta e
fazia-se que não ouvia. Um desses dias bateu-lhe o cozinheiro, e ao ouvir a voz daquele
que amava, sobressaltou-se, ia abrir a porta, mas não podia, algo lhe dizia que não devia
sofrer mais, que aquela dor já era o suficiente.
Em uma manhã fria e cinzenta, ouviu-se um grito agudo, quase ensurdecedor,
um farfalhar como que de tecidos, seguido de um baque surdo. Ao mesmo tempo,
ouviam-se gritos por todo o castelo. Cada qual sem saber para onde ir. Os que
avançaram para o quarto da rainha encontraram a porta fechada. Os que avançaram em
direção ao exterior do castelo banharam seus pés em sangue e pedaços do crânio da
rainha rompido com a queda. Seu melhor vestido, costurado com tecidos finos e
bordado com ouro encontrava-se todo espalhado, mostrando-lhe as belas pernas agora
repletas de ângulos retos devido à altura da queda. A nudez da rainha era nada perto do
espetáculo sangrento que proporcionara a seus servos. Nada mais havia do belo rosto,
coberto por sangue. Caíra de cabeça, era possível ver os restos de seu cérebro
espalhados na região próxima da queda. Alguém, na multidão em volta, repara que a
mão, ainda segura firmemente um pedaço de papel que com cuidado é retirado dali, e no
qual se lê: Morro. Morro sem mais ser amada. Juntar-me-ei na vida eterna aquele que
me amou, o vosso rei bondoso. Morreria de qualquer forma daqui a alguns anos, ainda
sem ser amada. Por isso prefiro morrer hoje. Já morri várias vezes, de amor, após a
morte do meu falecido marido. Por isso só vos faço um último pedido. Cortem a cabeça
do cozinheiro e enviem-na a minha irmã no reino vizinho. É ele o culpado desse
horrendo espetáculo a que vos submeto. É ele o desertor dos meus sentimentos. É ele
quem podia me dar a vida e mesmo assim, tirou-a. Se não amaste-me, ao menos, por
esta prova, apenas saiba que te amei.
Da existência invisível do ser
Abigail Somavilla

Era ninguém. Sua existência? Apenas comprovada pelas idas e vindas, pelos
poucos (no máximo dois) amigos que tinha e claro, sua mãe, que tanto se orgulhava do
filho honrado, responsável e profissional que havia alcançado o sucesso com o qual não
tinha sido presenteada a família. Já dizia o poeta (ou é um dito popular, não sei): mãe é
tudo igual. E com tanta sabedoria, é claro, a minha não havia de ser diferente. No altar
de casa, lá longe, as imagens dos santos, anjos, arcanjos, papa, bispo, padre, a igreja
inteira resumida no pequeno altar da minha mãe sobre a televisão. Mas o destaque
maior nessa igreja particular: minha foto. Aquela foto que só uma mãe tem a capacidade
de amar e que o filho deseja no mais fundo da alma arrancar dali, correr pra uma
encruzilhada, pular sete ondas, comer uva, melancia, diabo a quatro, enterrar a bendita
foto bem fundo pra que o antigo eu morra no tédio do passado. E sim, bendita foto. No
meio de tanta imagem, só podia ser benta a foto, se facilitar até milagre era capaz de
fazer.
Apesar de todo paparico que só uma mãe consegue dar, não era nada. Nada
daquilo que seus amigos pensavam, nada daquilo sua mãe pensava. Era ninguém. Mas
como pode alguém ser ninguém? Perguntam-me as musas. Não sei. Eis uma ótima e
sábia resposta as questões do universo que atormentam os filósofos por milênios a fio:
Não sei. Sócrates falou, repetiu, instruiu, encheu o saco de todo mundo e ninguém deu
bola pra ele. Eu redigo. Porque se um dia alguém ler essas palavras bobas vai saber que
um mortal tinha consciência da própria ignorância, e provavelmente morreu enlameado
na própria merda. Mas isso não vem ao caso. Vem ao caso é que só sei que nada sei, e
que alguém ser ninguém é uma baita de uma pergunta pra se fazer.
Uma das maiores vantagens de toda essa história é o fato de que era ninguém, e
se era ninguém, era também invisível. Sim, meus caros, não estou louco ainda. Alguém
pode ser ninguém e ser invisível sem problema algum. Pelo menos na minha mente
insana, que também não vem ao caso. Mas detalhe: era invisível à maioria (grande e
poderosa maioria), pois a alguns poucos, seus dois únicos amigos e sua mãe, se fazia
ver e querendo ou não, era amado e lembrado. Se gostava disso? Claramente não. A
consciência de ser ninguém é algo que vai sendo construído, aos poucos, lentamente
esquecido. Até que um dia a pessoa para, põe toda a sua vida em dois ou três slides, e ao
término da fantástica exibição, deita a cabeça nas mãos em prece e pensa consigo
mesma: que merda eu to fazendo com a minha vida?
Claro que não é exatamente assim, com alguns talvez seja, mas comigo não.
Contenham a cara de espanto, este que vos escreve é ninguém, O Ninguém, de que toda
essa balela fala. O escritor é ninguém! Gritam alguns, caras de espanto, caretas de asco
e pau no cu de quem não gostar do que escrevo ou achar que só escreve quem está numa
bancada no monte Olimpo dos escritores. Todo mundo escreve sobre os grandes, sobre
as histórias fantásticas, sobre todos os assuntos inimagináveis que você não imagina e
nem consegue imaginar que já tenham sido escritos. Mas ninguém escreve sobre
ninguém, o que me impele a escrever sobre alguém que é ninguém e é também invisível
mas se faz visível quando adentra um coração. É até engraçado. Ninguém escrevendo
sobre ninguém. Ainda bem que a matemática nos salva dessa. Negativo com negativo é
positivo, então se ninguém escreve sobre ninguém tem que dar em alguma coisa.
A vida de um ninguém não é em si interessante. É interessante o fato de que as
pessoas, atingindo certo patamar das suas portentosas vidas, acabam ignorando a
existência de outras que passam a ser ninguém. Exato. Ninguém nasce ninguém. A
gente nasce alguém e acaba sendo ninguém porque não sabe que precisa ser alguém.
Além do mais, há espaço para poucos alguéns no mundo, e muitas vagas para ninguéns.
Agora, há uma coisa que nós ninguéns temos que todos esses alguéns por aí não
tem: o dom da invisibilidade. -Ai, mas você de novo com essa história de ser invisível,
eu vou ler um livro de fantasia em vez de ler as histórias da carochinha que você está
escrevendo.- Diz alguém já de saco cheio das 747 palavras até aqui (pode conferir). Eu
respondo. A invisibilidade de que falo não é pode andar pelado pela casa sem que
ninguém te veja (desde que haja alguém, certamente), poder pegar uma fruta no
mercado e sair comendo perante o olhar incrédulo das pessoas que nunca viram uma
fruta mordida sair flutuando do mercado, ou mesmo assustar as pessoas em um carro
sem motorista ás três da manhã em frente ao cemitério. Isso sim é história, deixa isso
pros filmes do fulano que gosta de fazer ficção ou pras pegadinhas do Silvio Santos. A
invisibilidade de que falo é pior. É mesquinha, cruel, e fere mais que ferro em brasa no
lombo. A gente é invisível porque não querem que sejamos vistos. Somos vistos pelos
alguéns mas o olhar atravessa como fosse uma lâmina de vidro transparente.
O pior é que, tornar as pessoas ninguém e invisíveis é algo que passa como
doença e quando percebemos, saímos em um grande centro urbano lotado mas estamos
sozinhos. Todos, do nada, se tornaram invisíveis. Só há você. Só o barulho dos próprios
passos e dos carros que insistem em passar sem motorista algum ao volante. Para provar
isso proponho o seguinte: feche os olhos. Ou melhor. Não feche, a não ser que você
consiga ler de olhos fechados. Tente lembrar de algum rosto que você tenha visto na rua
hoje. Homem, mulher? Cabelo, roupa, detalhes particulares. Conseguiu? Talvez um, no
máximo dois. Agora tente lembrar de dez rostos. Complicado né? Pois é. A imensa
máquina em que gira o mundo nos faz tornar a todos ninguém. Sabemos dos alguéns
que dominam o mundo e a mídia. Sabemos do alguém que morreu e que muitas vezes
não nos importa. Sabemos do nosso próprio umbigo.
Agora, eu não acho que ser ninguém seja um estado definitivo. Não tem que ser.
Eu sempre acreditei, me perdoem os reencarnacionistas, que vivemos uma vez só. Essa
história de entra num corpo, sai do corpo, entra em outro corpo não é comigo, parece
coisa de filme pornô, mas enfim, a vida é uma só pra sermos ninguém. Meu maior
medo, e sim, é uma confissão, é morrer sem deixar a minha marca nesse mundo que está
virado de ponta cabeça e cheirando a merda e a coisa podre faz tempo. A vida de um
ninguém como eu não é significante, nunca vai ser. Mas podemos fazer um esforço e
começar ao menos tornar as pessoas menos invisíveis. Aos poucos eu garanto, você vai
começar a ver vultos e fantasmas onde nunca achou que haveriam. Pois é, aquele lixo na
rua que você pensou que evaporava? Sabe? tem um espectro que tira pra você. Aquele
lanche gostoso que você chegou e pediu pro balcão da padaria? Pois é, tem um ser
humano que faz, e assim durante todo o seu dia. São passos básicos. Criar a consciência
de ser ninguém e invisível, perceber que ninguém é alguém e que todo alguém pode
ajudar pra que ninguém seja ninguém. Não é difícil. É só ser humano. Tá lá, no fundo
da alma de todo mundo. Da sua também, não adianta me olhar com cara de susto. A
mudança começa em nós. Chega de tratar todo mundo como ninguém. Ninguém é
ninguém. Todo mundo é alguém e se é ninguém, é porque ainda não teve a chance de
mostrar o alguém que é. Eu não sou grande coisa. Mas do “era ninguém” com que a
vida me esbofeteou, eu vou caminhando pra um ser alguém visível aos olhos de todos
que queiram e estejam abertos a ver. Um dia eu chego lá. Um dia todos chegamos lá.
Cobra e cordeiro
Abigail Somavilla

Um cordeiro. Feliz e puro cordeiro. Banhado na imensa alegria do sol despontado desde
as primeiras horas da manhã. Após acordar, sai correndo e balindo pelo campo a espera
da refeição que logo vai chegar. Seus dias todos são assim. A mesma alegria que
perpassa cada movimento do seu corpo, a mesma energia do capim trazido sempre no
mesmo horário por seu dono. Ó como sou feliz, Pensa todas as horas do seu dia. Feliz
de mim, não sou como a vaca que tem seus vários terneiros a amamentar, ou os porcos e
galinhas aflitos pela visão iminente do abate, basta que eu cresça e lhes de minha lã e
tudo ficará bem. Por isso os animais da fazenda em que vivia lhe tinham grande e
descarada inveja, demonstrada ao passarem por si e acidentalmente nele tropeçarem,
Mas não vês por onde anda? Grita a vaca, Acabarás pisoteado, lhe dizem sempre, no
entanto, tudo parece bem e nada de ruim pode acontecer a ele, o queridinho da fazenda.
As crianças vem e passam-lhe a mão acariciando-lhe a lã, ele bale feliz e a festa está
feita com a criançada.
Uma bela manhã, o cordeiro acorda e nota um grande alvoroço no galinheiro, penas e
penas voam, cocó e corococó de todos os lados possíveis. O que está a acontecer?
Pergunta o pequeno ovino aflito, Não te metas! Responde o portentoso touro que faz as
vezes de xerife da comunidade. Este, passa o dia dormindo e mal consegue andar devido
ao peso e a avançada idade, por isso, causa grande espanto ve-lo ali. Algo grave
aconteceu. Nossa fazenda é sempre tão calma! O que pode ter acontecido? Ele seu
pequeno tamanho e avança por baixo dos outros animais ali reunidos. Mas como pode
acontecer isso? Não, nunca nos aconteceu... sempre se mantiveram longe daqui.... Mas
foi apenas um? Não, todos, queixava-se a grande galinha mãe, Todos os ovos se foram,
sumiram, meus queridos bebês... e chorava compulsiva como se o mundo dependesse de
seus ovos. A tristeza era de fato percebida nos olhares animais de todos, porém, não tão
preocupados com os ovos, galinhas põe ovos todos os dias afinal, mas preocupados com
o que poderia vir a seguir. A fazenda nunca havia sido invadida antes, nenhum dos seus
tinha se perdido. Cada um era prontamente localizado quando distante, e mesmo o
cordeiro desprezado pela inveja era, nesse sentido, prezado e tido sob os olhos
vigorosos de todos. Nenhum dos nossos se perde! Gritava o coro daqueles que sentem
sobre si o olhar aterrador de forças mais fortes que a si mesmos e portanto só tinham a
lamentar e declarar que fosse feita vigília nessa próxima noite. A galinácea, após grande
preparo psicológico, pos-se no ninho e dava gritos angustiados a cada novo rebento que
saia de suas entranhas. Eu fico de prontidão esta noite, falou o poderoso xerife touro.
Chegou a hora de todos irem dormir. O cordeiro estava bastante abalado, sua confiança
fora por água abaixo, porém, Amanhã será um novo dia, nada de ruim acontecerá, o
grande touro há de proteger-nos! No entanto, após a longa noite de sono, quando todos
cansados, caíram como que desmaiados sob o peso que lhes afligira durante o dia. Ao
acordar, novos gritos daquela mãe que ontem perdera suas crias. A cena era semelhante
a Maria chorando com Cristo no colo na Pietá de Michelangelo. No entanto, mais triste
era essa cena, pois nem corpos para chorar tinha a galinha mãe. O cordeiro balia
choroso e ao olhar para o lado, viu o grande touro como uma grande pedra negra sendo
acordada a cabeçadas pelos porcos. Tu não ficaras atento? Perguntam todos, Uma
grande sonolência me abateu, ouvi um som agudo e esguio e não pude manter abertos
meus olhos, não sei o que mais declarar, acordei apenas agora, e só tenho a lamentar.
Via-se o arrependimento sincero, uma lágrima caia de seu olho taurino e se fosse
humano estaria roxo de vergonha. Dado não ser, continuava preto, como bom e
tradicional touro que era. Só pode estar velho o grande touro, falou baixinho o pequeno
cordeiro, e, por incrível que fosse, todos concordaram, esquecendo por um momento de
onde vinha o pensamento. Não podes mais ser xerife aqui. Está na hora de descansar, já
fizestes muito por nós e todos somos gratos, mas precisamos de uma força jovem,
alguém que não durma durante a vigília. Devaneios tomaram conta do pequeno
cordeiro, E se eu fosse o xerife, iria prender todos que viessem fazer mal, e todos
ficariam gratos a mim por ser o salvador! Enquanto seu ego engrandecia, o grande touro
disse a todos, Não fosse por vós e não estaria eu onde estou hoje. Muito fiz e com esse
fracasso reconheço que não sou mais digno de tal função. Um espírito jovem cuidará do
legado que deixei. Os novos nascem para substituir os velhos e essa é a lei da vida.
Pequenos, um de vós será meu sucessor e peço-vos que enfrenteis uma pequena prova.
Pedirei a algum pássaro amigo meu que voe e ponha uma maça no topo daquele celeiro
a vossa direita. Aquele que me-la trouxer será o novo xerife. Agora, eia, ponham-se a
caminho e pensem na forma com que irão conquistar esse título. Vós tendes até o por do
sol! Grande alvoroço! Todos os filhotes ficaram extasiados com a ideia, principalmente
o pequeno cordeiro, cuja felicidade e doçura, a essa altura, já deve ter entrado no
coração de todos nós. Como farei eu para pegar esta maça? Pensava com sua lã. O
pequeno galo, mal formada a crista, tentava em vão lançar voos desesperados ao topo do
celeiro. Subia sobre os fardos de feno e se lançava em um voo suicida semelhante ao
lançamento de uma pedra em um poço. O pequeno porco, que mal sustentava o próprio
pesado, se lançava desesperadamente á parede do celeiro não atingindo mais do que um
metro para cima. O pequeno bode lançava-se de cabeça contra o celeiro pensando, Sou
forte, sacudirei esse celeiro até que caia a maça. Porém, muito grande era o celeiro, e
pequeno era o bode. Todos os outros animais se valiam de atitudes semelhantes, exceto
o pequeno cordeiro. Este olhava, deitado, como que encantado pelo celeiro e a altitude
em que a fruta que lhe daria o poder de passar sobre todos os outros estava. Passavam
por ele e diziam, Já desitistes? Não queres nem tentar? Bem sabíamos, és fraco, não
serves para nossa segurança, siga aí, é o melhor que fazes. Porém, o pequeno mal ouvia
o que lhe diziam. Por volta do fim da tarde, ninguém havia feito melhor trabalho que o
porco, que já avançava metro e meio sobre o celeiro. Amigos! Amigos! Baliu
entusiasmado o pequeno, Tenho uma ideia mas preciso de vocês. Obviamente ele foi
zombado. Passaste o dia a olhar nosso trabalho e quer dizer-nos que tirarás a maçã do
celeiro? Não sejas louco, volta a dormir. Mas eu sei que posso, basta que me ajudem! O
sorriso dele foi a chave para que os outros pudessem concordar em ajuda-lo. Apesar do
nojo e ciúmes, filhotes não odeiam. Filhotes nascem puros e com puro amor no coração.
Essa coisa de odiar a gente adquire depois que cresce. Façamos uma torre com nossos
corpos, amigos, aquele lado não é tão alto, poderemos alcançar a maça ali. Espanto de
todos. Não é que o pequeno, após tantos devaneios chegara a uma conclusão plausível?
Lá foram eles. Animal sobre animal, sobraram embaixo o terneiro e o cordeiro.
Terneiro, tu sobes e eu subo sobre ti e pego a maça, afinal, a ideia foi minha! Para
espanto do inocente cordeiro, a resposta foi uma corrida do terneiro sobre os outros
animais alcançando com esforço a borda do celeiro, e maior esforço a subida do próprio
peso para o telhado onde estava a maça. Peguei a maçã, exclamava, eu sou o novo
xerife, eu sou!! Pobre cordeiro. Sua ideia rendera o título ao terneiro. Mas tudo bem,
enfim, não sou grande e forte como ele, que ideia essa minha de ser xerife! No entanto,
uma voz forte e grave conhecida por todos exclama: Eis que a maça foi pega. Muito
bem, esse era o objetivo. Mas maior mérito demonstra quem praticou a ideia ou quem
teve a ideia? Todos olharam para o grande touro que estava ali o tempo todo sem que
todos percebessem. Pequeno cordeiro, tu és digno do título que a ti pertence, és meu
nobre sucessor! Se ouviam barulhos indistintos daqueles que cerca estavam. Mistos de
aclamações e vaias para o réu que ali estava sem cometer crime algum. Tu farás a
vigília de hoje e serás o responsável por prender quem quer que esteja por trás do rapto
dos ovos! O cordeiro, espantado, responde, Mas eu? Sou fraco, e não tenho grandes
músculos como tem o terneiro! Vistes como subiu ao telhado do celeiro! Mas tu tiveste
cérebro, respondeu o touro, O planejamento é maior que a própria ação em si. O
cordeiro então agradece e pede que o terneiro faço com ele esta vigília, Eu serei a
cabeça e ele os músculos, vai ver não posso com o adversário tão forte que virá. Sábia
decisão aclamada pro todos. Vamos, já é hora de descansar, fiquem os dois a pastorear a
galinha, que a essa altura, já havia posto mais uma ninhada de ovos em seu ninho.
Façamos turnos, meu amigo, Disse o terneiro, Sim, concordo, estou cansado, Então
durma, que eu assumo e lhe acordo após, disse o terneiro. Nessa terceira noite, enquanto
pastoreava o terneiro, fez-se se ouvir um silvo longo e agudo, junto ao som de folhas
sendo arrastadas pelo chão. Tremia feito vara verde o corajoso e orgulhoso terneiro. O
que será isso? Pensava, e olhava para todos os lados possíveis, quando sente, de repente,
uma forte pressão em sua pata traseira, algo enrolado e viscoso ao qual tentava em vão
se desprender. Ssssssss, o grandão dormiu ontem, voçççê não, porque? Agora precisssso
lhe matar! Por favor, não, chorava esganiçado e pedia, Lhe dou qualquer coisa, pela
minha vida! E o que tensss a oferecer? Perguntou a serpente, Não sei o que procuras! A
serpente respondeu, Tenho fome de vida. A vida contida nesses ovos me dá força para
continuar rastejando, e apesar disso, esses ovos a que busco tem mais vida do que você.
Teu coração já se tornou perverso e orgulhoso, tua vida já não vale pra mim, por isso,
posso deixar-te viver se me deixares apenas buscar os ovos que ali estão. Mas eu não
posso, disse o terneiro, Então matar-te-ei. Não, espere, disse o terneiro, Pelo que
disseste, se eu tivesse um coração puro, minha vida bastar-te-ia? Certamente, por um
bom tempo não precisaria me servir de ovos. Então, na outra sala tenho certeza que
encontrarás o que busca, deitado ao lado dos ovos, um cordeiro sem mancha, puro, cuja
alma é o espelho da brancura de sua lã que tenho certeza far-se-ia feliz em servir-te de
alimento. Rastejando foi a serpente para dentro, e um arrepio perpassou sua espinha ao
tocar com sua língua bifurcada aquele que ali dormia tranquilo, sonhando com pastos
mais verdes e água mais clara. Nunca senti tanta vida em alguém, quanta pureza, que
coração vivo!! Isso me saciará por um bom tempo, por um bom tempo não precisarei
voltar a essa fazenda, tens certeza de que queres entregar-me-lo? O terneiro, pensativo,
apenas balançou a cabeça afirmativamente e virou as costas.
A cena que desenrolar-se-á é trágica, no entanto, a doçura do cordeiro não se
perdeu em nenhum instante. Ao sentir o abraço da serpente, recostou-se num sorriso,
por certo sonhava com a mãe que fora morta logo quando desmamado. Nesse abraço de
mãe, protetora, ao livra-lo das garras da fúria dos outros concidadãos da fazenda,
parecia receber carícias, mesmo ao estalo de seus primeiros pequenos ossos sendo
triturados pelo abraço mortífero. A própria serpente dizia-lhe ao ouvido, É necessário
pequeno, é necessário, E envolvia-lhe cada vez mais. Em nenhum momento acordou,
por certo sua mãe dizia-lhe em sonho, continua a dormir, logo estarás comigo e
galgaremos os picos mais elevados dos mais verdes prados. Ao dar o último respiro,
uma lágrima caiu dos olhos da ofídia que pensava consigo, Nunca vi tamanha doçura,
talvez não torne mais a precisar de vida, talvez isso me baste eternamente, tamanha
lição! Após a refeição completa, a serpente, agora com vida nova, exalava o doce e
terno sorriso do cordeiro. A vida dele fizera-se nela. Cobra e cordeiro um só, para todo
o sempre.
Da música e do Amor
Abigail Somavilla

Muitos e muitos anos atrás, certa vez, diga-se já de passagem nem assim tão
certa, dado que a única certeza do destino é a incerteza, certo pássaro cantor em um
reino distante vivia solitário (solidão de todos). Canorus se chamava e suas asas azuis
multicores brilhavam ao sol, sob o qual, perdido nos próprios pensamentos vagava.
Oculto pela copa das árvores onde pousava, ou mesmo oculto pela imensa altura que
suas duas asas lhe proporcionavam alçar, por vezes perdia-se em voos sem objetivo
algum. Apenas lhe apetecia voar, lhe aprazia vislumbrar do alto as formas que lhe
faziam sombra pela imensidão quando estava no solo e, no entanto, se faziam pequenas
e humildes quando em um ato de galhardia frente a estas formas, ruflava as asas e subia,
rumo ao inalcançável, onde montanha, árvore, ou predador algum lhe acompanharia. As
Sombras Eternas lhe haviam dado o dom do voo, por isso era grato eternamente e tudo
o que fazia, o fazia em honra ao sagrado e ao transcendente. Estava livre das amarras
que prendiam os outros animais ao solo. Ele e seus companheiros pássaros que em raras
ocasiões a ele se juntavam, desbravavam as alturas sem temor algum. Apenas lhe
ameaçavam as chuvas e os trovões e no entanto, sentiam dentro de si quando estas se
aproximavam buscando então, abrigo. Não era nenhum falconiforme este Canorus, por
isso sua visão não era tão aguçada como a dos seus irmãos caçadores, porém também
dela não precisava. Alimentava-se principalmente de pequenos peixes que pescava em
riachos próximos, ou então dos pequenos insetos que se aproximavam quando estava
pousado em algum galho qualquer, ou mesmo no chão dos imensos campos que
cobriam aquelas regiões, cobertas de imensos animais semelhantes aos nossos bovinos
atuais, porém portando poderosos e potentes cifres que em muito diferem do conhecido
por este mundo. Faziam longas curvas e abruptos ângulos retos, cuja descrição tomaria
páginas e páginas deste relato que a isso não se atém. Tinham duas vezes o tamanho de
um touro de concurso, com enormes e grossos pelos que pendiam até o chão e eram
usados por seus habitantes na confecção de cordas e tecidos. Eram belos animais os
daquela época. Imponentes. Destemidos. Ferozes e voluptuosos, não deixavam que
qualquer um lhes fizesse obedecer. A arte da criação dos Belozúpteres, pois esse era o
nome desses imensos bovinos, era uma arte antiga, passada de geração em geração.
Tinham o tamanho de pelo menos oito dos zíbenas (um curioso povo, curiosos dentes
lhes chegavam à cintura e por certo lhe atrapalhavam a vida, mas enfim, cada um com
os dentes que merece por si) que habitavam aquela região, por isso, quando um deles
morria, ou em épocas de fome, era morto, fazia alimento a toda a população
circundante. Antes de sabermos mais sobre Canorus, eu acredito que seja válido saber
mais sobre essas imensas bestas que povoavam o reino nessa época, pois muitas e
muitas vezes o passado ilumina o presente com a sombra do que já foi.
No princípio da contagem dos anos, as Sombras Eternas se deram a conhecer ao
primeiro sacerdote. Era um caçador, que possuía quinze belas filhas. Era costume que as
mulheres tivessem um filho a cada ano. Possuíam a beleza dos primeiros habitantes
deste mundo (pois a beleza foi dada no início aos seres e a perversão os conduz ao mau
caráter que se espelha em seus corpos), e aqueles que as criaram, vendo a beleza que
proporcionaram ao mundo, quiseram também uma parte dela nas montanhas escuras e
vales em que habitavam. Certo dia, caçando pequenos animais, quis o destino que ele
fosse procurar alimento na morada das Sombras, e ali, uma grande escuridão
subitamente o cobriu. Parecia a noite ter caído sobre seus olhos e deixado no céu as
estrelas sozinhas a brilhar. Seus olhos não viam um palmo à própria frente. Ponderava
ter ficado cego de repente e punha à frente dos olhos as mãos em pavor, quando ,
retumbante, um coro de vozes dentro de si lhe disse - Bem vindo sejas, mortal. Tapamos
teus olhos para que não vejas aquilo que ainda não podes ver. Mas sejas abençoado
porque escutas nossa voz. Tu farás com que nossa existência seja provada e temida
pelos habitantes da tua terra - O coração do futuro sacerdote encheu-se, então, de medo
e, no entanto, não havia nada que pudesse fazer. Seus pés estavam cravados no chão
como raízes, suas mãos geladas como se tocassem as águas do Carionis congeladas no
período do inverno. Seu corpo inteiro suava e tremia como em espasmos de morte. No
entanto, as Sombras vendo que o mortal as temia, lançaram uma visão em sua mente. –
Vê, mortal. No alto daquele monte, onde jamais ousaram tu e teu povo subir, vê os
grandes animais que pastam. Chamarão-os belozúpteres, e eles vos darão carne e tecido
para que vos agasalheis no inverno. –No mesmo instante, na visão, um dos imensos
animais gritou um grito feroz e avançou sobre outro que lhe fazia frente ao que parecia
ser uma fêmea pronta para o acasalamento. O choque dos seus corpos e seus imensos e
pitorescos cifres fez com que o mortal estremecesse e temesse estes animais. No
entanto, as vozes de novo disseram: - Não temas! Nós vos daremos a chave do coração
e alma destes grandes e úteis animais, para que aproveiteis e saibais que nós somos bons
desde que temam a nossa bondade. Apenas pedimos em troca, uma vez a cada ano, que
no dia em que tua filha mais velha completar o número das filhas que tens hoje, em
anos (e nisso serás agraciado, pois te damos agora a fecundidade e a promessa de uma
imensa prole), ela nos seja dada, e oferecida como sacrifício dos teus, para que saibam e
reconheçam que fomos nós a vos dar a chave dos corações dos animais que vos
alimentarão, e enquanto manterem essa tradição, as bestas vos serão dóceis e vos farão
felizes. – O mortal, agora imbuído Sacerdote das Sombras Eternas, teve a vista
desvelada e caiu de joelhos em um lugar diferente que estava. À sua frente estava a
montanha que fora mostrada na visão, em seu âmago estava a resolução irrevogável de
sua própria alma, pois sabia que não havia opção além de acatar o que lhe havia sido
dito. Olhou à sua esquerda e viu, sob uma redoma de vidro, uma flauta de madeira
pequena, porém bela. Entalhada com ricos arabescos e formada de uma madeira que
ainda nenhum mortal conhecia. Ao levantar a redoma que a cobria, um doce som vindo
de toda parte o envolveu, e então teve a certeza que era esta a chave dada para que os
belozúpeteres fossem domados.
Sabia que esta missão era sua e não seria crido se não voltasse ao reino com ao
menos um desses animais, por isso partiu rumo à montanha que os deuses lhe haviam
mostrado. Era colossalmente alta. Ninguém havia ainda tentado chegar ao seu cume, e
muito menos sabia o que havia ali. Seu topo era coberto de nuvens e mal se podia ver
seu topo a não ser de uma grande distância. Enquanto caminhava, pensava nas filhas a
quem era obrigado sacrificar ele mesmo, juntamente com parte da própria alma a cada
ano. Tinha-lhes grande amor, mas maior era o amor que tinha por seu reino e pelos seus.
Suas quinze filhas e ainda as vindouras seriam sacrificadas. A mais velha estava a duas
semanas de completar os quinze anos. O coração do caçador sacerdote doía. Uma
agonia de morte lhe transpassava o peito. As lágrimas já escorriam de seus olhos, porém
sabia que era necessário. Com grande fadiga chegou ao topo da montanha e ali havia
uma grande planície pois imensa e antiga era a montanha. Ante a visão dos belos
animais, seu coração acelerou. Uma sensação semelhante ao do êxtase no encontro
divino se apoderou de si. Os grandes animais, cujos corpos subiam aos céus logo o
cercaram, acuados e ferozes, dado que nunca antes haviam sido corrompidos em sua
solidão. Os feros rugidos faziam que o caçador tremesse, sua mente era um vazio e
porém, em um instinto deveras divino, sua mão automaticamente, pois sua vontade
nesse momento já não existia, foi guiada à flauta que trazia pendurada e de seu corpo
tubular saíram notas que envolveram o imenso rebanho. A cada nota da melodia nunca
antes ouvida por mortal ou imortal algum, os belozúpteres se tornavam dóceis e meigos,
e assim, o seguiam montanha abaixo aqueles que nessa instância não eram ratos (Vide o
Flautista de Hamelin que guiou animais bem menores que belozúpteres com sua flauta,
mas não lhe tiremos o crédito).
Chegou ao reino com o rebanho de ao menos cem dos portentosos animais a
tremer a terra e a multidão de zíbenas os cercava espantada, pois agora eram eles os
animais acuados que nunca haviam visto nada parecido. No centro do povoado, o
sacerdote contou à multidão tudo que lhe havia acontecido, e a multidão creu nele, pois
viram a prova dos animais que iriam lhes salvar da fome, da miséria e do frio. Na
mesma semana, um deles, domado pela flauta foi sacrificado e os zíbenas tiveram
alimento suficiente por um ano. O caçador sacerdote ainda não havia criado coragem
para anunciar o que era necessário para que a gratidão por tudo isso fosse elevada aos
céus. Muito menos teve a coragem de contar à família toda. Chamou as mulheres de sua
vida uma a uma, primeiramente sua esposa, que aos prantos gritava aos céus pedindo
que lhe fosse poupado este castigo. Em um único olhar, daqueles a que uma esposa
submissa está acostumada a entender, o marido tornou irrevogável o fato de que a
decisão sobre as filhas estava tomada. O bem da comunidade era maior que o próprio
bem. As Sombras foram categóricas: Ou as filhas, ou a fome. O amor à família, ou a
morte pela miséria dos vizinhos e amigos. Não havia saída. Não havia opção (Não há
saída. Não há opção. O destino é certo. Não há livre arbítrio, não há escolha. Nunca.).
As sombras demiurgas foram cruéis e ainda assim, extremamente bondosas. Não
sabendo lidar com o assunto, o pai desesperado pediu à mãe lacrimosa que contasse às
filhas restantes. Às mais novas fora poupada a notícia. Não entenderiam ainda, não
havia porque conturbar tais puríssimas almas que só seriam tornadas em cordeiros daqui
a vários anos. Eis que, a partir deste dia, uma sombra negra pairou então sobre aquela
casa outrora feliz. A felicidade se apagou no mundo e as flores perderam sua cor quando
as bocas dos próprios pais pronunciaram a fatídica sentença às filhas perplexas. O rubor
da face virginal da filha mais velha foi substituído pelo rigoris mortis. Completaria seus
quinze anos em menos de uma semana e o que era motivo de felicidade agora se tornava
seu maior e mais absurdo medo. Não comia. Não falava. Estava já como se sua alma
tivesse se separado de seu corpo no momento da notícia. Porque nós? Pensavam elas.
Porque as Sombras não escolheram qualquer outra pessoa, um velho que fosse, alguém
já a beira da morte! Tínhamos toda uma vida, marido e filhos pela frente, tudo se foi,
tudo é tristeza... Nossos sonhos de amor, de casamento... Quem passava por ali ouvia o
silêncio e era abordado sem pena pela lamúria que o local exalava. Apesar disso, não só
a tristeza tomava quem passava ali. Eram tidos com grande e terno respeito. A entrega
das filhas era agradecida por todo o reino e não faltava quem se dispusesse a consola-
las, apresentar-lhes mimos e tentar resolver da forma mais branda a horrível situação.
Aproximavam-se os dias da cruel execução da sentença. O caçador, sacerdote e
acima de tudo, pai, decidira que a forma da morte seria a precipitação das filhas do mais
próximo e mais mortal penhasco próximo à habitação dos seus deuses. Ali seria
devolvida aos criadores a filha que por tão pouco tempo lhes fora dada. Após longos e
duradouros choros, enfim cessaram as lágrimas da que seria executada. Talvez tenha
aceitado a morte, talvez apenas suas lágrimas se tinham esgotado. Não sabemos. Fato é
que não teve tempo de pensar em tais pormenores. No dia da celebração do seu
aniversário e morte, fora vestida como noiva. A alva brancura das doces formas da
menina rósea e juvenil, emagrecida pela dor da morte certeira, era amparada pela
brancura do vestido cosido pela mãe. Linha e lágrimas ali estavam. A dor estampada no
tecido que cobria as partes ainda e eternamente virgens da amada filha. Estavam
reunidos ali todos: Parentes, amigos, conhecidos para o sacrifício. Estava sem expressão
a vítima que iria ser imolada. Seus olhos foram tampados por uma funesta venda, e
pelas mãos dos pais foi conduzida ao voo fatal. Não era pássaro por isso não podia voar.
As pedras que lhe deram as boas vindas quebraram sua coluna em pedaços incontáveis.
Ninguém quis olhar para baixo após o acontecimento, pois se olhassem, veriam que o
corpo já não estava ali. Como prometido, logo após a morte as Sombras a levaram para
seus palácios. Reconstruíram seu tenro corpo e lhe colocaram sob uma redoma
insondável onde viveria eternamente, cercada de formas risonhas que a contemplavam
pela alva beleza agora imutável. Assim era o ritual que todo ano acontecia. A cada ano
uma das filhas era dada ao precipício e conforme a promessa, os belozúpteres eram
mantidos como sustento do reino. Alguns poucos animais bastavam durante o ano. A
imensidão de suas carnes se projetava ante a fome dos muitos cidadãos e era o
suficiente. No máximo três eram suficientes, e não esgotavam a bondade de seus deuses.
Canorus, nosso pássaro cantor do início desta história, vivia nesse mundo de tais
rituais. Voando em círculos pelas planícies, tinha medo dos imensos animais de que se
alimentavam os zíbenas, por isso tinha medo de descer de suas alturas àqueles que à ele
pareciam imensas montanhas que se moviam lentamente pelos imensos campos onde
eram criados. Tinha medo de ser devorado, mesmo sendo estes animais herbívoros
constatados e apenas ferozes quando ameaçados por algum predador que nesciamente se
aproximava. Costumava pegar alguns pequenos peixes no riacho próximo quando não
havia nenhuma fera próxima. A mais leve passada era sentida em seu corpo leve e então
se apressava alçar voo, por mais que ainda não tivesse nada em sua barriga. O pássaro
era apaixonado pela beleza, e não deixava de vir cantar à janela da família escolhida
pelas Sombras. As filhas do sacerdote o encantavam, pois eram doces e o sentimento de
liberdade que possuíam era visto no rosto destas, que já conformadas com o cruel
destino que a elas já lhes parecia doce, o alimentavam em suas próprias mãos e seu
canto as agradava. Em seu íntimo sabiam que eram importantes para que todo o reino
sobrevivesse. Obviamente estavam agoniadas. A morte não deve chegar antes de que se
viva e no entanto, viviam seus quinze anos felizes (como podiam). Canorus, de certa
feita, percebeu que a cada ano, uma das filhas sumia. Atribuía isso ao casamento, a
viagens quaisquer, porém o que não imaginava era o real destino que descobriu um dia
por acaso sutil do destino que nos brinda com merecimentos desproporcionais à nossa
eterna miséria. Sobrevoava as montanhas próximas de onde havia se dado o encontro
entre o caçador e os cruéis e justos deuses. Voava sem rumo certo, em círculos como lhe
aprazia, quando seus olhos foram atraídos para uma multidão em procissão. Seguiam
cantando. Lamúrias solenes e de alguma inexplicável forma, alegres. A frente deles,
para espanto do pássaro que se aproximara, estava, vendada, a filha mais velha do
sacerdote e também predileta do pássaro. Caminhavam lentos, a passos arrastados,
como quem posterga ao máximo algo que tem a certeza de ser impossível impedir.
Vestiam roupas sóbrias. A filha à frente cambaleava ébria. Provavelmente foi lhe dado
vinho para que pudesse afogar a agonia do momento fatal na fermentação uval. Quando
finalmente reparou ao que se dirigiam, suas asas estancaram de repente, e não fosse seu
corpo extremamente leve que demorava a cair, teria sucumbido a queda. Conseguiu
refazer-se antes que seu destino se igualasse ao da filha e correndo foi ao encontro dos
dois pais chorosos que abraçavam a filha em uma última despedida. Voava em torno
deles, fazia estardalhaços, mas como iria um pequeno pássaro como ele comover uma
multidão esperançosa, na certeza do alimento vindouro do próximo ano? Dera o último
passo em direção ao abismo. Seu pé enfim vacilou, sua expressão retraiu-se em terrível
pavor e esvoaçante em seu vestido alvo como a brancura da neve, dirigiu-se às pedras
que a esperavam. Não fossem as Sombras, a esperariam também o corpo das outras
filhas, mas estas, a esperavam felizes e sorridentes na Eterna Morada, onde iria, com
elas, enfeitar e ser motivo de gozo e regozijo, (pois a beleza apenas serve para ser
agradável aos olhos e sendo assim tem uma utilidade plena e definida em sua essência.
Se nascestes belo em teu corpo, põe-te sob os olhos dos transeuntes e clama que te
vejam e se regozijem em tua beleza. Se nascestes belo também em tua alma, alegra-te.
Mostra a todos tua beleza que é mais profunda que qualquer outra forma de bondade).
Longos meses se passaram após esta trágica feita. O pássaro inconsolável não
podia conter-se e lágrimas escorriam de seus olhos úmidos durante o voo. As lágrimas
regavam o reino e delas surgiam pavorosas plantas, carnívoras, horrendas, pois tal era o
horror incumbido no interior dele que a felicidade se corrompera dentro de si. Já não via
mais motivo para sua existência e suas divagações eram apenas sobre a morte. Da
felicidade passara ao tédio e do tédio à total descrença nas sombras. Sua existência era
marcada pelo pessimismo e pela não coragem para tirar a própria vida. Apenas
aguardava ansioso, que a morte batesse em sua porta e enfim encerrasse a difícil tarefa
que é viver (pois a vida nunca é prazerosa, é horrenda em todos os sentidos e engana-se
quem diz o contrário tentando consolar-se). O bater de suas asas já não era o mesmo e
os muitos tons de azul agora já haviam se tornado opacos e semelhantes ao cinza.
Descia à planície para se alimentar nas raras vezes em que a fome o colocava às portas
da morte, já que a covardia lhe impunha a fatalidade de não conseguir morrer por
escolha própria. Nessas descidas já não tinha medo, deixava que os belozúpteres se
aproximassem cada vez mais e, no entanto, voava assim que um deles o ameaçava.
Maldita covardia. (Permita-me morrer, permita-me não existir. Sou apenas um inútil ser
neste vazio existencial em que ser tornou minha vida)
Havia ali nessa região, um belozúpter maior que todos os outros. Tinha ao
menos o dobro do tamanho dos outros e por isso era respeitado e sua opinião era lei.
Não viviam uma ditatura pois não era ele um ditador. Amava os semelhantes. Pregava o
amor, a paz e a fraternidade entre eles mesmos e cria que o bem reinaria quando todos
fossem iguais. Era ele bondoso, e não pensemos que não sofriam os belozúpteres ao ver
partir um de seus irmãos. Como qualquer outra comunidade, viveram felizes na grande
montanha que os abrigava até que, surgiu a flauta que os fazia sucumbir ao desencanto
da fome humana. Assim como penavam os zíbenas entregando uma das suas, penavam
esses grandes animais ao entregar forçadamente um dos seus. Porém não havia solução
para eles. Alimentavam a comunidade que a eles e às sombras era grata. A fraqueza do
seu coração era aquela melodia tocada divinamente pelas mãos mortais tomadas pelas
Sombras na hora em que se faziam necessários os sacrifícios.
Canorus, o pássaro cantor desta história, quase já não cantava. Seu canto era um
lamento rouco e triste vindo do fundo de seu enorme coração, pois realmente, aqui e
nesta terra distante de que falamos, o coração das aves tem o pesar de ser
desproporcionalmente maior que o dos outros seres, cabendo ali, portanto, mais
sentimentos que nos corações humanos tendenciosos a ocultar toda e qualquer
manifestação sentimental. O pássaro adquirira o hábito de permanecer numa árvore
próxima à casa do sacerdote na semana anterior ao próximo sacrifício. E ali cantava dia
e noite, e ali choravam dia e noite todos, pois não podiam conter o próprio coração
diante do canto triste que soava, e suas almas choravam. Lágrimas enormes e cintilantes
regavam a terra e por um longo tempo, após o sacrifício ainda mais, o luto eterno se
fazia. Como os bondosos deuses eram cruéis! Na compaixão se fazia a descompaixão e
a morte. No fajuto e interesseiro amor faziam a cada ano mais belos seus palácios com a
presença das filhas que eles mesmos criaram, deram ao mundo e agora, egoístas que
eram, as requisitavam de volta. Faz-se inexplicável o sentimento abundante na
comunidade dos zíbenas. Mesmo tristes, estavam alegres. Alegres com a morte e talvez
felizes de que não fosse alguém de sua própria família. Alegre tragédia e trágica alegria
instaurada no reino que outrora vivia em paz, e agora, por orgulho e estímulo das
sombras, vivia regado em orgias e prazeres dantes concebidos apenas nas mentes dos
habitantes mais perversos. O reino se fazia feliz à custa da morte. Divertiam-se em sua
morada eterna, as Sombras. Riam do que provocaram. Em sua eternidade nada mais
tinham a fazer do que zombar de suas criaturas. Admiravam a confusão que causavam,
pois sua bondade era utilitária. Os zíbenas lhes eram úteis enquanto podiam lhe
provocar prazer e para isso instauravam tais confusões disfarçadas em vistosas fardas de
benignidade. Canorus era agora uma de suas vítimas e percebendo a maldade das
bondosas Sombras já não tinha pelo que dar graças. Se seus dias e feitos eram outrora
dados em função de agradecimento aos que tinham lhe dado a peripécia do voo, agora
apenas lamentava poder voar e não ser vítima da fome de algum animal terrestre.
Certa feita, estando a beira do riacho num dos raros momentos em que a fome
insistia para que continuasse vivendo, procurava desanimado qualquer mísero pescado
que pudesse por em seu bico alongando alguns dias sua existência sem sentido algum.
Nesse dia seu coração pesava mais que o normal, se aproximava o dia do próximo
holocausto e cantava dolorosamente, em lamentos como quase nunca haviam se ouvido.
Tamanha dor poucas vezes fora oferecida a qualquer criatura que fosse. Fora-lhe dado
um grande coração para que também fosse grande o sofrimento que deveria carregar.
Assim cantava e assim atraíra vários peixes que se pudessem chorariam com seu canto,
mas dada a redundância do chorar dentro d’água, diremos apenas que tristes estavam.
Assim dois deles foram fáceis alimentos do pássaro que interrompera seu lamento para
com poucas bicadas levar dentro de si o alimento desnecessário. Se dispusera então a
alçar voo quando ouve, grave e penetrante, Não vá ainda, teu lamento é triste e toca meu
coração, a alegria forçosa é fútil e em ti vejo a sinceridade, pássaro. Temoroso, Canorus
volta-se, e metros adiante e metros acima dele está o líder da comunidade dos
belozúpteres, e amedrontado e covarde tenta ruflar suas asas que o levam em direção ao
topo de uma grande e espinhenta árvore, que por lhe faltarem os olhos, dados que estes
estavam presos no gigantesco animal que lhe voltava a palavra, batera com toda força e
rasgara metade da asa esquerda nos espinhos, caindo ao chão, desacordado e inerte,
como um peso morto que desaba de um precipício, como as filhas do sacerdote
estilhaçadas ao quebrarem seus corpos contra as pedras do precipício onde eram jogadas
por capricho divino.
Acordou envolvido no que lhe pareceu o mais confortável ninho do universo.
Enfim morrera, pensou. Enfim o destino apiedou-se de mim e trouxe-me a post mortem
melhor do que eu imaginava. Quero eu estar aqui eternamente. Que belo céu se projeta
sobre mim, pensou ao olhar para cima. Em um instinto de pássaro, gorjeou três notas
como a tempos não gorjeava. Foram três notas que apesar de felizes saíam ainda roucas
e pesadas pela falta de hábito. Quando estava disposto a tentar novamente, ouviu vindo
debaixo de si, Ora, enfim acordaste, pequeno! Pensei que não mais o ouviria!
Sobressaltou-se de tal maneira este pássaro, que por pouco não repete a façanha que o
deixara desacordado por várias semanas enquanto era carregado no lombo enorme do
líder belozúpter. Tentou assustado ruflar as asas, que estavam presas abertas por uma
estaca de madeira para que se curassem, e ao ver que não conseguia desesperou-se e
pôs-se a chorar novamente. Seu choro rouco e triste fez-se ouvir de novo, o mesmo
choro que envolvia as filhas do sacerdote próximas da morte e vários desses animais
enormes que estavam por ali choraram. -Acalme-se pássaro, pois não fosse por mim e
estavas morto! -Queria estar! Deveras melhor estaria! Deixe-me ir, agradeço-te, mas
deixe-me! Escute, tenho teorias fortes a teu respeito. Acalme-se e ouça que não lhe
faremos mal algum. Não te curei para ver-te morto. Ouça! Teu canto causa muita
emoção em nós! Como sabes, é a flauta dada pelas sombras que nos comanda e é a
música dela que nos faz ser levados à morte. Tudo leva a crer, pássaro, que se te
esforçasse, provavelmente poderias tu também guiar-nos a morte. –Não entendo- disse
Canorus- queres que eu vos ajude a matar? Quem sou eu? Não quero participar de mais
sacrifícios pois já me bastam as amadas donzelas sacrificadas a cada ano. –Pois então,
elas só são mortas em troca da flauta que foi dada a seu pai. Se a flauta puder ser
deixada de lado... –Não precisarão que lhe matem as filhas!- exclamou quase alegre o
pássaro, mas por um instinto de bondade que começava a surgir dentro de si na
esperança que se revelava após tanto tempo, esperança que estava em si mesmo por
tanto tempo, perguntou – Mas e vós? Continuarão a ser mortos, continuarão a ser
usados, não vos incomoda? –Não há fato mais triste em nossa existência, mas nos
conformamos. Aprendemos a amar os zíbenas e aprendemos que a razão de nossa
existência é esta. Vivemos por muito tempo alheios ao que passava aqui embaixo.
Todos penavam e viviam na miséria enquanto vivíamos nossa paz. Chegou o tempo de
sermos úteis pois toda sociedade necessita seu bode expiatório. Da próxima vez, e pelos
meus cálculos será logo, que o sacerdote vier buscar um de nós com sua flauta, quero
que estejas aqui e aprendas a melodia que soa na flauta. É a chave dos nossos corações e
almas, ali repousa nossa emoção e nossa virtude. Tu farás o papel do instrumento mortal
então e se apresentará aos zíbenas que verão não mais ser necessário o sacrifício. Estava
já o pássaro envolto em lágrimas, o amor que irradiava da atitude do belozúpter lhe
tinha devolvido o azul de suas asas e lhe promovera a cura completa. Com um forte
ruflar de asas quebrara a estaca que as prendia pois estavam agora mais fortes do que
nunca. Em seu primeiro voo após o longo tempo de debilidade, pairou a frente do
gigantesco animal, olhou em seus olhos, seus olhares se encontraram e em um mágico
instante beijou-o. Não me perguntem como ocorreu tal fato, apenas usem vossas
imaginações, pois nem tudo nesse e em outros mundos segue a ordem da física e da
lógica que nos limita. Abriram a boca os dois para falar, porém, nenhuma palavra lhes
saiu. O brilho no olhar era denunciante. O belozúpter cuidara do pássaro que o amara
desde o primeiro instante. O pássaro se deixara amar e cuidar e agora, em gratidão, só
podia o amar de volta.
Tão grande amor não se vira igual. Não era necessária a cópula, pois de fato, o
instinto carnal só existe onde abre espaço a falta de amor. No dia próximo ao sacrifício,
estavam todos reunidos por volta da hora da ceia, quando ao longe se avista o sacerdote.
Os corações estremecem. Um deles irá morrer. Um deles fará par a filha que será
sacrificada. Mal chega e a flauta soa melodiosa e funesta, as bestas em transe ficam
como que paralisadas e cordas se arremessam ao pescoço de um dos grandes animais
próximos e lentamente é levado. Será o alimento no novo ano da comunidade dos
zíbenas. No luto formado então, perguntou o líder ao seu amante pássaro – Aprendeste?
–Creio que sim, respondeu. –Queres tentar? –Não sei, queres que eu tente? –Queres
tentar? –Não ferirei vosso luto? –Queres tentar? E cantou. Cantou ainda mais belamente
do que a flauta poderia fazer. Em transe absoluto ficaram novamente os gigantescos
animais e espantados ficaram assim que o pássaro cessou. Não podia conter sua alegria
pois não mais seria necessário o sacrifício cruel das filhas. Tão logo raiou o dia pôs-se
defronte a casa atabalhoada e plena de dor, pondo-se a cantar a melodia da flauta. Tão
logo a reconheceu, o sacerdote, incerto do que ouvia pos-se, ainda em um velho pijama
de dormir às portas da casa. Reconhecendo o pássaro que o atrapalhara no último
holocausto e parecia querer impedir que a filha fosse precipitada, entendeu tudo. Ali
estava a saída. Os deuses cruéis já não precisavam ser levados em conta, pois tinham
agora um pássaro cujo coração gigante tomava os corações dos animais que lhes dava
sustento. Novas cores surgiram então. Como se um arco íris se derramasse sobre a casa
e lançasse luz àquilo e àqueles que até então tinham se tornado em trevas. O pássaro
cantava e dançavam todos ao som das doces melodias que tornava a gorjear. Tamanho
golpe não podiam esperar as Sombras. Que um pequeno pássaro fosse lhes roubar o
prazer que tinham em fazer marionetes os que criaram. Gritavam e urravam, faziam
tempestades e raios eram lançados das montanhas, porém nada atingia o reino que
envolvido todo já pela alegria, tinha como que um escudo contra a maldade divina de
que só agora se apercebiam.
E no ano seguinte ninguém morreu. Claro que alguém morreu, é forma de dizer.
Mas da família do antigo sacerdote, ninguém. A filha que iria ser sacrificada completou
seus dezesseis, e dezessete, e seguintes anos até que as parcas lhe cortaram o fio da vida
no momento proposto desde o começo dos tempos. O aniversário de quinze anos desta
filha foi comemorado com as maiores pompas possíveis. A tempos não se celebrava
festa alguma tão feliz, e quando pediram ao pássaro que cantasse, pois havia sido
homenageado grandemente, ao seu canto, se juntou o canto de várias outras vozes
femininas que em um primeiro momento ninguém percebia donde vinha, apenas quando
viram ás lágrimas e prantos dos pais chorosos viram que a voz vinha das filhas
sacrificadas. Um coro de virgens se unia às notas alegres do pássaro, como quem diz,
Obrigado, te devemos esta. Um coro de virgens se unia às notas do pássaro, como quem
diz, Não estamos tristes. Um coro de virgens se unia às notas do pássaro, como quem
diz, Não morremos em vão e aqui vos esperamos, na ânsia eterna da vida futura. Vinde
quando for o tempo, enquanto isso, cantamos! Que êxtase dominava tal multidão
quando no relance de um rápido relâmpago viram as virgem filhas sobre a montanha
cada qual com seus recém completos quinze anos em um sorriso explêndido e seu alvo
vestido, mais branco do que qualquer mortal poderia imaginar. Transfiguradas as
figuras, deram novo alento à família que agora podia seguir em frente, pois mortos
estavam os deuses que lhe oprimiam.
Quanto aos belozúpteres, bem, viveram felizes, com exceção dos que morreram.
Mas morreram felizes ao poder alimentar um povo tão feliz. Agora o pássaro era o
sacerdote que empunhava a flauta desde sempre presente em seu próprio corpo. Viveu
longos cem anos, durante os quais em uma época de guerra viu seu amado belozúpter
ser sacrificado. Seu canto servira para que o amarrassem, mas quando viu em seus olhos
que nenhuma lágrima lhe vinha, ficou tranquilo, pois feliz estava o que caminhava sobre
o cadafalso. A traição do amado fora perdoada no instante em que o traía. Nunca mais
Canorus amou ninguém, pois agora amava a todos. Era ele o guardião das vidas dos
zíbenas e mesmo que não pudesse se expressar em palavras, seu canto era demasiado
claro e era o ser mais agraciado de toda aquela região. Os habitantes viram que os
deuses nunca foram necessários e quebraram todo e qualquer vínculo com a religião que
um dia tiveram. A felicidade era a chave de suas vidas como a música o era do coração
dos belozúpteres. Assim viveu Canorus e a comunidade dos Zíbenas por vários e longos
anos até que a corrupção dos mundos os alcançassem. Nenhuma felicidade é eterna, por
isso seria bobagem terminar esta, que não é uma história infantil, com o famoso e
entediante “viveram felizes para sempre”, no entanto, viveram felizes por um longo
tempo, tempo o suficiente para que a felicidade não se tornasse entediante, diga-se de
passagem, tempo o suficiente para que vivessem plenamente.
São quase três da manhã, e o sono insiste em afastar-se de mim, como fosse eu,
algo repulsivo, e nojento. Pensando melhor... meu sono tem razão. Talvez não haja ser
no mundo mais repulsivo... como fui capaz? Como viverei novamente? Minhas roupas
ainda estão rubras, e o cheiro da morte invade meu quarto. Logo estarão aqui, e não
terei coragem de contar o que aconteceu... bom, ninguém acreditaria em mim...

Levanto, olho para o espelho embaçado, que reflete o quarto numa desordem
que foge ao habitual. Meu cabelo desgrenhado, meu rosto cansado, e meus olhos
absurdamente vermelhos e inchados revelam sinais do que aconteceu esta noite. Outrora
branca, minha camisa agora lembra o avental do açougueiro com quem tantas vezes
juntos compramos o jantar. Surge uma forte vontade de chorar, mas sinto que todas as
lágrimas já se esvaíram de meu corpo.

O canto do espelho direciona meu olhar ao criado mudo ao lado da cama, que
sustenta um abajur terroso, fonte da única luz que ilumina o quarto. Arrasto-me até ele,
e abro a primeira gaveta. Ali está. Minha salvação. Os comprimidos que toda noite nos
últimos cinco anos me fizeram dormir, vão cumprir seu papel uma última vez.

Não faço a menor ideia da dose necessária para cumprir meu objetivo, mas creio
que o punhado que larguei em minha mão direita seja o suficiente. Agora penso nos
detalhes. Sempre sonhei com uma morte honrosa, e repleta de pompas. Agora cá estou
eu, pronto para suicidar-me de uma maneira tão comum... mas tenho pouco tempo,
preciso agir.

Abro a porta do guarda roupa, e escolho minha camisa mais bonita. Azul
turquesa. Sempre me encantei por essa cor. Nada mais digno que ir embora vestido por
ela. Vou ao banheiro, lavo o rosto, dou uma leve arrumada em meu cabelo castanho, e
olho pela última vez o meu rosto. MONSTRO!! Grita minha mente ensandecida. Baixo
os olhos, e não tenho coragem de olhar novamente para mim mesmo.

Música... sim!! Precisa haver música, dediquei minha vida a ela, e agora encerro
minha vida com ela. Procuro meus cds, e no meio de tantos compositores e intérpretes,
lá está. O ápice da minha carreira, o concerto número 1 de Chopin em E menor, com a
orquestra... e minha alma ao piano. Nunca esquecerei a sensação de estar entre os
maiores músicos do mundo. Chego a conclusão de que será uma boa trilha para o que
preciso fazer. Ligo o rádio no volume mais alto, e sinto vibrar o primeiro acorde da
orquestra.

Desço ao primeiro andar. Lá me espera o fruto da minha loucura. Sangue marca


a parede das escadas. Mãos desesperadas daquele que eu mais amei nesta vida. Seu
corpo jaz, ao lado do piano branco, seu sangue combinando com as rosas vermelhas
sobre o instrumento. Sua pele parece marfim, e admiro sua beleza, mesmo com toda a
cena de terror que provoquei. “Te amo”, sussurro para ele, certo de que ele está em
algum lugar me ouvindo.
Eles estão quase chegando. Vou a cozinha, pego um copo com água, e volto a
sala. Engulo os comprimidos em minha mão de uma vez só, sinto minha garganta
trancada, e bebo a água do copo que está em minha outra mão. Minhas pernas
enfraquecem, e caio ao lado do único homem que amei nesta vida. Minha mão toca a
sua, fria, e já rígida. Tenho forças ainda para levantar meu corpo, e dar um último beijo
em seus lábios. Sabor de morte. Logo conhecerei profundamente esse sabor. Sinto os
comprimidos agindo cada vez mais forte, todo meu corpo estremece, minha visão
escurece, e minha triste vida tem o fim que merece.

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