Sei sulla pagina 1di 12

3191

ARTIGO ARTICLE
Ampliando o diálogo entre trabalhadores e profissionais
de pesquisa: alguns métodos de pesquisa-intervenção
para o campo da Saúde do Trabalhador

Broadening the dialogue between workers


and research professionals: some research-intervention methods
for the occupational health field

Tatiana Ramminger 1
Milton Raimundo Cidreira de Athayde 2
Jussara Brito 3

Abstract The paper discusses some methods that Resumo O artigo discute alguns métodos que
emphasize collective and shared analysis of the enfatizam formas coletivas e compartilhadas de
relationship established “at” and ‘with” work, in análise das relações que se estabelecem no e com o
a synergetic relationship with the experience of trabalho, em relação sinérgica com a experiência
the protagonists at work. They can be character- dos protagonistas do trabalho. Pode-se caracteri-
ized as research-intervention methods that make zá-los como métodos de pesquisa-intervenção que
important contributions to the field of Occupa- apresentam contribuições importantes para o
tional Health, some of which are developed with- campo da Saúde do Trabalhador, alguns dos quais
in the scope of the Psychology of Work. Methods desenvolvidos no âmbito da Psicologia do Traba-
that use Karl Marx’s “worker poll” as their bench- lho. Métodos que tem como sua referência a “en-
mark, highlighting contributions from some of the quete operária” de Karl Marx, destacando-se as
Work Clinics – taking the existence of theoretical contribuições de algumas das Clínicas do Traba-
and methodological affinities and differences into lho – considerando-se a presença de afinidades
consideration – such as the Italian Worker Model teórico-metodológicas e diferenças – como o Mo-
of the quest for health, Ergonomics in the Work- delo Operário Italiano de luta pela saúde, a Ergo-
place and the Psychodynamics of Work. Subse- nomia da Atividade e a Psicodinâmica do Traba-
quently, the Three-Pole Dynamic Device put for- lho. Em seguida, discute-se a proposta avançada
1
Departamento de ward by Ergology is discussed, as well as one of its pela Ergologia – o Dispositivo Dinâmico de Três
Psicologia, Universidade configurations being developed in Brazil, namely Polos – e uma de suas configurações que vem sen-
Federal Fluminense, Polo
the Extended Research Community. do desenvolvida no Brasil, a Comunidade Ampli-
Universitário de Volta
Redonda. R. Desembargador Key words Occupational health, Mental health ada de Pesquisa.
Ellis Hermydio Figueira and work, Methodology Palavras-chave Saúde do trabalhador, Saúde
783/Bloco A, Aterrado.
mental e trabalho, Metodologia
27.213-415 Volta Redonda
RJ Brasil.
tatiramminger@gmail.com
2
Instituto de Psicologia,
Centro de Educação e
Humanidades,
Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.
3
Escola Nacional de Saúde
Pública Sergio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz.

11 tatiana ok.pmd 3191 9/10/2013, 16:59


3192
Ramminger T et al.

Introdução tações, teses, eventos e livros recentes, como os


organizados por Minayo-Gomes et al., sobre
O campo denominado na América Latina por Saúde do Trabalhador na sociedade brasileira
Saúde do Trabalhador insere-se na tradição dos contemporânea1; e Assunção e Brito9, neste caso
estudos sobre a relação entre vida, saúde e traba- tendo como foco os trabalhadores em saúde.
lho, produzindo-se aí um desvio, na medida em Outros se dedicam à questão mais específica da
que propõe deslocar o centro da análise do indi- Saúde Mental, como o organizado por Glina e
víduo para o processo produtivo (processo de Rocha10 ou das Clínicas do Trabalho, como o
trabalho e relações sociais)1,2. organizado por Bendassoli e Soboll11.
Nesta variação, encontra-se o entendimento
de que analisar e intervir/interferir fazem parte 1. Marx e a “Enquete Operária”
do mesmo processo, sem que necessariamente
haja uma sequência linear. Pode-se então falar na Inicia-se por um registro histórico-genealó-
deriva “compreender  transformar”3. Por ou- gico, incontornável: as ideias que norteiam essa
tro lado, considerando-se a capacidade norma- linhagem metodológica passam pelo processo de
tiva dos viventes 4, os humanos ao trabalhar, produção de conhecimento encaminhado por
mesmo sob condições de exploração, não estão Marx, mais explicitamente quando ele incorpo-
excluídos da potência afirmativa da vida. Emer- rou, em 1880, ao seu ousado processo de análise
ge nesta cena o humano em atividade, frente a histórica, um empreendimento que se tornou
adversidades, com sua vitalidade, interessado em conhecido por “Enquete Operária”. Marx, com o
seu desenvolvimento, pessoal e coletivo (do ofí- exercício da Enquete, revelava-se em oposição à
cio). Trata-se de um enigma cuja compreensão e ideia de que o trabalhador ignora ou é apenas
melhor encaminhamento passam pela experiên- passivo frente à realidade que vive, afirmando
cia dos protagonistas do trabalho. Assim sendo, no texto O Questionário de 188012 que “apenas
qualquer dispositivo para compreender  eles podem descrever, com todo conhecimento
transformar o trabalho em sua dinâmica com a de causa, os males que suportam, e de que só
saúde deve ser, sempre que possível, uma opera- eles, e não os salvadores providenciais, podem
ção de coanálise. A participação dos trabalhado- energicamente remediar as misérias sociais que
res – individual e coletivamente – na identifica- sofrem”.
ção e enfrentamento de situações geradoras de Na verdade, a forma de investigação deno-
adoecimentos e acidentes tornou-se uma marca minada “enquete” fora criada nas primeiras dé-
deste campo, denominado Saúde do Trabalha- cadas do século XIX, na Europa mais industria-
dor, na América Latina. lizada, a partir de demandas policiais-governa-
Este artigo visa contribuir para a discussão mentais, morais e religiosas, para dar conta da
metodológica (e seus pressupostos epistemológi- emergente “questão operária”, como então se de-
cos), na perspectiva de qualificar uma relação dia- signava a miséria e a periculosidade do trabalho
lógica5,6 entre pesquisadores profissionais e pro- operário. Conforme Bidet e Vatin13, desde 1830
tagonistas do trabalho em análise. Busca-se fazê- desenvolveu-se uma tradição de descrição técni-
lo a partir de uma breve apresentação de alguns ca minuciosa da indústria na Inglaterra que ali-
dos métodos que têm orientação epistemológica mentaram a fascinação de Marx pelo maquinis-
relativamente comum e dos quais temos feito uso, mo com informações decisivas para suas análi-
quais sejam, a Enquete Operária de Marx, a Aná- ses sobre o sistema técnico daquele período.
lise Ergonômica do Trabalho, a Enquete da Psi- Posteriormente, estas técnicas começaram a
codinâmica do Trabalho, as contribuições do ser utilizadas pelos chamados grupos socialistas
Modelo Operário Italiano de luta pela saúde e o (aqui entendidos como as forças que passaram
desenvolvimento mais recente conformado pela a se contrapor à doutrina do liberalismo econô-
Ergologia, com o Dispositivo Dinâmico de Três mico), com o objetivo de autoconhecimento da
Polos e uma de suas configurações no Brasil: a classe operária. Temos, por exemplo, a investiga-
Comunidade Ampliada de Pesquisa. Com esta ção realizada por Engels14, entre 1842-1844, pelas
seleção não se ignora outras opções metodológi- principais cidades industriais inglesas, publicada
cas e técnicas disponíveis, com algumas das quais em 1845 com o título “A situação da classe traba-
há, inclusive, significativas interfaces7,8. lhadora na Inglaterra”.
O desenvolvimento destas metodologias se- Na França, o movimento de organização dos
gue como um desafio no campo da Saúde do trabalhadores consegue, em 1879, realizar um
Trabalhador, o que se pode perceber em disser- Congresso Operário, em Marseille, no qual as

11 tatiana ok.pmd 3192 9/10/2013, 16:59


3193

Ciência & Saúde Coletiva, 18(11):3191-3202, 2013


teses marxistas foram vitoriosas. Foi assim que, po emocional, dos sentimentos e opiniões, na
em 1880, a pedido da Revue Socialiste, que orga- Enquete privilegia-se o processo cognitivo, ten-
nizava uma enquete sobre a realidade operária, do como objeto a lógica do capital, buscando a
Marx formulou um questionário (na forma de ruptura com o senso comum.
um questionamento) direcionado a trabalhado-
res do campo e da cidade, com o objetivo não 2. Análise Ergonômica do Trabalho (AET)
apenas de levantar dados e características de sua
situação de trabalho, como também de mobili- Ergonomia, no imediato pós-segunda guerra,
zar a consciência crítica do trabalhador a respei- na Inglaterra, foi a denominação da primeira as-
to de sua condição de exploração. Além da pu- sociação (Ergonomic Research Society) que reu-
blicação pela Revista foram também enviadas có- nia profissionais de diversas disciplinas, sobretu-
pias para, nas palavras do autor, “todas as soci- do a Psicologia, Fisiologia e Engenharias, para um
edades operárias, todos os grupos ou círculos empreendimento inovador: adaptar o trabalho
socialistas e democráticos, a todos os jornais fran- ao homem e não o inverso, como operava a Psi-
ceses”15, disponibilizando-a a todos os interessa- cotécnica. “Filha da guerra”, esta primeira Ergono-
dos que o solicitassem. mia, como tantas outras inovações produzidas a
O questionário, com 101 questões, era divi- partir deste trágico acontecimento histórico, foi
dido em quatro partes, alinhavado por um posi- transportada para o mundo industrial, onde se
cionamento inicial de Marx sobre a exploração percebiam problemas de natureza similar19.
capitalista, fruto de suas descobertas. A primeira A análise ergonômica, como nos explicam
solicitava e orientava uma descrição da fábrica Leplat e Hoc20 e Montmollin21 tem duas grandes
em que trabalhavam, contemplando três grupos abordagens: uma, identificada com as experiên-
principais de perguntas: composição do coletivo cias estadunidenses e britânicas, centrado no
de trabalhadores enquanto força de trabalho, componente humano (human factors) do siste-
estrutura da fábrica do ponto de vista técnico e ma homem-máquina; e outra que se desenvol-
condições de trabalho. A segunda parte investi- veu a partir dos países francófonos, privilegian-
gava estes fatores, mas em sua dinâmica, consi- do a análise da atividade situada, expressão da
derando as formas de domínio e exploração; e a interação dinâmica entre sujeito e tarefa. O obje-
terceira privilegiava a questão salarial. Com esta tivo da primeira abordagem é adaptar os dispo-
sequência, Marx pretendia – questionando – dar sitivos tecnológicos às características e limites dos
subsídios de economia política suficientes para seres humanos e, para tanto, prioriza métodos
que os trabalhadores percebessem, com clareza, científicos baseados na generalização e quantifi-
as formas de exploração a que estavam submeti- cação sem, necessariamente, ter que recorrer a
dos. Finalmente, a última parte do questionário uma observação ou discussão do trabalho com
era um convite à reflexão, solicitando informa- os operadores. Já a segunda, traz como uma das
ções sobre como eles já estariam se opondo, no principais contribuições a diferenciação entre tra-
cotidiano, à exploração. balho prescrito e trabalho real (avançando pos-
Para melhor compreensão da forma-enquete teriormente para os conceitos de tarefa e ativida-
usada por Marx, vale ressaltar alguns pontos. de), sendo imprescindível a análise da situação
Primeiro, a forma interrogativa, estimulando o concreta de trabalho.
diálogo crítico, algo que se vai encontrar posteri- Para Montmollin21 seria mais preciso falar
ormente no Brasil, com Freire e Faundez16 e Boal17. em Ergonomias, complementares, mas não sem
A formulação das perguntas e sua ordenação re- contradições. A Ergonomia dos componentes
velam a ausência de qualquer ilusão de neutrali- humanos (Human Factors) seria uma “ergono-
dade; ao contrário, busca-se o rigor pela via da mia de primeiros socorros” que considera as ca-
clareza da posição, explicitando a problemática racterísticas dos postos de trabalho (iluminação,
que orienta o questionário. Uma estratégia que calor, umidade, ruídos, assentos, etc.), indepen-
implica o pensamento, mobilizando o outro, exi- dente daqueles que os ocupam. Já a Ergonomia
gindo que ele se mova em um raciocínio próprio, da Atividade (EAt) permite ao trabalhador inte-
para além de uma resposta mecânica. ressar-se por sua “atividade real, temporal, com-
Thiollent18 destaca a presença de um tipo de plexa, rara, aparentemente inventiva e, às vezes,
“imposição de problemática” que oferece indica- imperfeita”22. Ao demonstrar que a situação real
ções científicas sobre o assunto e estimula o ques- de trabalho jamais é apenas o cumprimento de
tionamento, a busca por investigar o mundo em regras pré-estabelecidas, conforme acreditava a
que se vive e trabalha. E mais: para além do cam- gerência racionalizadora taylorista, por exemplo,

11 tatiana ok.pmd 3193 9/10/2013, 16:59


3194
Ramminger T et al.

esta Ergonomia apontou que em qualquer ativi- ciar os processos subjacentes à problemática de
dade, mesmo naquela considerada mais simples, análise; (b) fora do contexto sociotécnico de pro-
mecânica ou manual, sempre há uma operação dução, ou seja, nos fóruns científicos norteados
inteligente e uma intensa atividade mental. por regras da práxis da Ergonomia. Todo este
No plano metodológico, para dar sustenta- itinerário metódico conflui para chegar a um di-
ção à ação ergonômica, desenvolveu-se a Análise agnóstico ergonômico, apresentado em um rela-
Ergonômica do Trabalho (AET), cujo princípio tório final contendo um caderno de encargos, que
é “compreender para transformar”23. Inicia-se conduz à negociação da implementação ergonô-
pela análise da demanda, interrogando os pro- mica para a transformação positiva do trabalho.
blemas apresentados pelos contratantes, instru- O que caracteriza essa abordagem clínica28
indo-a e definindo os objetos da ação. O objeti- em relação a outros modos de analisar o traba-
vo é dar visibilidade às dificuldades e estratégias lho é a exigência da presença do pesquisador lá
desenvolvidas para gerir a distância entre a tare- onde o trabalho acontece, constituindo-se o pon-
fa prescrita e atividade, aí constituindo o chama- to de vista da atividade, fazendo uso da confron-
do ponto de vista da atividade24. Um ponto de tação das observações dos pesquisadores com
vista dentre outros, como o dos resultados, das as vivências dos trabalhadores, possibilitando
condições de produção, mas que em regra en- tanto o diagnóstico (compreensão), como o de-
contra-se excluído ou inteiramente subordinado senvolvimento (transformação) dos modos de
aos demais. Constituindo-o, é preciso colocá-lo trabalhar. No que diz respeito a seus
em confrontação com os demais. resultados, Daniellou26 sinaliza que não há uma
Como afirma Teiger19, a atividade de traba- relação imediata entre conhecimento, diagnósti-
lho não é um objeto dado para um investigador co, ação e prognóstico, mas espera-se ao menos
que o coletaria, mas um objeto a ser construído transformar as representações dos atores visan-
e reconstruído, em parceria com os protagonis- do a transformação das situações.
tas do trabalho em análise. Isto porque a ativi-
dade não se limita àquilo que pode ser direta- 3. Enquete como estratégia metódica
mente observado, registrado e quantificado, sen- da Psicodinâmica do Trabalho
do essencial a confrontação e a verbalização do
operador. Conforme esclarece Botechia25: Junto com a Ergonomia, a Psicopatologia do
[...] a verdadeira ruptura com a Ergonomia Trabalho formou a base inicial mais influente da
britânica e americana acontece quando a palavra tradição das clínicas do trabalho desenvolvidas
passa a ser considerada como um comportamento na França. Emergindo no pós-segunda-guerra
carregado de sentido. Nesta direção, a Análise Er- por psiquiatras como Le Guillant, Sivadon, Veil e
gonômica do Trabalho deve levar em conta a ob- Fernandez-Zöila, a Psicopatologia do Trabalho
servação dos comportamentos motores e também (PPT) concentrou sua atenção nos modos como
das trocas verbais estabelecidas em uma situação o trabalho capitalista contribuía para o adoeci-
de trabalho. mento psíquico29-31. O projeto mais influente,
A AET tem como ponto de partida a existên- inicialmente assumido por Le Guillant, era o de
cia de uma demanda, seguida por negociações, chegar a um mapeamento da formas de adoeci-
por uma análise global, pela análise da demanda mento ligadas ao trabalho capitalista. Seus refe-
e sua reformulação, por focalizações e um pré- renciais teóricos e metodológicos foram se dife-
diagnóstico, contemplando observações sistemá- renciando, da abordagem do Condicionamento
ticas no curso da atividade e a confrontação com Clássico pavloviano à Fenomenologia e mesmo
os trabalhadores, buscando a elaboração conjunta à Gestalt32,33.
de alternativas para a transformação dos proble- Já no final dos anos 1970, a “segunda gera-
mas identificados na situação de trabalho anali- ção” da Psicopatologia do Trabalho, especialmen-
sada. O processo de restituição e validação dos te a corrente AOCIP liderada por Dejours, des-
resultados apresentados no diagnóstico prelimi- cobriu que os trabalhadores não se revelavam
nar é fundado no diálogo construtivo da con- passivos frente aos constrangimentos organiza-
frontação de compreensões, o que configura um cionais, desenvolvendo sistemas defensivos cole-
verdadeiro processo de coprodução de conheci- tivos (de tipo estratégico e ideológico) para se
mentos. De fato, para Daniellou26,27, a validação proteger destes constrangimentos e dos riscos de
se dá em dois atos: (a) no contexto da interven- adoecerem. O foco, portanto, deixa de ser a bus-
ção, por meio de restituições sucessivas dos resul- ca de detecção das doenças mentais ocasionadas
tados aos sujeitos participantes buscando eviden- pelo trabalho e passa a ser o sofrimento e as de-

11 tatiana ok.pmd 3194 9/10/2013, 16:59


3195

Ciência & Saúde Coletiva, 18(11):3191-3202, 2013


fesas contra o sofrimento no trabalho, ou ainda, Nesta leitura, se a grande contribuição da
a normalidade e não a doença mental34. Aos pou- Ergonomia da Atividade foi demonstrar a defa-
cos, Dejours inverte a pergunta-chave da Psico- sagem entre trabalho prescrito e trabalho real, a
patologia do Trabalho, questionando não mais Psicodinâmica do Trabalho sublinhou a inteli-
sobre como, em que medida, o trabalho “enlou- gência, a forma de inteligibilidade que é colocada
quece”, mas justamente sobre o modo como os em ação, para dar conta deste hiato. Seu objeti-
trabalhadores, mesmo quando sujeitos às mais vo, entretanto, à diferença do que Dejours enten-
diversas pressões patogênicas no trabalho, con- de ser o projeto da Ergonomia, não é desvendar
seguem evitar a descompensação, os transtor- a realidade do trabalho humano em suas dimen-
nos mentais graves, o adoecimento. sões físicas e cognitivas, mas a vivência subjetiva.
Como o próprio autor explica: Para tanto Dejours desenvolveu a estratégia
Simultaneamente, era a ‘normalidade’ que sur- de investigação denominada “Enquete”. É inte-
gia como enigma central da investigação e da aná- ressante assinalar que a respeito do método da
lise. Normalidade que ocorre, de saída, como equi- Psicodinâmica do Trabalho (PDT), apenas sete
líbrio instável, fundamentalmente precário, entre anos depois da publicação de seu primeiro livro
o sofrimento e as defesas contra o sofrimento […]. na França, em 1980, é que encontramos um tex-
Ao operar esta passagem da patologia à normali- to de Dejours sobre o tema. E assim tem sido
dade, sou levado a propor uma nova nomenclatu- desde então, é sempre a partir de cobranças da
ra para designar essas pesquisas: Psicodinâmica do comunidade científica, com quem dialoga e se
Trabalho35. confronta, que Dejours vem esclarecendo a pro-
Dejours35 salienta que o desenvolvimento de posição metodológica de sua corrente, mas sem-
seus estudos foi possível graças a um duplo diá- pre o fazendo à distância do gênero manual de
logo maior: com a Psicanálise e com a Ergono- método.
mia. A partir da diferença apontada pela Ergo- Não obstante, no Brasil, por parte de muitos
nomia da Atividade, entre trabalho prescrito e profissionais que se referem ao campo da PDT,
trabalho real, Dejours interessou-se pelos elemen- raramente encontramos o uso efetivo de sua
tos organizativos e subjetivos que colaboram para abordagem metodológica. Justo o contrário, es-
a luta pela saúde, propondo a definição de que “o pecialmente quanto ao uso de questionários. O
trabalho é a atividade coordenada desenvolvida que seria legítimo, desde que precedido por uma
por homens e mulheres para fazer face àquilo análise crítica da proposta do autor, argumen-
que, em uma tarefa socialmente considerada útil, tando pela dissociação operada entre a teoria e o
não pode ser obtido pela estrita execução da or- método da PDT.
ganização prescrita”36. Ao aproximar-se de sua proposição meto-
Em seu entendimento, do ponto de vista clíni- dológica verifica-se que ela tem como ponto de
co, trabalho é aquilo que o sujeito deve agregar de partida uma demanda. Antes de seguir adiante,
si mesmo às prescrições para poder atingir os vale registrar que encontra-se aqui um ponto
objetivos que lhe foram determinados37. Traba- nevrálgico de discordâncias no Brasil, pois para
lhar, portanto, é dar conta do hiato, da lacuna muitos, esperar que uma demanda chegue a ser
que emerge em situação concreta, na medida em formulada ao especialista, não permite enfrentar
que o prescrito, o patrimônio de conhecimento a gravidade dos problemas em curso na realida-
formalmente instituído não é suficiente, exigindo de brasileira.
um agir em competência capaz de detectar, inter- Por outro lado, pode-se assinalar aqui um
pretar e reagir. Ou seja, este processo exige a mo- ponto comum de interesse com a Ergonomia e,
bilização da inventividade e formas de inteligência principalmente, com a corrente da Análise Insti-
específicas, às quais Dejours denomina engenho- tucional38. Trata-se do primado do trabalho da
sidade, astúcia ou inteligência da prática, do cor- demanda. A demanda – quem a formula, qual
po. Toda atividade de trabalho inclui, portanto, seu conteúdo – passa por uma análise. A análise
uma forte mobilização subjetiva que, se por um da demanda é fundamental e integra a fase de-
lado é “espontânea”, por outro, não deixa de ser nominada por Dejours de Pré-enquete.
extremamente frágil, dependendo da dinâmica Nunca se vai só para este tipo de empreendi-
entre contribuição e retribuição, envolvendo o mento. Define-se uma equipe de intervenção, for-
julgamento de outrem. O trabalhador espera re- mada ad hoc por profissionais de pesquisa (um
conhecimento simbólico da sua contribuição, sem grupo interdisciplinar, contando com dois ou três
a qual tende a desmobilizar-se, com profundas pesquisadores, ao menos um com formação ex-
consequências para sua saúde mental. traPDT) que participará diretamente. A esta equi-

11 tatiana ok.pmd 3195 9/10/2013, 16:59


3196
Ramminger T et al.

pe se agrega outra, também profissional, de apoio consenso (o MOI entende que os resultados de-
externo (ou de fora), que confere um olhar par- vem passar por validação consensual, a fim de
ticular, pela sua exterioridade, à dinâmica em que reflitam a experiência coletiva).
curso. Uma terceira equipe de enquete incorpo- Finalmente, a validação e a refutação estão
ra, do interior da empresa/empreendimento, os relacionadas ao que emerge com caráter de co-
protagonistas daquele meio, voluntários para a mentário (entendendo-o como a forma de pen-
operação da enquete. Este coletivo de pilotagem sar dos trabalhadores sobre sua situação, atra-
interna é, com frequência, composto por traba- vés dos quais se tem contato com seus processos
lhadores que participam de dispositivos já exis- de subjetivação) e interpretações (justas ou não,
tentes no trabalho (no Brasil seriam, por exem- que fazem ou não avançar o debate). O cuidado
plo, membros da Comissão Interna de Preven- com que deve ser conduzido este debate, para
ção de Acidentes – CIPA). Dejours37 considera que não se cometa nenhuma violência simbólica,
tratar-se de um coletivo da maior importância, chama a atenção do quanto a subjetividade do
pois deve construir condições para prosseguir a pesquisador encontra-se engajada na técnica,
ação com autonomia, independente dos especia- aproximando-se do que se entende por “impli-
listas contratados. cação” na Análise Institucional39,40.
No momento inicial busca-se informações Outro ponto destacado refere-se à definição
sobre o processo de trabalho, suas transforma- do que constitui o material da enquete, conside-
ções, o que supõe acesso a documentos de diver- rado por Dejours a parte mais difícil. Ele é resul-
sos tipos, referentes à empresa/empreendimen- tado de uma exploração realizada no interior do
to. Em seguida, é preciso ter acesso ao meio de que foi antes discutido pelo coletivo. Para De-
trabalho, visitar a empresa/empreendimento jours35, poder falar com alguém é a forma mais
acompanhados por diferentes guias (gerentes, potente de pensar a experiência vivida subjetiva-
engenheiros e médicos, sindicalistas, trabalhado- mente e, no caso do grupo, um meio de elabora-
res de base). Enfim, trata-se de abordar a orga- ção coletiva das experiências e ainda um “opera-
nização (real) do trabalho, assim como conhe- dor de construção do próprio coletivo”.
cer a história de tensões e conflitos neste meio de
trabalho, chegando a compreender sua dinâmi- 4. O Modelo Operário Italiano de luta
ca. Pode-se registrar também aqui a existência de pela saúde (MOI) e o dispositivo
pontos em comum com a análise global da AET, Comunidade Científica Ampliada (CCA)
mas Dejours incide uma diferença, pois seu obje-
tivo não seria: Na Itália, nas décadas de 1960 e 1970, no con-
chegar a uma descrição objetiva da relação texto da emergência e afirmação do movimento
homem-trabalho [...] (mas) obter a base concreta sindical como principal protagonista na trans-
necessária para compreender do que falam os tra- formação social, com a contribuição significati-
balhadores que participam da pesquisa e ter uma va de Ivar Oddone e Alessandra Re, construiu-se
representação, em imagens, das condições ambi- uma proposta de análise-intervenção ancorada
entais do sofrimento34. em um modelo operário de conhecimento e em
O momento da Enquete propriamente dita outra psicologia do trabalho, centrados na valo-
desenvolve-se em um local identificado com o tra- rização da experiência dos trabalhadores.
balho, reunindo o coletivo de pesquisa em torno Comentando um livro de Oddone et al.41, ain-
das relações entre organização do trabalho e so- da não publicado no Brasil (“Experiência operá-
frimento psíquico, tendo já passado por uma re- ria, consciência de classe e psicologia do traba-
formulação da demanda inicial. Pede-se então aos lho”), Clot42 afirma que o que chamou atenção
trabalhadores que deem suas próprias explica- dos pesquisadores italianos foi o fato de que,
ções e interpretações dos fatos que levaram à de- paradoxalmente, os operários em geral referiam-
manda. A ênfase encontra-se na linguagem, nas se ao seu trabalho como algo que os estimulava
falas, nos comentários verbais sobre o conteúdo e desafiava. Assim, mais do que destacar a alie-
de sua demanda e não na objetividade dos fatos. nação, constrangimentos, impossibilidades ou
Destaca-se aqui um ponto em comum com o limitações dos trabalhadores, a equipe liderada
Movimento Operário Italiano – MOI: o crédito por Oddone preocupou-se em compreender as
na importância do caráter homogêneo do grupo perspectivas que os trabalhadores criavam para
de trabalho, “que compartilham as mesmas con- si, procurando subsidiar os coletivos de traba-
dições de trabalho e têm laços orgânicos entre lho em suas tentativas de manter e, sobretudo,
si”2, bem como em tudo aquilo que é objeto de alargar seu campo de ação.

11 tatiana ok.pmd 3196 9/10/2013, 16:59


3197

Ciência & Saúde Coletiva, 18(11):3191-3202, 2013


Eles consideraram duas vias para reduzir a ganização do trabalho, sendo que o conjunto de
nocividade do ambiente de trabalho: a modifica- julgamentos subjetivos e qualitativos dos traba-
ção do papel do especialista em saúde assalaria- lhadores é transformado em critério de avalia-
do da empresa e/ou novos critérios de definição ção quantitativa e científica. O conceito de não
dos índices de nocividade e de formas de partici- delegação exprime a recusa em deixar exclusiva-
pação operária. Se antes estes critérios tinham a mente na mão dos gerentes, especialistas, ou
pretensão de neutralidade científica, desenvolvi- mesmo representantes sindicais, o julgamento
dos por técnicos qualificados, mas “estrangeiros” sobre a nocividade das condições de trabalho do
ao trabalho, Oddone introduziu a percepção sub- grupo e a fixação dos padrões e limites de nocivi-
jetiva do trabalhador em relação aos riscos de dade. Isto não significa que o ponto de vista cien-
seu próprio trabalho, rompendo tanto com a tífico, dos saberes disciplinares, não merece im-
concepção marxista de alienação como com a portância. Ao contrário, ele é fundamental como
Psicologia do Trabalho subordinada ao taylo- saber a ser partilhado com os trabalhadores para
rismo. Com a primeira por esta entender que a que eles possam guiar suas ações na defesa e pro-
conscientização do trabalhador vem de fora; com dução de (mais) saúde no trabalho44.
a segunda por negar que os trabalhadores te- O objetivo metodológico fundamental desta
nham quaisquer capacidades de aprendizagem. proposta é introduzir a percepção subjetiva do
Como nos coloca Vicenti43: trabalhador como critério de avaliação da nocivi-
Para I. Oddone trata-se de travar um duplo dade, sem delegar estes critérios exclusivamente a
combate, ideológico, no campo da política, e disci- especialistas45. No livro em que apresenta esta
plinar, no campo científico, pois ele desejava reno- proposta metodológica, amplamente difundido
var a psicologia do trabalho no sentido de uma no Brasil em um dado momento histórico, Oddo-
psicologia concreta, fundada sobre a noção de ex- ne et al.44 propõem, com os materiais da pesqui-
periência. sa, a elaboração de mapas de risco, o que daria
Para fazer do conceito de experiência um ins- base para a construção de uma pauta de reivindi-
trumento-chave, Oddone seguiu uma aborda- cações concreta e sistematicamente sustentada.
gem teórica e outra experimental. Do lado teóri- Classificam os fatores de nocividade em qua-
co privilegiou os estudos da Psicologia histórico- tro grupos de risco. O Grupo 1 integra os riscos
cultural dita soviética (Bassine e Leontiev) na- físicos, que estão presentes onde o homem vive,
quele período disponível, concomitante à cons- seja sua casa ou trabalho (luz, ruído, temperatu-
trução com os trabalhadores de um método que ra). O Grupo 2 engloba os riscos químicos, pre-
lhes permitissem a tomada de consciência de suas sentes apenas na fábrica (poeira, gás, vapores).
experiências, visando uma maior autonomia no Já o Grupo 3 está relacionado à fadiga, aos esfor-
trabalho43. ços muscular e físico, enquanto o Grupo 4 diz
O método desenvolvido por Oddone et al.44, respeito aos fatores estressantes ou psicossoci-
conhecido por “modelo operário de conhecimen- ais, associados ao trabalho. Considerando estes
to”, ou método de produção de conhecimento quatro grupos, a pesquisa protagonizada pelos
para a ação dos trabalhadores em uma socieda- trabalhadores, passa por três etapas: observa-
de capitalista, tem como base quatro pressupos- ção espontânea do ambiente de trabalho; quan-
tos, na forma de conceitos: o grupo homogêneo, tificação dos riscos (mapa de risco); e pauta de
a experiência (ou subjetividade) do trabalhador, reivindicações.
a validação consensual e a não delegação. Para Oddone, estava claro que os trabalha-
O grupo tem um caráter homogêneo na me- dores desenvolvem um saber a partir da experi-
dida em que vive submetido à mesma nocivida- ência de trabalho sem, muitas vezes, sequer per-
de, acumulando um saber epidemiológico leigo ceber, valorizar, potencializar ou conseguir trans-
sobre seu ambiente de trabalho. Assim, o ponto mitir esta experiência. Assim, procurou desen-
de partida é a observação espontânea operada volver métodos que pudessem auxiliar tanto na
pelos trabalhadores sobre as relações entre as formalização, como na transmissão da chama-
condições e as formas de organização do traba- da experiência operária. É neste sentido que in-
lho e a saúde coletiva, o que se patrimonializa na troduz a ideia de uma “comunidade científica
forma de uma experiência, contudo não estrutu- ampliada”, onde o objetivo é colocar em diálogo
rada, para o que a pesquisa poderia contribuir. A os saberes da experiência dos trabalhadores e os
validação consensual é o julgamento coletivo pelo saberes científicos.
qual o grupo valida a experiência de cada traba- Outra contribuição importante do grupo de
lhador em relação às condições e formas de or- Oddone, diz respeito aos métodos indiretos de

11 tatiana ok.pmd 3197 9/10/2013, 16:59


3198
Ramminger T et al.

investigação. Impedidos de entrar na fábrica, em e P. Freire, é que na Universidade de Aix-en-Pro-


uma intervenção conduzida nos anos 1970, jun- vence – com a liderança de Y. Schwartz, D. Faïta e
to aos trabalhadores da Fiat, os pesquisadores B. Vuillon, na companhia de J. Duraffourg e um
inovaram, criando o dispositivo de “instrução grupo de trabalhadores industriais da região –
ao sósia”. Como nos explica Clot46: foi sendo engendrado, desde o final dos anos
[...] o exercício de ‘instrução ao sósia’ implica 197049, aquilo que, posteriormente, configurou-
um trabalho de grupo no curso do qual um sujeito se como o paradigma ergológico50.
voluntário recebe a seguinte tarefa: ‘Suponha que Especialmente, o dispositivo por Oddone de-
eu seja seu sósia e que amanhã eu deva substituir signado Comunidade Científica Ampliada (CCA)
você em seu trabalho. Que instruções você deveria foi inspirador dos primeiros desenvolvimentos.
me transmitir para que ninguém perceba a substi- Não obstante a percepção de sua enorme rele-
tuição? vância, a análise por que passou com Schwartz51
A função do sósia, nesta técnica, é o de “resis- levou a identificar limitações na proposta e no
tir à atividade”, ou seja, colocar-se enquanto lei- termo CCA, conduzindo-os a construírem ou-
go, questionando e colocando em foco o “como tra proposta. Primeiro, o campo dos atores, aler-
fazer”, para além das prescrições. Com isso, o tando que “os parceiros não são mais somente
trabalhador é convidado a pensar sobre aquilo militantes operários como no início, são tam-
que é executado de maneira automática e habi- bém desempregados, agentes de serviços, funci-
tual, que parece simples, mas que ao ser detalha- onários especializados, consultores e profissio-
do, permite vislumbrar o quanto de inédito, cri- nais de diversos ramos”50. Assim, amplia-se a
ativo e específico há em cada atividade de traba- ideia de “trabalho operário” para a concepção
lho. Além disso, ao tentar colocar em palavras mais geral de trabalho, atividade humana dentre
sua experiência, o trabalhador pode se dar conta outras. Segundo, apontando a contradição con-
de saberes insuspeitados, alargando seu poder ceitual presente na denominação comunidade ci-
de ação sobre o trabalho42. entífica ampliada que, ao querer incluir os traba-
Cabe ressaltar a forte influência deste mode- lhadores na produção de saberes sobre o traba-
lo na constituição do campo da Saúde do Traba- lho, permaneceu vinculando o conhecimento à
lhador na América Latina e no Brasil, sobretudo ciência (inclusive em sua insígnia). Schwartz en-
em relação ao “mapa de risco”, que alcançou ta- tende que encontra-se aí presente uma ideia fra-
manha popularidade no meio acadêmico e sin- ca de ciência, como se fosse o caso de ampliar
dical que hoje está incluído na legislação regula- seus produtores, como se os trabalhadores, como
mentadora da saúde no trabalho (NR). Já no iguais, pudessem fazer parte de uma comunida-
Brasil, a outra contribuição – o dispositivo Co- de cientifica. Enfim, se para Oddone, quem po-
munidade Científica Ampliada (CCA), especial- dia fazer a “costura” entre os saberes científicos e
mente a técnica de “instrução ao sósia” – que se os saberes da experiência, seria a “consciência de
mantém até hoje operante na França, com de- classe”, representada pelo sindicato, para
senvolvimentos (como a autoconfrontação cru- Schwartz, não necessariamente. O que importa-
zada, formulada por Faïta e Clot) só tem tido va era a descoberta que haviam feito de uma tri-
algum destaque posteriormente, quando a car- polaridade.
tografia de risco já perdera a memória da contri- A partir destas considerações, Schwartz50 pro-
buição italiana47. põe o Dispositivo Dinâmico de Três Polos
(DD3P), como uma perspectiva epistemológica,
5. O paradigma ergológico, com o com implicações metodológicas, não se caracte-
Dispositivo Dinâmico de Três Polos rizando estritamente como método de pesqui-
(DD3P) e uma de suas configurações sa33. O DD3P pode ser referido como um espaço
no Brasil: a “Comunidade Ampliada de encontros, que coloca (ou dispara) um movi-
de Pesquisa” (CAP) mento, sempre dinâmico (posto que não é está-
tico ou estável, tampouco visa ao equilíbrio), entre
No sudeste da França, até hoje se desenvolve os saberes disciplinares das ciências (polo 1) e os
uma importante experiência na região de Bou- que se sustentam e desenvolvem na experiência
ches du Rhône, na tradição mutualista do campo (polo 2), costurados por um terceiro, fundamen-
da saúde, sob direção de M. Andéol e G. Igonet48, tal, o das exigências éticas e epistemológicas –
com a permanente supervisão de Oddone, até seu que exige e permite exercitar uma certa humilda-
falecimento em 2011. Exatamente nesta linhagem de epistemológica necessária, tanto por parte dos
que vai de G. Canguilhem a A. Wisner, I. Oddone pesquisadores, como dos trabalhadores, para

11 tatiana ok.pmd 3198 9/10/2013, 16:59


3199

Ciência & Saúde Coletiva, 18(11):3191-3202, 2013


aprender uns com os outros. Uma aprendiza- veis. Assim, a primeira exigência é a humildade
gem que se faz também na forma de uma epistemológica diante da complexidade que en-
(in)prendizagem50. volve os mundos do trabalho e das atividades
Apresentando didaticamente estes três polos, que os constituem e desenvolvem. Em seguida, é
poderíamos assim defini-los: necessário rigor para poder dar corpo (e voz) às
. Polo dos saberes organizados e disponíveis: experiências de trabalho. Isto porque a finalida-
é o dos saberes disciplinares das ciências que aju- de deste diálogo não é apenas constatar a com-
dam a compreender  transformar o trabalho. plexidade e a singularidade que cada um vivencia
Ciências Econômicas e Políticas, Humanas e da em sua situação de trabalho, mas também reali-
Linguagem, Jurídicas e Sociais, Ciências da Saúde zar um esforço de verbalização e possível genera-
e das Engenharias, Filosofia, todas podendo ser lização da experiência. As exigências éticas e epis-
mobilizadas e mobilizar-se, contribuindo com temológicas, imprescindíveis para este diálogo,
conceitos e métodos para a análise do trabalho, portanto, dizem respeito à humildade, diante da
do ponto de vista da atividade. complexidade das experiências; e ao rigor, diante
. Polo dos saberes investidos na atividade: são da exigência de verbalizar o trabalho52.
os que se (re)produzem na e a partir da experiên- Considerando este debate e as contribuições
cia direta cotidiana, alimentando-se muito com já apresentadas, em especial a proposição de
o que é gerado na atividade. Aí se encontram as Oddone atravessada pelas considerações críticas
forças de convocação dos saberes disciplinares de Schwartz, somadas ao patrimônio da Educa-
para o diálogo, assim como as forças de valida- ção Popular referida em Paulo Freire, pesquisa-
ção. É neste diálogo sinérgico que os saberes dis- dores brasileiros45 no final dos anos 1990 suge-
ciplinares são colocados à prova em outro labo- rem um dispositivo denominado de Comunida-
ratório, mediante a confrontação metódica com de Ampliada de Pesquisa – CAP (aqui o campo
as situações concretas em que se dão as ativida- ampliado é o da pesquisa e não o científico), pen-
des, podendo ou não ser validados e, quiçá, de- sada enquanto uma rede de encontros de sabe-
senvolvidos. res, reunindo pesquisadores e trabalhadores,
. Polo das exigências éticas e epistemológicas: onde circula uma comunidade dialógica53, em
é a abertura e a disponibilidade, tanto ética como uma coanálise sobre os processos de trabalho,
epistemológica, de cada participante do proces- subjetivação e saúde.
so, para realizar esta troca.
O DD3P colabora para permitir o vaivém
entre o conhecimento e a experiência, entre a ge- Concluindo
neralização e a singularização. Parte-se da expe-
riência singular dos protagonistas do trabalho Para Dejours54, o termo clínica designa “uma dé-
em foco “para, ao longo do tempo, extrair os marche que parte do campo, se desdobra no cam-
saberes gerais formalizados nas disciplinas”, em po e retorna constantemente ao campo”. Já de
um entendimento de que “todo conhecimento acordo com Clot e Leplat55, as características es-
tem vocação para ser generalizado”52. Ao mes- senciais do método clínico envolvem considerar
mo tempo, um modelo só é válido quando en- seu objeto de estudo em sua globalidade, exami-
carnado, aplicado no aqui e agora, de acordo ná-lo em profundidade e em toda sua complexi-
com a especificidade de cada situação de traba- dade, conferindo uma importância particular ao
lho. A experiência ou atividade de trabalho, as- papel do(s) sujeito(s).
sim, singulariza e atualiza o modelo, conforme Representa uma forma de produção de co-
nos aponta Durrive52: nhecimento pertinente ao caráter enigmático do
Falamos de dispositivo dinâmico de três polos, trabalho contribuindo, portanto, com análise das
quando um movimento é articulado, é uma espi- diferentes formas de mobilização dos trabalha-
ral que leva de uma experiência com um nível de dores. Um recurso metodológico utilizado am-
antecipação cada vez melhor a um conhecimento plamente, como mostramos aqui, é a constitui-
cada vez mais ligado à realidade. ção de grupos ou comunidades de pesquisa-in-
No entanto, o risco presente quando nos pro- tervenção, como estratégia de coanálise e de diá-
pomos a este tipo de diálogo sinérgico é cair em logo sinérgico entre saberes.
um confronto do tipo teoria X prática, em uma A dinâmica da confrontação (não se trata aqui
tendência de que os saberes da experiência sejam de comparação ou oposição, conforme enfatizam
“engolidos” pelos acadêmico-científicos consti- Faïta e Maggi56) já faz parte da tradição da AET,
tuídos, mais valorizados, autorizados e disponí- presente também no MOI e desenvolvendo-se com

11 tatiana ok.pmd 3199 9/10/2013, 16:59


3200
Ramminger T et al.

Clot e Faïta na abordagem da Clínica da Ativida-


de (com a autoconfrontação cruzada, o que de-
verá ser apresentada em outro artigo). Trata-se
de um conjunto de técnicas que contribuem, in-
clusive, para a operacionalidade de métodos indi-
retos. Propostas coerentes com o que a perspecti-
va ergológica vem procurando dar maior visibili-
dade e desenvolver, permitindo chegar a algo que
as entrevistas em geral não acessam.
Sinalizamos, por fim, que as metodologias
aqui analisadas apresentam também o interesse
de buscar o desenvolvimento dos possíveis indi-
viduais e coletivos. É nesse sentido que observar
a atividade do outro para compreendê-la impli-
ca em transformá-la, incitando o(s) próprio(s)
sujeito(s) a uma atividade interior específica.

Colaboradores

T Ramminger, M Athayde e J Brito participaram


igualmente da concepção e redação do artigo.

11 tatiana ok.pmd 3200 9/10/2013, 16:59


3201

Ciência & Saúde Coletiva, 18(11):3191-3202, 2013


Referências

1. Minayo-Gomes C, Machado J, Pena P, organiza- 21. Montmollin M. Ergonomias. In: Castillo JJ, Villena
dores. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira J, organizadores. Ergonomia: conceitos e métodos.
contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2011. Lisboa: Dinalivros; 2005.
2. Laurell AC, Noriega M. Processo de produção e saú- 22. Wisner A. A inteligência no trabalho. São Paulo:
de: trabalho e desgaste operário. São Paulo: Huci- Fundacentro; 1994.
tec; 1989. 23. Guérin F. L’activité de travail. In: Kergoat J, Boutet
3. Athayde M. Saúde ‘Mental’ e Trabalho: questões J, Jacot H, Linhart D, organizadores. Le Monde du
para discussão no campo da saúde do trabalhador. Travail. Paris: La Decouverte; 1998. p. 173-179.
In: Minayo-Gomes C, Machado J, Pena P, organi- 24. Brito J. Trabalho e Saúde Coletiva: o ponto de vista
zadores. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira da atividade e das relações de gênero. Cien Saude
contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz; 2011. Colet 2005; 10(4):879-890.
p. 345-368. 25. Botechia FR. O desafio de compreender-desenvolver
4. Canguilhem G. O normal e o patológico. Rio de um regime de produção de saberes sobre o trabalho e
Janeiro: Forense; 2011. suas relações: a “Comunidade Ampliada de Pesqui-
5. Bakhtin M. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio sa” [dissertação]. Rio de Janeiro: UERJ; 2006.
de Janeiro: Forense Universitária; 1997. 26. Daniellou F. Questions épistémologiques autour de
6. Bakhtin M. Marxismo e Filosofia da linguagem. São l’ergonomie. In: Daniellou F, organizador. L’ergo-
Paulo: Hucitec;1986. nomie en quête de ses principes. Débats épistémologi-
7. Sato L, Souza MPR. Contribuindo para desvelar a ques. Toulouse: Octares Editions; 1996. p. 1-17.
complexidade do cotidiano através da pesquisa et- 27. Daniellou F. Le statut de la pratique et des connais-
nográfica em psicologia. Psicol. USP 2001; 12(2):29- sances dans l’intervention ergonomique de concepti-
47. on. Document de synthèse pour l’habilitation à di-
8. Bosi MLM. Pesquisa qualitativa em saúde coletiva: riger des recherches. Toulouse: Université de Tou-
panorama e desafios. Cien Saude Colet 2012; 17(3): louse; 1992.
75-586. 28. Hubault F. Do que a Ergonomia pode fazer a aná-
9. Assunção AB, Brito J, organizadores. Trabalhar na lise? In: Daniellou F, organizador. A ergonomia em
saúde: experiências cotidianas e desafios para a gestão busca de seus princípios. São Paulo: Blucher; 2004.
do trabalho e do emprego. Rio de Janeiro: Ed. Fio- p. 105-140.
cruz; 2011. 29. Le Guillant L. Le drame humain du travail: Essais de
10. Glina D, Rocha LE, organizadores. Saúde Mental psychopatologie du travail. Paris: Érès; 2006.
no Trabalho: da teoria à prática. São Paulo: Roca; 30. Le Guillant L. Quelle psychiatrie por notre temps?
2010. Travaux et écrits de Louis Le Guillant. Paris: Érès;
11. Bendassoli P, Soboll L, organizadores. Clínicas do 1984.
Trabalho. São Paulo: Atlas; 2010. 31. Billiard. Santé Mentale et travail. Paris: La Dispute;
12. Marx K. O questionário de 1880. In: Thiollent M, 2001.
organizador. Crítica metodológica, investigação so- 32. Zambroni-de-Souza P, Athayde M. A Contribuição
cial e enquete operária. São Paulo: Polis; 1982. p. da abordagem clínica de Louis Le Guillant para o
249-256. desenvolvimento da psicologia do trabalho. Estud.
13. Bidet P, Pillon TH, Vatin F. Sociologie du Travail. Pesqui. Psicol. 2006; 6(1):6-19.
Paris: Montchrestien; 2000. 33. Athayde M, Muniz H, França M, Figueiredo M. A
14. Engels F. A Situação da Classe Trabalhadora na In- perspectiva da Ergologia e o campo da Saúde Men-
glaterra. São Paulo: Global; 1985. tal e Trabalho. In: Glina D, Rocha LE, organizado-
15. Ferreira LL. À propos de l’enquête ouvrière de Karl res. Saúde Mental no Trabalho: da teoria à prática.
Marx (1880). Martin Média/Travailler [periódico São Paulo: Roca; 2010. p. 229-47.
na Internet]. 2004 [acessado 2013 06 set];2(12):11- 34. Dejours C. Note de travail sur la notion de sou-
14. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-tra- ffrance. In: Dejours C, organizador. Plaisir et Sou-
vailler-2004-2-page-15.htm ffrance dans le travail. Paris: AOCIP, CNRS; 1987. p.
16. Freire P, Faundez A. Por uma Pedagogia da Pergun- 115-124.
ta. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 1985. 35. Dejours C. Addendum. In: Lancman S, Sznelwar
17. Boal A. Teatro do oprimido e outras poéticas políticas. LI, organizadores. Christophe Dejours: da psicopa-
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2005. tologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro:
18. Thiollent M, organizador. Crítica metodológica, in- Fiocruz; 2004. p. 47-104.
vestigação social e enquete operária. São Paulo: Polis; 36. Dejours C. Le facteur humain. Paris: PUF; 1995.
1982. 37. Dejours C. Travail vivant 2: Travail et émancipati-
19. Teiger C. O trabalho, esse obscuro objeto da Ergo- on. Paris: Payot; 2009.
nomia. In: Castillo JJ, Villena J, organizadores. 38. Baremblitt G. Compêndio de Análise Institucional e
Ergonomia: conceitos e métodos. Lisboa: Dinali- outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro:
vros; 2005. Rosa dos Tempos; 1992.
20. Leplat J, Hoc JM. Tarefa e atividade na análise psi- 39. Rocha D, Deusdará B. Contribuições da Análise
cológica de situações de trabalho. In: Castillo JJ, Institucional para uma abordagem das práticas lin-
Villena J, organizadores. Ergonomia: conceitos e guageiras: a noção de implicação na pesquisa de
métodos. Lisboa: Dinalivros; 2005. campo. Cad Letr UFF 2010; 40:47-73.

11 tatiana ok.pmd 3201 9/10/2013, 16:59


3202
Ramminger T et al.

40. Ferrato D. L’analyse de l’implication – vers de nou-


veaux modes de recherche en sciences sociales. Paris:
Harmattan; 1994.
41. Oddone I, Re A, Briante G. Redécouvrir l‘expérience
ouvrière: vers une autre psychologie du travail? Pa-
ris: Eds. Sociales; 1981.
42. Clot Y. Ivar Oddone: os instrumentos de Ação. Les
Territoires du Travail: les continents de l’experience
1999; (3). (Tradução de Milton Athayde e Cláudia
Osório).
43. Vicenti A. Ivar Oddone, intelectual orgânico e pes-
quisador heterodoxo. Les Territoires du Travail: les
continents de l’experience 1999; (3).
44. Oddone I, Marri G, Glória S. Ambiente de Trabalho:
A luta dos trabalhadores pela saúde. São Paulo:
Hucitec; 1986.
45. Brito J, Athayde M, Neves MY. Programa de Forma-
ção em Saúde, Gênero e Trabalho nas Escolas: Cader-
nos de Método e Procedimentos. João Pessoa: Edi-
tora UFPb; 2003.
46. Clot Y. A função psicológica do trabalho. Petrópolis:
Vozes; 2006.
47. Brito J. Saúde do trabalhador: reflexões a partir da
abordagem ergológica. In: Brito J, Figueiredo M,
Athayde M, organizadores. Labirintos do trabalho:
interrogações e olhares sobre o trabalho vivo. Rio
de Janeiro: DP&A; 2004. p. 91-114.
48. Loriol M. Une expérience française: La Mutualité
desBouches-du-Rhône. In: Oddone I, Re A, Brianti
G, organizadores. Redécouvrir l’expérience ouvrière:
vers une autre psychologie du travail? Paris: Eds. So-
ciales; 1981.
49. Schwartz Y, Faita D, organizadores. L’Homme pro-
ducteur. Paris: Eds. Sociales; 1985.
50. Schwartz Y. A comunidade científica ampliada e o
regime de produção de saberes. Rev Trab Educ 2000;
7:39-46.
51. Schwartz Y. Expérience et connaissance du travail.
Paris: Messidor, La Dispute; 1988.
52. Durrive L. Pistas para o ergoformador animar os
Encontros sobre o Trabalho. In: Schwartz Y, Durri-
ve L, organizadores. Trabalho e Ergologia: conver-
sas sobre o trabalho humano. Niterói: EdUFF; 2010.
p. 309-318.
53. França MB. Uma comunidade dialógica de pesquisa:
atividade e discurso em guichê hospitalar. São Pau-
lo: FAPESP, EDUC; 2007.
54. Dejours C. Psychologie clinique du travail et tradi-
tion compréhensive. In: Clot Y, organizador. Les
histoires de la psychologie du travail. Toulouse: Oc-
tarès; 1996. p.157-183.
55. Clot Y, Leplat J. La méthode clinique en ergonomie
et en psychologie du travail. Le travail humain 2004;
68:289-316.
56. Faita D, Maggi B. Un débat em analyse du travail.
Tolouse: Octarès; 2007.

Artigo apresentado em 15/01/2012


Aprovado em 20/02/2012
Versão final apresentada em 15/03/2012

11 tatiana ok.pmd 3202 9/10/2013, 16:59

Potrebbero piacerti anche