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Resumo: AbstRAct:
Este artigo investiga, no Livro do desassossego, This article investigates, in the Livro do desas-
de Fernando Pessoa, a relação de três componen- sossego, by Fernando Pessoa, the relationship of
tes textuais: a escrita de si, nascida da melanco- three textual components: the self writing, whi-
lia de um sujeito que perdeu a auto-imagem, e ch was born from a subject´s melancholy who
tenta buscá-la no texto; a meditação profunda lost its self-image, and tries to search it in the
acerca da existência humana (uma filosofia da text; the deep meditation regarded to the human
vida); a reflexão sobre o fazer literário. existence (a philosophy of life); the reflection
about the literary making.
PAlAvRAs-chAve: KeywoRd:
Fernando Pessoa - Bernardo Soares - Escrita de si Fernando Pessoa - Bernardo Soares - Self writing
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empregado comercial – a condição humana. Fecha- ocupam-no totalmente. Ele mostra ser consciente de
do em si mesmo, recluso não no quarto em que mora que os traz em si não apenas ao dizer “Sozinho, mul-
ou no escritório em que trabalha, e sim naquilo que tidões me cercam” (p.441), e sim por reconhecer-se
ele chama de “quinta de muros fechados da minha múltiplo: “Cada um de nós é vários, é muitos, é uma
consciência de mim” (f.338), diagnostica a miséria prolixidade de si mesmo” (f.396); “Cada um de nós
humana, que só é tolerável aos homens porque são é uma sociedade inteira” (f.428); “A alma humana é
inconscientes dela. Como diz o verso de Orides Fon- um manicômio de caricaturas” (f.242). Essa desco-
tela: “A luz é demais para os homens” (1988, p.34). berta da “vasta colônia do nosso ser” (f.396) substitui
Acontece que quanto maior o grau de consciência, a singularidade do eu pela multiplicidade que nele
maior é o desespero que ela desperta; daí a melan- habita; logo, a incorporação dos outros explode o eu
colia do gênio, cuja escrita é meditação nascida da encapsulado.
tristeza. Neste ponto, há uma certa proximidade com
O sofrimento característico da “vida” e da Heidegger, apenas um ano mais jovem que Pessoa,
“obra” de Bernardo Soares (que são uma só) resul- e que viu na existência a substância do homem, cujas
ta de uma inteligência invulgar cujo preço é o tédio, estruturas originárias são o ser-no-mundo e o ser-com-
entendido não apenas como aborrecimento do mun- -os-outros. A primeira neutraliza a distinção sujeito/
do, mal-estar de estar vivendo e cansaço de se ter objeto, pois ser-no-mundo não expressa uma relação
vivido. Tédio é um cansaço de si, gerado, pela per- espacial, antes significa algo como: ser familiar a,
da, na alma, da capacidade de se iludir, e pela “fal- habitar, morar, deter-se (o homem não mora no es-
ta, no pensamento, da escada inexistente por onde paço, e sim o abre). Encontramos uma bela expres-
ele sobe sólido à verdade” (f.263). O fragmento 381 são disso no episódio da partida de um moço do
mostra que o entediado “sente-se preso em liberda- escritório, recriado por Mário Cláudio no romance
de frustre numa cela infinita”; em sua alma não é só Boa noite, senhor Soares. Trata-se do trecho em que
a vacuidade das coisas e dos seres que dói, e sim “a lemos: “Cada coisa que foi nossa, ainda que só pelos
vacuidade da própria alma que sente o vácuo, que acidentes do convívio ou da visão, porque foi nossa
se sente vácuo”. A consciência leva ao tédio por ser se torna nós. (...) Tudo que se passa no onde vivemos
lúcida. “O tédio é a falta de uma mitologia” (f.263). é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos
Saber-se miserável é perceber-se superior. Estamos é em nós que cessa” (f.279). Posso afirmar tranqui-
próximos de Pascal, em cujos Pensamentos lemos: “A lamente: quando o sol se põe, vou-me embora com
grandeza do homem é grande na medida em que ele; amanheço no amanhecer, anoiteço no anoitecer;
ele se conhece miserável. (...) É, pois, ser miserável despetalando uma flor, arranco pedaços de mim. E
conhecer-se miserável; mas é ser grande saber que convém lembrar que, para que alguma coisa se tor-
se é miserável” (1988, p.132). Como, para Soares, ne, não parte de nós, mas se torne nós, basta que a
mais vale pensar que viver, pois o pensamento faz a tenhamos visto uma única vez: “Tudo que foi, se o
grandeza do homem, surge o lema: “Desconhecer- vimos quando era, é de nós que foi tirado quando se
-se conscientemente, eis o caminho” (f.149). partiu” (f.279).
Como quase toda a humanidade vive incons- A descoberta do ser-com-os-outros suscita, por
ciente de si mesma, a existência humana costuma seu turno, pelo menos duas observações, uma de
ser inverídica. Lemos no fragmento 178: “Povo- cunho sociológico, outra de caráter ontológico. Não
amos sonhos, somos sombras errando através de há como negar que a vida em coletividade tem um
florestas impossíveis, em que as árvores são casas, preço: “O facto divino de existir não deve ser en-
costumes, ideias, ideais e filosofias”. Mais: “Somos tregue ao facto satânico de coexistir” (f.209). Mas o
morte. Isto, que consideramos vida, é o sono da mais grave não é isso. Como acabamos de ver, em
vida real, a morte do que verdadeiramente somos”. função de sermos-no-mundo, tudo “que nos cerca se
Bernardo Soares é lúcido o bastante para ver a vida torna parte de nós, se nos infiltra na sensação da
como ela é: “A vulgaridade é um lar. O quotidiano carne e da vida” (f.167). “Se eu for atropelado por
é materno” (f.200). Contudo, como a “consciência uma bicicleta de criança, essa bicicleta de criança
da inconsciência da vida é o mais antigo imposto à torna-se parte da minha história” (f.302). Acontece
inteligência” (f.68), a lucidez é tributária do tédio. que não apenas somos-no-mundo, como ainda somos-
Graças a esta consciência da inconsciência, Soares não -com-os-outros, e isto está longe de ser uma mera
apenas enxerga com clareza a vulgaridade dos ho- contingência social; o que está em jogo aqui é a nos-
mens, como também reconhece que somos parte sa própria constituição ontológica. Por isso é que
dela, “porque ninguém é humano sem o ser” (f.235). Soares pergunta: “Conhece alguém as fronteiras à
Atração e repulsa marcam a relação do autor com sua alma, para que possa dizer – eu sou eu?” (f.364).
a humanidade: “Amo-a porque a odeio. Gosto de Ora, como a indefinição do território do eu e a sua
vê-la porque detesto senti-la” (f.71). Soares percebe não-substancialidade são obra do tempo e da “vasta
que os homens são partes integrantes de si mesmo; colônia de nosso ser”, o Livro do desassossego é a ex-
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fonia” (f.310). E é a melancolia que o leva a pergun- percebido por algo (“o que em mim”) que está como
tar: “Meu Deus, meu Deus, a quem assisto? Quantos que por “detrás de mim”. Idéia recorrente na poesia
sou? Quem é eu? O que é este intervalo que há entre ortônima: “Entre mim e o que em mim / É o quem
mim e mim?” (f.213); “Quem sou quando sinto? Que eu me suponho, / Corre um rio sem fim”; ou ainda:
coisa morro quando sou?” (f.63). Tais perguntas, por “Quero considerar-me e ver aquilo / Que sou, e o que
seu turno, levantam outros problemas, sugeridos sou o que é que tem”.
pelo fragmento 41: “Verifico que, tantas vezes ale- Diante disso, é fácil identificar um duplo pro-
gre, tantas vezes contente, estou sempre triste. E o cesso na escrita de Bernardo Soares: 1) só me vejo se
que em mim verifica isto está por detrás de mim”. me desdobro; 2) só construo um retrato de mim se
Entre parênteses – e para não esquecer: em Fernando me ficcionalizo. O eu é percebido como algo no in-
Pessoa, (a poesia d) o eu torna-se (a do) o que em mim. tervalo entre mim e mim. O eu é este intervalo: “sou
A tristeza leva Bernardo Soares a abrir uma ja- translato” (f.266). Obviamente, isto equivale a dizer
nela para dentro de si (f.92), e a tornar-se um espec- que, em Fernando Pessoa, o eu não tem substrato
tador de si mesmo (f.221). Ora, ao perscrutar-se, ele ontológico, identidade fixa ou sequer um referente.
não se percebe como eu, e sim descobre que há algo Sendo assim, o eu não exprime integralmente o sujei-
no eu, isto é, o “intervalo entre mim e mim”. O des- to, e é percebido (ou construído), por uma consciên-
dobramento do eu em face de si mesmo é tão nítido, cia voltada sobre si mesma – desdobrada, intervala-
que a descoberta do intervalo “entre mim e mim” da, translata. Em resumo: só há eu desdobrado; só
não só lança luz sobre este algo no eu, como sintoma- há eu ficcionalizado. Por isso o autor pode afirmar
ticamente faz com que este algo não pergunte “quem com tranquilidade: “me converti na ficção de mim
sou eu?” (o que pressuporia um sujeito, agora des- mesmo (...) Só disfarçado é que sou eu” (f.456); “Sou
feito pelo intervalo), e sim “quem é eu?”, “quantos uma personagem de dramas meus” (f.454); “Tornei-
sou?”, “quem sou quando sinto?”, “que coisa morro -me uma figura de livro, uma vida lida” (f.193). Ele
quando sou?”. Tais questões mostram que o eu tor- pode ainda descrever a execução de sua obra nos se-
na-se 3a pessoa, e não mais 1a pessoa. O eu é algo que guintes termos: “Esculpi a minha vida como a uma
é, e não alguém que sou. Não sou eu que sou: há algo estátua de matéria alheia a meu ser”. E tudo isto é
em mim que é, outros em mim que são. Tanto é as- resumido numa sentença lapidar: “Vivo-me esteti-
sim, que este algo pode tomar-se como “o que fingiu camente em outro” (f.114).
em mim que fui eu” (f.276), ou constatar diante do O Livro do desassossego é a escrita da ficciona-
retrato infantil: “Era outro o quem sou que ali vivia”. lização de si. Entretanto, este sujeito que ficcionaliza
“Viver é ser outro” (f.94). Abrindo a janela para o próprio eu lança mão de um procedimento mui-
dentro de si, vigiando a “quinta de muros altos” da to singular, qual seja, a multiplicação dos outros em si.
sua consciência de si, Bernardo Soares não somente Tal processo é sintetizado na frase “Multipliquei-me
se define como o “exílio que sou” (p.193), como se aprofundado-me” (f.93), e detalhado em passagens
vê enquanto um eu desdobrado (1a pessoa tornada 3a), como: “criei em mim várias personalidades. Crio
isto é, como um sujeito que descobre um intervalo personalidades constantemente. (...) Para criar, des-
“entre mim e mim”. Fora isso, ele é ciente de que truí-me; tanto me exteriorizei dentro de mim, que
o uso comum da linguagem não diz quem somos, dentro de mim não existo senão exteriormente. Sou
apenas revela nosso comum pertencimento. “Ser a cena nua onde passam vários actores representan-
uma coisa é ser objeto de uma atribuição” (f.58). A do várias peças” (f.299). A originalidade desta escrita
linguagem cotidiana, denominada por Heidegger de ficcional de si reside, então, no modo como as desco-
“falatório”, é o lugar da coexistência dos homens; bertas literárias e filosóficas da modernidade resul-
contudo, ela não revela o eu, antes o apaga. Soares, tam no eu desdobrado e ficcionalizado de Bernardo
aliás, tem duas noções muito claras acerca dos pro- Soares, que, pelo pensamento e pela escrita, conver-
blemas envolvendo a expressão do eu (a subjetivida- teu-se na ficção de si mesmo (f.456). É como se ele
de) e a maneira como as palavras designam não só fizesse duas afirmações: 1a) a consciência de que
os sentimentos, mas as coisas (a objetividade). A pri- nada sou desperta-me o sonho de ser inúmeros; 2a)
meira tem a ver com o espelhamento dos outros em adquiro alguma identidade graças à ficção pela qual
mim: “Tudo o que sabemos é uma impressão nossa, multiplico os outros em mim. Desnecessário lem-
e tudo o que somos é uma impressão alheia” (f.13). brar que multiplicação ficcional de si é a definição da
A segunda aborda a insuficiência da linguagem: “o heteronímia. O Livro do desassossego é uma arte
que pensamos ou sentimos é sempre uma tradução” poética pessoana. Necessário lembrar que o espaço
(f.433); a “vida prejudica a expressão da vida. Se eu entre mim e mim (autêntico pilar da ponte de tédio),
vivesse um grande amor nunca o poderia contar” no qual o eu se dissipa dramaticamente em outro(s),
(f.114); “Exprimir é sempre errar.” (f.349). O resul- é o solo da poesia do Orpheu. Em Portugal, só é mo-
tado destas constatações leva-o a descobrir que “não dernista o poeta lúcido o bastante para reconhecer-
é quem é” (f.448), e a constatar que o eu só pode ser -se como qualquer coisa de intermédio.
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criador de valores, é o ser delirante por excelência, parece levar ao progresso, não mascara a certeza de
vítima da crença de que algo existe. A vida se cria que, como diz Soares, a humanidade é variável, mas
no delírio e se desfaz no tédio, que nada mais é do inaperfeiçoável; oscilante, mas improgressiva. Por
que a percepção tautológica do mundo (ou seja: a isso, “Que D. Sebastião venha pelo nevoeiro, não
ausência de uma mitologia). Os simulacros fazem desdiz da história. Toda a história vai e vem entre
viver, são a vida, que se torna tolerável apenas pelo névoas” (p.515). Quando Cioran pergunta: “Todos
grau de mistificação com que a revestimos. Segundo os seres são desgraçados; mas, quantos o sabem?”
Cioran, só há vida na falta de atenção à vida. Como (1995, p.37), ele retoma vários autores que defende-
vimos, Bernardo Soares não se cansa de apontar a ram a consciência da miséria como sinal da grandeza
inconsciência humana: “Se alguma coisa há que esta humana, e que mostraram o gênio como aquele que
vida tem para nós (...) é o dom de nos desconhecer- mais sofre. Uma alma só se engrandece pela quanti-
mos: de nos desconhecermos a nós mesmos e de nos dade de insuportável que assume. Se o espírito emi-
desconhecermos uns aos outros” (f.255). Resultado: nente desemboca na solidão, o ser verdadeiramente
“Manufacturamos realidades” (f.66). solitário não é o que foi abandonado pelos homens,
Esta coincidência de pensamento faz com que mas o que sofre no meio deles (Bernardo Soares tra-
várias passagens pareçam intercambiáveis entre os balhando no escritório...). A autenticidade de uma
textos de um e de outro autor. Para Cioran, o mun- existência consiste em sua própria ruína, se em nada,
do é um receptáculo de soluços; para Soares, a vida porque, como afirma Cioran, “eu deixo de ser ‘eu’ se
é uma ilha de náufragos (f.198). O filósofo romeno me analiso” (1995, 158). A melancolia, que abre um
constrói imagens de si nas quais Soares se reconhe- espaço entre mim e mim, permite que o filósofo es-
ceria: “Sou um Saara corroído de volúpias, um creva sentenças que Soares assinaria, tais como: “só
sarcófago de rosas” (1991, p.207); “Sou um Jó sem existimos enquanto sofremos” (1995, p.36); “Toda
amigos, sem Deus e sem lepra” (idem, p.93). Nos lucidez é a consciência de uma perda” (1991, p.76);
recônditos da vida psíquica, o português localizou “A autenticidade de uma existência consiste em sua
os “secretos onde a alma é do Diabo” (f.255); já o própria ruína” (1995, p.76); “Abandono-me ao espa-
romeno afirma que “Há corações que Deus não po- ço como a lágrima de um cego. De quem sou a von-
deria contemplar sem perder sua inocência” (1995, tade, quem quer em mim?” (1995, p.156).
p.135). Eis uma sentença que Soares adoraria ter Em suma: o melancólico, que tem a consciência
escrito: “A vida é efêmera e fútil como o suicídio lúcida da própria miséria, é sempre um Narciso à
de uma borboleta” (1991, p.37). A visão do amor é procura de espelho, o qual, em Soares, diferentemen-
idêntica em ambos. Para o filósofo romeno, a vida é te de qualquer outro escritor, constrói-se na multi-
mentirosa, e o amor, “a mentira na mentira”. Que- plicação ficcional de si. A singularidade do Livro do
remos encontrar em outra pessoa o que buscamos desassossego é o desvelamento dos heterônimos. Mas
em vão em nós mesmos. Soares afirma ser o amor a antes de voltarmos a isso, uma palavra acerca do
mais carnal das ilusões (f.363), e que, no fundo, não lugar ocupado por Deus no livro. Na literatura, a
amamos, senão que fingimos amar (f.368). Cioran, crise do eu se dá pelo esgotamento da subjetividade
por seu turno, ficaria feliz se tivesse escrito o frag- romântica. Aliás, o romantismo, para Soares, ainda
mento 112: “Nunca amamos alguém. Amamos, tão- que represente a verdade interior da natureza huma-
-somente, a ideia que fazemos de alguém. É a um na (f.54), é a arte feita com elementos secundários do
conceito nosso – em suma, é a nós mesmos – que pensamento (f.249). A única arte verdadeira é a da
amamos. (...) o onanista é a perfeita expressão lógi- construção (f.250). Na filosofia, o problema é o abalo
ca do amoroso. É o único que não disfarça nem se sofrido pelo cogito, que, no século XVII, sustentava
engana.” E quando Soares desabafa: “Que coisa tão os pilares metafísicos Deus, Mundo e Homem. A
reles e baixa que é a vida!” (f.229), este lamento re- crise do sujeito cartesiano marca o fim da metafísica,
sulta da melancolia lúcida que também leva Cioran dado que, como explica Gilles Deleuze, o eu não sub-
a perceber a vida como um eufemismo para o Mal. siste sem Deus (que lhe garante identidade formal),
A História humana não encerra nenhum sentido, e mas Deus tampouco subsiste sem o eu. Lemos na
nada mais é que uma sucessão de tragédias, como Lógica do sentido: “Não conservamos o eu sem ter
repetia Schopenhauer. Se Pascal afirmou que o ho- que guardar também Deus. A morte de Deus signi-
mem não suporta estar sozinho, e por isso procura o fica essencialmente, provoca essencialmente a disso-
tempo todo a diversão (toda ocupação é divertimen- lução do eu: o túmulo de Deus é também o túmulo
to e esquecimento de si), Cioran vê a História como do eu” (2007, p.302). Em Bernardo Soares, como na
o sangrento produto da repulsa humana ao tédio. poesia ortônima, Deus é pensado por meio da equi-
O homem se irrita mais pela ausência do que pela paração entre fé e razão. Vale o raciocínio: se não
profusão de acontecimentos. Somos mais laboriosos podemos saber que Deus existe, tampouco podemos
que as formigas e as abelhas porque detestamos pen- afirmar que não exista. Se, em Cioran, Deus é a nos-
sar (1995, p.51). Este incessante labor humano, que sa ferrugem, em Soares, é antes um enigma: “Deus é
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voz que mais ecoa no Livro do desassossego. É inegá- mas chorar; e para ver realmente é preciso fechá-los”
vel que Bernardo Soares se reconheceria em versos (1995, p.96). A mais bela metáfora do livro aparece
como: “Minha dor é velha / Como um frasco de es- no fragmento 319: “Os momentos mais felizes de
sência cheio de pó. / Minha dor é inútil / Como uma minha vida foram sonhos, e sonhos de tristeza, e eu
gaiola numa terra onde não há aves, / E minha dor via-me nos lagos dele como um Narciso cego”. O
é silenciosa e triste / como a parte da praia onde o texto, portanto, jamais chega a ser um espelho, por
mar não chega”. Contudo, penso ser Ricardo Reis isso o gênio escreve infinitamente. Até morrer.
o autêntico duplo de Soares, cujo texto, por vezes,
são odes prosaicas: “O amor agita e cansa, a ação
dispersa e falha, ninguém sabe saber e pensar em- NOTAS
bacia tudo” (f.446); “Nada pesa tanto como o afecto
alheio – nem o ódio alheio” (f.348); “Não toquemos 1. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. Org. Richard Ze-
na vida nem com as pontas dos dedos. (...) Tecelões nith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Todas as citações
foram retiradas desta edição. Indicaremos o número do fragmen-
da desesperança, teçamos mortalhas apenas” (f.284);
to a que pertencem os trechos citados, ou o número da página, no
“Sê indiferente. Ama o poente e o amanhecer, por- caso dos fragmentos que possuem título.
que não há utilidade, nem para ti, em amá-los. Veste
teu ser do ouro da tarde morta, como um rei deposto
numa manhã de rosas” (f.365). A atitude sobrancei- REFERÊNCIAS
ra de Reis frente à vida – colhendo as flores, ouvindo
as fontes – é típica de quem reconhece, como Soa- CAMÕES, Luís de. Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar,
res, que o destino é decadência (“Nada fica de nada. 2003.
Nada somos.”); logo, a saída é experimentar a eter-
CIORAN. Breviário de decomposição. 2ed. Rio de Janeiro: Rocco,
nidade aceitando a morte. O mais trágico dos heterô- 1995.
nimos, Reis assume a máscara da convenção clássica
para camuflar, em canto sereno, o tédio – sensação CIORAN. Le crépuscule des pensées. Paris: L’Herne, 1991.
física “de que o caos é tudo” (f. 381) – que ronda os
poetas do Orpheu. Os “cadáveres adiados que pro- CONCHE, Marcel. Présence de la nature. Paris: PUF, 2001.
criam” são os mesmos “cadáveres que se aceitam”,
DELEUZE, Gilles. Lógica do sentido. 4ed. São Paulo: Perspectiva,
de Cioran. Além disso, Reis e Soares reconhecem 2007.
que a vida é ilusão (“Somos contos contando con-
tos, nada.”), bem como a necessidade de jogá-la, isto FONTELA, Orides. Trevo. São Paulo: Duas Cidades, 1988.
é, de vê-la e vivê-la como jogo. A fala de ambos é
um monólogo. Apenas o protagonista de O ano da HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 1988.
morte de Ricardo Reis, romance que é o jogo do jogo
LOURENÇO, Eduardo. Pessoa revisitado. 4ed. Lisboa: Gradiva,
do jogo, pode viver, no fim da vida, a convulsão de 2003.
um amor quase adolescente, que o divide entre Lídia
e Marcenda, pois, na poesia de Reis, estas mulheres NAVA, Pedro. Baú de ossos. 4ed. Rio de Janeiro: José Olympio,
são apenas o alter-ego feminino do poeta. Nenhum 1974.
dos dois nunca amou ninguém. O amor só é pos-
sível em Saramago. É provável que os versos que PAIXÃO, Fernando. Fogo dos rios. 2ed. São Paulo: Brasiliense,
1991.
melhor traduzam o autor do Livro do desassossego
sejam os que abrem a ode: “Vivem em nós inúme- PASCAL, Blaise. Pensamentos. 4ed. São Paulo: Nova Cultural,
ros; / Se penso ou sinto, ignoro / Quem é que pensa 1988.
ou sente. / Sou somente o lugar / Onde se sente ou
pensa. // Tenho mais almas que uma. / Há mais eus PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. São Paulo:
do que eu mesmo.”. É inegável que o desespero de Companhia das Letras, 2006.
Soares espelha o de Campos, autor do mais cruel
PESSOA, Fernando. Obra poética. 3ed. Rio de Janeiro: Nova
de todos os versos: “A vida... / Branco ou tinto, é Aguilar, 1990.
o mesmo: é para vomitar”. Contudo, se o poeta-
-engenheiro consegue espelhar-se na diversidade do SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo:
mundo e ser tudo de todas as maneiras, o ajudante Companhia das Letras, 1995.
de guarda-livros continua um Narciso sem espelho,
SARAMAGO, José. Memorial do Convento. 4ed. Rio de Janeiro,
cujos olhos são preenchidos mais por lágrimas do
Bretrand Brasil, 1989.
que por imagens, confirmando que chorar é ter pie-
dade de si mesmo, como diz Schopenhauer, e que, SCHOPENHAUER, Artur. O mundo como vontade e
como mostrou Cioran, “a função dos olhos não é ver, representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.