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FABIANO COELHO*1
A história faz-se com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem. Mas
pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem. Com
tudo o que a habilidade do historiador lhe permite utilizar para fabricar o seu mel,
na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e telhas. Com
as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a atrelagem dos
cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e com as análises
de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que, pertencendo ao
homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem, demonstra a
presença, a atividade, os gostos e as maneiras de ser do homem (LE GOFF, 1996, p.
540 apud FEBVRE, 1949, Ed. 1953, p. 428 – grifo nosso).
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Em relação à organização e historicidade do Jornal Sem Terra, ver os trabalhos de Mestrado e Doutorado de
Fernando de Perli (2002; 2007) e a Tese de Doutorado de Antonio Alves Bezerra (2011).
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O MST foi criado “oficialmente” em janeiro de 1984, no transcorrer de um encontro de trabalhadores rurais em
Curitiba/PR. Contudo, a literatura sobre o Movimento indica que sua organização estava sendo gestada em fins
da década de 1970, com a articulação de lideranças de trabalhadores rurais sem-terra de diversos estados do país.
O Movimento desenvolveu uma organização dinâmica, com práticas peculiares e fomentou instrumentos
políticos para auxiliar em suas lutas. Um dos instrumentos políticos do MST é o Jornal Sem Terra. Sobre a
historicidade do MST, ver: sugere-se a leitura dos seguintes autores: Bernardo Mançano Fernandes (2000);
Miguel Carter (2010); Claudinei Coletti (2005), Debora Franco Lerrer (2008).
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sentido. No seu entender, “a ironia se refere a uma figura de pensamento que nos leva a
sugerir, numa palavra, numa expressão ou numa frase, algo diferente do que elas literalmente
designam” (LOPES, 2008, p. 59). No entender de Brito, a charge é a representação máxima
da ilustração satírica, em que o chargista trabalha com a dualidade do “sério” e do “ridículo”.
Isto é, as representações contidas nas charges têm as dimensões da crítica e do humor que, por
vezes, ridicularizam aquilo que está sendo representado (BRITO, 2006, p. 29). As charges
podem ser produzidas a partir de diversos fatores: sociais, políticos, econômicos ou culturais.
Abaixo, uma charge publicada no Jornal Sem Terra que expressa características
enfatizadas por Miani, Melo, Romualdo, Brito e Lopes:
Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000, ano XVIII, n. 202, p. 2.
Essa charge, cujo autor é Luscar, foi publicada no editorial da edição de julho de 2000,
no segundo mandato do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso (FHC). O
MST, durante os dois mandatos do presidente FHC foi um opositor ferrenho às ações do
Governo e do presidente4.5A charge faz menção a um dos maiores escândalos de desvio de
verbas do país, protagonizado pelo juiz Nicolau dos Santos Neto, o “Lalau”, do Tribunal
Regional do Trabalho (TRT) de São Paulo. Nesse escândalo, o referido juiz foi condenado a
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Ver: COELHO, Fabiano. Entre o Bem e o Mal: representações do MST sobre os presidentes FHC e Lula
(1995-2010). 2014. 440f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Ciências Humanas. Universidade Federal
da Grande Dourados, Dourados.
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prisão por desviar R$ 169,5 milhões de uma obra de construção do prédio do TRT de São
Paulo. Nessa direção, também faz referência a Eduardo Jorge Caldas Pereira, o “Dudu”, que
exerceu a função de coordenador operacional da campanha da reeleição de FHC. Dudu
também foi acusado de ter participação nesse esquema de corrupção.
A intencionalidade com a charge é evidente: expor o então presidente FHC e associá-
lo ao escândalo de corrupção, haja vista que, na época, o coordenador de sua campanha de
reeleição estava envolto ao escândalo. A suposição do MST, através do editorial do Jornal
Sem Terra era que, parte do dinheiro desviado por Lalau e Dudu, tinha sido utilizada na
campanha de reeleição de FHC5.6 É possível visualizar na charge, a partir da imagem de FHC,
o humor, a ironia, o exagero, a ridicularização do presidente como se fosse um mentiroso
(nariz enorme, rememorando a figura do personagem Pinóquio) e um discurso imagético de
efeito contrário: FHC diz uma coisa, mas a charge quer dizer outra coisa.
A produção chargística no Jornal Sem Terra possibilita compreender que elas não
foram inseridas no periódico apenas como forma de distrair os leitores. Elas visam
precipuamente a alertar, denunciar, levar à reflexão. Não obstante, também se caracterizam,
seguindo concepção de Miani, como “instrumento de persuasão”, “intervindo no processo de
definições políticas e ideológicas do receptor, através da sedução pelo humor, e criando um
sentimento de adesão que pode culminar com um processo de mobilização” (MIANI, 2001, p.
4). Nas charges, o elemento cômico é revestido de crítica analítica; carrega em si o humor,
mas tem intenso conteúdo discursivo crítico sobre aquilo que quer retratar.
Outro aspecto a acrescentar é que sua forma de expressão é eminentemente
“dissertativa”. As charges buscam expor ideias, narrar fatos, acontecimento, de acordo com o
autor e/ou grupo a que está vinculada. É possível dizer que a charge se configura como um
texto iconográfico, com objetividade, sentidos e intencionalidades perante os seus receptores.
Sua construção implica, entre outros objetivos, comunicar, levar à reflexão, construir
representações para os receptores. Por essa perspectiva, as charges não podem ser
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Cresce a insatisfação popular contra o governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000, ano XVIII, n. 202,
p. 2.
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Imagem 3: Agronegócio
Fonte: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII, n. 241, p. 2.
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Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano
XXII, n. 241, p. 2.
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Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano
XXII, n. 241, p. 2.
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trabalhos de história há críticas à utilização de imagens apenas como ilustração, uma vez que
as fontes imagéticas não estão isoladas do contexto sócio-político e cultural em que foram
produzidas, pensadas e investidas de sentidos.
Compreende-se a charge como construtora de representações, caracterizando-se como
elemento iconográfico e iconológico, revestida de linguagem verbal e não verbal. Para tanto, a
charge, assim como o texto escrito, caracteriza-se como uma prática discursiva carregada de
significação política e ideológica. Muito mais que um recurso humorístico e lúdico, a charge
intenta personificar e persuadir. Como fontes históricas, as charges devem ser tratadas a partir
de seu contexto histórico e das condições em que foram pensadas e construídas.
É necessário observar nas charges os personagens, as cenas, os elementos surpresas, a
dramaticidade, a harmonia, enfim, todos os detalhes de sua composição. Os detalhes nas
charges são pistas para a interpretação dos sentidos que são sugeridos pela ilustração. Ao se
mencionar a importância dos detalhes nas imagens recorre-se às reflexões de Carlo Ginzburg,
que escreve sobre a emergência de um modelo epistemológico que cresceu silenciosamente
nas Ciências Humanas e se consolidou no final do século XIX. Trata-se do “paradigma
indiciário”, ou “método indiciário”, do italiano Giovani Morelli. Este método é interessante
para a pesquisa histórica, pois faz pensar nos pormenores, elementos geralmente
negligenciados ao primeiro olhar. Coisas “insignificantes”, detalhes, vestígios, muitas vezes
são imprescindíveis para melhor entendimento das fontes. De acordo com Ginzburg “se a
realidade é opaca, existem zonas privilegiadas – sinas, indícios – que permitem decifrá-la”
(GINZBURG, 1989, p. 177).
Ler charges é uma atividade desafiadora. Ao observar uma charge é possível ser
surpreendido por detalhes reveladores. O pesquisador necessita de um olhar atento, em todos
os detalhes que levaram à sua construção. O intuito de ver e ler uma charge é compreendê-la.
As charges, como fontes históricas, podem se tornar significativas para compreender os
grupos e como estes representam suas experiências históricas.
Fontes
Imagem 1: Cresce a insatisfação popular contra o governo. In:
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Imagem 2: Agricultura Familiar. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII,
n. 241, p. 2.
Imagem 3: Agronegócio. In: Jornal Sem Terra. São Paulo, junho de 2004, ano XXII, n. 241,
p. 2.
Cresce a insatisfação popular contra o governo. Jornal Sem Terra. São Paulo, julho de 2000,
ano XVIII, n. 202, p. 2.
Por uma agricultura saudável, sustentável e camponesa. Jornal Sem Terra. São Paulo, junho
de 2004, ano XXII, n. 241, p. 2.
Referências Bibliográficas
BEZERRA, Antonio Alves. O Jornal dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e seus
Temas: 1981-2001. 2011. 312 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, São Paulo.
BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. 9ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006.
COELHO, Fabiano. Entre o Bem e o Mal: representações do MST sobre os presidentes FHC
e Lula (1995-2010). 2014. 440f. Tese (Doutorado em História). Faculdade de Ciências
Humanas. Universidade Federal da Grande Dourados, Dourados.
HOBSBAWM, Eric. Sobre História. São Paulo: Companhias das Letras, 1998.
LE GOFF, Jacques. A História Nova. 4ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1988.
LOPES, Luís Fernando. Charge Jornalística: estudo do discurso chargístico da Folha de São
Paulo veiculado no período da crise deflagrada pelo Primeiro Comando da Capital (PCC).
2008. 98 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Semiótica). Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo – PUC, São Paulo.
MIANI, Rozinaldo Antonio. Charge: uma prática discursiva e ideológica. In: XXIV
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Anais do Intercom 2001. Campo
Grande/MS: Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2001. p. 1-
11.
PESAVENTO, Sandra J. História & História Cultural. 2ª ed. Belo Horizonte: Autêntica,
2004.