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Georges Ohnet
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PEDRAZUL EDITORA
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Tradução: Silvia Caldiron Resende
– Parece que o senhor teve mais sorte que eu – disse o jovem caçador
com um sorriso, aproximando-se do recém-chegado.
– Creio que não. Estas terras pertencem a monsieur Derblay, que não
permite que ninguém as invada.
– Você não quer que vamos embora sem levar nada, não é? – brincou. E
então, colocando a lebre e as quatro perdizes em sua sacola, o jovem marquês
virou-se para ir embora, caminhando um tanto pesadamente enquanto
carregava aquele fardo incomum.
Como esta decisão implicava em uma perda de pelo menos vinte mil
francos por ano, o vilarejo fez um esforço de reconciliação por intermédio do
prefeito e até tentou o efeito de uma petição assinada pelo conselho
municipal. Tudo em vão. O marquês não perdoou a árvore da liberdade e o
Château de Beaulieu permaneceu fechado. Na verdade, a decisão do marquês
foi em grande parte influenciada pelos atrativos da capital. A vida glamorosa,
as noitadas, os esportes e aventuras galantes o mantinham longe de Beaulieu,
mais do que o ressentimento contra os camponeses. No entanto, após vários
anos de uma vida de prazeres e excitação, ele se cansou um pouco de suas
loucuras e, num momento de racionalidade, casou-se.
A lua de mel do jovem casal durou três anos e isto foi um feito louvável
da parte de um homem como o marquês. Dois filhos nasceram da união, um
menino e uma menina. Octave e Claire foram criados pela mãe: o herdeiro
aprendendo a ser útil e produtivo, a filha a ser delicada, para que encantasse a
vida do pretendente que viesse a escolher. Por uma aberração da natureza,
porém, o menino era a imagem viva da mãe, dócil e pacífico, ao passo que a
menina herdou o temperamento impetuoso e ardente do pai.
Entretanto, logo chegou alguém para lhes fazer companhia, trazido pela
desventura e pelo luto. O irmão da marquesa, o duque de Bligny,
prematuramente viúvo e com um filho pequeno, teve uma morte trágica numa
queda de cavalo durante uma corrida, quando suas costelas foram quebradas
pelos cascos do cavalo. Este descendente dos Cruzados, que morreu como um
cavaleiro, não deixou bens nem pertences e depois do funeral o pequeno
Gaston, seu filho, todo vestido de preto, foi levado para a casa da tia
marquesa, onde passou a morar. Tratado como um terceiro filho, ele cresceu
junto com Octave e Claire. Mais velho que os dois, ele possuía o dom inato
do fascínio e a elegância natural da estirpe refinada à qual pertencia. Apesar
disso, havia sido negligenciado pelo pai, cuja vida devassa não combinava
com cuidado paternal. Muitas vezes era deixado ao encargo de criadas, que
permitiam que o garoto testemunhasse suas intrigas vis; em outras era levado
pelo duque a alguma partie fine e entre o convívio com pessoas depravadas e
as aventuras inconsequentes do pai, a inocência do menino foi posta a uma
prova dolorosa.
– Eu também te amo.
– Claire!
Ela pousou os dedos sobre os lábios dele e, com um gesto solene digno de
um noivado, deu-lhe um beijo na testa. Em seguida se levantaram e,
abraçados, retomaram o passeio pelo gramado. Nenhum dos dois tinha
vontade de falar; estavam apenas ouvindo seus corações.
✽✽✽
Madame de Beaulieu não ficou nem um pouco feliz com essa notícia. Ela
não só tinha arraigadas convicções preconcebidas a respeito de casamentos
entre primos, assim como o juízo que fazia de Gaston não era dos melhores.
Ela o julgava estouvado, impulsivo e inconstante, perfeitamente capaz de
amar com ardor, porém, incapaz de ser fiel. Ainda assim, ela não tentou
influenciar a filha. Conhecia bem a personalidade admiravelmente forte de
Claire e sabia que nada a induziria a desistir de um noivado contraído por
livre e espontânea vontade. Além disso, no fundo do coração, não deixava de
ser atraente a ideia de uma aliança que restauraria à sua família o tradicional
sobrenome Bligny, do qual ela própria abrira mão ao casar-se. Assim, ela
acolheu com benevolência o sobrinho e, como não podia tratá-lo melhor do
que havia feito até então, continuou a considerá-lo como seu filho.
– Claire! Claire!
– Mãe.
– Diga – disse, tomando as mãos de Claire –, diga por que não para de
pensar nisso e de torturar a sua mente?
– Monsieur Derblay?
– Esta é a primeira vez que fala comigo neste tom, maman. Acaso quer
me preparar para más notícias? A ausência do duque tem algum motivo mais
grave que está escondendo de mim? Foi informada de algo…
– Não, minha criança, não sei de nada; nada me foi dito. Acho até que
merecia saber. Estou abismada com este longo silêncio por parte do meu
sobrinho e tenho a impressão de que Gaston está levando a diplomacia muito
longe.
– Espero que sim, minha querida, uma vez que é isto que deseja. Em todo
caso, meu sobrinho De Préfont e sua esposa chegam hoje de Paris e talvez
estejam melhor informados do que nós.
Com 22 anos, Claire estava no auge da beleza. Sua figura alta era
delicadamente proporcional: um busto magnífico, braços longilíneos que
terminavam em um par de mãos dignas de uma rainha. Seus cabelos dourados
estavam presos ao alto da cabeça, como se para permitir uma visão completa
do alvo pescoço. Levemente inclinada para frente, com as mãos apoiadas
sobre a balaustrada de ferro, tocando sem perceber uma das trepadeiras que
se enroscavam ao redor das barras, ela parecia a encarnação da juventude em
toda a sua graça e vigor.
– Oh, serei humilde! Não mereço as honras. Para dizer a verdade, estes
animais não foram abatidos por mim.
– Oh! Ele era um sujeito alto, muito moreno, usava uma camisa azul e um
chapéu velho de feltro cinza.
– Bem, se este é o caso, até que fui educado. Mas sem querer me referi a
ele como o vizinho irritante e fiz todo tipo de comentários desagradáveis.
Agora terei de me retratar com ele.
Então, como se ansiasse por passar para um tópico mais agradável, ele
retomou:
– Oh, certamente. Deixe-o vir. Quero muito conhecer esse ciclope que
está pretejando todo o vale. Mas não creio que seja apenas o tratado de paz
que esteja enchendo a sua pasta – observou madame de Beaulieu, apontando
para a pasta de couro do tabelião. – Sem dúvida deve ter trazido alguns
documentos novos, referentes àquela nossa ação judicial na Inglaterra.
– E ele nem veio aqui! Não está aqui hoje; mesmo sabendo sobre a
desgraça que nos abateu! Pois sem dúvida ele ficou sabendo, não?
– Ah! Você estava certo, Bachelin, isto me abateu muito mais do que a
perda do dinheiro. O duque nos abandonou. Não veio e não virá; eu
pressentia isso. Tudo que ele queria de nós era a nossa fortuna. A fortuna
desapareceu e o pretendente fugiu. Ah, dinheiro é a senha destes tempos
mercenários que vivemos. Beleza, virtude e inteligência para nada servem.
As pessoas não dizem mais ‘Lugar para o mais digno’, mas sim ‘Lugar para o
mais rico’. Agora que estamos praticamente pobres, seremos abandonados.
– Sei que ele é muito querido na região. Mas diga, meu caro Bachelin, o
senhor conhece bem a família dele?
– Peço que não repita para ele nada que acabei de dizer – interpôs a
marquesa gravemente. – Mademoiselle de Beaulieu não aceita generosidade
de ninguém e, com o caráter que tem, é possível que prefira morrer solteira.
Peço a Deus que ela seja forte e resignada quando este golpe duplo recair
sobre ela.
– O senhor tem toda razão; mas em todo caso preciso informar meu filho
sobre o golpe que o acometeu.
– O que aconteceu?
– A respeito da ação?
– Sim.
– Perdemos tudo?
– Oh! Não tema, maman – interrompeu Octave – ainda que Gaston hesite
em manter o noivado agora que mademoiselle de Beaulieu não virá mais para
ele com um milhão em cada mão, não somos o tipo de pessoas capazes de
pegá-lo pelo colarinho e obrigá-lo a cumprir com a sua promessa. Na
verdade, em minha opinião, se o duque de Bligny não quiser mais se casar
com a minha irmã, será muito pior para ele do que para ela.
Ele desceu a encosta que levava ao vale, deslizando para baixo com suas
pernas longas, indiferente a rapidez dos seus movimentos, embora o suor
brotasse na sua testa. Parecia querer acompanhar o ritmo de seus
pensamentos, que voavam nas asas do vento. Quando o jovem marquês de
Beaulieu soubesse com quem estivera, certamente se sentiria grato pela
cortesia demonstrada pelo homem a quem ele chamara de vizinho irritante; e
então, quem sabe, tornariam-se mais próximos. Assim, ele, Philippe, poderia
então aproximar-se de Claire, a linda moça cujo sorriso encantador estava
vivo em sua memória. Poderia falar com ela. A este pensamento, porém, uma
nuvem pareceu passar diante de seus olhos, pois tinha a impressão de que as
palavras morreriam em sua garganta e que ele ficaria mudo diante dela,
sobrepujado pela emoção. Ainda assim, poderia se refugiar em algum canto
escuro da sala e de lá admirá-la à vontade. E então, perdido em
contemplação, já sentiria imensamente feliz.
Feliz! Como assim? Até onde essa sua paixão poderia levá-lo? Ele
poderia sofrer ainda mais se visse a mulher que tanto amava casada com
outro homem. Pois o duque de Bligny certamente iria voltar. Afinal, que
homem amado por uma mulher como aquela seria capaz de desprezá-la?
Ainda que ela não se casasse com o duque, poderia surgir outro pretende –
um nobre brilhante, que bastaria aparecer e dizer seu nome para ser recebido
de braços abertos – enquanto ele, um plebeu, seria menosprezado e enjeitado.
Porém, mais uma vez ele se viu obrigado a deixar seu lar para sair em
busca de trabalho. A partida causou um grande sofrimento para Suzanne. O
desespero que ela sentiu quando o irmão se despediu foi ainda maior do que
quando a sua querida mãezinha se foi. Mas o destino tinha decidido que a
separação deles não deveria se prolongar por muito tempo. Seis meses depois
monsieur Derblay morreu, sobrecarregado pelo trabalho excessivo e assim
Philippe e Suzanne se viriam sozinhos no mundo.
Como engenheiro, Philippe tinha uma carreira esplendida pela frente. Ele
poderia ter abandonado os negócios do pai, depois de ter remediado da
melhor maneira possível e seguido seu caminho. Mas neste caso toda a
herança seria usada para salvar o nome da família e Suzanne ficaria sem dote.
Diante destas circunstâncias o jovem não hesitou. Renunciou a sua carreira e
se conformou; e assumindo o fardo que tinha sido muito pesado para seu pai,
ele se transformou em um industrial.
Em sete anos, ele tinha liquidado toda a herança confusa do seu pai e
agora tinha apenas a fundição em Nivernais, que ele trabalhava em conjunto
com a de Pont-Avesnes, alimentando o primeiro estabelecimento com o
minério extraído do último. E agora ele já não corria mais risco e estava no
domínio dos negócios. Sentia-se capaz de expandi-los ainda mais. Adorado
em toda a região, poderia muito bem concorrer nas eleições e ser eleito
deputado. Quem sabe? Tal posição certamente encantaria uma mulher. Além
do mais, a posição de industrial também representava poder neste século que
tanto valorizava o dinheiro.
Aos poucos, à medida que todas essas coisas passavam pela sua cabeça, a
esperança foi se refazendo no coração de Philippe Derblay. Ele tinha
retomado o passo novamente e já tinha alcançado o limite do bosque. À
direita, espalhavam-se os campos que cobriam o vale, enquanto, à esquerda,
erguiam-se as pedras que formavam a base da montanha. Neste ponto tinha
sido cavada a entrada da mina. Um trenzinho percorria as galerias e levava o
minério diretamente para a usina.
– Ah, patrão, é o senhor. Meu Deus! Se o senhor está aí, então estou
salvo.
– Não tema, meu rapaz, vamos tirá-lo daí – retomou Philippe e então
ficou de pé e se dirigiu aos trabalhadores: – Vocês, peguem algumas escoras
e levantem esta viga.
Ao mesmo tempo ele apontou para uma viga imensa soterrada embaixo
dos destroços e cuja parte exposta formava um tipo de alavanca natural.
Então, depois de dar uma ajeitada na roupa e pegar a sua arma, o dono da
siderúrgica retomou seu caminho para Pont-Avesnes.
E com isso, tomou o rosto do irmão entre as mãos e lhe deu um beijo
carinhoso.
– Muito bem, meu caro amigo – saudou o tabelião, – mais uma boa ação
para ser creditada a você.
– Vou agora mesmo, meu irmão – disse a jovem. – Devo levar Brigitte
comigo?
– Faça isso. Quanto a nós, meu caro tabelião, vamos entrar – adicionou
Philippe, voltando-se para Bachelin. – Estou parecendo um andarilho e
preciso trocar de roupa.
O château foi construído no alto de uma elevação maciça, que lhe confere
elegância, apesar de ser um pouco escuro e lúgubre; e suas torres altas
cobertas de ardósia se elevam ameaçadoras no céu. Como Philippe se limitou
a ocupar apenas uma das alas da vasta pilha frígida de pedras, o restante
permaneceu fechado e não fosse pelo cuidado de Brigitte, a irmã de coração
adotada por Suzanne, que apesar da pouca idade e graças à precocidade e
habilidade para distribuir o trabalho entre os empregados, o château estaria
largado. E a jovem ativa, empenhada em seu zelo, coloca os criados para
fazerem uma faxina completa duas vezes por mês em todo o local e cuida
para que os maravilhosos móveis, estilo Luís XIV, que decoram os salões, se
mantenham em perfeito estado.
Foi para a biblioteca que Philippe levou Bachelin depois que a irmã os
deixou. Ele desconfiava que o tabelião tivesse vindo de Beaulieu e como todo
apaixonado, ansiava por saber dos detalhes, importantes ou triviais, que seu
velho amigo invariavelmente o colocava ao par, após as visitas que fazia aos
nobres moradores do château. Neste dia, porém, Bachelin não parecia muito
disposto a falar. Acomodado em uma poltrona, ele olhava despreocupado
para seu anfitrião, que estava de pé diante dele, como se fosse um ponto de
exclamação. Até que finalmente Philippe não conseguiu se conter mais e
perguntou com uma calma fingida:
– Certamente.
– Deveras.
– Contei para ele. Talvez devesse ter dito também que o amigo só encheu
daquela maneira a sacola de caça dele por que está apaixonado pela irmã?
– Como assim!
– Falei sobre o que você pensa, sobre o que acabou de expressar para
mim de um modo tão apaixonado.
Philippe nada disse. Mal tinha ouvido Bachelin, pois sua cabeça girava e
ele tinha perdido toda a noção da existência. Era como se tivesse sido
arremessado para o céu a toda velocidade. O vento soprava aos seus ouvidos
e ele não conseguia fixar os olhos em nada em meio ao borrão que obscurecia
sua visão. Dentro da sua cabeça latejante parecia que uma voz repetia
insistentemente o que parecia ser uma distante revelação do destino: “Claire!
E se ela realmente se tornar sua!”
Ao ouvir isso Philippe empalideceu tanto que parecia que estava prestes a
desmaiar. Ele soltou um grito de alegria e então, rendendo-se a emoção,
largou o corpo pesado em uma poltrona.
– O que é isso, já está com medo, antes mesmo de começar? Bem, eu iria
amanhã. Uma boa noite de sono vai lhe colocar no prumo novamente; deste
modo você estará mais senhor da situação e poderá desfrutar de todos os
benefícios.
– Ela disse o que era esperado que fosse dito num caso como este, isto é,
ela declarou que não tinha nada a dizer e que nunca iria forçar mademoiselle
Claire a se casar. Em suma: ela deu a resposta de acordo. Mas acredite, a
força da posição que anseia conquistar não está nas mãos da mãe, mas sim
nas da filha; por isso, tenha coragem. E agora preciso ir embora para jantar.
Como o rapaz permaneceu sentado, com um leve sorriso nos lábios e sem
nada responder, ela se apressou em dizer:
– Não vai me dizer? Então vejo que serei obrigada a adivinhar. Bem, não
tenho dúvidas de que está pensando naquela moça muito bonita de cabelos
dourados.
Fazia quase um ano desde a última vez que estivera na França. Vinha
levando na sociedade russa aquela vidinha artificial parisiense, que é
considerada o máximo do bom gosto no exterior, mas que se parece com a
vida da alta sociedade de Paris, tanto quanto um seixo do Reno se parece com
um diamante Wisapoor.
Mesmo assim a cópia refinada dos eslavos acabou por seduzi-lo e ele
apreciou imensamente a vida que misturava a languidez asiática com a
agitação europeia. As russas o encantaram pela leveza e beleza enigmática.
Assim acabou acometido por uma curiosidade de desvendar os segredos
destas esfinges sorridentes, cujos olhos eram fascinantes e as garras
ameaçadoras. O belo rapaz, bem-nascido e de sobrenome importante, foi
muito assediado e, aos poucos, a imagem de sua noiva, tão fielmente gravada
em seu coração, foi esmaecendo, como se fosse um desses lindos desenhos de
Latour feitos em giz pastel, que com o tempo vão desbotando.
Mas o tédio corria nas veias de Bligny. Após seis meses dessa vidinha,
ele acabou se cansando e o único remédio contra o mau humor foi a mesa de
jogo. Na primeira vez que tocou num baralho, ele sentiu que tinha nascido
para isso. E assim acabou se entregando ao jogo com uma sorte desaforada.
Parecia que tinha nascido predestinado para ganhar. Pela manhã, carregado
com os despojos dos seus adversários, voltava para casa com a sensação de
que tinha um aro de ferro pressionando ao redor da sua cabeça e com um
gosto amargo na boca. Ia para a cama depois que o dia amanhecia, e,
esgotado, dormia o dia todo. Lá pelas quatro da tarde acordava e seu dia
começava justamente quando as lâmpadas de gás estavam começando a
serem acesas pela cidade. E assim ajustou sua rotina ao contrário da rotina da
maioria das outras pessoas. Vivia como se ela fosse inversa e durante dois
anos foram poucas as vezes que viu o sol. Já não era mais uma borboleta, mas
sim uma mariposa. Seu rosto, antes gracioso e delicadamente talhado, tinha
agora traços duros e graves. Bonito sem dúvida ainda era, mas o encanto e o
frescor da juventude tinham desaparecido e junto se foi a máscara de bon
vivant. Os cabelos escuros, ligeiramente encaracolados na frente, estavam
ficando grisalhos nas têmporas. Os olhos, de um azul indefinido, fundos e
encovados. A vida louca que estava levando deixava marcas profundas a cada
dia que passava.
Sua tia teria alguma dificuldade para reconhecê-lo. Já não era mais o
jovem rapaz tímido com uma voz suave que passava as tardes, tranquilo, na
companhia da marquesa e de Claire, na sala de estar da mansão da família.
Mademoiselle de Beaulieu, que era resoluta e decidida e até certo ponto tinha
uma natureza que neste sentindo se assemelhava a dos homens, quando
queria provocá-lo, o chamava de “Srta. Gaston”. Mas agora ele tinha perdido
toda aquela candura que o fazia parecer com uma donzela refinada. Ele tinha
virado homem e um homem perigoso. Tinha descoberto os tesouros do
ceticismo inato à sua mente. Não acreditava em nada e colocava seus
prazeres acima de tudo. O sangue paternal, que a vidinha pacata de antes
acabara por acalmar dentro dele, voltara a fervilhar outra vez; e a ardente
família Bligny, que do reinado de Henrique III em diante forneceu à corte
francesa os dândis mais libertinos, ousados, conquistadores e pervertidos,
encontrou na sua pessoa a pior representatividade das tradições ancestrais.
O corpo de aparência frágil tinha uma força inesgotável. Ele era como um
daqueles nobres de antigamente que empoavam o rosto e perfumavam as
mãos; que, em vez de se abaixar, mandava os criados pegarem o bilboquê;
que eram carregados em liteiras para evitarem o cansaço causado pela
equitação, mas que, nos campos de batalha, desembestavam como uns
desvairados, envergando uma armadura pesada sobre o corpo para realizar
atos heroicos. Gaston certamente não andaria um quilômetro sequer
carregando algum objeto útil, mas gostava de atirar e caçar por um dia
inteiro, lutar esgrima por horas a fio, ao ponto de cansar até mesmo aqueles
que se consideravam imbatíveis.
Mas era na mesa de jogo que realmente mostrava todo seu poder. Era
como se a sua vontade bastasse para manter a sorte ao seu lado. A pior “mão”
se transformava na melhor quando manipulada por ele. A “banca” não tinha
chance quando ele atacava, mas quando estava em suas mãos parecia
inconquistável. Por três anos a sorte o tratou como uma criança mimada e ele
foi apelidado de “Gaston, o sortudo”. Se fosse outro em seu lugar, talvez
pudesse ter sido visto com desconfiança, mas a sua honestidade era muito
patente para que sua pessoa levantasse suspeita.
O que restava da sua fortuna, junto com os fundos que ganhou na mesa de
jogo, possibilitou uma vida de grande estilo. Ele possuía cavalos
maravilhosos, uma bela residência e todos os luxos indispensáveis para um
homem viver na alta sociedade. Quando entrou para o círculo da nobreza, o
jogo ganhou um novo aspecto. De imediato, todos perceberam que a coisa
ficaria séria e que grandes quantias rapidamente iriam cobrir o feltro verde.
Ele não se mostrou hábil apenas no bacará e no lansquenê, mas também
mostrou grande habilidade no piquet. Foi a ele que o velho Narishkine, muito
mais rico, deu a seguinte resposta depois de Gaston ter ganhado três mil a
custa dele:
Embora não tivesse uma natureza apaixonada e fosse muito egoísta para
amar, mesmo assim acabou tendo sorte neste âmbito também. O fato que é
que ele era generoso e nunca desprezava as beldades que lhe sorriam.
Detestava lágrimas e sempre evitava magoar alguém por medo de ouvir
lamentações e reprovações que pudessem vir junto. Em uma ocasião apenas
imaginou que estava perdidamente apaixonado, mas os eventos subsequentes
mostraram que tinha se enganado. Uma das grandes damas da aristocracia
russa, a condessa Woreseff, famosa por suas esmeraldas e cabelos dourados,
se apaixonou por ele. Sempre vigiada pelo marido, que morria de ciúme dela,
a bela condessa não tinha como escrever para ele ou vê-lo senão em ocasiões
sociais. No começo, Gaston, que parecia muito envolvido, quase se esqueceu
do jogo. Começou a seguir a condessa em todas as festas, valsava com ela
bem embaixo do nariz do marido ciumento, mas sem conseguir dar um jeito
de acertar um encontro privado.
Até que um dia, para despistar o marido, Gaston inventou que estava de
partida para Moscou. Ficou sumidos por uns dois dias e voltou para casa sem
que ninguém soubesse. O conde, sentindo-se seguro, relaxou a vigilância e
assim a condessa pôde se encontrar com o amante em três ocasiões. Ela
descia da sua carruagem na entrada de Saint Alexis, entrava na igreja, saía
por uma porta lateral e seguia as escondidas para o encontro. Na terceira vez,
no entanto, um criado desconfiou e depois de seguir as escondidas a
condessa, correu para informar o conde. Este chegou furioso na casa de
Bligny, mas foi impedido de invadir a residência pelo criado do duque, um
parisiense astuto como o “marquês de Macarille”; enquanto a condessa,
enlouquecida, implorava a Gaston que encontrasse um jeito para ela fugir.
Foi nesta situação de emergência que os nervos do jovem se revelaram
extremamente fortes. Seu banheiro, que ficava no térreo, dava para o jardim
da casa vizinha, mas a janela era protegida com grades de ferro. Mesmo
assim, com um esforço fenomenal, Gaston conseguiu arrancar uma das barras
e desta forma Madame Worseff conseguiu pular a janela e escapar. Segundos
após a fuga espetacular, quando o conde foi trazido à presença de Bligny, que
sorria calmamente, ele não encontrou nada que justificasse as suas suspeitas e
deste modo se viu obrigado a se retirar com um pedido de desculpas.
Assim foi descendo degrau por degrau do capitólio que tinha subido com
tanto triunfo. A maior parte do dinheiro que ganhou no jogo se dissipou com
uma velocidade assustadora e no fim o duque se viu em apuros financeiros.
Começou a renegociar empréstimos – um claro sinal de falência. A
necessidade de se ver obrigado a recorrer a outros em busca de ajuda acabou
por forçá-lo a reconhecer que a sua situação era a da decadência e isto o
afetou profundamente. Tinha saboreado a deliciosa sensação de se sentir o
soberano daquele mundo de bons vivants. A sorte o colocara acima de todos.
Fora tratado como um grande senhor e sentiu orgulho da sua supremacia.
Mas num piscar de olhos seu pedestal foi retirado. No dia que parou de
ganhar ele deixou de existir para os jogadores. Sua chegada não era mais
recebida com alarde no clube. Trocava alguns poucos apertos de mãos aqui e
acolá, mas ninguém se dispunha mais a ocupar a sua mesa de jogo. Desta
forma, ele se viu isolado no meio de um grupo de pessoas que o tratavam
com indiferença, pois não o temiam mais.
Mesmo assim a sua paixão pelo jogo nunca foi tão intensa quanto neste
momento de grande dificuldade. Ele passou a atacar com um frenesi cego, em
vez de analisar friamente as jogadas. Numa noite podia perder ou ganhar
quantias imensas. Não era mais o cavaleiro habilidoso que conduzia seus
cavalos com determinação, mas sim um passageiro descuidado, levado a
galope disparado por um cavalo que era incapaz de controlar – um passageiro
que tinha mais chances de quebrar o pescoço do que chegar ao seu destino.
Na verdade, ele não estava conseguido chegar a lugar nenhum. As raras
marés de sorte de nada serviam, pois ele não sabia mais como tirar proveito.
Jogava como desatino e perdia a uma velocidade alucinante tudo que
ganhava.
O duque não tinha passado tanto tempo assim longe de Paris a ponto de
perder seus hábitos cosmopolitas e se sentiu à vontade assim que colocou os
pés na rua novamente. Sua faceta russa despareceu de imediato e ele se sentiu
um parisiense novamente da cabeça aos pés. E, por assim dizer, se entregou
ao fascínio da cidade. Subiu a Champs-Elysées e andou pelo bulevar du Bois;
descansou no Hotel Drouot, perambulou pela Madeleine até o Bulevar
Montmartre, encantado por poder trocar aperto de mãos com velhos amigos e
tirar o chapéu para conhecidos. Pagou para entrar nos pequenos teatros, onde
se acomodou com uma deliciosa sensação de beatitude nos assentos estreitos
e desconfortáveis. Chegou até a considerar requintadas as peças que não
passavam de puro besteirol. Na verdade, estava tomado de um contentamento
interior que transbordava na forma de admiração. Era assim que se sentia
desde que deixara a Rússia. Parecia um condenado que tinha acabado de ser
libertado da prisão. Agora estava livre e podia respirar novamente.
– Meu caro, duque, sinto muito que tenha de inteirar do tema ao qual
monsieur Moulinet acabou de abordar e em um lugar destes, tão inadequado
para receber uma notícia dessas. Mas como certamente ficaria sabendo
amanhã, não vejo motivos para não o colocar a par de tudo neste exato
momento. Bem, quando chegou, eu estava justamente contando para estes
cavalheiros que quando estive em Londres alguns dias atrás fiquei sabendo
que a ação movida pelo falecido marquês de Beaulieu e levada adiante pelos
seus herdeiros, tinha acabado de ser perdida por eles e sem abertura para
apelação.
– Sangue quente, esse tal de Bligny! O calou na hora, meu caro mestre! E
a mim também. Mas não importa, sangue bom ou não. Ele está arruinado, não
está?
– Verdade. Sabe, meu caro, apesar das revoluções, nunca seremos iguais
a esses sujeitos. Pois, até mesmo esse duque falido será um bom marido para
uma moça rica.
ao som da canção!
Quantas vezes ouviu Athénaïs falando com raiva da sua inimiga, jurando
com lágrimas nos olhos que um dia ainda iria se vingar. Era chegado o
momento da vingança. Athénaïs Moulinet era agora uma das herdeiras mais
ricas de Paris, enquanto a orgulhosa Claire de Beaulieu não tinha dote. A
filha do vendeiro, habituada ao luxo, vestida por Worth, de cabelos
elegantemente penteados, tinha perdido toda a sua antiga deselegância e se
transformado em uma bela mulher; iluminada por uma aura de milhões, era
considera uma das moças mais elegantes da classe média alta. Ao passo que a
filha da marquesa, num vestido simples de lã, seria obrigada a viver no
interior, cair no ostracismo e, talvez, quem sabe, acabaria perdendo até
mesmo o casamento ao qual estava prometida há tanto tempo.
– E por que deve ser assim? – murmurou. – Acaso a minha fortuna não
permite que eu compre o marido que ela desejar?
Ao dizer isso, ele virou-se com uma expressão grave no rosto, e, olhando
para a elegante plateia, parecia em busca do genro que melhor o agradasse.
Do alto do seu pedestal de milhões nada parecia impossível para ele. Quem
teria a audácia de recusar Athénaïs, com um cheque em branco na mão? Um
conde ou um marquês? Quanto ele teria de pagar? Bastava estipular a
quantia. Moulinet poderia dar a filha um milhão de francos, ou dez milhões
se quisesse. Que começasse o leilão do marido! O pai era rico o suficiente
para comprar um príncipe para a filha!
Enquanto o duque seguia distraído sem rumo ou propósito, sem querer ele
acabou chegando na sala de jogos. Teria sido o destino que o levara mais uma
vez, depois de todas as suas boas resoluções, a beira de uma mesa de jogo?
Apesar de tudo que tinha passado, quando anunciaram: “Senhores, façam
suas apostas”. Gaston sacou 100 francos do bolso, jogou sobre a mesa e
ganhou.
No horário que deveria pegar o trem para Beaulieu, Gaston subiu para seu
quarto, extremamente irritado. Recostado ao gradil da janela aberta, ele ficou
observando os garis varrendo a Rua de la Paix. O céu limpo estava marcado
com o tom rosado da aurora e o ar fresco o despertou repentinamente.
Na noite do mesmo dia que Bachelin tinha estado em Beaulieu para dar a
triste notícia de que eles tinham perdido o processo e que Gaston se
encontrava em Paris, a marquesa, ainda abalada pelos duros golpes,
permaneceu sentada na sua poltrona confortável, na imensa sala com vista
para o terraço, por um bom tempo pensando. Ela parecia distante e sua
fisionomia indicava que os pensamentos eram dolorosos. Entretanto, foi
despertada da tristeza com a entrada abrupta do seu filho na sala. Assustou-se
ao vê-lo tão agitado e olhou ansiosa como se esperasse outra má notícia, mas
ao notar o olhar tranquilo do filho e o sorriso em seus lábios, ela suspirou
aliviada e perguntou:
– O que aconteceu?
– Ah, minha tia querida! Como estou feliz! Ah, minha boa tia! Quanto
tempo! E vocês, meus queridos, como estão?
– Minha querida, Claire! Parece que faz um século desde a última vez que
a vi!
Então, sem hesitar, ela passou para Octave, permitindo que este lhe desse
um beijo em cada face; e depois disso trocou um aperto de mão com ele ao
estilo inglês, sempre rindo, fazendo seu vestido farfalhar devido seu gestual
agitado, parando vez ou outra entre os gritinhos empolgados para recuperar o
fôlego e contagiando o château inteiro e todos seus habitantes com sua
alegria transbordante. De repente, no entanto, ela ficou séria e indagou
ansiosa:
– Ah, minha nossa, o que terá acontecido com o meu marido? – e olhando
ao redor adicionou: – Será que já o perdi?
– Ah, minha tia querida, temos tanto que conversar! – então, segurando
firme a mão da marquesa: – A senhora sabe que a amamos muito e que nada
pode mudar o que sentimentos pela senhora…
Madame de Beaulieu deu uma olhada para Claire, que já estava de orelha
aguçada e atenta e percebendo isso, a baronesa retomou:
– Que lindo! Parece uma cena de ópera! Ah, a natureza, a natureza! Que
sorte de vocês poderem viver no campo e em meio ao verde! Que vida
maravilhosa e como faz bem! Olhe para mim, tia e me compare com Claire.
Temos a mesma idade, e, no entanto, pareço mãe dela! É culpa dos jantares e
passeios, dos bailes e teatros. Nós nos perdemos no redemoinho da vida
parisiense; e tanto prazer dá trabalho. A senhora ri, tia? Talvez pense que
devêssemos agir de outra maneira, meu marido e eu e passarmos quatro
meses por ano na nossa propriedade na Borgonha… Talvez, mas não vejo
como. O barão, que é um homem estudado, precisa residir na capital pelo
bem da sua vida intelectual. Lá ele tem a Academia das Ciências e todas as
suas sociedades solenes… Ah, céus! Aquela Academia me dá nos nervos…!
Quanto a mim, tenho milhares de obrigações a cumprir, que não posso deixar
de lado… contatos sociais, instituições de caridade para promover e
gerenciar… E ainda tem a minha menininha, que não posso deixar o tempo
todo nas mãos da governanta. Como costumamos passar alguns meses no
litoral, mais alguns viajando e uns dois em Nice… viu só o que sobra? Ah,
posso lhe garantir que é uma vida muito cansativa. Mas acho que estamos
acostumados!
Enquanto isso, uma disputa era travada sem trégua entre mademoiselle
d’Henneccourt e “Bombonzinho”. Um dia, depois de se despedir de uns
parentes que tinham vindo lhe visitar, Sophie adentrou no pátio trazendo uma
sacola cheia de chocolates, que ofereceu para todas as amigas. Athénaïs ficou
por último e Sophie cheia de gentileza, ergueu a sacola para que ela pudesse
escolher.
Ele era extremamente vulgar, mas não era uma má pessoa. Sempre
disposto a ajudar, desde que pudesse de alguma forma tirar algum proveito.
Por outro lado, apesar do imenso desejo de ampliar seu círculo de amizade,
era um exemplo para a classe trabalhadora. Sempre olhou adiante e nunca
para trás e assim conseguiu subir cada vez mais alto na escala social.
E com isso, deu outra olhada para o marido e então dele para o marquês
de um modo significante.
– Muito bem, meu sobrinho! Acaso tem algo para me contar? – indagou.
– Acho que já sei do que se trata e como pode perceber isto é motivo de
grande tristeza para mim.
– O duque fez de tudo para que a notícia não se espalhasse. Mas o futuro
sogro dele, que, pelo que parece, é o homem mais vulgar que ele podia ter
encontrado, não foi nada discreto. Parece que ele está exultante, isso sim.
Feliz pela filha que se tornará uma duquesa! Quem me contou foi Castéran,
que é amigo íntimo do duque e sabe de todos os detalhes de como se deu a
negociação. Sinto confessar, tia, que a história toda é lamentável. Parece que
o duque, mal tinha chegado de São Petersburgo, quando se envolveu com
jogo, onde foi muito maltratado pela sorte e acabou sem recursos, o que não
demorou muito. Por conta disso, acabou pendido um empréstimo ao caixa do
clube e assim obteve recursos para quitar suas dívidas. Depois disso ele
voltou a jogar; apostando tão alto que em duas semanas a sua dívida subiu
para duzentos e cinquenta mil francos. Parecia que ele tinha perdido a cabeça.
A má sorte o deixara louco e ele se entregou cegamente ao jogo. Em algumas
noites ele recuperou tudo que tinha perdido. Depois perdeu 100 mil francos
outra vez e acabou dando um calote de uns duzentos mil francos.
– Um calote?
– Gaston não tinha nem um centavo para quitar a dívida. Além do mais,
nos clubes esse tipo de dívida deve ser pago em vinte e quatro horas, do
contrário o devedor é exposto e expulso do clube. Assim a situação do duque
era crítica. Obviamente, ele deveria ter recorrido aos parentes. Apesar de a
maior parte da nossa fortuna estar investida em terras, poderíamos ter
levantado parte da soma, a baronesa e eu; e Gaston poderia pedir um prazo
para o restante. Mas ele nem pensou em apelar para nós, ou do contrário não
teria feito o que fez, apesar de Castéran o ter aconselhado a não fazê-lo. O
fato é que o sujeito infeliz se fechou no seu quarto no clube e se entregou aos
pensamentos mais sombrios. Ele se deu conta de que comprometera
gravemente a sua posição social e suas perspectivas de futuro. Mas nisso a
Providência Divina interveio, na forma do futuro sogro, quem Gaston, pelo
que me disseram, tinha encontrado uma vez apenas. O indivíduo foi direto ao
ponto, falando para Bligny nestes termos: ‘Monsieur le duc, o senhor está
devendo uns duzentos mil francos e precisa dar um jeito de levantar este
montante até o final do dia; mas o problema é que não vai conseguir.’ Nisso o
duque se empertigou como se para encerrar a conversa, mas a pessoa em
questão, que tinha sido apresentada a ele algumas noites antes, tratou de
adicionar: ‘Por acaso tenho aqui comigo estes duzentos mil francos. Sou
dono de uma imensa fortuna e não gostaria que dissessem que um homem
como eu, que reservou um dote de dez milhões para a sua única filha,
permitiu que um dos sobrenomes mais nobres do país se sujasse por falta de
dinheiro.’ Sei que a quantia é imensa, tia, mas não posso garantir que seja
verdade. Castéran mesmo costuma aumentar um pouco as coisas, e, talvez,
tenha floreado a história. No entanto, só estou repetindo o que me contaram.
O infeliz do Bligny ficou deslumbrado. Parecia até que estava diante de um
homem feito de ouro, e, na verdade, como este tinha aberto com toda
benevolência seu cofre, Bligny enfiou a mão. Em seguida, como se tivesse
disparado uma engrenagem, lá se foi ele, com título e tudo o mais. E foi
assim que o duque acabou se comprometendo com este casamento.
– Mas, minha tia querida, a senhora não acha que a situação pode mudar
se tivermos uma conversa com Bligny? Ele se desviou do caminho. Mas se o
fizermos ver o tamanho do erro que ele está prestes a cometer, não acha que
talvez consigamos recuperá-lo? Se me der permissão, eu teria o maior prazer
em me colocar à disposição para tentar.
– Como quiser, tia – concordou o barão. – Não posso condená-la por tal
decisão. Para dizer a verdade eu já imaginava que a senhora diria exatamente
isso; mesmo assim me vi no dever de me colocar à disposição caso a
reconciliação fosse considerada. Em todo caso, não importa o que aconteça, a
sua posição será sempre a de uma pessoa honrada; e mesmo que tenha de
derramar algumas lágrimas em segredo, ao menos não terá de torcer o nariz
para nada. Já não posso dizer o mesmo de Bligny.
– Melhor assim, minha querida. Mas acho que a viagem deve ter aberto o
apetite de vocês. Vamos jantar.
– Diga ao seu irmão, minha jovem – disse ela – que ele é bem-vindo aqui.
– Não sei como lhe agradecer, madame la Marquise, pela gentil acolhida
que deu à minha irmã. Ela cresceu sob a minha tutela, mas sem uma mãe para
guiá-la. Ela carece de lições e conselhos e poderia obter os melhores da
senhora; isso se a senhora pudesse fazer o grande favor de dedicar algum
tempo a ela.
Madame de Beaulieu olhou com mais atenção para Suzanne e foi tocada
pela sua graça e candura.
– Venha, permita que eu lhe dê um abraço, minha linda – disse ela e após
tocar os cabelos loiros de Suzanne com beijo suave, mencionou: – A palavra
paz está escrita na testa desta criança – e, voltando-se então para Philippe: –
Todos seus pecados estão perdoados, vizinho. Aproxime-se e permita que eu
lhe apresente à minha família.
Claire, que até então desviara o olhar, agora olhava muito séria para
Philippe. Seu coração estava cheio de raiva e ela cumprimentava o ousado
estranho com olhares e palavras de repúdio. Ela viu, na verdade, seu porte
garboso como um sinal de vulgaridade e não gostou nem mesmo das roupas
escuras que ele usava e que, por sinal, lhe davam um ar tão digno e sóbrio.
No mesmo instante a imagem do duque aflorou na sua mente. Ela tinha a
sensação de estar vendo Gaston, com sua figura esbelta e porte elegante, o
rosto oval e os cabelos castanhos, olhos azuis e lábios fartos, encobertos pela
sombra do bigode. O contraste se completou entre Philippe, ali presente e
Bligny, distante. A figura robusta do primeiro era a encarnação, por assim
dizer, do físico saudável da classe média, enquanto o último exibia, em sua
pessoa, a delicadeza e a graça, ligeiramente afeminada, peculiares à
aristocracia.
– Esta não é a primeira vez – disse ele – que escuto o nome de monsieur
de Préfont.
– Oh, oh, barão! – exclamou Octave. – Aposto que nunca imaginou que
fosse famoso aqui na nossa região? Viu, você está a caminho da fama, meu
amigo; seu nome atingiu até mesmo os confins do interior e agora o
aconselho a completar seu antigo lema ‘Fortis gladio’ com um adendo ‘et
pennâ’. Não pense que estou fazendo troça. Se tivesse capacidade eu teria o
maior prazer de seguir seu exemplo.
Mas o barão pouco se importava com o que o marquês falava. Estava tão
feliz por encontrar alguém capaz de compreendê-lo, que já tinha engatado
numa conversa a respeito de uma pesquisa sobre a produção de aço. Nem
mesmo a intervenção da baronesa o dispersou do seu assunto de interesse.
Tinha se despedido da sua formalidade inglesa e dado vazão a sua mobilidade
natural. Batia palmas, imitando o barulho do maquinário para ilustrar as suas
explicações. Gesticulava e até mesmo chegou a tocar no braço de M. Derblay
como se quisesse impedir que o outro se afastasse. Mas Philippe não tinha
desejo de tentar escapar da impulsiva familiaridade de M. de Préfont. Pelo
contrário, ele o incentivou, fez por encontrar um aliado inesperado dentre
essas pessoas com quem se sentia tão pouco confortável; apesar de o barão,
que estava muito animado, não parar de falar e já estar tratando Philippe por
‘meu caro’, algo que com certeza ele não costumava fazer com muita
frequência. Mas o interesse que nutriam pela ciência os juntara e unira de
imediato, como se eles fossem uma dupla de maçons e tivessem trocado
misteriosos apertos de mão.
– Então você extrai seu próprio minério? Como seu trabalho deve ser
interessante! – exclamou o barão. – Gostaria muito de ir amanhã, logo cedo, a
Pont-Avesnes para visitar sua fábrica. Você deve gerar muitos empregos?
– Foi muita sorte ter conhecido alguém como você, meu caro – disse o
barão satisfeito. – Eu planejava ir para a Suíça com a baronesa no final do
mês, mas adeus a nossa viagem! Vou ficar por aqui mesmo. Entende o que
quero dizer? Podemos fazer alguns experimentos juntos. Você tem um
laboratório? Claro! Você é químico? Perfeito! Você é um dos homens mais
agradáveis que já conheci – e puxando Philippe pelo braço, monsieur Préfont
saiu andando pelo terraço.
– Mas por que ele deveria ser detido? – perguntou o marquês. – Acaso
não aprova a amizade de Préfont com monsieur Derblay? Seu marido, minha
querida prima, descende dos cruzados e carrega em sua pessoa dez séculos de
bravos guerreiros. Monsieur Derblay, filho de um industrial, carrega apenas
um século de tradição… mas é o século que produziu, ou pelo menos
encontrou meios de utilizar o vapor, o gás e a eletricidade. Devo confessar
que, de minha parte, admiro a súbita amizade destes dois homens, que apesar
de parecerem tão diferentes, admiram muito um ao outro e compartilham do
mesmo sentimento pela grandeza da nação: passado glorioso e progresso.
Bachelin certamente não fazia ideia do efeito que estava prestes a causar
quando abriu a boca para articular essas palavras. Mademoiselle de Beaulieu
levantou-se de repente, enquanto a baronesa, surpresa, bateu palma e
exclamou:
– O pai da Athénaïs!
– Minha nossa, isto é péssimo! Quer dizer, eles virarem nossos vizinhos!
– retomou a baronesa. – Então agora monsieur Moulinet vai brincar de senhor
de terras! Coitado! Vão pensar que ele é o jardineiro!
– Mas ouvi dizer que ele é muito rico! – exclamou Bachelin, meio que
indagando.
Philippe, por sua vez, percebeu o modo impassível e altivo dela, sempre
reagindo as suas investidas tímidas com ares de desprezo e dando atenção o
suficiente para mostrar que sua presença a incomodava. Suzanne depois de
tentar em vão ser gentil na esperança de abrir os lábios comprimidos de
Claire, buscou refúgio na companhia agradável de Bachelin. Ela se sentiu
triste e desanimada, apesar de todas as atenções da marquesa, a quem tinha
cativado com sua simplicidade. As ilusões da pobre moça se desfizeram num
piscar de olhos e ela percebeu que a felicidade do seu irmão estava
seriamente comprometida. Com seu bom senso precoce, ela enxergou a
distância que separava Philippe da orgulhosa e altiva Claire. Chegou a
imaginar, porém, se talvez algum acontecimento inesperado não pudesse unir
estes dois seres tão diferentes. E assim não se desesperou; e com a fé
inabalável que é inerente aos jovens, ela ingenuamente confiou na
providência Divina para remover todos os obstáculos.
Na verdade, ele estava louco para ir embora. Tinham sido duas horas de
tortura no terraço, ouvindo o barão falando sem conseguir prestar atenção,
com o maxilar comprimido e pensamentos tumultuados martelando na sua
cabeça. Já não aguentava mais tanta agonia. Tinha ansiado tanto pelo dia
desta visita e este tinha acabado se mostrando um dos momentos mais cruéis
da sua vida. E assim, desaminado e triste, pronto para renunciar aos seus
planos, ele se despediu dos habitantes do château. Claire deu a mesma
importância para sua partida que dera para a chegada. Permaneceu calada e
distante e recebeu a reverência dele com um mero menear de cabeça, como se
estivesse agradecendo a um fornecedor.
A partida de Philippe teria sido um sinal de derrota, não fosse pela ajuda
dos aliados que ele conquistara. A conduta do barão foi um exemplo claro do
quanto uma paixão pode modificar o caráter de um homem. Abandonando os
últimos vestígios da sua costumeira reserva, ele acompanhou monsieur
Derblay até o portão e trocou um aperto de mão vigoroso e tão cordial como
se eles fossem velhos amigos. Já o marquês, acompanhou Suzanne e por
meio da amabilidade com que tratou o irmão, mostrou o interesse despertado
pela irmã. Bachelin foi atrás, com sua eterna pasta embaixo do braço. No
portão do jardim seu cabriolé, puxado por dois velhos cavalos que mascavam
filosoficamente algumas folhinhas verdes, o esperava. O tabelião ajudou
Philippe e Suzanne a subirem no veículo, enquanto o barão segurava as
rédeas desnecessariamente e o marquês trocava um último sorriso com a
jovem. Bachelin bateu nos cavalos com o chicote, as rodas giraram e o barão
e o marquês gritaram juntos:
Com a voz trêmula, Philippe respondeu “Até nunca mais”, que felizmente
não foi ouvido por conta do barulho do veículo. O tabelião, no entanto, virou
abruptamente.
– Nunca mais? – repetiu ele. – Como assim? Você perdeu o juízo, meu
amigo? Por que nunca mais?
Para Athénaïs, que se importava menos que seu pai com a satisfação da
vaidade, o château não passava de uma fortaleza ameaçadora, de onde ela
poderia derrubar sua inimiga. Para ela, o grande charme de La Varenne era
que suas torres orgulhosas e esplendidas ficavam a apenas dez quilômetros
distantes de Beaulieu. Dali ela poderia gerenciar toda a situação e ali poderia
esperar pacientemente pelo momento exato de desferir o golpe fatal contra a
moça que odiava com todas as suas forças. Assim que se instalou no château,
logo após o fechamento do acordo administrado por Bachelin, ela descobriu
que a baronesa de Préfont se encontrava em Beaulieu com Claire. No entanto,
uma adversária a mais não a intimidou; pelo contrário, ela adorou a ideia de
humilhar a orgulhosa mademoiselle de Beaulieu na presença de madame de
Préfont.
– Não, isso não – respondeu Athénaïs com toda calma. – Não vejo
necessidade de alguém para intervir entre Claire de Beaulieu e eu; e, na
verdade, acho até que ela pode estranhar se eu não contar sobre o casamento
pessoalmente. Além do mais, cá entre nós, monsieur Bligny ficaria numa
situação embaraçosa e acho que ficará agradecido se prepararmos o terreno e
poupá-lo do aborrecimento deste primeiro encontro. Depois que tudo for
esclarecido não haverá mais volta e tudo correrá bem. Não creio que o senhor
esteja com receio de ser mal recebido?
Quinze minutos depois, Athénaïs e seu pai, seguiam por uma estradinha
rumo a Beaulieu, deixando para trás uma nuvem de poeira.
– Isto já e demais!
– Creio, minha querida – interpôs o barão muito sério, – que sua tia sabe
muito bem como agir, e, portanto, não precisa dos seus conselhos.
– Sim, minha criança, você tem razão; vamos fazer isso. Octave, diga ao
criado que vamos recebê-los.
– É uma grande alegria para mim, madame la Marquise, poder estar junto
de mademoiselle de Beaulieu novamente. Desde que a conheci e isso foi há
muito tempo – adicionou, sorrindo carinhosamente para Claire, – que sempre
procurei imitá-la em todos os aspectos. Não acho que seria possível encontrar
modelo melhor.
Como não tinha sido convidada para o casamento de Sophie, ela fingiu
que não saber que esta tinha se casado e assim se dirigiu à madame de
Préfont pelo seu sobrenome de solteira. Para acabar com o equívoco ardiloso,
Sophie teve de apresentar o barão a Athénaïs, que fez uso das palavras
melhor escolhidas para felicitar monsieur de Préfont por ter arrumado uma
esposa tão linda.
E com isso, inflado dentro do seu colete branco, sorriu para todos ao
redor.
A marquesa, neste momento, mostrou todo o tato que lhe cabia como
senhora da casa, misturado ao atrevimento velado de uma verdadeira dama.
Não era sua vontade que Moulinet percebesse o quão severo estava sendo
julgado, mas ao mesmo tempo não abriu mão da satisfação de dar algumas
alfinetadas, ainda que discretas. E assim fez um gracejo para aqueles que
eram capazes de compreender a situação.
Desta vez, Athénaïs não pôde se conter mais. Tinha percebido que seu pai
ia acabar com sua festa. Assim, levantou-se abruptamente, com o rosto
transtornado e um olhar de reprovação e falou secamente:
– Não imagina o quanto estou feliz por estarmos a sós – disse Athénaïs,
sem responder a pergunta de mademoiselle de Beaulieu. – Desde que
perdemos contato, há dois anos, que pensei muito e enxerguei muitas coisas.
Amadureci muito também e meus sentimentos mudaram imensamente. Por
exemplo, no internato, não éramos exatamente boas amigas.
– Um conselho.
– Bem, acho que não estou entendendo direito – afirmou Claire, que
estava de fato encabulada.
– Mas preciso lhe contar quem é ele – insistiu Athénaïs. – É meu dever.
Claire já esperava pelo golpe, pois já tinha perdido todas as ilusões, assim
como estava certa da traição do duque. Mesmo assim o nome Bligny, que era
para ser seu, vindo do modo como veio de Athénaïs, a abalou profundamente.
Com as mãos trêmulas e a boca seca, ela sorveu do cálice amargo da
mortificação até a última gota.
– Obrigada – disse, com um sorriso frio. – Mas pode ficar tranquila que
não sou moça de ser abandonada e preterida. Não pense que o duque se
casaria com outra se estivéssemos noivos, de fato. Não! Mas estas coisas
acontecem entre primos na infância; eles ficam noivos e juram que vão se
casar num piscar de olhos. Tudo não passa de brincadeira de criança. Mas a
razão vem com a idade e as necessidades da vida logo destroem estes planos
pueris. Você disse que o duque pediu a sua mão? Case-se com ele, então.
Seria uma pena se não ficassem juntos, pois vocês se merecem.
– Então você não tem nada contra a nossa união? – insistiu mademoiselle
Moulinet, injetando uma dose sutil de veneno na ferida aberta. – Não imagina
como a sua resposta me deixa feliz! Parece um sonho! Seremos parentes,
estaremos na mesma posição social e eu ainda serei uma duquesa!
E então, sentido que suas pernas iam falhar, ela soltou o peso do copo no
sofá.
E sem pressa, como se para mostrar que tinha vencido e que abandonaria
o campo de batalha de livre e espontânea vontade, ela avançou na direção das
portas de vidro e deixou a sala.
CAPÍTULO VIII
– Você sabia… sabia que ele ia se casar! – vociferou. – Por que não me
contou? – e, enquanto madame de Préfont permanecia calada de tão surpresa
– fui traída! Abandonada! – retomou mademoiselle de Beaulieu, retorcendo
as mãos num ataque de desespero. – E por quem? Por aquela criatura? Como
pôde me deixar saber pela boca dela? Vocês a deixaram livre para acabar
comigo com um só golpe! Foram cúmplices dela! Vocês gostam de mim! E
ele? Ele! Por dinheiro…! Miserável!
Até que, finalmente, a noção de que não poderia fazer nada retornou e a
esmagou novamente. Ela percebeu que todas as suas esperanças tinham sido
destruídas, que não havia perspectivas de vingança. Seus nervos abalados
acalmaram, de repente e, com o peito pesado de soluços angustiados e
lágrimas amedrontadas escorrendo copiosamente pelo seu rosto, ela se atirou
nos braços da baronesa.
– Ah, fomos muito bem recompensados por isso – disse Claire, com
amargura. – Agi com imprudência. Eu deveria ter evitado aquela… pessoa.
Eu sabia muito bem o sentimento que ela sempre nutriu contra mim. Acho até
que a provocamos um pouco na época da escola, mas ela se vingou
cruelmente. Ela nunca perdoou ou esqueceu. Esperou pelo momento certo e
roubou a alegria do coração da antiga amiga de escola. Ah, ela acabou com a
minha vida! A infidelidade do duque sempre irá pesar sobre mim e a
humilhação também, que homem vai querer se casar comigo?
O rosto do duque parecia tão aflito que, apesar de Bachelin, assim como o
barão, estarem contra o rapaz, os dois acabaram se comovendo.
E com isso, deixando os dois primos juntos, Bachelin deu a volta pelo
terraço e discretamente bateu à porta de vidro da sala de estar.
– Estou indo expulsá-lo desta casa, que é o que ele merece – respondeu
madame de Beaulieu, tomado por um rubor da mais pura indignação.
E, deixando Philippe partir, ela fez sinal um sinal para Bachelin, para que
mandasse o duque entrar.
Moulinet, por sua vez, estava muito surpreso, mas suas suposições não
foram tão longe quanto as da sua filha. Não entendeu por que o duque não
esperou por ele em La Varenne, mas não desconfiava do verdadeiro motivo
que trouxera Gaston a Beaulieu. Assim, ele se aproximou do futuro genro
com um sorriso amigável, estendeu a mão e ficou aturdido pelo olhar que
Bligny lançou quando passou sem cumprimentar nem mesmo Athénaïs.
Mesmo assim, ainda lhe restou autocontrole para entrar atrás do duque na
sala de estar.
– Madame la Marquise – disse ele numa voz rouca para a senhora que
tinha sido como uma segunda mãe para ele, – minha amada tia, percebe a
minha emoção… meu arrependimento… a minha dor! Ao chegar em La
Varenne na… casa daquele cavalheiro – o duque parecia estar com vergonha
de pronunciar o nome de Moulinet, – percebi o passo imperdoável que…
Voltando-se para seu futuro sogro com uma altivez superlativa, o duque
retomou:
– Se agi mal em algum aspecto, meu genro, diga em qual. Estou pronto
para reparar tudo que estiver ao meu alcance.
– Tia, devo uma explicação à senhora; e peço licença para lhe dar. Claire,
não posso deixar esta sala sem que me perdoe.
– Não me deve nenhuma explicação, duque – disse ela, – assim como não
carece do meu perdão. Fiquei sabendo que pretende se casar com a filha deste
cavalheiro, – e ao pronunciar as últimas palavras ela assumiu um tom ainda
mais altivo. – Tenho a impressão de que tinha o direito de fazê-lo. Não estava
tão livre quanto eu?
– A sua noiva veio nos dar a boa nova – retomou Claire. – O que foi
correto e não quero ficar em dívida com você.
Claire fez tudo que estava ao seu alcance para dissipar as preocupações da
sua mãe e acalmá-la; e na presença dela sempre se mostrava sorridente e
tentava dar todos os sinais de que estava feliz. Apenas a baronesa sabia dos
seus sofrimentos e arrependimentos. Esta tinha testemunhado a demonstração
de fraqueza da prima e acalmara seus ataques de desespero. Trancada em seu
quarto, Claire passou dias sem dizer uma palavra, esgotada física e
moralmente, sem forças para dar um passo. Largada em um divã, com
olheiras profundas, semblante contraído e dor de cabeça, não conseguia parar
de pensar na cena cruel da ruptura, incapaz de se acostumar com o corte
repentino de todas as suas esperanças. Ficava procurando um motivo para
tudo aquilo, mas nunca conseguia encontrar. Os culpados pela catástrofe era
o ódio da sua rival e a covardia do seu primo.
Pensando sobre a mudança iminente que se daria na sua vida, ela traçou
um plano de ação que deveria ser seguido à risca. Sentia uma indiferença
profunda por M. Derblay. Ignorando as boas intenções do seu noivo, ela
atribuía à disposição dele de realizar todas as suas vontades a ambição única
e exclusiva de tornar-se seu marido. Afinal, não era natural que ele
concordasse com tudo diante da perspectiva de se casar com uma moça rica e
assim se tornar membro de uma família tão nobre? E viu com desprezo até
mesmo a rapidez com que M. Derblay concordou em participar da farsa que
ela encenou para do duque. Deste modo, a admirável generosidade de
Philippe aos olhos de Claire não passava de humilhação. Acreditava que ele
seria um marido flexível e fácil de manipular; e era exatamente isso que ela
queria. Se M. Derblay se comportasse bem, ela poderia agir a favor dele,
cuidar do seu futuro e, com base nas suas influências, ajudá-lo a alcançar uma
posição de destaque na sociedade. Deste modo a importância do seu marido
iria compensar a falta de título. Afinal, eles viviam num século de novos
ricos.
– Você precisa dizer tudo isso para ela e não para mim. Considero tudo
que você diz tão correto e apropriado e tudo que faz tão adequado, que
sempre acabo concordando. Mas mademoiselle de Beaulieu…
– Sim, vou falar com ela hoje à tarde – disse ele, decidido. – Tenho tantas
coisas para contar para ela!
Mas toda sua coragem desapareceu assim que ele entrou no château e se
viu na presença de Claire. Mal conseguiu dizer boa tarde sem tropeçar nas
palavras. Então, aborrecido consigo mesmo, avançou e se sentou em um
cantinho, triste por não ter ocorrido nenhum milagre que o encorajasse a abrir
seu coração como se fosse uma caixinha de joia e expor todos os seus
misteriosos tesouros para a moça que tanto amava.
Como o frio chegou junto com os primeiros dias de novembro, não era
mais possível desfrutar do terraço e deste modo os moradores do château e
seus hóspedes passaram a se reunirem na imensa sala de estar. Neste círculo
íntimo, Philippe encontrou várias oportunidades de se expressar – não sobre o
seu amor, pois ficava emudecido em se tratando disso – mas sobre assuntos
em geral; e alternando sabiamente com Octave e o barão, ele foi capaz de
expor a sua retidão de julgamento e a base sólida do seu conhecimento.
Furiosa com o fracasso dos seus esquemas, Athénaïs retornou para Paris
na companhia do pai e do duque. Antes disso, porém, Moulinet fez uma
visitinha de despedida em Beaulieu, onde foi muito bem recebido pela
marquesa. Atendendo aos pedidos de Claire, na verdade, madame de
Beaulieu mostrou-se sorridente e recebeu o dono da fábrica de chocolate com
toda a cordialidade devida ao futuro sogro de um sobrinho muito querido.
Como a mãe tinha resolvido participar da farsa iniciada pela filha, Moulinet e
o duque de Bligny foram obrigados a acreditar na declaração inesperada de
Claire e assim esqueceram quaisquer possibilidades de terem, de alguma
forma, magoado a moça. O duque ficou surpreso ao descobrir que era
inocente depois de toda a culpa que vinha carregando. Athénaïs admirou a
força da rival e percebendo que tinha sido derrotada depois de se considerar
vitoriosa, jurou vingança. Primeiro decidiu que seu casamento seria realizado
em grande estilo em La Varenne, na magnífica capela do château, mas por
fim acabou optando por Paris, por receio de que os convidados, das duas
partes, não se dessem ao trabalho de viajar para interior. Mesmo assim, ela
prometeu voltar para o casamento da sua futura prima, a querida Claire, como
costumava se referir a ela agora e depois disso partiu para Paris.
Claire ficou aliviada com a partida. Parecia até que o ar estava mais puro
agora, depois que sua rival tinha ido embora. Seu belo rosto se iluminou e ela
até pareceu um pouco mais alegre. Philippe tinha mandado reformar em
segredo os quartos do château de Pont-Avesnes e, aproveitando a súbita onda
de bom humor de Claire, convidou madame de Beaulieu para visitar a futura
morada da filha. O convite foi aceito e no dia seguinte, todos os ocupantes de
Beaulieu se instalaram em uma espaçosa carruagem e partiram para Pont-
Avesnes.
A primeira impressão foi boa. Claire ficou satisfeita com o amplo pátio
cheio de tílias antigas, o lago, o château cercado por um fosso aterrado, cheio
de árvores frutíferas. O jardim, com suas longas trilhas cobertas de sombra,
parecia prometer um lugar tranquilo para meditação. A solenidade dos
amplos cômodos combinou com a sua própria melancolia. Na verdade, apesar
de o château, cercado de árvores e literalmente sem vista para nada, pudesse
parecer um mausoléu para qualquer outra pessoa, ele acabou agradando e
muito mademoiselle de Beaulieu. A baronesa verificou as salas, soltando
gritinhos de admiração ao ver os tesouros artísticos acumulados pelo pai de
Philippe. Os móveis, estilo Luís XIV, encantaram e ela ficou extasiada diante
das tapeçarias de Beauvais representando as batalhas de Alexandre, o Grande.
O apreço por antiguidades tinha se tornado tão comum nesta época que todos
se consideravam, de certa forma, experts no assunto. A baronesa costumava
frequentar leiloes de arte e foi ao mesmo tempo divertido e instrutivo ouvi-la
discorrendo sobre os aparadores da época de Henrique III e as antigas
bonbonières de Dresden. Ela batia de um jeito engraçado nos pratos de
faiança para verificar se não estavam trincados e passando de uma sala para a
outra, seguiu falando animada como se fosse um papagaio, deixando a tia,
que não entendia nada de antiguidade, atordoada. Brigitte foi a única que
apreciou o entusiasmo da baronesa pelos móveis, que há tanto tempo ela
cuidava, aceitando os elogios de madame de Préfont como um tributo ao seu
trabalho.
Quando foi levantada a questão sobre o envio dos convites, Claire tomou
duas decisões que surpreendeu a todos. Primeiro, ela declarou que gostaria
que a cerimônia fosse à meia-noite, sem pompa, na igrejinha de Pont-
Avesnes e, em segundo, expressou o desejo de que apenas os membros das
duas famílias estivessem presentes. Ao ouvir isso, a marquesa ergueu as mãos
ao alto, enquanto a baronesa afundou numa poltrona, onde permaneceu muda
por dez minutos. Octave perguntou à irmã se ela estava ficando louca.
Philippe permaneceu impassível e não expressou uma opinião, nem por meio
de palavras ou gestos. Claire não deu explicações e se agarrou com afinco a
sua decisão, apesar dos apelos dos seus. Se casar à meia-noite! Isto era muito
estranho, embora o costume ainda persistisse em algumas partes de Faubourg
Saint Germain. Em uma missa noturna, como se Claire se considerasse viúva
do duque! Mas ainda que a cerimônia fosse à meia-noite, era absurdo que não
convidassem ninguém. Poderia parecer que estavam tentando esconder algo;
como se Claire estivesse com vergonha do marido. Além do mais, isto
poderia dar azar. Esta última consideração foi levantada pela baronesa, que já
não sabia mais o que falar. Até que, finalmente, Philippe foi pressionado a
dar sua opinião, quando resolveu o impasse declarando que os desejos de
mademoiselle de Beaulieu pareciam normais para ele e que, de sua parte, não
via motivos para não serem concedidos.
Já era quase uma hora da manhã quando Suzanne, vestida de branco, deixou
a sacristia antes que a certidão de casamento fosse assinada e seguiu direto
para o quarto de núpcias, no château. Ajoelhada diante da lareira de arenito
da pequena antessala, a fiel Brigitte atiçava o fogo com um fole, cujas
chamas ardiam por trás da tela de latão de moldura torneada. Ao ouvir o
barulho na porta às suas costas, ela virou-se e ainda manipulado o fole, sorriu
para mademoiselle Derblay. –
– Está quase acabando, minha boa moça. Deixei todos com o nosso
querido padre, para dar uma última olhada por aqui. A casa tem uma nova
senhora, Brigitte e tudo deve estar arrumado para agradá-la.
– Oh, meu Deus! – exclamou Brigitte. – Como ela não será feliz aqui com
o nosso Philippe? Além do mais, se o pássaro é bonito, a gaiola também fica
linda.
– Seja uma boa menina, você não sabe o que está dizendo – retomou
Suzanne, vermelha até a raiz dos cabelos.
– Não se preocupe! Somos nós, apenas! Ah, tem fogo aqui, que
maravilha! Estou congelando! – e ao dizer isso, aproximou-se de uma
poltrona próxima da lareira, onde se instalou, ergueu um pouco a barra da
saia e pousou os pezinhos, calçados em sapatos de cetim preto, na beirada da
lareira. Em seguida, soltando um suspiro de satisfação, tirou a capa de lã dos
ombros e exclamou: – Ah, já estou me sentindo bem melhor!
Nenhum desses pensamentos tinha passado pela sua cabeça até então e as
ideias despertaram uma profunda aversão por Moulinet. Ele se viu como
escravo do dono da fábrica de chocolate e furioso com sua condição, decidiu
se rebelar contra o domínio do outro. Neste momento, enxergou a verdadeira
Athénaïs: uma jovem de classe média rasa e sem nobreza de caráter, invejosa
e má. Olhou para ela, ajoelhada no genuflexório, estranha e desconfortável no
seu vestido demasiadamente extravagante para uma moça solteira. Então,
seus olhos pousaram em Claire, de cabeça baixa, coberta com um véu branco,
compenetrada em suas preces. Mas pelo movimento trêmulo dos seus
ombros, o duque percebeu que ela estava chorando.
Philippe, por sua vez, estava ereto e imóvel ao lado dela, com uma
expressão grave no rosto. Será que ela amava mesmo aquele homem; o
homem que tinha escolhido para ocupar o lugar dele? Neste momento, Bligny
se deu conta do significado da atitude de Claire. Há duas semanas que tentava
entender a situação, mas agora tudo estava claro. Agora ele sabia qual era
verdadeira posição do dono da siderúrgica. Vendo Claire ali sofrendo, tão
bela, lhe ocorreu um pensamento que trouxe um sorriso aos seus lábios. O
Bligny sincero e terno de duas semanas atrás despareceu para sempre e, em
seu lugar, restou o sujeito cético e frio criado pela corrupção russa. Neste
momento, ele decidiu que iria se vingar deste tal de M. Derblay, que era o
maior culpado da sua humilhação. Seria possível que aquele ferreiro pudesse
mesmo se tornar o dono e senhor de uma mulher tão encantadora como
Claire? Não; ele, o duque, iria provar que não. “Ela está chorando”, disse
consigo mesmo. “Ela odeia aquele homem e ainda me ama”.
Com isso ele recuperou sua segurança. Até então, estava se sentindo
diminuído e envergonhado. Achando-se em solo firme novamente, retomou
sua pose orgulhosa e o ar de superioridade. A baronesa estava virando ao
final da cerimônia, quando ele a encarou com sarcasmo, ao que ela franziu a
testa, do mesmo modo que os cães de guarda fazem quando sentem
instintivamente as más intenções do ladrão.
Depois da cerimônia, os poucos convidados se reuniram na humilde
sacristia e a noiva, erguendo o véu, se submeteu ao olhar dos amigos e
parentes. Bligny procurou em vão por um resquício das lágrimas que supôs
que ela derramara em silêncio. Mas o calor do seu orgulho tinha secado as
lágrimas; e ela estava calma e sorridente e falava num tom de voz controlado.
O duque não gostou, pois preferia ter visto uma Claire transtornada. E
notando a mudança, preferiu pensar que a postura orgulhosa não passava de
autoproteção. Mas ele não iria deixar por menos. Assim, prometeu lutar. Só
que não tinha pressa de vencer.
– Muito bem, meu caro Bachelin, não direi nada, se é este o desejo de
monsieur Derblay – garantiu a marquesa. – Mas não pense que eu faria o
mesmo se estivesse no lugar dele. Confesso que estou surpresa. Ele é um
homem de visão e mente elevada. É um ser humano extraordinário.
– Estamos indo embora, Claire, mas antes, gostaria de lhe confessar algo.
Meu coração está muito triste e abatido. Basta uma palavra sua para me
tranquilizar. Tenha piedade e diga que me perdoa.
– Espero que esteja sendo sincera – e então, num tom quase ameaçador,
adicionou: – Au revoir, Claire.
O duque deu uma olhada para Philippe, que estava ereto, em toda a sua
altura, num canto da sala. Seu rosto, bronzeado pela exposição ao sol, parecia
exalar energia. Enfrentar a ira de um homem como ele seguramente não
deveria ser algo fácil. Mas o duque não se mostrou impressionado; longe
disso:
– Os ferreiros sempre foram uns tipos azarados desde a era dos vulcões.
– Pode ter certeza – respondeu ela, – que aprecio a sua amizade por tudo
que ela representa. Mas a felicidade dispensa confidências. E serei feliz sem
contar para ninguém.
– Com todo prazer – respondeu Claire sem hesitar e seus lábios macios e
quentes tocaram a testa de Athénaïs. Mas suas forças estavam se esvaindo e
puxando a baronesa pelo braço, ela a arrastou para fora da sala, dizendo: –
Preciso sair daqui. Estou sem ar.
– Você está ou não está feliz, minha filha? – perguntou com sinceridade.
– Meu dever maternal chegou ao fim. Você será dona da sua vida, agora.
Diga que fiz tudo que estava ao meu alcance para garantir sua felicidade.
Claire percebeu a angústia nos olhos da mãe e num último esforço para
enganá-la, beijou-a carinhosamente e falou:
– Sim, maman querida, você me fez feliz. Não se preocupe com isso.
– Se essas flores darão sorte, então eu as dispenso. Pode ficar com todas.
Suzanne recuou assustada; deixou cair o buquê que segurava e olhou com
os olhos marejados para Claire.
Então, num tom de brincadeira: – Francamente, você não estaria tão triste
nem se estivesse ouvindo a marcha fúnebre no quinto ato da ópera La Juive.
Ao que Claire respondeu com um olhar reprovador, que fez com que
retraísse a espontaneidade da prima. – Fale comigo. Conte tudo. O que está
acontecendo?
– Você está ansiosa, só isso – disse a baronesa, num consolo. – Não pense
que deixamos de amá-la. Na verdade, um novo amor à espera: um amor
sincero e gentil. Seu marido já vai chegar; ele a ama; pode acreditar.
Mas Claire estava pouco se importando com o entorno. Estava longe, tão
absorta pelo desejo de vingar-se de Athénaïs que se esquecera de pensar no
agora. Não quis nem imaginar no que iria acontecer depois que a união se
concretizasse. Tinha apressado o casamento para que todos pensassem que
ela tinha trocado o duque por outro e não o contrário. Mas agora, de repente,
estava cara a cara com a dura realidade. As obrigações carnais do casamento
se materializaram diante da visão do quarto que ela teria de compartilhar com
o marido, da cama imensa que iria dividir com aquele homem, que era
praticamente um estranho.
– É ele!
Philippe ficou sozinho depois para fazer as honras da casa aos seus
amigos e parentes e se despedir de todos. Somente depois que o último
convidado se foi, ele seguiu meio que automaticamente para seu quarto de
solteiro. A suíte que iria ocupar com sua esposa pertencera aos seus pais. E
com um tremor, lembrou-se de que ali perto, separados apenas por algumas
paredes, a sua amada o esperava, na camisola branca de núpcias,
provavelmente muito mais ansiosa do que ele. Não foram poucas as vezes
que vislumbrou com um estremecimento de prazer o momento em que aquela
bela donzela seria sua, mas neste momento os instintos carnais pareciam mais
calmos. Ele estava sereno, um pouco preocupado e muito emocionado. Seu
amor por Claire tinha um lado de ternura protetora. Ele sentia por ela quase o
mesmo carinho que sentira pela sua irmã quando esta não passava de uma
menina. Do fundo do seu coração agradecia à Providência Divida por ter lhe
dado o tesouro que tanto sonhara; e ele prometera que iria se mostrar digno
da graça concedida e fazer tudo que estivesse ao seu alcance para fazer Claire
feliz.
– Posso me aproximar?
– Estamos a sós pela primeira vez – disse Philippe num tom de voz quase
sussurrado, – e gostaria imensamente de abrir meu coração para você. Até
agora não ousei falar, por receio de não conseguir expressar corretamente
meus sentimentos. Por muito tempo só me dediquei ao trabalho, por isso peço
que tenha paciência. Acredite, as minhas palavras não fazem jus ao que sinto.
Não foram poucas as vezes que deve ter percebido que eu me atrapalho com
as palavras quando chego perto de você, e, por isso, acabo me calando.
Sempre tive receio de parecer muito ousado ou muito tímido. Este medo me
paralisava. E, assim, eu me contentava em ouvi-la; e a sua voz parecia música
aos meus ouvidos. Eu me esquecia de tudo enquanto a observava andando
pelo terraço à luz do sol. Na minha mente era só você e acabei me
apaixonando perdidamente. Você se tornou meu único pensamento, a minha
esperança, a minha vida… E agora, veja só a minha alegria ao vê-la aqui,
perto de mim, toda minha!
– Peço que não diga mais nada agora – respondeu Claire, gentilmente. –
Como pode perceber, estou muito nervosa.
Claire virou o rosto para esconder as lágrimas que desciam e, então, com
a voz trêmula e sussurrada, respondeu:
– Sim.
– Acalme-se, eu lhe peço – retomou Philippe. – Não percebe que tudo que
quero é agradá-la? O que quer que eu faça? Diga. Estou pronto para fazer o
que quer que me peça, pois eu a amo.
Por um momento, ele não disse nada, pois havia algo de falsidade nas
palavras de Claire. O pedido para o adiamento da noite de núpcias, dito com
certa hesitação, não pareceu sincero. Havia ali um mistério a ser desvendado.
– O que tem para me dizer amanhã que não pode dizer agora? – retomou
ele.
– Acaso nossas vidas não estão ligadas? Nosso caminho já está traçado.
Seu papel é confiar e ser sincera e o meu é ser compreensivo e paciente.
Garanto que estou preparado para assumir o meu papel. E você, também está
disposta a assumir o seu?
– Permita que eu lhe diga que leva algum tempo para conquistar a
confiança – ela afirmou. – Estou casada há poucas horas. Tive uma vida antes
disso. Uma vida onde eu era feliz. Tinha o direito de pensar em voz alta. Era
livre para ficar calada. Nunca precisei mentir ou fingir nada. Desgostos…
tive alguns, como bem sabe… foi fácil perceber e aqueles que viviam ao meu
redor compreenderam que a lembrança destas tristezas demora a se apagar de
vez. Mas se terei de fingir na sua frente, peço que me dê um tempo para me
acostumar com isso.
– Até amanhã – disse ele, mas enquanto inalava o perfume dos cabelos
dourados, sua boca resvalou a testa contraída dela e ele foi tomado por uma
paixão selvagem e avassaladora. Esquecendo-se de suas promessas, alheio
aos sentimentos vulneráveis do coração perturbado que batia disparado
próximo ao seu, ciente apenas que estava ao lado daquela mulher adorável,
que ele tanto amava e que agora era sua, ele a tomou em seus braços num
rompante irresistível e, com olhos ardentes, exclamou:
– Não vai permitir nem mesmo que eu lhe dê um beijo na testa? Rejeita-
me com violência, quase horror. O que se passa na sua cabeça? Isto não é
mera timidez de donzela. É repugnância. Acaso me odeia, é isso? Mas, por
quê? O que foi que eu fiz? Analisando melhor tudo que acabou de me dizer;
acho que agora estou entendendo. Desde a decepção que teve, algo mais do
que amargura restou no seu coração. Arrependimento, talvez…
– Madame – ele retomou – isto não é hora para protestos vagos. A sua
atitude me leva a crer que esta é me expulsando. E uma mulher não expulsa
seu marido sem um motivo. Para me tratar do modo como está me tratando,
você só pode…
Mas ele parou. A voz ficou presa na garganta. Ele estava lívido e as mãos
tremiam agitadas. Mesmo assim ainda encontrou forças para respirar fundo e,
parando diante da esposa, a encarou no fundo dos olhos.
– E se for o caso?
– Pense no que disse. O que acabou de me falar não pode ser verdade.
Não é possível. Estou sonhando ou você está me testando? Não tenha medo
de admitir, eu a perdoo de antemão, embora tenha me magoado. Um dia você
verá que não se deve abusar de um coração como o meu. É cruel, eu lhe
asseguro…
Ela não disse uma palavra sequer, abandonou-se ao destino que ela
mesma tinha traçado; sem pensar que o que estava fazendo era um verdadeiro
crime. E determinada, no seu orgulho indomável, se preparou para ir até o
fim.
– Ah e vai me dizer que nem percebeu meu estado de nervos, nos últimos
dias? – interpelou Claire, farta de se conter. – Não entende que fiquei girando
sem conseguir encontrar uma saída? Fui levada a fazer o que fiz pela força do
destino. Posso parecer aos seus olhos uma mulher infeliz, mas garanto que
nunca irá julgar o que fiz com o mesmo rigor com que eu tenho me julgado.
Sem dúvida mereço toda a sua raiva e desprezo. Meu dote é seu. Dou a você
tudo que tenho. Que este seja o preço pela minha liberdade!
– Seu dote! É isto que me oferece? Para mim! – exclamou Philippe.
Indignado, ele quase revelou toda a verdade; quase a colocou a par da ruína
que ele até, então, tinha ocultado com tanto cuidado e escrúpulo. A revelação
sem dúvida iria derrubar a altiva Claire. Que bela vingança! Seria um golpe
certeiro e rápido! Mas ele abandonou a ideia. Não achou digno de sua parte; e
se acalmou, ao perceber com satisfação o quanto era superior a sua esposa.
– Você realmente imagina que sou do tipo que se vende? – ele perguntou,
friamente. – Pensa que só me casei por dinheiro e ambição? Pois, está
enganada, madame, se pensa que ainda está lidando com o duque de Bligny.
– Monsieur! – disse num tom arrogante. – Vamos acabar logo com isso.
Poupe-me dessa lamúria toda…
E voltando pelo mesmo caminho, que apenas uma hora antes, percorrera
cheio de esperanças, ele retornou para seu quarto de solteiro.
CAPÍTULO XII
Deixou o corpo cair sobre a poltrona, mas não aguentou por muito tempo
e acabou levantando novamente. Pontadas de dor contraíam os músculos dos
seus membros e ela não conseguia ficar parada. Em busca de um pouco de
alívio, andou de um lado para o outro, apesar do peso que oprimia sua
cabeça, que parecia ao mesmo tempo inchada e vazia. Sentiu uma dor
profunda acima da sobrancelha esquerda, como se alguém tivesse martelado
um prego na sua testa. A febre dilatou suas veias. Voltou a andar de um lado
para o outro e se curvou, gemendo, tamanho o seu sofrimento, remoendo sem
parar na mente perturbada as mesmas lembranças insuportáveis. Apesar de
estar acordada, parecia presa em um pesadelo; e vez ou outra murmurava
palavras sem sentido entre dentes cerrados.
Sofreu assim por horas a fio, determinada a não pedir ajuda, imaginando
que se abrisse a porta seu marido pudesse voltar, pensando que ela buscava
pelo seu perdão. Apesar de confiar na palavra dele, ela não ousou tocar nem
mesmo na maçaneta. Ela teria sido uma conquista triste, uma conquista
calculada para assustar Philippe, pois sob a influência da febre que a
consumia ela tinha mudado tanto que não poderia despertar outro sentimento
senão piedade.
Por volta das nove horas, quando Brigite se aproximou da porta na ponta
dos pés para verificar se a senhora ainda dormia, tudo que ouviu foi um
gemido sôfrego e distante. Alarmada a criada irrompeu no quarto. Claire
estava estirada imóvel, na mesma posição que tinha caído. Falava coisas
desconexas. O rosto estava vermelho e os pés congelados. Brigitte não perdeu
tempo se perguntando o que madame Derblay estava fazendo deitada ali,
ainda na sua camisola de núpcias e a colocou na cama como se ela fosse uma
criança. Então, ao ver que a patroa parecia mais calma depois de deitada entre
os lençóis limpos, a moça saiu em busca do patrão.
Ele estava vestido no seu quarto. Ela viu a cama desfeita e notou a tristeza
no rosto de Philippe. Pegando um lenço encharcado de lágrimas que estava
ao lado do travesseiro, ela balançou a cabeça tristonha e exclamou:
– Não – ela respondeu mais que depressa, – isso não, mas ela não está
nada bem.
Philippe não esperou para ouvir mais uma palavra sequer; e sem perder
tempo nem mesmo para vestir o paletó, ele saiu correndo como um louco
rumo ao quarto de Claire. O vestido de noiva, os saiotes, os sapatinhos de
saltos ligeiramente curvados, o espartilho branco de cetim perfumado, tudo
estava jogado no tapete. Claire jazia largada sobre a grande cama de dossel
com o rosto arroxeado e olhos semicerrados e vidrados. Os guerreiros sisudos
da tapeçaria, com suas lanças em repouso, pareciam zelar por ela. Philippe se
aproximou da cama. Ela não o reconheceu. Estava sorrindo com os lábios
pálidos entreabertos, expondo de relance os dentes perolados. Ele tomou a
mão delicada e nisso descobriu que estava muito quente. Depois de uma noite
tão agitada, pelo visto o torpor acabara derrubando-a. Philippe ficou muito
preocupado. Mais que depressa escreveu um bilhete para o melhor médico de
Besançon e mandou um criado em uma carruagem, com o cavalo mais
rápido, ir buscá-lo.
–É muito grave!
– Meningite…
– Muito bem!
Philippe, que estava tão concentrado que nem vira a irmã entrar, voltou-se
para ela com um olhar carinhoso e sem conseguir se segurar mais, estendeu
os braços e rompeu em lágrimas. Já fazia vinte e quatro horas que ele vinha
contendo seus sentimentos. Suzanne chorou junto e debruçada sobre o ombro
do irmão, murmurou:
– Não tema, Philippe; vamos cuidar dela. Ela vai se recuperar. Vamos
salvá-la!
Mas se tinha alguém que poderia salvar Claire, esse alguém não era
Suzanne. Philippe pediu à irmã, com grande sacrifício, que ela retornasse
para o convento. O dono da siderúrgica receava os delírios da esposa. Ela
falava deliberadamente e o nome do duque de Bligny não saía de seus lábios.
É bem verdade que o chamava com uma ira desvairada, fazia acusações
graves, expondo abertamente a dor do abandono. Philippe também aparecia
em suas alucinações e sempre de um modo ameaçador. Ele vinha armado
para matá-la, depois de ter matado o duque. Ela via o sangue nas mãos dele e
implorava para que ele a matasse para que assim ela pudesse se juntar para
sempre ao seu amado. Philippe foi obrigado escutar, calado e imóvel, a esta
tormenta delirante, mas ele não queria que Suzanne ouvisse. Confiava que
tudo ia dar certo e queria poupar a irmã do seu infortúnio, pois acreditava que
um dia aquela dor seria esquecida, como um sonho ruim e ansiava para que
não restasse uma sombra sequer para manchar a imagem que Suzanne fazia
de Claire.
O delírio persistiu por dias a fio. Muito pálido ele assistia em vão o
sangue escorrendo gota por gota pelo pescoço encantador de Claire, deixando
um rastro vermelho na sua pele alva. Mas a loucura que se apossara do pobre
cérebro enfraquecido seguia atormentando. Dias e noites passaram e a febre
não dava trégua. O rosto da moça tinha afinado, as bochechas estavam
encovadas e o contorno do maxilar a cada dia se tornava mais proeminente.
Seus membros estavam sempre agitados, esfregando dolorosamente sobre os
lençóis e um murmurinho de palavras ininteligíveis – que com o agravamento
da doença só piorou – escapava da sombra lançada pelo cortinado do dossel.
Aquele dia foi horrível. Philippe aguardou pelo final da crise numa
agonia mortal. Notou que sua vida estava sendo decidida ao longo daquelas
horas intermináveis e, em sua mente, exaurida pelo cansaço e pela tristeza, só
passava uma coisa: “Se ela sobreviver seremos felizes”. Ele acreditava no
pressentimento e estava disposto a abrir mão de parte da sua vida se preciso
fosse para prolongar a de Claire.
Finalmente, a tarde se foi, mas junto não veio nenhum sinal da calmaria
que costumava acometer Claire durante a noite. Com as sobrancelhas
contraídas e os dentes cerrados, ela ainda chamava pelo duque numa voz tão
melancólica que era de partir o coração. Philippe tinha se levantado e estava
debruçado sobre ela, imaginando que ela não estivesse vendo nada. Quando
de repente, ela arregalou os olhos e o encarou de um modo pavoroso. Ergueu
então o braço com muito esforço e com a voz abafada disse:
Philippe, cujo coração estava partido ao constatar que ainda era tão
cruelmente incompreendido e exaurido pelo esforço, por um momento se
sentiu fraco como uma criança. Inclinando-se para frente, ele recostou a testa
na coluna de madeira entalhada da cama e derramou lágrimas amarguradas.
Suas lágrimas pingavam lentamente, uma a uma, sobre a testa ardente de
Claire. Elas caíram refrescantes como gotas de orvalho; e como se estas
lágrimas vindas do coração de Philippe fossem um remédio poderoso, o
semblante de Claire relaxou. Ela suspirou baixinho e se virou de lado para
ouvir. Philippe soluçava copiosamente, acreditando que a esposa ainda
estivesse inconsciente. Mas, de repente, uma mão pousou em seu braço e
junto veio um murmúrio sufocado em uma voz fraca:
Por três semanas, ela permaneceu entre a vida e a morte, mas essa crise
foi a última. Depois daquela noite, a enfermidade entrou numa fase nova e a
violenta agitação foi substituída por um torpor crescente.
Através das janelas amplas, era possível enxergar as copas das árvores do
jardim, ainda cobertas de neve e brilhando ao sol. Os passarinhos
costumavam voar até a sua janela, como se estivessem à procura de abrigo.
Ela os observava encantada e sempre deixava algumas migalhas de pão
espalhadas no caixilho para os pequenos visitantes. Ela se interessava por
tudo, agora. Gradualmente foi recuperando as forças e foi genuíno o prazer
que ela se sentiu, física e moralmente, com a volta à vida. Era capaz de passar
horas deitada na cama, ouvindo o tique-taque do relógio sem pensar em nada,
perdida na deliciosa sensação de vazio.
– Mas eu lhe asseguro que estou me sentindo muito bem, pode deixar as
flores aqui.
Philippe ficou sério, e, sem nada dizer, lançou um olhar tristonho e grave
para Claire. A jovem suspirou e então mais contida, respondeu:
Sua feição havia mudado e ela parecia mais baixa agora que não andava
mais de cabeça erguida.
Assim, Claire ficou sozinha com o marido, a quem ela só via durantes as
refeições. Após o jantar, ele a acompanhava até a sala de estar, onde
permanecia por uns cinco minutos apenas e então se levantava, desejava uma
boa-noite e se retirava para o seu escritório. Numa noite, curiosa para saber o
que ele tanto fazia lá e protegida por um manto, ela foi até o jardim com o
intuito de observá-lo da janela. Através da cortina do escritório era possível
ver sua sombra, cujo jogo de luz conferia uma altura gigantesca, andando de
um lado para o outro, pensativo. Claire voltou para dentro de casa e entrou na
ponta dos pés no cômodo adjacente ao escritório. Sentou no escuro e ficou
observando o facho de luz que escapava por baixo da porta e escutando os
passos regulares de Philippe, abafados pelo tapete grosso. Ele seguiu assim
até meia-noite; e então, quando relógio bateu a última badalada, ela ouviu
quando ele abriu a outra porta e o facho de luz se apagou.
O que será que ele estaria pensando tanto enquanto andava? O que se
passava pela sua cabeça durante as longas horas de solidão? Claire teria dado
qualquer coisa para saber. Ela era uma mulher, é sempre bom lembrar e as
mulheres que são curiosas não conseguem se conter por muito tempo. Por
conta disso, numa noite, quando Philippe foi se despedir dela como de
costume, ela não aguentou e perguntou:
Claire recuou; seu rosto ruborizou, as mãos ficaram trêmulas e ela sentiu
uma pontada no coração.
– Pegue de volta, monsieur. Pegue de volta, por favor. Não posso aceitar
este dinheiro.
Seus olhos se encontraram e o olhar de Philippe era tão firme, tão direto e
tão poderoso, que foi demais para Claire. Sua resistência cedeu, a mão que
ela tinha erguido orgulhosa caiu inerte ao lado do corpo e ela se submeteu a
um silêncio doloroso. Sem dizer mais nada, o dono da siderúrgica se curvou
numa cortesia e a deixou sozinha na sala.
Pela primeira vez, a vontade de Claire bateu de frente com a de Philippe.
O choque a deixou atordoada e perplexa. Ela foi forçada a reconhecer que a
força de caráter do marido era superior à dela e ficou ao mesmo tempo
irritada e encantada com a descoberta. Passou a admirá-lo pela sinceridade e
atraída pela sua natureza enérgica, começou a observá-lo com mais atenção.
No seu primeiro sinal de retorno à vida, ela decidiu que seria amável e que
colocaria sua amizade à disposição de Philippe; mas agora, percebia com
assombro e surpresa que estava disposta a oferecer muito mais que amizade.
O problema é que se ela se mostrava disposta a cruzar a linha da amizade,
Philippe por sua vez parecia satisfeito com a sua postura indiferente. Ele não
era um ser acabrunhado, pois para tal existem meios de se lidar. Mas não; ele
só não lhe dava atenção e permitia que ela vivesse livremente; nos conformes
do acordo estabelecido entre eles. Esta indiferença, que tinha algo de
desprezo, fazia com que Claire se sentisse profundamente humilhada e ela
lutou com todas as suas forças para superar este sentimento, apesar da sua
natureza essencialmente altiva e de toda dificuldade para domá-la.
– Muita. Sou casado com a sua única filha e agora você arruma uma irmã
para ela?
– Uma irmã?
– Sim; uma irmã chamada Política e uma irmã que terá muitos filhos.
Todos os seus bajuladores, assessores, defensores, cabos eleitorais, sem
contar os eleitores, que certamente também contarão com uma contribuição
sua. Sabe-se lá onde isso vai parar!
– Ah, não vou dizer que seja um crime! Esta é uma tolice que posso
entender. Um pezinho, um tornozelo delicado, uma cinturinha destacada com
um cinto dourado, igual ao que as ciganas usam no balé Fausto e um par de
olhos castanhos ou azuis olhando por cima dos biombos, à procura de você;
tudo isso é muito bom e prazeroso. Se quiser posso lhe apresentar às
bailarinas da Ópera. Mas a ideia de vê-lo cortejando a República e pagando
uma mesada para ela! Oh, isso me deixa muito preocupado, monsieur
Moulinet! Acho melhor ficar com as meninas do balé.
– Sinto muito se sou motivo de preocupação, meu caro duque, mas sou
um homem de princípios. Prefiro a política.
– Muito provavelmente.
– Claro! Vai ser divertido. Levarei meus amigos para ouvirem. Mas, em
todo caso, tente não se tornar ministro, pois pode acabar me comprometendo.
Mas Moulinet nem ligou para o deboche do genro e seguiu em frente com
seus planos. Na verdade, no começo da primavera se mudou para La Varenne
e deu início à sua campanha política.
Esses foram dias tão felizes que Claire chegou a se esquecer das suas
amarguras. Embora nas noites de solidão em seu quarto imenso acabava
perdendo as esperanças. Acreditava, piamente, que tinha estragado a própria
vida, sem conserto. Nesta altura, já conhecia Philippe o suficiente para saber
que ele jamais voltaria atrás. Ele estava sendo fiel ao pacto. Tinha lhe dado
sua liberdade e ela estava desfrutando como bem desejasse. Com que alegria
ela teria se sacrificado por ele! Orgulhosa e impulsiva, ela tinha encontrado
um páreo a altura e foi com um gostinho de fel que se viu obrigada a
reconhecer que tinha sido dominada, que tinha surgido um homem que
pousara a mão sobre o seu ombro e a fizera se abaixar. Era este homem que
ela amava agora e exatamente por isso, estava disposta a ceder em todos os
aspectos.
E deste modo, seu amor por Philippe, passou a se tornar visível nos
pequenos detalhes. Seu rosto se iluminava sempre que ele se aproximava
dela. Ela estava sempre com olhos voltados para ele e invariavelmente fazia
algo que achava que pudesse agradá-lo. Suzanne exerceu uma parceria
valiosa neste jogo do amor. Numa tarde, no terraço, logo após o almoço,
enquanto mademoiselle Derblay se divertia passando um ramo de trigo no
pescoço de Claire, a última a segurou pelos ombros e puxou-a em sua
direção. Philippe estava sentado ao lado, tomando café indiferente e
observando distraído um bando de pássaros que sobrevoava barulhento o céu
azul. Claire segurou o rostinho da cunhada com as duas mãos e a encarou
com olhos cintilantes. Então, de repente, ela suspirou e pressionando os
lábios nos cachos que caíam sobre a testa de Suzanne, sussurrou:
Esse foi um dos últimos dias relativamente felizes que Claire teve o
prazer de saborear. Na manhã do dia seguinte, o duque e a duquesa de Bligny
chegaram a La Varenne. Claire ficou extremamente aborrecida ao ser
informada sobre a chegada do casal. Sua vontade era nunca mais por olhos
neles. Percebeu que Philippe estava mais atento e fez questão de transparecer
que estava calma. Na tarde daquele mesmo dia, assim que Suzanne se
recolheu, Philippe comentou com a esposa que eles deveriam se aproximar
mais dos vizinhos de La Varenne.
– Você está certo – disse, apenas. – Eles devem ser recebidos de acordo.
E agradeço por aceitar esta imposição, pois creio que a presença do duque
será tão dolorosa para mim quanto para você.
Philippe fez um sinal que não significou nem sim e nem não e a conversa
encerrou nestes termos.
CAPÍTULO XIII
– Muito bonito.
Então, arrancou uma das flores raras e enfiou na lapela do seu paletó. O
jardineiro ficou tão transtornado quando viu a flor, que tanto custo e carinho
tinha dado para ser produzida, sendo colhida tão sem cerimônia, que deixou
cair o vaso de begônia que segurava. Então olhou feio para Moulinet e se
retirou de cara amarrada.
– Você sabia que essa flor custou quinze libras? – comentou o ex-juiz do
Tribunal do Comércio com um sorriso orgulhoso.
Moulinet olhou desconfiado para o genro, mas não ousou dizer nada. No
fundo ele tinha medo do duque. Sempre ficava desconcertado quando Gaston
o encarava com ares de superioridade. Uma noite em Paris, pouco tempo
atrás, ele comentou com o jovem mestre Escande, o tabelião:
Isso por que tendo, especialmente depois do seu interesse pela carreira
política, tendências igualitárias, ele não se sentia no mesmo nível do duque.
Como a estufa não impressionou, ele achou que teria mais sucesso nos
estábulos, onde tinha uma dúzia de cavalos para cavalgar e para puxar
carruagem, incluindo seu cocheiro, que diziam ser o melhor da região e que
por conta disso era muito bem remunerado.
Mais tarde a coisa toda foi esclarecida e o resultado foi que o genro de M.
Moulinet, que era um grande conhecedor de cavalos, apontou que o
funcionário tinha feito seu patrão pagar seis mil francos por animais que não
valiam mais do que oitocentos. O duque expressou sua opinião de uma
maneira que conquistou a estima do cocheiro:
– Roube o seu patrão, meu caro; isto é até natural. Mas, por favor, arrume
alguns animais decentes para ele.
Por outro lado, sentiu uma pontinha de curiosidade para saber qual tinha
sido o resultado do casamento decidido em circunstâncias estranhas; e por
tudo isso não foi preciso muito esforço para convencê-lo a acompanhar seu
sogro e Athénaïs durante a visita aos Derblay. Ao que ele disse consigo
mesmo:
– Posso adiar por dia a minha viagem para Trouville e assim mostrar
alguma consideração à pobre Claire. É o mínimo que posso fazer.
Ele, no fundo, sentia pena dela; e fazia uma péssima imagem da vida que
a mulher com que ele tivera intenção de se casar agora levava. Imaginava que
ela tinha se transformado em uma mulher de mente estreita e restrita,
totalmente absorvida com os cuidados com a casa. Um pouco mais e ele teria
imaginado a prima orgulhosa arrumando os livros do marido, com luvas
pretas para proteger as mãozinhas.
Ele ficou abalado quando Claire apareceu. Ela não parecia mais a mesma.
Não que estivesse mais bela do que antes, mas parecia deveras mudada:
simples e serena, com um brilho imponente nos olhos que o impressionou. M.
Derblay, por sua vez, se mostrou muito simpático para desagradar o duque,
que pela primeira vez notou que o magnata ostentava a fita da Legião da
Honra. Bligny mergulhou em reflexões. Pouco falou, além o apropriado, com
o propósito de não despertar, logo no primeiro dia, as suspeitas de Philippe.
Pelo contrário, passava mais tempo ainda na sala de fumar, só que agora
não dormia mais. Passava as tardes confortavelmente instalado no divã,
fumando aqueles cigarros orientais que estimulam a imaginação. Ficava
vendo a fumacinha subindo lentamente em espirais azuis em direção ao teto,
como se estivesse vendo alguma aparição etérea em meio aos círculos
girando. Na sala escurinha, ele via o rosto de Claire, do jeitinho que tinha
visto da última vez. Fechava então os olhos, mas mesmo assim continuava
vendo sua imagem.
“Os ferreiros sempre foram uns tipos azarados desde a era dos vulcões.”
Na batalha que eles estavam travando o vitorioso deveria ser ele. Claire
seria testada em uma prova de fogo, pois só assim ele poderia apagar para
sempre a afronta injusta que ela fizera. Sua intuição dizia que Athénaïs estava
disposta a participar deste joguinho perigoso. A batalha seria disputada de um
lado entre a duquesa e Claire e do outro entre o duque e ele. Philippe sabia
que seria uma disputa dura, cheia de armadilhas traiçoeiras e surpresas
terríveis; que talvez pudesse acabar com a morte de um homem – a dele ou a
de Gaston. Mesmo assim ele não hesitou. Afinal, o que tinha a perder? Seu
futuro já estava comprometido; a sua felicidade perdida. Para ele era
vantagem arriscar. Mas para tal estava tão cauteloso quanto resoluto e
determinado a tomar todas as precauções para assegurar sua vitória. Não
poderia defender Claire ostensivamente, mas como seria perigoso abandoná-
la com seus próprios recursos, ele resolveu arrumar um aliado para ela. Para
tal convidou o barão e a baronesa de Préfont para passarem algumas semanas
em Pont-Avesnes. Com as respectivas forças equilibradas, agora era só
esperar pelo confronto.
– Sabe de uma coisa, duquesa, seus provincianos são de uma raça muito
boa! – exclamou La Brède. – Eles erguem as suas parceiras de dança como se
elas fossem penas e nunca se cansam. Estou pensando em levar alguns para
Paris, no inverno; eles vão animar os nossos cotillons e acho que serão muito
disputados no mercado.
Consequentemente, ele deu carta branca à duquesa para gastar o que fosse
preciso. E enquanto as esposas e filhas dançavam, ele se ocupava tentando
conquistar a confiança dos pais e dos maridos. Mas uma coisa ainda o
preocupava. Nem o prefeito e nem o delegado de Besançon tinham dado as
caras nas festas de La Varenne. Talvez o prefeito considerasse os convidados
demasiadamente aristocráticos. Quanto ao delegado, este tinha sido
repreendido por ter permitido que seus soldados apresentassem as armas ao
bispo durante uma procissão e sem dúvida achou por bem não aparecer nos
salões da duquesa.
– Que importa se o prefeito não veio, contanto que ele vote no senhor –
disse Athénaïs a Moulinet, quando este expressou a sua ansiedade. – Afinal
ele foi atacado no Courrier, papa. Quer que eu peça para La Brède escrever
um artigo? Vai ser engraçado. Quanto ao delegado, esqueça; os soldados não
votam mesmo.
– Você é a única pessoa que não tem direito de me fazer tal pergunta –
respondeu Claire, orgulhosa.
Ela resolveu fugir daquela casa e fazendo um sinal para o marido, que se
aproximou de imediato, pediu que mandasse chamar a carruagem. Então,
ignorando os protestos carinhosos de Athénaïs e despedindo-se com um
discreto aceno de cabeça do duque, ela arrastou Philippe da sala o mais
rápido possível, como se o château estivesse pegando fogo.
Foi La Brède que, como todos os homens criativos, sem querer deu a
duquesa o motivo que ela estava procurando. Ele sugeriu um tipo de gincana,
conhecida como Caça ao Papel, pelos bosques de La Varenne e Pont-
Avesnes. As autoridades civis e militares seriam convidadas. Os guardas do
quartel de Besançon garantiriam a segurança e todos poderiam participar a
cavalo ou de carruagem. Um almoço gigantesco seria oferecido na Rotunda
das Lagoas; em suma, o evento seria tão espetacular que muito
provavelmente sairia até mesmo nos jornais de Paris. O plano era digno de
um gênio e Athénaïs ficou tão entusiasmada que quase deu um abraço em La
Brède.
Num traje de montaria preto, agitando seu chicote, cuja ponta do cabo era
adornada com uma pedra preciosa, Athénaïs recebia, com uma alegria e graça
surpreendentes, cada convidado que chegava.
– Pare! – gritou Pontac com uma risada. – Se deixarmos, você vai nos dar
a rota inteira do começo ao fim.
– Mas, duquesa, você já não tem Pontac, que pode guiá-la muito melhor
do que eu? – respondeu Philippe com uma pergunta.
Com uma pontada no coração, Claire ficou vendo seu marido lhe dando
as costas e na hora pensou em chamá-lo de volta e detê-lo.
– Philippe!
Certamente bastaria a jovem ter dito uma palavra e seu marido teria
ficado ao seu lado e talvez os dois tivessem sido poupados de vários
aborrecimentos futuros. Mas o orgulho de Claire, que ainda era mais forte do
que seu amor, reteve as palavras que estavam na ponta da sua língua. Ela
balançou a cabeça e muito séria, torcendo os lábios, respondeu com um gesto
de desdém:
– Não. Eu não tenho nada. Não estou precisando de nada. Pode ir!
Philippe virou. Neste momento Claire o incluiu no ódio que sentia por
Athénaïs. Foi acometida por um daqueles ataques de fúria que levam os seres
humanos a cometer um assassinato.
Com a ajuda dos braços fortes de Philippe, a duquesa subiu na sela do seu
cavalo, pegou as rédeas, acenou orgulhosa para sua rival e incitando o cavalo,
o fez pular o canal que separava a clareira do bosque. Philippe foi atrás e um
segundo depois eles desapareceram bosque adentro.
–Quer que eu lhe faça companhia? – indagou uma voz suave perto de
Claire, que estava plantada no lugar, olhando embasbacada os dois cavaleiros
até eles desaparecerem, levando junto a sua felicidade. Mas ao ouvir a
pergunta, ela virou rapidamente a cabeça e percebeu que era o duque que
estava ao seu lado. Ela segurou um grito de raiva e arrancou as luvas. –
Deixe-me em paz – respondeu, com o cenho cerrado e olhos baixos. – Quero
ficar sozinha.
– Por que tenta me enganar? – indagou. – Pensa que sou tão tola a ponto
de não perceber o que estava acontecendo? Claire, você não está feliz.
– Eu? Por que eu não estaria feliz? Levo uma vida de luxos e festas.
Tenho uma família que me ama, estou cercada de amigos, um marido que me
deixa livre. Você sabe muito bem que isso era tudo que eu sonhava. Por que
não estaria feliz?
– Quando seu marido cuidou de você com tanta dedicação – disse ela, –
você nunca pensou em se aproximar dele e tentar reatar os laços novamente?
– Apesar de tudo, até onde posso perceber, ele não parece muito
preocupado. E a nossa encantadora duquesa Moulinet…
– Oh! Não acuse Philippe – Claire tratou de interromper. – Ela que está se
atirando nos braços dele. Ela me persegue sem trégua. Primeiro foi meu
noivo, agora meu marido! Que belo triunfo, não? E como posso tirá-lo dela?
O que posso fazer para me defender? Será que tenho direito de tentar fazer
alguma coisa? Será que ele é meu mesmo?
– Francamente, ele é mais seu do que dela.
– Ela que fique com ele! – exclamou Claire com empáfia. – Já sofri muito
por causa dela. Paciência tem limite. Ela está testando a minha e não sei mais
o que fazer e isto ainda vai acabar com um ato de loucura que acabará por
destruir um lado ou o outro.
– Calma, querida, calma. Estou aqui para ajudá-la e prometo que você vai
superar a encantadora Athénaïs. Ela é uma usurpadora, como pode ver; é de
família. O pai costumava colocar a mão em todo o açúcar do mercado e ela
parece ser especialista em maridos. Ela quer todos. Ah, como eu gostaria de
vê-la tentando se aproximar do barão; como seria divertido!
– Exatamente por isso que você deve esperar pelo momento certo antes
de se arriscar. Se não surgir nenhuma oportunidade, daremos um jeito. Mas,
pelo amor de Deus, não fique com essa cara de tristeza e desespero. Nossa
querida amiga Athénaïs ficaria muito feliz em vê-la assim. Lembre-se que
todos imaginam que você é feliz, por isso coloque um sorriso no rosto até que
isto se torne realidade.
Claire soltou um longo suspiro. Ela que fora tão indomável, que se
gabava de ser capaz de transpor quaisquer obstáculos, agora duvidada da sua
própria força e determinação.
– Creio que esta conversa séria já dura há mais de meia hora – disse a
baronesa. – Essa sessão de aconselhamento me cansou. Se estiver disposta,
poderíamos cavalgar um pouco; vai nos fazer bem. Além do mais, eu gostaria
de ver o que a encantadora duquesa Moulinet está fazendo com seu marido.
Vamos?
– Conte para ela, eu adoraria. Sabe muito bem o quanto somos amigas.
Estou certa de que ela vai ficar feliz.
Então, ele estendeu as mãos cruzadas para que pudessem servir de apoio
para Suzanne subir no cavalo. A jovem ergueu os olhos e olhou para Octave
por mais tempo que o necessário talvez e trocou um aperto de mãos com ele,
onde expressou tudo que não ousou dizer. Então, tocando a égua com o
chicote, ela chegou ao centro da clareira num piscar de olhos.
O som da trombeta ecoava pela floresta, cada vez mais perto, apressando
La Brède e Du Tremblays.
– Claro, barão, claro – disse madame de Préfont, com uma ternura súbita.
– Você é um anjo. Além do mais é um anjo cientista! Venha, beije a minha
mão!
– Com todo prazer, disse o barão sem perder sua tranquilidade e levou
aos lábios a mão enluvada da sua esposa amada.
A baronesa deu uma olhada ao redor, fez seu cavalo pisotear no mesmo
lugar e acenou para Claire e Octave; então, voltando-se para Suzanne,
perguntou:
–Está pronta? Sim? Então vamos! – e, seguida por seu marido e a jovem,
ela saiu em disparada.
Já Claire refletia sobre tudo que a baronesa tinha falado e ponderava, com
certa ansiedade, as chances de vencer o seu maior desafio. A voz do seu
irmão a despertou das suas meditações.
– Claire – disse ele, – tenho uma ótima notícia para lhe dar.
Ao ver a expressão de surpresa da irmã, fitou-a indagativo e adicionou: –
Suzanne e eu estamos apaixonados um pelo outro.
Claire olhou muito séria para ele. Afinal, não exercia tanta influência
sobre o marido quanto seu irmão imaginava. Nunca, desde aquela noite
fatídica, o ponto de partida de tanto sofrimento, ela voltara a ter uma
conversa séria com Philippe. Em Pont-Avesnes eles só se viam na hora das
refeições e na presença dos criados conversavam o mínimo possível e sempre
sobre assuntos triviais. E agora, sem preâmbulos, ela teria de abordar este
tema de fundamental importância com seu marido. Mesmo assim, ela não
hesitou; pelo contrário, recuperou a antiga confiança. Tinha um
pressentimento de que ia conseguir.
– Este foi o meu pagamento? – ela indagou com um entusiasmo que não
demonstrava há tempos. – Vejo que está confiante, pois pagou adiantado. Vá
atrás dela, agora. Você sabe que não temo a solidão; e além do mais, preciso
refletir sobre tudo que acabou de me contar.
–Um dia você saberá de toda a verdade. Irá perceber que foi mais injusta
do que cruel e talvez pense em desfazer tudo que fez. Mas aviso que será
inútil. Mesmo que eu a veja de joelhos aos meus pés implorando por perdão,
não terei piedade.
Mas será que não teria sido o despeito que o levara a uma decisão tão
terrível? Ela se lembrou da cena: ele com a testa apoiada sobre as mãos,
como se estivesse arrasado de dor e então levantando o rosto banhado em
lágrimas. Ele a amara e naquela noite fatídica teria dado a sua vida por uma
palavra de esperança ou um olhar carinhoso. Mas oito meses tinham se
passado desde então e talvez todo seu amor tivesse acabado por causa da dor
que ela causara.
– Na verdade, não.
– Meu caro, duque, não acha que não temos nada para dizer um ao outro?
– Tem certeza? Estou triste em perceber que tenha se tornado tão
dissimulada. Certamente muitas coisas a preocupam, mas sei que não vai
admitir.
– Como está sendo dura comigo. Eu sabia que ainda nutria um desejo de
se vingar de mim.
– Monsieur Derblay – disse ele, tentando subjugar Claire com seu olhar, –
sem dúvida é perfeito. Mas tem um ponto que o impede de ser totalmente
perfeito: ele não a ama! Vocês estão casados há poucos meses e se ele
realmente gostasse de você estaria ao seu lado, atencioso e carinhoso. Mas
onde ele está? Ele está com a duquesa.
– Você pensa que o ama – retomou Bligny com toda calma, como se
estivesse tentando convencer uma criança. – E, por quê? Porque está com
ciúme. Existem vários tipos de ciúmes. Existe o ciúme nascido do amor e o
ciúme nascido do orgulho e eu diria que o seu é o último. Seu marido não se
importa com você e apesar de não amá-lo, isto a irrita. O que é natural. Sem
perceber a contradição você se agarra a ele. Todas as mulheres são iguais; e
quanto à crise que está enfrentando, sei muito bem como é.
Enquanto falava, o duque tentou pegar a mão de Claire, mas ela resistiu
com uma repulsa abrupta e desviou os olhos.
– Seus cálculos estão incorretos – disse ela, – e mostram apenas que não
sabe nada sobre as mulheres. Sinto apenas que ao levar em consideração o
comportamento das loucas ou depravadas, tenha se esquecido das honestas.
Elas são e meu orgulho de dizer, as felizardas que não perdem a cabeça, não
recorrem à vingança e conseguem encontrar consolo em si mesmas,
preservando assim a autoestima e o merecido respeito dos outros.
E com isso a tocou. Ela sentiu o hálito quente em seu rosto e recuou,
contraiu as sobrancelhas e cerrou os lábios.
– Tome cuidado! Se der mais um passo, vou tratá-lo como o covarde que
é e darei uma chicotada na sua cara.
Ele notou que ela ergueu o braço com uma energia ameaçadora, que
estava pronta para desferir o chicote e recuou. Orgulhosa da sua vitória,
erguendo-se ereta, apesar de ainda estar muito trêmula e nervosa diante da
própria demonstração de força:
A jovem não contestou. Apenas deu as costas para seu assediador e saiu
andando na direção da clareira; quando estava separada por um véu formado
por galhos de amieiros e álamos, ela se aproximou do local onde os criados
de M. Moulinet estavam preparando um verdadeiro banquete para os
caçadores.
Madame de Beaulieu, indolente como sempre, deixou para vir mais tarde.
Foi apenas pelo prazer de ver a filha recuperada e montada em um cavalo que
ela deixou de lado a preguiça e mandou prepararem sua carruagem.
– Você está aqui sozinha? Onde está o seu marido? E Sophie, onde está?
Ela estava calma e sorridente e sua mãe se deu por satisfeita. Jamais,
nenhuma sombra de desconfiança passou pela cabecinha distraída da
marquesa.
– Quando chegamos lá, ele não estava mais com Athénaïs; ele a deixara
para aquele tolo do Pontac, que só sabe soprar aquela corneta. Um talento e
tanto para alguém tão tonto. Ah e que bela companhia!
– Então seu cavalo deve ser muito ruim, meu querido; acho melhor arrumar
outro – retrucou a duquesa; e cerrando os dentes de raiva ao ver que sua
insinuação não tinha surtido o resultado esperado, ela desferiu uma chicotada
tão forte entre as orelhas da sua égua, que o animal saltou de lado e empinou,
mostrando os dentes e espumando pela boca.
– Nada poderia ser mais estúpido do que fazer o cavalo empinar dessa
maneira, minha querida – disse ele com jeito impertinente. – Além do mais,
não é a primeira vez que monta e poderia ter caído, o que não teria sido nada
agradável. Aceite um conselho, pare de agir desta maneira o quanto antes;
isto só vai causar confusão.
Claire esperava que ele tivesse sentido ciúmes. Teria sido capaz de
arriscar a própria vida só para que ele a ameaçasse e erguesse a mão como
fizera naquela noite fatal. Já não aguentava mais viver naquela expectativa.
Decidiu então que no dia seguinte iria falar com ele sobre seu irmão e fazer
de tudo para descobrir as misteriosas intenções dele. Tomada a decisão, ela
resolveu parecer feliz; esforçou-se para dissipar as nuvens que rondavam e
como uma atriz no palco, estampou um sorriso no rosto.
– Vivemos tão distantes um do outro que, se não tivesse algo para lhe
perguntar, nem correria o risco de incomodá-lo.
– O que tenho para lhe dizer – ela finalmente falou, – interessa tanto a
mim quanto a você.
– Vejamos.
– Julgue por si mesmo. Octave ama a sua irmã e me incumbiu de que lhe
pedisse a mão dela em nome dele.
– Porque já tem uma pessoa infeliz na minha família por sua culpa e
considero isso o bastante.
– Ela o ama.
– Ela o ama! – ele repetiu, admirado. – É uma pena, mas isto não altera
minha decisão. Se na véspera do nosso casamento alguém tivesse me
impedido, mesmo que isto ferisse meu coração, esta pessoa teria feito um
grande favor. A minha experiência cruel pelo menos vai servir para alguma
coisa; se minha irmã tiver que chorar, que chore livre; pois ela não verá seu
futuro irremediavelmente perdido como o nosso.
O golpe foi tão dolorido para Claire que ela mal conseguiu se recuperar.
– Por favor, não coloque sobre mim o peso da infelicidade desses dois
jovens. Já estou sofrendo o bastante. O que preciso fazer para que mude de
ideia. Sei que agi muito mal com você.
Philippe soltou uma risada amarga.
– Você agiu mal comigo? – repetiu. – Está mesmo falando sério? E ainda
assume? Tenho a impressão de que esta é uma das maiores concessões que já
fez!
– Sim, sei que lhe fiz muito mal – retomou. – Mas tenho sido punida
cruelmente por isso.
– Não! Mas eu preferia a sua ira à indiferença com que me trata. Ouço
todos ao meu redor comentando sobre a minha felicidade. Sou invejada e
parabenizada onde quer que eu vá. Mas quando volto para casa onde está a
minha felicidade? Procuro por ela, mas tudo que encontro é a solidão, o
abandono e a tristeza.
– Tudo que diz é verdade – retomou Claire, com a voz embargada. – Mas
achei que teria um pouco de sossego, mas até isso me tem sido negado.
– Você se esquece que aqui há uma pessoa apenas que tem o direito de
dizer ‘eu não vou permitir’.
O sangue da orgulhosa mulher subiu para seu rosto. Ela se rebelou; e cega
pela ira, deu vazão a todo o ciúme que vinha tentando a todo custo ocultar.
– Preciso trabalhar – ele falou, como se nada tivesse acontecido entre ele
a mulher que tanto amava. – Desculpe por deixá-la.
– O que devo responder para meu irmão? – perguntou Claire, sem jeito.
– Diga-lhe que conto com a sua honra para não dizer uma única palavra
para Suzanne sobre a minha recusa. Vou tomar providências para mandá-la
de volta para o colégio interno, dentro de uma semana.
Claire estava abalada e o delicioso perfume das tílias em flor, que tomava
conta do ar, a afetou de um modo tal que ela começou a tremer, e, com os
olhos marejados, permaneceu parada diante do irmão sem dizer nada.
– Tenho uma triste notícia para lhe dar, meu querido, sobre a missão que
me confiou. É impossível que você e Suzanne se casem.
A jovem ficou calada. A vergonha era imensa. Que resposta poderia dar
ao irmão? Será que poderia confiar seu doloroso segredo? Que desculpa
poderia inventar para justificar a recusa de Philippe? E ela teria de falar sem
parecer hesitante, pois Octave olhava no fundo de seus olhos, buscava a
verdade em seu rosto, nos gestos.
– Sem posição, é fato, mas quanto a isso darei um jeito – disse. – Sem
fortuna. Bem, Philippe sabe que um homem é capaz de conquistar uma.
Seguirei o exemplo dele.
– Como assim, sem fortuna? – repetiu ela; e com um gesto altivo, quase
ameaçador, exigiu uma explicação imediata.
Octave, muito sem jeito e confuso, tentou se esquivar, mas Claire, que
desconfiava de algum segredo que precisava ser desvendado o quanto antes,
o segurou pelos ombros e o encarou.
– Sim e foi ele que nos proibiu de contar para você. Ele não queria que
nada a preocupasse. A generosidade e consideração que ele mostrou naquela
ocasião foi realmente admirável…
Octave não disse mais nada, pois um grito ressoou. Claire gritou e se
debatia como se tivesse enlouquecido e então com a voz embargada e
trêmula:
– Oh, eu menti! – ela deixou escapar. – Menti quando falei que não sabia
por que ele se recusou a lhe dar a mão da irmã. Foi por minha culpa…
criatura miserável que sou, que causa a tristeza a todos que estão ao meu
redor!
– Não tenha medo, estamos salvos agora – ela retomou, agitada. – Vou
dar um jeito; vou garantir a sua felicidade. Oh, vou me ajoelhar aos pés de
Philippe; daqui em diante tudo será fácil e bom, contanto que eu consiga
atingir meu objetivo. Nesta manhã a conversa que tivemos foi muito difícil,
pois me descontrolei. Eu o amo tanto.
Uma nuvem passou diante de seus olhos, pois ela acabara de se lembrar
da duquesa. – Oh, não vou permitir que o roubem de mim – adicionou com a
voz rouca. – Vou reconquistá-lo, caso contrário prefiro morrer!
Seus nervos, que minutos atrás, eram a única coisa que a sustentavam, de
repente relaxaram e ela cambaleou e caiu nos braços de Octave, que a
colocou delicadamente deitada sobre a relva verde. Os soluços angustiantes
faziam seu seio subir e descer. Por um bom tempo, ela ficou assim, escutando
sem nada dizer as palavras de afeto do irmão. Quando, finalmente, recuperou
o autocontrole e conseguiu sentar ao lado do marquês, ela ficou
contemplando com um olhar grave o verde e o vale que se estendia adiante,
com o Avesnes serpenteando entre os campos, parecendo uma fita prateada.
Os telhados cônicos do château destacavam-se entre as copas escurecidas das
árvores do bosque, que se estendia aos pés da colina. A fumaça preta das
imensas chaminés da siderúrgica deixava um rastro escuro no céu e a torre do
sino da igrejinha, com um cata-vento ao alto, cujo sol, que neste momento se
punha, fazia reluzir com seus raios oblíquos.
Era exatamente naquele lugar tranquilo que Claire sonhava viver agora.
Ela se lembrou de que foi naquele mesmo lugar onde estava sentada que um
dia olhara para aquele cinerário com uma mistura de raiva e desprezo. Mas,
agora, ele tinha se transformado no paraíso na Terra, pois era ali que Philippe
morava!
CAPÍTULO XVII
No imenso salão, estilo Luís XIV, que reluzia à luz dos candelabros,
Philippe, em seus trajes de noite, conversava com o barão, que ainda estava
com seu paletó diurno e mostrava suas mãos amareladas. Quando a baronesa
entrou na sala com Claire e viu o marido naquelas condições, ela exclamou
consternada:
– Céus! Por que ainda está neste estado? O que aconteceu com as suas
mãos?
– Garanto que isto sairá com água – e enquanto falava, ele se aproximou
da esposa.
– Você não tem muitas joias – disse ele, com uma reverência. – Na época
do nosso casamento não pude comprar tudo aquilo que realmente queria lhe
dar. Permita que eu repare esta negligência – e ao dizer isso, ele estendeu a
caixinha.
Claire ficou tão surpresa que hesitou em pegar; mas a baronesa, mais que
depressa, pegou a caixinha da mão de Philippe, abriu-a e tirou de dentro um
maravilhoso colar de diamantes para o qual olhou soltando gritinhos
enquanto a peça reluzia sob a luz dos candelabros.
– Venha, Philippe, cabe a você prender este grilhão. É o mínimo que pode
fazer – disse a baronesa num tom malicioso; e então, voltando-se para seu
marido, que tinha acabado de entrar na sala, elegantemente vestido: – Oh,
querido – disse zombeteira, – você que vive procurando pedrinhas, veja se
consegue encontrar umas dessas.
– Monsieur le Duc, é com pesar que vejo que está abusando da boa
relação que tanto me esforço para manter com monsieur Derblay, para…
– E a moral, monsieur?
– A moral! A moral da Rua dos Lombards! – retomou o duque com um
gesto de desdém.
– A Rua dos Lombards tem seus méritos – disse ele, – e o senhor sabe
muito bem!
– Se ele o matar – continuou Moulinet, que ficava cada vez mais animado
à medida que falava, – você terá o que merece.
– O julgamento de Deus!
Mas Gobert, um senhor alto e grisalho, pelo jeito não conseguia mover as
pernas, como se o grupo de pessoas elegantes que o observavam do terraço o
tivesse transformado em pedra; como se, na verdade, ele tivesse se deparado
com a Medusa.
Foi Suzanne quem quebrou o encanto, que, pegando pela mão o senhor,
quem ela conhecia desde criança, o levou até Claire. O fiel funcionário se
inclinou numa uma reverência exagerada e muito agitado, buscando pelas
palavras, apesar de ter decorado o discurso, finalmente iniciou:
– Bem, meu caro prefeito, pelo que parece estamos tentando influenciar
os eleitores! – exclamou uma voz marcial por trás do majestoso Monicaud. O
prefeito virou, como se tivessem pisado no seu pé e se viu cara a cara com o
general, que olhava com um jeito irônico. Apesar das diferenças, o
representante do ministério do interior conseguiu agraciar o representante do
ministério das forças armadas com um sorrisinho forçado. – Bem, meu caro
general –disse ele, – depois de um jantar tão magnífico, é feio brigar com o
anfitrião por causa da sobremesa. O estômago precisa ser educado.
– Aceito a honra que acabam de conceder a mim, meus amigos. Não por
ambição, pois todos vocês sabem que não tenho ambições de ir além, mas
porque espero mais uma vez ser útil à sociedade de alguma maneira.
Pedrinho me levanta
Desta vez o pai da duquesa entendeu. Ele sempre entendia quando lhe
interessava; olhou com benevolência para o ex-bon vivant e concluiu que se
tratava de um homem de berço. O tesoureiro, por sinal, era proprietário dos
melhores cavalos da região.
– Oh, monsieur Derblay, vamos abrir a dança! Vai ser muito divertido.
Vamos, dance comigo!
Athénaïs fitou a inimiga, mas Claire encarou de volta com tanta firmeza,
que a duquesa abaixou os olhos, sentindo-se estranhamente incomodada e
prevendo que algo sério estava prestes a acontecer.
– Eu estava brincando!
– Estou.
– Com ciúme de mim? – insistiu a duquesa.
– Mas, minha querida, você precisa falar com seu marido, então. Eu não
posso fazer nada.
– Mas o que posso fazer? Dar as costas para seu marido? Ser indelicada?
Em primeiro lugar seria muito desagradável fazer isso; e, além do mais, acha
que resolveria? – ela sorria enquanto falava, com a bravata de uma mulher
que confia no seu poder de sedução.
– Não é isto que quero lhe propor – retomou Claire, muito serena.
– Sim – respondeu Claire com uma voz gentil, que contrastou com o
amargor da sua rival. – E é em tom de súplica que lhe peço. Pode dizer que
estou louca, se quiser, mas é assim que peço. A minha felicidade está em
jogo.
– Não vai dar certo – disse ela, – e pode ser desastroso para mim. Você
foi franca e eu o serei também. Sou nova na sociedade em que o duque de
Bligny acabou de me introduzir; e estou feliz com isso; e pretendo manter a
posição que conquistei. Mas, como bem sabe, as pessoas são muito
miudinhas, e, se a família do meu marido me tratar com distanciamento, elas
podem ver nisso um sinal de rebaixamento… tem muita gente que sente
inveja de mim… e depois adeusinho aos meus sonhos! Se está preocupada
com o seu amor, eu estou com a minha ambição. Entendo seu tom defensivo,
mas eu também preciso me defender.
– À sociedade.
– Para a sociedade, não importa qual, composta por pessoas honestas que
consideram dever respeitar uns aos outros e um direito garantir o respeito por
eles mesmos. Nessa sociedade, você vai ver, repetirei em voz alta tudo que
acabei de lhe dizer. Vou mostrar quem você é de verdade. Então vamos ver
se o sobrenome que carrega, por mais importante que seja, será suficiente
para ocultar sua baixeza e falsidade.
– Estou disposta a levar isto até o fim. Pela última vez, vai fazer o que lhe
pedi?
– Duque – ela exclamou, – leve a sua esposa embora se não quiser que eu
a expulse na frente de todos os meus convidados.
Claire olhou agoniada para o marido. Será que ele iria abandoná-la ou iria
tomar seu partido? Por um momento ela aguentou o suspense agoniante,
sofreu ainda mais, talvez, do que tudo que já tinha sofrido.
– Que coisa desagradável! Dois primos! Bligny é a parte ofendida. Ele vai
escolher pistolas. O dono da siderúrgica é um homem morto.
– Obrigada, Philippe!
– Não tem por que me agradecer – disse ele. – Defendi a minha honra ao
defendê-la.
Com essas palavras ele ofereceu o braço para a baronesa, cujos nervos
estavam tão abalados que ela não sabia se ria ou se chorava. Claire enxugou
uma lágrima que escorria pelo seu rosto e com um sorriso triste para o barão
que estava ao seu lado, disse: – Se é assim que tem de ser, então vamos
dançar!
CAPÍTULO XVIII
A noite foi longa para Claire. Apenas quando se recolheu em seu quarto que
ela se deu conta da gravidade da situação. Certamente tinha todo o direito de
agir do modo como agira. Afrontada, ameaçada e ofendida no seu próprio lar
por uma inimiga impiedosa, ela se revoltara e a expulsara de casa. Mas, com
isso, a sua desavença particular acabou se transformando em um problema
coletivo. Seu marido se viu obrigado a ficar do seu lado e se colocar contra o
duque. Ela se lembrou do modo como o Bligny sorriu ao dizer: – Está
decidido – e estremeceu só de pensar, pois tinha total consciência de que o
duque era um adversário perigoso. Philippe corria um sério risco, caso a
história do duelo realmente seguisse adiante. Quase no final da festa, ela viu
Octave e o barão conversando com La Brède e Moulinet. Ela perguntou ao
irmão, mas ele veio com respostas evasivas, declarando que as negociações
levariam a um acordo; um trato.
Claire se perguntou que tipo de trato poderia ocorrer entre aqueles dois
homens, que tanto se odiavam. O duque tinha definido a situação com toda
clareza ao exigir um pedido de desculpas ou uma retratação, em outras
palavras, uma satisfação. Ela sabia muito bem que seu marido jamais iria
pedir desculpas: deste modo, só restava uma solução possível – um duelo.
Ela se deitou no sofá e tentou ler, mas foi em vão, pois parecia que vários
sinos tocavam dentro da sua cabeça; sinos de mau presságio. Então, ficou
ansiosa para saber o que Philippe estaria fazendo e cruzando a antessala na
ponta dos pés, se aproximou da porta do quarto do marido. Estava tudo
escuro e silencioso – não havia sinal de luz ou movimentação. Ela achou que
ele estivesse dormindo e a suposição serviu de alento. De volta ao seu quarto,
ela passou o resto da noite em claro, alternando entre momentos de esperança
e de desespero.
Mas Philippe não estava em seu quarto; não estava dormindo. Ele tinha se
trancado no escritório, que ficava no térreo, bem embaixo do quarto de
Claire, ciente de que o duelo que estava prestes a travar contra o duque
poderia ser perigoso. Naquela mesma noite as quatro testemunhas se
reuniram e a situação, apesar de grave, era bem simples de ser compreendida
e logo chegaram a um acordo. Apesar dos apelos de M. Moulinet, que tentou
evitar o duelo a qualquer custo, o horário ficou marcado para as oito horas da
manhã seguinte. O local escolhido ficava entre os bosques de La Varenne e
os de Pont-Avesnes, a uma distância correspondente entre os dois château. O
ponto era na verdade a mesma clareira onde poucos dias antes os gritos de
alegria e as risadas dos companheiros de caçada se misturaram durante o
suntuoso banquete oferecido por Moulinet. O duque escolheu pistolas, a
distância seria de trinta passos e os adversários deveriam disparar ao sinal.
Philippe aceitou as condições sem questionar; não tinha muita prática em
atirar com pistolas, mas atirava bem com rifle e confiante na sua mira, pensou
consigo mesmo com uma empolgação selvagem, que, se por um lado corria o
risco de morrer, pelo menos teria oportunidade de matar seu odiado inimigo.
Era impossível prever qual dos dois oponentes seria o vencedor, pois ambos
eram dotados da mesma coragem e frieza; mas uma coisa era certa: um ou
outro acabaria sucumbindo.
Sozinho, tendo talvez, algumas poucas horas de vida pela frente, Philippe
se entregou a uma profunda meditação e repassou mentalmente toda a sua
conduta. Um pensamento doloroso o incomodou profundamente: ele temia
ter sido muito duro com Claire. Neste momento supremo, ele se compadeceu
pela pobre mulher que tinha lavado a sua culpa com as próprias lágrimas. E
percebeu, então, que ela era sua de verdade. A noiva orgulhosa, que o repelira
sem piedade, tinha se transformado em uma esposa carinhosa, humilde e
devotada. O duro teste que ele tinha imposto chegara ao fim e ele tinha o
direito de acreditar que, caso sobrevivesse, ela seria sua de corpo e alma, mas
se morresse, ela sobreviveria na lembrança dele.
Esse sempre fora seu objetivo. Ele tinha alcançado e sem ter de ir além e
a noção o acalmou. Não se arrependia de ter martelado incansavelmente a
natureza de bronze da sua esposa para moldá-la ao seu jeito. O resultado
alcançado iria garantir a felicidade de Claire, se o destino estivesse do seu
lado e ele retornasse vivo. Ela certamente teria sido infeliz se tivesse sido
abandonada à própria sorte, com seu senso moral tão deturpado. Inteligente
demais para não perceber que sua vida tinha sido um total fracasso e
orgulhosa demais para reconhecer que a culpa tinha sido só sua, ela seguiria
em frente consumida pela amargura e arrependimentos vazios. A lição que
ele tinha lhe ensinado tinha sido para o próprio bem dela. Ela refletiu, buscou
pelo caminho certo e conseguiu se superar. Agora estava pronta para a
felicidade. Mas no momento em que a sua regeneração estava completa,
quando o futuro prometia tantas alegrias, ela estava destinada a cair no
desespero novamente.
– Matar o homem! Fala como se fosse algo dado como certo, minha
querida. Tais falas só cabem nos melodramas, mas na vida real elas são
ridículas. Deixe de usar palavras de impacto e gestos exagerados.
Então, com um sorriso frio, adicionou: – Por outro lado, pode estar certa
de que terei o maior prazer em satisfazê-la.
– O senhor não ouviu o que a sua filha disse? – respondeu Bligny com
frieza. – Pensa que sou tão displicente com relação as minhas obrigações ao
ponto de não defender a minha esposa?
– Este não é o ponto – respondeu Moulinet, – o senhor agiu corretamente,
admito; mas minha filha deve estar louca por incitá-lo a tal violência. Pelo
contrário, ela deveria rezar por uma reconciliação. Um desentendimento
passageiro entre duas amigas, uma briguinha de primas. Uma troca de beijos
e tudo estará acertado. Mas um duelo, um escândalo, uma ruptura? Não
percebe as consequências disso tudo? São incalculáveis para o senhor! E para
mim? Será desastroso! Simplesmente vai acabar com todas as minhas
chances de me eleger!
Então, retomando a seriedade, adicionou: – Mas, pode ser que não e por
conta disso já tomei todas as decisões necessárias e você encontrará tudo
registrado naquela carta.
Ao dizer isso, apontou para um envelope endereçado ao mestre Bachelin,
que estava sobre a escrivaninha. – Escolhi você e meu velho amigo para
serem meus executores e o que deixo de herança para você, meu caro Octave,
que me é de grande estima…
Foi num tom carinhoso que ele falou sobre a criança de quem tinha
cuidado e dado carinho com um amor de pai; mas passando a mão sobre a
testa, ele tratou de se acalmar e sorriu outra vez. – Preciso me arrumar –
disse. – Você sobe comigo? Para me fazer companhia. Depois vamos
procurar o barão. Quero sair sem fazer alarde.
Octave abaixou a cabeça sem dizer nada. Mas finalmente, com grande
esforço:
– Antes de vir aqui, Philippe, estive com minha irmã. Prometa que não
vai partir antes de falar com ela?
– Não é admissível – retomou Octave, – que saia sem antes dar a ela a
oportunidade de se retratar, se é que isto seja possível.
– Farei o que está me pedindo – disse. – Mas esta conversa será muito
dolorosa, tanto para sua irmã quanto para mim. Faça o possível para encurtar
isto e facilite a minha partida, vindo me chamar.
A baronesa foi ter com a prima bem cedo. Encontrou-a num estado de torpor
inimaginável depois da noite agitada e quando falou com ela não obteve
nenhuma resposta. Com os lábios contraídos e o olhar perdido, a pobre
mulher estava encolhida no sofá, completamente arrasada. Toda a sua vida
parecia centrada naquele olhar sinistro, que pairava fixo em alguma visão
assustadora. Várias horas se passaram e nada mudou. A cada batida do
relógio, indicando a passagem do tempo, Claire tinha um sobressalto; mas
não fosse pelo movimento reflexivo e, pelo olhar parado, era de se imaginar
que estivesse dormindo.
– Aprecio o sentimento que a levou a tomar tal decisão e sou grato por
isso. No início da nossa vida de casados ocorreu um mal-entendido que
acarretou muito sofrimento a nós dois. Não a responsabilizo totalmente por
isso. Também tive a minha parcela de culpa. Eu não soube compreendê-la,
como me sacrificar; eu a amava muito. Mas não posso partir agora, deixando-
a pensar que ainda guardo rancor por você. Fique em paz, Claire e peço que
me perdoe por todo sofrimento que a fiz passar. E agora me diga adeus.
– Não me deixe assim! Não com estas palavras frias. Diga que me ama!
Não vá antes de me dizer isso.
– Reze para que eu volte vivo – pediu, como se lhe desse uma esperança
suprema.
Isso foi tudo. A jovem esposa soltou um grito que fez a baronesa vir
correndo. Enquanto isso o veículo ocupado pelo dono da siderúrgica, Octave
e o barão finalmente seguiu pela alameda. Indiferente à presença da baronesa,
Claire se jogou no sofá e escondeu o rosto entres as almofadas, como se não
quisesse ver e nem ouvir nada, como se ansiasse ter o poder de parar tudo
durante a hora terrível que estava prestes a ter início. Mas uma voz suave a
despertou. Suzanne batia à porta, perguntando:
– Posso entrar?
– Para que direção eles estavam indo? – perguntou Claire com a voz
trêmula.
Claire não ouvia mais nada. Suzanne tinha dito “na direção dos lagos”.
Na hora uma visão da clareira, com seu tapete verde de grama, as cerquinhas
brancas e ao fundo a água serena encoberta pela sombra dos galhos passou
diante de seus olhos. Aquele local, calmo e sossegado era perfeito para um
duelo. Seu aspecto desolado parecia destiná-lo para uma cena trágica. Era lá
que o duque e Philippe iriam duelar; ela teve certeza disso; parecia estar
vendo os dois. Mais uma vez, foi acometida por uma agitação assustadora e
ficou impaciente. De repente, se desvencilhou da camisola e vestiu seu traje
matinal. Ela tinha um plano mente e ia colocá-lo em ação.
Ela olhou ao redor. A uns vinte passos de distância, além dos lagos, os
azulejos de porcelana do quiosque chinês de M. Moulinet refletiam na
superfície das águas plácidas. Dali, Claire poderia ver tudo que estava
acontecendo, sem ser vista. Com a leveza de uma corsa sendo caçada, ela
desviou dos galhos e subiu os degraus do quiosque. De repente parou,
sentindo uma mistura de ansiedade e alarme.
Mas La Brède o puxara para o lado e falava com ele muito sério em um
canto. Octave entregava agora a arma para Philippe e saía de lado.
– Estou morta, não estou, meu amor e morri por você? Como estou feliz!
Você está sorrindo para mim, meu amor. Estou em seus braços. Como a
morte é boa! Como a eternidade é adorável!
Subitamente ela despertou com o som da própria voz. Uma dor aguda
perpassou sua mão e tudo voltou: o desespero, a angústia e o seu sacrifício.
FIM
AUTOR
GEORGES OHNET