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REVISTA IHU ON-LINE

Giorgio
Nº 505 | Ano XVII | 22/5/2017

Agamben
E a impossibilidade
de salvação da
modernidade e da
política moderna
1

Entrevistados
Patrick Baur
Ingeborg Villinger
Sandro Chignola
Rodrigo Karmy
Adam Kotsko
Colby Dickinson
Andrea Cavalletti Leia também
Fabián Ludueña Lilia Schwarcz ■
Bernd Ternes Roberto Dias da Silva ■
Manuel Ignacio Moyano Diego Pautasso ■
EDIÇÃO 505
EDITORIAL

Giorgio Agamben e a impossibilidade


de salvação da modernidade
e da política moderna

A
imagem que ilustra a capa da revista inoperatividade, para Agamben, significa lançar
IHU On-Line desta semana, a pintu- um olhar renovado sobre como a suspensão do
ra de Charles Le Brum chamada A nomos ou da lei é, na verdade, o que está no co-
apoteose de Luís XIV (1677), sintetiza uma ração de toda a lei”.
ideia central na obra de Giorgio Agamben: a
“Quando proteção e terror se sobrepõem per-
modernidade nunca foi secular, mas profana. A
feitamente, o que desaparece é a própria possi-
paradoxal imagem que enaltece a força do Esta-
bilidade de estabelecer um limite”, diz Andrea
do expresso na figura messiânica do rei mostra
Cavalletti, da Universidade IUAV. Fabián
também o lado obscuro do poder, que pela força
Ludueña, doutor em História da Civilização,
cria suas zonas de exclusão e exceção. Agam-
pontua que “o filósofo italiano adicionou seu
ben está “convencido da impossibilidade de
próprio diagnóstico e novos insights acerca das
salvação da modernidade – e, por conseguinte,
maneiras como a ciência política ainda fala de
também da política moderna”, explica Patrick
acordo com um vocabulário que herdou da te-
Baur, da Albert-Ludwigs-Universität. ologia”. Bernd Ternes, filósofo e politólogo,
Diante da falência da promessa moderna de afirma que é equivocado analisar o conceito
avanço civilizatório, o filósofo italiano assenta seu agambeniano sob prisma político. E para Ma-
pensamento que inspira o VI Colóquio Interna- nuel Ignacio Moyano, “nada está a salvo,
2 cional IHU – Política, economia, teologia. nem mesmo o Estado de Direito chamado de
Contribuições da obra de Giorgio Agamben, ‘democracia liberal’”.
evento organizado pelo Instituto Humantias
Podem ser lidos também os artigos de Castor
Unisinos – IHU, que ocorre nos dias 23 e 24 de
Bartolomé Ruiz, Implicações políticas da te-
maio na Unisinos, campus São Leopoldo.
ologia no pensamento de Giorgio Agamben, e
Contribuem para o debate Ingeborg Villin- de Márcia Junges, Um poder que se alimenta
ger, da Universidade de Freiburg, que sustenta de glória.
que o trabalho de Agamben “levanta o véu da
Completam a edição as entrevistas com a his-
indistinguibilidade entre poder e direito e per-
toriadora Lilia Schwarcz, Antonio Candido e
mite que não só o olhar histórico, mas também o
sua lufada de ar na forma de ver o Brasil, e
nosso tempo presente cheguem ao conhecimen-
com Roberto Dias da Silva, No discurso de
to dessa indistinguibilidade”.
crises, a busca por uma educação utilitarista
Sandro Chignola, da Universidade de Pado- e neoliberal.
va, avalia que a democracia está em crise devi-
A todas e a todos, uma boa leitura e uma exce-
do à “crescente desafeição com os mecanismos
lente semana.
eleitorais, o retorno da guerra, a corrupção en-
dêmica que atravessa os sistemas políticos”.
Para Rodrigo Karmy Bolton, da Universida-
de do Chile, “poderíamos dizer que toda a arque-
ologia filosófica agambeniana consiste em desblo-
quear o impensado da máquina, abrir o campo do
possível que toda máquina tenta conter”.
Adam Kotsko, do Shimer College, nos EUA,
sustenta que “a ligação entre Trindade e a dou-
trina da providência representa uma grande
mudança de paradigma para se pensar o desen- Foto: Reprodução de
volvimento do pensamento cristão”. pintura A apoteose de
Luís XIV, de Charles
Colby Dickinson, da Universidade Loyola, Le Brun
nos EUA, argumenta que “pensar o papel da Wikimedia domínio
público

22 DE MAIO | 2017
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Sumário
4 ■ Temas em destaque
6 ■ Agenda
8 ■ Lilia Schwarcz: Antonio Candido e sua lufada de ar na forma de ver o Brasil
14 ■ Tema de Capa | Castor Bartolomé Ruiz: Implicações políticas da teologia no pensamento
de Giorgio Agamben
19 ■ Tema de Capa | Patrick Baur: A impossibilidade da promessa ocidental de civilidade
25 ■ Tema de Capa | Ingeborg Villinger: Uma esfera pública em decomposição e dominada
por sentimentos
31 ■ Tema de Capa | Sandro Chignola: Tecnicização da decisão política é uma das assinaturas
da contemporaneidade
38 ■ Tema de Capa | Rodrigo Karmy: O impensado como potência e a desativação das
máqui nas de poder
46 ■ Tema de Capa | Adam Kotsko: Oikonomia trinitária enquanto paradigma da máquina
governamental
50 ■ Tema de Capa | Colby Dickinson: A necessidade de uma outra política a partir da lei
inoperante
54 ■ Tema de Capa | Andrea Cavalletti: O uso espetacular da incerteza e dos perigos produz
um estado de paralisia sugestiva
61 ■ Tema de Capa | Fabián Ludueña: Nenhum sistema político funciona sem o elemento
glorioso
65 ■ Tema de Capa | Bernd Ternes: Agamben é parte de uma espécie em extinção
71 ■ Tema de Capa | Manuel Ignacio Moyano: A ingovernável resistência ao neoliberalismo
76 ■ Tema de Capa | Márcia Junges: Um poder que se alimenta de glória
82 ■ Roberto Dias da Silva: No discurso de crises, a busca por uma educação utilitarista
e neoliberal 3
89 ■ Publicações | Marcelo Castañeda: Mobilização e ocupações dos espaços físicos e
virtuais: possibilidades e limites da reinvenção da política nas metrópoles
90 ■ Publicações | Luiz Felipe Barboza Lacerda; Luis Eduardo Acosta Muñoz: Indicadores de
Bem-Estar Humano para Povos Tradicionais: O caso de uma comunidade indígena na
fronteira da Amazônia Brasileira
91 ■ Publicações | Altair Sales Barbosa: Cerrado. O laboratório antropológico ameaçado pela
desterritorialização
92 ■ Crítica Internacional | Diego Pautasso: Os 100 da Revolução Russa e seus impactos
internacionais
95 ■ Outras edições

Diretor de Redação Atualização diária do sítio


Inácio Neutzling Inácio Neutzling, César Sanson, Patrícia
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to Humanitas Unisinos - IHU. Esta Vitor Necchi - MTB 7.466/RS Instituto Humanitas Unisinos - IHU
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conteúdo da IHU On-Line é copyleft. Editoração Gerente Administrativo: Jacinto Schneider
Gustavo Guedes Weber (jacintos@unisinos.br)

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TEMAS EM DESTAQUE

Entrevistas completas em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

As primeiras horas de um longo dia que está


distante de terminar
A delação de Joesley Batista coloca no centro da tempestade o presidente
Michel Temer que, em seu pronunciamento na tarde de ontem, garantiu
que não renunciará ao cargo. Os efeitos políticos, econômicos e sociais já
começam a mostrar seus sinais.
Entrevista com Adriano Pilatti, Tarso Genro e Fábio Konder Comparato

O juvenicídio, a ilusão das facilidades e o


falso projeto de futuro
“Eu acho que se vendeu uma ilusão aos jovens de todas as classes sociais
nos últimos anos, visto que o Brasil teve um crescimento econômico nunca
visto, que, no entanto, não reverteu em políticas e oportunidades sólidas
para as juventudes.”
Maurício Perondi é coordenador do Observatório Juventudes da Pontifícia Universidade Católica
do Rio Grande do Sul - PUCRS

4
Setores políticos ‘progressistas’ e a
compreensão enviesada e utilitarista da periferia
“Quando se trata de compreender o modo de vida nas periferias ou falar
em nome dos moradores dessas regiões, “alguns setores da esquerda têm
um olhar enviesado e até, em certo ponto, utilitarista, como é o caso do
próprio PT.”
Henrique Costa é mestre em Ciência Política e graduado em Ciências Sociais pela Universidade
de São Paulo – USP

Sucateamento do SUS resulta da lógica das


empreiteiras e dos esquemas partidários
“Os investimentos que seriam essenciais para adequar e modernizar a rede
pública foram mínimos, racionados e alocados segundo critérios muitas vezes
não estratégicos. A construção de unidades novas e o sucateamento das tradi-
cionais justifica-se antes pela lógica das necessidades das empreiteiras”
Lígia Bahia é graduada em Medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, mestra e
doutora em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz

Lula no centro do palco da Lava Jato.


Reflexões sobre o “depoimento de Curitiba”
O depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao juiz federal Sérgio
Moro foi aguardado com grande expectativa e se imaginava que inauguraria
um novo capítulo da Lava Jato. Passado o depoimento, tanto defensores de
Lula quanto da Lava Jato veem o ato muito mais como performático.
Entrevista com Rudá Ricci, Moysés Pinto Neto, Benedito Tadeu César, Pedro Ribeiro de Oliveira,
Gustavo Gindre e Henrique Costa

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Textos na íntegra em www.ihu.unisinos.br/maisnoticias/noticias

Mercado dá adeus A acelerada corrida “O capitalismo


a reformas no curto rumo à “Não Terra” não necessita da
prazo e prevê dias democracia”, afirma
difíceis na economia Maurizio Lazzarato

Da euforia à depressão, foi “Se a teoria da evolução for Muitas pessoas não ficaram
preciso parar o jogo e colocar verdadeira, hoje, a transfor- sabendo, mas, na semana
as projeções em ordem. Foi as- mação da espécie é acelerada passada, esteve em Córdoba
sim que o mercado financeiro como nas velhas comédias de um dos filósofos anticapita-
no Brasil viveu esta estranha Larry Semon [...]. No fim do listas mais críticos e radicais
quinta-feira, que demandou o deserto, poderia haver uma do pensamento político atual.
chamado circuit breaker dian- ‘Não Terra’, pelo menos para Maurizio Lazzarato é autor
te da tormenta política que co- nós como somos; uma ‘Não de alguns livros fundamentais
meçou na noite de quarta, com Terra’ para aliens nascidos para entender o arranjo ide-
a revelação de áudios gravados com sabe-se lá quantos DNAs ológico, histórico, econômico
clandestinamente pelo empre- e filhos de sabe-se lá quan- e cultural que está na base da
sário Joesley Batista. Somente tas mães, robôs e ciborgues crise mundial que se iniciou
20 minutos após a abertura da ainda mais chatos do que em 2008 e que não se sabe
Bolsa de Valores de São Paulo aqueles dos contos de ficção- muito bem quando e como irá
os papéis caíram 10,47%, o que -científica”. terminar.
paralisou o pregão. Artigo de Claudio Magris, publicado no Reportagem-entrevista publicada por La
Reportagem publicada por El País e jornal Corriere della Sera e reproduzi- Voz e reproduzida no sítio do IHU, em 5
reproduzida no sítio do IHU em 19-5, do no sítio do IHU em 15-5, disponível 19-5, disponível em http://bit.ly/2rsNVcu.
disponível em http://bit.ly/2q2qLK4. em http://bit.ly/2rI2ru8.

Papa quer sínodo 50% do trabalho no Carro autônomo. Ford


dedicado aos povos Brasil pode ser feito por prepara corte que atingirá
da Amazônia, afirma robô, diz estudo 10% de seus funcionários
arcebispo em todo o mundo

Embora a Igreja continue O Brasil é um dos países A Ford Motor está estudan-
ajudando os povos nativos com maior potencial de au- do fazer um corte significa-
da Amazônia, que abrange tomatização de mão de obra, tivo no seu quadro mundial
63% do Peru, os esforços de- atrás apenas de China, Índia de funcionários para melho-
vem continuar “revitalizan- e Estados Unidos na quanti- rar a rentabilidade de suas
do” a Igreja e o seu trabalho dade de trabalhadores que operações e, assim, conter a
na região, disse o arcebispo poderiam ser substituídos atual queda de seu valor de
Salvador Piñeiro Garcia- por máquinas. De acordo mercado. O ajuste poderia
-Calderón [...]. “O Santo Pa- com estudo da consultoria atingir 10% dos empregos da
dre nos disse que gostaria McKinsey, 50% dos atuais segunda maior fabricante de
de um sínodo para os povos postos de trabalho no Brasil veículos dos Estados Unidos,
amazônicos na Venezuela, poderiam ser automatiza- o que significa a eliminação
Colômbia, Equador, Peru, dos, ou 53,7 milhões de um de cerca de 20.000 postos de
Bolívia e Brasil”, disse Dom total de 107,3 milhões. trabalho.
Piñeiro ao jornal vaticano A reportagem publicada por Folha A publicada por El País, reproduzida
L’Osservatore Romano. de S. Paulo, reproduzida no sitio do pelo sitio do IHU, em 17-5, disponível
Reportagem do Catholic News Service IHU em 17-5, disponível em http://bit. em http://bit.ly/2q8W1TE.
reproduzida no sítio do IHU, em 17-5, ly/2r8Iq34.
disponível em http://bit.ly/2r976IE.

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AGENDA

Programação completa em ihu.unisinos.br/eventos

Bioma Caatinga: Bioma Caatinga: Oficina Observasinos –


biodiversidade, biodiversidade, Trabalho e as
riquezas e fragilidades riquezas e fragilidades Políticas Públicas

25/mai 31/mai 1º/jun


Horário Horário Horário
19h30min 19h30min 14h às 16h30min
Conferencista Conferencista Local
MS Rodrigo Castro – Haroldo Schistek (Teólogo Sala Ignacio Ellacuría e
Aliança da Caatinga e a e agrônomo) – Instituto Companheiros – IHU
Associação Caatinga Regional da Pequena
Agropecuária Apropriada
Local – IRPAA
Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU Local
Sala Ignacio Ellacuría e
Companheiros – IHU

6
A escalada da Biomas brasileiros A captura biopolítica
violência diante dos e defesa da vida – da vida humana pelos
avanços econômico- contribuições da dispositivos de poder
sociais na (re)produção teologia e das igrejas contemporâneos
das metrópoles

1º/jun 5/jun 6/jun


Horário Horário Horário
19h30min 19h30min 19h30min
Conferencista Conferencista Conferencista
Prof. Dr. Luis Flávio Sapori Prof. Dr. José Roque Jun- Prof. Dr. Guilherme Castelo
– Pontifícia Universidade ges – Universidade do Vale Branco – UFRJ
Católica de Minas Gerais – do Rio dos Sinos – Unisinos
PUC-Minas Local
Local Sala Ignacio Ellacuría e
Local Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU
Companheiros – IHU

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ENTREVISTA

Antonio Candido e sua lufada


de ar na forma de ver o Brasil
A historiadora Lilia Schwarcz fala sobre o professor que, segundo ela,
se permitia enxergar um país “de muitas pontas e não de uma só”
João Vitor Santos

N
o último dia 12 de maio, o Bra- para os escritos de Candido pode ser
sil perdeu um de seus intér- um caminho. “Num momento de tão
pretes. Aos 98 anos, morreu pouco humanismo e tanto totalitaris-
Antonio Candido de Mello e Souza, mo, não só no Brasil, mas fora também,
ou simplesmente professor Antonio ler esse tipo de autor é uma lufada de
Candido, como era conhecido. Famo- ar”, sugere. “Eu, pelo menos, fiquei len-
so como escritor e crítico literário, é do no fim de semana e parece que isso
definido pela historiadora Lilia Moritz ventila. Por isso acho que ler Antonio
Schwarcz como alguém que “nunca fez Candido é uma forma de poder respirar
uma crítica literária desvinculada des- um pouco”, justifica.
se mundo e exclusivamente acadêmi- Lilia Moritz Schwarcz possui gra-
ca”. Para ela, essa é uma das marcas duação em História pela Universidade
do professor, que inaugura uma outra de São Paulo - USP, mestrado em An-
8
forma de fazer crítica, e o define como tropologia Social pela Universidade Es-
um “intelectual público”. “Quando falo tadual de Campinas - Unicamp e douto-
desse papel de intelectual público, falo rado em Antropologia Social pela USP.
do papel de Antonio Candido de trazer É professora titular no Departamento
a literatura para a seara de todos, não de Antropologia da USP e Global Scho-
só para a dos intelectuais”, explica. lar na Universidade de Princeton, nos
Na entrevista a seguir, concedida por Estados Unidos. Juntamente com Pe-
telefone à IHU On-Line um dia de- dro Meira Monteiro, é organizadora da
pois da morte de Candido, Lilia recorda edição comemorativa de Raízes do Bra-
as visitas que fazia a ele e, em especial, sil (São Paulo: Companhia das Letras,
uma recente em que ele revelou que não 2016). Também é autora de As barbas
lia mais jornais. Sinais de um socialista do imperador - D. Pedro II, um monar-
que sempre se propôs a ouvir o outro e ca nos trópicos (São Paulo: Companhia
a pensar num Brasil melhor, mas que das Letras, 1998), O espetáculo das
já se sentia enfadado do momento po- raças (São Paulo: Companhia das Le-
lítico nacional. A historiadora entende tras, 1993) e O sol do Brasil (São Paulo:
que, neste momento de frágeis bandei- Companhia das Letras, 2008), entre
ras e de intolerância, é fundamental outras obras.
romper com polarizações, e se voltar Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual o legado mudar, sabia ouvir, perceber o mo- sua intelectualidade.
de Antonio Candido? mento político, mas que nunca fez
Antonio Candido também é um in-
uma crítica literária desvinculada
Lilia Moritz Schwarcz – São desse mundo e exclusivamente aca- telectual que fez escola. Ele começa
muitos legados. Antonio Candido dêmica. Ele sempre teve opiniões, na Literatura, depois começa a dar
nos deixa, primeiro, o exemplo do fez a Revista Clima, sempre foi um aula na Sociologia e volta para onde
intelectual público, que é muito raro intelectual muito presente, atuou na lecionou por mais tempo, a área de
no Brasil. É um intelectual que tinha vida de escritores, foi muito presente Literatura. Seja na Universidade de
suas posições, não era sectário, sabia no seu momento, na sua classe, na Campinas - Unicamp ou na Univer-

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“É um autor fundamental
porque nos ensina a ficar
nessa corda tensa e bamba
entre a obra e seu momento e
nos dois ao mesmo tempo”

sidade de São Paulo - USP, ele for- Rio Bonito6, que é uma etnografia obra não precisa do contexto. Isso
ma um grupo, forma uma legião de maravilhosa sobre esses outros bra- não existe, mas ficamos com a carica-
seguidores e faz essa espécie de crí- sis, em que ele fala de um funcioná- tura. A partir disso, pense como jus-
tica literária e social ou crítica social rio do Império que narra a história tamente Antonio Candido mostrou
literária. Como crítico literário, em da família do tio. Com isso nos ensi- que a relevância não está numa ponta
Formação da Literatura1 propõe um na, aos historiadores, como é que se ou na outra. Está na tensão e na refle-
método e nos ensina como é preciso faz biografia não só de grandes per- xão dos dois polos, ou seja, como você
tentar entender a obra de forma dinâ- sonagens, mas que também é pos- analisa a obra por si só, mas também
mica, o que implica pensar no autor, sível fazer biografia de personagens não deixa de incluir no momento em
na obra e na recepção do seu contex- menores, intermediários, que não que se insere.
to. Com essa forma de analisar, pro- foram construídos para serem imen- Para todos, e falo por mim, para
duziu textos fundamentais, como o so sucesso. E esses personagens têm quem quiser fazer uma crítica social
Dialética da Malandragem2, sobre um protagonismo que é só deles. Ou-
tro legado é a sua metodologia, a sua
da arte – eu tentei fazer isso com as 9
Manuel Antônio de Almeida3, em que artes plásticas, agora estou tentan-
ele analisa a figura de Leonardo Pa- inserção no país, a sua preocupação. do fazer isso com Lima Barreto7 –,
tarra4, essa figura que era dialética, É, de fato, um dos últimos intérpre- Antonio Candido é um autor fun-
não era nem ordem, nem desordem tes brasileiros que se vai. E, por fim, damental porque nos ensina a ficar
e que, portanto, de alguma maneira, acho que deixa um legado pessoal nessa corda tensa e bamba entre a
faz uma interpretação do país. Ou, muito grande. Todos aqueles que ti- obra e seu momento e nos dois ao
então, o texto sobre O cortiço5, que é veram o privilégio de conviver com mesmo tempo, pois falar de um não
um texto fundamental. Antonio Candido puderam conhecer quer dizer esgotar o outro, ou di-
esse intelectual curioso. Ele gostava minuir o outro. É isso que ele faz, e
Afinal, Antonio Candido é também de ouvir, de saber, tinha uma curio- tem discípulos que são fundamen-
um intérprete, e esse é o seu grande sidade genuína. Era um intelectual tais. Podemos pensar em Roberto
legado. Ele é o intérprete do país, muito generoso. Schwarz8, Davi Arrigucci9, Jorginho
seja nos seus textos de crítica lite-
Schwartz10, cada um na sua área e
rária, seja no seu texto Parceiros do
IHU On-Line – No que consis- 7 Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-
1 Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2014 (15ª edi- 1922): mais conhecido como Lima Barreto, foi um
ção). (Nota da IHU On-Line) tia a crítica literária de Candido jornalista e um dos mais importantes escritores
2 Dialética da Malandragem - caracterização das libertários brasileiros. É autor de, entre outros,
Memórias de um sargento de milícias. In: Revista e por que ele inaugura um ou- Triste Fim de Policarpo Quaresma. (Nota da IHU
do Instituto de estudos brasileiros, nº 8, São Pau- tro modo de crítica? On-Line)
lo, USP, 1970, pp. 67-89. Disponível em http://bit. 8 Roberto Schwarz (1938): crítico literário nasci-
ly/2qu0ao8. (Nota da IHU On-Line) do em Viena, na Áustria, estudou ciências sociais e
3 Manuel Antônio de Almeida: (1830-1861): foi Lilia Moritz Schwarcz – Há letras nas universidades de São Paulo, Yale e Paris,
um médico, escritor e professor brasileiro. Con- onde defendeu uma tese célebre sobre Machado
cluiu a Faculdade de Medicina em 1855, mas nun- uma caricatura, porque eu não acre- de Assis. Ex-professor da Unicamp, Schwarz é uma
ca exerceu a profissão. Dificuldades financeiras dito nessas dicotomias, nesses fla- das vozes mais incisivas do ensaísmo brasileiro.
o levaram ao jornalismo e às letras. Pertenceu à (Nota da IHU On-Line)
primeira sociedade carnavalesca do Rio de Janei- -flus que se dão entre perspectivas de 9 Davi Arrigucci Jr (1943): crítico literário bra-
ro, o Congresso das Sumidades Carnavalescas, sileiro, professor de Teoria Literária e Literatura
fundado em 1855. Em 1858 foi nomeado diretor análises mais historicistas ou de pers- Comparada da Universidade de São Paulo (USP)
da Tipografia Nacional, onde conheceu o jovem pectivas mais estruturalistas. Grosso entre 1965 e 1996. De sua vasta produção biblio-
aprendiz de tipógrafo Machado de Assis. Procu- gráfica destacamos Outros Achados e Perdidos
rou iniciar a carreira na política. Quando ia fazer modo, como caricatura, podemos di- (São Paulo: Cia das Letras, 1999); Coração Parti-
as primeiras consultas entre os eleitores, morreu do. Uma análise da Poesia reflexiva de Drummond
no naufrágio do navio Hermes, em 1861, na costa zer que, na perspectiva historicista, a (São Paulo: Cosac & Naify, 2002). (Nota da IHU
fluminense. (Nota da IHU On-Line) obra só fala no seu contexto. Numa On-Line)
4 Personagem de Manuel Antônio de Almeida, 10 Jorge Schwartz (1944): graduado em estudos
Leonardo Patarra, é folclórico estereótipo do su- perspectiva mais estruturalista, a latino-americanos e inglês pela Universidade He-
jeito que não fazendo nada de errado, também braica de Jerusalém, obteve mestrado e doutora-
não fazia nada certo. (Nota da IHU On-Line) do em teoria literária e literatura comparada na
5 São Paulo: L&PM Editores, 1998. (Nota da IHU 6 Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010 (11ª edi- USP, onde é professor titular de literatura hispano
On-Line) ção). (Nota da IHU On-Line) -americana. É pesquisador sênior do CNPQ, autor

EDIÇÃO 505
ENTREVISTA

com sua destreza e sua expertise, humanista acima de tudo”. repleta de livros como os desse tema
porque ninguém também é mera có- Qual o humanismo defendido e que ele conhecia plenamente.
pia de Antonio Candido, todos vão pelo professor? E qual o papel
Então, essa é uma forma humanista
contribuir para esse tipo de metodo- da literatura na constituição
de estar no mundo. Ao invés de você
logia e de análise literária. desse humanismo?
dizer ao mundo que você sabe tudo
Lilia Moritz Schwarcz – Ele era ou dizer isso para você mesmo, ele
um humanista no sentido de que ti- ensinava que ninguém sabia tudo;
IHU On-Line – O professor nha um projeto cidadão, um projeto se você conhecia uma parte, não
Candido defendia a literatura de inserção nessa vida de maneira ci- queria dizer que já conhecia o tema.
como direito. Qual o papel da dadã e de maneira democrática. Era Isso é um humanismo muito grande
literatura para a constituição um humanista também na identifi- e é uma imensa abertura para o ou-
de uma sociedade mais iguali- cação que ele tinha com o outro, com tro, que o caracteriza como profes-
tária? Como ela pode, como di- os outros, com todos os outros. Era sor, como intelectual, como amigo,
zia o professor, “colocar os in- muito bonito ver o professor Anto- como conselheiro e, assim como diz
divíduos em pé de igualdade”? nio Candido lidando com temas que a Marina – com toda propriedade –,
Lilia Moritz Schwarcz – Quan- ele dizia não compreender. Ele tinha como pai.
do falo desse papel de intelectual grande facilidade em dizer: “olha, eu
público, falo do papel de Antonio não tenho ideia desse tema”. E claro
Candido de trazer a literatura para a que tinha, ele que julgava que aquilo
IHU On-Line – Em uma de
seara de todos, não só para a dos in- que conhecia não era suficiente, de
suas entrevistas, Candido reve-
telectuais. Ou seja, fazer a literatura tão curioso que ele era.
la que a escrita simples e clara é
como direito como uma maneira de Vou dar um exemplo pessoal. Não uma forma de respeito ao outro.
nós nos compreendermos também. fui discípula direta dele, mas indire-
Insisto na ideia de que ele nunca tra- Lilia Moritz Schwarcz – Veja
ta; não só o conhecia, mas o conhe-
balhou a literatura como um mero só, isso é uma beleza. Essa também
cia há muito tempo. Quando estava
reflexo de seu momento, de maneira é uma forma respeitosa de você lidar
escrevendo minha tese de doutora-
10 alguma. Ao contrário, se tomar a li- com o seu leitor, com seu interlo-
do, O espetáculo das raças12, lembro
teratura dessa forma dinâmica, viva, que ia conversar sempre com ele, na- cutor. E como você faz isso? É algo
você percebe como ela acaba por nos quela época com ele e dona Gilda, e muito bonito quando nos colocamos
dizer respeito, nos representar, e fui perguntar a ele se conhecia algo a pensar sobre isso. É bem a cara
está além de nós também. sobre o darwinismo racial13. Ele me dele isso [a afirmação].
Nesse sentido ela é um direito, por- perguntou se era isso que pesquisa-
que é a maneira como você a utiliza, ria. Falei que sim, e ele, sempre com
a maneira como você interfere no aquela curiosidade, disse: “oh, Lilia, IHU On-Line – De que socia-
mundo a partir da literatura, a for- mas que tema interessante. Pena lismo falava Antonio Candido?
ma como você lê o mundo sem dizer que eu não saiba nada”. Eu lembro
Lilia Moritz Schwarcz – É nova-
que essa é a única maneira, a única que guardei o meu caderninho e, de
mente um humanismo, uma forma
forma de ler. Isso foi sempre uma repente, por conta do seu tio Pio, so-
de estar e interferir no mundo, de ter
perspectiva de Antonio Candido, bre o qual ele vivia a contar histórias,
um Brasil mais igual e mais inclusivo.
afinal a literatura sempre foi para começou a fazer um relato sobre a
É desse socialismo que falava, de uma
ele uma forma privilegiada de falar biblioteca do tio. E, a partir desse re-
sociedade menos dividida. Provavel-
sobre o Brasil, entender sobre o Bra- lato, ele começou a entrar no tema.
mente ele andava meio tristonho com
sil e se preocupar com o Brasil. É a Sei que peguei meu caderno rapida-
este país mais radicalizado. A última
janela dele. mente, dona Gilda até me ajudou, e
vez que estive com ele, comentou que
comecei a anotar, porque ele tinha
não gostava mais de ler jornal. Enfim,
dito que não entendia nada, mas ele
é desse lugar que ele fala, de um lugar
conhecia a biblioteca do tio, que era
IHU On-Line – Marina Mello e de respeito à diferença e de luta pela
Souza11, uma das filhas de Can- 12 Publicada em livro com o mesmo nome, São igualdade no país.
dido, definiu o pai como “um Paulo: Companhia das Letras, 1993. (Nota da IHU
On-Line)
13 Darwinismo racial ou darwinismo social: é
de numerosos livros e artigos de crítica de artes um nome moderno dado a várias teorias da so-
visuais e literatura e curador de diversas exposi- ciedade, que surgiram no Reino Unido, América IHU On-Line – Ele esteve re-
ções. Dirige o Museu Lasar Segall (Ibram/ MinC). do Norte e Europa Ocidental, na década de 1870.
(Nota da IHU On-Line) Trata-se de uma tentativa de se aplicar o darwinis- almente muito recluso nos últi-
11 Antonio Candido foi casado com Gilda de Mello mo nas sociedades humanas. Descreve o uso dos mos tempos. Como foi seu últi-
e Souza, professora de Estética no Departamento conceitos de luta pela existência e sobrevivência
de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e dos mais aptos, para justificar políticas que não mo contato com ele? Mantinham
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, fazem distinção entre aqueles capazes de susten-
falecida em 25 de dezembro de 2005. O casal tem tar a si e aqueles incapazes de se sustentar. Esse um contato frequente? O que
três filhas: Ana Luísa e as também professoras de conceito motivou as ideias de eugenia, racismo, sabe sobre a escrita de um diário
História da USP, Laura de Mello e Souza e Marina imperialismo, fascismo, nazismo e na luta entre
de Mello e Souza. (Nota da IHU On-Line) grupos e etnias nacionais. (Nota da IHU On-Line) no qual, se comenta, ele vinha

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reunindo seus pensamentos? que eu saiba, bastante afastado da uma interpretação que permite a
política. O que também é natural por ambiguidade, que permite manter
Lilia Moritz Schwarcz – Eu não
conta do momento de vida dele e tam- a ambivalência e não resolvê-la,
tenho autoridade para dizer isso,
bém pelo momento que o Brasil passa. uma interpretação que não se quer
pois, como várias pessoas, eu só o
No entanto, não quero ocupar o espa- a-histórica, ou essencial. Ele vai
visitava. Acho que quem pode falar
ço que não é meu, sobre isso acho que com aquele jeitinho dele dizendo
sobre isso com mais propriedade são
vocês devem falar com Marina. Sim, “no limite eu estou analisando só
Maria e Laura [as filhas], que esta- um personagem”, mas ele diz muito
de fato, eu o visitava, mas penso que
vam com ele até o último momento. de Brasil, do que entende de Brasil,
há pessoas que podem responder a
Eu fiz outras visitas depois, mas a úl- dos brasileiros e tudo mais. E gosto
essa pergunta com mais propriedade.
tima visita linda que fiz foi junto com demais de Um Funcionário da Mo-
o Pedro Meira14. Nós fomos levar o narquia17, que é um texto pouquís-
texto que fizemos na nova edição do simo trabalhado e é fundamental
Raízes15, e ele teve uma atitude ma- IHU On-Line – De que forma
os textos do professor contri- para compreender nossas elites,
ravilhosa conosco. Estávamos um como elas se constroem, quais são
pouco preocupados porque a im- buem para compreendermos o
Brasil? Quais as obras que mais os arranjos, quais são as negocia-
prensa gosta de apimentar o debate e ções e como funciona até hoje no
dizer que nós estávamos falando que lhe agradam e por quê?
Brasil o funcionalismo público. E
ele era o inventor do Sérgio Buarque Lilia Moritz Schwarcz – Ele tem tudo feito com muita delicadeza,
de Holanda16, mas não foi nada dis- um estilo maravilhoso. Eu brincava com aquele estilo Antonio Candido
so. Até quando se discute a própria dizendo que, toda vez que ia conver- de ser, uma forma delicada de nar-
carreira dele como pessoa, Candido sar com ele, apesar de caprichar na rar, mas que também interpreta o
tem uma escuta tão boa e tão diverti- minha retórica, no meu português, país de uma forma fundamental.
da, que foi o que ele fez conosco. ficava com a sensação de que esta-
Também costumo dizer para meus
va dizendo algo do tipo: “nenê quer
E foi nessa ocasião que ele me disse alunos que Antonio Candido é uma
papá” (risos). É uma brincadeira,
que já não queria receber tantos livros, espécie de Midas, no sentido de
mas Antonio Candido tinha uma
que já não dava conta, mas que esse, ser um construtor de cânones. Por 11
forma de expressão escrita e oral tão
sim, ele queria. Mas ele estava, pelo exemplo, aquela interpretação do
linda e ao mesmo tempo tão límpi-
Pedro Meira e minha é de que ele
14 Pedro Meira Monteiro: professor na Princeton
da de ler, sem truques e ao mesmo
de fato constrói o Raízes do Brasil.
University, na cidade de Princeton, no estado de tempo tão correta no melhor dos
Nova Jérsei, Estados Unidos, onde dirige o De- O último capítulo quem escreveu foi
partment of Spanish and Portuguese, que ofere- seus sentidos. Esta é uma coisa que
ce cursos na área de estudos latino-americanos, o Antonio Candido com aquele seu
com ênfase em literatura brasileira e história do
sempre me admirou e sempre vai
texto. Nesse aspecto é que estamos
pensamento social latino-americano. Também é me admirar na leitura dos textos do
codiretor da rede Princeton-Universidade de São dizendo que ele arranja as tradições
Paulo - USP Race and Citizenship in the Americas. professor Antonio Candido: a forma
Graduou-se em Ciências Sociais pela Universi- e faz com que elas falem com todo o
como ele é capaz de falar de temas
dade Estadual de Campinas - Unicamp, tem um sentido. No melhor dos sentidos, ele
D.E.A. em História Sociocultural pela Université de cabeludos, mas fazendo o leitor ter a
Versailles Saint-Quentin-en-Yvelines, mestrado é um dos construtores do modernis-
em Sociologia e doutorado em Teoria e História sensação de que aquilo ali é simples. mo18 paulistano. Não há dúvida. Ele
Literária, também pela Unicamp. Confira a entre-
vista 1936 reeditado em 2016: a volta do vazio da E, sobre os textos, não consigo tem essa capacidade de construir, de
política representativa, publicada na Revista IHU
On-Line número 498, de 28-11-2016, disponível destacar apenas um. Até acho que ver sentido, de encontrar os liames,
em http://bit.ly/2qxBzwQ. (Nota da IHU On-Line) de encontrar as correntes, isso por-
15 Pedro Meira Monteiro, juntamente com Lilia já citei alguns. Eu gosto demais da
Schwarcz, é organizador da edição comemorati- introdução do Formação da Lite- que ele é uma pessoa muito curiosa.
va de 80 anos do livro Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda, publicada em 2016 pela ratura Brasileira, acho que é uma Então, ele é capaz de fazer e cons-
Companhia das Letras. Sobre essa obra, confira a truir a sua produção, mas também
revista IHU On-Line número 498, de 28-11-2016, aula de método, e sempre trabalho
disponível em http://bit.ly/2nDmdFE. (Nota da com meus alunos. Além de uma de construir a produção alheia. O
IHU On-Line)
16 Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982): aula de método, é uma aula de hu- que é muito bonito, ou seja, você é
historiador brasileiro, também crítico literário e a capaz de iluminar a sua cena, mas
jornalista. Entre outros, escreveu Raízes do Brasil, mildade no maior e melhor senti-
de 1936. Obteve notoriedade através do concei- do do termo, quando ele fala que a também é capaz de iluminar outras
to de “homem cordial”, examinado nessa obra. A
professora Dr.ª Eliane Fleck, do PPG em História nossa literatura não é o braço mais
da Unisinos, apresentou, no evento IHU ideias, 17 Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2002. (Nota da
de 22-8-2002, o tema O homem cordial: Raízes robusto, mas é a que temos, a que IHU On-Line)
do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e no dia nos representa. Também faz você 18 Modernismo (ou movimento modernista): o
8-5-2003, a professora apresentou essa mesma conjunto de movimentos culturais, escolas e esti-
obra no Ciclo de Estudos sobre o Brasil, conce- aprender a olhar para o seu objeto los que permearam as artes e o design da primei-
dendo, nessa oportunidade, uma entrevista à IHU ra metade do século XX. Apesar de ser possível
On-Line, publicada na edição nº 58, de 5-5-2003, de uma maneira que ele não preci- encontrar pontos de convergência entre os vários
disponível em http://bit.ly/152MP1v. Sobre Sérgio sa ser o melhor, não precisa ser o movimentos, eles em geral se diferenciam e até
Buarque de Holanda, confira, ainda, a edição 205 mesmo se antagonizam. No modernismo brasilei-
da IHU On-Line, de 20-11-2006, intitulada Raízes mais importante para ser um bom ro, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor
do Brasil, disponível para download em http://bit. Brecheret, Plínio Salgado, Anita Malfatti, Menotti
ly/SMypxY, e a edição 498, de 28-11-2016, “Raízes objeto. Eu acho que em Dialéti- Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet,
do Brasil” – 80 anos. Perguntas sobre a nossa sani- ca da Malandragem ele faz uma Heitor Villa-Lobos, Tarsila do Amaral, Tácito de Al-
dade e saúde democráticas, disponível em http:// meida, Di Cavalcanti estão entre os nomes mais
bit.ly/2nDmdFE. (Nota da IHU On-Line) belíssima interpretação do país, importantes. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 505
ENTREVISTA

cenas, o que é uma raridade. Isso é lhas, as redes sociais ajudaram nis- O Tupi e o Alaúde20, que é uma bele-
muito professor Antonio Candido. so, mas não foram as únicas culpa- za. Da mesma forma, tem um livro
das. As pessoas vivem nas próprias sobre a moda, O Espírito das Rou-
bolhas, nas suas próprias verdades pas21, escrito por ela de uma maneira
IHU On-Line – Ou seja, usan- e não conseguem ouvir qualquer maravilhosa, e, no momento em que
do o exemplo de Raízes do Bra- coisa que não saia de sua caixinha. ela escreve aquilo, ninguém está es-
sil, podemos dizer que ele vê Por isso acho que é um momento crevendo; inclusive, ninguém acha
uma obra, lê uma obra e é ca- excelente para ler Antonio Candido relevante. Ela faz uma crítica e uma
paz de colocar essa obra num – que é um autor que nunca quis análise social – e isso que é lindo –
determinado lugar e de nos dar dar receita para nada –, para ouvir das roupas num contexto adverso
chaves de leitura para compre- essa opinião dele de que somos um para que ela mexesse com aquele
ender essa obra. É isso? ramo da literatura que talvez não tipo de tema. Ela que era uma senho-
seja o mais forte, talvez um galho ra tão linda, tão elegante, e faz isso
Lilia Moritz Schwarcz – Exata- fraco, mas esse é nosso galho. totalmente contra a corrente.
mente. Ele abre uma possibilidade de
leitura para uma obra que não é dele. Também é importante ler as análi- E ainda tem três filhas, cada uma
É muito bonito esse movimento que ses políticas dele, as análises críticas na sua área, que são três intérpre-
ele faz, porque ele organiza o Carna- em que ele se permite enxergar um tes do país também. Que linda que
val. Se pensarmos nos textos mara- Brasil de muitas pontas, e não de é essa família! Se você pegar os tra-
vilhosos dele sobre cultura nos anos uma só. Num momento de tão pou- balhos da Ana Luiza, os textos dela,
30, veremos que ele vai, a partir da co humanismo e tanto totalitarismo, os últimos sobre a família, verá que
educação, da sociedade, construindo não só no Brasil, mas fora também, são maravilhosos. Há os textos da
um modernismo. E um certo moder- ler esse tipo de autor é uma lufada Marina sobre a África, a produção
de ar. Eu, pelo menos, fiquei lendo da Laura sobre o período colonial
nismo, não são todos, claro. Não era
no fim de semana e parece que isso e todas as interpretações que traz
possível que construísse todos, mas
ventila. Por isso acho que ler Anto- desse período, da inquisição, desde
um modernismo ele constrói e colo-
nio Candido é uma forma de poder o primeiro livro dela. Lembro-me
ca num lugar que vai ser único e que
12 respirar um pouco. da primeira resenha que escrevi na
vai ficar quase convencionado dessa
vida, que se chamava Vai Traba-
maneira, não por autoritarismo, mas
lhar Vagabundo, sobre as Minas22
por mérito. É a maneira como ele
que a Laura trazia, o livro23 dela
constrói esses cenários e esses pano- IHU On-Line – Deseja acres-
maravilhoso sobre Cláudio Manoel
ramas, esses ambientes. centar algo?
da Costa24. Enfim, é uma família de
Lilia Moritz Schwarcz – An- intérpretes. Não sei se já se desta-
tonio Candido e Gilda de Mello e cou essa face tão importante de An-
IHU On-Line – Qual a impor- Souza formaram uma família im- tonio Candido.■
tância de ler Antonio Candido pressionante. Você não tem tantos
hoje, diante da crise do hu- intelectuais que são capazes de pro- Brasil, disponível para download em http://bit.ly/
Lgf55q. (Nota da IHU On-Line)
manismo? duzir uma família tão crítica e de 20 São Paulo: Editora 34, 2003. (Nota da IHU On
-Line)
Lilia Moritz Schwarcz – Nun- pessoas tão fundamentais. Dona Gil- 21 São Paulo: Companhia das Letras, 2009. (Nota
da tem uma análise fenomenal sobre da IHU On-Line)
ca foi tão importante ler Antonio 22 Opulência e miséria das Minas Gerais. São Pau-
Candido, porque andamos tão di- Macunaíma19, sobre o modernismo, lo: Brasiliense, 1997. (Nota da IHU On-Line)
23 Cláudio Manuel Da Costa. São Paulo: Compa-
vididos nessas bandeiras que são nhia das Letras, 2011. (Nota da IHU On-Line)
19 Macunaíma: romance de Mário Raul de Morais 24 Cláudio Manuel da Costa (1729-1789): foi um
tão frágeis, nessa espécie de fla-flu Andrade publicado em 1928. O livro é uma das advogado, minerador e poeta português do Brasil
da política, esquerda, direita e o obras-primas da literatura brasileira, em que reú- Colônia. Destacou-se pela sua obra poética e pelo
ne inúmeras lendas e mitos indígenas para com- seu envolvimento na Inconfidência Mineira. Foi
que for. E andamos com essas ban- por a história do “herói sem nenhum caráter”, que, também advogado de prestígio, fazendeiro abas-
invertendo os relatos dos cronistas quinhentistas, tado, cidadão ilustre, pensador de mente aberta e
deiras com uma dificuldade muito vem da mata para a cidade de São Paulo. Sobre amigo de Aleijadinho, a quem teria possibilitado
grande de ouvir um ao outro. O que Macunaíma, confira a edição 268 da Revista IHU o acesso às bibliotecas clandestinas que seriam
On-Line, de 11-8-2008, intitulada Macunaíma: 80 mais tarde apreendidas aos Inconfidentes. (Nota
nós vivemos são espécies de bo- anos depois. Ainda um personagem para pensar o da IHU On-Line)

Leia mais
- A atualidade da obra e a necessidade de ser lida no seu tempo. Entrevista com Lilia
Moritz Schwarcz, publicada na revista IHU On-Line, número 498, de 28-11-2016, disponível
em http://bit.ly/2qxPNO7

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REVISTA IHU ON-LINE

13

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

Implicações políticas da teologia no


pensamento de Giorgio Agamben
Castor Bartolomé Ruiz

O
tema de capa desta edição da lo: Boitempo Editorial, 2007).
revista IHU On-Line é dedi- Entre suas obras em italiano, desta-
cado ao filósofo italiano Gior-
camos Signatura rerum (Sul Metodo,
gio Agamben (1942) que, de 2003 a
Torino, Bollati Boringhieri, 2008); An-
2009 foi professor da Facoltà di Design
geli. Ebraismo Cristianesimo, Islam, a
e arti della IUAV (Veneza) onde ensi-
cura di (Vicenza, Neri Pozza, 2009). La
na Estética, e do College International
Chiesa e il Regno (Roma, Nottetempo,
de Philosophie de Paris. Formado em
2010), La ragazza indecibile. Mito e
Direito, foi professor da Università di
mistero di Kore (Milano, Electa Mon-
Macerata, da Universitá di Verona e
dadori, 2010) e Il fuoco e il racconto
da New York University, cargo ao qual
(Roma: Nottetempo, 2014).
renunciou em protesto à política do go-
verno estadunidense. Em 4-9-2007, o sítio do Instituto
14 Humanitas Unisinos – IHU pu-
A produção de Agamben centra-se
blicou a entrevista Estado de exceção
nas relações entre filosofia, literatura,
e biopolítica segundo Giorgio Agam-
poesia e, fundamentalmente, política.
ben, com o filósofo Jasson da Silva
Entre suas principais obras traduzi-
Martins, disponível em http://bit.ly/
das em português destacamos Homo
jasson040907 . A edição 236 da IHU
Sacer: o poder soberano e a vida nua
On-Line, de 17-9-2007, publicou a en-
(Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2002), A
trevista Agamben e Heidegger: o âmbi-
linguagem e a morte (Belo Horizonte:
to originário de uma nova experiência,
Ed. UFMG, 2005), Infância e história:
destruição da experiência e origem da ética, política e direito, com o filósofo
história (Belo Horizonte: Ed. UFMG, Fabrício Carlos Zanin, disponível em
2006); Estado de exceção (São Paulo: https://goo.gl/zZRChp . A edição 81 da
Boitempo Editorial, 2007), Estâncias publicação, de 27-10-2003, teve como
– A palavra e o fantasma na cultura tema de capa O Estado de exceção e a
ocidental (Belo Horizonte: Ed. UFMG, vida nua: a lei política moderna, dis-
2007); Profanações (São Paulo: Boi- ponível em http://bit.ly/ihuon81
tempo Editorial, 2007); O reino e a Em 30-6-2016, o professor Castor
glória. Uma genealogia teológica da Bartolomé Ruiz, da Unisinos, proferiu
economia e do governo (São Paulo: a conferência Foucault e Agamben.
Boitempo, 2011), O que resta de Aus- Implicações Ético-Políticas do Cris-
chwitz (São Paulo: Boitempo, 2008), tianismo, que pode ser assistida em
Altíssima pobreza (São Paulo: Boi- http://bit.ly/29j12pl . De 16-3-2016 a
tempo, 2014), O uso dos corpos (São 22-6-2016, Ruiz ministrou a disciplina
Paulo: Boitempo, 2017), A linguagem de Pós-Graduação em Filosofia e tam-
e a morte (Belo Horizonte: Ed. UFMG, bém validada como curso de extensão
2005), Infância e história: destruição por meio do IHU intitulada Implica-
da experiência e origem da história ções ético-políticas do cristianismo na
(Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2006), filosofia de M. Foucault e G. Agamben.
Estâncias – A palavra e o fantasma na Governamentalidade, economia políti-
cultura ocidental (Belo Horizonte: Ed. ca, messianismo e democracia de mas-
UFMG, 2007), Profanações (São Pau- sas, que resultou na publicação da edi-

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REVISTA IHU ON-LINE

“Agamben, em suas pesquisas,


dá continuidade a diversas trilhas
epistêmicas das implicações
políticas da teologia abertas
por Benjamin e Foucault”

ção 241 dos Cadernos IHU ideias, Ruiz é conferencista no VI Colóquio


intitulado O poder pastoral, as artes de Internacional IHU – Política, Econo-
governo e o estado moderno, que pode mia, Teologia. Contribuições da obra
ser acessada em http://bit.ly/1Yy07S7 . de Giorgio Agamben, que ocorre nos
O texto apresentado a seguir, de autoria dias 23 e 24 de maio de 2017. Acesse a
de Ruiz, faz uma apresentação do pensa- programação completa em http://bit.
mento de Agamben e abre uma sequên- ly/2fr695n .
cia de entrevistas dedicadas ao filósofo. Confira o artigo.

15
O filósofo Giorgio Agamben, en- de Michel Foucault2. A abordagem ricos que nos envolvem. A teologia,
tre as diversas contribuições do seu que Agamben faz da teologia sinto- para Benjamin, contém um poten-
pensamento, vem realizando uma niza, por um lado, com a primeira cial epistêmico de transformação e
espécie de exploração crítica das tese sobre a história de Benjamin até de revolução que a racionalidade
potencialidades da teologia para a em que este autor retrata a teologia moderna perdeu pela erosão das ca-
política. Este percurso epistêmico como um anão feio e corcunda que tegorias políticas contemporâneas.
do autor tem alguns objetivos e vá- permanece oculto no tabuleiro da Em outra perspectiva de abordagem,
rias influências. Agamben adentra Foucault pesquisou a genealogia das
história, ao qual atualmente não se
na teologia desde a perspectiva da práticas do cristianismo em relação,
dá atenção pela feiura, mas é funda-
filosofia crítica com objetivo de ex- entre outros aspectos, à constituição
mental para entendermos os movi-
plorar a potencialidade crítica de do sujeito ocidental e à conformação
categorias teológicas para a ação mentos dos acontecimentos histó-
do próprio Estado moderno. Desta-
política e, em outro viés, descons- cando, por exemplo, de um lado, a
conceito de história (1940) e a monumental e inaca-
truir assinaturas sacralizadoras da bada Paris, capital do século XIX, enquanto A tarefa relevância do ascetismo cristão dos
do tradutor constitui referência incontornável dos
ordem que persistem em nossas estudos literários. Sobre Benjamin, confira a entre- primeiros séculos como uma forma
instituições contemporâneas. vista Walter Benjamin e o império do instante,
de vida que recolhia as práticas de
concedida pelo filósofo espanhol José Antonio Za-
mora à IHU On-Line nº 313, disponível em http:// vida das escolas cínicas e que se des-
A exploração crítica da teologia na bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line)
obra de Agamben tem, entre outras, 2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. dobrariam nas práticas de resistên-
Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
as influências de Walter Benjamin1 e tória da sexualidade (a qual não pôde completar cia dos diversos movimentos sociais
devido a sua morte), situam-se dentro de uma das sociedades ocidentais. Por outro
filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
1 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. palmente do tema do poder, rompendo com as lado, Focault pesquisou a genealogia
Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de concepções clássicas do termo. Em várias edições,
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicí- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou- do poder pastoral, um poder que cui-
dio. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em da e governa a vida humana, como
Crítica, foi fortemente inspirado tanto por auto- http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
res marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo disponível em https://goo.gl/C2rx2k ; edição 364, prática de governo inerente à forma-
místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
profundo da língua e cultura francesas, traduziu discurso racional em debate, disponível em ht- ção do Estado moderno.
para o alemão importantes obras como Quadros tps://goo.gl/wjqFL3 ; edição 343, O (des)governo
parisienses, de Charles Baudelaire, e Em busca do biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dispo- Agamben, em suas pesquisas, dá
tempo perdido, de Marcel Proust. O seu trabalho, nível em https://goo.gl/M95yPv , e edição 344,
combinando ideias aparentemente antagônicas Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de- continuidade a diversas trilhas epis-
do idealismo alemão, do materialismo dialético bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN . Con-
e do misticismo judaico, constitui um contributo fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em têmicas das implicações políticas
original para a teoria estética. Entre as suas obras formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, da teologia abertas por Benjamin
mais conhecidas, estão A obra de arte na era da Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa-
sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) e Foucault. Entre outras, podería-

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

mos destacar a importância que as na fórmula viver como-se-não numa Oikonomia Trinitária
pesquisas de Agamben vêm dando vivência da temporalidade do ainda-
a categorias como: messianismo, oi- -não. Agamben analisa de forma Agamben, assim como Foucault,
konomia trinitária, liturgia, regra de muito detalhada esta prática messiâ- pesquisou a genealogia da econo-
vida monástica e profanação. nica na obra O tempo que resta, que mia política moderna. Agamben
é um estudo dos primeiros versículos desenvolve a tese, principalmente
O messianismo da carta aos Romanos, de São Paulo. em sua obra O reino e a glória, que
Viver como-se-não significa provo- o conceito moderno de economia
O messianismo é uma categoria car uma tensão entre o tempo pre- política, que atualmente adquiriu a
teológica herdeira do judaísmo que sente e a possibilidade de um tem- hegemonia da governamentalidade
Benjamin explorou na sua filoso- po futuro que ainda não existe, mas biopolítica da vida humana, é uma
fia. Agamben entende que a ordem cuja existência é possível. O como- ressignificação dos debates que o
social contemporânea tende a per- -se-não representa uma postura mi- cristianismo desenvolveu durante os
petuar-se sob o modelo do contro- litante na qual se está dentro de uma séculos 2, 3 e 4 a respeito da com-
le biopolítico das condutas. Neste ordem como-se-não se pertencesse a preensão da dimensão trinitária de
marco político, os sujeitos são com- Deus, assim como o problema da
ela. Como-se-não é tomar distância
pelidos a produzir condutas condi- relação entre a vontade de Deus e a
do tempo e da ordem social presen-
zentes com a preservação da ordem. liberdade humana. A teologia cristã
tes na expectativa de um outro tem-
São condutas governamentalizadas desses séculos, entre outras várias
po e uma outra vida. O como-se-não
por dispositivos de controle que a questões, teve que dar resposta a
induz uma forma de vida que resiste
cada dia se expandem mais e apri- duas interpelações: como pode ser
à captura comportamental do tem-
moram sua eficiência na condução e Deus um e ao mesmo tempo três
po presente e abre para a criação de
governo dos comportamentos. Nes- pessoas? Como Deus pode governar
formas de vida diferentes daquelas
ta lógica, a ordem social segue uma o mundo e ao mesmo tempo respei-
dominantes no presente.
espécie de previsão de metas de go- tar a liberdade humana?
verno, seguindo um tipo de ordem Ainda nas implicações políticas
Essas questões aparecem de for-
natural das coisas na qual os sujei- do messianismo, poderíamos des-
ma inovadora com o cristianismo.
16 tos, se quiserem sobreviver e pro- tacar a relação entre a lei e a vida.
Nunca antes nem depois, nenhuma
gredir, têm que se acoplar e mode- A postura messiânica torna a lei religião pensou Deus como plura-
lar suas condutas. O messianismo inoperosa porque almeja viver uma lidade interna, neste caso trinitá-
é a categoria teológica que atesta a vida além da lei. O messianismo ria, e a cosmogonia greco-romana
possibilidade da ruptura histórica não pretende viver uma vida sem entendia que o Logos comandava o
como princípio constitutivo da his- lei, o que provocaria um estado mundo segundo as determinações
toricidade dos acontecimentos. O de exceção em que a vida humana da natureza. Neste suposto, não há
messianismo representa a possibili- é fragilizada pela falta de lei, nem liberdade histórica, senão determi-
dade de que, em um momento dado promove uma vida fora de lei como nismo do destino (anake). Desde o
e de forma imprevisível, é possível se a lei fosse sempre negativa. O início, o cristianismo entendeu que
a novidade histórica. O messianis- messianismo pretende propor o há uma difícil tensão a ser preser-
mo pensa a história como possibi- ideal de vida além da lei, ou seja, vada entre a onipotência de Deus
lidade de que um acontecimento uma vida que não se limita a viver no governo do mundo e a liberdade
novo irrompa de forma imprevisível segundo a lei, como se esta fosse dos homens. Se negasse a liberdade
e modifique o curso da história. O um ideal para viver. Para o mes- humana, como faziam, por exemplo,
messianismo representa uma espe- sianismo, viver em plenitude sig- os estoicos, não há possibilidade de
rança na possibilidade da ruptura e nifica superar todas as prescrições pensar em salvação ou condenação;
inovação históricas. Benjamin for- legais vivendo uma forma de vida nesse caso a redenção de Cristo fica
mulou a metáfora de que o instan- que torne a lei desnecessária, ino- sem sentido.
te é a porta por onde pode entrar o perosa, porque a vida vive a lei em
plenitude, a supera em tudo o que a A questão de como Deus governa
messias. O messianismo representa
lei poderia ter de positivo. o mundo a partir da liberdade hu-
a possibilidade da revolução histó-
mana, paradoxalmente, é a mesma
rica como forma política de mudar
Nas atuais sociedades de contro- questão da economia política, ou
a ordem social estabelecida.
le, a proliferação de normas opera seja, como governar a conduta das
Agamben, entre outras, analisa como dispositivo de normatização populações sem utilizar medidas
a prática messiânica de São Paulo de comportamentos. A postura mes- de soberania autoritária. A grande
como paradigma de uma experiên- siânica de vida nos libera da mira- questão da economia política é como
cia histórica de ruptura com o tempo gem de que a proliferação de normas governar a liberdade humana. Algo
e o império romano que lhe tocou e leis é o modelo a seguir para viver diferente da teologia cristã que en-
viver. São Paulo formulou a tensão uma vida melhor. A vida messiânica tende que Deus não pode governar
da sua experiência messiânica cristã torna inoperosa a lei. a liberdade, já que esta é condição

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sine qua non para a salvação ou não ram da política uma encenação por pelos novos líderes que acenam mi-
de cada um. Por muito paradoxal meio da qual reduzem os cidadãos diaticamente num espetáculo polí-
que possa parecer, a economia po- a meros espectadores passivos com tico consumido por um povo redu-
lítica pretende governar a partir da a ilusão de participarem na medida zido, cada vez mais, a uma massa de
liberdade, tendo por objetivo final que podem opinar com reações es- consumidores.
governar a própria liberdade dos pontâneas próprias de um especta-
Agamben investiga como o dispo-
indivíduos induzindo sua conduta dor ante um espetáculo. Este mode-
sitivo da aclamação tem uma forte
e produzindo seu comportamento a lo espetacular de democracia reduz
raiz na liturgia religiosa. Seguindo
partir de estímulos indutores. o povo a uma massa de espectadores
os estudos de teólogo Peterson4 e
que consomem um produto. Uma
De outro lado, o cristianismo en- seus debates com Schmitt, Agam-
democracia de massas procura pre-
tendeu que o paradigma político da ben traça a genealogia do dispositivo
ver a reação da massa antecipando-
soberania não servia para explicar da aclamação na liturgia. O termo
-se a seus gostos, para tanto, cria es-
a relação intratrinitária de Deus, liturgia, paradoxalmente, tem ori-
tratégias de imagem e linguagem por
nem para entender como Deus gem política na ágora da Polis, assim
meio das quais procura direcionar a
governa o mundo. Por isso, os te- como as aclamações também têm
“opinião pública” da massa e seu
ólogos cristãos rejeitaram utilizar uma origem política. A aclamação
comportamento. Esta equação de
as categorias da soberania política teve grande importância em Roma
governamentalização das condutas,
tradicionais na teologia bíblica do para legitimar o poder de impera-
própria das democracias de massa,
antigo testamento, como rei, e em dores e generais. A liturgia cristã
está longe do demo-kratos, o poder
seu lugar incorporaram a catego- incorporou a aclamação como parte
do povo.
ria de oikonomia para explicar o do seu ritual, no qual aclama-se a
governo de Deus no mundo. A ca- Agamben analisa como entre os Deus como soberano e senhor. Nas
tegoria teológica da oikonomia foi dispositivos utilizados pelas demo- democracias de massas, assistimos,
desenvolvida como conceito que cracias espetaculares destaca-se a cada vez mais, à utilização dos dis-
explica o governo de Deus sobre “aclamação”. Aclamar equivale a positivos aclamatórios como forma
o mundo. Por meio da oikonomia, referendar de forma espontânea o de legitimação do poder.
Deus governa o mundo não de for- poder de quem fala. Neste ponto, 17
Agamben lembra, de forma crítica, Como sabemos, a aclamação foi e
ma absolutista, como um soberano
as teses de Carl Schmitt3, o jurista é o dispositivo utilizado pelos fas-
déspota ou um rei, mas respeitan-
do nazismo, que defendia o que ele cismos e as diferentes formas de
do a liberdade humana através da
denominava de “democracia pura”. caudilhismo para legitimar o poder
noção de providência. Agamben
Para Schmitt a verdadeira democra- dos líderes. Na medida em que nos-
mostra como o uso teológico que
cia realiza-se no ato aclamatório do sas democracias tendem a legitimar
o cristianismo fez do termo oiko-
povo ao líder. Na aclamação realiza- efetivamente o poder através de dis-
nomia como governo influenciou
-se, para Schmitt, o poder puro do positivos aclamatórios, afastando
diretamente os teóricos modernos
povo, que reconhece ao líder como o poder deliberativo real do povo,
da economia política que, na sua
seu legítimo governante. A aclama- Agamben aponta para o grave para-
maioria, eram teólogos ou tinham
ção seria o ponto culminante da de- doxo de estarmos produzindo demo-
estudado teologia. Lembrando que
mocracia, uma democracia pura. cracias autoritárias.
a economia, no século 17, não exis-
tia como saber, era uma parte da Agamben mostra que as democra-
filosofia e da teologia moral.
Regra de vida
cias de massas substituíram, cada
vez mais, o poder deliberativo do Agamben, seguindo as trilhas aber-
Liturgia povo pelo dispositivo da aclamação. tas pelas últimas pesquisas de Fou-
Agamben mantém uma posição O poder, nas democracias de mas- cault, também adentrou no estudo
muito crítica em relação ao mode- sa, legitima-se, cada vez mais, por da genealogia das práticas do cris-
lo de democracia contemporânea. novos dispositivos aclamatórios do tianismo primitivo. O interesse de
Para o autor, este modelo se carac- poder como as pesquisas de opinião Agamben centra-se especificamente
teriza por ser o que ele denomina de e a imagem pública do governante. na forma-de-vida do monasticis-
democracia de massas e democra- A opinião pública é o novo disposi- mo cristão dos primeiros séculos. O
cias espetaculares. tivo aclamatório da massa, utilizado autor procura resgatar uma forma-
-de-vida em que se problematizou
Para as atuais democracias, a po- 3 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo políti- de forma inovadora a relação entre
co e professor universitário alemão. É considerado
lítica tornou-se um espetáculo, e os um dos mais significativos e controversos espe- a regra e a vida. Agamben chama
cidadãos, meros consumidores de cialistas em direito constitucional e internacional
da Alemanha do século 20. A sua carreira foi man-
uma mercadoria que é fabricada nos chada pela sua proximidade com o regime nacio- 4 Erik Peterson Grandjean (1890-1960): teólogo
nal-socialista. O seu pensamento era firmemente católico alemão. De formação protestante, con-
bastidores do poder e oferecida para enraizado na teologia católica, tendo girado em verteu-se ao catolicismo em 1930, especializan-
o consumo como qualquer outro torno das questões do poder, da violência, bem do-se em patrística. Ele era um opositor do na-
como da materialização dos direitos. (Nota da zismo e teve uma grande influência sobre muitos
produto. As atuais democracias fize- IHU On-Line) teólogos do século 20. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

atenção para o fato de que, antes Profanação etc., mesmo afetando a vida cotidia-
do monasticismo cristão, encon- na das pessoas, continuariam tendo
tramos muitos estudos sobre o Por último, entre outras muitas a assinatura da sacralização que as
problema da lei e da norma, mas categorias, destacamos a impor- mantêm distantes delas numa nova
não há obras nem está problema- tância que Agamben dá ao con- transcendência secularizada. Mes-
tizada a questão da regra. A partir ceito da profanação como prática mo a vida das pessoas sendo afeta-
do século 2 d.C., vemos proliferar indutora de uma nova ação políti- da e atingida por estas instituições,
uma grande literatura sobre a re- ca. As sociedades modernas insti- considera-se que o poder de gestão
gra e a vida, a regra de vida. Para tuíram o modelo da secularização e governo excede a capacidade do
Agamben, nestes tratados encon- como meio para separar a religião povo, por isso devem ser “técnicos
tramos os vestígios de uma prática da política, a teologia do poder. especializados” os responsáveis por
de forma-de-vida muito singular. Contudo, para Agamben, o modelo gerenciar o poder dessas institui-
A característica principal é que de secularização moderno realizou ções. Para Agamben, a assinatura
as novas comunidades cristãs que uma maquiagem superficial, man- da sacralização persiste nas socie-
escolheram viver na forma de vida tendo no âmago do poder moder- dades secularizadas, possibilitando
monástica pretenderam viver uma no a assinatura da sacralização. que o exercício do poder continue a
vida e, a partir dessa vivência, es- A sacralização é o dispositivo reli- ser privilégio de pessoas seleciona-
tabelecer uma regra para viver. gioso ancestral através do qual par- das para esse fim.
Na regra de vida do monasticis- celas da vida humana são retiradas Agamben introduz o conceito
mo cristão, o prioritário é a vida do alcance do poder comum das de profanação para denominar a
que decide qual a regra apropriada pessoas para serem administradas prática – mais radical que a mera
para essa forma-de-vida, e não o por especialistas do sagrado, os sa- secularização – através da qual há
contrário. Agamben destaca a sin- cerdotes. Sacralizar algo significa, que despojar o poder da aura de
gularidade desta prática de vida, entre outras coisas, retirá-lo do do- inatingível para permitir que as
haja vista que nós estamos inseri- mínio direto das pessoas comuns, pessoas comuns possam decidir
dos em sociedades de controle em transferindo o poder de controle sobre as principais questões que
18 que a norma é utilizada como dis- dessa dimensão para uma esfera, afetam as suas vidas, sem transfe-
positivo de normalização de con- supostamente divina, administrada rir para especialistas e instituições
dutas. A proliferação normativa de por pessoas devidamente prepara- misteriosas a solução dos mesmos.
nossas sociedades é uma técnica das, que são os sacerdotes. Agam- Profanar significa retirar do poder
através da qual a vida humana é, ben entende que o poder moderno sua aura de transcendência para
cada vez mais, normatizada capi- manteve o dispositivo da sacraliza- permitir que as pessoas consigam
larmente em seus comportamen- ção no seu âmago e o transfere para decidir sobre seus destinos. Para-
tos para ajustá-la aos requisitos a maioria das instituições que cria. doxalmente, Sócrates foi condena-
do sistema. Por isso, Agamben Com isso, as pessoas comuns não do à morte por profanar a lei divi-
entende que as novas formas de seriam competentes para lidar com na da polis, de igual forma Jesus
resistência aos dispositivos nor- o poder nem com as instituições do foi crucificado por profanar e lei
matizadores do controle social ha- poder. Para lidar com a complexida- e o templo. Para Agamben, a pro-
verão de criar novas formas-de-vi- de do poder moderno, seria neces- fanação seria uma prática política
da em que a norma e a lei derivem sário ser um técnico especializado que deve desconstruir de forma
da vida, e não ao contrário, como (novos sacerdotes). Assim, institui- efetiva as assinaturas transcen-
ocorre atualmente. ções como o mercado, o Estado, a lei dentes do poder.■

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A impossibilidade da promessa
ocidental de civilidade
Patrick Baur considera que o particular do pensamento de Agamben
é ter estudado o homo sacer não como efeito colateral do processo
civilizatório moderno, mas como resultado previsto
Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Luís Marcos Sander

A
o jogar seu olhar sobre o Ociden- “Neste sentido, tanto Agamben quanto
te moderno, a filosofia, a partir Benjamin estão convencidos da impos-
do Iluminismo, concentrou a sibilidade de salvação da modernidade
maior parte de seus esforços nos pos- – e, por conseguinte, também da polí-
síveis avanços da autonomia humana tica moderna”, analisa o entrevistado.
e sua potencial capacidade de mudar “Agamben vê os paradoxos e aporias
o curso da história. Agamben, no en- de uma ‘impossibilidade do Ocidente’,
tanto, encontrou nas sombras deixadas como eu gostaria de chamá-la, como
pela própria razão moderna a figura do motor da história. Seguindo Foucault,
homo sacer e sobre ela se debruçou. “A ele avalia a história como uma histó-
figura central de Agamben, o homo sa- ria do poder sobre pessoas, como uma
cer, não foi tratada na história da filoso- associação simplesmente inevitável de
fia antes. Neste sentido, vejo Agamben poder produtivo e destrutivo em que a
inequivocamente como o pensador me- promessa aos seres humanos corporifi-
cada pelo Ocidente parece se desmentir
19
nos ‘clássico’”, pontua Patrick Baur, em
entrevista por e-mail à IHU On-Line. sempre”, complementa.
O ponto central nesta perspectiva é Patrick Baur realizou graduação e
que Agamben, assim como Walter Ben- mestrado na Albert-Ludwigs-Universi-
jamin, são céticos quanto ao processo tät, na Alemanha, onde também é pes-
emancipatório prometido pela moder- quisador. Seus estudos e aulas são fo-
nidade e, em certo sentido, por aquilo cados, além de Agamben, em Heidegger,
que poderia ser chamado de “filosofia Hegel, Descartes, Benjamin e Adorno.
messiânica”, seja ela profana ou não. Confira a entrevista.

IHU On-Line – Que influência contro pessoal com ele em Le Thor, cault2, Walter Benjamin3 e Hannah
tem a obra de Heidegger sobre exerceu, indiscutivelmente, uma
a filosofia de Giorgio Agamben? grande influência sobre o pensamen- 2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês.
to de Agamben. Em uma entrevista Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
Patrick Baur – A obra de Hei- tória da sexualidade (a qual não pôde completar
do ano de 2001, Agamben inclusive devido a sua morte), situam-se dentro de uma
degger1, e certamente também o en- filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
declarou ser discípulo de Heidegger. palmente do tema do poder, rompendo com as
Entretanto, é preciso ser cauteloso concepções clássicas do termo. Em várias edições,
1 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). no caso dessas autointerpretações. cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
A problemática heideggeriana é ampliada em Agamben certamente não é um dis- http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
Que é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanis- disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364,
mo (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre cípulo dócil, e muito menos ortodo- de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, discurso racional em debate, disponível em https://
intitulada O século de Heidegger, disponível em xo, de Heidegger em todos os aspec- goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopo-
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, inti- tos; em suas posições concretas, ele lítico da vida humana, de 13-9-2010, disponível
tulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísi- em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolí-
ca, disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, segue mais fortemente a Michel Fou- tica, estado de exceção e vida nua. Um debate, dis-
ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, Mar- ponível em https://goo.gl/RX62qN. Confira ainda
tin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação,
pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12, e a disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Fou-
entrevista concedida por Ernildo Stein à edição crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a cault – Sua Contribuição para a Educação, a Políti-
328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dispo- questão da biopolítica, parte integrante do ciclo de ca e a Ética. (Nota da IHU On-Line)
nível em https://goo.gl/dn3AX1, intitulada O bio- estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI 3 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão.
logismo radical de Nietzsche não pode ser minimi- Simpósio Internacional IHU: O (des)governo bio- Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser
zado, na qual discute ideias de sua conferência A político da vida humana. (Nota da IHU On-Line) capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. As-

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TEMA DE CAPA

Arendt4. As passagens em que Agam- Permitam-me destacar, neste con- em Heidegger quanto em Agamben é
ben faz referência explícita a Hei- texto, um ponto determinado, mesmo a preferência dada à análise estrutural
degger – como, por exemplo, em O correndo o perigo de me expor à acu- sobre a norma ética, que também se
Aberto – mostram claramente que o sação de estar sendo arbitrário. Temos tornou característica de outros pen-
pensamento de Heidegger não se tor- aí, por exemplo, no caso de ambos os sadores no seguimento de Heidegger.
nou para ele um problema filosófico filósofos, o desejo decidido de subtrair Quem quer um outro pensamento
tanto quanto foi o caso, por exemplo, o próprio pensamento a qualquer for- que vise evitar uma história fatídica
de Jacques Derrida5 (basta pensar ma de classificação, seja ela histórica a rigor dificilmente poderá prescindir
ou comparativa – poder-se-ia até dizer de uma valoração; entretanto, nem
em De l’esprit). Embora a confronta-
que se trata de uma espécie de horror Heidegger nem Agamben chegam a
ção com a ontologia fundamental de
classificationis [horror à classifica- formular uma ética do pensamento
Heidegger esteja presente em muitos
ção]. O trabalho de Agamben não quer (ou a formular uma ética de modo ge-
textos de Agamben, eu diria que a in-
ser enquadrado em nenhuma tradição ral). O que predomina, em vez disso,
fluência decisiva de Heidegger sobre e em nenhuma corrente atual da filo- é uma análise da história em que a
Agamben não deve ser buscada aí, e sofia. O pensamento assume aqui a valoração ética só aparece, na maio-
tampouco no pensamento histórico- atitude intelectual de ser e dizer algo ria das vezes, de maneira implícita ou
-ontológico da fase “intermediária” radicalmente novo – ou, ao menos, de em tom de advertências dramáticas.
de Heidegger ou nos temas centrais procurar alcançar um ponto em que Ambos escrevem de modo morali-
de sua obra tardia (relação de mundo um pensamento genuinamente novo zante, mas sem uma moral explícita.
e coisa, ser humano e linguagem). Ela seja possibilitado. Estou pensando Tanto para Heidegger quanto para
reside, antes, naquilo que eu chama- aqui, por exemplo, na passagem no Agamben, a ética se desqualifica por
ria de fisionomia específica do pensa- primeiro volume de Homo Sacer em ser um modo de pensamento tradi-
mento heideggeriano. que Agamben exige um pensamento cional. Ambos os pensadores se recu-
completamente novo, um pensamen- sam a se submeter a essa disciplina (e
sociado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi to da irreferencialidade. E ele faz isso, a esse disciplinamento) porque, em
fortemente inspirado tanto por autores marxistas,
como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico aliás, em forma de alusão, sem deta- sua opinião, isso acarretaria uma ca-
Gershom Scholem. Conhecedor profundo da lín- lhar a característica metodológica do
gua e cultura francesas, traduziu para o alemão rência de radicalidade do pensamen-
20 importantes obras como Quadros parisienses, de pensamento exigido. Isso é um gesto to. Possivelmente a mais importante
Charles Baudelaire, e Em busca do tempo perdido,
de Marcel Proust. O seu trabalho, combinando que também era muito característico influência que Heidegger exerceu
ideias aparentemente antagônicas do idealismo da obra de Heidegger.
alemão, do materialismo dialético e do misticis- sobre Agamben e outros reside justa-
mo judaico, constitui um contributo original para
a teoria estética. Entre as suas obras mais conhe- Portanto, Agamben assume de Hei- mente na radicalidade com a qual ele
cidas, estão A obra de arte na era da sua reprodu- degger esse estilo de pensamento an- acentuou a urgência do pensamento
tibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de
história (1940) e a monumental e inacabada Paris, tirreformista, essa ânsia em certo sen- “totalmente outro”, do pensamento
capital do século XIX, enquanto A tarefa do tradu- in extremis.
tor constitui referência incontornável dos estudos tido romântica por um pensamento
literários. Sobre Benjamin, confira a entrevista radicalmente outro ou futuro. Neste
Walter Benjamin e o império do instante, con-
cedida pelo filósofo espanhol José Antonio Zamo- ponto ele está sob forte influência da
ra à IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.
ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line) visão heideggeriana da história, mas IHU On-Line – Em que aspectos
4 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e soció- sem assumir os detalhamentos con-
loga alemã, de origem judaica. Foi influenciada
Agamben se distancia da filoso-
por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em con- cretos dessa visão, como, por exem- fia de Heidegger, especialmente
sequência das perseguições nazistas, em 1941,
partiu para os Estados Unidos, onde escreveu plo, a ideia da história do ser. Ambos desde o projeto Homo sacer?
grande parte das suas obras. Lecionou nas prin- os pensadores veem a história pre-
cipais universidades dos EUA. Sua filosofia assen-
gressa como um contexto problemá- Patrick Baur – Se vocês permi-
ta em uma crítica à sociedade de massas e à sua
tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza
tico, que está tão fortemente deter- tirem, vou compreender o conceito
um regresso a uma concepção política separada
da esfera econômica, tendo como modelo de ins- minado por um princípio uniforme de distanciamento de maneira um
piração a antiga cidade grega. A edição 438 da pouco mais ampla e também men-
IHU On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014, que uma mudança decisiva ou até
disponível em http://bit.ly/ihuon438, abordou o salvação só pode, quando muito, ser cionar aspectos que não contêm ne-
trabalho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda
as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-2005, preparada por um pensamento radi- cessariamente um distanciamento
sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith intencional. Ocorre que não estou
Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, calmente transformado. Embora, em
disponível em http://bit.ly/ihuon168, e a edição termos de conteúdo, Heidegger defina inteiramente certo de até que ponto,
206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moder-
no é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906- esse contexto de modo bem diferente em todos os aspectos que gostaria de
1975, disponível em http://bit.ly/ihuon206. (Nota mencionar a seguir, baseiam-se em
da IHU On-Line) de Agamben, para ambos os filósofos
5 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, a história pregressa se efetiva em uma um distanciamento deliberado de
criador do método chamado desconstrução.
Seu trabalho é associado, com frequência, ao atmosfera de inelutabilidade iminen- Heidegger e até que medida eles não
pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre
te, de modo que, para eles, parece que se devem mais a outras influências.
as principais influências de Derrida encontram-
se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua só mudanças radicais no pensamento
extensa produção, figuram os livros Gramatologia Ser e homo sacer
(São Paulo: Perspectiva), A farmácia de Platão (São teriam alguma perspectiva de sucesso.
Paulo: Iluminuras), O animal que logo sou (São
Paulo: Unesp), Papel-máquina (São Paulo: Estação Outro exemplo dessa tendência do O que eu disse sobre o primeiro
Liberdade) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins
Fontes). (Nota da IHU On-Line) pensamento que se encontra tanto ponto já contém uma parte de mi-

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nha resposta: uma diferença decisi- ginalizadas no discurso tradicio- uma influência tão forte sobre
va reside no fato de Agamben não nal, Agamben deve, por um lado, Agamben porque certas premissas
retomar pormenorizadamente al- certamente à sua leitura de Ben- básicas na área da filosofia da his-
guns temas centrais em Heidegger, jamin. Mas ela também decorre tória são comuns a ambos os pen-
talvez com a exceção de algumas de um deslocamento do foco na sadores. Agamben compartilha
passagens da fase de Ser e tempo análise. Enquanto para Heidegger com Benjamin a suspeita geral em
ou também da crítica da técnica na (ao menos na fase intermediária e relação a uma história que, para
obra tardia de Heidegger. Mas tam- tardia) o decisivo se desenrola na os dois, sempre foi uma história
bém neste caso existem diferenças. história da filosofia, para Agamben de poder e de violência. Por isso,
Heidegger tentou vincular a proble- ele acontece justamente nos desdo- Agamben retoma a figura do mes-
matização da “essência da técnica bramentos que definem a estrutu- siânico, que, no pensamento de
moderna” à pergunta a respeito do ra da forma de vida humana como Benjamin, é concebida como uma
ser; portanto, ele a associou a uma uma práxis, diferentemente do bios
questão que sempre fez parte das figura de interrupção: a história
theoretikos favorecido pela filoso-
tarefas centrais do pensamento filo- não como um processo no tempo
fia clássica. Neste ponto, Agam-
sófico. Por outro lado, a figura cen- que visa a uma meta, e sim como
ben segue fortemente a Foucault,
tral de Agamben, o homo sacer, não um contínuo de violência, do qual
retomando sua concentração no
foi tratada na história da filosofia a humanidade precisa sair se qui-
poder e particularmente no biopo-
antes. Neste sentido, vejo Agamben der. Com isso, entra na análise de ser viver livre de poder e violência.
inequivocamente como o pensador Agamben um aspecto social que Por isso, o messiânico deve ser a
menos “clássico”. Heidegger foi, em não está presente em Heidegger. produção de um estado de exce-
grau muito maior, um “filósofo da Agamben pensa muito mais vigoro- ção duradouro (Agamben também
filosofia”. Essa me parece ser uma samente em função da sociedade, encontrou este conceito em Benja-
diferença bem essencial entre os em função de uma transformação min, mas fortemente modificado
dois estilos de pensamento. social – radical, porém. Entretan- pelas ideias de Carl Schmitt). Nes-
Uma outra diferença importante: to, esses dois pensadores tendem te sentido, tanto Agamben quanto
enquanto Heidegger só admite filo- a ver a história em relação a um Benjamin estão convencidos da
impossibilidade de salvação da
21
soficamente, além da filosofia e da “princípio” (num caso o ser e no
poesia, os gêneros igualmente clás- outro o Homo sacer). modernidade – e, por conseguin-
sicos da música, das artes plásticas te, também da política moderna.
e da pintura, Agamben inclui efe-
Ao mesmo tempo, Agamben com-
tivamente também meios não clás- IHU On-Line – Qual é a im- partilha com Benjamin uma atenção
sicos. O Aberto, por exemplo, co- portância de Walter Benjamin mais intensiva ao marginal na his-
meça com a interpretação de uma para o amadurecimento dos
ilustração judaica da visão de Eze- tória. Como Benjamin, ele atribui,
conceitos de Agamben referen-
quiel do século XIII. Ou pensemos muitas vezes, às fontes marginais e
tes ao emprego da violência e à
nas reflexões de Agamben sobre o incomuns mais força cognitiva do
política?
filme, que aparecem em Profana- que aos textos clássicos. Basta pen-
ções, entre outras obras. Heidegger Patrick Baur – Tanto quanto sar nos extensos estudos de fontes
sempre rejeitou o filme como gêne- me é dado ver, o pensamento de que ele empreendeu para sua inves-
ro, menosprezando-o, no marco de Benjamin foi de grande impor- tigação da forma de vida monástica
seu antiamericanismo, como uma tância neste tocante. Na pesquisa e das regras das ordens em Altíssi-
trivialização da arte, abstraindo se recorre repetidamente a dois ma pobreza. Heidegger estudou os
de poucas exceções como o filme impulsos que o pensamento de “grandes nomes” da história da fi-
Rashomon (1950), de Kurosawa. Agamben recebeu de Benjamin: losofia: Heráclito6 e Anaximandro7,
Para Agamben, o valor cognitivo de por um lado, o conceito de vida
gêneros artísticos como o filme é nua e, por outro, a figura do mes- 6 Heráclito de Éfeso (540-470 a.C.): filósofo pré-
socrático, considerado o pai da dialética. Proble-
muito maior. E em seu pensamento siânico. Sobre isso já se escreveu matiza a questão do devir (mudança). Recebeu a
também as ciências não filosóficas muito. Também considero justifi- alcunha de “Obscuro” principalmente em razão da
obra a ele atribuída por Diógenes Laércio, Sobre a
são menos marginais do que no de cado esse diagnóstico. Agamben Natureza, em estilo obscuro, próximo ao das sen-
tenças oraculares. Na vulgata filosófica, Heráclito
Heidegger – basta pensar nas aná- retomou essas reflexões e as trans- é o pensador do “tudo flui” (panta rei) e do fogo,
lises de Agamben sobre a história formou, ampliando especialmente que seria o elemento do qual deriva tudo o que
nos circunda. De seus escritos restaram poucos
do direito e do direito eclesiástico, a ideia da vida nua e a explicando fragmentos (encontrados em obras posteriores),
os quais geraram grande número de obras expli-
as regras das ordens (como em Al- por meio da distinção entre bios e cativas. (Nota da IHU On-Line)
tíssima pobreza) etc. zoe. Estes se tornaram temas cen- 7 Anaximandro (610-546 a.C.): foi um geógra-
fo, matemático, astrônomo, político e filósofo
trais de sua análise política. pré-Socrático; discípulo de Tales, seguiu a escola
Essa atenção mais intensiva às jônica. Os relatos doxográficos nos dão conta de
formas da arte e da cultura, que Esses aspectos no pensamen- que escreveu um livro intitulado “Sobre a Nature-
za”; contudo, essa obra se perdeu. (Nota da IHU
foram preponderantemente mar- to de Benjamin puderam exercer On-Line)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

Platão8 e Aristóteles9, Descartes10 e ben também recorre a eles, mas, avalia a história como uma história
Kant , Hegel e Nietzsche ; Agam-
11 12 13 assim como Walter Benjamin, ele do poder sobre pessoas, como uma
também extrai percepções dos au- associação simplesmente inevitável
8 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Cria- tores – e das formas de arte – que de poder produtivo e destrutivo em
dor de sistemas filosóficos influentes até hoje, foram marginalizados na tradição. que a promessa aos seres humanos
como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo
de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre Naturalmente, o entusiasmo com o corporificada pelo Ocidente parece
suas obras, destacam-se A República (São Paulo:
Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo: Martin que, inicialmente, parece estar situ- se desmentir sempre. Este aspecto
Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As não está no centro do pensamento
implicações éticas da cosmologia de Platão, con- ado na margem não se encontra ape-
cedida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 nas em Benjamin, pois na época ele de Heidegger, apesar de sua leitura
da revista IHU On-Line, de 04-09-2006, disponí-
vel em http://bit.ly/pteX8f. Leia, também, a edi- se encontrava, por assim dizer, no ar intensiva de Nietzsche. Para suas
ção 294 da Revista IHU On-Line, de 25-5-2009, análises do biopoder, Agamben re-
intitulada Platão. A totalidade em movimento, – vejam-se os trabalhos de Aby War-
disponível em http://bit.ly/2j0YCw8. (Nota da IHU burg14, sobre o qual Agamben tam- corre também a Heidegger, a quem
On-Line)
9 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filó- bém escreveu. Mas Benjamin deu à ele vê como um pensador da “des-
sofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões
filosóficas — por um lado, originais; por outro, re- interpretação do “pequeno” um ím- biologização” do corpo (como em
formuladoras da tradição grega — acabaram por peto todo especial, em contraposição O Aberto), mas suas análises vão
configurar um modo de pensar que se estenderia
por séculos. Prestou significativas contribuições a Warburg: ele a entendia como um muito além de Heidegger, enfocan-
para o pensamento humano, destacando-se nos
campos da ética, política, física, metafísica, lógica, passo para a redenção do margina- do a tecnicização do corpo de modo
psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e lizado. Agamben não chega a esse muito mais penetrante e detalhado
história natural. É considerado, por muitos, o filó-
sofo que mais influenciou o pensamento ociden- ponto, estando menos preocupado do que o fazem Heidegger, Benjamin
tal. (Nota da IHU On-Line)
10 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico com a justiça frente ao passado. Mas ou mesmo Adorno.
e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo
pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, ten- sua compreensão da política e da fi- O que é novo no pensamento de
do também sido famoso por ser o inventor do sis- losofia foi decisivamente influencia- Agamben, também diante do pano
tema de coordenadas cartesiano, que influenciou
o desenvolvimento do cálculo moderno. Descar- da por isso. de fundo das ideias de Foucault, é,
tes, por vezes chamado o fundador da filosofia e
da matemática modernas, inspirou os seus con- naturalmente, também a focaliza-
temporâneos e gerações de filósofos. Na opinião
de alguns comentadores, ele iniciou a formação ção na figura do Homo sacer; com a
daquilo a que hoje se chama de racionalismo con- IHU On-Line – O que é novo na transformação coerente desse con-
tinental (supostamente em oposição à escola que
22 predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), crítica de Agamben ao capitalis- ceito jurídico da Antiguidade em
posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa.
(Nota da IHU On-Line) mo e à sociedade de massas? uma concepção filosófica, ele tam-
11 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia-
no, considerado como o último grande filósofo Patrick Baur – Agamben vê os bém coloca, ao mesmo tempo, mais
dos princípios da era moderna, representante
paradoxos e aporias de uma “im- fortemente no centro a figura do
do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no
romantismo alemão e nas filosofias idealistas do refugiado, do campo e a destruição
século 19, as quais se tornaram um ponto de par- possibilidade do Ocidente”, como eu
tida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção em massa. Nova também é, contudo,
gostaria de chamá-la, como motor
entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou a ideia da inseparabilidade de inclu-
noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o da história. Seguindo Foucault, ele
que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não po- são e exclusão. Para isso, Agamben
deria, segundo Kant, ser objeto de conhecimento
científico, como até então pretendera a metafísica figuram como as mais importantes Assim falou utiliza uma figura do pensamento
clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, que, aliás, também se encontra em
dos fenômenos, e seria constituída pelas formas 1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A
a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pe- genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Heidegger e que chamo de “lógica
las categorias do entendimento. A IHU On-Line Escreveu até 1888, quando foi acometido por um
número 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria colapso nervoso que nunca o abandonou até o do anti”: a ideia de que a posição e
de capa à vida e à obra do pensador com o tí- dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema a posição contrária sempre estão
tulo Kant: razão, liberdade e ética, disponível em de capa da edição número 127 da IHU On-Line,
http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant, foi pu- de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do vinculadas ao mesmo tema e, em
blicado o Cadernos IHU em formação número martelo e do crepúsculo, disponível para down-
2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Ca- última análise, não vão além dessa
lógica e ética, que pode ser acessado em http:// dernos IHU em formação é intitulada O pensa- vinculação. Mas, apesar da influên-
bit.ly/ihuem02 . Confira, ainda, a edição 417 da mento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada
revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada A em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a en- cia de uma figura do pensamento de
autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, trevista concedida por Ernildo Stein à edição 328
disponível em https://goo.gl/SIII5H . (Nota da da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível Heidegger e da derivação da lógica e
IHU On-Line) em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo da teoria dos conjuntos, neste caso
12 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831): radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na
filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e San- qual discute ideias de sua conferência A crítica de Agamben consegue desenvolver um
to Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema fi- Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a ques-
losófico no qual estivessem integradas todas as tão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de ponto por conta própria.
contribuições de seus principais predecessores. Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do
Sobre Hegel, confira a edição 217 da IHU On-Li- XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
ne, de 30-4-2007, disponível em https://goo.gl/ biopolítico da vida humana. Na edição 330 da re-
m0FJnp, intitulada Fenomenologia do espírito, de vista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista
(1807-2007), em comemoração aos 200 anos de Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da IHU On-Line – Até que ponto
lançamento dessa obra. Veja ainda a edição 261, totalidade da existência, concedida pelo professor
de 9-6-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima. Oswaldo Giacoia e disponível em https://goo.gl/ os textos de Agamben oferecem
Um novo modo de ler Hegel, disponível em ht- zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a en-
tps://goo.gl/D94swr ; Hegel. A tradução da histó- trevista O amor fati como resposta à tirania do elementos para refletir sobre
ria pela razão, edição 430, disponível em https:// sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// os limites e as possibilidades
goo.gl/62UATd e Hegel. Lógica e Metafísica, edição bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)
482, disponível em https://goo.gl/lldAkv. (Nota da 14 Aby Warburg: alemão, famoso historiador da democracia da nossa época?
IHU On-Line) da arte do início do século XX, que, imbuído
13 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo ale- de um olhar antropológico, descobrira um vín- Que importância tem o diag-
mão, conhecido por seus conceitos além-do-ho- culo entre a cultura dos índios hopis do Novo nóstico do presente feito por
mem, transvaloração dos valores, niilismo, vonta- México e a civilização do Renascimento. (Nota
de de poder e eterno retorno. Entre suas obras, da IHU On-Line) Agamben?

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Patrick Baur – Vejo a grande devam ser buscadas na rejeição cris- novas configurações políticas
importância de Agamben principal- tã da lei (a halachá judaica). Embora levando em consideração a ca-
mente na vigilância com que ele con- Agamben também tenha se chamado, tegoria da profanação e da polí-
templa algumas tendências proble- na entrevista mencionada no início, tica que vem?
máticas do nosso tempo presente; na de discípulo de Hannah Arendt, ele
Patrick Baur – Com a ideia da
intensidade com que ele analisa, por assume, como Heidegger e Carl Sch-
profanação vocês abordam um tema
exemplo, a tendência para a criação mitt, exatamente a posição contrária
que tangencia, até certo ponto, a re-
de vácuos jurídicos ou o isolamento à percepção que Hannah Arendt tal-
de não cidadãos e especialmente de lação de Agamben com Benjamin,
vez tenha expressado do modo mais
refugiados. De momento, ele é o filó- ou em termos mais gerais: com filo-
incisivo em um texto sobre Franz Ka-
sofo que mais vigorosamente se ocu- sofias de orientação esquerdista. Na-
fka15: “A verdade humana nunca pode
pa com essas questões e as trata do turalmente faz parte das tradições de
residir na exceção, nem sequer na
modo mais crítico. Neste tocante ele uma análise de orientação esquer-
exceção do perseguido, mas naquilo
segue Hannah Arendt, cujo pensa- dista associar a crítica ao capitalis-
que é a regra ou deveria ser a regra.”
mento entrementes está passando por mo com a crítica à religião – Marx
Para Agamben, assim como para Hei-
um renascimento – talvez também analisa o caráter de fetiche da mer-
degger e Schmitt, a verdade se mostra
por Agamben recorrer às reflexões cadoria, e Benjamin o “capitalismo
sobretudo in extremis, na exceção, no
dela. Além disso, ele disponibiliza como religião”. O conceito de profa-
estado de exceção.
um marco conceitual que possibilita nação de Agamben transforma essa
empregar também concretamente a Esse antirreformismo, essa radica- crítica em um conceito que poderia,
vigilância acima mencionada na aná- lidade na problematização é muito eventualmente, possibilitar formas
lise de processos políticos e tecnoló- produtiva para o pensamento, mas de práxis que minam essa estrutura.
gicos. Isso se aplica particularmente também muito problemática em ter- É de se perguntar, porém, quão efi-
às questões do biopoder e das novas mos políticos e filosóficos. Por mais cazes podem ser essas novas formas
tecnologias do corpo e aos problemas que atualmente se possa desejar que e quão radicais elas acabarão sendo.
que se colocam para as democracias o pensamento filosófico abandone
No tocante à ideia da política que
do Ocidente por causa da migração e mais uma vez o status de um pensie-
vem e da comunidade que vem, no
de novas formas de exploração. ro debole [pensamento débil] (Vat-
caso de Agamben ela também resul-
23
timo), não se pode, por outro lado,
A importância de Agamben tam- ta da tentativa de repensar a relação
passar de novo para um radicalismo
bém reside no fato de ele enfatizar entre o individual e o geral. Essa é e
do pensamento, a uma ideia da força
tanto o primado da filosofia frente permanece uma tarefa decisiva da fi-
na filosofia. Creio que a filosofia deve
à política. Durante muito tempo, losofia atual. Quando Agamben des-
buscar o caminho do equilíbrio entre
estávamos acostumados com outra creve, em A comunidade que vem,
essas tendências. Esse caminho é, no
coisa. Mas justamente nisso creio a luta entre Estado e não Estado,
fundo, o mais difícil.
também ver dificuldades que uma a “partição insuperável em singu-
avaliação de seu pensamento não laridades quaisquer e organização
deveria omitir. Por um lado, vejo a
radicalidade de seu pensamento, da “Agamben vê estatal”, é exatamente essa questão
que está em pauta, em minha opi-
qual já falei, como uma grande opor-
tunidade. Ela nos lembra que a críti-
os paradoxos e nião. Nela ou através dela se abre
possivelmente um espaço para o que
ca da sociedade não pode dar certo
sem uma dimensão fundamental, e
aporias de uma vocês chamaram de novas configu-
rações políticas. O ponto decisivo é,
pergunta constantemente até que
ponto os problemas mencionados
‘impossibilidade neste sentido, que Agamben tenta
pensar uma comunidade – e uma
não estão ancorados na constituição
básica de nossa sociedade, de nossas
do Ocidente’” política que poderia torná-la possí-
vel – em que não haja mais quais-
formas de Estado e de nossas nor- quer critérios para a exclusão, nem
mas jurídicas. condições para a pertença. Embora
Por outro lado, essa radicalidade essa tentativa certamente remonte
em si de modo algum deixa de ser IHU On-Line – Por outro lado, à problematização da figura do refu-
problemática. Agamben compartilha como a filosofia de Agamben giado por parte de Hannah Arendt,
com Heidegger, com Foucault e, em estimula uma abertura para Agamben de fato deu um estímulo
certo sentido, também com Carl Sch- decisivo através da incisividade ra-
mitt uma animosidade de princípio 15 Franz Kafka (1883-1924): escritor tcheco, de dical que atribui a ela.
língua alemã. De suas obras, destacamos: A me-
contra a norma, contra a lei, contra tamorfose (1916), que narra o caso de um homem
que acorda transformado num gigantesco inseto,
o direito, contra as formas de uma e O processo (1925), cujo enredo conta a história
existência cotidiana regrada – uma de um certo Josef K., julgado e condenado por IHU On-Line – Qual é a impor-
um crime que ele mesmo ignora. (Nota da IHU
postura cujas raízes históricas talvez On-Line) tância da filosofia de Agamben

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

na Alemanha? Que recepção a ideia de um filosofar forte, de um felizmente preciso dizer que o que li
ele teve no país? primado da filosofia sobre a políti- nelas não me satisfaz.
ca. Em O que resta de Auschwitz,
Patrick Baur – Na Alemanha,
a filosofia é chamada de um pen-
Agamben é tido hoje em dia como
samento que vê o mundo na pers-
um dos mais importantes filósofos
da atualidade, mas também sofre
pectiva da situação extrema e, com
isso, quase já assume uma posição
Ele [Agamben]
uma recepção efetivamente crítica.
Mas fiquemos no primeiro ponto
divina. De fato existe atualmente,
após as desmontagens pós-moder-
avalia a história
por enquanto. Minha impressão é
que a recepção de Agamben ocorre
nas do pensamento filosófico, uma
grande necessidade de tal valoriza-
como uma his-
principalmente nas partes da ciên-
cia social e política que têm abertura
ção da filosofia. A série Homo sacer
se oferece aí como um novo gran-
tória do poder
para a teorização e depois também
na periferia da filosofia acadêmica.
de récit in statu nascendi [grande sobre pessoas
relato em formação], mesmo que
Ele reocupou aí a posição do “mestre metodologicamente faça emprésti-
pensador” porque conseguiu satisfa- mos em alguns procedimentos de
zer diversas necessidades que foram desconstrução. Aliás, neste caso
ignoradas pela filosofia acadêmica. Agamben também utiliza bem de- IHU On-Line – Gostaria de
A filosofia acadêmica está, hoje em liberadamente o princípio da sé- acrescentar algum aspecto não
dia, altamente profissionalizada e rie, do romance em série. Esse foi, questionado?
cientificizada; por um lado, predo- do ponto de vista da estratégia de
Patrick Baur – Sim, gostaria de
minam pesquisas sobre a história recepção, um estratagema muito
aproveitar a oportunidade para fa-
da filosofia e, por outro, existe uma bem-sucedido.
zer referência a um aspecto que até
influência forte da filosofia analí- Naturalmente, esses também são agora foi omitido no pensamento
tica. Entre algumas pessoas, isso os pontos pelos quais Agamben de Agamben e também na pesquisa
causou a impressão de que ela não foi criticado. Suas teses sobre Aus-
24 sobre ele. Parece-me que Agamben
está mais se expondo às “grandes chwitz, entretanto, foram discutidas praticamente não distingue a tradi-
questões”. Nessa situação, um livro com especial veemência. Por nature- ção cristã da judaica. Para ele, isso
como Homo sacer conseguiu, com za, a opinião pública alemã reage a constitui, em última análise, uma
suas teses enfáticas, sua crítica ra- esse tema de modo muito sensível, linha comum. Mas estou convicto
dical, seu tom moralizante, seu es- por razões históricas, e o faz com de que no futuro a filosofia se de-
tilo de ensaio e sua formulação eru- toda a razão. Algumas pessoas cri-
frontará de modo mais acentuado
dita, preencher, de certa maneira, ticaram incisivamente as teses de
com a questão das diferenças entre
uma lacuna. Acrescenta-se a isso Agamben sobre o campo [de concen-
essas linhas. Para isso aponta, de
o fato de que Agamben reabilitou tração] como nomos da modernida-
resto, também o número crescente
dois gêneros importantes que ti- de, como tentativa de desfazer – de
nham perdido destaque na pesqui- de trabalhos sobre esse tema prove-
uma maneira semelhante às obser-
sa recente, mas dos quais continua vações de Heidegger nas palestras de nientes da área dos Jewish Studies
havendo uma necessidade pública: Bremen – a singularidade da aniqui- [estudos sobre o judaísmo]. Então
a história política do direito e a te- lação dos judeus europeus. Também poderia se mostrar que alguns dos
oria política. Petra Gehring16 já ob- a tendência de Agamben de borrar problemas que Agamben critica
servou isso com razão. mediante o pensamento a diferença com razão não devem ser atribuídos
entre democracia e totalitarismo, tanto à tradição judaica; e até que,
Mas talvez uma outra circunstân- eventualmente, as coisas teriam to-
assim como seu antiamericanismo,
cia seja a mais importante para o mado outro rumo se o pensamen-
foram frequente objeto de críticas.
sucesso de Agamben: ele defende to europeu tivesse se aberto mais
O próprio Agamben se posicionou
quanto a isso em diversas ocasiões, acentuadamente à tradição judaica
16 Petra Gehring (1961): é uma professora alemã
de filosofia. (Nota da IHU On-Line) principalmente em entrevistas. In- do que efetivamente o fez. ■

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Uma esfera pública em decomposição


e dominada por sentimentos
Para Ingeborg Villinger, Agamben e Arendt convergem em seu
diagnóstico sobre o esfacelamento da natureza pública da
democracia parlamentar em tempos de animal laborans
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Walter O. Schlupp

C
rucial na filosofia política de autocráticas.
Giorgio Agamben, o conceito de Para Villinger, Agamben está postado
estado de exceção aponta para sobre os “ombros” de Arendt e Fou-
a compreensão de fenômenos da polí- cault: “Seus trabalhos levantam o véu
tica moderna, como o campo enquan- da indistinguibilidade entre poder e di-
to paradigma. Em convergência com reito e permitem que não só o olhar his-
as ideias de Hannah Arendt, Agamben tórico, mas também o nosso tempo pre-
afirma que, em uma esfera pública na sente cheguem ao conhecimento dessa
qual imperam os sentimentos, “prati- indistinguibilidade. Por isso sua filoso-
camente não é mais possível distinguir fia política, como praticamente nenhu-
entre tecnologias subjetivas e técnicas ma outra, se presta para descrever o
políticas. Os diagnósticos dos dois filó- estado de politização da vida nua e crua
sofos aqui apresentam clara semelhan- entre o poder jurídico-institucional e o
ça: a decomposição da natureza pública 25
poder biopolítico e, assim, descrever a
da democracia parlamentar na era do relação entre exceção e regras”.
animal laborans orientado exclusi-
vamente para a vida nua e crua leva à Ingeborg Villinger é cientista po-
despolitização e à retirada para o priva- lítica graduada pela Universidade de
do”. A afirmação é da cientista política Freiburg, onde cursou mestrado com
alemã Ingeborg Villinger na entrevista a temática Politische Fiktionen. Zur
concedida por e-mail à IHU On-Line. Funktionalität der literarischen Versu-
Como resultado da preponderância da che Carl Schmitts (siehe Literaturliste).
vida natural em vez da ação política, Professora emérita do Departamento
conforme reflete Arendt, ocorre a per- de Ciência Política dessa universidade
da da liberdade e da ação política, e os na cátedra de Teoria Comparativa de
cidadãos derivam para a pólis, podendo Governo.
estimular o surgimento de lideranças Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir do uma exceção à regra, portanto de ser política de Agamben, mas constitui
projeto Homo sacer, qual a um sintoma passageiro de crise, se autêntico paradigma. Isto porque so-
importância e o significado do alterou e que entrementes a exceção, mente a partir desse paradigma po-
conceito de estado de exceção ela própria se transformou em regra. dem ser adequadamente entendidos
em Agamben? Agamben ressalta que isso revela os fenômenos da política moderna e
uma “solidariedade íntima” (sempre o segundo paradigma estreitamente
Ingeborg Villinger – Por “esta-
já existente) entre sistemas demo- ligado a ele, que é o “campo”.
do de exceção”, Agamben designa
o atual modo da política moderna. cráticos e totalitários. Nesse sentido, O que quer dizer “estado de exce-
Com isso ele quer dizer primeira- o conceito de “estado de exceção” ção como paradigma de governo”?
mente que a concepção até agora não somente é de eminente impor- Agamben salienta que “a definição
vigente de estado de exceção, de ser tância e centralidade para a filosofia do conceito ‘estado de exceção’ é

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

difícil, por se tratar de um conceito (da pessoa humana) e linguagem vel, ela perde sua existência – Han-
limítrofe da teoria do Estado e do di- (do cidadão). Somente sobre o pano nah Arendt chamaria essa vida de
reito. Ele fica na “esfera mais exter- de fundo dessa distinção é que fica vida de um “Muselmann”4, de uma
na entre direito e política”, portanto nítida a estrutura do estado de ex- pessoa privada da sua dignidade. Ao
numa zona cinzenta entre legalidade ceção declarado por Agamben: nes- apontar para a vida não sacrificável,
e legitimidade (Carl Schmitt1), entre sa situação, a vida nua e crua do ser Agamben recorre ao conceito de “sa-
o jurídico e o político, entre direito e humano (zoé) é excluída da ordem crifício” como ato visível, cultual, em
natureza. Estado de exceção se asse- estatal de direito (legalidade) e ao todos os casos público, no qual o “sa-
melha e pode ser comparado a, por mesmo tempo capturada pela força grado e o poder” (René Girard5), ou
exemplo, uma guerra civil, uma re- do direito (Derrida3) e enclausurada seja, legitimidade e poder dispõem
belião, uma revolta ou uma resistên- em seu poder. Essa exclusão e inclu- de modo visível sobre morte ou ex-
cia à autoridade do Estado. Porém, são são a via pela qual a vida nua e pulsão do outro, da pessoa estranha
diferentemente dessas situações de crua é exposta numa zona cinzenta heterogênea que perturba sua uni-
crise, aquela descrita por Agamben do poder de disposição estatal, sem dade. Isto simboliza o final de uma
não se refere a uma forma passagei- que se possa distinguir entre direito crise na comunidade, assegura sua
ra do  exercício de poder, mas  à sua e poder. Nessa zona cinzenta, a nua coesão e encerra o estado de exce-
forma moderna. Ela supõe estado de e crua “vida do cidadão” está em ção. Semelhante forma de sacrifício
exceção ou de exceção permanente. jogo para Agamben, porque, com a integra a forma de ordenamento de
Nesse estado, a autoridade governa- exclusão do mais simultâneo enclau- sociedades tradicionais religiosas;
mental atua no oculto reino inter- suramento, ela passa a ser um corpo em contraste, as técnicas políticas
mediário entre direito público e ati- biopolítico, isto é, objeto do poder, do poder governamental moderno
vidade política, portanto numa zona sem voz e sem língua. Esse corpo de operam na zona cinzenta invisível
cinzenta invisível. Aí a invisibilidade “vida nua e crua” na verdade sempre do direito público e do poder, e aí a
desse modus operandi do poder go- já foi o ponto de partida do poder so- vida humana, tanto nas democracias
vernamental resulta não de oculta- berano, que com ele sempre operava quanto nas ditaduras, somente pode
mento explícito, mas da máscara da no caso de exceção; na atualidade, ser morta, não mais sacrificada.
normalidade cotidiana. entretanto, a zoé anteriormente des-
26 Exemplos significativos nos quais
O que acontece nesse reino inter- centrada e residente nas margens do código e modelo do poder não
mediário, no qual a dupla conceitu- poder (o qual somente a capturava são mais o direito, mas o poder/
al direito e poder (Carl Schmitt) se em caso extremo) passou cada vez
autoridade [Gewalt] do estado
funde de tal maneira que parecem mais para o centro da pólis, onde ela
de exceção (para matar também
indistinguíveis e entrementes tam- entrementes passou a ser a aplicação
fisicamente) são o nazismo e o
bém indissolúveis? Agamben dis- do poder por excelência.
fascismo. Para Agamben, outro
tingue de modo bem fundamental, Com essa orientação para a vida degrau é marcado pela guerra
no tocante à vida humana e à pó- humana por parte da política de po- contra o terror declarada por Bush6
lis, entre zoé e bios, ou seja, entre der, forma-se o corpo do homo sacer,
a vida nua e crua e a existência po- que é a vida suscetível de ser morta 4 Muselmann (pl. Muselmänner, muçulmano em
lítica, entre ser vivo e o cidadão da alemão) era um termo pejorativo usado entre
impunemente, porém não de ser sa- os cativos dos campos de concentração nazistas
pólis (Hannah Arendt2), entre voz crificada, porque na era dos direitos da Segunda Guerra Mundial para se referirem
a pessoas que sofriam de uma combinação de
humanos e civis a vida é “sagrada”. emagrecimento pela fome (também conhecida
1 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo políti- como “doença da fome “) e esgotamento, prestes
co e professor universitário alemão. É considerado É preciso acrescentar que com “sus- a morrerem. Os prisioneiros Muselmänner demos-
um dos mais significativos e controversos espe- cetível de ser morta” Agamben não travam emaciação e fraqueza física, apatia sobre
cialistas em direito constitucional e internacional seu próprio destino e uma falta de resposta ao
da Alemanha do século 20. A sua carreira foi man- se refere forçosamente à morte fí- seu ambiente. Fonte: https://es.wikipedia.org/
chada pela sua proximidade com o regime nacio- wiki/Muselmann, acesso em 17-2-2017. (Nota do
nal-socialista. O seu pensamento era firmemente sica do ser humano, mas já à perda tradutor)
enraizado na teologia católica, tendo girado em de voz. Se ela passa a ser inaudível, 5 René Girard (1923-2015): filósofo e antropó-
torno das questões do poder, da violência, bem logo francês. Partiu para os Estados Unidos para
como da materialização dos direitos. (Nota da a vida humana desaparece no invisí- dar aulas de francês. De suas obras, destaca-se
IHU On-Line) La Violence et le Sacré (A violência e o sagrado),
2 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e soció- Des Choses Cachées depuis la Fondation du Monde
loga alemã, de origem judaica. Foi influenciada 2006, intitulada O mundo moderno é o mundo sem (Das coisas escondidas desde a fundação do mun-
por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em conse- política. Hannah Arendt 1906-1975, disponível em do), Le Bouc Émissaire (O Bode expiatório). Todos
quência das perseguições nazistas, em 1941, par- https://goo.gl/uNWy8u. (Nota da IHU On-Line) esses livros foram publicados pela Editora Ber-
tiu para os Estados Unidos, onde escreveu gran- 3 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo francês, nard Grasset, de Paris. Ganhou o Grande Prêmio
de parte das suas obras. Lecionou nas principais criador do método chamado desconstrução. de Filosofia da Academia Francesa, em 1996, e
universidades deste país. Sua filosofia assenta em Seu trabalho é associado, com frequência, ao o Prêmio Médicis, em 1990. O seu livro mais co-
uma crítica à sociedade de massas e à sua ten- pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre nhecido em português é A violência e o sagrado
dência para atomizar os indivíduos. Preconiza um as principais influências de Derrida encontram- (São Paulo: Perspectiva). Sobre o tema desejo e
regresso a uma concepção política separada da se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua violência, confira a edição 298 da revista IHU On
esfera econômica, tendo como modelo de inspi- extensa produção, figuram os livros Gramatologia -Line, de 22-6-2009, disponível em https://goo.
ração a antiga cidade grega. A edição 438 da IHU (São Paulo: Perspectiva), A farmácia de Platão (São gl/KaiUzI. Leia, também, a edição especial 393 da
On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014, dis- Paulo: Iluminuras), O animal que logo sou (São IHU On-Line, de 21-5-2012, sobre o pensamento
ponível em https://goo.gl/QqtQjz, abordou o tra- Paulo: Unesp), Papel-máquina (São Paulo: Estação de Girard, intitulada O bode expiatório, o desejo e
balho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda as Liberdade) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins a violência, disponível em https://goo.gl/UiW4TW.
edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005, sob Fontes). É dedicada a Derrida a editoria Memó- (Nota da IHU On-Line)
o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith Stein. ria, da IHU On-Line nº 119, de 18-10-2004, dis- 6 George W. Bush (1946): foi o 43º presidente
Três mulheres que marcaram o século XX, dispo- ponível em http://bit.ly/ihuon119. (Nota da IHU dos Estados Unidos, sucedendo Bill Clinton em
nível em http://bit.ly/ihuon168, e 206, de 27-11- On-Line) 2001. Em 2009, foi sucedido por Barack Obama.

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nos Estados unidos, o qual instalou encontra para além da ordem jurídi- campo com base em Arendt e
o estado de exceção permanente. ca normal, mas é parte dela. Em con- Agamben: como “laboratório
Resultado disso foi, entre outros, traste, a “constelação jurídica sob a totalitário” ou como “paradig-
o campo de Guantánamo7, onde qual se encontra o campo é o direito ma da modernidade”?
a vida nua e crua alcançou sua de guerra e o estado de sítio”, razão
Ingeborg Villinger – Hannah
indeterminação suprema. pela qual o espaço de exceção do
Arendt descreve o campo como “la-
campo é topologicamente muito di-
boratório totalitário” de sistemas
ferente do mero espaço de detenção.
totalitários de poder; Agamben, em
IHU On-Line – Como pode- Essa conexão é evidente nos campos
contraste, muda de perspectiva, com
mos entender adequadamente de concentração dos nacional-so-
o que ele consegue avançar um pas-
a formulação desse filósofo so- cialistas, cujo fundamento legal de
so decisivo e mostrar o campo como
bre o campo como paradigma internação não é o direito comum,
mas a assim chamada “detenção de fenômeno muito mais abrangente, a
da modernidade? saber, como nómos e “paradigma da
tutela”8. Instituído no Decreto para
Ingeborg Villinger – Agam- Defesa da Nação e do Estado [Ve- modernidade”. Isto permite descre-
ben atribui à esfera mais externa/ rordnung zum Schutz von Volk und ver os campos como espaços excep-
extrema [äußersten], na qual o po- Staat], criou-se conscientemente cionais de exercício biopolítico do
der governamental opera em estado o estado de exceção para se poder poder tanto em sistemas totalitários
de exceção, uma dimensão espacial implementar a política nacional- quanto nos democráticos. Hannah
muito importante: o campo. É o lu- -socialista: aboliram-se os direitos Arendt, em sua análise “Elementos
gar onde, na modernidade, se realiza humanos e civis para se poder in- e origens da dominação total. Antis-
o exercício biopolítico do poder so- ternar e matar judeus, comunistas, semitismo, imperialismo, domina-
bre a vida nua e crua, localizando o homossexuais, ciganos, deficientes ção total” [Elemente und Ursprünge
que no estado de exceção não pode etc. Nesses campos, o direito estava totaler Herrschaft. Antisemitismus,
ser localizado. Ao atribuir estado de totalmente abolido, direito e fato es- Imperialismus, totale Herrschaft],
exceção ao espaço do campo, Agam- tavam totalmente misturados – rei- publicada em 1951 em Nova York,
ben tira a máscara de normalidade nava o princípio de que “tudo é pos- pensava exclusivamente naqueles
do exercício biopolítico do poder sível” (Hannah Arendt). campos que a marcaram em anos 27
e de sua técnica de exclusão e en- dramáticos da sua própria vida e do
clausuramento, para dar-lhe literal É flagrante que, desde a virada do seu trabalho intelectual. Sua análise
visibilidade como tópos da moder- milênio, também nos países demo- do totalitarismo, de mais de mil pá-
nidade. Isto, porque o conceito de cráticos ocidentais a percepção do ginas, concentra-se essencialmen-
“campo” veicula de modo bem dire- perigo do terrorismo gerou alterações te no século das ideologias e vai do
to que ali está em jogo a “vida nua e essenciais na relação entre direito e período do Estado Nacional em me-
crua”: os excluídos e enclausurados poder. Cada vez mais a segurança pú- ados do século 19 até o final do sis-
nesse espaço não só não têm uma blica ganha preferência em relação ao tema nazista em 1945. Ela abrange
linguagem (política), mas tampouco conceito de liberdade, e em seu nome o antissemitismo (a partir do caso
uma voz audível, além de poderem os direitos civis e humanos podem Dreyfus9), imperialismo e racismo
ser mortos também fisicamente por ser restritos, embora não abolidos. até a dominação total sem classes,
estarem totalmente sujeitados nes- Esse procedimento tem sido cada vez do nazismo, fascismo e stalinismo.
sa zona de indefinição do poder go- mais adotado já na mera suposição Ali se percebe uma conexão entre
vernamental, e destituídos de uma de possível risco, o que torna possí- “ideologia e terror” como nova for-
opção própria para agir. Por isso o vel uma detenção por tempo indeter- ma de poder estatal a se realizar no
campo marca o espaço absoluto de minado, mesmo sem acusação. Para espaço do campo. A visão de Arendt
exceção do estado de exceção. Agamben, essa evolução observável se estende dos guetos nas cidades,
no mundo inteiro caracteriza o cam- passando pela Ilha do Diabo e pelos
Agamben lembra explicitamente po como o outro paradigma da polí-
que o campo não é a penitenciária, campos de concentração nazistas até
tica moderna, no qual se concretiza o o Arquipélago Gulag stalinista. Esses
porque o direito penitenciário não se nómos da modernidade.
campos têm em comum o fato de te-
Foi governador do Texas entre 1995 e 2000. (Nota
da IHU On-Line) 9 Caso Dreyfus (em francês: Affaire Dreyfus):
7 Guantánamo: capital da província de Guantá- IHU On-Line – Como pode- foi um escândalo político que dividiu a França
namo, situada no sudeste de Cuba. A 15 quilôme- por muitos anos, durante o final do século XIX.
tros da cidade, foi implantada uma base naval dos mos analisar a imagem do Centrava-se na condenação por alta traição de
Estados Unidos. No interior desta base se encon- Alfred Dreyfus em 1894, um oficial de artilharia
tra a prisão de Guantánamo, medindo 117,6 km². do exército francês, de origem judaica. O acusado
Desde janeiro de 2002, estão encarcerados nesta 8 Ou custódia protetora, instituída e desenvolvi- sofreu um processo fraudulento conduzido a por-
base prisioneiros afegãos e iraquianos acusados da na Alemanha a partir de 1916 com o objeti- tas fechadas. Dreyfus era, em verdade, inocente:
de ligação com os grupos Taleban e Al-Qaeda, em vo de tirar de circulação pessoas do desagrado a condenação baseava-se em documentos falsos.
uma área excluída do controle internacional, con- das autoridades. Exemplo: Rosa Luxemburg. Não Quando os oficiais de alta patente franceses per-
cernando as condições de detenção de seus pri- deve ser confundida com prisão preventiva nem ceberam isto, tentaram ocultar o erro judicial. A
sioneiros. Segundo a Cruz Vermelha internacional, custódia preventiva. Fonte: https://de.wikipedia. farsa foi acobertada por uma onda de nacionalis-
esses prisioneiros seriam vítimas de tortura. (Nota org/wiki/Schutzhaft, acesso em 18 de fevereiro de mo e xenofobia que invadiu a Europa no final do
da IHU On-Line) 2017. (Nota do tradutor) século XIX. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

rem sido possibilitados pelo declínio a morte assim se torna totalmente flexão de Agamben sobre bio-
do espaço público e de uma esfera anônima. Essa anonimidade tira o política representa importante
pública esquecida da história e ide- sentido do morrer, “o qual sempre esforço visando entender nossa
ologicamente manipulada. havia sido possível. A destruição da época de um modo como Aren-
individualidade começa pelas con- dt não o fez?
Arendt descreve os campos das
dições indignas nos transportes, no
formas totalitárias de dominação, Ingeborg Villinger – Há vários
raspar a cabeça e na grotesca ves-
principalmente o campo de concen- motivos para Hannah Arendt não in-
timenta dos detentos; ela continua
tração, como laboratório para “ex- ter-relacionar nem reconhecer como
nas torturas sem qualquer “objetivo
perimentação da dominabilidade área da biopolítica as suas análises
racional determinado”, “sucedidas
total do ser humano”. Isto porque do campo totalitário, do declínio da
pela destruição absolutamente fria,
ali são apagadas a individualidade, esfera pública e da dominância do
pluralidade e espontaneidade da absolutamente calculada e sistemá-
animal laborans (em A condição
pessoa, para poder integrá-la no tica dos corpos humanos para fins
humana, 1958), com o qual a zoé
corpo da nação ou eliminá-la sem de destruição da dignidade huma-
passa a ocupar cada vez mais o cená-
deixar memória. Para tanto, é ne- na”. Sem qualquer identidade legal
rio da pólis. Agamben conjetura que,
cessário o campo, porque ali (tam- e moral, as pessoas internadas no
no âmbito da vida biológica, o pen-
bém em termos de organização) o campo eram privadas de qualquer
samento teve que enfrentar dificul-
“estar vivo da pessoa humana” pode ponto de apoio e orientação da iden-
dades e resistências peculiares. Com
ser reduzido a um mínimo, uma vez tidade individual no mundo interior
certeza, também a tradição de pes-
que a “preparação de cadáveres vi- tanto quanto exterior. As pessoas
quisa influiu bastante ao se evitar o
vos” (“Muselmann”), que precede ficavam totalmente abandonadas e
tratamento da vida, para se concen-
a “fabricação em massa de cadáve- entregues à arbitrariedade e ausên- trar mais sobre sistemas de pensa-
res”, não se podia realizar sob con- cia de sentido, totalmente reduzidas, mento (ideologias) e sistemas de go-
dições normais, fora de um campo. enquanto seres vivos, à sua vida bio- verno, e não sobre análises do poder
A caminho e dentro do campo as lógica. Uma vez chegadas a esse ní- percebido como “amorfo”. Apesar da
pessoas são expostas a um processo vel de Muselmann, elas podiam ser observação de Max Weber11, de que
28 de desindividualização em três pas- usadas “finalmente para provar [...] poder é determinado por “ideologias
sos: mata-se a pessoa jurídica, des- que pessoas, em princípio, são su- e interesses”, esse campo de pesqui-
trói-se a pessoa moral e extingue-se pérfluas” (Arendt). sa apenas lentamente entrou no dis-
a diferenciação individual. curso das ciências humanas após os
trabalhos de Foucault12, porém esse
A morte da pessoa jurídica ocor-
re sob a chamada “Schutzhaft” “A última elei- discurso ainda ficou longamente
(demais) marcado por um pensa-
[detenção de tutela10] e destina-
-se principalmente àquelas pesso- ção presiden- mento puramente disciplinar. No
as que já perderam sua capacida-
de genuinamente política de agir,
cial americana pós-guerra de regimes totalitários,

(Trump) ofere-
11 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão,
razão pela qual elas “apenas ainda considerado um dos fundadores da Sociologia.
Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de
existem [sind] – judeus, portadores
ce eloquente
Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das
de bacilos, expoentes de classes em suas mais conhecidas e importantes obras. Cem
anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua
extinção”, pessoas “refugiadas [hei- 101ª edição, de 17-5-2004, intitulada Max Weber.
matlos], apátridas, destituídas de di- exemplo de A ética protestante e o espírito do capitalismo 100
anos depois, disponível em http://bit.ly/ihuon101.
Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cadernos
reitos, economicamente supérfluas e
socialmente indesejadas”. Trata-se disseminação IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max
Weber – o espírito do capitalismo disponível em
http://bit.ly/ihuem03. (Nota da IHU On-Line)

de um mun-
também de criminosos que “sem- 12 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês.
pre eram entregues apenas após te- Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
tória da sexualidade (a qual não pôde completar
rem cumprido sua pena”, quando “a
justiça acabava de restituir o direito do sentido” devido a sua morte), situam-se dentro de uma
filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
palmente do tema do poder, rompendo com as
à liberdade”. A “grotesca arbitrarie- concepções clássicas do termo. Em várias edições,
IHU On-Line – Agamben cons- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
dade” da seleção dos internados no cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
campo mostra não haver relação al- tata que Arendt não fez uma li- http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364,
guma entre infração da lei e punição. gação entre aquilo que ela pen- de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
sara em A condição humana e discurso racional em debate, disponível em ht-
A trucidação da pessoa moral ocorre tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo
via campo como “sistema de esque- nas análises anteriores sobre o biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis-
ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344,
cimento”, o que impede “diretamen- poder totalitário. Nessas análi- Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de-
bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con-
te o luto e a lembrança”, uma vez que ses, Arendt não leva em consi- fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em
deração qualquer perspectiva formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13,
Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa-
10 Cf. nota 8. biopolítica. Até que ponto a re- ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line)

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até ali voltados unidimensional e Ela solapa a separação entre privado exclusivamente para a vida nua e
preponderantemente para a destrui- e público, que é central para a políti- crua leva à despolitização e à retira-
ção, e com a duração ([ainda] dema- ca democrática, e o solo comum da da para o privado, em suma: para a
siadamente) curta das democracias, política. Uma consequência é a per- “primazia da vida natural em detri-
faltava a Hannah Arendt a opção de da de realidade e de confiança, ou- mento da ação política” (HS 13). A
poder observar aquilo que Foucault tra, a intensidade de sentimento em consequência é a perda de liberdade
chama de double bind político: a si- vez de razão no espaço público-po- e ação políticas, uma vez que essa
multaneidade de técnicas subjetivas lítico. Intensidade na área política, retirada apaga “o último vestígio de
da individualização e dos procedi- entretanto, é uma categoria que se ação política na ‘atuação humana’”
mentos objetivos da totalização. presta não só para produzir inimigos (Arendt). Assim o parlamento corre
imaginários e cenários ameaçadores, o risco de perder o ancoramento dos
Entretanto Agamben está postado, cidadãos na pólis; o vácuo que surge
mas também o “caso de ameaça real”
senão sobre os “ombros”, sobre o oferece grande estímulo para lide-
[“Ernstfall”] (Carl Schmitt), a situa-
pano de fundo analítico de Hannah ranças autocráticas.
ção de exceção.
Arendt e Michel Foucault, podendo
levar em consideração uma duração É fácil observar o que constata
mais longa de democracias moder- Agamben: que “ante os fenômenos
nas com expressiva biopolítica pro-
dutiva. Com essas premissas e com
do espetaculoso poderio da mídia”,
esse processo de intensidade refor-
“Cada vez mais
sua sistemática troca de perspectiva,
ele consegue realizar uma análise
çado pelo sentimento é dramatica-
mente acelerado com auxílio do gi-
a segurança
do poder biopolítico, cujas técnicas
somente serão reconhecíveis para
gantesco poder da mídia (imagética,
TV e internet). A última eleição presi-
pública ga-
além de ideologias e sistemas. Seus dencial americana (Trump13) oferece nha preferên-
trabalhos levantam o véu da indis-
cia em relação
eloquente exemplo de disseminação
tinguibilidade entre poder e direito de um mundo sentido (sentimentos

ao conceito
e permitem que não só o olhar his- como ódio, fúria, ameaça, medo,
tórico, mas também o nosso tempo insegurança, exclusão, rejeição do 29
presente cheguem ao conhecimento
dessa indistinguibilidade. Por isso
outro, denúncia e estados de espíri-
to teológico-morais como vingança, de liberdade”
sua filosofia política, como prati- retaliação, mentira etc.) com sua
camente nenhuma outra, se presta produção de inimigos imaginários
para descrever o estado de politiza- e cenários ameaçadores. A espiral IHU On-Line – Em que sen-
ção da vida nua e crua entre o poder de sentimentos de ameaça e defesa, tido o pensamento de Arendt
jurídico-institucional e o poder bio- porém, leva a um aprofundamento e Agamben aponta para uma
político e, assim, descrever a relação antagonista da cisão da sociedade aproximação entre totalitaris-
entre exceção e regras. em seu interior e a cenários de crise mo, democracia e biopolítica?
na política externa. Agamben lembra
Ingeborg Villinger – Na visão
que, numa esfera pública dominada
IHU On-Line – Quais são as de Agamben, a forma de soberania e
por sentimentos, praticamente não é
governo a se estabelecer com o exer-
contribuições centrais de am- mais possível distinguir entre tecno-
cício biopolítico do poder encontra-
bos os filósofos para uma refle- logias subjetivas e técnicas políticas.
-se numa relação estrutural inversa
xão sobre os limites da demo- Os diagnósticos dos dois filósofos
com o estado de direito, razão pela
cracia parlamentar? aqui apresentam clara semelhança:
qual ele a chama de “nova forma de
a decomposição da natureza públi-
Ingeborg Villinger – A democra- soberania”. A redução dos direitos
ca da democracia parlamentar na
cia parlamentar precisa ser pública e de proteção e, com isso, dos direitos
era do animal laborans orientado
transparente para legitimar a ação positivos do cidadão (o que em Han-
governamental e formular interes- 13 Donald Trump (1946): Donald John Trump é
nah Arendt representa o gatilho para
ses e causas dos cidadãos. Mas tanto um empresário, ex-apresentador de reality show a produção de detentos no campo)
e atual presidente dos Estados Unidos. Na eleição
Arendt quanto Agamben  diagnosti- de 2016, Trump foi eleito o 45º presidente norte abre assim o espaço de atuação para
cam (com argumentos mutuamente -americano pelo Partido Republicano, ao derrotar a política da nova soberania. Atu-
a candidata democrata Hillary Clinton no número
complementares) a decadência des- de delegados do colégio eleitoral; no entanto, almente os sanctuary places14, por
perdeu no voto popular. Entre suas bandeiras es-
sa esfera pública e a concomitante tão o protecionismo norte-americano, por onde
transformação do espaço político. passam questões econômicas e sociais, como 14 São cidades que, em tese não perseguem imi-
a relação com imigrantes nos Estados Unidos. grantes e tão pouco buscam sua extradição. O sí-
Hannah Arendt analisa a mudança Trump é presidente do conglomerado The Trump tio do IHU vem publicado diversos textos sobre o
Organization e fundador da Trump Entertainment tema. Entre eles, Como pressão de Trump sobre ‘ci-
no contexto da crescente temati- Resorts. Sua carreira, exposição de marcas, vida dades-santuário’ pode afetar brasileiros nos EUA?,
zação do privado (de sentimentos pessoal, riqueza e modo de se pronunciar con- publicado nas Notícias do Dia de 27-1-2017, dis-
tribuíram para torná-lo famoso. (Nota da IHU ponível em http://bit.ly/2qc0wvQ; e Estados Uni-
como amor, ódio) na esfera pública. On-Line) dos. Alívio para as ‘cidades-santuário’, publicado

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TEMA DE CAPA

exemplo, temem ser dissolvidos ante mada política de segurança dos Es- é a transferência de decisões e exe-
a eleição de Trump; porém há nume- tados Unidos após o 11 de setembro cuções para a via institucional da
rosos outros indícios concretos para de 200115, o qual foi estabelecido administração não legitimada por
a ampliação do espaço de poder: por pelo Patriot Act de 26 de outubro eleições; com isso, o lugar de um
exemplo, a política de segurança, de 2001: essa lei autorizou o Attor- poder legitimado unificado é toma-
que em grande parte não está sen- ney General [procurador-geral] a do pela pluralização de poderes a
do percebida pelo público (por ora), “‘manter sob custódia’ todo estran- atuarem soberanamente.
mas que se amplia continuamente, geiro (alien) sob suspeita de repre- Esses processos permitem re-
e com a qual se procura “defender” sentar um risco para a segurança conhecer que, ao lado da modifi-
a democracia. Isso não somente au- nacional”. Em princípio, a deten- cação da esfera pública política,
menta a distância entre norma legal ção permanecia ilimitada, mesmo a tendência para a anulação da
e sua aplicação, mas também levanta quando a suspeita de risco fosse divisão de poderes, a abolição
a questão sobre aquilo que caracteri- refutada. Essa ampliação de com- do estado de direito e o governo
za propriamente a democracia: a in- petências executivas às custas do mediante poder prerrogativo (o
dependência da ordem legal. Se ela Legislativo é mais um passo; outro Executivo) produzem um esgarça-
apenas ainda é usada taticamente
mento da ordem legal em direção
“para proteger a nação e o estado”, 15 11 de setembro de 2001: membros do grupo
islâmico Al-Qaeda sequestraram quatro aerona- a um estado de exceção paralegal.
podendo ser abolida ou relativiza- ves, fazendo duas colidirem contra as duas tor- Todas essas medidas a título de
da dependendo dos fatos políticos, res do World Trade Center, em Manhattan, Nova
York, e uma terceira contra o quartel general do biopolítica marcam lentamente,
então “a constituição política dessa departamento de defesa dos Estados Unidos,
o Pentágono, na Virgínia, próximo à capital dos muitas vezes imperceptivelmen-
ordem não mais pode ser entendi- Estados Unidos, Washington. O quarto avião se- te, porém em caráter duradouro,
da como democracia”. Um [novo] questrado foi intencionalmente derrubado em um
campo próximo a Shanksville, Pensilvânia, após os aquele ponto no qual formas de
limiar nesse aspecto é a assim cha- passageiros enfrentarem os terroristas. Esse foi o
estado totalitário e democrático se
primeiro ataque letal de uma força estrangeira em
território americano desde a Guerra de 1812. O tocam e demonstram sua “íntima
nas Notícias do Dia de 28-4-2017, disponível em saldo de mortos aproxima-se de 3 mil pessoas.
http://bit.ly/2rI3l9Q. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) solidariedade”. ■

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Tecnicização da decisão política é uma


das assinaturas da contemporaneidade
Sandro Chignola avalia que a democracia está em crise, fato evidenciado
pela crescente desafeição com os mecanismos eleitorais, pelo retorno
da guerra e pela corrupção que atravessa os sistemas políticos
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Moisés Sbardelotto

A
tecnicização da decisão política é rece-me, as estradas logo se dividem”.
uma das assinaturas da contem- Chignola conta que muitas vezes é
poraneidade. “Por ser cada vez solicitado na América Latina e, parti-
mais técnica – isto é, ditada pelas su-
cularmente, no Brasil para se ocupar
premas razões da eficiência econômica
criticamente de livros de Agamben. A
ou do mercado, orientada por proble-
partir dessa experiência, sublinha “fun-
mas de segurança, modulada sobre as
damentalmente duas coisas: a primei-
exigências do capital –, também é cada
ra é como Agamben frequentemente
vez mais subtraída dos procedimentos
lê os seus autores forçando-os (mas se
de formação e de controle das institui-
trata de uma operação que ele sempre
ções democráticas”, afirmou Sandro
reivindicou e que lhe permite, como ele
Chignola em entrevista concedida por
escreve, poder abandoná-los para ‘pen-
e-mail à IHU On-Line.
Chignola avalia que a democracia está
sar por si mesmo’), a segunda é que eu 31
não posso compartilhar a sua ideia ‘vi-
em crise. Isso fica evidenciado por um timária’ da subjetividade”.
conjunto de fatos: “crescente desafei-
ção com os mecanismos eleitorais, o re- Sandro Chignola é professor de Fi-
torno da guerra, a corrupção endêmica losofia Política no Departamento de Fi-
que atravessa os sistemas políticos”. No losofia, Sociologia, Pedagogia e Psicolo-
entanto, ressalva que não é apenas a de- gia Aplicada na Universidade de Padova
mocracia que padece, mas também “as – Itália. É autor, entre outras obras, de
instituições clássicas às quais ela se liga História de los conceptos y filosofia po-
no sistema das relações internacionais”, lítica (Madrid: Biblioteca Nueva, 2010).
todas parecendo “submetidas a tensões Também é autor de Sobre o dispositi-
e a torções talvez irrecuperáveis”. vo. Foucault, Agamben, Deleuze, arti-
go publicado em Cadernos IHU Ideias,
Nesta entrevista, ao refletir sobre o
número 214, disponível em http://bit.
pensamento de Agamben e ao aproxi-
ly/2qHag4J, e do artigo A vida, o tra-
má-lo de Foucault, Chignola aponta
balho, a linguagem. Biopolítica e bioca-
que ambos “têm um pouco o mesmo
pitalismo no Cadernos IHU ideias 228,
problema: como desativar os disposi-
tivos de poder; como inventar outras disponível em https://goo.gl/1wt2Vd.
formas-de-vida”. No entanto, “aqui, pa- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Em que sentido caultianas, retomadas não só por DNA, em relação às políticas de con-
autores como Foucault e Agam- Agamben, mas também por boa trole das migrações, em referência
ben auxiliam a pensar a política parte do debate filosófico-político a alguns recentes desdobramentos
e a tanatopolítica do presente? e teórico-crítico contemporâneos, biomédicos, para aludir às trans-
Sandro Chignola – Seria forte parece demonstrar, em muitíssimos formações do Welfare State ou dos
a tentação de responder imedia- campos de pesquisa, a sua utilidade. direitos sociais, dilatando muitíssi-
tamente: “muito”. E, com efeito, a Falou-se de biopolítica em relação às mo, até diluí-lo ou correndo o risco
ampla circulação das fórmulas fou- tecnologias de sequenciamento do de torná-lo quase incompreensível,

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TEMA DE CAPA

o significado atribuído por Foucault1 efetivas mesmo quando os biopo- Ao contrário do que Agamben
aos termos “biopoder” e “biopolíti- deres tomam posse sobre a vida, pensa, para o qual a história da
ca”. Originalmente, Foucault usa es- e certamente pode-se dizer com soberania coincide com um dispo-
sas definições para “fazer a diferen- Weber3 que o Estado, ou o que dele sitivo de “banimento” para o qual
ça”, ou seja, de acordo com o próprio resta, ainda age como detentor a “vida nua” é, ao mesmo tempo,
da genealogia, para especificar as monopolista da violência. O que incluída e excluída (incluída en-
modalidades de funcionamento de interessa a Foucault, em vez disso, quanto excluída) pelo direito, re-
tecnologias do poder que atuam de e por motivos que remetem às re- presentando deste último o fun-
modo muito diferente uma da outra, voltas antipastorais dos anos 1960 damento indizível e não dito, em
embora não se pondo em sequência e 1970 – as das mulheres que põem Foucault a operacionalização dos
uma com a outra: os dispositivos de em discussão os governos patriar- biopoderes coincide com o relan-
soberania trabalham com a morte, cais dos corpos, as dos movimen- çamento de uma resistência; com
podem ser qualificados como “tha- tos gays que rejeitam o governo da a invenção de outras vias de fuga.
natopolíticos”, porque subtraem da “vida” e das escolhas sexuais, as Acho que o ponto é decisivo, em
morte (assim, evidentemente em dos movimentos sociais que con- relação ao que me é perguntado.
Hobbes2, por exemplo, até as ori- testam a ideia de um destino já es- A questão do biopoder nos ajuda
gens da estatualidade moderna) ou crito para cada um e para todos “do a traçar, ainda agora, o campo do
porque à morte enviam novamente berço à sepultura” (para retomar a confronto entre comando e liber-
os viventes (como no caso da guer- fórmula de Beveridge4) –, é traçar dade, entre poder e resistência.
ra); os dispositivos de biopoder, ao a genealogia dos poderes adminis- Especialmente se, novamente com
contrário, inserem o poder na vida, trativos e de cuidado que se ligam Foucault, continuamos pensando
gerindo as necessidades “vitais” de à materialidade da vida e que ten- que é a resistência que força o po-
reprodução do corpo político enten- tam governá-la orientando as suas der a mudar as próprias estraté-
dido como um volume de trocas, um formas de expressão. Há um ponto, gias. Uma imanente e autopoiética
conjunto de relações, um nó de pro- além disso, que me parece decisivo. transformação dos dispositivos,
cessos dos quais se trata de garantir Justamente em A vontade de saber, realmente, não ocorre.
o incremento. não na prosa às vezes descontrola-
32 da dos Cursos, quero sublinhar, e
Reitero e enfatizo que não se trata
exatamente onde Foucault intro- IHU On-Line – Em que medida
de uma sequência, isto é, como se
duz e define o termo “biopoder”, Foucault, Agamben e Esposito5
Foucault pretendesse aludir – as-
ele nos diz que não apenas a vida, se inspiram na ideia do déspota
sim, em vez disso, ele foi lido mui-
nunca tendo sido completamente de tipo novo, de Tocqueville?
tas vezes – a uma passagem de um
integrada, escapa continuamen-
antes a um depois; à “substituição” Sandro Chignola – Pelo que
te das tecnologias que a dominam
da soberania pelos biopoderes. As me lembre, nenhum deles se refere
(“sans cesse elle leur échappe”,
lógicas da soberania permanecem mutuamente, na realidade. Na li-
escreve ele), mas também que, na
teratura política pós-revolucioná-
imanência concreta de “processos
1 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. ria da primeira metade do século
Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
reais de luta”, “a vida como objeto
18, porém, é constante a preocu-
tória da sexualidade (a qual não pôde completar político foi [...] tomada literalmen-
devido a sua morte), situam-se dentro de uma pação com a “reanimalização” do
filosofia do conhecimento. Foucault trata princi- te e invertida contra o sistema que
palmente do tema do poder, rompendo com as sujeito político. Uma animalização
concepções clássicas do termo. Em várias edições,
começava a controlá-la”. Isso me
que deve ser entendida em sentido
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou- parece decisivo.
cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em inverso em relação à antropologia
http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364, política aristotélica, para a qual o
de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o 3 Max Weber (1864-1920): sociólogo alemão, homem é um “vivente político e
discurso racional em debate, disponível em ht- considerado um dos fundadores da Sociologia.
tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo Ética protestante e o espírito do capitalismo (Rio de dotado de faculdades de palavra”
biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis- Janeiro: Companhia das Letras, 2004) é uma das (anthrópos politikon zoon kai lo-
ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, suas mais conhecidas e importantes obras. Cem
Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de- anos depois, a IHU On-Line dedicou-lhe a sua gon echon). Em muitos autores
bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con- 101ª edição, de 17-5-2004, intitulada Max Weber.
fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em A ética protestante e o espírito do capitalismo 100 do liberalismo conservador fran-
formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, anos depois, disponível em http://bit.ly/ihuon101. cês (Tocqueville 6, Lamennais7,
Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa- Sobre Max Weber, o IHU publicou o Cadernos
ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) IHU em formação nº 3, de 2005, chamado Max
2 Thomas Hobbes (1588-1679): filósofo inglês. Weber – o espírito do capitalismo disponível em
Sua obra mais famosa, O Leviatã (1651), trata de http://bit.ly/ihuem03. (Nota da IHU On-Line) 5 Roberto Esposito: filósofo italiano, especialista
teoria política. Neste livro, Hobbes nega que o 4 Lord William Henry Beveridge (1879-1963): em filosofia moral e política. De sua vasta produ-
homem seja um ser naturalmente social. Afirma, autor do famoso Beveridge Report, oficialmen- ção bibliográfica, citamos Pensiero vivente. Origi-
ao contrário, que os homens são impulsionados te chamado Social Insurance and Allied Service ne e attualità della filosofia italiana (2010), Bios.
apenas por considerações egoístas. Também es- Report de 1942, que foi a base da legislação da Biopolitica e filosofia (2008), L’origine della politi-
creveu sobre física e psicologia. Hobbes estudou reforma social do governo trabalhista inglês de ca. Hannah Arendt o Simone Weil? (1996). (Nota
na Universidade de Oxford e foi secretário de Sir 1945-1951, advogando o pleno emprego. Assim da IHU On-Line)
Francis Bacon. A respeito desse filósofo, confira que, em 1944, publicou o livro The Economics of 6 Alexis Carlis Clerel de Tocqueville (1805-
a entrevista O conflito é o motor da vida política, Full Employment. É autor também do Voluntary 1859): pensador político e historiador francês,
concedida pela professora Maria Isabel Limongi Action de 1948, defendendo o papel do setor pri- autor do clássico A democracia na América (São
à edição 276 da revista IHU On-Line, de 6-10- vado na provisão do estado de bem-estar social. Paulo: Martins Fontes, 1998-2000). (Nota da IHU
2008. O material está disponível em https://goo. Ele foi muito influenciado pelos socialistas fabia- On-Line)
gl/UMRVFg. (Nota da IHU On-Line) nos. (Nota da IHU On-Line) 7 Hughes Félicité Robert de Lamennais (1782-

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Royer-Collard 8, por exemplo, mas, tempos de democracia, Tocque- tudar os gregos: o único arquivo da
em outros aspectos, também em ville justamente poderá escrever. filosofia no qual não existe a palavra
Nietzsche 9), a ideia que se repete Com a figura do déspota de novo indivíduo, e no qual a ideia de um
é que a humanidade está entran- tipo, ele alude a uma figura pasto- governo vitalício é, se não se é es-
do em uma fase pós-política que ral – a imagem que se repete não é cravo, literalmente impensável.
reatualiza a imagem platônica do a do déspota clássico, a figura ta-
mito do Político: a dos pastores natopolítica do vampiro que suga
divinos. Ocupei-me disso no meu recursos do território sobre o qual IHU On-Line – Partindo do
livro Il tempo rovesciato. La Re- incumbe, mas a do poder benevo- pressuposto de que governar
staurazione e il governo della de- lente, cotidiano e doce que reduz requer energia, deliberação
mocrazia [O tempo invertido. A progressivamente a humanidade e autonomia, em que medida
Restauração e o governo da demo- a ser um “rebanho de ovelhas in- há um paradoxal aprofunda-
cracia]. A modernidade completa, dustriosas” confiadas às mãos do mento da animalização políti-
o advento da democracia, implica próprio pastor – que enfatiza a ca com o aprofundamento da
uma radical despolitização das re- crescente incidência dos disposi- democracia?
lações e uma radical privatização tivos administrativos e de governo
Sandro Chignola – A demo-
do sujeito que é constantemen- sobre a vida dos indivíduos e da
cracia, Tocqueville novamente diz
te relançada pelo desenrolar dos massa que tratam sob as espécies
isto claramente, deve ser definida
mecanismos representativos. As do “público”.
em termos de tendência, ou seja,
revoluções se tornam raras em
O que me interessa é que, um pou- como um processo, que Tocqueville
1854): filósofo, padre e escritor político francês. co como em Foucault, aqui não se qualifica, além disso, como irresis-
Tornou-se uma figura influente e controversa na trata de “profecias” sobre o advento tível. No seu coração, está a pro-
história da Igreja católica francesa. Juntamente
com seu irmão Jean, concebeu a ideia de reviver da sociedade de massa (Tocquevil- dução incremental de igualdade. E
o Catolicismo Romano como uma chave para a
regeneração social. (Nota da IHU On-Line) le, às vezes, foi lido assim...), mas a fórmula política da igualdade é a
8 Pierre Paul Royer-Collard (1763-1845): filósofo da genealogia de um tipo novo de representação política. Represen-
e político francês. Advogado, começa por apoiar
a Revolução Francesa, servindo como secretário poder que se dota de poderosos ins- tar significa visibilizar um ausente.
da Comuna de Paris, de 1790 a 1792. Retira-se em
1793, depois da derrota dos girondinos. A partir trumentos de tipo administrativo Mais ainda do que isso, empurrar 33
de 1797, torna-se conspirador monárquico con- para construir e para governar, isto continuamente para a ausência o
tra Napoleão. Professor de história da filosofia
na Universidade de Paris desde 1811. Cria aquilo é, para recompor aquela “société sujeito político coletivo que é re-
que designa por filosofia da percepção, sendo in- presentado. Paradoxalmente, o
fluenciado pelo escocês Thomas Reid. Em 1814 é en poussiere”, como Royer-Collard
nomeado conselheiro de Estado responsável pela a chamaria, residuada pela Revo- povo só existe se presentificado por
educação pública. Considera a monarquia como o
rochedo que daria firmeza ao fluido revolucioná- lução Francesa e pela máquina de quem fala em seu nome; por quem
rio, sendo precursor do princípio da legitimidade, o representa, justamente, tutelando
depois desenvolvido por Talleyrand. Defende que identificação dos direitos funda-
as comunas, tal como as famílias, já existiam antes mentais. É nessa fase, além disso, a igualdade de todos diante do so-
do Estado, o qual não as pode criar. Opositor da
escola contrarrevolucionária, nega, como Cons- que o liberalismo da Restauração se berano sujeito coletivo. Trata-se da
tant, o princípio absoluto da soberania, quer o ti- lógica inexorável que se desenrola
tular fosse o rei ou o povo. (Nota da IHU On-Line) autodefine como “libéralisme gou-
9 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo ale- vernamental”. Como Tocqueville, no capítulo 16 do Leviatã, de Hob-
mão, conhecido por seus conceitos além-do-ho-
mem, transvaloração dos valores, niilismo, vonta- Foucault identifica esse deslize em bes. Representar significa, em Ho-
de de poder e eterno retorno. Entre suas obras, direção administrativa da raciona- bbes, sujeitar o lobo do Estado de
figuram como as mais importantes Assim falou
Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, lidade de governo que se acompa- natureza e domesticá-lo por meio
1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A
genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). nha de uma descentralização das da ameaça da espada, é claro. “Man
Escreveu até 1888, quando foi acometido por um clássicas funções de soberania do is not fitted for Society by Nature,
colapso nervoso que nunca o abandonou até o
dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema Estado e das modificações que isso but by Discipline”, está escrito no
de capa da edição número 127 da IHU On-Line,
de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do implica em relação às práticas de De Cive. Mas também transformá-
martelo e do crepúsculo, disponível para down- assujeitamento e de subjetivação. -lo em animal balido e produtivo.
load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Ca-
dernos IHU em formação é intitulada O pensa- Em particular: a emergência de um No frontispício mandado desenhar
mento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada
em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a en- tipo de subjetividade que pede inin- por Abraham Bosse10 para o Leviatã,
trevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 terruptamente para ser governada,
da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível o soberano, porém, não incumbe no
em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo por ser politicamente indigente e próprio território segurando na mão
radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na
qual discute ideias de sua conferência A crítica de constantemente necessitada de cui- apenas a espada, mas também man-
Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a ques- dados... Em Foucault, no entanto,
tão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de tendo levantada, na outra, o bastão
Estudos Filosofias da diferença – Pré-evento do permanece um elemento de exce- pastoral. O povo anônimo que se
XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo
biopolítico da vida humana. Na edição 330 da re- dência, como eu ressaltava um pou- recompõe no corpo do soberano é,
vista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista co acima, você remete a vida àquilo
Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da por um lado, o povo cuja conflitua-
totalidade da existência, concedida pelo professor que ela, mesmo assim, permanece
Oswaldo Giacoia e disponível em https://goo.gl/
zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a en- sendo em potência: liberdade, au- 10 Abraham Bosse (1602/1604–1676): artista
trevista O amor fati como resposta à tirania do tonomia, construção. E será nessa francês, destacado principalmente pelas gravuras
sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// de técnica água-forte, mas também aquarelista.
bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line) remissão que Foucault passará a es- (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

lidade é resolvida pela lei, mas, por – isto é, ditada pelas supremas ra- ben ajudam. Não somente porque
outro, é o povo administrado, res- zões da eficiência econômica ou do põem novamente em discussão o
gatado pela ausência política à qual mercado, orientada por problemas que as retóricas mainstream, em
é relegado pela irresistibilidade do de segurança, modulada sobre as vez disso, dão por descontado, mas
poder soberano e convocado mate- exigências do capital –, também é por causa de um estilo de pensa-
rialmente como objeto de cuidado cada vez mais subtraída dos proce- mento que se move da atualidade
governamental. Não é imediato dimentos de formação e de controle (as transformações do poder e a
dar-se conta que Hobbes, o terrí- das instituições democráticas. Não heterogeneidade dos seus dispositi-
vel Hobbes, o absolutista Hobbes, somente a democracia está em cri- vos, em Foucault; o fato de levar a
é, na realidade, o pai da moderna se – como demonstram a crescente sério o que é um centro de detenção
democracia representativa. E, no desafeição com os mecanismos elei- para imigrantes, um “campo”, ou o
entanto, é exatamente isso: a Re- torais, o retorno da guerra, a cor- que envolve pôr novamente em dú-
volução Francesa se encarregou rupção endêmica que atravessa os vida a forma-de-lei, em Agamben)
de levar esse projeto à efetividade sistemas políticos –, mas também para repensá-la, problematizá-la,
constitucional. Por um lado, ga- as instituições clássicas às quais olhá-la à luz das possibilidades de
rantindo igualdade e liberdade dos ela se liga no sistema das relações transformação ulterior. A partir daí,
indivíduos por meio de instituições internacionais (o Estado, a sobera- mais uma anotação, se me é possí-
representativas, por outro, defen- nia nacional, a moeda) parecem ser vel. Não se trata, parece-me, de pro-
dendo esse programa de liberdade submetidas a tensões e a torções duzir um efeito “escolástico”, risco
e de igualdade por meio de uma talvez irrecuperáveis. Mas não se ao qual, muitas vezes, se sucumbe
administração encarregada de agir trata, no meu modo de ver, de um (explico: retomar acriticamente os
em favor do interesse público, isto processo unívoco ou linear. Isto é, conceitos desses autores, continuar
é, de todos. Para Tocqueville, tal- não pretendo defender que o Esta- a ruminá-los, aplicá-los facilmen-
vez o primeiro a compreender a ab- do, a soberania nacional, os proce- te demais...), mas de retomar e de
soluta continuidade entre Ancien dimentos decisionais clássicos da relançar um “estilo”, inventando
Régime absolutista e Revolução, democracia tenham sido simples- novos conceitos que nos permitam
isso comportará aquilo que eu lem- mente exonerados com a implanta- nos encarregar da responsabilidade
34 brava antes: ou seja, o duplo movi- ção do neoliberalismo e das fórmu- do pensamento no presente em que,
mento com base no qual a delega- las de governance pós-democrática irrevogavelmente, se pensa.
ção às instituições representativas que tecnicizam a decisão, invertem
da liberdade política (fingimos ser os eixos da legitimação (uma deci-
livres apenas no momento em que, são não é assumida como legítima
votando, escolhemos o próprio pa-
trão, escreve ele em Democracia
com base nos procedimentos cons-
titucionalmente garantidos, por
“Não somente
na América, para depois voltarmos
a ser pacificamente, e sem descan-
meio dos quais ela foi se forman-
do, mas com base na promessa de
a democracia
so, submissos a ele) envolve a ces- eficácia da qual ela afirma saber se está em crise,
sação da responsabilidade política encarregar), desenham níveis de in-
da própria liberdade, a renúncia ao tervenção sobre o qual é possível fa- mas também
as instituições
autogoverno e a transformação do zer deslizar saberes especializados,
sujeito em um dócil animal gregá- recrutar autoridades administrati-
rio simplesmente devotado ao con-
sumo e à jouissance...
vas e comitês independentes, deixar
operar dispositivos “técnicos”. clássicas”
O que me parece relevante é como,
dentro desse complexo de trans- IHU On-Line – A potência do
IHU On-Line – Na democra-
formações que dizem respeito às não, em Agamben, e a liber-
cia, a governamentalidade se
contemporâneas instituições da dade, em Foucault, podem ser
desloca da soberania para a ad-
política, a “democracia”, do modo consideradas categorias corre-
ministração. Pensando a partir
como a conhecemos historicamen- latas? Por quê?
de Foucault e Agamben, como
te, é radicalmente mudada, e como
podemos compreender os jo-
também são radicalmente muda- Sandro Chignola – Não direta-
gos múltiplos e cambiáveis do
dos o papel e a função do Estado, mente, parece-me. No mínimo, por
poder que se apresentam em
da soberania nacional e da moeda, uma coisa relevante, isto é, pelo fato
nosso tempo?
em vista do “governo” dos fluxos de de que, para ambos, não se trata
Sandro Chignola – Uma das informações, pessoas e coisas, que, mais, porque isto é impossível, de
assinaturas da contemporaneidade entre financeirização da economia pensar a expressividade da liber-
é a tecnicização da decisão política. e chantagem da dívida, enredam o dade na forma representativa. Ser
Que, por ser cada vez mais técnica globo. Pois bem: Foucault e Agam- livre significa ativar práticas desti-

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tuintes e não constituintes; iniciar diante, fixa o sujeito na própria au- “vida nua”, nem mesmo lá onde foi,
trajetórias e linhas de fuga. Trata- torreflexão e na vontade própria. ou possa ser, mais feroz a mordida
-se de escapar da jaula da soberania. Foucault e Agamben, podemos di- do poder que a domina. Posso dar
Incluindo aquela forma primeira zer assim, portanto, têm um pouco um exemplo: o que nos dizem as
da soberania que torna homólogas o mesmo problema: como desati- migrações, os corpos abandonados
a liberdade e o querer na fórmula var os dispositivos de poder; como entre as margens do Mediterrâneo,
primeira da subjetividade como “eu inventar outras formas-de-vida. senão que o mais forte de qualquer
quero”. É aqui, nessa ilusão de so- Mas, aqui, parece-me, as estradas domínio é o desejo de liberdade e
berania, que insiste o fascismo que logo se dividem. de movimento pelo qual se põe em
devemos combater desde o seu úl- jogo a vida? Não há algo de consti-
timo reduto, isto é, dentro de cada tutivamente excedente em relação à
um de nós. Ninguém está sozinho; linearidade operativa dos dispositi-
ninguém é uma vontade. Cada um
de nós é uma forma-de-vida, uma
“Uma das as- vos que trabalham incansavelmente
para a sua captura? Pois bem: quan-
relação intensiva, uma conjugação sinaturas da do Agamben nos explica – refiro-me
de afetos. Como se vê, estou me des- à conferência sobre O dispositivo (O
locando para Spinoza11 e para Deleu- contemporanei- que é um dispositivo?. Tradução de

dade é a tecni-
ze12. Mas é Tarde13, aliás, justamen- Nilcéia Valdati. Santa Maria - RS:
te um dos autores de Deleuze, que Palloti, 2006) e ao livro L’aperto (O
nos diz que a sociedade não é feita
de indivíduos, mas sim cada indiví- cização da de- Aberto, Tradução de André Dias e
Ana Bigotte Vieira. Lisboa: Edições
duo é, na realidade, uma sociedade.
Uma forma-de-vida, justamente; cisão política” 70, 2011) – que o primeiro dispo-
sitivo de captura que nos perdeu é
uma conexão. Quando Foucault diz a linguagem, o que nos resta para
que ainda devemos “cortar a cabeça imaginar e para agir perspectivas de
do rei” na teoria, eu acredito que ele libertação? Obstinadamente, conti-
quer nos dizer duas coisas: a primei- IHU On-Line – Quais são os li- nuo sendo da ideia – sobre isto im-
ra é que devemos nos livrar da ideia mites do diagnóstico de Agam- planto a minha coerência militante 35
de que o poder tem um lugar e que, ben na reflexão sobre a política e científica – de que não somente é
para fazer a revolução, basta ocupar contemporânea e seu aprisio- necessário tomar partido na batalha
justamente esse lugar. É isso que namento por dispositivos como cotidiana entre liberdade e domínio,
determina, no século 20, catástrofes a economia, por exemplo? mas também que é preciso se en-
políticas que se movem a partir de Sandro Chignola – Eu não te- carregar concretamente de manter
sonhos de revolução. Mas a segunda nho certeza se posso indicar os li- aberta a porta estreita do futuro a
é precisamente que devemos nos li- mites de Agamben. É claro, muitas um mundo-que-vem somente se afe-
vrar também da moderna forma de vezes, a pedido, para seminários ou tos, relações e desejos forem postos
identificação que, de Descartes14 em para conferências na América Lati- em comum dentro de práticas volta-
na e, particularmente, no Brasil, eu das a destruir o domínio. Fazer isso
11 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632-1677): fi-
me ocupei criticamente de alguns de significa ter acesso à dimensão da
lósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma
resposta ao dualismo da filosofia de Descartes. seus livros e, neste caso, encontrei- cupiditas e da potentia, e não se li-
Foi considerado um dos grandes racionalistas do mitar ao testemunho do horror.
século 17 dentro da Filosofia Moderna e o fun- -me sublinhando fundamentalmen-
dador do criticismo bíblico moderno. Confira a
edição 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitu- te duas coisas: a primeira é como
lada Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pen- Agamben frequentemente lê os seus
samento, disponível em https://goo.gl/GEGuI5. IHU On-Line – Por outro lado,
(Nota da IHU On-Line) autores forçando-os (mas se trata de
12 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês.
uma operação que ele sempre rei- quais são as possibilidades
Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de
Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, vindicou e que lhe permite, como ele que se abrem com a crítica que
poderosas interseções. Professor da Universidade Agamben realiza à proprieda-
de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias escreve, poder abandoná-los para
como as de devir, acontecimentos e singularida-
“pensar por si mesmo”), a segunda de, contrapondo-a ao uso?
des. (Nota da IHU On-Line)
13 Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904): filósofo, é que eu não posso compartilhar a Sandro Chignola – Aqui me
sociólogo, psicólogo e criminologista francês.
(Nota da IHU On-Line) sua ideia “vitimária” da subjetivida- parece que Agamben, assim como
14 René Descartes (1596-1650): filósofo, físico
e matemático francês. Notabilizou-se sobretudo
de. O que pode um corpo, ninguém uma de suas referências, o grande
pelo seu trabalho revolucionário da Filosofia, ten- pode saber, dizia Deleuze. O que romanista Yan Thomas15, e, em ou-
do também sido famoso por ser o inventor do sis-
tema de coordenadas cartesiano, que influenciou pode ser uma vida – virtualidade, tros aspectos, como muitos de nós,
o desenvolvimento do cálculo moderno. Descar- variação, conjugação –, ainda menos
tes, por vezes chamado o fundador da filosofia e tenta pensar a dimensão operativa
da matemática modernas, inspirou os seus con- nós podemos nos iludir de saber. É do direito, a sua operação, junto com
temporâneos e gerações de filósofos. Na opinião
de alguns comentadores, ele iniciou a formação claro, eu não consigo pensá-la como a possibilidade de contorná-la ou de
daquilo a que hoje se chama de racionalismo con-
tinental (supostamente em oposição à escola que
predominava nas ilhas britânicas, o empirismo), 15 Yan Thomas (1943- 2008): jurista e historiador
posição filosófica dos séculos 17 e 18 na Europa. (Nota da IHU On-Line) do direito francês. (Nota da IHU On-Line)

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TEMA DE CAPA

invertê-la contra si mesma. O cora- comando não é mais o motor da pro- com o vento, com o silêncio, com o
ção do moderno, dizia Marx, obvia- dução, e a jornada de trabalho não é próprio ritmo, com o Outro – seja
mente, é o “terrível direito” da pro- mais subsumida na medida do salá- ele Deus ou o demônio – e com a
priedade: este é o motor da chamada rio, surgem possibilidades concretas sua palavra. Nas escolas socráticas
acumulação primitiva de capital e para a superação do domínio (o quão antigas e tardo-antigas, no estoicis-
das modalidades pelas quais ela se concretas, na realidade, eu não sei: mo, no cinismo, a filosofia é uma
reproduz ininterruptamente às cus- eu sei que isso, no entanto, é aquilo forma-de-vida que produz a sua pró-
tas dos commons, dos bens comuns, pelo qual me consumo e trabalho...). pria institucionalidade (exercícios,
que podem ser entendidos tanto Trata-se de criar instituições capazes regras, escolas) e que rege o desafio
como aquilo que deve ficar à dispo- de se inserir na vivente cooperação com o mundo. Não uma filosofia das
sição de todos (água, ar, recursos entre os indivíduos para sustentá-la, alturas (como a platônica) ou uma
naturais), quanto aquilo que a livre potencializá-la e incrementá-la. Uso filosofia dos abismos (tais as pré-so-
cooperação dos humanos produz em contra propriedade, regra contra lei, cráticas), mas uma filosofia das su-
favor de todos (a web, por exemplo, instituição contra forma-direito são perfícies, do contato e dos choques,
com as práticas livres de sharing que diferentes modos para conjugar um lembra-nos Deleuze. Uma forma-de-
a percorrem). “Usar” significa, nessa único problema. -vida que é constantemente posta à
perspectiva, manter as coisas no co- prova e que o risco da responsabi-
mum e não subtraí-las dele. Ainda lidade de si mesma deve sustentar
mais: significa “profanar” o sagrado IHU On-Line – Em que me- continuamente.
da propriedade e recolocar a dimen- dida a categoria de forma de
Foucault, acho que já demonstrei,
são do inapropriável no coração da vida agambeniana dialoga com
trabalha sobre a divergência que We-
práxis. Trata-se, de algum modo, de a filosofia de Foucault sobre o
ber tematiza entre a direção da cons-
escapar de novo do perímetro formal cuidado de si e quais são suas
ciência cristã (confissão) e o cotidia-
do moderno direito de cidadania e diferenças fundamentais?
no “testar-se o pulso” da terapêutica
de destituir o vínculo que o liga ao
Sandro Chignola – Neste caso da graça protestante. Agamben as-
individualismo proprietário. O uso
também, mais do que um diálo- sume de maneira muito decisiva os
permite, por isso, imaginar outras
36 go, trata-se de identificação de um aspectos institucionais da forma-de-
formas-de-vida e – é isto que, pesso-
mesmo problema. Como pensar a -vida franciscana. Deixando de lado,
almente, muito me interessa – insti-
subtração aos dispositivos de poder porém, os aspectos que também den-
tuições e fórmulas de regulação que
e, em particular, àquele poderoso tro desta última reproduzem a cen-
não coincidem com as estruturas,
dispositivo de assujeitamento que é tralidade do pastorado. Pessoalmen-
formalistas, abstratas e proprietá-
a própria forma do subiectus? O que te, eu prefiro seguir Foucault; “Jeder
rias, da Lei, do Direito e dos pode-
entra em questão aqui é a própria sei auf seiner Art ein Griecher! Aber
res que os garantem. Canguilhem16
ideia de filosofia: durante séculos, er sei’s” [Cada um seja um grego
tentou pensar como normativas as
ensinou-nos Hadot18, que defendia ao seu modo. Mas seja-o], escrevia,
formas autorregulativas da vida.
que tinha ensinado isso ao próprio aliás, o velho Goethe19... Tornar-se-
Acho que nessa direção – não só
Foucault, a filosofia teve a ver não -grego significa abster-se da forma
em Canguilhem, obviamente, mas
com o conhecimento, mas com a que a filosofia assumiu naquilo que
também escavando na genealogia da
prática de si e com a prática da re- Foucault identificou no “momento
instituição, do costume, do hábito,
lação com o mundo, que o vivente, cartesiano” da sua história; significa,
para permanecer no léxico jurídico e
e em particular aquela forma espe- mais uma vez, desabilitar o nexo en-
político – é possível avançar e levar
cífica de vivente relacional que é o tre reflexão, separação do cogito do
a efeito algumas das premissas mais
vivente dotado de faculdade de lin- mundo, instalar-se do sujeito sobre a
relevantes da “biopolítica”. Com
guagem, antes de tudo, é. Nem mes- própria certeza e em posição vertical
Negri17, e ao contrário de Agamben,
mo na ascese monástica o indivíduo soberana em relação a este último. E
tendo a pensar que, pelas próprias
jamais está sozinho. Ele se relaciona significa, ainda, contestar a insulari-
formas que caracterizam o capita-
dade na qual o subiectus se encerra,
lismo contemporâneo, nas quais o
separando-se do comum das singu-
18 Pierre Hadot (1922-2010): filósofo francês, é laridades. E é dentro deste último,
16 Georges Canguilhem (1904-1995): filósofo um dos coautores do livro Dicionário de ética e
francês, membro do Collège de France, especia- Filosofia Moral (São Leopoldo: Unisinos, 2003). em vez disso, que devemos poder ser
lizado em filosofia da ciência e no estudo da nor- Suas pesquisas concentraram-se primeiramente
matividade. (Nota da IHU On-Line) nas relações entre helenismo e cristianismo, em tudo aquilo que somos...■
17 Antonio Negri (1933): filósofo político e mo- seguida, na mística neoplatônica e na filosofia da
ral italiano. Durante a adolescência, foi militante época helenística. Elas se orientam atualmente
da Juventude Italiana de Ação Católica, como para uma descrição geral do fenômeno espiritual
Umberto Eco e outros intelectuais italianos. Em que a filosofia representa. Em português, pode 19 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832):
2000, publicou o livro-manifesto Império (Rio de ser lido o livro de sua autoria O que é a filosofia escritor alemão, cientista e filósofo. Como escritor,
Janeiro: Record), com Michael Hardt. Em seguida, antiga? (São Paulo: Loyola, 1999). Para uma rese- foi uma das mais importantes figuras da literatura
publicou Multidão. Guerra e democracia na era nha da obra, confira a revista Síntese 75 (1996), p. alemã e do Romantismo europeu, nos finais do
do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record), 547-551. A resenha do original francês é de Hen- século 18 e inícios do século 19. Juntamente com
também com Michael Hardt – sobre esta obra, a rique C. de Lima Vaz. Em português, foi publicado, Schiller, liderou o movimento literário romântico
edição 125 da IHU On-Line, de 29-11-2004, pu- em novembro de 2014, o seu livro Exercícios Es- alemão Sutrm und Drang. De suas obras, mere-
blicou um artigo de Marco Bascetta, disponível pirituais e Filosofia Antiga (É Realizações Editora). cem destaque Fausto e Os sofrimentos do jovem
em https://goo.gl/9rjlQw. (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) Werther. (Nota da IHU On-Line)

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EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

O impensado como potência e a


desativação das máquinas de poder
Para Rodrigo Karmy, razão neoliberal e projeto de apropriação
do comum sequestram a democracia. Antes que o rei “nos
deixe nus”, nós deveremos fazê-lo através da profanação
Márcia Junges | Edição: João Vitor Santos | Tradução: Henrique Denis Lucas

G
iorgio Agamben é o pensador Chile, onde leciona e é pesquisador do
do impensado não como nega- Centro de Estudos Árabes da Faculdade
tividade, mas como “a forma de Filosofia e Humanidades. É autor de
mais extrema de positividade na qual Políticas de la interrupción. Ensayos
se desenvolve uma noção singular de sobre Giorgio Agamben (Santiago de
potência que habita as sombras do Chile: Editorial Escaparate, 2011), Po-
‘submundo’ da tradição”, reflete Rodri- líticas de la excarnación. Para una
go Karmy na entrevista concedida por genealogía teológica de la biopolítica
e-mail à IHU On-Line. “Poderíamos (Buenos Aires: UNIPE: Editorial Uni-
dizer que toda a arqueologia filosófica versitaria, 2013) e Escritos bárbaros.
agambeniana consiste em desbloquear Ensayos sobre razón imperial y mun-
o impensado da máquina, abrir o cam- do árabe contemporaneo (Santiago de
po do possível que toda máquina tenta Chile: LOM Ediciones, 2016).
38 conter. Aqui se encontra o que Agam-
Karmy é conferencista no VI Coló-
ben chama provisoriamente de a potên-
quio Internacional IHU – Política,
cia destituinte, que pode ser definida
Economia, Teologia. Contribui-
como um movimento de constituição
ções da obra de Giorgio Agamben,
e destituição, uma vez que possibilita
que ocorre nos dias 23 e 24 de maio de
múltiplos usos possíveis”. Nesse senti-
2017. Acesse a programação completa
do, Paulo de Tarso se configura, para
em http://bit.ly/2fr695n .
Agamben, como o “impensado da tra-
dição cristã (e, especialmente, de sua A seguir, publicamos um extrato da
máquina política e jurídica), cujo gesto entrevista cuja íntegra pode ser confe-
permitirá revogar seu anticristo, dei- rida em Cadernos IHU ideias, nº 258.
xando o rei nu”. A edição está disponível na página ht-
Rodrigo Karmy Bolton é dou- tps://goo.gl/89oUQa.
tor em Filosofia pela Universidade do Eis o extrato da entrevista.

IHU On-Line – Quais são os múltiplas máquinas do poder e seus coisas que a própria tradição deixou
pontos cruciais formulados efeitos gloriosos, habita o trono va- como legado sem necessariamente
por Agamben em sua crítica zio. Na violência extrema do estado saber. Poderíamos dizer que a tra-
ao presente? de exceção, a possibilidade de sua dição sempre possibilita prever uma
Rodrigo Karmy – Giorgio própria revogação. Em toda a ope- herança que lhe ultrapassa, seu des-
Agamben é um pensador do impen- rosidade, existe uma inoperância canso impensado que está sempre
sado. Esta seria a fórmula de leitura que lhe excede e que, de certa forma, por vir. Não se trata de um “já foi”
que proponho. Assim, na tradição tem sido capturada. Como você pode que, eventualmente, tenha sido ex-
filosófica estruturada sob a noção perceber, Agamben é um pensador cedido (aufheben), mas um “nunca
aristotélica do ato repousa, intac- da imanência, pois não há neces- foi” que assume a dimensão radical
ta, uma ontologia da potência. Nas sidade de buscar em outro lugar as de uma potência. Neste sentido, o

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“É claro que o interesse


implícito de Agamben
aqui é problematizar a
burocracia moderna”

impensado não é uma negatividade, buiu. Nesse sentido, a metafísica é, forma de uma exclusão e, por conse-
mas a forma mais extrema de posi- para Agamben, a tradição da negati- guinte, revela-se como um efeito da
tividade na qual se desenvolve uma vidade, onde o logos se baseia ape- máquina e não um pressuposto “na-
noção singular de potência que ha- nas em função da sua própria sus- tural” como conceberia uma filoso-
bita as sombras do “submundo” da pensão, na aposta pelo que “já foi” fia contratualista. Da mesma forma
tradição. de uma Voz que permanecerá como em que em A linguagem e a morte,
indizível. Neste contexto, o excursus Agamben mostra a maneira em que
A fórmula que proponho, Agam- 7 de tal livro é mais do que decisivo: a Voz é incluída ao logos na forma de
ben, o pensador do impensado, nele, a questão da negatividade da uma exclusão, assim também ocor-
pode ser aclarada se nos remetermos Voz surge remetendo-a a uma figura re com a vida desnuda anunciada
à obra A Linguagem e a Morte. Um antiga – o Homo sacer. na figura do Homo sacer. Por isso,
Seminário Sobre o Lugar da Ne- poderíamos dizer que toda a arqueo-
Esta vida inteiramente “desnuda” e
gatividade que, de longe, funciona logia filosófica agambeniana consis-
como uma espécie de livro-laborató-
posta à mercê do poder tem sido o
te em desbloquear o impensado da 39
reduto “negativo” no qual é fundada
rio no qual, discutindo com Hegel1 e máquina, abrir o campo do possível
a ordem política e que, a partir
Heidegger2 (o pensador do “final” e que toda máquina tenta conter. Aqui
da exceptio, permitirá capturar a
do “princípio”), Agamben define as se encontra o que Agamben chama
imanência de uma práxis que, longe
condições para pensar a Voz sem a provisoriamente de a potência des-
de qualquer “metafísica da vontade”
negatividade que a tradição lhe atri- tituinte, que pode ser definida como
(veja O homem sem conteúdo),
um movimento de constituição e
definirá o que Agamben colocará em
1 Friedrich Hegel (1770-1831): filósofo alemão destituição, uma vez que possibilita
idealista. Como Aristóteles e Santo Tomás de jogo em L’Uso Dei Corpi como uma
Aquino, desenvolveu um sistema filosófico no múltiplos usos possíveis.
qual estivessem integradas todas as contribuições verdadeira relação de uso.
de seus principais predecessores. Sobre Hegel, Neste sentido, o gesto agambenia-
confira no link http://bit.ly/ihuon217 a edição 217
da IHU On-Line, de 30-04-2007, intitulada Feno- Potência destituinte no da potência destituinte trabalha
menologia do espírito, de (1807-2007), em come-
moração aos 200 anos de lançamento dessa obra. na direção oposta de como faz Tes-
Veja ainda a edição 261, de 09-06-2008, Carlos No entanto, a problemática da Voz salonicenses 2, 3, onde o Apóstolo
Roberto Velho Cirne-Lima. Um novo modo de ler
Hegel, disponível em http://bit.ly/ihuon261; He- negativa terá um tratamento pro- Paulo3 anuncia a aparição do Anti-
gel. A tradução da história pela razão, edição 430, priamente político na saga Homo
disponível em http://bit.ly/ihuon430 e Hegel. Ló-
gica e Metafísica, edição 482, disponível em http:// sacer, cujo “ponto crucial” poderia, 3 Paulo de Tarso (3–66 d. C.): nascido em Tarso, na
bit.ly/2959irT. (Nota da IHU On-Line) Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado
2 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale- talvez, ser resumido com a seguinte de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São
mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A fórmula: deixar o rei nu antes que Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cris-
problemática heideggeriana é ampliada em Que tãos como o mais importante discípulo de Jesus
é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo ele desnude a nós. Com o termo e, depois de Jesus, a figura mais importante no
(1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre desenvolvimento do Cristianismo nascente. Pau-
Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, “nu”, refiro-me aqui a uma dupla lo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais.
intitulada O século de Heidegger, disponível em acepção: por um lado, “deixar o rei Primeiro porque, ao contrário dos outros, Paulo
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, inti- não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua
tulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísi- nu” significaria ser capaz de exibir conversão, se dedicava à perseguição dos primei-
ca, disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em
ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, Mar- o “trono vazio”, que lhe é constituti- uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
tin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que vo e sobre o qual o rei assenta toda co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande
pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12, e a luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três
entrevista concedida por Ernildo Stein à edição a sua “máquina”. Por outro, com a dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dis- partir deste encontro, Paulo começou a pregar o
ponível em https://goo.gl/dn3AX1, intitulada O afirmação, “antes que ele desnude Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou
biologismo radical de Nietzsche não pode ser mini- a nós”, quero dizer que a operação uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo
mizado, na qual discute ideias de sua conferência (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em
A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche fundamental de toda a “máquina duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito
e a questão da biopolítica, parte integrante do ci- pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é
clo de estudos Filosofias da diferença, pré-even- governamental” não consistirá em considerado uma das principais fontes da doutri-
to do XI Simpósio Internacional IHU: O (des) nada além de produzir vida desnuda. na da Igreja. As suas Epístolas formam uma se-
governo biopolítico da vida humana. (Nota da ção fundamental do Novo Testamento. Afirma-se
IHU On-Line) Esta última é o que permanece na que ele foi quem verdadeiramente transformou

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

cristo ou o Filho da Perdição. Con- O que resta de Auschwitz (um texto e Horkheimer7, já haviam mostra-
trariando este texto, cuja leitura que deve ser lido para além da pro- do, em seu livro-chave Dialética do
nutriu o horizonte teórico de Carl blematização da figura do campo de Esclarecimento, os limites da demo-
Schmitt4, Agamben contrasta a pro- concentração, atentando ao subtítu- cracia liberal a partir da problemati-
blemática anticristã, aberta por Pau- lo “O arquivo e a testemunha”, que zação da “iluminação”. Esta última é
lo com a Carta aos Romanos, onde o faz alusão a uma teoria da subjetivi- vista como um mito cuja ressonância
apóstolo insiste na figura do messias dade): a testemunha não se encaixa pulsa no interior de democracias li-
que renuncia ao poder na forma do no arquivo, pois é literalmente o seu berais, conduzindo-as para a consti-
“como não”. Messias significa o ges- resto. Se o arquivo é precisamente tuição de campos de concentração.
to de revogação de toda máquina ou, o campo que se refere a tudo o que Para Adorno e Horkheimer, tudo co-
de forma equivalente, a abertura de foi dito (e, portanto, ao âmbito do meça em Ulysses e termina em Aus-
um vazio que deixa o rei nu e torna- “ato”), a testemunha se torna “(...) chwitz, um périplo mítico em que a
-o inteiramente inoperante (a fór- um sistema de relações entre o que “iluminação” assume uma dinâmica
mula paulina usada por Agamben é há dentro e fora da langue, entre propriamente mortífera.
a de que o messias é o telos da Lei). o dizível e o indizível em todas as
O trabalho agambeniano, de certa
Messias – da mesma forma que Ja- línguas (...)” (p. 151) com o qual a
forma, revitaliza essa tese, mas em
ques Lacan5 denominava a “mulher” testemunha exibe o sujeito em um
novos marcos de inteligibilidade
– designa o “não-todo”, frente à pre- “trono vazio” que, ao contrário do
definidos em dois ciclos problemá-
tensão de totalidade característica arquivo, habita o terreno da possibi-
ticos que atravessam a saga Homo
da máquina, o “não-todo” concebido lidade e da impossibilidade de dizer,
sacer: um primeiro ciclo, o da so-
como uma singularidade. Paulo de na área da potência. O “sujeito” dei-
berania, onde o autor fundamental
Tarso será, para Agamben, o impen- xa de coincidir com a figura clássica
é Carl Schmitt e o dispositivo em
sado da tradição cristã (e, especial- herdada da metafísica soberana (o
questão é o estado de exceção, confi-
mente, de sua máquina política e ju- Eu penso) e passa a situar-se como
gura todo um primeiro ciclo da saga,
rídica), cujo gesto permitirá revogar um efeito da fratura in-fantil entre
onde a figura do Homo sacer apare-
seu anticristo, deixando o rei nu. o “dentro e fora da langue”. Com
ce como um enigma arqueológico da
isso, Agamben deixa o rei nu (neste
40 É aqui onde a crítica agambenia- Modernidade. Um segundo ciclo, o
caso, “rei” é o “sujeito psíquico subs-
na adquire sentido foucaulteano de do governo, onde o autor principal
tancial” característico da metafísica
“arquivo”, desenvolvido no final de é Michel Foucault (especialmente
ocidental), desbloqueando o impen-
o Foucault das aulas no Collège de
sado imanente à máquina.
o Cristianismo numa nova religião, superando a France de 1978, intituladas Seguran-
anterior condição de seita do Judaísmo. A IHU ça, Território, População), em que o
On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao
tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, dis- dispositivo em questão será a glória,
ponível em http://bit.ly/ihuon175, assim como a IHU On-Line – A partir desse onde Agamben termina mostrando
edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua
relevância atual, disponível em http://bit.ly/1o5S- diagnóstico, qual é a contri- a dimensão litúrgica reproduzida
q3R . Também são dedicadas a Paulo a edição 32
dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tar- buição de Agamben para pen- nas democracias contemporâneas,
so desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de sarmos acerca dos limites da entendidas como “democracias glo-
realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a
edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São democracia e sua proximida-
Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da de aos fascismos e, por conse-
mulher cristã no século I, disponível em http://bit. ficou conhecido no mundo intelectual, em todos
ly/ihuteo55 . (Nota da IHU On-Line) quência, de um “império” da os países, em especial pelo seu clássico Dialética
4 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo políti- do Iluminismo, escrito junto com Max Horkhei-
co e professor universitário alemão. É considerado biopolítica? mer, primeiro diretor do Instituto de Pesquisa
um dos mais significativos e controversos espe- Social, que deu origem ao movimento de ideias
cialistas em direito constitucional e internacional Rodrigo Karmy – Uma das em filosofia e sociologia que conhecemos hoje
da Alemanha do século XX. A sua carreira foi man- como Escola de Frankfurt. Sobre Adorno, confira
chada pela sua proximidade com o regime nacio- contribuições mais decisivas desen- a entrevista concedida pelo filósofo Bruno Pucci
nal-socialista. O seu pensamento era firmemente à edição 386 da Revista IHU On-Line, intitulada
enraizado na teologia católica, tendo girado em volvida pela reflexão agambeniana Ser autônomo não é apenas saber dominar bem as
torno das questões do poder, da violência, bem na saga Homo sacer é a insistência tecnologias, disponível para download em http://
como da materialização dos direitos. (Nota da bit.ly/ihuon386. A conversa foi motivada pela
IHU On-Line) sobre o “ponto de conexão” entre palestra Theodor Adorno e a frieza burguesa em
5 Jacques Lacan (1901-1981): psicanalista francês. tempos de tecnologias digitais, proferida por Pucci
Realizou uma releitura do trabalho de Freud, mas
as técnicas individualizantes e os dentro da programação do Ciclo Filosofias da In-
acabou por eliminar vários elementos deste autor. dispositivos totalizantes, entre os tersubjetividade. (Nota da IHU On-Line)
Para Lacan, o inconsciente determina a consciên- 7 Max Horkheimer (1895-1973): filósofo e soció-
cia, mas ainda assim constitui apenas uma estru- dispositivos totalitários das demo- logo alemão, conhecido especialmente como fun-
tura vazia e sem conteúdo. Confira a edição 267 cracias gerenciais e as formas de dador e principal pensador da Escola de Frankfurt
da revista IHU On-Line, de 4-8-2008, intitulada A e da teoria crítica. Aproximou-se “obliquamente”
função do pai, hoje. Uma leitura de Lacan, disponí- gestão dos regimes totalitários. No do marxismo no final dos anos 1930, mas segun-
vel em http://bit.ly/ihuon267. Sobre Lacan, confira do testemunhos da época raramente citava os no-
as seguintes edições da revista IHU On-Line, pro- entanto, a contribuição agambenia- mes de Marx ou de Lukács em discussões. Apenas
duzidas tendo em vista o Colóquio Internacional na não é nova; nova é a maneira de com a emergência do nazismo, Horkheimer se
A ética da psicanálise: Lacan estaria justificado em aproxima de fato de uma perspectiva crítica e re-
dizer “não cedas de teu desejo”? [ne cède pas sur abordá-lo: a sempre atual crítica da volucionária que o fará escrever, já diretor do Ins-
ton désir]?, realizado em 14 e 15 de agosto de tituto para Pesquisas Sociais, o ensaio-manifesto,
2009: edição 298, de 22-6-2009, intitulada Desejo Escola de Frankfurt, com Adorno6 Teoria Tradicional e Teoria Crítica (1937). Suas
e violência, disponível em http://bit.ly/ihuon298, formulações, sobretudo aquelas acerca da razão
e edição 303, de 10-8-2009, intitulada A ética da Instrumental, junto com as teorias de Theodor
psicanálise. Lacan estaria justificado em dizer “não 6 Theodor Adorno (1903-1969): sociólogo, filó- Adorno e Herbert Marcuse, compõem o núcleo
cedas de teu desejo”?, disponível em http://bit.ly/ sofo, musicólogo e compositor, definiu o perfil do fundamental daquilo que se conhece como Escola
ihuon303. (Nota da IHU On-Line) pensamento alemão das últimas décadas. Adorno de Frankfurt. (Nota da IHU On-Line)

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riosas”. A soberania e o governo, o adquire inteligibilidade o fenômeno este paradigma encontrará sua con-
primeiro e o segundo ciclos, configu- descrito por Hannah Arendt8 sobre o sumação moderna: “A ‘revolução
ram um tipo de conjunto denomina- extermínio operado por Eichmann9 copernicana’ – escreve Agamben –
do tecnicamente de “máquina”: um durante o nacional-socialismo: a operada em Kant, não consiste tan-
dispositivo bipolar em cujo centro “banalidade do mal”. to em colocar no centro o sujeito ao
habita um vazio (o que todo poder invés do objeto – ainda que ambas
disputa é justamente a possibilidade O funcionário realiza um “serviço”,
as contribuições sejam insepará-
mobilizando uma máquina desper-
de capturar o vazio). veis – ​​ou melhor, em haver substi-
sonalizada que carrega consigo o tuído uma ontologia da substância
“mistério” de funcionar sozinha, de com uma ontologia de comando”.
operar sem sujeito algum. É aí, na (Tradução nossa, p. 140). Duas coi-
própria figura do ofício que o mis-
“Esta é a graça tério (a força oculta de Deus) e o
sas me parecem fundamentais. A
primeira é que Agamben transmuta
ministério (sua expressão adminis-
do neoliberalis- trativa) acabam convergindo. E é
seu léxico: a partir da importância
que a noção de “biopolítica” tenha
mo: ao reivindi- nas figuras de Kant10 e Kelsen11 que recebido no primeiro ciclo, dedica-
do à soberania, no segundo ciclo, o
car a liberdade,
8 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e soció-
loga alemã, de origem judaica. Foi influenciada termo inicialmente associado à es-
por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em con- trutura excepcionalista de sobera-
‘democratiza’
sequência das perseguições nazistas, em 1941,
partiu para os Estados Unidos, onde escreveu nia é deslocado pela noção de “go-
grande parte das suas obras. Lecionou nas princi-
vernamentalidade” (ou, se preferir,
as relações de
pais universidades deste país. Sua filosofia assen-
ta em uma crítica à sociedade de massas e à sua por oikonomia). Isto resulta em
tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza
um regresso a uma concepção política separada um terceiro deslocamento opera-
exploração” da esfera econômica, tendo como modelo de ins-
piração a antiga cidade grega. A edição 438 da
IHU On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014,
do em Opus Dei, quando Agamben
disponível em http://bit.ly/ihuon438, abordou o
usa o conceito de “efetividade” e/ou
trabalho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda “comando” para descrever a imple-
as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12- 2005,
IHU On-Line – Em que medi- sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith mentação latina da oikonomia.
da o neoliberalismo enquanto Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, 41
disponível em http://bit.ly/ihuon168, e a edição
dispositivo aprofunda a finan- 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moder- Liturgia do capital
no é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906-
ceirização da vida e o domínio 1975, disponível em http://bit.ly/ihuon206. (Nota
da economia sobre os outros da IHU On-Line) Esta é a graça do neoliberalismo:
9 Adolf Otto Eichmann (1906-1962): oficial do
aspectos da vida? alto escalão na Alemanha Nazista e membro da ao reivindicar a liberdade, “demo-
SS (Schutzstaffel). Foi largamente responsável cratiza” as relações de exploração,
Rodrigo Karmy – O neolibera- pela logística do extermínio de milhões de pes-
soas durante o Holocausto, em particular pelos não apenas no âmbito do “trabalho”,
lismo poderia ser pensado a partir judeus, na chamada Solução Final. Organizou a mas em toda a vida. Hayek não é um
identificação e o transporte de pessoas para os
do paradigma da oikonomia ofere- diferentes campos de concentração, sendo por liberal no sentido clássico: se este
cida por Agamben. Embora o filó- isso conhecido frequentemente como o executor
chefe do Terceiro Reich. Seu julgamento foi co- último ainda concebia uma noção de
sofo concentre seus esforços para berto por Hannah Arendt em cinco artigos para natureza humana, para Hayek o ho-
a revista The New Yorker, os quais mais tarde da-
rastrear sua genealogia no campo riam origem ao livro Eichmman em Jerusalém: Um mem carece de toda a natureza, por-
do Cristianismo helenístico, em relato sobre a banalidade do mal. (Tradução: José
Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Le- que a “liberdade” é uma descoberta
Opus Dei ele estende esta análise ao tras, 1999). (Nota da IHU On-Line) que a cultura ocidental havia feito.
10 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia-
Cristianismo latino, dando ênfase no, considerado como o último grande filósofo E, por esse motivo, apesar de todos
especial ao modo em que o “ofício” dos princípios da era moderna, representante
do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no os descentramentos incorporados
perturba a noção de “virtude” que romantismo alemão e nas filosofias idealistas do por Hayek para fazer do neolibera-
século XIX, as quais se tornaram um ponto de par-
sustentava toda a ética aristotélica, tida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção lismo um discurso capaz de desafiar
transformando-a em “dever”. O nú- entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou
o historicismo marxista, a matriz da
noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o
cleo desta pergunta não será tanto que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não “filosofia da história” é indispensá-
poderia, segundo Kant, ser objeto 11de conhe-
os conceitos teológicos problemati- cimento científico, como até então pretendera a vel. Uma “filosofia da história” que é
zados em O reino e a glória quanto metafísica clássica. A ciência se restringiria, assim,
acusada de ser uma das últimas (no
ao mundo dos fenômenos, e seria constituída pe-
a posição do sacerdote e da liturgia, las formas a priori da sensibilidade (espaço e tem- entendimento de que sua teleologia
no qual o primeiro realiza a “obra de po) e pelas categorias do entendimento. A IHU
On-Line número 93, de 22-3-2004, dedicou sua é imanente em seus próprios proces-
Deus”. É claro que o interesse im- matéria de capa à vida e à obra do pensador com
o título Kant: razão, liberdade e ética, disponível
plícito de Agamben aqui é proble- para download em http://bit.ly/ihuon93. Tam- pelo nazismo e fugiu para os Estados Unidos da
matizar a burocracia moderna e, em bém sobre Kant foi publicado o Cadernos IHU América. Sua obra abrange a Teoria do Direito,
em formação número 2, intitulado Emmanuel principalmente, mas também filosofia do direito,
particular, o fato de que o sacerdote Kant - Razão, liberdade, lógica e ética, que pode dogmática jurídica, especialmente quanto ao di-
ser acessado em http://bit.ly/ihuem02. Confira, reito constitucional e direito internacional, além
opera na Igreja Católica da mesma ainda, a edição 417 da revista IHU On-Line, de de obras propriamente políticas, filosofia da justi-
maneira como o funcionário público 6-5-2013, intitulada A autonomia do sujeito, hoje. ça e sociologia. De sua autoria citamos Teoria pura
Imperativos e desafios, disponível em http://bit.ly/ do Direito (São Paulo, Martins Fontes, 2000); A ilu-
é uma engrenagem a mais da má- ihuon417. (Nota da IHU On-Line) são da justiça (São Paulo: Martins Fontes, 2000); O
11 Hans Kelsen: jurista austríaco, autor da teoria que é justiça? (São Paulo: Martins Fontes, 2001).
quina. Apenas neste horizonte é que pura do direito. De origem judia, foi perseguido (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

sos e que, por isso mesmo, está mui- bos-Ruminott13, enquanto “filosofia os superiores em habilidades de em-
to mais dessubstancializada que as da história do capital”), a “filosofia preendimento individual).
filosofias da história do século XIX) da liberdade” pretende libertar a
e que, por essa razão, apresenta-se alma do Ocidente (a economia) do
como uma defesa do “Ocidente”, já corpo (o Estado). Portanto, o neo- IHU On-Line – Qual é o peso
que teria sido esta “cultura” a que te- liberalismo, em sua matriz neokan- do “operador cristão” em nos-
ria descoberto a “liberdade”. tiana, leva o “ofício” da liturgia ca- sa política moderna? O Estado
racterística do Cristianismo latino laico é uma utopia?
Para Hayek, o marxismo e o na-
à sua consumação. E, justamente
cional-socialismo conduziram o Rodrigo Karmy – Estamos
nesta última “filosofia da história do
Ocidente ao seu declínio precisa- diante de um dos conceitos mais
capital”, presenciamos uma revisão
mente porque fizeram com que se importantes da história moderna:
da noção de “vanguarda”. Como já
esquecesse de sua essência liber- a “secularização”. Em sua arque-
disse em outros lugares, se o mar-
tária. E a “filosofia da liberdade” ologia de conceito intitulada La
xismo situava o proletariado como
opera como um Cristianismo para querella de la secularización, Jean-
sua vanguarda histórica, o neolibe-
o povo que vem para lembrar o -Claude Monod14 nos mostra como
ralismo o substitui pelos “empresá-
Ocidente de sua verdadeira “alma”. esse termo surge no direito canôni-
rios”. Estes deveriam guiar toda a
Como uma “filosofia da liberda- co para designar a expropriação das
sociedade para uma “criatividade”
de”, o neoliberalismo é apresen- propriedades eclesiásticas e o modo
governamentalizada e, portanto,
tado como a filosofia definitiva da em que tal entidade jurídica adqui-
para Hayek é legítimo que os ricos
história, orientada para salvar a riu um forte senso na Modernidade,
dominem a sociedade, uma vez que
“alma” (a “liberdade”) da prisão tornando-se uma verdadeira “filo-
são eles que fornecem a sua inventi-
do “corpo” (o Estado) a que tanto sofia da história”.
vidade, o seu empreendedorismo, a
o marxismo quanto o nacional-so-
sua “criatividade”. Portanto, haveria dois modelos
cialismo submeteram o Ocidente. E
o termo “êxito” funcionará como o O neoliberalismo é uma espécie de de secularização: o modelo fran-
operador que confirma a salvação “aristocratismo econômico”, porque cês, que estabelece uma descon-
ou não de tal “alma”. Se for bem- configura a sociedade em um regime tinuidade radical entre o mundo
42 religioso e o mundo moderno, si-
-sucedida, a alma será salva, senão, meritocrático, mas que, ao contrário
será condenada (a sentença de- da “virtude” grega que tinha uma di- tuando a Revolução como o seu
penderá exclusivamente do “êxito” mensão ético-política, Hayek situa o acontecimento-chave, e o mode-
obtido pelo indivíduo, e jamais da mérito como um “dever” de cunho lo alemão, que estabelece uma
sociedade ou do Estado). exclusivamente econômico-admi- identidade e uma diferença entre
nistrativo. Sobre isto, seria interes- o mundo religioso e o mundo mo-
Por esta razão, as formas de en- derno, situando a Reforma Protes-
sante assistir à série brasileira “3%”,
dividamento (que Agamben me- tante 15 como seu principal evento.
onde o “mérito” constitui o pilar de
ramente anuncia em sua arqueo- Mas o que é mais relevante no tra-
um novo aristocratismo que depen-
logia do ofício, mas que a filósofa balho de Monod é a importância
de exclusivamente das habilidades
Elettra Stimilli 12 desenvolveu com de ter entendido que “seculariza-
e inventividades dos candidatos que
maior contundência em Il debito
procuram o “sucesso” (essa salva-
del vivente. Ascesi e capitalismo e
ção intramundana) para ir viver no 14 Jean-Claude Monod: filósofo francês atuante
em seu outro livro, Debito e colpa) nos Arquivos Husserl, de Paris, no Centre National
“Outro Lado” (o lugar em que vivem
dependerão e serão direcionadas de la Recherche Scientifique (CNRS), École Nor-
male Supérieure. De sua vasta lista de publica-
exclusivamente para cada indiví- ções, citamos La querelle de la sécularisation. De
duo. Enquanto o empreendedo- 13 Sergio Villalobos-Ruminott: filósofo chileno, Hegel à Blumenberg (Paris: Vrin, 2002). Na edição
professor associado de Estudos Espanhóis e La- 175 da IHU On-Line, de 10-4-2006, intitulada
rismo for um “dever”, o indivíduo tino Americanos da Universidade de Michigan, Paulo de Tarso e a contemporaneidade, concedeu
Estados Unidos, e autor de Soberanías en sus- a entrevista Paulo e a fé como loucura, ruptura e
deverá sempre empreender para penso: imaginación y violencia en América Latina escândalo. Na edição 220, de 21-05-2007, falou
endividar-se, uma vez que a dívida (La Cebra, 2013), onde se analisam as implicações sobre A secularização da secularização e o futuro
do conceito de soberania no pensamento, assim da autonomia, adiantando aspectos que abordou
não será uma anomalia do siste- como nas diversas formas culturais, literárias e ar- em sua conferência no Simpósio Internacional O
ma, mas a maneira como a liturgia tísticas do Chile da pós-ditadura. Na década de Futuro da Autonomia. Uma sociedade de indiví-
1990 participou de intensos debates em torno da duos? em 22-5-2007. (Nota da IHU On-Line)
do capital se consuma, como o em- chamada “transição chilena à democracia”, junto 15 Reforma Protestante: movimento reformista
de pensadores como Willy Thayer, Nelly Richard, cristão liderado por Martinho Lutero, autor das
preendimento pode ter lugar. Federico Galende, Pablo Oyarzún, que colocaram 95 teses pregadas na porta da Igreja do Castelo
sob suspeita a euforia transicional predicada em de Wittenberg, na Alemanha, em 31 de outubro
Como filosofia da história (ou, processos de valorização do capital global em de 1517, propondo uma reforma na doutrina do
novas formas de consumo. Editou as conferências catolicismo romano. Lutero foi apoiado por vários
como discutido por Sergio Villalo- de Ernesto Laclau no Chile, intituladas Hegemonía religiosos e governantes europeus. Em resposta, a
y Antagonismo (Cuarto Propio, 2002), e anos de- Igreja Católica Romana implementou a Contrar-
pois concluiu sua tese Literatura latinoamericana y reforma ou Reforma Católica, iniciada no Concílio
12 Elettra Stimilli: filósofa italiana, docente do razón imperial: habitar el espacio literario después de Trento. Em decorrência destes fatos, ocorreu
Departamento de Filosofia da Spaienza Università de la ciudad letrada, na Universidade de Pittsbur- a divisão da chamada Igreja do Ocidente entre
di Roma, Itália. É autora de Debito e colpa (Edies- gh. Confira a entrevista concedida por Ruminott os católicos romanos e os protestantes. Confira a
se: Roma, 2015), Il debito del vivente. Ascesi e à edição 490 da revista IHU On-Line, intitulada O edição 280 da IHU On-Line, de 3-11-2008, inti-
capitalismo (Macerata: Quodlibet, 2011) e Jacob esgotamento da política como efeito inevitável da tulada Lutero. Reformador da Teologia, da Igreja e
Taubes. Sovranità e tempo messiânico (Brescia: globalização, disponível em http://bit.ly/2q9AWJJ. criador da língua alemã, disponível em http://bit.
Morcelliana, 2004). (Nota da IHU On-Line) (Nota da IHU On-Line) ly/2hQ1FFc. (Nota da IHU On-Line)

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

ção” é um termo de forte cunho nas. Se “secularização” é um termo poderia ter sido o espectro de Carl
jurídico e econômico. oikonômico, talvez seja melhor Schmitt?
ir além e tratar o capitalismo não
Sendo assim, há que se perguntar Em todo o caso, talvez, a exigên-
como religião “secularizada”, mas
sobre o lugar que teve – e continua cia de nosso tempo seja ensaiar um
como uma nova religião, diferen-
tendo – o termo “secularização” pensamento radical em torno da
te das antecessoras. Neste regis-
nas pesquisas contemporâneas. questão religiosa que dispense o
tro, trabalhar sob o paradigma da
Muitas vezes penso que “secula- paradigma oikonômico da “secula-
secularização significa manter as
rização” é um termo que funciona rização”, no qual uma possível en-
prerrogativas de uma “filosofia da
exatamente como o aufhebung he- trada seja a aposta benjaminiana,
história do capital” que permanece por compreender o capitalismo não
geliano (no caso de não serem
intacta. “Secularização”, “filosofia como uma religião secularizada,
idênticos, ao menos se a “secula-
da história” e oikonomia seriam o mas como outra religião, diferente
rização” na versão alemã não fun-
próprio dispositivo, a mesma Ges- das anteriores. O capitalismo pode
cionar de outra maneira que em
tell desenvolvida planetariamente. ser visto como religião por sacra-
aufhebung) e que, de certo modo,
é utilizado como um coringa nos lizar tudo o que toca de uma nova
jogos de cartas, pois pode assumir
Religiões inversas forma – a mercadoria. Mas se toda
qualquer valor, possibilitando que Pensar o capitalismo como religião coisa, planta, animal ou ser huma-
o jogo prossiga. Funciona como vai além das duas formas que assu- no pode tornar-se mercadoria – e,
uma espécie de “anjo” que permite miram o paradigma da seculariza- de fato, é, atualmente –, é porque o
o translado entre um lugar e outro, ção. Por um lado, o modelo francês dispositivo de sacralização da vida
entre um mundo e outro. E, como amplia uma descontinuidade entre o emancipou-se das formas clássicas
tal, esse anjo abre espaço para des- mundo religioso e o mundo secular. em que as religiões anteriores situ-
locamento, mas ao preço de ficar Por outro, o modelo alemão debate avam-no. A exploração sistemática
totalmente na sombra. Geralmente uma relativa continuidade (como do trabalho e o constitutivo consu-
refletimos sobre o que é “secula- mo constituirão parte de um enor-
identidade e diferença) entre o
rizado”, mas não necessariamen- me ritual desta nova religião que,
mundo religioso e o mundo secular.
te sobre o termo “secularização” Pensar o capitalismo como religião
como bem indicado por Benjamin, 43
em si. Acredito ser absolutamente carece de redenção, produzindo
implica debater a descontinuidade
fundamental iniciar uma reflexão uma dívida tão infinita quanto a cir-
entre duas formas de religião – de
como a de Monod, mas a partir de culação de capital.
uma religião “monoteísta”, de corte
outro lugar: O capitalismo como clássico, a uma religião “pagã”, de
religião, de Walter Benjamin. ISIS, vanguarda do capita-
caráter moderno, se quisermos.
lismo
Neste trabalho, de cunho frag- A primeira encontra seu equi-
mentário e, portanto, que sempre valente geral na figura de Deus. Seguindo esta via absolutamente
tem algo por vir, Benjamin não A segunda, encontra seu Deus no questionável, atrevo-me a pensar
apenas levanta a tese central de equivalente geral. A primeira viu que o Judaísmo, o Cristianismo
que “o capitalismo é uma religião”, nascer a segunda, mas acabou sen- e o Islamismo, como três gran-
mas que esta implica uma discus- do devorada pela mesma. Pensar o des religiões, viram o nascimento
são aprofundada com Max Weber capitalismo como religião permite do capitalismo, que, finalmente,
(ou melhor, com uma certa linha dividir o nexo oikonômico que a terminou por incorporá-las sob a
weberiana), que projetou uma for- noção de “secularização” (seja em sua égide mercantil. As religiões
ma de “secularização” arraigada no clássicas que o viram crescer a
versão francesa ou alemã) carre-
fenômeno do “desencantamento partir de suas próprias entranhas
ga consigo e fazer um questiona-
do mundo”. Ao contrário da tese converteram-se em “parasitas” da
mento radical sobre o capitalismo.
de Weber, de acordo com a qual o nova religião capitalista. “Para-
No entanto, também devemos ser
capitalismo obedeceria a um certo sita” porque tais religiões foram
prudentes, pois no mesmo ano
“espírito protestante”, para Ben- esvaziadas de suas formas clássi-
(1921) em que o próprio Benja-
jamin, o capitalismo não constitui cas e ressacralizadas em uma nova
min escreve O capitalismo como
uma ordem religiosa “seculariza- forma de mercadoria.
religião, é publicado Para uma
da”, mas ele próprio forma uma
crítica da violência, onde o termo O resultado foi uma mutação in-
nova religião.
central para a investigação da liga- terna das grandes religiões em di-
Talvez a advertência benjaminia- ção entre violência e direito é o do ferentes formas, tais como o pro-
na seja medida pela possibilidade “mito” e não mais o da “religião”. testantismo, o jesuitismo e outras
de que insistir no trabalho sob a A que se deve esse deslocamento formas modernizadoras, assim
noção de “secularização” signifi- lexical entre o termo “religião” e como os diferentes tipos de sionis-
que, cada vez mais, sermos prisio- a opção pelo uso de “mito”? Será mo, no Judaísmo, ou o wahabismo
neiros da oikonomia e suas máqui- que o motor de tal deslocamento saudita, no Islamismo. Pensar essas

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TEMA DE CAPA

transformações como mutações mo- horizonte de inteligibilidade aberto Monarquia), capaz de proporcio-
dernizadoras e não simplesmente pelo capitalismo. nar felicidade aos homens na Terra.
como “resquícios medievais” impli- Por outro, há o caminho “tomista”
Pensar o capitalismo como reli-
ca atentar-se ao modo como essas que traria uma individualização da
gião permite abordar os processos
formas religiosas foram articuladas potência de pensamento, que em
de subjetivação implicados nesta
como vanguardas capitalistas. Este Averróis jazia separada na forma de
nova religião, cujas ações aparecem
é o caso dos diferentes protestantis- unidade pessoal cujo modelo políti-
como abertamente “irracionais”,
mos que nasceram em meio a con- co implica uma “monarquia” estrita-
mas que só podem ser entendidas a
flitos políticos da Europa do século mente pastoral, que garante a liber-
partir do elemento “religioso” pre-
XIV, os conflitos políticos dos Emi- dade de um homem que só poderia
sente na imanência das práticas que
rados Árabes sob a égide do Império ser feliz na vida após a morte.
subjetivam os corpos neoliberais
Turco-Otomano que deu origem ao
sob a forma de empresa (como Gua- Essa tensão entre essas duas linhas
wahabismo, durante o século XVIII,
dalupe Santa Cruz disse, brincando de força é fundamental, porque uma
ou as formas de articulação do pro-
com o significante “empresa”: no expande o campo para uma vida de
jeto sionista de Theodor Herzl16, no
neoliberalismo, os homens tornam- seção iluminada (onde o intelecto se-
final do século XIX.
-se “em-presas” – presos ​​por um ria uma substância impessoal), cuja
Por isso sempre digo que o verda- poder – e “empresas” – organiza- agonia será sentida por Spinoza18 e
deiro Deus do Estado Islâmico do ções capitalistas). Tomemos uma Marx19, e a outra constitui uma vida
Iraque e do Levante (ISIS) é o di- cena que para todos é cotidiana: por de seção eclesial capturada ainda
nheiro, e não Alá, pois se eles fossem que alguém que ganha um monte pelo dispositivo sacrificial. Esta úl-
fiéis a Alá como nos tempos medie- de dinheiro quer ganhar mais? Jus- tima, ao que me parece, terminará
vais, não lhes interessaria nem a tamente porque ganhar dinheiro é triunfando, embora a primeira se
extração do petróleo, nem sua dis- parte da nova forma de subjetivida- mantenha clandestina, sempre à es-
tribuição regional (em meu recente de de natureza litúrgica, a produção preita dos teólogos e sua oikonomia
livro Escritos Bárbaros, lançado no gloriosa das formas rituais caracte- pastoral. Assim, teríamos exatamen-
Chile, sustento a hipótese de que rísticas da nova religião. te um projeto não pastoral derivado
44 ISIS é a “vanguarda do capitalismo” da linha “averroísta” (que permite
e não o seu atraso “medieval”)17. Sacralização de Deus e do ser antecipada a partir dos textos
Capital políticos de Al Farabi) cuja aposta
O que é ISIS senão uma perfor- envolve a articulação de uma política
mance hollywoodiana? O mesmo A mutação da oikonomia cristã da felicidade, a partir da qual se en-
vale para os Opus Dei, que desde na religião capitalista foi um pro- tende o que conhecemos como Repú-
os anos 80 ampliaram seu império cesso interno que teve um de seus blica. Mas penso que este projeto foi
corporativo-financeiro na Améri- pontos de emergência no que deno- permanentemente neutralizado pela
ca Latina graças às prerrogativas mino “imperialidade” ocidental ou linha “tomista”, que impulsionou a
concedidas por Wojtyla. Em razão “razão imperial”, que pode ser de- oikonomia pastoral em diferentes
disso, sempre digo que os sauditas finida pelo discurso que estabelece momentos da “imperialidade”.
e as suas intenções hegemônicas a “ordem das coisas” e que, como
regionais, os sionistas e seu pro- tal, pressupõe uma forma antropo- 18 Baruch Spinoza (ou Espinosa, 1632-1677): fi-
jeto de colonização da Palestina, lógica singular – o homem é consi- lósofo holandês. Sua filosofia é considerada uma
resposta ao dualismo da filosofia de Descartes.
assim como os novos movimentos derado “sujeito” e agente do pensar Foi considerado um dos grandes racionalistas do
século 17 dentro da Filosofia Moderna e o funda-
cristãos (os Opus Dei ou os Legio- cuja consolidação se inicia a partir dor do criticismo bíblico moderno. Confira a edi-
nários) referem-se à mesma égide do debate contra-averroísta propos- ção 397 da IHU On-Line, de 6-8-2012, intitulada
Baruch Spinoza. Um convite à alegria do pensa-
modernizadora de corte imperia- to durante o século XIII pela Igreja mento, disponível em https://goo.gl/KLrx8f. (Nota
da IHU On-Line)
lista, uma vez que são efeito da Católica contra os filósofos. 19 Karl Marx (Karl Heinrich Marx, 1818-1883): fi-
mutação sofrida pelas religiões lósofo, cientista social, economista, historiador e
Nesta perspectiva, Dante Alighieri revolucionário alemão, um dos pensadores que
monoteístas anteriores, no novo exerceram maior influência sobre o pensamento
e Tomás de Aquino configuram-se, social e sobre os destinos da humanidade no sé-
ao meu ver, em duas linhas de for- culo XX. Leia a edição número 41 dos Cadernos
16 Theodor Herzl (1860-1904): jornalista judeu IHU ideias, de autoria de Leda Maria Paulani, que
austro-húngaro que se tornou fundador do mo- ça que começam a lutar no Ocidente tem como título A (anti)filosofia de Karl Marx, dis-
derno Sionismo político. Em 1895 ele escreveu “O ponível em http://bit.ly/173lFhO. Também sobre o
Estado Judeu”. A principal ideia do livro era que a latino nascente. Por um lado, há o autor, confira a edição número 278 da IHU On-Li-
melhor maneira de formar um estado judeu era caminho “averroísta” representado ne, de 20-10-2008, intitulada A financeirização do
formar um congresso sionista formado apenas mundo e sua crise. Uma leitura a partir de Marx,
por judeus. Da ideia partiu para a prática e, pouco por Dante, que traria a aposta de disponível em http://bit.ly/ihuon278. Leia, igual-
tempo depois, já havia formado o “Sionismo Polí- mente, a entrevista Marx: os homens não são o que
tico”. No dia 29 de agosto de 1897 foi realizado o uma potência de pensamento iden- pensam e desejam, mas o que fazem, concedida
primeiro congresso sionista desde a diáspora, em tificada à “espécie” cristalizada em por Pedro de Alcântara Figueira à edição 327 da
Basileia. Durante o congresso foi criada a Orga- IHU On-Line, de 3-5-2010, disponível em https://
nização Sionista Mundial, e Herzl foi eleito presi- uma “monarquia temporal” (que goo.gl/anwmhi. A IHU On-Line preparou uma
dente. (Nota da IHU On-Line) edição especial sobre desigualdade inspirada no
17 Rodrigo Karmy Bolton. Escritos Bárbaros. En- Dante tenta emancipar da Igreja e livro de Thomas Piketty O Capital no Século XXI,
sayos sobre razón imperial y mundo árabe contem- retroceder a essa “época mais feliz”, que retoma o argumento central da obra de Marx
poráneo. Ed. Lom, Santiago de Chile, 2016. (Nota O Capital, disponível em https://goo.gl/0N9d4I.
do entrevistado) própria de Saturno, indicada em De (Nota da IHU On-Line)

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Seu primeiro momento – se acaso do gozo. Se o dispositivo de sacrifício mo” algum. Cosmopolitismo designa
houve algo como um “primeiro mo- operava a partir da “renúncia”, o gozo um lugar de mescla, o ponto em que um
mento” – teria sido o surgimento do aparece como o outro lado do mesmo corpo se deixa tocar por outros corpos
imperialismo hispano-português, du- dispositivo de sacrifício (sua manu- e onde cada língua foge de si mesma,
rante o século XV, e a consequente tenção como poder promotor, desen- deixando-se transpassar por outros
conquista da América e da África. Esta volvedor, gozador, profundo, biopolí- léxicos, sintagmas e formas. Cosmopo-
fase da religião capitalista teve a “evan- tico) que agora torna-se o “mandato” litismo designa uma vida comum que,
gelização” como dispositivo de glori- central da religião capitalista. como tal, será absolutamente impesso-
ficação. O segundo momento é a no- al e inapropriável pela língua, poder ou
toriedade imperial ocupada pelo eixo Cosmopolitismo pós-estatal identidade alguma. Como proposto por
franco-britânico que teve como forma Hamid Dabashi, cujo trabalho tem sido
de glorificação a “civilização” (a missão Neste sentido, um Estado “laico” não essencial para mim, “cosmopolitismo”
civilizatória). O terceiro e último mo- é suficiente se por “laico” entendermos
é o tornar-se ethos de todo o etnos,
mento seria o de uma nova relevância a conservação das formas pastorais sob
uma experiência do habitar, em senti-
apropriada pelo eixo estadunidense- uma perspectiva não confessional. A
do estrito20. Se preferirmos, esta seria a
-atlântico, cujo modo de glorificação chave disto passa por pensar em uma
minha versão do que poderíamos cha-
constituirá o discurso da “democratiza- vida comum emancipada do disposi-
mar de comunismo (ao contrário de
ção”, que atualmente gerou uma crise tivo sagrado que, como tal, permita
Zizek21 que, em seu último livro, sugere
duradoura por ter se realizado como pensar no que posso chamar de um
o comunismo como uma experiência
modelo desde a queda do muro de Ber- cosmopolitismo pós-estatal. Parece-
puramente “europeia”. Na minha pers-
lim, no final dos anos 80. A trama de -me que apenas uma restituição do
pectiva, ou o comunismo se identifica
evangelização-civilização configura-se “Averroísmo”, no que diz respeito ao
com um cosmopolitismo pós-estado ou
no périplo da oikonomia e sua matriz que este contenha de felicidade públi-
não é nada).
pastoral, que acabou por consumar e ca e de vida comum não sacralizada,
transformar internamente o “Cristia- pode ampliar um cosmopolitismo pós- Como tal, o cosmopolitismo de-
nismo” em “capitalismo”. Insisto: não -estatal que impugne a globalização do sativa o dispositivo sacrificial do
há relação aqui com a transição de um capital. E isto não é uma “utopia”, se globalismo e traz para o presente
mundo religioso para outro secular, por este termo entendermos como algo a felicidade pública como expe- 45
mas a passagem de uma forma de sa- “ideal”, inatingível. Pelo contrário, tal riência fundamental da política.
cralização para outra, de um modo de cosmopolitismo já vive em nossas ruas, Tal felicidade foi anunciada pelas
sacralização centrado na ideia de Deus nos milhares de movimentos popula- múltiplas revoltas populares que
para outro modo de sacralização cen- res que têm assolado o presente em di- eclodiram do Cairo a Wall Stre-
trado na ideia de Capital. ferentes latitudes, tal como Marx indi- et, da Tunísia ao Brasil. Revoltas
cava acerca do “comunismo” – que este que estimulam o fluxo de imagi-
O “Tomismo” hegemonizou o “Aver-
era um “movimento real” e, portanto, nação política na qual podemos
roísmo” e não o reprimiu de tudo: este
“utópico” no sentido de que reside em nos reinventar. A revolução não
sempre manifestou-se da maneira que
um não-lugar, pois acontece de manei- alterou o regime, mas mudou o
Freud chamaria de uma formação
ra inoportuna. povo, dizia um célebre grafite nas
de compromisso, ou seja, fez circular
seus velhos conceitos para reunir no- O cosmopolitismo pós-estatal não paredes do Cairo.■
vas lógicas pastorais. É o que acontece descarta nem o Estado nem a demo-
20 Hamid Dabashi The arab spring. The end of
com a democracia hoje, que constitui cracia, mas os excede apropriando-se postcolonialism. Ed. Zed Books, New York, 2012.
o termo imperial por excelência, pois deles em uma experiência de felicidade (Nota do entrevistado)
21 Slavoj Zizek (Slavoj Žižek, 1949): filósofo e
acabou sendo capturado pela nova pública, tal como certa vez Al Farabi teórico crítico esloveno. É professor da European
Graduate School e pesquisador senior no Institu-
égide corporativo-financeira. O pasto- concebeu a experiência política e dei- to de Sociologia da Universidade de Liubliana. É
rado usa um termo republicano, esva- xou o legado ao Ocidente latino através também professor visitante em várias universida-
des estadunidenses, entre as quais estão a Univer-
ziando-o inteiramente de sua força po- do “Averroísmo”. O cosmopolitismo sidade de Columbia, Princeton, a New School for
Social Research, de Nova York, e a Universidade
lítica e transformando a aposta do que indica a experiência em que a vida tor- de Michigan. Publicou recentemente Menos que
Hannah Arendt chamou de felicidade na-se outra, de onde não é cabível “ori- nada. Hegel e a sombra do materialismo dialético
(São Paulo: Boitempo, 2013). (Nota da IHU On-Li-
pública em uma verdadeira religião gem”, “autenticidade” ou “identitaris- ne)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

Oikonomia trinitária enquanto


paradigma da máquina governamental
Adam Kotsko destaca que, para Agamben, economia moderna trabalha com
o princípio da mão invisível, versão secularizada da mão de Deus
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Luísa Flores Somavilla

O
teólogo e professor Adam das as nossas escolhas contribuem para
Kotsko analisa que “o que é um resultado positivo devido à inter-
singular em O reino e a glória venção da mão invisível (que, na verda-
não é sua narrativa em geral ou a cone- de, é uma versão secularizada da mão
xão da Trindade com a política, mas os de Deus, como Agamben argumenta no
detalhes da análise de Agamben”. Ele apêndice de O reino e a glória)”, anali-
acredita que “a sua ligação entre Trin- sa em entrevista concedida por e-mail à
dade e a doutrina da providência repre- IHU On-Line.
senta uma grande mudança de paradig-
Adam Kotsko é teólogo, professor
ma para se pensar o desenvolvimento
assistente de Ciências Humanas no
do pensamento cristão”.
Shimer College, em Chicago, Estados
Kotsko acrescenta: “o ponto de cone- Unidos. Entre suas publicações, des-
46 xão não é a própria Trindade, mas o
tacamos mais recentes destacamos
seu desenvolvimento no paradigma da
Agamben’s Coming Philosophy. Find-
providência”. “Essa doutrina retrata o
ing a New Use for Theology (Editora
governo ou a gestão que Deus faz do
Rowman & Littlefield International,
mundo como fundamentalmente eco-
2015), Politics of Redemption: The
nômica, o que significa que Deus pre-
Social Logic of Salvation (Cambridge,
fere usar meios indiretos para alcançar
James Clarke and Co, 2010), Awk-
seus objetivos. Deus não nos obriga a
wardness (Ropley: Zero Books, 2010)
nada. Em vez disso, Deus opera pelo
e Why We Love Sociopaths: A Guide
nosso livre arbítrio, que Ele indireta-
mente manipula para atingir seus ob- to Late Capitalist Television (Ropley:
jetivos. É assim que, supostamente, a Zero Books, 2012).
economia moderna trabalha, já que to- Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir da gestão da casa, mas passou a abarcar de Deus com o próprio Deus. A vida
perspectiva de Giorgio Agam- outras formas de gestão, mais impro- interior de Deus – a trindade – tem a
ben em O reino e a glória, você visadas, como a gestão das emoções sua própria “economia”, que permite
poderia explicar o que é a oiko- do público em um discurso político, que Ele administre a “economia da
nomia trinitária? por exemplo, ou a gestão de confli- salvação”.
Adam Kotsko – A abordagem tos em um império multicultural.
IHU On-Line – Qual é a no-
de Giorgio Agamben da doutrina Agamben argumenta que quando os
vidade desta ideia e sua con-
da Trindade é singular. Ao invés de teólogos cristãos, incluindo os “he-
tribuição para o debate da te-
destacar os diversos debates que le- reges”, utilizavam essa linguagem,
ologia política e da teologia
varam à formação da ortodoxia tri- eles estavam fazendo referência ao
econômica?
nitária, ele traça o percurso de uma mesmo conceito geral. Deus tem
palavra-chave específica: oikono- que “administrar” sua relação com Adam Kotsko – Agamben não é
mia, o termo grego para “economia”. a Criação, o que significa, primor- o primeiro a dar consequências po-
Oikonomia inicialmente se referia à dialmente, “administrar” a relação líticas à Trindade. Ele aponta para

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REVISTA IHU ON-LINE

“O que é singular em O reino e


a glória não é sua narrativa em
geral ou a conexão da Trindade
com a política, mas os detalhes
da análise de Agamben”

o trabalho de Erik Peterson1, que manas de comunidade, que devem deu uma genealogia parecida. Na
argumentou, opondo-se a Schmitt2, incluir o mesmo tipo de igualdade na verdade, enquanto Agamben estava
que uma teologia política cristã era diversidade que vemos entre Pai, Fi- trabalhando em O reino e a glória,
impossível por causa da Trindade. O lho e Espírito Santo. Um livro muito Dotan Leshem8 estava trabalhando
raciocínio de Peterson foi que a te- bom que recentemente investigou em seu próprio estudo da história da
ologia política de Schmitt dependia e questionou profundamente esta oikonomia na teologia cristã, recen-
de uma analogia entre Deus e um tendência na teologia é God and Di- temente publicado como The origins
governante terreno, mas a Trindade fference (Deus e Diferença), de Linn of Neoliberalism (As origens do Ne-
nos mostra que Deus é radicalmente Tonstad4. oliberalismo).
diferente de qualquer outra coisa na
Agamben também está longe de ser O que é singular em O reino e a gló-
criação – na verdade, Ele não pode
o primeiro a fazer a distinção entre ria não é sua narrativa em geral ou a
ser concebido em nossos termos
política e economia, que já foi feita conexão da Trindade com a política,
terrenos normais (como é que um
por Aristóteles5 e, mais recentemen- mas os detalhes da análise de Agam- 47
pode ser três, por exemplo?). Antes
te, foi adotada por Arendt6. As raízes ben. Mais especificamente, acredito
de Peterson, Karl Barth3 fez uma
teológicas da economia moderna que a sua ligação entre Trindade e a
afirmação semelhante, diminuin-
também não são totalmente desco- doutrina da providência representa
do qualquer ligação entre Deus e as
nhecidas, pois Foucault7 empreen- uma grande mudança de paradigma
autoridades terrenas. Para ambos,
para se pensar o desenvolvimento do
a Trindade demonstra que Deus é 4 Linn Tonstad: teóloga e professora na Universi- pensamento cristão.
radicalmente transcendente e está dade de Yale, nos Estados Unidos, que trabalha na
intersecção da teologia sistemática com a teoria
além de qualquer coisa que possa- feminista e queer. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line – Em que sentido
mos conceber. Por isso, nenhuma 5 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filó- a oikonomia trinitária torna-se
sofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões
autoridade terrena poderia reivindi- filosóficas – por um lado, originais; por outro, re- um paradigma da máquina go-
formuladoras da tradição grega – acabaram por
car nossa fidelidade. configurar um modo de pensar que se estenderia vernamental ocidental?
por séculos. Prestou significativas contribuições
Outros teólogos, já no século XX, para o pensamento humano, destacando-se nos Adam Kotsko – O ponto de cone-
campos da ética, política, física, metafísica, lógica,
também fizeram declarações polí- psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e xão não é a própria Trindade, mas o
ticas sobre a Trindade, muitas ve- história natural. É considerado, por muitos, o filó- seu desenvolvimento no paradigma
sofo que mais influenciou o pensamento ociden-
zes argumentando – em oposição a tal. (Nota da IHU On-Line) da providência. Essa doutrina retra-
6 Hannah Arendt (1906-1975): filósofa e soció-
Barth e Peterson – que a Trindade loga alemã, de origem judaica. Foi influenciada ta o governo ou a gestão que Deus faz
fornece um modelo para formas hu- por Husserl, Heidegger e Karl Jaspers. Em con- do mundo como fundamentalmente
sequência das perseguições nazistas, em 1941,
partiu para os Estados Unidos, onde escreveu
grande parte das suas obras. Lecionou nas prin-
1 Erik Peterson Grandjean (1890-1960): teólogo cipais universidades dos EUA. Sua filosofia assen- filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
católico alemão. De formação protestante, con- ta em uma crítica à sociedade de massas e à sua palmente do tema do poder, rompendo com as
verteu-se ao catolicismo em 1930, especializan- tendência para atomizar os indivíduos. Preconiza concepções clássicas do termo. Em várias edições,
do-se em patrística. Ele era um opositor do na- um regresso a uma concepção política separada a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
zismo e teve uma grande influência sobre muitos da esfera econômica, tendo como modelo de ins- cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
teólogos do século XX. (Nota da IHU On-Line) piração a antiga cidade grega. A edição 438 da http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
2 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo políti- IHU On-Line, A Banalidade do Mal, de 24-3-2014, disponível em http://bit.ly/ihuon203; edição 364,
co e professor universitário alemão. É considerado disponível em http://bit.ly/ihuon438, abordou o de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
um dos mais significativos e controversos espe- trabalho da filósofa. Sobre Arendt, confira ainda discurso racional em debate, disponível em http://
cialistas em direito constitucional e internacional as edições 168 da IHU On-Line, de 12-12-2005, bit.ly/ihuon364; edição 343, O (des)governo biopo-
da Alemanha do século XX. A sua carreira foi man- sob o título Hannah Arendt, Simone Weil e Edith lítico da vida humana, de 13-9-2010, disponível
chada pela sua proximidade com o regime nacio- Stein. Três mulheres que marcaram o século XX, em http://bit.ly/ihuon343, e edição 344, Biopolíti-
nal-socialista. O seu pensamento era firmemente disponível em http://bit.ly/ihuon168, e a edição ca, estado de exceção e vida nua. Um debate, dis-
enraizado na teologia católica, tendo girado em 206, de 27-11-2006, intitulada O mundo moder- ponível em http://bit.ly/ihuon344. Confira ainda a
torno das questões do poder, da violência, bem no é o mundo sem política. Hannah Arendt 1906- edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação,
como da materialização dos direitos. (Nota da 1975, disponível em http://bit.ly/ihuon206. (Nota disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Fou-
IHU On-Line) da IHU On-Line) cault. (Nota da IHU On-Line)
3 Karl Barth (1886-1968): teólogo cristão-pro- 7 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. 8 Dotan Leshem: é um historiador de sistemas de
testante, pastor da Igreja Reformada, e um dos Suas obras, desde a História da Loucura até a His- pensamento econômico e político e um professor
líderes da teologia dialética e da neo-ortodoxia tória da sexualidade (a qual não pôde completar sênior na Escola de Ciência Política da Universi-
protestante. (Nota da IHU On-Line) devido a sua morte) situam-se dentro de uma dade de Haifa, em Israel. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

econômica, o que significa que Deus radicalmente diferente da de Aren- dência-destino para uma provi-
prefere usar meios indiretos para al- dt, principalmente por basear-se dência-liberdade?
cançar seus objetivos. Deus não nos na genealogia foucaultiana, mas as
Adam Kotsko – Agamben mos-
obriga a nada. Em vez disso, Deus preocupações básicas de ambos são
tra como os pensadores cristãos
opera pelo nosso livre arbítrio, que bastante semelhantes.
utilizam-se de conceitos estoicos da
Ele indiretamente manipula para
providência, que funcionam de ma-
atingir seus objetivos. É assim que,
neiras muito semelhantes – Deus age
supostamente, a economia moder- IHU On-Line – Que relações indiretamente, etc. A diferença que
na trabalha, já que todas as nossas podem ser estabelecidas entre eu vejo é que o cristianismo enfatiza
escolhas contribuem para um resul- economia e glória? muito mais a liberdade, e os teólogos
tado positivo devido à intervenção
Adam Kotsko – A tradição teoló- cristãos continuam insistindo no li-
da mão invisível (que, na verdade, é
gica torna esta ligação muito direta vre arbítrio, mesmo quando também
uma versão secularizada da mão de aceitam a predestinação. Para mim,
Deus, como Agamben argumenta no através da atribuição de direitos eco-
nômicos aos anjos, que existem prin- isso mostra a diferença fundamen-
apêndice de O reino e a glória). tal entre a visão de mundo estoica e
cipalmente para glorificar a Deus. E,
claro, toda a economia da salvação, a cristã. O objetivo do estoicismo é
em última instância, existe para tra- proporcionar ao indivíduo uma acei-
IHU On-Line – Qual é a impor- tação de seu destino através do desa-
zer glória a Deus, reivindicando-o
tância da oikonomia para o pa- pego emocional e da contemplação. O
como o Senhor e Salvador de toda a
radigma da biopolítica e o triun- objetivo do cristianismo, no entanto,
criação. Para Agamben, esta ligação
fo da economia e do governo? é o julgamento moral do mundo e de
parece inicialmente intrigante, por-
Adam Kotsko – Neste ponto eu que a glória é mais associada ao so- todos os seus indivíduos. Os dois con-
gostaria que Agamben fosse mais ex- berano, ou seja, à esfera política. Ele vergem na prática moderna da “teo-
plícito e direto. Às vezes parece que a dedica um capítulo inteiro à glória do diceia” – que significa justificar o sta-
imperador, que tem suas próprias li- tus quo do nosso mundo em termos
sua análise em O reino e a glória não
turgias públicas e refere-se ao ressur- teológicos –, como assinala Agamben
está intimamente ligada ao resto dos
48 gimento de cerimônias políticas sob no apêndice do livro.
livros Homo Sacer, e sua tentativa de
assimilá-la a outros livros na conclu- movimentos fascistas do século XX.
são de O uso dos corpos não é total-
Mais ao fim do livro, ele também IHU On-Line – Do que se trata
mente convincente na minha opinião.
sugere que o que chamamos de es- o governo indireto no cristia-
Uma maneira de tentar preencher es-
fera pública ou de opinião pública nismo e na Modernidade, con-
sas lacunas é traçar um paralelo entre
– circulação de doxa (expressão gre- siderando o paradigma do ato
o paradigma econômico – que consi-
ga que significa opinião e glória) no de governar? Qual é o “dano co-
dera a sociedade como um ambiente
“mercado das ideias” – é uma versão lateral” da Providência?
doméstico – e a tentativa biopolítica secularizada da combinação cristã
de trazer a “vida comum” para a es- entre economia e glória. Para mim, Adam Kotsko – Em ambos os
fera política, sendo que, na verdade, esta análise parece apontar nova- paradigmas, não é um governo dire-
“pertence” à esfera doméstica. mente à sua afirmação no final de O tamente coercitivo. Deus não desce
A partir desta perspectiva, pode- Sacramento da Linguagem, que diz dos céus e força as pessoas a faze-
mos ver que Agamben está prepa- que um mundo que se torna exclusi- rem o que é certo, e o governo não
rando o terreno para sua análise da vamente oikonomia está condenado coloca uma arma na cabeça de nin-
oikonomia em sua discussão do di- a falar sempre em vão. Sem uma esfe- guém para forçar a pagar impostos,
reito do pai em Homo Sacer, ou em ra propriamente política, nossas pa- por exemplo. Intervenções diretas
como o Império Romano tornou-se lavras não têm significado real, mas podem acontecer, mas são exceções
a casa do imperador em Estado de simplesmente circulam como marca- à regra – no cotidiano, o governo
dores de popularidade ou pertenci- depende que as pessoas “voluntaria-
Exceção. Ambas são narrativas so-
mento, sem consequências políticas. mente” sigam as leis. E nós continua-
bre como a família invade o âmbito
mos seguindo enquanto percebemos
propriamente político, com conse-
que o sistema está nos beneficiando
quências terrivelmente destrutivas.
ou enquanto essa seja uma alternati-
E aqui eu acho que a abordagem IHU On-Line – Você pode vol-
va mais plausível.
de Hannah Arendt do político e do tar à origem do conceito estoico
econômico no livro A Condição Hu- da providência e explicar sua li- Assim, tanto Deus quanto o go-
mana influencia-o profundamente gação com a noção moderna de verno nos controlam através do
– algo que ele mesmo anuncia nas economia e governo da vida? nosso livre arbítrio. E em ambos
páginas iniciais de Homo Sacer, Quais são os aspectos funda- os paradigmas, as nossas esco-
mas depois não toca mais no as- mentais da reformulação, pela lhas às vezes são ruins – e este é
sunto. A abordagem de Agamben é cristandade, da estoica provi- o “efeito colateral” do sistema. No

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

sistema teológico, Deus faz uso do agir, é a explicação de Agamben teis, sem sentido, infindáveis. Nós
dano colateral para extrair o bem para a práxis livre e anárquica. queremos agir de forma eficiente –
do mal. Já o sistema secular de go- A ação política que resulta des- e este conceito é explorado por ele
verno pode utilizar certos tipos de sa configuração baseia-se, por- mais extensamente no Opus Dei –
“danos colaterais” (por exemplo, o tanto, não em ser, mas em agir. sem questionar para quê. Queremos
modus operandi do capitalismo, Poderíamos dizer que esta é a utilidade, mas esquecemos que a
que, por vezes, deixa as pessoas raiz administrativa lógica que utilidade só pode existir no contexto
carentes e sem-teto) como um es- permeia a política ocidental? de um objetivo mais abrangente – a
tímulo a uma maior obediência e Por quê?
produtividade das pessoas que te- utilidade não pode ter um fim em si
mem tornar-se “danos colaterais” Adam Kotsko – Esta é uma das mesma. Aqui, assim como em mui-
a si mesmos. partes mais difíceis da discussão tos lugares, eu acredito que ele está
de Agamben. Acredito que ele este- reelaborando ideias de Arendt em
ja querendo dizer que o paradigma A Condição Humana, traçando seu
IHU On-Line – A quebra en- econômico, que privilegia o agir so- próprio caminho na tradição intelec-
tre teologia e oikonomia ou, bre o ser, acaba exigindo ações só tual ocidental, a fim de aprofundar e
em outras palavras, entre ser e por exigir, mesmo sendo ações inú- problematizar a sua narrativa.■

Leia mais
- Agamben e o repensar da teologia a partir de seus fundamentos. Entrevista com Adam
Kotsko e Colby Dickinson, reproduzida nas Notícias do Dia de 15-9-2013, no sítio do Instituto
Humanitas Unisinos - IHU, disponível em http://bit.ly/1qbbTSf.
49
- Žižek e a tentativa radical de repensar a tradição cristã. Entrevista com Adam Kotsko
publicada na IHU On-Line, número 431 de 4-11-2013, disponível em http://bit.ly/1hQkdV2.
- A revelação da “morte de Deus” e a teologia materialista de Slavoj Žižek. Cadernos
Teologia Pública número 92, disponível em http://bit.ly/2izKBHB.
- Política e perversão: Paulo segundo Žižek. Cadernos Teologia Pública número 88, dispo-
nível em http://bit.ly/2j49yrQ.

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

A necessidade de uma outra


política a partir da lei inoperante
Colby Dickinson afirma que a potência destituinte permite
que a lei seja desativada e assim se faça um novo uso dela
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Luísa Flores

P
recisamos pensar para além da gemônicas em termos globais.
oikonomia e da glória, a partir Colby Dickinson é professor de
de uma nova perspectiva sobre Teologia na Universidade Loyola, em
a política, suspendendo-a e retornando Chicago. É autor de Agamben and
com um viés diferente. De acordo com
Theology (London: T&T Clark, 2011) e
o filósofo norte-americano Colby Di-
Between the Canon and the Messiah:
ckinson, “pensar o papel da inoperati-
The Structure of Faith in Contempo-
vidade, para Agamben, significa lançar
rary Continental Thought (London:
um olhar renovado sobre como a sus-
pensão do nomos ou da lei é, na verda- Bloomsbury, 2013) e de vários artigos
de, o que está no coração de toda a lei – sobre a filosofia e teologia continental
o ‘Impolítico’, como é chamado por ele, contemporânea. É editor de The Post-
que funda toda a política”. E acrescen- modern ‘Saints’ of France (London:
50 ta: “A maneira como uma forma de vida T&T Clark, 2013) e The Shaping of Tra-
é capaz de tornar inoperante esta ma- dition: Context and Normativity (Leu-
quinaria antropológica pastoralmente ven: Peeters, 2013).
concebida – e assim manifestar outra Dickinson é conferencista no VI Co-
forma de glória além do que vimos – é lóquio Internacional IHU – Po-
o que Agamben faz questão de destacar
lítica, Economia, Teologia. Con-
a fim de atingir algo como a vida para
tribuições da obra de Giorgio
além da sua inscrição na lei e na repre-
Agamben, que ocorre nos dias 23 e 24
sentação política”. A política ocidental,
de maio de 2017. Acesse a programação
pontua Dickinson, investe suas ener-
gias em demonstrações militaristas que completa em http://bit.ly/2fr695n.
aprofundam relações hierárquicas e he- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Tomando em talvez, como ele incita (embora ins- de romper com leis que englobam as
consideração a biopolítica e a pirado nos escritos de Platão1), atra- nossas identidades e, assim, promo-
glória enquanto faces da máqui- vés da formação de comissões que se ver esta forma de suspensão messiâ-
na governamental bipolar, quais concentra na retirada ou na negação nica, é o desafio ao qual precisamos
são os principais desafios da de- de leis específicas. Ou seja, ser capaz aprender a pensar, para ver com no-
mocracia em nosso tempo? vos olhos as formações democráticas
1 Platão (427-347 a.C.): filósofo ateniense. Cria-
dor de sistemas filosóficos influentes até hoje, que norteiam uma boa parte da nos-
Colby Dickinson – Como Agam- como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo sa ordem política atualmente.
ben estrutura em sua série Homo de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. En-
tre suas obras, destacam-se A República e Fédon.
Sacer, especialmente em seu conclu- Sobre Platão, confira e entrevista As implicações Além disso, seria interessante no-
éticas da cosmologia de Platão, concedida pelo fi-
sivo volume O uso dos corpos, pre- lósofo Marcelo Perine à edição 194 da revista IHU tar como a existência de certas ONGs
cisamos aprender a estabelecer uma On-Line, de 4-9-2006, disponível em http://bit. globais e até mesmo de certos tribu-
ly/pteX8f. Leia, também, a edição 294 da Revista
forma de potência destituinte que IHU On-Line, de 25-5-2009, intitulada Platão. A nais internacionais já estão concreti-
totalidade em movimento, disponível em http://
nos permita tornar a lei inoperante, bit.ly/2j0YCw8. (Nota da IHU On-Line) zando um pouco deste sentido, pois

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Nos Estados Unidos, pelo menos,


estamos muito acostumados às
retóricas ideológicas que ressoam
profundamente com a análise
do ser e do agir de Agamben”

desafiam as leis existentes buscando dental e cristão, mesmo e sobretudo poder – um desempenho de poder
a sua revogação. Mas isso, natural- quando estas formas contestam e que legitima sua percepção como
mente, é pragmático demais para desafiam a própria Igreja (ou as ins- sendo soberanos retroativamente.
Agamben se dedicar em um contexto tituições políticas ocidentais que a
A política ocidental, principal-
cotidiano, e eu não o culpo por não Igreja ajudou a estruturar, como no
mente no período moderno, gasta
abordar esta questão diretamente. caso da monarquia soberana).
boa parte de sua energia e recur-
Precisamos levar em conta as nuan-
ces da discussão teórica e filosófica sos (especialmente em um sentido
dessas questões. Gostaria apenas militarista) no exercício de tais
IHU On-Line – A fratura de- demonstrações de poder e capa-
que alguém em algum lugar fosse tectada entre teologia e oiko-
curioso o suficiente para ouvi-lo em cidade, aumentando quaisquer
nomia, em outras palavras,
relação às comissões e refletir mais a noções de poder de decisão que
entre ser e agir, é a explicação
fundo sobre se os grupos atuais em precisem ser destacadas, a fim de
de Agamben para a práxis li-
nosso mundo já estão atuando nesta vre e anárquica. A ação política
estabelecer relações hierárquicas 51
direção ou não. e hegemônicas globalmente. Po-
resultante de tal configuração
demos considerar, por exemplo,
Além disso, e segundo os recentes tem sua fundamentação, por-
como ‘hawkish’, como é geralmen-
argumentos de Achille Mbembe2, é tanto, não no ser, mas no agir.
te chamado, um líder que é capaz
preciso fazer uma distinção entre Poderíamos afirmar que é essa
de agir e tomar decisões, de forma
as forças neoliberais do capitalismo a raiz lógica administrativa que
a reinar em sua supremacia de so-
que são verdadeiramente niilistas, permeia a política ocidental?
Por quê? berano em uma escala global. Nos
sem qualquer tipo de base moral, e Estados Unidos, pelo menos, esta-
o legado de um humanismo liberal Colby Dickinson – Sim, e em um mos muito acostumados às retóri-
que ainda fala muito diretamente à sentido muito literal. Os políticos cas ideológicas que ressoam pro-
era contemporânea, incluindo a nos- normalmente adoram demonstrar fundamente com a análise do ser e
sa visão de mundo secular. Recen- seu poder (ou pelo menos o desem- do agir de Agamben.
temente, ao ler o estudo histórico A penho do poder de sua posição),
Invenção do Indivíduo, de Larry Sie- através de sua capacidade de agir e, O que é realmente importante para
dentop3, fiquei impressionado pelos de um jeito ainda mais schmittiano, Agamben, no entanto, é compreen-
paralelos que parecem existir entre a decidir (e em qualquer contexto em der o papel do uso para além des-
sua defesa do liberalismo humanis- que seu exercício de poder possa ser sa dicotomia de ser e agir, uma vez
ta ocidental e o projeto de Agamben exercitado, não importando, para al- que é o que nos empurra para além
para recuperar a mensagem messiâ- guns, o quão pequenas tais decisões de qualquer sentimento de posse e,
nica do pensamento paulino. Ambos possam ser – o que costumamos portanto, para a suspensão (ou ne-
os autores parecem estar na mesma chamar de ‘microgestão’, em cujas gação) da própria identidade. A par-
direção em termos de oferecer uma minúcias vários líderes se perdem). tir desta perspectiva, pode-se perce-
perspectiva para a recuperação de Alguns políticos ainda gostam de ber por que os debates franciscanos
formas vitais do pensamento oci- insinuar que um bom líder é aquele sobre posse e uso são tão cruciais
que age, que toma as decisões im- para Agamben: eles apontavam para
2 Achille Mbembe (1952): filósofo camaronês,
teórico político e intelectual. É professor de Histó- portantes, até mesmo se elas forem uma outra maneira de pensar o estar
ria e Política na Universidade de Harvard. É espe- equivocadas ou destrutivas. Em um no mundo, mais alinhado à leitura
cialista em história e política africana, autor de La
naissance du maquis dans le Sud-Cameroun (Paris, sentido muito explícito, simples- paulina da vocação messiânica. Com
Karthala, 1996). (Nota da IHU On-Line)
3 Larry Siedentop (1936): filósofo britânico es- mente ser a pessoa que decide e que certeza, não é isso o que o mundo
pecialista em liberalismo francês do século 19. age como o soberano deve agir é o valorizaria como um líder eficaz; no
É autor de Democracy in Europe. (Nota da IHU
On-Line) que demonstra que alguém detém o entanto, para ser claro, tanto para

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

Paulo4 como para Agamben este é o lei – o ‘Impolítico’, como é chamado séculos, embora também não sem
único sentido em que um líder se- por ele, que funda toda a política. dificuldades advindas de dentro da
ria realmente eficaz: através da sua A glória simboliza essencialmente Igreja, especialmente em relação
capacidade de regredir ao ponto de o impolítico ou inoperante, e é fá- às formas de vida monásticas, que
potencial onde a sua identidade foi cil imaginarmos isto quando vemos Agamben também deseja recupe-
desfeita, desfazendo também o sen- como, ainda hoje, as pessoas glori- rar de maneira significativa em seu
so de ser em posse do poder. ficam e são fascinadas por famílias projeto Homo. A maneira como
reais cuja existência cotidiana não uma forma de vida é capaz de tornar
parece ter nenhum outro sentido do inoperante esta maquinaria antro-
IHU On-Line – Por que a gló- que a sua própria existência. pológica pastoralmente concebida
ria é considerada por Agamben – e assim manifestar outra forma de
como o arcano central do poder? glória além do que vimos – é o que
IHU On-Line – A partir da Agamben faz questão de destacar a
Colby Dickinson – Como Agam- fim de atingir algo como a vida para
perspectiva analisada por
ben conclui de forma sucinta no epí- além da sua inscrição na lei e na re-
Agamben, por que o poder ne-
logo de O uso de corpos, a glória vi- presentação política.
cessita da inoperosidade e da
sibiliza o Arcano central do poder, a
glória? Estou menos convencido de que
sua inoperosidade, simbolizado pelo
trono vazio do soberano (ou do Papa, Colby Dickinson – O principal Agamben esteja tentando escapar
nas obras de arte de tantas igrejas). foco de Agamben é mostrar como permanentemente a esta inscrição na
Somos fascinados pela glória, diz a glória funciona e, assim, tornar subjetividade do que tentando sujei-
ele. No entanto, ainda não sabemos o poder inoperante, no sentido de tar as operações de poder a uma críti-
o que fazer com ela. Nós certamente suspender sua construção do sujeito ca que se encontra permanentemente
reconhecemos, no entanto, sua cen- (ocidental). Com isso, ele parece es- fora do seu alcance. A conclusão de O
tralidade para as operações de poder tar sugerindo outra forma de glória, uso de corpos, a meu ver, parece in-
e todas as suas relações – o ‘último diferente da que tem circundado a dicar tanto quanto a ideia paulina de
mistério da divindade e do poder’. soberania ocidental por séculos, uma que Cristo não veio para abolir a lei,
52 Pensar o papel da inoperosidade, forma de glória aberta à suspensão mas para suspendê-la. Nesta obra,
para Agamben, significa lançar um da lei e que serviria para explicar o acredito que ele compartilha da ênfa-
olhar renovado sobre como a sus- uso paulino (ou bíblico) de glorifi- se de Jean-Yves Lacoste6 sobre as ten-
pensão do nomos ou da lei é na ver- car a Deus, que circula na suspensão sões e oscilações inerentes no mundo
dade o que está no coração de toda a messiânica de todas as identidades e na liturgia (que compartilha certas
(a revogação de todas as vocações, afinidades com a noção de Agamben
como ele chama). da suspensão messiânica). A nota de
4 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso, na conclusão de Lacoste em sua obra Ex-
Cilícia, hoje Turquia, era originariamente chamado A análise de Michel Foucault5 do
de Saulo. Entretanto, é mais conhecido como São periência e absoluto, que afirma que
Paulo, o Apóstolo. É considerado por muitos cris- poder pastoral nos mostra a influ- nós devemos, em última instância,
tãos como o mais importante discípulo de Jesus
e, depois de Jesus, a figura mais importante no ência de tais poderes na formação e abraçar a pobreza de nossa existência
desenvolvimento do Cristianismo nascente. Pau- gestão de subjetividades, e Agamben
lo de Tarso é um apóstolo diferente dos demais. (citando São Francisco de Assis7), se
Primeiro porque, ao contrário dos outros, não não subestima a importância destes encaixa muito bem com os objetivos
conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua con-
versão, se dedicava à perseguição dos primeiros estudos para o seu próprio trabalho. globais de uma potência destituinte
discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em O poder pastoral certamente esteve de Agamben (que Alain Badiou8 de-
uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande lado a lado com determinadas jus-
luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três tificativas teológicas ao longo dos
dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
partir deste encontro, Paulo começou a pregar o 6 Jean-Yves Lacoste: filósofo francês autor de Ex-
Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou périence et absolu: Questions disputées sur l’huma-
uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo nité de l’homme. (Nota da IHU On-Line)
(era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em 5 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. 7 São Francisco de Assis (1181-1226): frade ca-
duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito Suas obras, desde a História da Loucura até a His- tólico, fundador da Ordem dos Frades Menores,
pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é tória da sexualidade (a qual não pôde completar mais conhecidos como Franciscanos. Foi canoni-
considerado uma das principais fontes da doutri- devido a sua morte), situam-se dentro de uma zado em 1228 pela Igreja Católica. Por seu apreço
na da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção filosofia do conhecimento. Foucault trata princi- à natureza, é mundialmente conhecido como o
fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que palmente do tema do poder, rompendo com as santo patrono dos animais e do meio ambiente.
foi ele quem verdadeiramente transformou o cris- concepções clássicas do termo. Em várias edições, Sobre Francisco de Assis, confira a edição 238 da
tianismo em uma nova religião, superando a ante- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou- IHU On-Line, de 1-10-2007, intitulada Francisco.
rior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Li- cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em O santo, disponível em https://goo.gl/mcsbsc,
ne 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006, e a entrevista com a medievalista italiana Chiara
Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364, Frugoni, intitulada Uma outra face de São Francis-
em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o co de Assis, na revista IHU On-Line número 469,
286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevân- discurso racional em debate, disponível em ht- de 3-8-2015, disponível em http://bit.ly/2erAzUq.
cia atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0. tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo (Nota da IHU On-Line)
Também são dedicadas ao religioso a edição 32 biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis- 8 Alain Badiou (1937): filósofo, dramaturgo e
dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tar- ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, romancista, leciona filosofia na Universidade de
so desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de- Paris-VII Vincennes e no Collège International de
realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con- Philosophie. É autor, entre muitos outros, do livro
edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em Saint Paul. La fondation de l’universalisme (Paris:
Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, PUF, 1997), várias vezes reeditado na França e tra-
mulher cristã no século I, disponível em http://bit. Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa- duzido em diferentes línguas como o inglês e o
ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line) ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) italiano. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

nominou de busca da “pobreza onto- mos observar como essa trajetória se vida social e política, o que ele critica
lógica”). Lacoste procura também pela desenrola, começamos então a com- como o verdadeiro objetivo da ação co-
maneira como a inexperiência litúrgi- preender o papel do trabalho de Jean- municativa ou da criação de unidade,
ca no coração de toda a vivência torna- -Luc Marion10 e seu fenômeno satura- mas que também parece caracterizar o
-a, em última análise, inoperante, mas do (derivado diretamente do sublime fascismo, até certo ponto – o que De-
que também nos permite revisitar o kantiano e do infinito cartesiano) ou bord11 chamou de ‘sociedade do espetá-
conhecimento através das lentes de de Jean-Luc Nancy e sua “kenolo- culo’, como observa Agamben. É tam-
uma experiência para além de todo o gia”, centrada no estado kenótico da bém, se é que se pode considerar assim,
conhecimento e que, acredito, nos leva existência, na nossa compreensão do o ponto em que a liturgia e a vida social
ao limite da experiência do sublime, escopo do projeto de Agamben em re- tornam-se indistinguíveis. Os sonhos
como Kant9 propunha. Se conseguir- lação à filosofia contemporânea. utópicos de vários teólogos e capita-
listas foram construídos sobre essas
9 Immanuel Kant (1724-1804): filósofo prussia-
no, considerado como o último grande filósofo fundações também, devo acrescentar.
dos princípios da era moderna, representante IHU On-Line – Como podemos
do Iluminismo. Kant teve um grande impacto no Agamben chama a nossa atenção, no
romantismo alemão e nas filosofias idealistas do compreender a expressão “de- entanto, para a maneira como é preciso
século 19, as quais se tornaram um ponto de par-
tida para Hegel. Kant estabeleceu uma distinção mocracia gloriosa” que Agam- ir além da oikonomia e além da glória,
entre os fenômenos e a coisa-em-si (que chamou ben menciona no limiar do ca- a fim de pensar a política com novos
noumenon), isto é, entre o que nos aparece e o
que existiria em si mesmo. A coisa-em-si não po- pítulo 7 de O reino e a glória? olhos, de um lugar onde ela esteja sus-
deria, segundo Kant, ser objeto de conhecimento
científico, como até então pretendera a metafísica Colby Dickinson – A “democracia pensa, para que possamos retornar a
clássica. A ciência se restringiria, assim, ao mundo
dos fenômenos, e seria constituída pelas formas gloriosa” de que Agamben fala aqui ela novamente, mas de uma perspecti-
a priori da sensibilidade (espaço e tempo) e pe- va totalmente nova. ■
las categorias do entendimento. A IHU On-Line considera que a “oikonomia está total-
número 93, de 22-3-2004, dedicou sua matéria mente resolvida na glória”, e, portanto,
de capa à vida e à obra do pensador com o tí-
tulo Kant: razão, liberdade e ética, disponível em tem permeado todos os aspectos da
http://bit.ly/ihuon93. Também sobre Kant, foi pu-
blicado o Cadernos IHU em formação número 11 Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo
2, intitulado Emmanuel Kant – Razão, liberdade, On-Line) francês, autor de A sociedade do espetáculo - Co-
lógica e ética, que pode ser acessado em http:// 10 Jean-Luc Marion (1946): filósofo francês. Ca- mentários sobre a sociedade do espetáculo (Rio de
bit.ly/ihuem02. Confira, ainda, a edição 417 da racteriza-se por combinar a teologia com a feno- Janeiro: Contraponto, 1997) e fundador da Inter-
revista IHU On-Line, de 6-5-2013, intitulada A menologia, por exemplo, na sua concepção feno- nacional Situacionista (IS). Sobre ele, confira ainda
autonomia do sujeito, hoje. Imperativos e desafios, menológica do dom, inspirada parcialmente por a autobiografia Panégyrique (Paris: Éditions Gé- 53
disponível em https://goo.gl/SIII5H. (Nota da IHU Jacques Derrida. (Nota da IHU On-Line) rard Lebovici, 1989). (Nota da IHU On-Line)

Leia mais
- A estrutura da fé no pensamento continental contemporâneo. Entrevista especial
com Colby Dickinson, publicado nas Notícias do Dia de 24-11-2013, disponível em
http://bit.ly/2iiY8mu.

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

O uso espetacular da incerteza e dos perigos


produz um estado de paralisia sugestiva
Andrea Cavalletti defende que é preciso uma constante
desmitologização para ao menos sermos conscientes do que
está acontecendo com este planeta e capazes de ter medo
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Moisés Sbardelotto


Quando proteção e terror se sobre- Cavalletti fala de algo que conhece por
põem perfeitamente, o que desa- experiência pessoal, em referência aos
parece é a própria possibilidade de europeus, os quais considera incapazes
estabelecer um limite”, afirma Andrea de sentir medo, embora, aparentemen-
Cavalletti, em entrevista concedida por te, pareça o contrário. Isso ocorre “jus-
e-mail à IHU On-Line. No seu enten- tamente porque vivem no constante
dimento, os “Estados (e as instituições terror daquilo que não deveriam temer.
supranacionais) se fundamentam, por Eles tendem e são facilmente induzidos
definição, na insegurança e são forma- a ter medo somente daqueles que não
ções precárias e metaestáveis – isto é, dariam medo a uma criança, isto é, dos
como nos foi bem explicado, nada mais inermes, dos refugiados famintos (so-
do que ‘processos de estatização’”. Dis- bre os quais são jogadas até responsa-
so vem “a necessidade do chamado mo- bilidades pelo terrorismo, pelo qual, em
54 nopólio da violência [...] ou o uso contí- vez disso, deveríamos bater no peito)”.
nuo da violência (diretamente exercida, Andrea Cavalletti é professor de
cultivada ou favorecida) como meio de Estética e Literatura Italiana na Uni-
estabilização, que, certamente, inclui, versidade IUAV de Veneza e orador
por sua vez, o uso espetacular da incer- convidado para conferências em todo
teza e dos perigos, a fim de produzir um o mundo. Editor de várias obras, entre
estado de paralisia sugestiva”. elas Spartakus. Simbologia della rivol-
Cavalletti salienta que “é preciso se ta (Turim: Bollati Boringhieri, 2000),
envolver em uma constante desmi- publicou ensaios nas áreas da literatu-
tologização também para sermos, ao ra, da filosofia, da filosofia política e do
menos, conscientes do que está acon- urbanismo. Entre outros textos, é autor
tecendo com este planeta, isto é, para de La città biopolitica: Mitologie della
sermos, ao menos, capazes de ter sicurezza (Milão: Bruno Mondadori,
medo”. Para avançar na reflexão que 2005).
propõe nesta entrevista, com o objetivo
de discutir o pensamento de Agamben, Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a impor- importância. Se, para Agamben, o não devemos ignorar que a invenção
tância dos conceitos de anar- conceito de comunidade, como você dos conceitos é, em certa medida,
quia e comunidade que vem na diz, parece ter perdido impulso (no também a sua experimentação prá-
perspectiva filosófica e política período em que todos falam continu- tica. E, naturalmente, o gesto típico
em Agamben? E por que o con- amente de “comum” ou reconhecem de Agamben, com o qual ele desen-
ceito de comunidade que vem por toda a parte “bens comuns”), e volve e descerra as potencialidades
parece perder força nos últi- talvez justamente em favor do con- ainda implícitas em um pensamen-
ceito de anarquia, é provável que os to, é o mesmo com o qual ele entre-
mos escritos desse pensador?
motivos também sejam contingentes ga aos leitores os próprios concei-
Andrea Cavalletti – Obviamen- e que remontem, por assim dizer, à tos, ou seja, confia-os a outra linha
te, são dois conceitos da máxima ordem da recaída empírica. De fato, ou capacidade de desenvolvimento.

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REVISTA IHU ON-LINE

“Quando proteção e terror se


sobrepõem perfeitamente,
o que desaparece é a
própria possibilidade de
estabelecer um limite.”

Seria possível, então, pensar, nes- nomes de Nancy1 (portanto, de Ba- de 1990 como arché (embora com a
sa ótica, em uma correspondência taille2), de Blanchot e, não menos fórmula-limite de arché anypothe-
mais ou menos imediata e em um importante, de Edmond Jabés (como os), se expressões como “apropriar-
efeito de retorno, com base no qual você talvez deve saber, na revista ita- -se da própria pertença” poderão
o filósofo aprende a modificar, ree- liana Metaphorein, tinha aparecido parecer superadas para o leitor de
laborar ou omitir alguns elementos em 1987 uma importante carta que Uso dei corpi, é justamente porque o
da própria construção; e se, assim, Agamben escreveu a Jabés, reconhe- conceito de “comunidade que vem”
alguns podem permanecer por um cendo ao seu Livre du partage um exigia se desdobrar nos de “anar-
tempo em um cone de sombra, isso, papel excepcional e inspirador); isto quia” e “uso”.
depois, poderá favorecer a sua au- é, não devemos esquecer que aqui
Espero ter sido claro, porque não
têntica sobrevivência. tem início aquela nova meditação
gostaria de fazer sociologia barata.
do désouvrement que leva às últi-
Além disso, parece-me que o con- Só pretendia recordar que a invenção
mas definições da inoperosidade no
ceito de anarquia – que, com a con- sentido – genuinamente anárquico,
de conceitos também é, obviamente, 55
um contínuo experimento e depen-
clusão de Homo sacer, emerge de de fato – do uso e da forma-de-vida
de, por isso, de certas respostas ou,
maneira explícita como elemento (em HS IV, 2, mas também nas for-
melhor, variáveis “ambientais”, que
central do pensamento de Agamben mulações radicais de Pulcinella).
pode ser favoráveis ou não (especial-
– já está evidentemente presente no
Tiqqun de la noche, a Apostila mente quando os conceitos são to-
de “comunidade que vem”. E isso não
acrescentada a La comunità che vie- mados como nutrientes de uma prá-
só no sentido da “disjunção intrans-
ne em 2001, evidencia claramente xis política exausta). Até mesmo o
ponível das singularidades quais- essas linhas de desenvolvimento. E termo “destituição”, por outro lado,
quer e da organização estatal”, não se, nos últimos fragmentos, esse li- deve fazer e já está fazendo a prova
só porque a singularidade qualquer vro tentava, indo até mesmo além de dessas variáveis.
é definida no livro de 1990 como o Heidegger, aferrar o ser como ser,
“principal inimigo do Estado”, mas, na Apostila, já se pode falar (como
antes ainda, porque a própria ela- ainda em Tempo che resta) de ino-
boração do conceito de “qualquer” perosidade ou katargesis, isto é, da IHU On-Line – Em que senti-
é aqui desenvolvida em um sentido operação específica segundo a qual o do o pensamento como estilo de
genuinamente anárquico: refiro-me, como se substitui integralmente ao vida é, também, uma forma de
certamente, às ideias da linguagem quê. Essas linhas de desenvolvimen- resistência e como isso repercu-
como exposição sem pressuposição to, poder-se-ia agora acrescentar, te na filosofia agambeniana?
(que, tecnicamente, Agamben obtém são as linhas estruturais de HS IV, 2. Andrea Cavalletti – Você usa a
isolando uma anáfora desprovida de Se o ser-tal ainda é definido no livro expressão “estilo de vida”, que foi
referente) e da existência como pura usado por Foucault3 (Le courage de
exposição da essência. Se a comuni- 1 Jean-Luc Nancy (1940): é um filósofo francês. A
obra de Nancy é marcada pelo grande tamanho
dade dos homens quaisquer perma- de publicações e pela heterogeneidade de temas. 3 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês.
Datam da década de 1960 o início de suas refle- Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
nece irreconciliável com qualquer xões, que atravessam desde a leitura de filósofos tória da sexualidade (a qual não pôde completar
clássicos (Descartes, Kant, Hegel), ao envolvimen- devido a sua morte), situam-se dentro de uma
política estatal, é porque ela coincide to com figuras essenciais para a filosofia francesa filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
com o advento de um ser-tal despro- do século 20 (Nietzsche, Heidegger, Bataille, Mer- palmente do tema do poder, rompendo com as
leau-Ponty, Derrida etc.), assim como reflexões concepções clássicas do termo. Em várias edições,
vido de pressupostos. sobre arte e literatura. (Nota da IHU On-Line) a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
2 Georges Bataille (1897-1962): escritor, antropó- cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
logo e filósofo francês. O erotismo, a transgressão http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
Também não se deve esquecer que e o sagrado são temas abordados em seus escri- disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364,
esse livro foi escrito em um momen- tos. Sua correspondência foi publicada em 1997 de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
pela Gallimard sob o título Choix de lettres 1917- discurso racional em debate, disponível em ht-
to específico e está ligado com os 1962. (Nota da IHU On-Line) tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

la verité), e, depois, a palavra resis- contato (em um sentido que deriva de núcleo central provinha, porém, de
tência, uma palavra que Agamben Colli) e de autoafecção (em um senti- uma tese ainda anterior, escrita no
também emprega, sim, na esteira do que deriva do Kantbuch de Heide- período de HS, I), eu me atinha a
de Deleuze4, refletindo sobre o ato gger6) são todas tecidas no sábio en- uma interpretação, por assim dizer,
de criação, mas que, nessa locução, trelaçamento literário do Pulcinella: mais aderente à letra foucaultia-
“forma de resistência”, tem, pelo me- aqui, talvez, elas cheguem ao mais alto na: ou seja, à noção do século 18 de
nos para mim, um som bastante co- grau de luminosidade teórica e, o mais população como limite histórico a
notado e ainda em sentido foucaul- importante em relação à sua pergun- partir do qual, somente, parecia-me
tiano. Então, acho que desenvolver, ta, restituem nada mais do que uma possível falar de “biopolítica”. E, na
por exemplo, um debate atento entre pura “biografia”, que é do personagem verdade, não me afastei muito dessa
a teoria agambeniana da forma-de- (Pulcinella), do artista (Tiepolo), do perspectiva, continuando fatalmente
-vida e a da estética da existência (no filósofo (Agamben), ou seja, “de cada a trabalhar naquele arquivo delimi-
sentido, justamente, de Foucault) homem”. Aqui, onde vida vegetativa e tado pela escolha de então e ainda
seria um modo de responder seria- forma-de-vida são realmente insepa- amplo demais para as minhas forças.
mente a essa pergunta. ráveis, aparece somente uma vida, ou
Por outro lado, a distinção entre
uma vida “qualquer”.
Para nos atermos mais estreitamen- bios e zoe, ou, melhor, a afirmação
te a Agamben, eu sugiriria, em vez com que se abre Homo sacer I, se-
disso, que se substituísse ao termo gundo a qual os gregos possuíam
“resistência” a expressão “via de fuga” IHU On-Line – Foucault é dois termos distintos para dizer
(assim também a: “estilo”, “forma”). uma referência em sua pes- vida, também provém implicitamen-
Em suma, deveríamos estudar bem quisa filosófica, mas também te da obra-prima Dionysos. Urbild
sobretudo o Pulcinella e reler, a par- Agamben. Em que medida a des unzerstörbaren Leben, de Karl
tir daquelas páginas e do lema ubi “tensão” entre o conceito de Kerényi7 (o qual, aliás, também já
fracassorium, ubi fuggitorium, toda biopolítica entre esses dois au- havia dedicado aos dois termos al-
a obra de Homo sacer, mas também tores marca seus interesses de gumas análises mais técnicas entre
o livro que imediatamente o precede pesquisa atuais? 1963-1964). Ora, esse livro (que foi
56 e que já nomeamos antes, La comu- publicado postumamente em 1976,
nità che viene, e, depois, pelo menos Andrea Cavalletti – Sempre me ou seja, no mesmo ano em que Fou-
– eu diria – o ensaio sobre Deleuze, admirei com o gesto original com cault oferecia na Volonté de savoir a
L’immanenza assoluta. As ideias que Agamben evidenciou o que, em sua definição de biopolítica) explica
(derivadas de Benjamin5) de caráter, Foucault, ainda estava implícito e que nenhum dos dois termos – isto
interrupção e comédia, e depois de não investigado, concentrando-se é, a rigor, nem mesmo zoe – é ple-
no ponto de cruzamento entre mo- namente assimilável ao conceito
delo jurídico-institucional e modelo moderno de existência biológica.
biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis- biopolítico. Desse modo, Agamben
ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Portanto, quando escrevi La città
Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de- pôs em contato Foucault e Benja- biopolitica, parecia-me que, tam-
bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con-
fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em min. Nem as minhas pesquisas já bém a partir desse ponto de vista,
formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, publicadas nem aquelas ainda em
Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa- havia nuances não insignificantes,
ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) andamento seriam concebíveis sem e que só uma limitação foucaultiana
4 Gilles Deleuze (1925-1995): filósofo francês.
Assim como Foucault, foi um dos estudiosos de esse ensinamento fundamental. No do biopoder, no sentido do “princí-
Kant, mas tem em Bérgson, Nietzsche e Espinosa, entanto, no meu primeiro livro, Mi- pio de população”, poderia respeitar
poderosas interseções. Professor da Universidade
de Paris VIII, Vincennes, Deleuze atualizou ideias tologie della sicurezza (a reelabora- as próprias diferenças evidenciadas
como as de devir, acontecimentos e singularida-
des. (Nota da IHU On-Line) ção de uma tese de doutorado, cujo por Kerényi. Hoje, toda a questão
5 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão.
Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de me parece, ao contrário, mais nuan-
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicí- 6 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale- çada, articulada, e a estratégia inicial
dio. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A
Crítica, foi fortemente inspirado tanto por auto- problemática heideggeriana é ampliada em Que de Agamben me parece avaliável
res marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo com mais ponderação. É claro, eu li,
místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre
profundo da língua e cultura francesas, traduziu Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006, enquanto isso, Il Regno e la Gloria,
para o alemão importantes obras como Quadros intitulada O século de Heidegger, disponível em
parisienses, de Charles Baudelaire, e Em busca do http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitu- apenas para começar, ou Signatura
tempo perdido, de Marcel Proust. O seu trabalho, lada Ser e tempo. A desconstrução da metafísica, rerum, e agora toda a obra denomi-
combinando ideias aparentemente antagônicas disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ain-
do idealismo alemão, do materialismo dialético da, Cadernos IHU em Formação nº 12, Martin Hei-
e do misticismo judaico, constitui um contributo degger. A desconstrução da metafísica, que pode
original para a teoria estética. Entre as suas obras ser acessado em http://bit.ly/ihuem12, e a entre-
mais conhecidas, estão A obra de arte na era da vista concedida por Ernildo Stein à edição 328 da 7 Károly Kerényi: ou simplesmente Karl Kerényi
sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível em (1897-1973), foi um filólogo clássico e um dos es-
conceito de história (1940) e a monumental e ina- https://goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo tudiosos mais influentes dos estudos modernos
cabada Paris, capital do século XIX, enquanto A ta- radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na da mitologia grega e da mitologia romana ou da
refa do tradutor constitui referência incontornável qual discute ideias de sua conferência A crítica de religião antiga em geral. Viveu a primeira fase da
dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a ques- sua vida na Hungria antes de se exilar definitiva-
entrevista Walter Benjamin e o império do instan- tão da biopolítica, parte integrante do ciclo de mente na Suíça em 1943, momento em que aban-
te, concedida pelo filósofo espanhol José Anto- estudos Filosofias da diferença, pré-evento do XI dona o húngaro e adota definitivamente a língua
nio Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível em Simpósio Internacional IHU: O (des)governo bio- alemã (a língua mais usada pela comunidade
http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line) político da vida humana. (Nota da IHU On-Line) científica no seu tempo). (Nota da IHU On-Line)

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nada Homo sacer. Mas não é só por ceitos centrais, quanto, e cada vez estatização”. Daí a necessidade do
isso. Em todo o caso, ao lado de Fou- mais ao longo do tempo, na escri- chamado monopólio da violência
cault, estava Benjamim: e também ta ou na “montagem” dos ensaios. – o que mais é um aparato institu-
para mim, mesmo a partir daquela Refiro-me à meditação que Jesi de- cional, no conjunto maximamente
primeira posição, o ensaio de 1921 senvolveu sobre a técnica de “com- complexo das relações de poder, se-
sobre a Critica della violenza con- posição” ou sobre o conhecimento não o lugar em que um monopólio
tinuou sendo a referência essencial. por composição, isto é, ao seu con- desse tipo se produz e se mantém?
Por outro lado, trata-se de um texto vite explícito a considerar o como ele – ou o uso contínuo da violência
decisivo para Furio Jesi8, e a pers- escrevia, antes que sobre o quê. Esse (diretamente exercida, cultivada ou
pectiva jesiana é precisamente uma “como” podia me aparecer, por outro favorecida) como meio de estabili-
interpretação crítica do próprio con- lado, de um modo claro, material- zação, que, certamente, inclui, por
ceito kerényano de Urbild. mente evidente, tendo à disposição sua vez, o uso espetacular da incer-
os primeiros esboços dos ensaios, teza e dos perigos, a fim de produzir
Quanto às minhas pesquisas atu- um estado de paralisia sugestiva.
as anotações e materiais, as fichas
ais – que giram em torno da rela- Trata-se de meios e de escolhas de
de leitura e a grande quantidade de
ção subjetividade-morte e, em par- governo, e, ao mesmo tempo, e jus-
correspondência de Jesi. Eu me ocu-
ticular, no que diz respeito à parte tamente por isso, de soluções e de
pava de um grande estudioso, que
que estou terminando, em torno escolhas forçadas. Trata-se de lais-
tinha sido muito precoce (ele tinha
do conceito de vertigem – eu não sez faire e, ao mesmo tempo, de não
iniciado em 1956, como mitólogo
gostaria de acrescentar nada mais poder fazer nada mais senão isso,
e egiptólogo, com apenas 15 anos),
senão daquilo que já disse de ma- mas que tinha falecido, infelizmen- de governar deixando fazer, porque
neira indireta. te, muito jovem, em 1980, por um não se pode senão deixar fazer.
banal acidente doméstico: e, assim, Com o fenômeno do atual terro-
eu me via cruzando o limiar daquele rismo, por exemplo, o que se torna
IHU On-Line – Qual é a im- laboratório que ele tivera que aban- totalmente evidente é justamente a
portância de Furio Jesi para a donar de repente, quase 20 anos an- impossibilidade de definir um limite
elaboração do seu conceito de tes, deixando, por assim dizer, todas entre intencional e não intencional,
as coisas no seu lugar. 57
“mitologia da seguridade”? entre poder e impotência, controle
minucioso, asfixiante e total, clamo-
Andrea Cavalletti – A impor-
rosa desatenção, entre aquilo que é,
tância de Jesi é fundamental, em-
IHU On-Line – Como percebe pelo menos em parte, desejado (ou
bora não apareça naquele livro uma
na democracia contemporânea intencionalmente tolerado) e aqui-
análise explícita do modelo da “má-
o uso da insegurança para fins lo que foge totalmente do controle
quina mitológica”, que, porém, eu
(e deve ser tolerado por força). Ora,
desenvolvi paralelamente em alguns de governo?
quando proteção e terror se sobre-
ensaios. Justamente no período do Andrea Cavalletti – É preciso põem perfeitamente, o que desa-
doutorado sobre a biopolítica, eu es- dizer que o uso tão pervasivo da parece é a própria possibilidade de
tava me dedicando à pesquisa sobre insegurança (ou do medo) em sen- estabelecer um limite (penso, por
os escritos de Jesi e descobri alguns tido liberticida, de controle, é mais exemplo, na ignomínia do decreto
inéditos: acima de tudo, a obra-pri- um reflexo condicionado do que sobre a imigração emitido recente-
ma de 1969, Spartakus. Simbologie uma estratégia que surgiu da inte- mente na Itália). Portanto, é preciso
della rivolta, que é um livro sobre a ligência criativa daqueles que nos enfrentar o problema da incerteza,
influência e a possível desmitologi- governam. E isso não só porque, ou seja, o problema do medo ou da
zação das figuras projetadas pelo po- nos órgãos de governo, vê-se clara- violência, sabendo que precisamente
der; um livro que precede, antecipa e mente de tudo, exceto inteligência, os nossos governantes democráticos
permite compreender melhor, tam- mas sim por causa da insegurança não podem parar diante de nada,
bém na sua elaboração, justamente ou da instabilidade que é – como são indivíduos capazes de tudo, e o
o modelo da “máquina mitológica”. eu também tentei mostrar no livro são por definição. Governando, eles
Como todas as coisas escritas por sobre as Mitologie della sicurezza só podem chegar a fazer (ou a dei-
Jesi, Spartakus me condicionou e em Suggestione. Potenza e limiti xar fazer) qualquer coisa – e, graças
muito, tanto na elaboração dos con- del fascino politico – a própria base ao nosso beneplácito, entenda-se,
do Estado contemporâneo. Justa- de fato, já estão fazendo o impen-
8 Furio Jesi (1941-1980): historiador, ensaísta,
arqueólogo, filósofo e germanista italiano. É au- mente os Estados (e as instituições sável, com mísseis e bombardeiros,
tor de, entre outros, Che cosa ha veramente det- supranacionais) se fundamentam, ou mesmo sem sequer levantar um
to Rousseau (Ubaldini, Roma 1972), Il linguaggio
delle pietre. Alla scoperta dell’Italia megalítica por definição, na insegurança e são dedo, a poucas milhas de Lampedu-
(Rizzoli, Milano 1978), Bachofen, a cura di Andrea
Cavalletti (Bollati Boringhieri, Torino 2006) e “La formações precárias e metaestáveis sa. Por isso, seria preciso temê-los e,
ceramica egizia” e altri scritti sull’Egitto e la Grecia – isto é, como nos foi bem explica- ao mesmo tempo (com todo o res-
(1956-1973), a cura di Giulio Schiavoni (Nino Ara-
gno Editore, Torino 2010). (Nota da IHU On-Line) do, nada mais do que “processos de peito daqueles que gostariam de to-

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TEMA DE CAPA

mar o seu lugar, vendendo sonhos de ção imaginária e o modo pelo qual se da destruição do mundo, não se deve
instituições e governos alternativos), imprime, por sua vez, sobre o real. deixar o medo nas mãos das direitas
compadecer-se deles. Enquanto falamos e ouvimos falar o e dos mesmos que destroem o mun-
tempo todo de “economia financei- do. O ensinamento de Günther An-
Seria preciso dizer que o rei está
ra”, esse monstro onipresente, ima- ders11 é realmente atualíssimo.
nu, mas acrescentando que, precisa-
terial, ubíquo e inapreensível limita,
mente, essa nudez se apresenta ago-
predetermina ou, melhor, não faz
ra como o seu novo aparato real. Há
nada mais do que provocar as reivin-
algum tempo, por exemplo, o pró- IHU On-Line – Em uma en-
dicações de resistência, ditando os
prio discurso oficial se deslocou ou trevista ao jornal La Nación,
seus estilos, predeterminando, como
tentou se deslocar da segurança para em 2012, o senhor afirmou que
de costume, derrotas e frustrações.
a chamada “percepção da seguran- o verdadeiro político “é aque-
Devemos, então, exercer – diria Jesi
ça”: assim, quando a política se de- le que sabe não ser um líder”.
– uma contínua desmitologização.
clara abertamente psicologia, quan- Nesse sentido, qual é a potência
Devemos vencer a tentação de en-
do se declara abertamente que não é
frentar diretamente o monstro, de que surge do político revolucio-
o dado real que importa, mas sim o
crer que podemos ou – como parece nário da multitude?
engano, quando se admite, à luz do
mais evidente – não podemos resis-
sol, que tudo é apenas um espetá- Andrea Cavalletti – Você usa o
tir-lhe, e, em vez disso, encontrar –
culo, está-se obviamente colocando conceito de multitude, mas é bom
diria Agamben – uma saída.
em cena a realidade como espetácu- precisar que no meu Classe eu não o
lo do espetáculo. E justamente isso Dito isso, e para retornar ao discur- emprego, e se, em vez disso, ele apa-
é algo muito vacilante e grotesco. É so de antes sobre a incerteza, é pre- rece na tradução (portuguesa ou es-
evidente, de fato, que tudo deve pa- ciso se envolver em uma constante panhola), mesmo assim, ele não tem
recer falso precisamente quando não desmitologização também para ser- o sentido que Negri lhe deu. Naquele
há mais espaço para a ficção, quando mos, ao menos, conscientes do que livro, que, em vez disso, inspirou-se
não se pode mais fingir nem mesmo está acontecendo com este planeta, em uma nota escrita em 1936 por
de governar. isto é, para sermos, ao menos, capa- Walter Benjamin, a palavra é “mas-
58 zes de ter medo. Para falar daquilo sa” [massa] (que vocês, justamente,
que eu conheço por experiência pes- traduziriam como multidão) e indica
soal, os europeus hoje não são ab- uma formação indefinida que pode
IHU On-Line – Em que medi- solutamente capazes disso, embora, oscilar entre a massa [folla] (no sen-
da se pode falar numa prepon- aparentemente, pareça exatamente tido preciso da psicologie des foules
derância da economia financei- o contrário; de fato, não o são jus- de Le Bon) e a classe revolucionária.
rizada sobre a política? tamente porque vivem no constan- Em segundo lugar, eu falo de “técni-
Andrea Cavalletti – Até que te terror daquilo que não deveriam ca” ou de “desempenho” (traduzindo
ponto, em termos reais, factuais, eu temer. Eles tendem e são facilmente Leistung, termo que Benjamin ar-
induzidos a ter medo somente da- ranca, por assim dizer, do vocabulá-
não saberia. No imaginário coletivo,
queles que não dariam medo a uma rio técnico da fenomenologia, para
porém, a preponderância é evidente,
criança, isto é, dos inermes, dos refu- lhe conferir um sentido totalmente
e isso me parece suficiente. E tam-
giados famintos (sobre os quais são
bém parece possível notar, às vezes, novo). Portanto, em primeiro lugar:
jogadas até responsabilidades pelo
um certo pesar, parece que muitos, a massa [folla] e a sua psicologia. A
terrorismo, pelo qual, em vez disso,
no fundo, achariam preferível um massa [folla] é estúpida, gregária,
deveríamos bater no peito) – ou te-
poder político de caráter mais do sé- como diziam Le Bon, Gabriel Tarde,
mem perder precisamente aquele
culo 20 ao novo domínio financeiro. Scipio Sighele, e é racista, antisse-
“trabalho” que, em vez disso, faz com
Mas, naturalmente, as duas coisas mita, belicista, acrescenta Benjamin
que eles morram diariamente, de
não estão separadas, e justamente a justamente, reconhecendo-a na pe-
maneiras mais ou menos evidentes
imagem das finanças senhoras abso- quena burguesia. A pequena burgue-
ou dolorosas. Existe um problema
lutas do mundo tem pelo menos um sia “não é uma classe”, mas apenas
do medo. E, com razão, Déborah Da-
século (e, como bem sabemos, tam-
nowski9 e Eduardo Viveiros de Cas-
bém foi muito enganosa e perigosa): disponível em http://bit.ly/ihuon161. Entre outras
tro10 insistem neste aspecto: diante publicações, escreveu Arawete: O Povo do Ipixuna
ela pertence à imaginação da multi- (São Paulo: CEDI), A inconstância da alma selva-
dão a que eu me referia antes, que gem (e outros ensaios de antropologia) (São Paulo:
9 Déborah Danowski: bacharela, mestra e dou- Cosac & Naify) e Metafísicas canibais (São Paulo:
começa a se mostrar também hoje tora em Filosofia pela Pontifícia Universidade Ca- Cosac & Naify). Também é autor do prefácio do
tólica do Rio de Janeiro – PUC-Rio, onde é pro- livro A queda do céu – Palavras de um xamã yano-
nos seus reflexos mais conhecidos fessora. Fez estágio pós-doutoral em Filosofia na mami, de Davi Kopenawa e Bruce Albert (São Pau-
e irracionais (teorias da conspira- Universidade de Paris IV (Paris-Sorbonne). (Nota lo: Companhia das Letras). (Nota da IHU On-Line)
da IHU On-Line) 11 Günther Anders (1902-1992): pseudônimo de
ção, portanto, racismo etc.). O pro- 10 Eduardo Viveiros de Castro (1951): antropó- Günther Stern. Foi um jornalista, filósofo e ensaís-
logo brasileiro, professor do Museu Nacional do ta alemão de origem judaica. Doutorou-se em
blema, portanto, está além daquela Rio de Janeiro, na Universidade Federal do Rio de filosofia, em 1923, sob a orientação de Edmund
que podemos reconhecer também Janeiro (UFRJ). Concedeu a entrevista O conceito Husserl, tendo sido aluno de Heidegger e Cassi-
vira grife, e o pensador vira proprietário de gri- rer. Foi colega de Hannah Arendt, com quem foi
como situação de fato, a sua proje- fe à edição 161 da IHU On-Line, de 24-10-2005, casado entre 1929 e 1936. (Nota da IHU On-Line)

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uma massa [folla] de indivíduos que evoluções das quais, de outro modo, IHU On-Line – Pensando na
não têm nada em comum, exceto o não seria capaz. Brecht13 dizia que te- crítica que Agamben faz à de-
fato de serem clientes do mercado e atro clássico é feito com a sugestão, o mocracia ocidental, que ten-
sujeitos às oscilações do capital. Ao épico, com a análise: o espectador do sões surgem entre o conceito
mesmo tempo assustada e agressi- primeiro chora porque a história só de multitude e o de massa com
va, compacta mas efêmera, isto é, pode terminar daquele modo, o do te- o esvaziamento da política?
animada por tensões repentinas, a atro épico, em vez disso, pensa no fato
Andrea Cavalletti – A Nota de
massa [folla] sempre segue um líder. de que tudo poderia ter acontecido de
Agamben, recordo, é “preliminar a
Embora não se veja, dizia Tarde12, o um modo bem diferente. Ora, o aspec-
toda discussão sobre o conceito de
líder existe, como o fermento no pão to essencial é que, quando o ritmo da
democracia” e traz à tona uma am-
(e é uma observação preciosa, que representação é interrompido, e a his-
biguidade constitutiva: a democra-
lança algumas suspeitas oportunas tória é posta em discussão, o “público”
cia, desde Aristóteles15, é um entre-
também sobre o que, às vezes, pare- também se “afrouxa”: ele tem uma ati-
laçamento de duas racionalidades
ce-nos “horizontal”). Ora, o sistema tude relaxada e consciente, reconhece
heterogêneas, a político-jurídica e
biopolítico-securitário é um disposi- ou, melhor, estuda e analisa as relações
a econômico-governamental, é, ao
tivo mitológico e sugestivo, que atua de poder e as alternativas possíveis.
mesmo tempo, gestão e legitimação
sobre as massas e produz continua- Então, deixa de ser uma massa [folla]:
do poder. E se assumirmos, ainda
mente massas [folle] e leaders. Ao essas alternativas, de fato, são as alter-
seguindo Agamben, que, justamen-
contrário, o desempenho do político nativas ao medo, à tensão hipnótica,
te nesse sentido, ela é uma máqui-
revolucionário é precisamente o de que aparecem agora na própria massa
na animada por um “vazio”, então
nunca se constituir como um líder, [massa] e a transformam. Portanto, a
talvez eu já tenha respondido, em
isto é, de dissolver a massa [folla]. massa [massa] agitada e comprimida
grande parte, a sua pergunta, di-
se afrouxa, se amplia, enquanto emer-
Benjamin fala de um afrouxamento zendo que o dispositivo biopolítico
gem múltiplas relações e laços possí-
(Auflockerung) da massa [folla] com- sempre se apoia sobre uma insegu-
veis: é a solidariedade revolucionária.
pacta. Esse afrouxamento é a solida- rança constitutiva e não pode ser se-
riedade. Mas não se trata de um bom Portanto, o verdadeiro revolucio- não um mecanismo sugestivo: o que
sentimento, mas sim de algo que ne- nário é aquele que consegue inven- Agamben chama de “desarticulação” 59
cessita de uma técnica específica ou, tar onde estão trabalhando dispo- da máquina económico-jurídica cor-
melhor, a partir desse ponto de vista da sitivos ou técnicas biopolíticas de responde, para mim, e em um nível
política, nada mais é do que uma téc- controle, técnicas de afrouxamento diferente, ao afrouxamento (Auflo-
nica. Um modelo de afrouxamento da ou, no sentido que eu expliquei, de ckerung) da massa [folla].
massa [folla] é, por exemplo (como era solidariedade: é, portanto, aque-
Posso acrescentar apenas que a
para Benjamin), o teatro épico de Bre- le que é capaz de não ser um líder.
Nota preliminar me parece impor-
cht. Se o líder das massas [folle] é um Como é óbvio, além disso, a função
tante também do ponto de vista da
ator que se ergue sobre o seu público de guia não é necessariamente exer-
desmitologização à qual eu me re-
adorador, o ator do teatro brechtiano cida ou encarnada por uma pessoa
feria antes, ou também se poderia
nunca se destaca sobre o público. E de carne e ossos, mas, por exem-
dizer, com Hermann Broch16, como
isso não é uma massa [folla], mas um plo, também por um princípio (que
grupo de pessoas que colaboram com também pode se apresentar como
aquela verdadeira análise dos fatos que reivindicação moral etc.). Portanto, revista IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada
A financeirização do mundo e sua crise. Uma lei-
se desenvolve no palco. Se, de fato, a trata-se de uma política sem massas tura a partir de Marx, disponível em https://goo.
gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não
massa [folla] reunida nos cinemas e [folle], sem chefes e sem princípios. são o que pensam e desejam, mas o que fazem,
nos teatros acompanha passivamente Em outras palavras, a técnica de que concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi
publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5-
o espetáculo, em estado de hipnose, eu falo é essencialmente anárquica 2010, disponível em http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU
On-Line preparou uma edição especial sobre de-
no teatro épico acontece, como se sabe, (o anarquismo de Benjamin também sigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty
algo completamente diferente. O ritmo inerva, por outro lado, a sua inter- O Capital no Século XXI, que retoma o argumen-
to central de O Capital, obra de Marx, disponível
da representação é interrompido (com pretação de Marx14). em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/449.
(Nota da IHU On-Line)
as músicas, por exemplo), e a situação 15 Aristóteles de Estagira (384 a.C.–322 a.C.):
é atentamente examinada; a história, 13 Bertold Brecht (1898-1956): escreveu poesia, filósofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas refle-
teatro, ensaios e roteiros de cinema, lutando du- xões filosóficas – por um lado, originais; por outro,
em outras palavras, é “afrouxada”, ou rante toda a sua vida pelos oprimidos. Assumiu reformuladoras da tradição grega – acabaram por
seja, são expostas todas as possibili- uma clara posição de esquerda e procurou co- configurar um modo de pensar que se estenderia
locar a luta de classes no palco, utilizando-se da por séculos. Prestou significativas contribuições
dades implícitas, precisamente como dialética. (Nota da IHU On-Line) para o pensamento humano, destacando-se nos
campos da ética, política, física, metafísica, lógica,
o professor de dança, diz Benjamin, psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e
14 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista so- história natural. É considerado, por muitos, o filó-
“afrouxa” ou relaxa os músculos da bai- cial, economista, historiador e revolucionário ale- sofo que mais influenciou o pensamento ociden-
larina para fazer com que ela execute mão, um dos pensadores que exerceram maior tal. (Nota da IHU On-Line)
influência sobre o pensamento social e sobre os
destinos da humanidade no século 20. A edição
41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda 16 Hermann Broch (1886-1951): escritor austría-
12 Jean-Gabriel de Tarde (1843-1904): filósofo, Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de co, considerado um dos maiores modernistas de
sociólogo, psicólogo e criminologista francês. Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. todos os tempos. Obras: Os sonâmbulos, A morte
(Nota da IHU On-Line) Também sobre o autor, a edição número 278 da de Virgílio, A criada Zerlina. (Nota da IHU On-Li-

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TEMA DE CAPA

exemplo de desvalorização. Demo- tanto a crítica de Agamben quanto a a economia divina ou sobre a má-
cracia, de fato, é uma palavra que muito diferente de Milner são histo- quina econômico-governamental (Il
muitas vezes escrevemos com a ini- ricamente ponderadas. Regno e la Gloria) e sobre a liturgia
cial maiúscula ou que também lemos (Opus Dei), pesquisa na qual o con-
como se fosse escrita assim, isto é, IHU On-Line – A partir do ceito de inoperosidade desempenha
como se fosse um valor indiscutível, diagnóstico agambeniano um papel tão central, não é senão o
e fazemos isso precisamente por- sobre democracia, como desenvolvimento admirável e rigo-
que continuamos a entendê-la como compreender o paradoxo de rosamente coerente daquela “aber-
uma forma de constituição sem re- que a política seja atravessada tura” de Homo sacer I, que coloca-
conhecer (contra todas as evidên- pelas correntes da politização va genialmente em contato e fazia
cias) o seu aspecto governamental. e da despolitização? E em que reagir Foucault com Benjamin. Se
Lembro en passant que Furio Jesi sentido se pode dizer que as Agamben estudou a história da Igre-
definia como cultura de direita não influências benjaminianas ja, se iluminou assim uma genealo-
aquela que afirma valores evidente- gia do governo que vai além daquela
levaram Agamben a adentrar
mente reconhecíveis como aristocrá- ilustrada por Foucault (e da limita-
pelo Cristianismo?
ticos ou burgueses, mas aquela que ção do século 18 da biopolítica), ele
declara a existência de valores “não Andrea Cavalletti – Agamben o fez passando por Benjamin e por
discutíveis”, ou seja, não ambíguos, se interessou precisamente, desde o Paulo19, jogando a luz do juízo messi-
como, justamente, “Tradição e Cul- início, pelo messianismo e, como se ânico sobre a economia que regula o
tura, mas também Justiça, Liberda- sabe, ele leu (começando também mundo, opondo a bem-aventurança
de, Revolução”. Dito isto, em Classe, pelo famoso seminário de Taubes18) evangélica à liturgia eclesiástica. ■
que temporalmente precede a Nota as teses Über den Begriff der Ges-
de Agamben, eu me referia, por um chichte como reinterpretação da 19 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso,
na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente cha-
lado, a Benjamin, à sua crítica ra- Carta aos Romanos. Ora, como eu mado de Saulo. Entretanto, é mais conhecido
dical da democracia como lugar da como São Paulo, o Apóstolo. É considerado por
lembrava antes, justamente em Il muitos cristãos como o mais importante discípulo
“máxima degeneração” da violência tempo che resta, também faz a sua de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais impor-
tante no desenvolvimento do Cristianismo nas-
policialesca, e, por outro, a um autor aparição o conceito de “inoperosida-
60 cente. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos
demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros,
contemporâneo como Jean-Claude de”, que se afasta do désouvrement não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua
Milner17 e, em particular, ao seu livro de Bataille também e talvez prin- conversão, se dedicava à perseguição dos primei-
ros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em
de 2003, Les penchants criminels de cipalmente porque é um conceito uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
l’Europe démocratique, do qual eu co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande
genuinamente messiânico (a katar- luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três
citava, isto é, assumia para conduzi- gesis paulina). Isso significa, porém, dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
partir deste encontro, Paulo começou a pregar o
-lo, porém, a um contexto estranho que, embora Il tempo che resta não Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou
ao original, o tema da primeira uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo
faça parte de Homo sacer, toda a (era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em
parte, a pars destruens, ou seja, a pesquisa posterior, desenvolvida no duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito
pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é
ideia de que a democracia moder- arquivo dos autores cristãos, sobre considerado uma das principais fontes da doutri-
na ocidental é o nome sob o qual se na da Igreja. As suas Epístolas formam uma se-
ção fundamental do Novo Testamento. Afirma-se
reúnem os vários tipos de governo 18 Jacob Taubes (1923-1987): sociólogo da reli- que foi ele quem verdadeiramente transformou
gião, filósofo e especialista em judaísmo. Taubes o cristianismo em uma nova religião, superando
correspondentes à função da so- nasceu dentro de uma antiga família de rabinos. a anterior condição de seita do Judaísmo. A IHU
ciedade, como função que Milner Ele obteve seu título de doutor em 1946 com a On-Line 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao
tese Abendländische Eschatologie. Inicialmente tema Paulo de Tarso e a contemporaneidade, dis-
chama de “ilimitada”. Não é este o ensinou estudos religiosos e estudos judeus nos ponível em http://bit.ly/ihuon175, assim como a
Estados Unidos. A partir de 1965, foi professor de edição 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua
lugar para ilustrar essa teoria mui- Estudos Judeus e Hermenêuticos da Universida- relevância atual, disponível em https://goo.gl/bK-
to inteligente. Naturalmente, e com de Livre de Berlim. Autor da importante obra Die ZcM0. Também são dedicadas a Paulo edição 32
politische Theologie des Paulus. Vorträge gehalten dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tar-
todo o respeito dos bem-pensantes, an der Forschungsstätte der evangelischen Stu- so desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de
diengemeinschaft in Heidelberg, 23.-27. Februar realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a
1987 (A Teologia Política de Paulo. Palestras rea- edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São
ne) lizadas na da comunidade do centro de pesquisa Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da
17 Jean-Claude Milner (1941): linguista francês. de estudos do evangélico em Heidelberg, 23-27 mulher cristã no século I, disponível em http://bit.
(Nota da IHU On-Line) de fevereiro de 1987). (Nota da IHU On-Line) ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line)

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Nenhum sistema político funciona


sem o elemento glorioso
Para Fabián Ludueña, ritos políticos contemporâneos estão
se transformando e é preciso entender sua dinâmica
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Henrique Denis Lucas

E
m O reino e a glória, Agamben ça de um elemento ‘glorioso’”. E acres-
mapeia a assinatura teológica centa: “A compreensão dos dispositivos
que se mantém como paradig- de aclamação do nosso mundo atual
ma da política contemporânea. Para o implica preliminarmente um questio-
filósofo Fabián Ludueña, o debate não é namento acerca de quais sentidos po-
novo, mas o esforço empreendido pelo demos falar hoje de democracia, como
pensador italiano permitiu uma rea- os modernos conceberam esta forma de
tualização. “O século 20 foi marcado, exercício do poder político. Se o ecos-
em diferentes períodos, por uma con- sistema midiático-digital transforma o
sideração da importância do teológico- povo em uma mera entidade de exercí-
-político para definir as características cio virtual da soberania reduzida às cir-
mais particulares dos sistemas políticos cunstâncias esporádicas do voto, as for-
contemporâneos. Poderíamos dizer que mas reativas de política podem emergir
a obra de Agamben tem permitido uma 61
de novas formas. Por este caminho, o
nova sistematização das premissas des- próprio conceito de democracia está so-
te debate para as quais o filósofo italia- frendo mudanças talvez irreversíveis”.
no adicionou seu próprio diagnóstico
e novos insights acerca das maneiras Fabián Ludueña é licenciado em So-
como a ciência política ainda fala de ciologia pela Universidade de Buenos
acordo com um vocabulário que her- Aires - UBA, mestre e doutor em Histó-
dou da teologia”, afirma em entrevista ria da Civilização pela École des Hautes
concedida por e-mail à IHU On-Line. Etudes en Sciences Sociales de Paris
- EHESS. É autor de Homo Oeconomi-
Para Ludueña, a partir das pesquisas
cus. Marsilio Ficino, la teología y los
de Agamben, é “verdadeiramente im-
portante entender que nenhum sistema misterios paganos (1433-1499) (Ma-
político conhecido, do passado ou do dri: Miño y Dávila Editores, 2006).
presente, pode funcionar sem a presen- Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as entre os quais o Te Deum destaca- Por outro lado, não devemos esque-
principais liturgias aclamató- -se como o principal. Neste ponto, é cer que entre os cânticos eclesiásticos
rias da soberania divina? oportuno observar a importância do e as fórmulas aclamatórias de sobera-
Fabián Ludueña – A vida dos canon missae e dos cantos associa- nia profana sempre existiu uma inte-
cristãos (e especialmente a dos pa- dos, como é o caso de Kyrie, Gloria, ração recíproca que demonstra a ma-
dres e monges) é definida, em sua Sanctus ou Agnus Dei. Os cânticos leabilidade dos limites e, o que é mais
totalidade, pela temporalidade e pela litúrgicos têm, cada um em sua com- importante, que a aclamação litúrgica
ortopráxis da liturgia. Neste caso, plexa história, a função de ressaltar se destina, em última instância, à exal-
a soberania divina é celebrada, por aspectos diversos da soberania divina tação da soberania enquanto tal, in-
exemplo, no Ocidente, através de e sua relação teológico-política com o dependentemente de esta pertencer a
uma diversidade de cantos litúrgicos, mundo humano. uma ordem temporal ou eclesiástica.

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

IHU On-Line – Quais são seus o aspecto aclamatório nos sistemas são, até certo ponto, mais profundas
significados para os dispositi- políticos contemporâneos (e não do que os elementos fundamentais
vos políticos? apenas nos sistemas democráticos) da concepção democrática, como,
são uma combinação sofisticada e por exemplo, a própria noção de
Fabián Ludueña – Em primeiro
intrincada que constituem um te- “povo”, que sofre transformações
lugar, devemos lembrar que a litur-
cido que abarca desde as formas de inesperadas não apenas por par-
gia está profundamente relacionada
reconhecimento público tradicio- te das novas e crescentes divisões
com a esfera política desde os pri-
nais com multidões presentes até em seu interior, mas especialmente
meiros registros do termo no mundo
a desmaterialização completa da porque as novas antropotecnologias
grego. No âmbito da pólis grega, a
presença do organismo público e cibernéticas estão produzindo uma
palavra “liturgia” servia para desig- autêntica translatio imperii a par-
sua translação in toto às esferas dos
nar um conjunto heterogêneo de ser- tir das formas de política moderna
mundos digitais.
viços (leitourgiai) que poderiam ser (com seus sistemas de partido ou o
realizados por alguns cidadãos em De certa forma, podemos dizer que peso dos meios de comunicação tra-
prol da comunidade política como hoje assistimos a uma nova forma de dicionais derivados da imprensa) até
um todo. Posteriormente, sem per- êxodo político, massivo e planetário, as plataformas digitais que envolvem
der a sua espessura política, a noção cujo destino é verificado no comple- uma mudança decisiva na experiên-
foi tangenciando-se até adquirir um to esvaziamento do espaço político cia humana do seu entorno. Portan-
significado que implicava no culto das cidades para transferência ao to, a compreensão dos dispositivos
às divindades. Desta maneira, com próprio meio das redes sociais e do de aclamação do nosso mundo atual
a sua validade política e religiosa, ciberespaço como um todo (o pro- implica preliminarmente um ques-
foi recebida pelo Cristianismo que, cesso, no entanto, não é identificado tionamento acerca de quais sentidos
em latim, utilizou uma terminologia nem resolvido unicamente no para- podemos falar hoje de democracia,
ampla que vai do ministerium até digma de representação imaginária). como os modernos conceberam esta
o officium, acentuando ainda mais Os ecossistemas cibernéticos, neste forma de exercício do poder político.
explicitamente o tom político do ponto, constituem-se nos substitu- Se o ecossistema midiático-digital
termo. Assim, a liturgia constitui- tos da política tradicional e, ao mes- transforma o povo em uma mera en-
62 -se no dispositivo por excelência mo tempo, ainda interagem com ela. tidade de exercício virtual da sobera-
que instaura o rito político da Igreja Deste ponto de vista, a compreensão nia reduzida às circunstâncias espo-
cristã, tanto no Oriente quanto no das liturgias aclamatórias contem- rádicas do voto, as formas reativas
Ocidente, com todas as suas varian- porâneas requer a tarefa prévia de de política podem emergir de novas
tes. Tanto nos modelos estritamente tentar desvendar a nova sociologia formas. Por este caminho, o próprio
teológicos quanto nos secularizados, do espaço político virtual e, conse- conceito de democracia está sofren-
a liturgia política permitirá as ativi- quentemente, a multiplicação das do mudanças talvez irreversíveis.
dades constituintes de todas as for- formas de exercício da liturgia. Final-
mas de poder em sua relação com a mente, é possível dizer que liturgias
comunidade. A liturgia se constitui- completamente novas surgem sobre IHU On-Line – Em que medi-
rá exatamente em um instrumento o chão do nosso presente e apenas da essa característica aclama-
privilegiado para introduzir uma di- estão sendo identificadas como tal. tória aproxima a democracia
nâmica politizadora, no seio de uma Assim, a crise do capitalismo tardio liberal de nossos dias à demo-
multidão, para conferir-lhe caráter contemporâneo implica, ao mesmo cracia pura, ao modelo formu-
de um corpo político. tempo, em crises que substituem as lado por Carl Schmitt1?
liturgias políticas tradicionais e de
seus meios de transmissibilidade. Fabián Ludueña – Eu diria que,
IHU On-Line – Como analisa na verdade, é impossível encon-
as liturgias aclamatórias na de- trar uma “democracia pura”. Se por
mocracia em nosso tempo? IHU On-Line – Até que ponto este termo entendemos a herança
podemos dizer que a democra- política do mundo grego, devemos
Fabián Ludueña – Como sabe- admitir que a democracia moder-
cia se legitima hoje principal-
mos, a tese de Agamben sustenta na já tem uma experiência secular
mente através de dispositivos
que nas democracias contemporâ- maior do que a própria democra-
de aclamação?
neas prevalece o government by
consent, ou seja, uma economia Fabián Ludueña – Justamente 1 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo, políti-
co e professor universitário alemão. É considerado
política destinada a conduzir a vida pelo que expressei anteriormente, um dos mais significativos e controversos espe-
dos homens de acordo com os de- hoje há uma necessidade de desen- cialistas em direito constitucional e internacional
da Alemanha do século 20. A sua carreira foi man-
sígnios dos meios de comunicação volver uma nova taxonomia de dis- chada pela sua proximidade com o regime nacio-
nal-socialista. O seu pensamento era firmemente
que regulam todos os aspectos da positivos de aclamação, pois existem enraizado na teologia católica, tendo girado em
existência social. Esta tese precisa formas inteiramente novas de con- torno das questões do poder, da violência, bem
como da materialização dos direitos. (Nota da
ser complexificada atualmente, pois figuração do político. As mutações IHU On-Line)

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cia ateniense, que não durou mais dessa abordagem, penso que é ver- IHU On-Line – Qual é a in-
do que dois séculos. Além disso, o dadeiramente importante entender fluência de Peterson3 e Kanto-
caráter “representativo” não esta- que nenhum sistema político co- rowicz na arqueogenealogia
va totalmente ausente dessa forma nhecido, do passado ou do presente, sobre a aclamação realizada
democrática antiga, e os problemas pode funcionar sem a presença de por Agamben em O reino e a
constitutivos que trazia consigo, por um elemento “glorioso”. No entanto, glória?
exemplo, a estase ou a guerra civil, a “ritologia” política contemporânea
Fabián Ludueña – A pesquisa
a transformaram em um modelo in- está transformando suas formas, e
genealógica da aclamação realiza-
viável. A democracia moderna (que, somente poderemos entender a di-
da por Giorgio Agamben depende
aliás, não deveríamos chamar de li- nâmica dos ritos políticos se conse-
inteiramente dos grandiosos traba-
beral, em primeira análise) tem um guirmos nos perguntar sobre seus
lhos não apenas de Erik Peterson e
componente aclamatório muito mais profundos significados antropotéc-
Ernst Kantorowicz, mas também de
pronunciado do que a democracia nicos. Sabemos que os ritos podem
Andreas Alföldi4. Em certa medida,
antiga. Carl Schmitt localizou este desempenhar papéis análogos em
a obra de Agamben consistiu em
novo elemento na “opinião públi- diferentes sistemas políticos, já que
uma releitura desses clássicos es-
ca”, pedra de toque da democracia suas propriedades são transferíveis.
quecidos da teologia política. Basta
moderna. No entanto, este conceito Portanto, o essencial muitas vezes
tem se tornado cada vez mais opaco, pensar, neste ponto, na obra monu-
não passa por enfatizar unicamente
pois Schmitt ainda pensava nas for- mental de Peterson, Heis Theós, e
as continuidades das formas acla-
mas de opinião pública derivadas do as dívidas teóricas aparecerão em
matórias, mas começa por constituir
mundo da imprensa escrita, enquan- plena luz. No entanto, a genealogia
uma nova filosofia dos ritos políticos
to testemunhava a grande mutação da aclamação que Agamben leva
nas formas mais diversas que o mun-
comunicacional do século 20. Entre- adiante tem também Carl Schmitt
do contemporâneo nos apresenta.
tanto, o nosso mundo técnico é, em como interlocutor privilegiado, um
muitos sentidos, radicalmente dife- profundo conhecedor das obras dos
rente do mundo conhecido por Sch- três estudiosos mencionados.
IHU On-Line – Em que senti-
mitt e exigirá, portanto, uma nova do essa democracia pura pode
concepção acerca do que devemos fundamentar uma democracia 63
entender pela função aclamatória IHU On-Line – Qual é a novi-
de massas?
na pós-democracia contemporânea. dade e a importância do diag-
De fato, a ontologia social dos seres Fabián Ludueña – Se entende- nóstico realizado por Agamben
falantes está mudando tanto que a mos por “democracia pura” o modelo sobre a assinatura teológica
opinião pública é hoje indissociável, ateniense, pode-se dizer que as rela- que continua a ser o paradigma
por exemplo, de um império de no- ções com a democracia moderna são da política contemporânea?
vas formas de ciber-iconologias polí- bastante escassas. No entanto, não
Fabián Ludueña – Agamben
ticas cujo significado recém estamos me parece que este seja um fato para
permitiu a reatualização de um
começando a vislumbrar. lamentar. Os modernos construíram
debate que não é novo. O século
sistemas políticos que dependem de
20 foi marcado, em diferentes pe-
um evento que os antigos não desco-
ríodos, por uma consideração da
IHU On-Line – A partir des- nheciam por inteiro, mas certamente
importância do teológico-político
sa perspectiva, quais são as ignoravam as dimensões adquiridas
para definir as características mais
possíveis aproximações entre para nós. Refiro-me ao evento revo-
particulares dos sistemas políti-
aclamação, democracia e tota- lucionário. Portanto, uma tarefa per-
cos contemporâneos. Poderíamos
litarismo? tinente que devemos abordar consiste
dizer que a obra de Agamben tem
em perguntarmo-nos sobre as razões
Fabián Ludueña – Como sa- permitido uma nova sistematiza-
que determinaram que se possa falar
bemos, em muitos casos Agamben ção das premissas deste debate
de uma “democracia das massas”. Se
tende a aproximar características para as quais o filósofo italiano
as “massas” substituíram o sujeito po-
paradigmáticas comuns que diver- adicionou seu próprio diagnóstico
lítico do “povo”, então estamos diante
sos sistemas políticos podem com- e novos insights acerca das manei-
de um demos transformado em ochlos
partilhar. Este poderia ser o caso da ras como a ciência política ainda
(massa). E talvez a característica do
aclamação em regimes democráticos nosso tempo seja o advento de uma 3 Erik Peterson Grandjean (1890-1960): teólogo
e totalitários. A tese não é nova e já “oclocracia”, definida de acordo com católico alemão. De formação protestante, con-
havia sido adiantada por Kantorowi- verteu-se ao catolicismo em 1930, especializan-
um entorno tecnocientífico que pro- do-se em patrística. Ele era um opositor do na-
cz2. Apesar da enorme pertinência duz uma terceira ruptura: não mais a zismo e teve uma grande influência sobre muitos
teólogos do século 20. (Nota da IHU On-Line)
democracia antiga, não mais a demo- 4 Andreas Ede Zsigmond Alföldi (1895-1981):
2 Ernst Hartwig Kantorowicz (1895-1963): his- historiador húngaro, numismata e arqueólogo,
toriador alemão que trabalhou com história po- cracia moderna, mas o problema de especialista no período Antigo Tardio. Contribuiu
lítica e intelectual medieval e arte, em ideologias compreender o novo rosto da “oclo- significativamente para o Cambridge Ancient His-
medieval e moderna da monarquia e do estado. tory, incluindo o volume 12, intitulado The Impe-
(Nota da IHU On-Line) cracia” contemporânea. rial Crisis and Recovery. (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

fala de acordo com um vocabulário ta, em interrogar unicamente pela Agamben residem, talvez, no fato
que herdou da teologia. continuidade do dispositivo teo- de que o teológico-político não é
lógico-político nos sistemas que apenas uma figura historicamente
governam o mundo em uma es- articulada, mas também um dis-
IHU On-Line – Gostaria de cala planetária. Sem dúvida, esta positivo antropotecnológico fun-
acrescentar algum outro as- é uma investigação necessária.
damental talvez imprescindível,
pecto? A partir daí, não há continuida-
mas cujo último significado ainda
de, no entanto, de que o caminho
Fabián Ludueña – Quanto a está para ser desvendado. A trans-
do futuro deva ser simplesmen-
sua pergunta anterior, um exame te uma “profanação” da política formação completa que a política
cuidadoso da obra de Agamben cujos contornos nunca chegam a contemporânea exige para tornar-
nos permite também vislumbrar se enunciar senão como um hori- -se genuinamente emancipadora
certos limites, porque a aposta zonte metafórico e incerto. Certas ainda exigirá novos esforços de
não consiste, do meu ponto de vis- hesitações da filosofia política de compreensão de nossa parte.■

Leia mais
- Vontade antropotécnica e biopolítica. Entrevista com Fábian Ludueña, Revista IHU On-Line,
edição no. 344, 21-9-2010, disponível em http://bit.ly/2hUyJw4.

64

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REVISTA IHU ON-LINE

Agamben é parte de uma


espécie em extinção
Bernd Ternes afirma que é equivocado analisar o
conceito do filósofo italiano sob prisma político
Márcia Junges | Edição: Vitor Necchi | Tradução: Walter O. Schlupp

P
ara o filósofo alemão Bernd Ter- a importância do projeto Homo sacer
nes, não é adequado compre- para a filosofia política atual é “muito
ender em uma perspectiva de pequena”. “O quanto vejo, pelo menos
categorialidade política o debate pro- na reflexão universitária das ciências
movido por Giorgio Agamben acerca humanas, Agamben é parte de uma es-
da comunidade que vem. Isso porque pécie em extinção.”
Agamben “não consegue apresentar um Bernd Ternes é sociólogo, filósofo
agente, um ‘model’, um sujeito que pos- e politólogo. Foi aluno de Dux, Haber-
sa reunir em si a tensão paradoxal de mas e Kamper. Em 2003, recebeu ha-
‘ser’ tanto a pessoa humana a se achar bilitação com o tema Exzentrische Pa-
ainda em desnuda forma identitária radoxie pela Freien Universität Berlin,
humana, mas que também já se livrou onde atualmente leciona. É autor de,
das políticas e semânticas identitárias”. entre outros, Buchveröffentlichungen
(Auswahl): Soziologische Margina-
65
Na entrevista concedida por e-mail à
IHU On-Line, Ternes menciona que lien, Bd.1-7 (1999-2013), Invasive In-
tal comunidade que vem se daria, isto trospektion (1999), Exzentrische Para-
sim, num “mundo pós-lei (nach dem doxie (2003), Technogene Nähe, Bde 1
Gesetz)”. Partidário da dialética negati- und 2 (2007/2011), Karl Marx (2008),
va, estaria Agamben praticamente “so- Materielle Avatare unter sich (2013).
zinho na paisagem”. Assim, argumenta, Confira a entrevista.

IHU On-Line – A partir da segmentadas e até anômicas de orga- não se refere à reanimação da dico-
filosofia política de Giorgio nização da “massa ser-humano”. Es- tomia comunidade-sociedade, como
Agamben, como compreender sas últimas “formações sistêmicas”, ela foi criada com grandes conse-
o conceito de “comunidade que no fundo, são reativas e reacionárias, quências por Ferdinand Tönnies1
vem”? E em que consiste o “pa- adialéticas e fascistas, além de presas há quase 130 anos e que veio a ser
radoxo excêntrico”? numa relação edipiana com o grande
crucial para a crítica conservadora
veículo de socialização chamado “Es-
Bernd Ternes – Como sempre no tado”, ou seja, continuam sob o co- contra a Modernidade e seus valo-
caso de conceitos abrangentes, po- ercitivo sistema binário “senhor-ser- res próprios. Ao invés, Agamben
de-se entendê-lo de diversas manei- vo”. Já o conceito de comunidade em
1 Ferdinand Tönnies (1855- 1936): sociólogo ale-
ras. Uma maneira que eu salientaria Agamben não se refere à organização mão. Fez contribuições importantes para a teoria
é encarar o conceito de comunidade parasitária a aproveitar e explorar a sociológica e em estudos de campo, além de ser
responsável por trazer de novo Thomas Hobbes
de Agamben primeiramente como desintegração de sociedades (como, ao primeiro plano, através da publicação dos seus
manuscritos. A distinção, tornada clássica, entre
entendimento otimista do futuro do por exemplo, máfias em sociedades dois tipos básicos de organização social, a comu-
indivíduo socializado, como forte pós-catastróficas, clãs em sociedades nidade (Gemeinschaft) e a sociedade (Gesellscha-
ft), é a contribuição mais conhecida de Tönnies.
alternativa para formas tribalistas, pós-estatais); penso também que ele (Nota da IHU On-Line)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

tenta arrancar a formação histórica de si); e também fecha a porta para é mero exercício preliminar, botão
da formação humana da Europa, a o projeto da modernidade (enquan- de futura flor. [...] O estado atual dos
subjetivação, de todas as formas de to projeto da ubiquidade do sujeito seres humanos provavelmente é o
produção de política identitária e de empreendedor); porém também elo entre dois mundos”7; se acompa-
reconhecimento do homo sapiens não transpõe o limiar daquela porta nharmos Agamben, isso precisaria
como pessoa. Olhando de uma pers- atrás da qual se pratica uma rena- ser modificado no sentido de se con-
pectiva hodierna de mainstream, turalização, uma recriaturalidade ceber o ser humano como “estado”
essa pessoa futura numa sociedade (vulgo “ser humano”). O conceito de um elo ligado de dois ou muitos
vindoura teria que ser descrita como de comunidade em Agamben deve mundos. A pessoa humana desliga-
depravada, excluída, despersonaliza- encontrar-se, penso eu, entre a ca- da8 numa comunidade desligada,
da, alienada, em suma: como margi- racterização de objeto por Ranulph entretanto, não mais poderá dispor
nalizada, “afastada”, “radicalmente Glanville3 em termos de filosofia da uma história integrada [Geschichts-
outra”, no ostracismo. Entretanto, observação (de forma tal que o ob- verband]; tampouco se vislumbra
Agamben torna todos esses atribu- jeto não observa nem é observado), um anjo da história a fazer o retros-
tos e substantivações como plausíveis e a tecnologia social a se perfilar pecto. Mas ambos podem aprender,
para o centro material e ideal da si- atualmente sob a designação “Big segundo Agamben, a se esquivar da
tuação das sociedades capitalistas de Data”, na qual todos os modos de coação para a quantificação política,
hoje (comparável à tese pós-moderna apresentação [Erscheinungswei- sociológica, jurídica, econômica da
de que o que há de menos esclarecido sen] de grupos sociais são traduzi- vida, sem produzir novas negações
é o próprio Esclarecimento [Ilumi- dos em [grupos] estatísticos; assim, éticas. Primeiras formas prelimina-
nismo]); assim, a atribuição acaba se parecem prescindir de um concei- res para tanto são as idiossincrasias
invertendo: o ser humano desperso- to de sociedade (quando muito, (principalmente do corpo), as quais
nalizado, material e ideologicamente [usam] o conceito de dromologia e Agamben redignifica depois de a in-
não formado em lutas de identidade e do acidental). dustrialização capitalista as ter defi-
de reconhecimento, passa a ser pon- nido como pura incomodação. Neste
Agamben certamente comparti-
to de fuga – mesmo que não para a aspecto seria interessante ler Agam-
lhava a concepção de Hans Peter
salvação, para a redenção ou para o ben em conjunto com Rudolf Heinz9,
66 Weber “de que o ser humano, en-
guardião de uma verdade antropoló- que no conceito de patognóstico
quanto unidade de todas as atribui-
gica que há muito já estaria destruí- mantém, a bem dizer no limite do
ções dadas por uma ciência clássica-
da no funcionamento social normal dizível e estruturável, um ente de
-categorial das ciências humanas e/
(comparável à convicção que Fou- nome homo sapiens, cujo vir-a-ser
ou do sujeito, sempre já foi o fanto-
cault2 teve por breve tempo, de que ainda não é história.
ma por excelência”4; mas isso não
“os débeis mentais” seriam guardiões
implica rejeitar toda crítica de base
do humano numa sociedade.)
humanística. Por outra, também não
IHU On-Line – E em que con-
Em termos de história conceitu- implica acatar toda e qualquer críti-
siste, então, o paradoxo excên-
al, o conceito de singularidade em ca centrada no humano só por cor-
trico na formulação de Agam-
Agamben localiza-se antes na es- responder a nosso atual estado de
ben?
tética da existência em Foucault. A percepção, avaliação e valoração e
comunidade de Agamben fecha a por estar sendo atacada, atualmente, Bernd Ternes – Justamente
porta para o projeto do Iluminismo por adversários que preferimos ver nisto: o vir-a-ser daquilo que cha-
(enquanto projeto de auto-autori- bem longe5. Johann Gottfried von mamos de homo sapiens deve ser
zação com a “central de comando” Herder6 disse: “Nossa humanidade pensado em termos históricos e
racionaloide que seria a consciência somente históricos; já a historici-
3 Ranulph Glanville (1946-2014): pesquisador, dade do pensamento é um suple-
educador, artista, designer e performer. Foi pro-
fessor do Royal College of Art, em Londres, da mento da tecnologia do escrever e
2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. Universidade Católica de Leuven, na Bélgica, e
Suas obras, desde a História da Loucura até a His- do Instituto Real de Tecnologia de Melbourne, na
do veículo livro: tanto a tecnologia
tória da sexualidade (a qual não pôde completar Austrália. (Nota da IHU On-Line) quanto o veículo produzem (em re-
devido a sua morte), situam-se dentro de uma 4 Hans Peter Weber, Wie spät ist es?, in: menschen
filosofia do conhecimento. Foucault trata princi- formen (ed.), menschen formen, Berlim 2000, p. trojeção) o anseio por um núcleo/
palmente do tema do poder, rompendo com as 10. (Nota do entrevistado)
concepções clássicas do termo. Em várias edições, 5 Atualmente isto se mostra com muita clareza
a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou- nas formações de frentes e alianças em torno do lósofo e escritor alemão. Estudou Teologia, Filoso-
cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em tema antropotécnicas. Nessa questão, muitos crí- fia e Medicina em Königsberg. Foi aluno de Kant
http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006, ticos defendem um ponto de vista conservador e tornou-se amigo de Hamann, cujas ideias em
disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364, da vida só por não quererem estar do lado dos matéria de linguística, poesia e mitologia influen-
de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o que, ante mais uma emancipação possível do ser ciaram profundamente seu pensamento. (Nota da
discurso racional em debate, disponível em ht- humano em relação à natureza, por exemplo, via IHU On-Line)
tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo alterações genômicas pré-natais, somente enxer- 7 As duas frases são os títulos dos capítulos V e
biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis- gam mais um mercado lucrativo. Quanto à área VI do quinto volume da sua obra Ideen zur Philo-
ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, da análise genômica, confira o brilhante estudo sophie der Geschichte der Menschheit (1784-1791),
Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de- sobre teoria do discurso, que se decidiu por uma Neuausgabe Bodenheim 1995, p. 143 e p. 146.
bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con- crítica inequívoca, de Andreas Lösch, Genompro- (Nota do entrevistado)
fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em jekt und Moderne. Soziologische Analysen des 8 Entbunden também significa “parida”. (Nota do
formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, bioethischen Diskurses, FFM/ New York 2001. tradutor)
Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa- (Nota do entrevistado) 9 Rudolf Heinz (1937): filósofo, psicanalista e mu-
ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) 6 Johann Gottfried von Herder (1744-1803): fi- sicólogo alemão. (Nota da IHU On-Line)

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agente não comprometido pelo te “história inautêntica [unei- não o Super-Mensch)? Mas res-
tempo (cronologia), de nome ente gentliche] da pessoa humana” ta dizer que, em última análise,
(“natureza humana”, “Deus”, teleo- enquanto a forma de produção Agamben não deixou de argu-
logias políticas de todos os tipos). O e de reprodução obedecer a um mentar politicamente com seu
próprio Agamben verga essa “atra- regime capitalista, como tam- conceito de comunidade, uma
bém a visão de Heidegger do vez que ele deixa de desenvolvê-
ção” e tenta voltar sua energia para
“esquecimento do ser” do ente -lo teoricamente no agente do
desenvolver coerentemente um en- das pessoas. conceito [Begriffs-Agens], dei-
tendimento de que a pessoa huma- xando o vindouro a cargo da
na não pode ser definida. Assim ele b) Ao mesmo tempo, não é ade- práxis da historização negativa
se localiza no terreno de uma An- quado dizer que a discussão de (mais ou menos como Marx, nos
tropologia Histórica, que em seus Agamben sobre o conceito de Grundrisse [der Kritik der poli-
comunidade se encontra numa tischen Ökonomie], insiste que
extremos sempre já tentou nega-
categorialidade política, uma “o” comunismo não pode ser
tivar mais uma vez a antropologia vez que ele (compreensivelmen-
negativa, sem cair em positividade. antecipado teoricamente, mas
te) não consegue apresentar um precisa sintetizar-se na prática).
agente, um “model”, um sujeito
que possa reunir em si a tensão
IHU On-Line – É adequado paradoxal de “ser” tanto a pes-
dizer que Agamben analisa a soa humana a se achar ainda IHU On-Line – Nesse aspec-
questão da comunidade como em desnuda forma identitária to, em que medida o esforço
categoria política? Por quê? humana, mas que também já se filosófico de Agamben se dá
livrou das políticas e semânticas no sentido de encontrar cate-
Bernd Ternes – Penso que aqui identitárias. A meu ver, trata-se gorias para uma filosofia po-
é preciso confirmar e também negar. da mesma constelação interpre- lítica inovadora?
tável em Foucault: o rastro hu-
a) É adequado porque Agamben mano na areia sendo apagado Bernd Ternes – Günther An-
não recorre a discursos socio- pelas ondas – quem estará em ders12 disse, certa vez, que em de-
biológicos, de teoria de sistemas condições de detectá-lo: a pes- terminadas ocasiões o pensamento
ou de ontologia fundamental soa desaparecida? Ou somente
para daí formar conceitos poli- se aproxima mais da realidade ver-
Nietzsche11 (o Über-Mensch, dadeira quando exagera exorbitan- 67
tizados ou derivativos. Agam-
ben sustenta a percepção de que temente – justamente porque a re-
pessoas humanas, principal- A financeirização do mundo e sua crise. Uma lei- alidade não se atém a limites, nem
tura a partir de Marx, disponível em https://goo.
mente aquelas organizadas em gl/7aYkWZ. A entrevista Marx: os homens não mesmo os da teoria da distinção ou
sociedade e comunidade, preci- são o que pensam e desejam, mas o que fazem, da semântica linguística/do alcançar
concedida por Pedro de Alcântara Figueira, foi
sam ser capazes de atualidade publicada na edição 327 da IHU On-Line, de 3-5- [Einholung] (à la Tractatus Logico-
[gegenwartsfähig], ou seja, a 2010, disponível em http://bit.ly/2p4vpGS. A IHU
On-Line preparou uma edição especial sobre de- -Philosophicus, de Wittgenstein13).
elas se pode aplicar o tempo. Já sigualdade inspirada no livro de Thomas Piketty Vejo a filosofia política de Agamben
o tempo é mais que mera crono- O Capital no Século XXI, que retoma o argumen-
to central de O Capital, obra de Marx, disponível nessa tradição de Anders ou mesmo
logia ou cronometria, ele precisa em http://www.ihuonline.unisinos.br/edicao/449.
de evento, da possibilidade de (Nota da IHU On-Line) de Baudrillard14. Só que sua inova-
11 Friedrich Nietzsche (1844-1900): filósofo ale-
presença, que por sua vez é pre- mão, conhecido por seus conceitos além-do-ho-
missa de o futuro ser incerto (ou mem, transvaloração dos valores, niilismo, vonta- bit.ly/HzaJpJ. (Nota da IHU On-Line)
de de poder e eterno retorno. Entre suas obras, 12 Günther Anders (1902-1992): pseudônimo de
seja: não pode ser plenamente figuram como as mais importantes Assim falou Günther Stern. Foi um jornalista, filósofo e ensaís-
genealogizado). Enquanto para Zaratustra (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, ta alemão de origem judaica. Doutorou-se em
1998), O anticristo (Lisboa: Guimarães, 1916) e A filosofia, em 1923, sob a orientação de Edmund
o ente psicossocial que é a pes- genealogia da moral (São Paulo: Centauro, 2004). Husserl, tendo sido aluno de Heidegger e Cassi-
soa humana o conceito de sen- Escreveu até 1888, quando foi acometido por um rer. Foi colega de Hannah Arendt, com quem foi
colapso nervoso que nunca o abandonou até o casado entre 1929 e 1936. (Nota da IHU On-Line)
tido [Sinnbegriff] possibilita dia de sua morte. A Nietzsche foi dedicado o tema 13 Ludwig Wittgenstein (1889-1951): filósofo
essa dimensão de futuro, para de capa da edição número 127 da IHU On-Line, austríaco, considerado um dos maiores do sécu-
de 13-12-2004, intitulado Nietzsche: filósofo do lo 20, tendo contribuído com diversas inovações
a pessoa socializada é o aspecto martelo e do crepúsculo, disponível para down- nos campos da lógica, da filosofia da linguagem
político que delineia essa aber- load em http://bit.ly/Hl7xwP. A edição 15 dos Ca- e da epistemologia, dentre outros. A maior par-
dernos IHU em formação é intitulada O pensa- te de seus escritos foi publicada postumamente,
tura. A pergunta de Agamben mento de Friedrich Nietzsche, e pode ser acessada com exceção de seu primeiro livro: Tractatus Logi-
pela forma futura de comunida- em http://bit.ly/HdcqOB. Confira, também, a en- co-Philosophicus, em 1921. Os primeiros trabalhos
trevista concedida por Ernildo Stein à edição 328 de Wittgenstein foram marcados pelas ideias de
de do gênero humano herda, por da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, disponível Arthur Schopenhauer, assim como pelos novos
isso, a meu ver, tanto a visão de em http://bit.ly/162F4rH, intitulada O biologismo sistemas de lógica idealizados por Bertrand Rus-
radical de Nietzsche não pode ser minimizado, na sel e Gottllob Frege. Quando o Tractatus foi lança-
Marx10 sobre a ainda persisten- qual discute ideias de sua conferência A crítica de do, influenciou profundamente o Círculo de Viena
Heidegger ao biologismo de Nietzsche e a ques- e seu positivismo lógico (ou empirismo lógico). A
tão da biopolítica, parte integrante do Ciclo de edição 308 da IHU On-Line, de 14-9-2009, apre-
10 Karl Marx (1818-1883): filósofo, cientista so- Estudos Filosofias da diferença – pré-evento do senta a entrevista O silêncio e a experiência do
cial, economista, historiador e revolucionário ale- XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo inefável em Wittgenstein, com Luigi Perissinotto,
mão, um dos pensadores que exerceram maior biopolítico da vida humana. Na edição 330 da re- disponível em https://goo.gl/HGR6jZ. A entrevista
influência sobre o pensamento social e sobre os vista IHU On-Line, de 24-5-2010, leia a entrevista A religiosidade mística em Wittgenstein, concedi-
destinos da humanidade no século 20. A edição Nietzsche, o pensamento trágico e a afirmação da da por Paulo Margutti, consta na edição 362 da
41 dos Cadernos IHU ideias, de autoria de Leda totalidade da existência, concedida pelo professor revista IHU On-Line, de 23-5-2011, disponível em
Maria Paulani, tem como título A (anti)filosofia de Oswaldo Giacoia e disponível em https://goo.gl/ https://goo.gl/J0krYa. (Nota da IHU On-Line)
Karl Marx, disponível em http://bit.ly/173lFhO. zuXC4n. Na edição 388, de 9-4-2012, leia a en- 14 Jean Baudrillard (1929-2007): filósofo e so-
Também sobre o autor, a edição número 278 da trevista O amor fati como resposta à tirania do ciólogo. Autor de vários livros, entre os quais A
revista IHU On-Line, de 20-10-2008, é intitulada sentido, com Danilo Bilate, disponível em http:// troca impossível (Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

ção eu enxergaria menos no alarga- zação: ganhar independência (cultu- IHU On-Line – Qual é a im-
mento de horizonte do pensamento ralmente adequada) do seu próprio portância dos escritos de Paulo
categorial; ao invés, vejo em suas passado e também, respectivamen- de Tarso17 para a construção da
texturas, análises de profundidade e te, fazer-se dependente do próprio ideia “comunidade que vem”?
interferências uma formação de ho- passado de ganhar independência
Bernd Ternes – Na versão de Ja-
rizonte que, uma vez aceita, oferece do passado (a partir do século 20).
cob Taubes18, que ressalta a crítica à
mais ou menos o quanto a psicaná-
lei na carta de Paulo aos Romanos,
lise de Freud proporcionou como
a importância não é grande. A meu
nova “moeda” epistemológica: per- IHU On-Line – Por outro
ver, a dimensão da lei como policy,
cepção da sindromática e sintomáti- lado, podemos compreender a
o direito, deve ser vista antes como
ca ainda mais complexa da constitui- “comunidade que vem” como
anomalia: já agora podemos obser-
ção de pessoas organizadas – e com aquela onde somos capazes de
var que a crítica à lei está perdendo
isso um exame mais difícil de todas nos dar a nossa própria “for-
cada vez mais terreno para a comu-
as ideias e visões políticas a visarem ma-de-vida”? Por quê?
nidade de mercado puramente capi-
libertação, emancipação, humanifi-
Bernd Ternes – Suponho que a talista e para as condições técnicas
cação da pessoa.
forma agambeniana da comunita- herméticas de comunicação via coi-
riedade vindoura deveria “possuir” sificação de necessidades que, em
uma forma como aquela que Vilém última análise, podem ser negocia-
IHU On-Line – O quanto
Flusser15 sempre voltava a exprimir das. A comunidade que vem estará
esta ideia de “comunidade
indiretamente: como um existencial num mundo pós-lei [nach dem Ge-
que vem” tem conexão com a
efêmero, instantâneo, imanente, a setz] (também se poderia dizer: após
“política que vem” e a ideia de
insinuar mais o ser caminho [Weg- a morte do pai e do filho vêm então
profanação?
sein] que o existir [Dasein]. A meu
Bernd Ternes – Da forma como ver, isto proíbe presumir uma ca- 17 Paulo de Tarso (3-66 d.C.): nascido em Tarso,
entendo o conceito de profanação, racterística intrínseca [Eigenheit] na Cilícia, hoje Turquia, era originariamente cha-
mado de Saulo. Entretanto, é mais conhecido
trata-se de outra designação do fato da forma do ser humano. Agamben, como São Paulo, o Apóstolo. É considerado por
muitos cristãos como o mais importante discípulo
68 de, na formação das sociedades mo- em última análise, embute [hebt auf] de Jesus e, depois de Jesus, a figura mais impor-
dernas, se privatizarem tópoi, sím- a infinitude do ser humano no fato tante no desenvolvimento do Cristianismo nas-
cente. Paulo de Tarso é um apóstolo diferente dos
bolos, práticas que antes constituí- de ele, quando muito, não passar demais. Primeiro porque, ao contrário dos outros,
não conheceu Jesus pessoalmente. Antes de sua
am poder, comunidade e sanção. A do vir-a-ser. O human being efeti- conversão, se dedicava à perseguição dos primei-
secularização é, penso eu, uma das vamente se refere estritamente ros discípulos de Jesus na região de Jerusalém. Em
uma dessas missões, quando se dirigia a Damas-
mais eminentes dimensões da profa- à nossa constituição psicossocial e co, teve uma visão de Jesus envolto numa grande
luz e ficou cego. A visão foi recuperada após três
nação: a riqueza mítica do elemen- também psicopolítica atual; penso dias por Ananias, que o batizou como cristão. A
to religioso permanece acessível em que Agamben também procura con- partir deste encontro, Paulo começou a pregar o
Cristianismo. Ele era um homem culto, frequentou
privado ao mesmo tempo que se vo- ceber um human becoming [huma- uma escola em Jerusalém, fez carreira no Templo
(era fariseu), onde foi sacerdote. Era educado em
latiliza o sagrado na sociedade (ou, no em formação] para essas formas/ duas culturas: a grega e a judaica. Paulo fez muito
se quisermos formular criticamente: invólucros da pessoa humana. A pela difusão do Cristianismo entre os gentios e é
considerado uma das principais fontes da doutri-
juntamente com a transferência do coisa muda de figura quando se con- na da Igreja. As suas Epístolas formam uma seção
sagrado para os invólucros do cien- sidera as formas de organização das fundamental do Novo Testamento. Afirma-se que
foi ele quem verdadeiramente transformou o cris-
tificismo). Agamben vai além desse relações entre as pessoas. Aí parece tianismo em uma nova religião, superando a ante-
rior condição de seita do Judaísmo. A IHU On-Li-
eminente candidato com seu concei- haver formas finais de evolução hu- ne 175, de 10-4-2006, dedicou sua capa ao tema
to “profanação”; também aqui vejo mana (como, por exemplo, “a justi- Paulo de Tarso e a contemporaneidade, disponível
em http://bit.ly/ihuon175, assim como a edição
paralelos com o projeto freudiano de ça” no sentido de Derrida16, ou tam- 286, de 22-12-2008, Paulo de Tarso: a sua relevân-
cia atual, disponível em https://goo.gl/bKZcM0.
reescrever a conditio humana. Mas bém o “indivíduo como pertencente Também são dedicadas ao religioso a edição 32
a sociedade vindoura de Agamben a uma espécie”, de Marx). dos Cadernos IHU em formação, Paulo de Tar-
so desafia a Igreja de hoje a um novo sentido de
teria que (no meu entendimento) realidade, disponível em http://bit.ly/ihuem32, e a
edição 55 dos Cadernos Teologia Pública, São
ter-se liberado, independentizado 15 Vilém Flusser (1920-1992): filósofo tcheco, Paulo contra as mulheres? Afirmação e declínio da
a tal ponto do próprio passado/dos naturalizado brasileiro. Autodidata, durante a mulher cristã no século I, disponível em http://bit.
Segunda Guerra, fugindo do nazismo, mudou- ly/ihuteo55. (Nota da IHU On-Line)
próprios passados, que profanações, se para o Brasil, estabelecendo-se em São Paulo, 18 Jacob Taubes (1923-1987): sociólogo da reli-
onde atuou por cerca de 20 anos como profes- gião, filósofo e especialista em judaísmo. Taubes
a rigor, só teriam mais dignidade sor de filosofia, jornalista, conferencista e escritor. nasceu dentro de uma antiga família de rabinos.
voluntarista ou estocástica. Quando (Nota da IHU On-Line) Ele obteve seu título de doutor em 1946 com a
16 Jacques Derrida (1930-2004): filósofo fran- tese Abendländische Eschatologie. Inicialmente
muito, podem assumir a função de cês, criador do método chamado desconstrução. ensinou estudos religiosos e estudos judeus nos
laranja [Platzhalter] na posição órfã Seu trabalho é associado, com frequência, ao Estados Unidos. A partir de 1965, foi professor de
pós-estruturalismo e ao pós-modernismo. Entre Estudos Judeus e Hermenêuticos da Universida-
que antes se encarregava da histori- as principais influências de Derrida encontram- de Livre de Berlim. Autor da importante obra Die
se Sigmund Freud e Martin Heidegger. Entre sua politische Theologie des Paulus. Vorträge gehalten
extensa produção, figuram os livros Gramatologia an der Forschungsstätte der evangelischen Stu-
(São Paulo: Perspectiva), A farmácia de Platão (São diengemeinschaft in Heidelberg, 23.-27. Februar
Paulo: Iluminuras), O animal que logo sou (São 1987 (A Teologia Política de Paulo. Palestras rea-
2002), A ilusão vital (Civilização Brasileira, 2001) Paulo: Unesp), Papel-máquina (São Paulo: Estação lizadas na da comunidade do centro de pesquisa
e A sociedade do consumo (Lisboa: Edições 70, Liberdade) e Força de lei (São Paulo: WMF Martins de estudos do evangélico em Heidelberg, 23-27
2000). (Nota da IHU On-Line) Fontes). (Nota da IHU On-Line) de fevereiro de 1987). (Nota da IHU On-Line)

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

as filiais [“Tochtergesellschaften”, permite que o não quitado do passa- Kurze Geschichte der Demokratie.
“subsidiárias”]). do efetivamente seja referência do Von Athen bis zur EU), de 2004. Ele
presente – queiramos ou não. Mas e Agamben demonstram, via histó-
Na dimensão da “internalização
em Agamben, penso, o messianis- ria do materialismo e filosofia políti-
negativa” do messianismo enquanto
mo é de maior dignidade decisória; ca, que não existe distinção material
profanação fracassada, a bem dizer
aí, a meu ver, se reflete a integração entre poder democrático e não de-
suprema, que evacua “inicialmente
de filosofia de direita por Agamben mocrático. O que existe é a margem
em caráter temporário” a realização/
(principalmente dos nazistas Hei- que a democracia proporciona: de-
resgate/redenção para a dimensão
degger20 e Schmitt21). A comunidade mos [grego: “povo”] enquanto pro-
da abstinência, não realização, não
de Agamben continua (se é que se jeto para se configurar as condições
expressão, permanência no negati-
pode formular assim) na destruição de vida de modo não violento, sem
vo, a teologia política de Paulo po-
(como premissa catastrófica da re- opressão, e para estabelecer abertu-
deria, a meu ver, ser ventilada como
denção), a qual adquire um estado ra como estrutura da constituição de
referência para uma orientação re-
de agregação ontológico diferente: o sociedade como atrator da semânti-
ferencial de formação vindoura de
da dispersão. Penso que o perfil do ca social e então principalmente ju-
comunidade. Eu pessoalmente não
conceito prospectivo de comunida- rídica (o que foi o último campo de
conseguiria ver aí uma contribuição
de de Agamben não provém do uni- Jürgen Habermas23). Numa leitura
de monta.
verso de ideias de Benjamin. esquerdista, Agamben e Canfora
insistem que é justificada a provo-
cação de Carl Schmitt, de que com
IHU On-Line – E qual é a influ-
IHU On-Line – A partir da aná- o instituto dos direitos humanos se
ência de Walter Benjamin19 nas
lise filosófico-política de Agam- poderia fazer política ainda mais
ideias de comunidade e messia-
ben, como compreender a pro- bestial do que sem o mesmo. Só que
nismo que perpassam a filoso-
ximidade indisfarçável entre o horizonte dos dois não é o fascis-
fia de Agamben?
totalitarismos e democracia? mo, como em Schmitt, mas a insis-
Bernd Ternes – Na minha leitu- tência em que a atual forma em que
Bernd Ternes – Em termos sim-
ra, não é significativa. Com o con- se apresenta a organização social,
plificados: releia-se, para tanto, Lu- 69
ceito cabalista tikkun, Benjamin se com sofrimento, injustiça e domina-
ciano Canfora22, “La democrazia.
refere à restauração e reparo das ção, deve ser entendida como forma
Storia di un’ideologia” (em alemão:
coisas/veículos/luz espatifados, que deve ser arrancada fora – ainda
tarefa messiânica que cabe não ao que de modo extremamente comple-
20 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo ale-
anjo da história, mas que persiste mão. Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A xo. (Também aqui se pode detectar
problemática heideggeriana é ampliada em Que
como tarefa messiânica ante o pon- é Metafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo uma reverência a Marx, que de certa
to de partida que é a catástrofe do (1947) e Introdução à metafísica (1953). Sobre forma usou esse motivo do arrancar
Heidegger, confira as edições 185, de 19-6-2006,
mundo espatifado, uma vez que o intitulada O século de Heidegger, disponível em fora na questão de como o proleta-
http://bit.ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, inti-
passado, diz Benjamin, porta em si tulada Ser e tempo. A desconstrução da metafísi- riado poderia passar da sua forma
um índice temporal a apontar para a ca, disponível em http://bit.ly/ihuon187. Confira, humana coisificada para o reino li-
ainda, Cadernos IHU em formação nº 12, Mar-
redenção. Assim sendo, fica-lhe evi- tin Heidegger. A desconstrução da metafísica, que berto da vivência solidária.)
pode ser acessado em http://bit.ly/ihuem12, e a
dente que o ser humano como inte- entrevista concedida por Ernildo Stein à edição Resumindo: Agamben conduz para
grante de uma espécie porta, em seu 328 da revista IHU On-Line, de 10-5-2010, dis-
ponível em https://goo.gl/dn3AX1, intitulada O a questão central se no “paradigma”
tempo, uma força messiânica que biologismo radical de Nietzsche não pode ser mini-
mizado, na qual discute ideias de sua conferência da democracia enquanto ideia existe
A crítica de Heidegger ao biologismo de Nietzsche algo que não precise ser entendido
e a questão da biopolítica, parte integrante do ci-
19 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. clo de estudos Filosofias da diferença, pré-evento como derivado da forma mais per-
Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de do XI Simpósio Internacional IHU: O (des)governo feita de dominação (em comparação
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicí- biopolítico da vida humana. (Nota da IHU On-Li-
dio. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria ne) com a sociedade disciplinar, vide
Crítica, foi fortemente inspirado tanto por auto- 21 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo po-
res marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo lítico e professor universitário alemão. É conside- Guy Debord24); algo, portanto, que,
místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor rado um dos mais significativos (porém também
profundo da língua e cultura francesas, traduziu um dos mais controversos) especialistas em di-
para o alemão importantes obras como Quadros reito constitucional e internacional da Alemanha 23 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão,
parisienses, de Charles Baudelaire, e Em busca do do século 20. A sua carreira foi maculada pela sua principal estudioso da segunda geração da Escola
tempo perdido, de Marcel Proust. O seu trabalho, proximidade com o regime nacional-socialista. de Frankfurt. Herdando as discussões da Escola de
combinando ideias aparentemente antagônicas Entre outros, é autor de Teologia política (Politis- Frankfurt, Habermas aponta a ação comunicativa
do idealismo alemão, do materialismo dialético che Theologie), tradução de Elisete Antoniuk, Belo como superação da razão iluminista transforma-
e do misticismo judaico, constitui um contributo Horizonte: Ed. Del Rey, 2006 e “O Leviatã na Teoria da num novo mito, o qual encobre a dominação
original para a teoria estética. Entre as suas obras do Estado de Thomas Hobbes”. Trad. Cristiana Fi- burguesa (razão instrumental). Para ele, o logos
mais conhecidas, estão A obra de arte na era da lizola e João C. Galvão Junior. In GALVÃO JR. J.C. deve se construir pela troca de ideias, opiniões e
sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o “Leviathan cibernetico” Rio de Janeiro: NPL, 2008. informações entre os sujeitos históricos, estabele-
conceito de história (1940) e a monumental e ina- (Nota da IHU On-Line) cendo-se o diálogo. Seus estudos voltam-se para
cabada Paris, capital do século XIX, enquanto A ta- 22 Luciano Canfora (1942): classicista e historia- o conhecimento e a ética. (Nota da IHU On-Line)
refa do tradutor constitui referência incontornável dor italiano, professor de Clássicos na Universi- 24 Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo
dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a dade de Bari. Alguns de seus livros: Júlio César: francês, autor de A sociedade do espetáculo – Co-
entrevista Walter Benjamin e o império do instan- o ditador democrático, Livro e Liberdade, A de- mentários sobre a sociedade do espetáculo (Rio de
te, concedida pelo filósofo espanhol José Anto- mocracia: história de uma ideologia, A biblioteca Janeiro: Contraponto) e fundador da Internacional
nio Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível em desaparecida e O Mundo de Atenas. (Nota da IHU Situacionista (IS). Sobre ele, confira ainda a auto-
http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line) On-Line) biografia Panégyrique (Paris: Éditions Gérard Le-

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

em termos muito abstratos, permita Benda25, é mais importante do que mesma. Expressando-o na lingua-
disponibilizar como presente o não nunca demorar-se no negativo. gem do idealismo alemão e do mar-
quitado do passado, presente esse Para todos que trabalham na atu- xismo: não é mais a coisa morta
que não pode vir a ser passado, mas al “emancipação da sociedade em [das Tote] (mundo analisado, em
chega a si no evento. Nisso, a con- relação ao ser humano” deveria Hegel 27, trabalho morto, em Marx)
tradição omnidominante é que essa ser leitura obrigatória o estupendo que entra no foco da perspectiva
textura “temporal” já está ocorrendo panorama de Agamben sobre a ne- da vida (“vida do espírito”, traba-
há muito, isto é, no caráter social do gativação do nada (valor intrínseco lho vivo), e sim esse[s] último[s]
capitalismo, a ser decifrado psica- da civilização europeia, segundo [são focalizados] pela perspectiva
naliticamente, [caráter social esse] Virilio26), ou seja, o desvelamento, da coisa morta – que é o destilado
para o qual todo presente sempre só desnudamento “do ser humano” [Kondensat] objetificado, coisifi-
pode ser simulação de um passado descrito pelos invólucros de tex- cado, abstrato de trabalho, tempo,
que, em si mesmo, nunca foi presen- tura do Iluminismo e da Moder- atos, sofrimento passados. Pare-
te (aqui estaríamos chegando no su- nidade, e que bem por isso acabou ce uma loucura; mas poderá ser
plemento de Derrida). sendo despido (em duplo sentido). destrinçado quando se aceitar o
Mas este é um desejo utópico. conceito de inércia [Leblosigkeit]
como “nova” dimensão existencial
IHU On-Line – Qual é a im- da paradoxal constituição excên-
portância do projeto Homo IHU On-Line – Gostaria de trica da sociedade, conceito este
sacer e também da obra de acrescentar algum aspecto não que despreza a noção de ser-para-
Agamben como um todo para o questionado? -a-morte, sem dela conseguir se
debate da filosofia política em esquivar; assim, em formulação
nosso tempo? Bernd Ternes – Com Agam-
hiperbólica, ele tem por axioma
ben, ficou mais fácil acompanhar
Bernd Ternes – A meu ver, a o enunciado de Viktor von Wei-
o pensamento de que o aspecto
importância é muito pequena, in- zsäcker28: vida significa estar
social entrementes resvalou para
felizmente. O quanto vejo, pelo apaixonadamente não morto. Essa
uma “posição de derivação”. Com
70 menos na reflexão universitária “filosofia de vida” negativa segue a
isso me refiro a um deslocamento
das ciências humanas, Agamben é antropologia negativa, que por sua
dos mecanismos fundamentais de
parte de uma espécie em extinção. vez continua devendo sua orienta-
formação de sociedade, ou pelo
O “terror” exercido pelo pragma- ção à dialética negativa. Partidário
menos maior complexidade da
tismo/neopositivismo, pela orien- desta ainda é, quase que sozinho
tação obsessiva para a aplicação, 25 Julien Benda (1867-1956): crítico, escritor e fi-
na paisagem, Agamben.■
lósofo francês, celebrizado pela sua obra La Trahi-
pelas soluções rápidas, deslegitima son des clercs (A Traição dos Clérigos ou, em alter-
um pensamento que consegue in- nativa, A Traição dos Intelectuais), de 1927. (Nota
da IHU On-Line)
tuir em eixos temporais realmente 26 Paul Virilio (1932): urbanista e filósofo francês. 27 Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831):
Estuda e critica efeitos perniciosos da velocida- filósofo alemão idealista. Como Aristóteles e San-
abrangentes o que, quem e como de nas relações sociais contemporâneas, desde to Tomás de Aquino, desenvolveu um sistema fi-
pessoas humanas não são. Justa- os seus reflexos no processo cognitivo até suas losófico no qual estivessem integradas todas as
implicações na política. É autor, entre outros, de contribuições de seus principais predecessores.
mente numa época em que muitos Guerra pura (São Paulo: Brasiliense); O espaço Sobre Hegel, confira a edição 217 da IHU On-Li-
crítico (Rio de Janeiro: Editora 34); A máquina de ne, de 30-4-2007, disponível em https://goo.gl/
apoiam com naturalidade um sa- visão (Rio de Janeiro: José Olympio); Velocidade e m0FJnp, intitulada Fenomenologia do espírito, de
crifício intelectual (à la Napoleão: política (São Paulo: Estação Liberdade); A bomba (1807-2007), em comemoração aos 200 anos de
informática (São Paulo: Estação Liberdade) e Ville lançamento dessa obra. Veja ainda a edição 261,
com ele se encerraria a época do panique (Paris: Galilée). Reproduzimos duas entre- de 9-6-2008, Carlos Roberto Velho Cirne-Lima.
vistas com Virilio sobre o seu livro Ville Panique, Um novo modo de ler Hegel, disponível em ht-
romance e começaria a época da uma na edição 108 da IHU On-Line, de 5-7-2004, tps://goo.gl/D94swr; Hegel. A tradução da histó-
história), portanto, em sentido in- disponível em http://bit.ly/chQJ0R, outra na edi- ria pela razão, edição 430, disponível em https://
ção 136, de 11-4-2005, disponível em http://bit.ly/ goo.gl/62UATd e Hegel. Lógica e Metafísica, edição
vertido da “traição” segundo Julien auzfww. Dele, também foi publicada outra entre- 482, disponível em https://goo.gl/lldAkv. (Nota da
vista na 95ª edição da IHU On-Line, de 5-4-2004, IHU On-Line)
disponível em http://bit.ly/cpkXIN. (Nota da IHU 28 Viktor von Weizsäcker (1886-1957): médico
bovici). (Nota da IHU On-Line) On-Line) alemão.

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

A ingovernável resistência
ao neoliberalismo
Manuel Ignacio Moyano sustenta que é necessário haver
um tipo de corpus social para além dos estamentos
do Estado, cuja força vem da “potência do não”
Márcia Junges | Edição: Ricardo Machado | Tradução: Henrique Denis Lucas

O
navio do neoliberalismo é ele- tensão polar que define duas formas
gante, moderno e aparente- do fazer político: uma forma de consti-
mente confortável. As pessoas tuição do corpo político, por um lado,
só se sentem desagradáveis quando e uma técnica de governo, por outro”,
uma onda mais forte balança a embar- explica Moyano.
cação, o que não é muito comum para os
“Este desconforto do ingovernável
passageiros de primeira classe. O pro-
inaugura uma prática ‘democrática’
blema é que no navio do neoliberalismo
que vai além tanto do Estado de Di-
não há coletes nem botes salva-vidas
reito quanto do conjunto de técnicas
caso encontre pelo caminho o impon-
governamentais que administram a
derável iceberg do fim de seu próprio
política. E esta prática nada mais é do
ciclo. “Nada está a salvo, nem mesmo
que o apaixonamento. Essa paixão, e
o Estado de Direito chamado de ‘demo-
cracia liberal’”, pondera Manuel Igna-
não propriamente as paixões concre- 71
tas, mas a capacidade de apaixonar-
cio Moyano, em entrevista por e-mail à
-se, é o verdadeiramente ingoverná-
IHU On-Line, onde debate a atualidade
vel”, complementa.
do pensamento de Agamben.
Manuel Ignacio Moyano é gradua-
Uma das teses de Agamben mais re-
do em Ciência Política pela Universidad
jeitadas é a de que há uma continuida-
Católica de Córdoba, Argentina. Atual-
de entre os campos de concentração e
mente realiza doutorado em Filosofia
o Estado de Direito, de onde deriva a
pela Universidad Nacional de Córdoba,
necessidade política de um corpo (ou
discutindo, justamente, a obra do filó-
corpus) ingovernável. “Esta noção [de
ingovernável], segundo um pequeno sofo italiano Giorgio Agamben.
texto do italiano, move-se em uma Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é o contex- a sua não podemos ceder a este sair ileso. Ou seja, não se pode
to da crítica de Agamben à vida impulso instrumental de conceber usá-lo como se fosse uma mera
nua como objeto da política? o pensamento de um autor como ferramenta disponível ao nosso
uma ferramenta passiva de ser alcance, porque nos afeta além
Manuel Ignacio Moyano – Pa- utilizada em qualquer contexto. da nossa escolha. Trata-se de um
rece fundamental começar especi- Pelo contrário, acredito que seu tom, uma cor, uma forma de escri-
ficando o que devemos entender pensamento não é tanto uma fer- ta e de leitura, uma singularidade.
por “crítica” em um pensamento ramenta, mas um corpo, um cor- Em uma palavra, é um estilo que
como o de Agamben. Pessoalmen- pus. E isso significa que ao entrar nos afeta e não nos permite dispor
te, acredito que em filosofias como em contato com ele, não se pode livremente sobre ele. É, inclusive,

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TEMA DE CAPA

um estilo que nos faz ler de deter- Foucault 5, Warburg6, Debord 7, só tica, em geral, e a democracia
minado modo, e eu insistiria nes- para citar alguns), é composta a liberal de nosso tempo, em es-
te “nos faz”, já que somos agentes partir de imagens paradigmáticas pecífico?
e pacientes deste modo de ler. que permitem uma via de acesso
Manuel Ignacio Moyano – Em-
Agora, acho que a pergunta que ao presente. Neste sentido, sua
bora fale-se de uma suposta “guina-
devemos nos fazer quando lemos crítica não é apenas uma “crítica
da política” nas publicações agambe-
Giorgio Agamben e sua “crítica” é de” algo, como se fosse exterior
nianas, com a publicação de Homo
sobre a maneira em que ela se des- àquilo que critica. É sobretudo a
sacer, em 1995, acredito que seu
prende de seu estilo de pensamen- produção de uma imagem para-
pensamento é político desde o início
to. E este estilo, desenvolvido em digmática para acessar o presente,
de seus escritos. Não apenas porque
uma linhagem filosófica verdadei- acesso este que será sempre his-
já em L’uomo senza contenuto (Ma-
ramente promíscua Aristóteles 1, tórico por si mesmo. É nisto que
cerata: Quodiblet, 2013) há uma crí-
Averróis2, Heidegger 3, Benjamin4, constitui sua arqueologia filosófi-
tica ao “fazer” humano em geral, as
ca. Portanto, precisamos conceber
suas noções de práxis e poiesis com
1 Aristóteles de Estagira (384 a.C.-322 a.C.): filó- a “vida nua” como a imagem pa-
sofo nascido na Calcídica, Estagira. Suas reflexões as quais as comunidades políticas no
radigmática que, segundo Agam-
filosóficas – por um lado, originais; por outro, re- Ocidente se organizaram e produzi-
formuladoras da tradição grega – acabaram por ben, resume o presente político
configurar um modo de pensar que se estenderia ram, mas também porque no mesmo
por séculos. Prestou significativas contribuições em que vivemos nossas vidas, uma
para o pensamento humano, destacando-se nos
estilo de pensamento agambeniano
imagem que nos permite acessá-
campos da ética, política, física, metafísica, lógica, há uma politicidade constitutiva, que
psicologia, poesia, retórica, zoologia, biologia e -lo. Isto é fundamental porque
história natural. É considerado, por muitos, o filó- não se instala em uma de suas no-
sofo que mais influenciou o pensamento ociden- permite um contato crítico com o
ções mais importantes: a potência de
tal. (Nota da IHU On-Line) presente, mas por si próprio pos-
2 Averróes ou Averróis (Abü al-Walid Muhammad pensamento, outra figura do “fazer”
Ibn Ruchd) (1126-1198): árabe, foi um filóso- sibilita uma prática política muito
fo, médico e polímata muçulmano andaluz. Seu diferente da práxis e da poiesis. Mas
nome “Averróis” é uma distorção latina do antro-
mais “situada”.
isso significa, então, que seu estilo é
pônimo árabe. Estudou diversas ciências e filoso-
fia. Alcançou celebridade com sua obra Comen- tanto político quanto ontológico. E
tários Sobre Aristóteles, composta de duas partes:
Schard (Grande Comentário) e Telkhis (Resumo). é neste terreno ontológico-político
Considerado um dos maiores conhecedores da IHU On-Line – A partir dessa que devemos ler as suas considera-
72 filosofia aristotélica, Averróis afirmava a subordi- ontologia do presente, qual é a
nação da religião à filosofia quando as argumen- ções sobre a política atual. Sua tese
tações delas fossem contrastantes, e considerava importância da obra de Agam- mais rejeitada, como se sabe, é a da
a religião como uma filosofia simbólica para o
vulgo. Precursor dos filósofos heréticos, no isla- ben para repensarmos a polí- continuidade entre o campo de con-
mismo e no cristianismo, que rejeitavam o dogma
da ressurreição dos mortos. Deixou também um centração nazista e a cidade moder-
tratado de medicina, traduzido para o latim com na. Em outras palavras, entre o tota-
o título de Colliget. Confira a entrevista concedida sua reprodutibilidade técnica (1936), Teses sobre o
por Rodrigo Karmy, intitulada Agamben leitor de conceito de história (1940) e a monumental e ina- litarismo e o Estado de Direito. Bem,
Averroes e as condições de uma “política da inope- cabada Paris, capital do século XIX, enquanto A ta-
rosidade”, disponível em http://bit.ly/1ALhgyt. refa do tradutor constitui referência incontornável considerada fora da historiografia
(Nota da IHU On-Line) dos estudos literários. Sobre Benjamin, confira a (o que nem sempre foi feito), esta
3 Martin Heidegger (1889-1976): filósofo alemão. entrevista Walter Benjamin e o império do instan-
Sua obra máxima é O ser e o tempo (1927). A pro- te, concedida pelo filósofo espanhol José Anto- tese revela um fato de fundamental
blemática heideggeriana é ampliada em Que é Me- nio Zamora à IHU On-Line nº 313, disponível em
tafísica? (1929), Cartas sobre o humanismo (1947) http://bit.ly/zamora313. (Nota da IHU On-Line) importância: nada está a salvo, nem
e Introdução à metafísica (1953). Sobre Heidegger, 5 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês. mesmo o Estado de Direito chamado
confira as edições 185, de 19-6-2006, intitulada Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
O século de Heidegger, disponível em http://bit. tória da sexualidade (a qual não pôde completar de “democracia liberal”. Nem preci-
ly/ihuon185, e 187, de 3-7-2006, intitulada Ser e devido a sua morte), situam-se dentro de uma
tempo. A desconstrução da metafísica, disponível filosofia do conhecimento. Foucault trata princi- samos ir tão longe: na América Lati-
em http://bit.ly/ihuon187. Confira, ainda, Cader- palmente do tema do poder, rompendo com as na, do dia para a noite, vimos todas
nos IHU em formação nº 12, Martin Heidegger. A concepções clássicas do termo. Em várias edições,
desconstrução da metafísica, que pode ser acessa- a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou- as nossas garantias constitucionais
do em http://bit.ly/ihuem12, e a entrevista conce- cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
dida por Ernildo Stein à edição 328 da revista IHU http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006, mínimas serem ameaçadas (Milagro
On-Line, de 10-5-2010, disponível em https:// disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364, Sala na Argentina8, a derrocada de
goo.gl/dn3AX1, intitulada O biologismo radical de de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
Nietzsche não pode ser minimizado, na qual discute discurso racional em debate, disponível em ht- Dilma no Brasil9, apenas para citar
ideias de sua conferência A crítica de Heidegger ao tps://goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo
biologismo de Nietzsche e a questão da biopolítica, biopolítico da vida humana, de 13-9-2010, dis-
parte integrante do ciclo de estudos Filosofias da ponível em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, 8 Milagro Sala (1964): é uma líder social indíge-
diferença, pré-evento do XI Simpósio Internacional Biopolítica, estado de exceção e vida nua. Um de- na chamada “Tupac Amaru” em Jujuy, província
IHU: O (des)governo biopolítico da vida humana. bate, disponível em https://goo.gl/RX62qN. Con- que fica ao norte, na fronteira da Argentina com
(Nota da IHU On-Line) fira ainda a edição nº 13 dos Cadernos IHU em a Bolívia. Sua organização é uma espécie de coo-
4 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. formação, disponível em http://bit.ly/ihuem13, perativa, que começou construindo moradias po-
Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de Michel Foucault – Sua Contribuição para a Educa- pulares em regime de mutirão. Pequenas casas,
ser capturado pelos nazistas, preferiu o suicí- ção, a Política e a Ética. (Nota da IHU On-Line) isso inclui apartamentos e casas de 54 m2. Mila-
dio. Associado à Escola de Frankfurt e à Teoria 6 Aby Warburg: alemão, famoso historiador da gro Sala foi presa no dia 16 de janeiro de 2016,
Crítica, foi fortemente inspirado tanto por auto- arte do início do século XX, que, imbuído de um e permanece até hoje, enquanto organismos
res marxistas, como Bertolt Brecht, como pelo olhar antropológico, descobrira um vínculo entre internacionais como a Organização das Nações
místico judaico Gershom Scholem. Conhecedor a cultura dos índios hopis do Novo México e a Unidas - ONU e o Parlasur (parlamento do Mer-
profundo da língua e cultura francesas, traduziu civilização do Renascimento. (Nota da IHU On-Li- cosul) pedem ao governo argentino sua imediata
para o alemão importantes obras como Quadros ne) libertação. Presa política, está sendo acusada de
parisienses, de Charles Baudelaire, e Em busca do 7 Guy Debord (1931-1994): filósofo e sociólogo incitação à violência e tumulto, por encabeçar um
tempo perdido, de Marcel Proust. O seu trabalho, francês, autor de A sociedade do espetáculo - Co- protesto na província de Jujuy, contra as mudan-
combinando ideias aparentemente antagônicas mentários sobre a sociedade do espetáculo (Rio de ças impostas pelo governador Gerardo Morales
do idealismo alemão, do materialismo dialético Janeiro: Contraponto, 1997) e fundador da Inter- no sistema e programa de cooperativas. (Nota da
e do misticismo judaico, constitui um contributo nacional Situacionista (IS). Sobre ele, confira ainda IHU On-Line)
original para a teoria estética. Entre as suas obras a autobiografia Panégyrique (Paris: Éditions Gé- 9 Dilma Rousseff (1947): economista e política
mais conhecidas, estão A obra de arte na era da rard Lebovici, 1989). (Nota da IHU On-Line) brasileira, filiada ao Partido dos Trabalhadores-PT,

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REVISTA IHU ON-LINE

os exemplos mais conhecidos). Este ais sobre o populismo e o republica- Manuel Ignacio Moyano –
pequeno fato, longe de nos parali- nismo. No entanto, em algumas pu- Acredito que a melhor maneira de
sar, nos move, nos politiza, faz com blicações recentes (L’uso dei Corpi compreendê-lo seria uma espécie de
que procuremos formas de inven- e Stasis) [O uso dos corpos. Homo topos outopos, um lugar sem-lugar,
ção para sobreviver e recodificar o sacer, IV, 2 (São Paulo: Boitempo, como Agamben denomina os “luga-
nosso presente. 2017)], Agamben nos mostrou como, res” de seu interesse no belíssimo
em última análise, o Estado baseia- prefácio de Stanze (1977) e que são
-se apenas em um “povo que falta”, também um lugar apropriado para
IHU On-Line – O que é o in- não tanto em um “demos”, mas so- suas reflexões. Mas este lugar sem-
governável democrático e que bre uma “a-demia”. Então, diria -lugar não é simplesmente algo ex-
limites e possibilidades surgem que o ingovernável democrático não terno desconhecido e indizível. An-
a partir da desarticulação e dos é um sujeito, e daí vem o “incômo- tes disso, é um “ter-lugar” próprio
pontos de fuga por ele promo- do” que me interessava, mas trata- de todos os lugares. Este “ter-lugar”
vidos? -se de uma prática política situada é o que sempre permanece para além
para além de um sujeito: ou melhor, de qualquer ordem governamental,
Manuel Ignacio Moyano – uma vez que é colocado em um pon-
situada no ponto onde o sujeito (é)
Quando escrevi alguns anos atrás to onde os corpos excedem infinita-
falta a si mesmo, o a-demos de todo
um artigo sobre um possível “ingo- mente suas produções. Como fanto-
o demos. É nesse ponto que começa
vernável democrático”, pensado a ches descontrolados, o ter-lugar dos
o apaixonamento que realmente me
partir de Agamben, eu estava inte- corpos é o que constantemente per-
interessa e que resume o melhor da
ressado no problema gerado pela fura as mãos (invisíveis) que querem
política registrada na América Lati-
ideia do “ingovernável” na noção de governar suas produções, o que es-
na na última década, na qual os espí-
democracia. Esta noção, segundo capa das mãos, o que as excede. Por
ritos tristes continuam não queren-
um pequeno texto do italiano, move- isso, são ingovernáveis, restantes e
do participar.
-se em uma tensão polar que define excessivas a cada vez.
duas formas do fazer político: uma
forma de constituição do corpo po-
lítico, por um lado, e uma técnica de IHU On-Line – Qual é o nexo 73
entre o ingovernável democrá- IHU On-Line – E em que me-
governo, por outro. Este desconforto dida podemos traçar uma linha
do ingovernável, noção fundamen- tico e a política que vem?
de aproximação entre a potên-
tal, já que nela Agamben destaca-se Manuel Ignacio Moyano – A cia da inoperosidade e o ingo-
do último Foucault (como visto no “política que está por vir” não é uma vernável?
“Intermezzo I” do L’uso dei Corpi), obra que preveja o futuro, como
inaugura uma prática “democrática” Manuel Ignacio Moyano – “Po-
afirma Agamben em notas para La
que vai além tanto do Estado de Di- tência” e “inoperosidade” são dois
comunità che viene [A comunidade
reito quanto do conjunto de técnicas conceitos que se vinculam, inevi-
que vem (Lisboa: Editorial Presença,
governamentais que administram tavelmente. A fórmula agambenia-
1993)]. É uma “forma de vida”, “um
a política. E esta prática nada mais na da potência é bem conhecida: a
qualquer singular”. Por isso, é extre-
é do que o apaixonamento. Essa potência-do-não. É aquela potência
mamente atual. Mas isso não signifi-
paixão, e não propriamente as pai- que sobra quando não passamos a
ca que seja meramente inativa, mas
xões concretas, mas a capacidade de agir, quando não produzimos uma
sim passiva, isto é, “capaz” de “re-
apaixonar-se, é o verdadeiramente obra, um ergon. No entanto, e este
ceber” qualquer forma e, portanto, é
ingovernável. Penso que este apai- é o ponto decisivo para o italiano,
“capaz” e “receptiva”, tão ativa quan-
xonamento pensado em um sujeito não se trata de uma mera paralisia,
to passiva. A “política que está por mas a conservação desta “potência-
como o “povo” (o demos) representa
vir” é a mesma que vivemos no dia a -do-não” quando passamos ao ato.
muito bem todas as discussões atu-
dia, mas só é descoberta uma vez que Como ela é preservada? Justamente
a obra de cada dia seja deposta. Por como o oposto da obra, ou seja, como
presidente do Brasil de 2011 (primeiro manda-
to) até 31 de agosto de 2016 (segundo ano de isso, é um apaixonar-se pela própria passividade. Mas devemos entender
seu segundo mandato). Em 12 de maio de 2016,
foi afastada de seu cargo durante o processo de vida que vivemos, por essa vida im- essa passividade não como aquela
impeachment movido contra ela. No dia 31 de possível de se reduzir a suas obras ou
agosto, o Senado Federal, por votação de 61 vo- que deriva de uma ação, um ato, mas
tos favoráveis ao impeachment contra 20, afastou aos seus autores. É aí que reside a sua como pura “capacidade de recep-
Dilma definitivamente do cargo. O episódio do
impeachment foi amplamente debatido nas No- força “ingovernável” e “democrática”. ção”. E essa capacidade se conserva
tícias do Dia no sítio do IHU, como, por exemplo,
a Entrevista do Dia com Rudá Ricci intitulada Os inclusive na realização de qualquer
pacotes do Temer alimentarão a esquerda brasilei- ato ou obra. Mas por isso mesmo ela
ra e ela voltará ao poder, disponível em http://bit.
ly/2bLPiHK. Durante o governo do ex-presiden- IHU On-Line – Como podemos descompleta e corrói qualquer obra
te Luiz Inácio Lula da Silva, assumiu a chefia do
Ministério de Minas e Energia e posteriormente compreender esse “resto exces- (seja artística, científica, política ou
da Casa Civil. Em 2010, foi escolhida pelo PT para sivo” onde se assentaria o ingo- amorosa). Na erosão das obras, não
concorrer à eleição presidencial. (Nota da IHU
On-Line) vernável? apenas está radicada a sua potência,

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

mas também, precisamente, a ino- falar de uma verdadeira bipolarida- do inimigo sua própria “destituição”.
perosidade, já que ela é apenas uma de, ou melhor, de um meio bipolar. Esta “ontologia do contingente”, que
passagem à potência no ato. Deve- A potência agambeniana, que pode nada mais é do que a ontologia dos
mos aperfeiçoar as nossas políticas ser resumida pela fórmula “capaci- meios sem fim, inscrita no coração
para dar espaço à erosão daquilo que dade de recepção”, é precisamente do maior filósofo dos fins (ou seja, do
fazemos, uma vez que não apenas é o que se apresenta como potência e governo imanente das coisas) mos-
importante o que escrevemos à mão, como ato, ou melhor, como a desa- tra de maneira fina como Agamben
mas também o que apagamos com tivação da dicotomia potência/ato atua, ou seja, tramando armadilhas
o cotovelo. Nesse gesto bipolar e si- que Aristóteles legou ao Ocidente. em e com os instrumentos do inimi-
multâneo, para mim, está a potên- Mas esta condição medial ou bipolar go. A armadilha é o melhor recurso
cia da verdadeira escrita filosófica, enquanto “capacidade de recepção” que temos à mão para ler e jogar o
ou melhor, da escrita per se. E isso nos assinala que o conjunto das re- jogo (político) proposto atualmente
inaugura a dança do ingovernável ou flexões agambenianas não é guia- pelas academias e governos.
do pensamento. do tanto por um procedimento de
“sobredeterminação” entre os seus
elementos, mas sim pela “possibi- IHU On-Line – Que aberturas
IHU On-Line – Qual é a impor- lidade de receber” determinações políticas se apresentam à de-
tância da obra de Aristóteles e que ligam um elemento ao outro. mocracia levando em conside-
Averróis para a construção do Afinal, esta é a pequena diferença ração a contingência radical da
conceito agambeniano de po- entre as propostas de Agamben e potência do não?
tência do não? de Didi-Huberman11: para o pri-
meiro, as imagens não apenas estão Manuel Ignacio Moyano –
Manuel Ignacio Moyano – sobredeterminadas, mas também Insisto: a maior abertura política
Agamben e suas publicações são in- são o que permite qualquer (sobre) para nossas democracias é o apai-
teressantes porque fazem um ensaio determinação, a pura capacidade xonamento que é possibilitado com
de uma leitura profana da tradição de recepção. E, assim, a imagem, essa concepção de potência como a
filosófica do Ocidente. Não apenas o meio bipolar por excelência, de capacidade de recepção. Em meio
74 são importantes as obras de Aristó- acordo com o ensinamento de Aby à maior ofensiva do governo neo-
teles e Averróis para sua noção de Warburg, retomados pelo italiano, liberal do nosso corpo e de nossas
potência do não (que é a sua noção sempre reconduz à potência, à re- práticas, acredito que o que corrói
de “matéria”), mas também, como se ceptividade de e nas obras. essas técnicas de administração con-
percebe no recente Che cos’è la filo- centra-se na paixão, no que chama-
sofia? (Macerata: Quodiblet, 2013), mos de “ingovernável democrático”.
do próprio Platão10. Mas ao lê-lo não Hoje, este ingovernável democrático
IHU On-Line – A partir da in-
encontramos nenhum especialista, vive, e creio que exclusivamente, no
terpretação de Andrea Cavaletti
mas um comentarista, ou seja, um movimento radical das mulheres
acerca da filosofia agambenia-
profanador, que desenvolve a pró- organizadas e lutando sob o lema
na, como podemos compreen-
pria filosofia na potência do pensa- do “Nenhuma a menos”. Esse mo-
der a contingência radical e a
mento preservada nas descrições de vimento, forjado por anos e anos de
nova ontologia do contingente
outros. estudos e práticas feministas, está se
por ele propostas?
expandindo a uma velocidade sem
Manuel Ignacio Moyano – O precedentes e ultrapassa qualquer
IHU On-Line – Em que resi- comentário de Andrea Cavalletti governo por diversas vezes. Está se
de a ambiguidade da potência tem sido fundamental na minha lei- criando uma paixão política ali que
na compreensão de Agam- tura de Agamben não somente por é ingovernável, porque não conhece
ben? sua precisão, mas também porque fronteiras ideológicas ou linguístico-
mostra o mais singular do método -culturais, pois permite uma nova
Manuel Ignacio Moyano – Mais agambeniano: instaura no coração posição dentro de qualquer posi-
do que de ambiguidade, deveríamos ção (artística, científica, política ou
amorosa), e que ataca o coração do
11 Georges Didi-Huberman (1953): nascido em
10 Platão (427-347 a. C.): filósofo ateniense. Cria- Saint-Étienne, é filósofo, historiador, crítico de arte capitalismo mesmo que, ao contrá-
dor de sistemas filosóficos influentes até hoje, e professor da École de Hautes Études em Scien- rio deste, de acordo com Benjamin,
como a Teoria das Ideias e a Dialética. Discípulo ces Sociales, em Paris. Considerado um dos gran-
de Sócrates, Platão foi mestre de Aristóteles. Entre des intelectuais franceses de sua geração. Autor ele seja um “culto não expiante, mas
suas obras, destacam-se A República (São Paulo: de uma vasta obra ensaística, baseado em autores
Editora Edipro, 2012) e Fédon (São Paulo: Martin como Freud, Benjamin, Pasolini e Warburg. Trata culpabilizante”, reivindica e inventa
Claret, 2002). Sobre Platão, confira e entrevista As de temas que vão da filosofia da imagem à his- uma vida sem culpa alguma. Atrevo-
implicações éticas da cosmologia de Platão, conce- tória da arte, passando por cinema e literatura.
dida pelo filósofo Marcelo Perine à edição 194 da Alguns de seus livros: O que vemos, o que nos olha -me a dizer que o caminho em que
revista IHU On-Line, de 4-9-2006, disponível em (Editora 34), Diante da imagem (Editora 34), A
http://bit.ly/pteX8f. Leia, também, a edição 294 Imagem Sobrevivente. História da arte e tempo dos se traduz este ingovernável depende
da revista IHU On-Line, de 25-5-2009, intitulada fantasmas segundo Aby Warburg (Contraponto) e hoje da sobrevivência da política per
Platão. A totalidade em movimento, disponível em Imagens apesar de tudo (Lisboa, KKYM). (Nota da
http://bit.ly/2j0YCw8. (Nota da IHU On-Line) IHU On-Line) se — do apaixonamento — e de sua

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REVISTA IHU ON-LINE

contínua culpabilização por parte não ter sido escrito, coincide com recente já estivesse contido na mais
dos gestores de capital. sua própria vida). Portanto, lê-lo é antiga, mas o que realmente impor-
realmente um “ler o que nunca foi ta é que nenhuma delas consegue
escrito,” de acordo com a bela ima- dizer. É nesta obra não-obra que
IHU On-Line – Como percebe gem de Hofmannsthal12, que tanto todo estudioso agambeniano devem
a obra “O uso dos corpos” den- amava Benjamin. Esta não-obra per- inserir o seu trabalho, pois apenas
tro do conjunto de obras consi- mite considerar o resto das publica- assim adquirem um sentido que não
deradas políticas de Agamben? ções agambenianas a partir de uma seja meramente repetitivo de suas
Manuel Ignacio Moyano – Em perspectiva não cronológica, que nos próprias palavras e esclarecimen-
minha recente pesquisa, parti de instiga a ler toda a sua obra em uma tos. Acredito que assim também se
uma ideia que considero funda- temporalidade contracionista, como compreende por que o comentário
mental. Não acredito que Agamben se o que foi dito na publicação mais filosófico é, portanto, uma extensão
tenha escrito qualquer obra verda- do inoperosidade (da não-obra) do
deiramente sua ou que verdadeira- 12 H u g o vo n H of m a n n s t h a l ( 1 8 7 4 - autor estudado, o que, novamente, é
1 9 2 9 ) : f o i u m e s c r i to r e d r a m a t u rg o a u s -
mente nos dê a chave para a inteli- t r í a c o e u m d o s i n s t i t u i d o re s d o F e s t i va l o que Agamben faz em suas próprias
d e S a l z b u rg o . H of m a n n s t h a l a l c a n ç o u
gibilidade do seu trabalho. Como ele p re s t í g i o i n te r n a c i o n a l g r a ç a s a s u a c o - leituras. Nesse sentido, eu diria que
l a b o r a ç ã o c o m o c o m p o s i to r e m a e s t ro L’uso dei Corpi é mais um prólogo
mesmo já disse em várias ocasiões, a l e m ã o R i c h a rd St r a u s s e f o i u m d o s
o livro que ele nunca escreveu é o m a i s i m p o r t a n te s re p re s e n t a n te s d o m o - ou mais um capítulo desta obra obs-
v i m e n to F i n d e S i è c l e d a l í n g u a a l e m ã .
mais importante (o livro que, por (Nota da IHU On-Line) tinadamente não escrita. ■

75

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

Um poder que se alimenta de glória


Democracias de massas se valem de dispositivos de
aclamação e se legitimam através desses recursos
Márcia Junges

N
os capítulos 6, 7 e 8 de O reino fia pela Universidade do Vale do Rio dos
e a glória, Agamben realiza um Sinos - Unisinos. No momento, realiza
estudo da natureza gloriosa do um período de doutorado em cotutela
poder, cujo centro é vazio, e da burocra- com a Università degli Studi di Padova
cia moderna originária da transposição - UNIPD, na Itália, cuja tese examina a
hierárquica dos anjos. A temática será crítica de Nietzsche e Agamben à demo-
apresentada no VI Colóquio Internacio- cracia liberal, tendo como eixo articula-
nal IHU. Política, Economia, Teologia. dor as diferentes concepções de potên-
Contribuições da obra de Giorgio Agam- cia para esses pensadores. É professora
ben, em 23 e 24 de maio. tutora na Unisinos e atua no Instituto
Márcia Junges é graduada em Jorna- Humanitas Unisinos – IHU.
lismo, mestra e doutoranda em Filoso- Confira o artigo.
76

Em O reino e a glória: uma ge- referiu Benjamin 1. Agamben não Assim, em O reino e a glória, Agam-
nealogia teológica da economia e desvia o olhar dessa herança inde- ben analisa a política e a economia,
do governo: homo sacer, II (Trad. sejável para a Modernidade. Pelo seguindo Foucault2 ao examinar a
Selvino J. Assmann. São Paulo: contrário: retoma obras teológicas política como tema da soberania, e a
Boitempo, 2011), Agamben ma- e a partir delas oferece a explica- economia como questão do governo.
peia a arqueologia do poder oci- ção para uma política que necessi- Dos capítulos 1 a 5, faz um estudo da
dental e investiga os laços com a ta dos ritos gloriosos e aclamató- genealogia da economia e do gover-
glória enquanto seu arcano deci- no a partir de como isso é demons-
rios para se efetivar.
sivo. Nesse sentido, esclarece as trado nos tratados da teologia cristã
conexões da democracia com os 1 Walter Benjamin (1892-1940): filósofo alemão. do século III até o XVII, quando ela
dispositivos aclamatórios que lhe Foi refugiado judeu e, diante da perspectiva de ser
capturado pelos nazistas, preferiu o suicídio. As-
conferem legitimidade e a funda- sociado à Escola de Frankfurt e à Teoria Crítica, foi 2 Michel Foucault (1926-1984): filósofo francês.
fortemente inspirado tanto por autores marxistas, Suas obras, desde a História da Loucura até a His-
mentam. É dentro desta perspecti- como Bertolt Brecht, como pelo místico judaico tória da sexualidade (a qual não pôde completar
Gershom Scholem. Conhecedor profundo da lín- devido a sua morte), situam-se dentro de uma
va que precisa ser compreendido o gua e cultura francesas, traduziu para o alemão filosofia do conhecimento. Foucault trata princi-
esforço do filósofo em esmiuçar a importantes obras como Quadros parisienses, de palmente do tema do poder, rompendo com as
Charles Baudelaire, e Em busca do tempo perdido, concepções clássicas do termo. Em várias edições,
transposição do modelo angeloló- de Marcel Proust. O seu trabalho, combinando a IHU On-Line dedicou matéria de capa a Fou-
ideias aparentemente antagônicas do idealismo cault: edição 119, de 18-10-2004, disponível em
gico para o burocrático, bem como alemão, do materialismo dialético e do misticis- http://bit.ly/ihuon119; edição 203, de 6-11-2006,
mo judaico, constitui um contributo original para disponível em https://goo.gl/C2rx2k; edição 364,
de sua insistência em apontar o a teoria estética. Entre as suas obras mais conhe- de 6-6-2011, intitulada ‘História da loucura’ e o
nexo indissolúvel entre um poder cidas, estão A obra de arte na era da sua reprodu- discurso racional em debate, disponível em https://
tibilidade técnica (1936), Teses sobre o conceito de goo.gl/wjqFL3; edição 343, O (des)governo biopo-
cujo centro é vazio e que precisa história (1940) e a monumental e inacabada Paris, lítico da vida humana, de 13-9-2010, disponível
capital do século XIX, enquanto A tarefa do tra- em https://goo.gl/M95yPv, e edição 344, Biopolí-
da glória. O desvelamento dessa dutor constitui referência incontornável dos estu- tica, estado de exceção e vida nua. Um debate, dis-
dos literários. Sobre Benjamin, confira a entrevista ponível em https://goo.gl/RX62qN. Confira ainda
relação demonstra o quanto a de- Walter Benjamin e o império do instante, conce- a edição nº 13 dos Cadernos IHU em formação,
mocracia atual é tributária da te- dida pelo filósofo espanhol José Antonio Zamora disponível em http://bit.ly/ihuem13, Michel Fou-
à IHU On-Line nº 313, disponível em http://bit.ly/ cault – Sua Contribuição para a Educação, a Políti-
ologia, aquele anão feio ao qual se zamora313. (Nota da IHU On-Line) ca e a Ética. (Nota da IHU On-Line)

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“Assim, em O reino e a glória, Agamben


analisa a política e a economia,
seguindo Foucault ao examinar a
política como tema da soberania, e a
economia como questão do governo.”

chega ao domínio dos economistas. político-religioso da Igreja. e ofícios.


A partir do capítulo 6, há uma rota-
Em Peterson, os anjos detêm uma Em Aquino7, no De gubernatione
ção na temática, trazendo à tona a
relação originária com a Igreja e a mundi, a oikonomia, o governo pro-
angelologia e as relações entre poder
esfera política do culto. Os cantos de videncial realizado na Terra, chega
e glória. Aparece na teologia cristã
louvor e glória se configuram como ao seu término por ocasião do Dia do
a preocupação de como governo do
essência dos anjos, a sua “politici- Juízo, em um Reino sem Governo. A
mundo se desdobra na figura dos
dade”. Contudo, o canto de louvor é solução para tal aporia é multiplicar
anjos a fim de formular novas com-
apenas um dos atributos dos anjos. as distinções, separando a hierar-
preensões acerca da genealogia do
Aqueles que servem a Deus o fazem quia de sua função com a finalidade
governo a partir da burocracia como
como seus ministros, enquanto os de cindir o poder de seu exercício.
aparato crucial da governamentali-
outros não cumprem tais tarefas; Agamben acentua que a questão
dade moderna.
trata-se das virtudes de administrar, com a qual o Aquinate depara é com
também chamada de ministerial, e a aquela do fim da oikonomia. O que 77
Angelologia
de assistir a Deus. A administrativa ocorrerá com todos os anjos após a
No capítulo 6 de O Reino e a Gló- é aquela da qual se ocupam os teólo- consumação da história da salvação?
ria, Agamben desvela a dupla função gos medievais. Tais entidades seriam depostas de
dos anjos na teologia cristã: aqueles seu ofício. Contudo, a desativação da
Dessa forma, apresenta-se em
de cunho contemplativo e os minis- máquina de governo se opera a par-
Pseudo-Dionísio5 um paralelismo
tros. Ao analisar obras de Peterson3, tir de um efeito que retroage sobre
entre hierarquia celeste e a divina, o
pontua que a igreja terrena mantém a economia trinitária. Dessa forma,
que resulta em atividade de governo,
uma relação com a cidade celestial é compreensível que em Peterson o
envolvendo uma operação (ener-
através dos seus cultos. Quando canto de louvor e os anjos tornados
geia), saber (episteme) e ordem (ta-
analisa os “entreatos” descritos no inoperosos apareçam como manifes-
xis) – uma economia trinitária, ou
Apocalipse, Peterson argumenta que tação perfeita da cidadania cristã.
um dispositivo governamental. Des-
as aclamações são oriundas de ceri- taque-se a máquina governamental
mônias de culto imperial, e assim há Poder e glória
de poder transcendente como ordem
uma relação originária política entre e governo imanentes, cujo anjo de No capítulo 7, Agamben expõe a
a igreja terrena e a celestial. Parado- natureza dupla é parte essencial. É divisão entre a natureza dos anjos
xalmente, adverte Agamben, ao se assim que o termo ministerium, ser- como assistentes e administrado-
contrapor a Schmitt4 no livro em que viço ou encargo, aparece em Jerôni- res, a duplicidade do poder: gloria
trata o monoteísmo como problema mo6 como conjunto de funcionários e gubernatio, Reino e Governo. As
político, Peterson formula o caráter
exclamações podem significar aplau-
5 Pseudo-Dionísio, o Areopagita: nome dado so ou triunfo, louvor ou desaprova-
ao autor de uma série de escritos que exerceram
3 Erik Peterson Grandjean (1890-1960): teólogo grande influência sobre o pensamento medieval. ção proferidas por uma multidão.
católico alemão. De formação protestante, con- Acreditou-se por muito tempo que o autor desses
verteu-se ao catolicismo em 1930, especializan- escritos foi discípulo de São Paulo. Hoje se consi-
do-se em patrística. Ele era um opositor do na- dera que as obras de referência foram redigidas fundadores do dogma católico) e doutor da igre-
zismo e teve uma grande influência sobre muitos no final do século 4 ou começos do 5 sob a in- ja. (Nota da IHU On-Line)
teólogos do século 20. (Nota da IHU On-Line) fluência neoplatônica e especialmente a base de 7 São Tomás de Aquino (1225-1274): padre do-
4 Carl Schmitt (1888-1985): jurista, filósofo políti- fragmentos de Proclo. Por tal motivo, costuma-se minicano, teólogo, distinto expoente da escolás-
co e professor universitário alemão. É considerado chamar o autor de Pseudo-Dionísio. Também é tica, proclamado santo e cognominado Doctor
um dos mais significativos e controversos espe- conhecido por Dionísio, o místico ou São Dionísio. Communis ou Doctor Angelicus pela Igreja Cató-
cialistas em direito constitucional e internacional (Nota da IHU On-Line) lica. Seu maior mérito foi a síntese do cristianismo
da Alemanha do século 20. A sua carreira foi man- 6 São Jerônimo (340-420 d.C.): santo católico, com a visão aristotélica do mundo, introduzin-
chada pela sua proximidade com o regime nacio- conhecido sobretudo como tradutor da Bíblia do o aristotelismo, sendo redescoberto na Ida-
nal-socialista. O seu pensamento era firmemente do grego antigo e do hebraico para o latim. É o de Média, na escolástica anterior. Em suas duas
enraizado na teologia católica, tendo girado em padroeiro dos bibliotecários. A edição de São Je- Summae, sistematizou o conhecimento teológico
torno das questões do poder, da violência, bem rônimo, a Vulgata, publicada em 400 d.C., é ainda e filosófico de sua época: são elas a Summa Theo-
como da materialização dos direitos. (Nota da o texto bíblico oficial da Igreja Católica Romana, logiae e a Summa Contra Gentiles. (Nota da IHU
IHU On-Line) que o reconhece como Padre da Igreja (um dos On-Line)

EDIÇÃO 505
TEMA DE CAPA

Por vezes, recebiam valor jurídico, imperial no Ocidente. A partir dos profanas fundam e justificam o po-
como no direito público romano séculos XIII e XVI há uma deca- der político. Por isso é preciso pen-
que, junto de suas raízes pagãs, co- dência dos louvores nas liturgias, sar a duplicidade dos pares trindade
necta direito e liturgia. Em 1927, retomada a partir de 1920 com os imanente e econômica, theologia e
Schmitt se refere ao estudo de Pe- regimes totalitários na Europa. oikonomia na perspectiva de uma
terson acerca do significado político Tais aclamações são fundamentais bipolaridade da máquina no governo
das aclamações. Opondo o voto in- às estratégias emotivas dos regi- divino do mundo.
dividual e secreto das democracias mes fascistas.
Outra investigação de Agamben
contemporâneas, menciona a de-
A glória é onde a relação entre te- em sua tentativa de reconstrução da
mocracia “pura” ou direta, ligando
ologia e política se torna mais evi- economia teológica no capítulo 8 de
constitutivamente povo e aclama-
dente e estas coincidem. Se na te- O Reino e a Glória é a ligação entre
ção. Referindo-se a Rousseau8, Sch-
ologia política de Schmitt e em sua glória e inoperosidade. É a glória o
mitt menciona a aclamação como que preenche o vazio da inoperosi-
inversão em Assmann10 há distinção
a verdadeira democracia, quando dade do poder, e como tal deve ser
entre os princípios, com o advento
aprova ou rejeita por meio da mas- mantida porquanto é essencial. A
da secularização e a partir de uma
sa reunida. A transposição da tese figura do trono vazio é seu símbolo
perspectiva da glória, pode-se men-
de Peterson para uma esfera pro- e revela a soberania do dispositivo
cionar um limiar de indetermina-
fana faz com que Schmitt diga que
ção. Conforme Agamben, o ponto da glória.
a aclamação é um fenômeno eterno
de contato por meio do qual teolo-
da comunidade política e uma prer- Democracia gloriosa
gia e política trocam de papéis se
rogativa do povo. Agamben, contu-
dá na teologia da glória. No Limiar,
do, percebe o objetivo da estratégia Como pano de fundo dos três ca-
no capítulo 7, o filósofo questiona o
schmittiana. A presença do povo pítulos de O reino e a glória aqui
elo entre poder e glória, isto é: o po-
nos rituais de aclamação é, portan- brevemente examinados, se articula
der, caso se resumisse tão somente
to, a antítese do voto liberal secreto. o eixo de análise acerca da democra-
a força e ação eficaz, necessitaria de
cia ocidental e por que esse sistema
Retomando a tese de Peterson, o aclamações e rituais?
78 político desde a perspectiva da le-
filósofo italiano examina o elemento
doxológico-aclamatório para além  Trono vazio gitimação constitucional se afirma
como um poder que vem do povo e o
da ligação entre liturgia cristã e o
A distinção realizada pelos teólogos representa, mas é, na verdade, uma
mundo pagão. O povo reunido na
modernos entre trindade imanente e tecnologia de governo e um aparato
ekklesia, proferindo as aclamações,
trindade econômica demonstra no- formal. Isso porque a democracia
é que legitima o caráter público da
vamente a fratura entre ontologia contemporânea cada vez mais usa os
liturgia. No limiar, Agamben atenta
e práxis. Agamben reconhece que a dispositivos de aclamação e se legiti-
para a politização do ochlos (massa)
teologia nunca consegue solucionar ma através destes recursos. Exemplo
em laos através da liturgia. Reto-
a fissura entre essas trindades, ou disso é a opinião pública como for-
mando os estudos de Kantorowicz9
seja, entre theologia e oikonomia, ma contemporânea e reatualizada
sobre as Laudes regiae, menciona a
o que se manifesta na glória. Final- de aclamação, da glória que se des-
promiscuidade da aclamação entre
mente, o Governo passa a glorificar o locou para outro âmbito, e o imenso
o sagrado e o profano. Kantorowi-
Reino, e o Reino glorifica o Governo, acúmulo de espetáculos da política e
cz descobre que as Laudes na litur-
porém o centro da máquina, o trono, da economia. Estamos no campo de
gia romana possuem características
é vazio. dispositivos de aclamação de uma
tributárias às aclamações pagãs e
democracia de massas, fundada na
foram inclusas no rito de coroação O paradoxo da glória prevê que a glória, e não de formas constitucio-
glória é de Deus desde a eternidade, nais que a legitimam. Então, a partir
8 Jean Jacques Rousseau (1712-1778): filósofo
franco-suíço, escritor, teórico político e compo- não havendo como ser aumentada ou de Agamben e sua compreensão des-
sitor musical autodidata. Uma das figuras mar- diminuída, mas é exigido das criatu-
cantes do Iluminismo francês, é também um ses autores, podemos dizer que as
precursor do romantismo. As ideias iluministas ras que o Senhor seja glorificado. A democracias contemporâneas se es-
de Rousseau, Montesquieu e Diderot, que defen-
diam a igualdade de todos perante a lei, a tole- arqueologia da glória realizada por vaziam de seu caráter democrático,
rância religiosa e a livre expressão do pensamen- Agamben tem em seu horizonte en-
to, influenciaram a Revolução Francesa. Contra a convertidas em formas aclamatórias
sociedade de ordens e de privilégios do Antigo tender como opera a máquina gover- cujas raízes remontam à angelologia
Regime, os iluministas sugeriam um governo mo-
nárquico ou republicano, constitucional e parla- namental, de estrutura bipolar. Mais e ao nexo indissolúvel e agora visí-
mentar. Sobre esse pensador, confira a edição 415 do que reforçar a glória de Deus,
da IHU On-Line, de 22-4-2013, intitulada Somos vel entre o trono vazio do poder do
condenados a viver em sociedade? As contribuições doxologias litúrgicas e aclamações dispositivo governamental e a glória
de Rousseau à modernidade política, disponível
em https://goo.gl/EaPC8v. (Nota da IHU On-Line) que o reveste de brilho e fundamen-
9 Ernst Hartwig Kantorowicz (1895-1963): his- 10 Jan Assmann (1938): egiptólogo e teórico da
toriador alemão que trabalhou com história po- cultura alemão, professor de Egiptologia da Uni- tação póstumas. Essas democracias
lítica e intelectual medieval e arte, em ideologias versidade de Heidelberg e de Ciência da Cultura de massas têm na mídia a liturgia da
medieval e moderna da monarquia e do estado. da Universidade de Konstanz, ambas na Alema-
(Nota da IHU On-Line) nha. (Nota da IHU On-Line) aclamação, através da opinião públi-

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ca ou da dispensação da glória. potência, a potência-do-não en- através do dispositivo glorioso. In-


Entretanto, é justamente na quanto resistência, desconstrução terpor a potência-do-não, a quin-
inoperosidade que reside a ope- e forma-de-vida que se dá a sua tessência da resistência humana, é
ração messiânica por excelência, forma. Capturar essa substância a potencialidade de desativar essa
a possibilidade de coincidir a zoè política do Ocidente é o que a eco- maquinaria que gira em torno de
aionos com poder a própria im- nomia e o arcano da glória fazem seu próprio eixo.■

Leia mais
A grande política em Nietzsche e a política que vem em Agamben. Cadernos IHU ideias,
nº 210, vol. 12, 2014, disponível em http://bit.ly/2pTa6r3.

79

EDIÇÃO 505
PROGRAMAÇÃO

VI Colóquio Internacional IHU. Política,


Economia, Teologia. Contribuições
da obra de Giorgio Agamben
A programação completa do evento pode ser lida abaixo. Todas as
conferências serão realizadas na Sala Ignacio Ellacuría e Companheiros –
IHU, no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus de São Leopoldo

Terça-feira – 23-5-2017
9 horas
Ser e Agir, Reino e Glória: a oikonomia trinitária e a bipolaridade
da máquina governamental
Conferencista: Prof. Dr. Colby Dickinson – Loyola University Chicago – EUA

11 horas
80
A oikonomia trinitária enquanto paradigma da máquina gover-
namental
Conferencista: Prof. Dr. Castor Bartolomé Ruiz – Unisinos

14 horas
Gloria e uso: Giorgio Agamben e a crítica ao presente
Conferencista: Prof. Dr. Rodrigo Karmy Bolton – Universidad de Chile – Chile

16 horas
A inversão da “economia do mistério” em “mistério da economia”
Conferencista: Prof. Dr. Alain Gignac – Université de Montréal – Canadá

Quarta-feira – 24-5-2017
9 horas
A função angelológica do ministerium e do mysterium e sua rela-
ção com a teoria do poder
Conferencista: Prof. Dr. Alain Gignac – Université de Montréal – Canadá

11 horas
A Glória enquanto arcano central do poder e os vínculos entre
oikonomia, governo e gestão
Conferencista: Prof. Dr. Colby Dickinson – Loyola University Chicago – EUA

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81

EDIÇÃO 505
ENTREVISTA

No discurso de crises, a busca por


uma educação utilitarista e neoliberal
Roberto Dias da Silva analisa a proposta de reforma do Ensino Médio, a
qual, para ele, forja um jovem empreendedor de si mesmo, individualista e
centrado no trabalho maquínico
João Vitor Santos

É
preciso reconhecer o estado de reforma, atribui-se ênfase à ampliação
crises para que dele possa emer- dos dispositivos de individualização dos
gir o novo. Entretanto, é neces- percursos formativos, a uma maior apro-
sário estar atento. No contexto do Bra- ximação entre escola e mundo produtivo,
sil de hoje, há um ideário coletivo de redimensionando os ‘sonhos profissio-
emergência de reformas de toda ordem. nais’ em um âmbito individualizado e
“A intensificação na gramática da crise meritocrático”, completa. E conclui: “a
política, de forma ambivalente, justifica reforma curricular aqui analisada, com
a mobilização de reformas permanentes. maior ou menor intensidade, tende a in-
Neste cenário, então, podemos encon- tensificar a promoção de novas figuras
trar os atuais movimentos de reforma subjetivas, marcadamente comprometi-
engendrados pelo Estado brasileiro”, das com as práticas neoliberais”.
pontua o professor do PPG em Educação
82 da Unisinos. Seu alerta se dá para que Roberto Rafael Dias da Silva é
se olhe com mais atenção para proposta doutor e mestre em Educação pela Uni-
do governo federal de reforma do En- versidade do Vale do Rio dos Sinos -
sino Médio. “A organização curricular Unisinos, licenciado em Pedagogia pela
proposta pela reforma do Ensino Médio Universidade Estadual do Rio Grande do
brasileiro, centrada na diferenciação dos Sul - Uergs. É professor do Programa de
itinerários formativos, associados a uma Pós-Graduação - PPG em Educação da
ênfase por determinadas disciplinas, Unisinos. Entre suas publicações, des-
pode encaminhar a uma concepção uti- tacamos o livro Sennett & a Educação
litarista do conhecimento”, destaca. (Belo Horizonte: Autêntica, 2015), e os
artigos Currículo, conhecimento e trans-
Na entrevista a seguir, concedida por
missão cultural: contribuições para
e-mail à IHU On-Line, ele explica que
uma teorização pedagógica contempo-
“a adesão ao utilitarismo, em termos de
rânea (Cadernos de Pesquisa (Fundação
políticas curriculares, conduz a novos
Carlos Chagas. Impresso), v. 46, p. 158-
imperativos pedagógicos para o Ensino
182, 2016) e Políticas curriculares para o
Médio, ancorados nos pressupostos ‘do
Ensino Médio no Brasil contemporâneo:
investir, do inovar e do empreender’”.
o que ensina aos jovens a escola que pro-
Isso alimenta o espírito individualista,
tege? (Educação & Sociedade (Impres-
quando tudo se reduz a empreender e se
preparar para o trabalho. “Através das ra- so), v. 37, p. 425-443, 2016).
cionalidades políticas orientadoras desta Confira a entrevista.

IHU On-Line – Como o senhor – De forma a caracterizar, sucinta- retomadas. Tal reforma estabelece
vê a proposta de reforma do mente, a reforma do Ensino Médio novos padrões organizativos para
Ensino Médio que está posta sancionada no dia 16 de fevereiro esta etapa da educação básica, tendo
em discussão pelo governo fe- pelo presidente Michel Temer, atra- sido apresentada por Medida Provi-
deral? vés da Lei n. 13.415/2017, torna-se sória – MP no dia 22 de setembro de
Roberto Rafael Dias da Silva relevante produzir algumas breves 2016. Por se tratar de uma MP, como

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é de nosso conhecimento, precisa- dio”. Afirmou ainda que, em razão riência profissional; tais habilidades
va tramitar na Câmara e no Senado disso, 80% dos jovens brasileiros profissionais são nomeadas como
Federal por um período de até 120 apoiariam a urgência da mudança. “notório saber”. Tais saberes serão
dias. Neste período, o documento certificados por determinadas agên-
A definição do currículo do Ensino
originalmente apresentado recebeu cias reguladoras.
Médio, objetivamente, será efetiva-
467 emendas.
da a partir da Base Nacional Comum
Longe de se constituir em uma Curricular - BNCC, que atualmente
unanimidade, na medida em que sua está em fase de elaboração pelo Mi- IHU On-Line – É preciso uma
proposição não foi dialogada com nistério. Todavia, a nova lei define reforma no Ensino Médio? De
as comunidades escolares e com os alguns aspectos: que ordem?
setores representativos do campo Roberto Rafael Dias da Sil-
a) a organização dos currículos
educacional, a reforma propõe uma va – Produzir reflexões acerca das
escolares em determinados “itine-
flexibilização curricular, alterando a políticas do Ensino Médio, nos últi-
rários formativos”, baseados nas
atual organização dos currículos (no mos anos, tem estado na ordem do
áreas do conhecimento, quais sejam:
formato de treze disciplinas), crian- dia, seja por questões atinentes ao
linguagens e suas tecnologias, mate-
do itinerários formativos vinculados desempenho dos estudantes e das
mática e suas tecnologias, ciências
às áreas do conhecimento e incenti- instituições de ensino, seja pela crise
da natureza e suas tecnologias, ci-
vando a ampliação da carga horária. da institucionalidade da escola e de
ências humanas e sociais aplicadas e
Na Audiência Pública realizada pela suas dificuldades em dialogar com
formação técnica e profissional;
Comissão Mista que discutiu a MP as culturas juvenis, ou mesmo pela
746/2016, que tratava da reformula- b) as escolas deverão ofertar pelo suas dificuldades em contribuir com
ção do Ensino Médio no Brasil – no menos um itinerário formativo, que o desenvolvimento econômico das
mês de novembro do ano passado, a ocupará 40% da carga horária esco- regiões1. Todavia, importa destacar
Secretária Executiva do Ministério lar. Os outros 60% serão ocupados que, ao longo das últimas três déca-
da Educação, Maria Helena Guima- com conteúdos obrigatórios a serem das, a escolarização brasileira obteve
rães de Castro, explicitou alguns as- definidos pela BNCC (há uma sina- significativos avanços em suas con-
pectos orientadores dos modos pelos lização para que sejam obrigatórias dições de acesso, permanência e su- 83
quais esta política está sendo mobi- as disciplinas de Língua Portuguesa cesso escolar.
lizada. De acordo com a secretária, e Matemática);
Mesmo que ainda estejamos dis-
a referida reforma flexibilizará o c) a Língua Inglesa torna-se disci- tantes de determinados patamares
currículo escolar e ampliará as pos- plina obrigatória do Ensino Médio. de qualidade considerados como de-
sibilidades de acesso e de inserção
sejáveis, não podemos negar o quan-
escolar dos jovens de baixa renda na Ampliação da carga horária to produzimos resultados relevantes
escola pública de nosso país. Defen- e professores sem diploma na constituição da educação pública
deu ainda que, em sua percepção, “a
no país. No que tange ao Ensino Mé-
proposta dá uma chance para o jo- Outra questão derivada desta re- dio, especificamente, tais avanços
vem fazer escolha e não ser obrigado forma é a ampliação progressiva da ainda merecem maior destaque caso
a cursar disciplinas que não repre- carga horária até atingir 1.400 ho- consideremos, apenas de forma ilus-
sentam nada para ele”. ras. Na versão final do documento, trativa, o crescimento no número de
os senadores estabeleceram uma matrículas e dos indicadores de con-
A referida secretária executiva
meta parcial para, pelo menos, mil clusão desta etapa da educação bási-
argumentou também que um En-
horas em um prazo de cinco anos. ca. No ano de 1970, de acordo com
sino Médio comum para todos não
Para tanto, o documento criou tam- o Censo realizado pelo IBGE, atingí-
prepara nem para a vida, nem para
bém o “Programa de Fomento à Im- amos somente 5,28% da população
o ensino superior (no máximo se-
plementação de Escolas de Tempo juvenil brasileira que garantia seu
ria um curso preparatório para o
Integral”, propondo a criação de acesso à escola. Os estudos do pro-
Enem!). Remetendo o debate sobre
257,4 mil vagas de ensino médio fessor Valnir Chagas2, neste período,
a flexibilização curricular para a Lei
integral (o que equivale a menos de
de Diretrizes e Bases - LDB, criti-
4% dos estudantes brasileiros, na 1 KRAWCZYK, Nora. Reflexão sobre alguns desa-
cou a atual forma curricular pre- fios do ensino médio no Brasil hoje. Cadernos de
medida em que temos mais de 8 mi- Pesquisa, São Paulo, v. 41, n. 144, p. 752-769, set./
dominante nesta etapa da Educa-
lhões de estudantes frequentando dez. 2011. (Nota do entrevistado)
ção Básica, caracterizando-a como 2 Valnir Cavalcante Chagas (1921-2006): é autor
esta etapa). da Didática Especial de Línguas Modernas (1957),
“absurdamente enciclopédica”. Em obra pioneira de fundo histórico no cenário de
sua argumentação, “o currículo não Por fim, outro aspecto que gera publicações sobre o processo de ensino e apren-
dizagem de línguas no Brasil. Nesse livro, o autor
aprofunda o conhecimento em ne- bastante controvérsia refere-se à analisa e ambienta métodos de ensino ao longo
da história do velho continente e do Brasil. Tra-
nhuma área e, ao contrário de for- permissão para que professores sem ta-se de obra pioneira e sem equivalente para o
mar cidadãos, forma um analfabeto diplomas de licenciatura possam ensino de língua materna e para a compreensão
da história do ensino de línguas no Brasil, hoje
funcional ao final do Ensino Mé- ofertar aulas com base em sua expe- estudado pela Linguística Aplicada. Entre outras

EDIÇÃO 505
ENTREVISTA

assinalavam que a etapa equivalente nas condições referidas, o neolibera- Roberto Rafael Dias da Silva
ao Ensino Médio funcionava como a lismo transformou-se em “um pro- – As questões atinentes ao Ensino
“estrada real”, capaz de preparar as jeto político e social que impõe uma Médio, com maior ou menor inten-
classes médias para os ofícios públi- lógica normativa global cujos pilares sidade, constituem-se como o cen-
cos e para o comércio3. são as regras da concorrência e o tro de minhas preocupações investi-
modelo empresarial” 7. Atualizando gativas ao longo da última década8.
Faz-se importante salientar ainda
o pensamento sociológico crítico, de Ao longo destas investigações cons-
que foi somente na segunda metade
inspiração neomarxista, Laval expõe tatei que há uma mudança de ênfase
do século XX (ou seja, tardiamen-
que, além da extensão da matriz em- na composição das racionalidades
te) que a escolarização destinada a
presarial para campos não econômi- políticas que orientam a implemen-
todos os jovens brasileiros ingres-
cos, as políticas implementadas nes- tação das reformas nesta etapa da
sou na agenda de preocupações do
te contexto tomam a própria noção escolarização. Se, inicialmente, tais
Estado brasileiro4. Com a democra-
de “crise” como operador estratégi- políticas centravam-se no ajusta-
tização do acesso em andamento,
co para sua racionalidade. Em suas mento das subjetividades juvenis às
começaram a emergir, movidas por
palavras, emerge “um novo modo demandas provenientes do Estado,
racionalidades políticas variadas,
de governabilidade que consiste em em um momento posterior, sob a
um conjunto de reformas educa-
usar a crise como ponto crucial para bandeira da inclusão social, foram
cionais destinadas ao Ensino Mé-
acelerar o estabelecimento da lógica direcionadas para a contenção so-
dio desde a década de 19905. Com
de mercado e as regras de concor- cial. A escola pode ser lida como
foco na formação de capital huma-
rência no âmago do emprego e da um espaço de proteção social, capaz
no, na proteção social, no comba-
sociedade”. A intensificação na gra- de proteger os jovens dos “perigos”
te à dívida educacional ou mesmo
mática da crise política, de forma da vida contemporânea. A partir de
no atendimento das demandas da
ambivalente, justifica a mobilização novos investimentos subjetivos, de
população juvenil, são variados os
de reformas permanentes. Neste ce- ordem biopolítica (valendo-me dos
movimentos de reforma engendra-
nário, então, podemos encontrar os aportes foucaultianos), as atuais ra-
dos tanto a partir do Ministério da
atuais movimentos de reforma en- cionalidades políticas direcionam-
Educação, quanto dos variados Es-
gendrados pelo Estado brasileiro. -se para uma variedade de finali-
84 tados da federação.
dades; porém, sempre reforçando
Constato que, no desenvolvimen-
O permanente estado de reformas a lógica da individualização. Tenho
to das políticas curriculares para o
no âmbito desta etapa da educação nomeado, em meus estudos, estas
Ensino Médio, há um deslocamen-
básica intensificou-se com as mu- novas estratégias de regulação da
to das políticas de ajustamento da
danças no papel do Estado e com a escolarização juvenil como “custo-
população juvenil aos sistemas de
predominância dos modelos de go- mização curricular”. Em tais condi-
ensino, passando por políticas de
vernança neoliberal (e mais recente- ções, liberdade de escolha e respon-
contenção social, para a emergên-
mente neoconservadora). De acordo sabilização juvenil coadunam-se no
cia de políticas com foco na custo-
com o sociólogo Christian Laval6, engendramento de novas modalida-
mização dos percursos formativos.
des de governo da vida.
Em minha percepção, será através
obras suas está O Ensino de 1º e 2º Graus: Antes, desse deslocamento – para além Buscando mapear algumas dessas
Agora e Depois?, livro de estrutura e funciona-
mento valendo como retrato de muitas épocas. das medidas autoritárias e da “de- racionalidades políticas, visibiliza-
Além do importante legado de suas publicações,
Valnir Chagas contribuiu para a gênese e regula- mocracia patológica” que perfaz a das na reforma do Ensino Médio,
mentação do sistema brasileiro de educação, por Medida Provisória - MP 746/2016, julguei conveniente buscar alguns
meio de sua atuação no Conselho Federal de Edu-
cação de 1962 a 1976, com a idealização da Lei constituída (no 16 de fevereiro des- excertos da nota publicada pela Se-
de Diretrizes e Bases n.º 5.692/1971 em favor da
reforma do ensino de primeiro e segundo graus. te ano) na Lei n. 13.415/2017 – que cretaria Especial de Comunicação
Foi um dos principais autores também da refor- podemos ler a emergência dos atu- Social da Presidência da República,
ma universitária de 1968 e um dos fundadores da
Universidade de Brasília (UnB), tendo lecionado ais modelos de escolarização juvenil após a votação da proposta no Se-
por várias décadas na Faculdade de Educação. no Brasil contemporâneo. nado. A leitura deste pequeno texto
(Nota da IHU On-Line)
3 CHAGAS, Valnir. Educação brasileira: o ensino de sinaliza alguns dos direcionamentos
1o e 2o graus - antes, agora e depois?. São Paulo:
Saraiva, 1978. (Nota do entrevistado) políticos da reforma:
4 SOUZA, Rosa Fátima de. História da organização
do trabalho escolar e do currículo no século XX. São IHU On-Line – Em que medi- a) Ampliação dos dispositivos
Paulo: Cortez, 2008. (Nota do entrevistado) da podemos afirmar que as po-
5 BALL, Stephen. Gobernanza neoliberal y demo- de customização curricular
cracia patológica. In: COLLET, Jordi; TORT, Antoni. líticas de ensino de nosso tem- A reforma do ensino médio
(Orgs.). La gobernanza escolar democrática. Ma-
drid: Morata, 2016, p. 23-40. TELLO, César; MAI- po tendem a se converter em
NARDES, Jefferson. A educação secundária na política de contenção social?
América Latina como um direito democrático e 8 SILVA, Roberto Rafael Dias da. Políticas de cons-
universal. Educação e Filosofia, v. 28, n. especial, p. tituição do conhecimento escolar para o Ensino
155-179, 2014. (Nota do entrevistado) Médio no Rio Grande do Sul: uma analítica de cur-
6 Christian Laval: é pesquisador e professor de Publicou no Brasil, juntamente com Pierre Dardot, rículo. Educação em Revista, Belo Horizonte, v. 30,
sociologia da universidade Paris-Ouest Nanter- o livro A nova razão do mundo (Boitempo, 2016). n. 1, p. 127-158, 2014b. SILVA, Roberto Rafael Dias
re-La Défense. É autor de L’Homme économique: (Nota da IHU On-Line) da. Políticas curriculares para o Ensino Médio no
Essai sur les racines du néoliberalisme (Gallimard, 7 LAVAL, Christian. Governar pela crise democrá- Rio Grande do Sul e a constituição de uma docên-
2007) e também de um volume de história da so- tica. Revista Cult, n. 219, ano 19, dezembro, p. 22- cia inovadora. Educação Unisinos, São Leopoldo,
ciologia, L’ambition sociologique (Gallimard, 2012). 28, 2016. (Nota do entrevistado) v. 19, n. 1, p. 68-76, 2015. (Nota do entrevistado)

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será instrumento funda- dispositivos de individualização dos promoção de novas oportunidades


mental para a melhoria percursos formativos, a uma maior educacionais. Em comum a essas
do ensino no país. Ao aproximação entre escola e mundo possibilidades, facilmente pode-
propor a flexibilização da produtivo, redimensionando os “so- mos constatar uma ênfase na orga-
grade curricular, o novo nhos profissionais” em um âmbito nização disciplinar dos currículos
modelo permitirá maior individualizado e meritocrático. E, escolares, em seus altos índices de
diálogo com os jovens, por fim, a centralidade dos pressu- evasão e repetência ou mesmo em
que poderão adaptar-se postos advindos do PISA enquanto uma suposta inoperância na for-
segundo inclinações e ne- matriz de inteligibilidade para pen- mação de mão de obra qualificada.
cessidades pessoais. sar a escolarização juvenil, ocasio-
Recentemente, esses argumentos
nando um empobrecimento de suas
b) Articulação entre escola e têm adquirido novas roupagens,
possibilidades formativas e um re-
mundo produtivo direcionando-se para o desenvolvi-
crudescimento das desigualdades
Com isso, o ensino médio mento de currículos flexíveis, ajus-
escolares. Penso que a mobilização
aproximará ainda mais a tados aos interesses e às possibili-
destas políticas curriculares poderia
escola do setor produtivo dades de escolha dos estudantes11. A
ser refletida a partir do advento das
à luz das novas demandas novas figuras subjetivas derivadas organização curricular proposta pela
profissionais do mercado desse contexto de reforma, sob as reforma do ensino médio brasileiro,
de trabalho. E, sobretudo, condições do neoliberalismo. Alguns centrada na diferenciação dos itine-
permitirá a cada aluna e escritos políticos de Hardt9 e Negri10 rários formativos, associados a uma
aluno que siga o caminho têm me auxiliado nesta direção. ênfase por determinadas disciplinas
de suas vocações e sonhos (como Língua Portuguesa e Mate-
profissionais. mática, por exemplo), pode encami-
nhar a uma concepção utilitarista do
IHU On-Line – Até que ponto
c) Centralidade do Programa conhecimento. A própria defesa re-
se pode afirmar que a lógica do
Internacional de Avalia- alizada pela Secretária Executiva do
empreendedorismo, a ânsia de
ção de Estudantes – Pisa Ministério, anteriormente referida,
empreender a si mesmo desde 85
como matriz organizativa sugere que a escola para os jovens
muito jovem, é um dos panos
do currículo urbanos precisa ser pautada em sua
de fundo desse contexto de re-
Ao mesmo tempo, cuidou- capacidade de escolha, conferindo
forma de ensino?
-se de que a reformulação destaque para essa concepção de
não só tornasse obrigató- Roberto Rafael Dias da Silva conhecimento. Uma crítica a essa
rio, como reforçasse o ensi- – A busca pela construção de cur- questão poderia ser sistematizada
no nos três anos do ensino rículos escolares atraentes e ino- na interrogação proposta por Yves
médio de disciplinas como vadores para o Ensino Médio, no Lenoir12: “Podemos conceber o ser
língua portuguesa, mate- Brasil, tem sido central nos discur- humano como um mero elemento de
mática e língua inglesa, sos políticos e nas práticas pedagó- um conjunto, um ator isolado tendo
cujo domínio é imprescin- gicas engendradas no decorrer das por motivos o interesse instrumental
dível, sob qualquer critério, últimas duas décadas. São variados como únicas perspectivas humanas e
para a formação de nossos os regimes argumentativos mobili- sociais de relações utilitárias de tipo
estudantes nos dias de hoje zados nesse período, ora sintoniza- mercantil?” 13 (p. 161).
e de nossos cidadãos no fu- dos com as demandas sociais e as
turo. O novo sistema deverá De acordo com o autor, as atuais
culturas juvenis, ora articulados
contribuir ainda para, em políticas educacionais supõem no-
às necessidades do mercado e à
poucos anos, colocar o Bra- vas formas de “gestão do capital hu-
sil em melhores posições 9 Michael Hardt (1960): teórico literário america- mano”, regidas por princípios como
no e filósofo político radicado na Universidade de “eficiência, eficácia, produtividade,
em exames internacionais Duke. Com Antonio Negri escreveu os livros in-
de avaliação de desempe- ternacionalmente famosos Império (5ª ed. Rio de competitividade, desempenho, flexi-
Janeiro: Record, 2003) e Multidão. Guerra e demo-
nho escolar, como o PISA, cracia na era do império (Rio de Janeiro/São Paulo:
Record, 2005). (Nota da IHU On-Line) 11 SILVA, Roberto Rafael Dias da. Currículo e co-
em benefício, portanto, dos 10 Antonio Negri (1933): filósofo político e moral nhecimento escolar na sociedade das capacita-
estudantes brasileiros e de italiano. Durante a adolescência, foi militante da ções: o Ensino Médio em perspectiva. Revista E-
Juventude Italiana de Ação Católica, como Um- curriculum, v. 14, n. 2, p. 676-697, 2016b. (Nota
nossa sociedade. berto Eco e outros intelectuais italianos. Em 2000 do entrevistado)
publicou o livro-manifesto Império (5ª ed. Rio de 12 Yves Lenoir: professor titular da chaire de re-
Janeiro: Record, 2003), com Michael Hardt. Em se- cherche du Canada sur l’intervention éducative. Ex
guida, publicou Multidão. Guerra e democracia na -Presidente da Associação Mundial de Ciências da
De forma a sistematizar esses ex- era do império (Rio de Janeiro/São Paulo: Record, Educação - ASME, Associação Mundial de Cien-
2005), também com Michael Hardt – sobre esta cias de la Educación - AMCE, Associação Mundial
certos, faz-se possível apontar que, obra, publicamos um artigo de Marco Bascetta de Pesquisas Educacionais - Waer, organização
na 125ª edição da IHU On-Line, de 29-11-2004. não governamental com relações oficiais com a
através das racionalidades polí- O último livro da “trilogia” entre os dois autores, Unesco. (Nota da IHU On-Line)
ticas orientadoras desta reforma, Commonwealth (USA: First Harvard University 13 LENOIR, Yves. O utilitarismo de assalto às ciên-
Press paperback, 2011), ainda não foi publicado cias da educação. Educar em Revista, n. 61, p. 159-
atribui-se ênfase à ampliação dos em português. (Nota da IHU On-Line) 167, 2016. (Nota do entrevistado)

EDIÇÃO 505
ENTREVISTA

bilidade e desregulamentação”. Nas surgem como um espaço aberto à ras subjetivas trabalhadas por
condições de nosso tempo, ainda vida pessoal e à comunidade juvenil” Negri e Hardt (2014)18?
segundo Lenoir, “o princípio do hu- 16
. Sem dúvida, uma das derivações
Roberto Rafael Dias da Silva
manismo foi substituído por aquele desse cenário é a individualização
– Para produzir problematizações
do profissionalismo, que os estadu- dos percursos formativos.
acerca desta questão, poderíamos
nidenses chamaram no fim do século
Num universo escolar institucio- seguir problematizando: De quais
XIX de ‘vocacionalismo’ (no sentido
nalmente unificado, mas social- formas as subjetividades juvenis são
de vocação profissional)” (2016, p.
mente diversificado, onde cada posicionadas no interior das atuais
163). A adesão ao utilitarismo, em indivíduo torna-se responsável políticas curriculares para o Ensino
termos de políticas curriculares, por seu próprio destino escolar, Médio? Quais tecnologias políticas
conduz a novos imperativos peda- a tendência à individualização são derivadas das políticas imple-
gógicos para o Ensino Médio, anco- dos percursos se acentua. Do-
ravante, cada ator é submetido mentadas nas tramas do neolibera-
rados nos pressupostos “do investir,
a um conjunto de provas que lismo? Que saberes e experiências
do inovar e do empreender”14.
ele mesmo é obrigado a honrar, formativas são privilegiados?
e que pode assumir diferentes
contornos segundo o lugar dos Antes de prosseguir nesta exposi-
IHU On-Line – Que mundo alunos no sistema educativo, ção, preciso esclarecer quais são as
do trabalho pode emergir des- seus recursos culturais, suas novas figuras subjetivas que decor-
se contexto do jovem forjado socializações familiares, mas rem da consolidação do neolibera-
igualmente seu sexo, sua nacio- lismo, sobretudo ao examinarmos
no empreendedorismo desde o
nalidade ou tipo de escola que as relações entre políticas curricu-
Ensino Médio? frequenta (p. 292).
lares e juventude contemporânea.
Roberto Rafael Dias da Silva Valendo-me da sistematização re-
– Certamente preciso reconhecer centemente elaborada por Hardt e
que as demandas por flexibilizar Todavia, e aqui encontra-se mi- Negri, seriam quatro essas figuras
currículos e personalizar percursos nha problematização, tal individu- subjetivas, a saber: “o endividado,
formativos não são nenhuma novi- alização adquire contornos especí- o mediatizado, o securitizado e o re-
86 dade na Contemporaneidade Peda- ficos em contextos diferentes. No presentado” (2014, p. 21). De acordo
gógica, sendo defendidas por varia- caso dos ambientes populares, por com os pensadores neomarxistas,
das correntes educativas. Todavia, exemplo, esse processo aproxima- “essas figuras subjetivas constituem
para fins dessa reflexão, gostaria de -se da responsabilização dos indi- o terreno sobre o qual – e contra o
propor uma singela historicização víduos. Ainda conforme Martucelli, qual – os movimentos de resistência
e uma rápida problematização. No “o indivíduo não é mais imaginado e rebelião devem agir” (p. 21); visto
que se refere ao Ensino Médio, no herdeiro de uma posição social; ele que, em sua leitura, para além de
decorrer da segunda metade do sé- é tornado responsável pelas pró- compreendê-las, precisaríamos re-
culo XX, com a ampliação dos pro- prias aquisições”. Nos marcos da cusar essas figuras.
cessos de democratização do acesso construção de uma escola justa, a
à escola e a prolongação do tempo de responsabilização pode converter
escolaridade, associadas às mudan- os estudantes em estrategistas de
seus percursos; porém, partindo IHU On-Line – De que forma
ças no mundo do trabalho, podemos
de recursos desiguais. Este cenário a perspectiva do “endividado”
constatar os diferentes processos
pode reforçar o histórico dualismo age no jovem em formação?
de segmentação e seleção na oferta.
das políticas educacionais brasilei- Que modelo de cidadão acaba
Tal segmentação na oferta ocorreu
ras, intensificado com a emergência forjando?
de forma ambivalente, uma vez que
emergiu ao tempo de um novo reco- de novas precariedades17. Roberto Rafael Dias da Silva
nhecimento cultural das juventudes. – Com a predominância dos valores
As velhas regras da escolarização e práticas atinentes ao mundo finan-
estavam sendo contestadas e, de IHU On-Line – Como compre- ceiro na vida social, o endividamen-
acordo com o sociólogo Danilo Mar- ender as subjetividades juvenis to tem se constituído como um modo
tucelli15, “o collège e o ensino médio que são agenciadas no interior de vida. Para além de operar apenas
das atuais políticas curricula- como uma possível coação externa, a
14 SILVA, Roberto Rafael Dias da. Investir, inovar e res para o Ensino Médio, a par- dívida tende a controlar nossos mo-
empreender: uma nova gramática curricular para
o Ensino Médio brasileiro. Currículo sem Frontei- tir da sistematização das figu- dos de relação com o trabalho e com
ras, v. 16, n. 2, p. 178-196, 2016a. (Nota do en- a vida, muitas vezes expondo-nos a
trevistado)
15 Danilo Martuccelli: professor de sociologia na contextos de autoculpa e de pressão
Universidade Paris-Descartes, Faculdade de Ciên- 16 MARTUCELLI, Danilo. Efeitos sociais e políticos
cias Humanas e Sociais - Sorbonne, membro do da educação. In: VAN ZANTEN, Agnès (Coord). Di- (interna) por desempenho. Os auto-
laboratório CERLIS, é atualmente um membro sê- cionário de Educação. Petrópolis: Vozes, 2011, p.
nior da UITA. Seus interesses de pesquisa incluem 291-295. (Nota do entrevistado)
a teoria social, sociologia política e da sociologia 17 BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da 18 HARDT; Michael; NEGRI, Antonio. Declaração:
do “indivíduo” e individuação. (Nota da IHU On violência ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. isto não é um manifesto. São Paulo: N-1 Edições,
-Line) (Nota do entrevistado) 2014. (Nota da IHU On-Line)

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REVISTA IHU ON-LINE

res argumentam que “a dívida exerce que os próprios indivíduos desejem tão ainda mais privadas de sua
um poder moral cujas armas princi- melhorar suas performances. liberdade. O securitizado vive
pais são a responsabilidade e a culpa com medo em relação a uma
combinação de punições e ame-
que podem rapidamente se trans-
aças externas. O medo em rela-
formar em objeto de obsessão” (p.
22-23). A precarização do trabalho “As políticas im- ção aos poderes dominantes e
sua polícia é um fato, mas mais
evidencia-nos outras nuances desta
questão, na medida em que “a pró- plementadas importante e eficaz é o medo de
outras e desconhecidas amea-
pria vida foi atrelada ao trabalho” (p.
24). Em suas palavras, “Nessas cir- neste contexto ças perigosas: um medo social
generalizado (p. 39).
cunstâncias, ao contrário, a produti-
vidade fica cada vez mais escondida
tomam a pró-
conforme as divisões entre tempo de
trabalho e tempo de vida se tornam
pria noção de Em termos de participação política,
a quarta figura subjetiva descrita por
gradativamente indistintas. “crise” como Hardt e Negri é o “representado”. Na
medida em que os interesses polí-
A fim de sobreviver, o endividado
deve vender todo o seu tempo vida. operador estra- ticos movem-se por racionalidades
cada vez mais controversas, assim
Dessa maneira, aqueles sujeitos à
dívida aparentam ser, até para si tégico para sua como pela própria incapacidade da
forma política da representação (ao
mesmos, consumidores e não pro-
dutores” (p. 25). Essa figura subjeti-
racionalidade” afastar poder e população), o re-
presentado não consegue acessar
va consolida-se em um contexto no formas políticas eficazes. De acordo
qual as decisões políticas são trans- IHU On-Line – No que a ideia com os autores, “ao deixar de ser um
formadas em fracassos e responsabi- do “representado”, presente participante ativo na vida política,
lidades individuais. em Negri e Hardt (2014), pode o representado se descobre entre
contribuir para compreender os pobres, lutando sozinho na selva
movimentos como os de ocu- dessa vida social” (p. 45). Tais figu- 87
IHU On-Line – Como, a par- pação de escolas públicas que ras subjetivas, dentre outras pos-
tir da perspectiva da escola de ocorreram em todo Brasil no síveis, tendem a ser fabricadas no
hoje, compreender a subjetivi- ano passado? âmbito escolar através dos modos
dade do jovem “mediatizado”? Roberto Rafael Dias da Silva pelos quais organizamos o trabalho
– Antes de pensarmos acerca da re- pedagógico, selecionamos os conhe-
Roberto Rafael Dias da Silva –
presentação, considero pertinente cimentos e dispomos as experiências
A segunda figura subjetiva derivada
pensarmos acerca da terceira figura formativas. Ao mesmo tempo, pode-
da sistematização de Hardt e Negri
subjetiva proposta pelos autores. ríamos pensar que os movimentos
é a do “mediatizado”. A preocupa-
O “securitizado” é a terceira figura de ocupação, protagonizados pelos
ção dos autores, ao descrever esta
subjetiva explicitada pelos pensa- jovens nos últimos anos, vinculam-
figura, é que somos “sufocados pelo
dores contemporâneos, levada ao -se a uma crise da representação.
excesso de informação, comunica-
limite nas condições atuais de exa- Todavia, precisamos considerar que
ção e expressão” (p. 28). Mesmo que
cerbação da segurança. As variadas os movimentos de ocupação são en-
seja capaz de produzir novos afetos
tecnologias de segurança, da saúde e gendrados em um contexto de indi-
políticos, “a mediatização é o fator
o bem-estar individual até as preo- vidualização das responsabilidades
principal das divisões cada vez mais
cupações com a violência coletiva e coletivas e de um declínio das finali-
indistintas entre trabalho e vida” (p.
o futuro do planeta, são exemplares dades públicas da escolarização.
29), na medida em que “com o smar-
nesta conformação subjetiva deriva-
tphone e as conexões wireless, você
da dessa condição, fazendo com que
pode ir a qualquer lugar e continu-
sejamos objetos e sujeitos da vigilân-
ar ocupado, o que significa que você IHU On-Line – Quem é o jo-
cia permanente. O securitizado, em
continuará trabalhando aonde for” vem de ensino médio no Brasil
tempos de precariedade e flexibilida-
(p. 29). hoje e quais os desafios para a
de no mundo econômico, estabelece
escola promover o verdadei-
Importa reiterar, porém, que não uma aproximação amedrontada com
ro diálogo com ele? E quais as
há passividade nesta relação entre o mundo social.
particularidades desse jovem
as novas mídias e os indivíduos, uma
O medo é a motivação básica inserido no contexto de escola
vez que os sujeitos têm sua atenção
do securitizado para aceitar pública e de periferias?
absorvida nesta relação. Importante não só seu papel duplo – vigia
enaltecer, então, que a lógica mobili- e vigiado – no regime de vigi- Roberto Rafael Dias da Silva –
zada pelo capitalismo contemporâneo lância, mas também o fato de Em um exercício de síntese, poderí-
vincula-se à sedução, estimulando que muitas outras pessoas es- amos considerar que as políticas de

EDIÇÃO 505
ENTREVISTA

escolarização no Brasil, sobretudo universalidade como tal, mas com ponto de vista curricular, mobilizei
aquelas destinadas aos jovens das uma operação da universalidade que minha abordagem a partir da pre-
periferias urbanas, geralmente são deixa de responder à particularidade dominância de critérios utilitaristas
mobilizadas a partir de três com- cultural e não reformula a si mesma que perfazem a seleção dos conheci-
promissos, quais sejam: a contenção em resposta às condições sociais e mentos e das disciplinas escolares,
da pobreza através do acolhimento culturais que inclui em seu escopo do posicionamento do estudante en-
social, o atendimento às questões de aplicação” (2015, p. 17). quanto estrategista de seu percurso
econômicas por meio da empregabi- formativo e, por fim, da retomada
Com isso, de modo geral, preciso das possibilidades políticas de pen-
lidade precária e a melhoria do de-
considerar que atender as espe- sar uma pauta comum para a escola-
sempenho e dos indicadores educa-
cificidades dos estudantes é uma
cionais dos sistemas de ensino. Esse rização pública.
operação curricular importante;
cenário adquire contornos perversos A reforma curricular aqui ana-
todavia, não seria politicamente
na medida em que tais racionalida- relevante esgotar as possibilidades lisada, com maior ou menor in-
des políticas são colocadas em ação de pensar o universal. Inspirado tensidade, tende a intensificar a
para planejar o desenvolvimento no pensamento político de Butler, promoção de novas figuras subje-
curricular das escolas públicas de como estratégia de reação política tivas, marcadamente comprome-
nosso país. a um cenário em que a individu- tidas com as práticas neoliberais.
Outra nuance dessa questão diz alização dos percursos tornou-se Objetivamente, entendo que três
respeito à própria crise da trans- um imperativo curricular, valeria questões precisariam estar per-
missão de uma cultura comum ou a pena retomar o conceito de res- manentemente em debate para
mesmo à impossibilidade de cons- ponsabilidade. Em sua filosofia, pensarmos as políticas curricula-
trução de um modelo ético comum significa reconhecer que “nossa res para o Ensino Médio: a) as fi-
responsabilidade não é apenas pela nalidades e os propósitos públicos
– potencializada no interior de uma
pureza de nossas almas, mas pela da escolarização; b) a ampliação
individualização dos percursos for-
forma do mundo habitado coletiva- do repertório cultural dos jovens
mativos. Aprendi recentemente com
mente” (p. 141). contemporâneos; c) a retomada
a filosofia política de Judith Butler19
88 a importância de seguirmos pensan-
da escola enquanto uma possibi-
lidade de experimento democrá-
do a universalidade (ainda que sob
tico. Essas questões tornam-se
outros registros). De acordo com a IHU On-Line – Deseja acres-
emblemáticas na medida em que
filósofa, “o problema não é com a centar algo?
a escola, em sua dimensão públi-
Roberto Rafael Dias da Silva ca, continua sendo o melhor lugar
19 Judith Butler (1956): filósofa pós-estrutura-
lista estadunidense, uma das principais teóricas – Nesta breve reflexão sobre a MP para as lutas políticas em torno
da questão contemporânea do feminismo, teoria
queer, filosofia política e ética. Ela é professora do 746 procurei sistematizar algumas da igualdade e da inclusão social
departamento de retórica e literatura comparada racionalidades políticas que pare- e que pode ser reinscrita na cons-
da University of California em Berkeley. (Nota da
IHU On-Line) cem orientar sua implementação. Do trução de novos comuns.■

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REVISTA IHU ON-LINE

Mobilização e ocupações dos espaços


físicos e virtuais: possibilidades e limites
da reinvenção da política nas metrópoles

O
artigo de Marcelo Castañeda publicado na edição 255 do Cader-
nos IHU ideias debate as relações entre as tecnologias da Internet
e as práticas de revolta e indignação em contextos variados. O marco
inicial se dá com o levante zapatista da selva de Chiapas, no México, que toma
forma no primeiro dia do ano de 1994, inaugurando um ciclo de contestação
da globalização hegemônica, e a chegada envolve compreender os processos
de ocupação de escolas deflagrados por estudantes brasileiros, em especial
nos estados de São Paulo e Rio de Ja-
neiro, entre 2015 e 2016, tidos como
continuidades das jornadas de junho
de 2013. Através de participação ob-
servante em protestos de rua e hipó-
teses autotestadas em plataformas
tecnológicas, como Facebook, Twit-
ter, Youtube, Whatsapp e Telegram, 89
o objetivo é partir das tecnologias da
internet para melhor caracterizar os
contextos de luta e revolta que se con-
figuram no terceiro milênio.
Marcelo Castañeda. Cientis-
ta Social. Bolsista de pós-doutorado
no Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da UERJ. Doutorado
(2014) e Mestrado (2010) em Ciên-
cias Sociais em Desenvolvimento,
Agricultura e Sociedade pela UFRRJ.
Graduado em Ciências Sociais pela
UERJ (2005). Tem experiência nas
áreas de Metodologia/Epistemologia,
Antropologia e Sociologia, com ênfa-
se em ação política, tecnologia e con-
sumo, voltando-se para os seguintes
temas em trabalhos realizados ou em
andamento: ação coletiva, internet,
novas tecnologias da informação e co-
municação, meio ambiente, alimenta-
ção, cultura material, desigualdades,
direitos humanos e violência.
Esta e outras edições do Cader-
nos IHU ideias podem ser obtidas diretamente no Instituto Humani-
tas Unisinos – IHU, no campus São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos,
950), ou solicitadas pelo endereço humanitas@unisinos.br. Informações
pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 505
PUBLICAÇÕES

Indicadores de Bem-Estar Humano


para Povos Tradicionais: O caso
de uma comunidade indígena na
fronteira da Amazônia Brasileira

O
artigo de Luiz Felipe Barboza Lacerda e Luis Eduardo Acosta
Muñoz apresenta inovadora construção e aplicação de Indicadores
de Bem-Estar Humano partindo de uma perspectiva autodeclarada
por indígenas e ribeirinhos da Amazônia a respeito do conceito de Bem-Estar.
A partir disso, apresentam-se os Indicadores de Bem-Estar para Povos Tradi-
cionais (IBPT), apoiados em cinco grandes Capacidades: Controle Coletivo So-
bre o Território; Agenciamento Cultural Autônomo; Capacidade de Garantir
Autonomia Alimentar; Construção de um Ambiente Tranquilo para se viver;
e Autocuidado e Reprodução. Os IBPT foram
aplicados junto a comunidades indígenas e ri-
beirinhas da Amazônia brasileira e colombia-
na; este artigo expõe o caso da comunidade
indígena de etnia Cocama, Nova Aliança, lo-
calizada no município de Benjamin Constant,
90 na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e
Peru. Os resultados socializam importantes
avanços metodológicos na construção de in-
dicadores fidedignos a respeito do Bem-Estar
das populações tradicionais.
Luiz Felipe Barboza Lacerda reali-
zou doutorado e Mestrado em Ciências So-
ciais pela Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – Unisinos, tendo feito graduação em
Psicologia pela Pontifícia Universidade Ca-
tólica do Rio Grande do Sul. Atualmente é
docente e pesquisador da Universidade Ca-
tólica de Pernambuco (Unicap) e Secretário
Executivo do Observatório Nacional de Jus-
tiça Socioambiental Luciano Mendes de Al-
meida (Olma).
Luis Eduardo Acosta Muñoz é
economista, PhD em Economia Social pela
Universidad del País Vasco/Euskal Herriko
Unibertsitatea e realizou mestrado em De-
senvolvimento Sustentável
pela Pontificia Universidade Javeriana.
É pesquisador do Instituto Amazónico de Investigaciones Científicas SIN-
CHI (Colômbia), Pesquisador Colaborador – Observatório Nacional de Jus-
tiça Socioambiental Luciano Mendes de Almeida (Olma).
Esta e outras edições do Cadernos IHU ideias podem ser obtidas
diretamente no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, no campus São
Leopoldo da Unisinos (Av. Unisinos, 950), ou solicitadas pelo endereço hu-
manitas@unisinos.br. Informações pelo telefone (51) 3590-8213.

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

Cerrado. O laboratório antropológico


ameaçado pela desterritorialização

N
esta entrevista, Altair Sales Barbosa analisa os movimentos de va-
riadas formas de vida ao longo de eras no Cerrado e como a ação
do ser humano contemporâneo vem ameaçando a todas. O Cerrado
brasileiro abriga não só riqueza em termos de fauna e flora. Destruir esse
bioma significa mexer com questões geológicas e hídricas que trará repercus-
sões a todo o Brasil. Além disso, pode significar uma perda arqueológica e de
formas de vidas que lá existem há milênios e que não se recuperarão mais.
Altair Sales Barbosa possui
graduação em Antropologia pela Pon-
tificia Universidad Católica de Chile,
doutorado em Arqueologia Pré-His-
tórica pela Smithsonian Institution -
National Museum of Natural History,
de Washington, Estados Unidos. É
coordenador do projeto Enciclopedia 91
Virtual do Cerrado pelo Instituto His-
tórico e Geográfico de Goiás, do qual
é sócio titular.
Esta e outras edições do Cader-
nos IHU ideias podem ser obtidas
diretamente no Instituto Huma-
nitas Unisinos – IHU, no campus
São Leopoldo da Unisinos (Av. Unisi-
nos, 950), ou solicitadas pelo endere-
ço humanitas@unisinos.br. Informa-
ções pelo telefone (51) 3590-8213.

EDIÇÃO 505
CRÍTICA INTERNACIONAL

Os 100 da Revolução Russa e


seus impactos internacionais
Bruno Lima Rocha

A
revolução consolidou a ideia de cidadania como por-
tador de direitos, ao passo que atingiu níveis inéditos
de igualdade, segurança, serviços de saúde e educa-
ção, habitação, emprego e cultura. Pôs fim à discriminação
racial e de gênero, desemprego e pobreza extrema.
Diego Pautasso é doutor e mestre em Ciência Polí-
tica. Atualmente é professor de Relações Internacionais da
UNISINOS. Autor do livro China e Rússia no Pós-Guerra
Fria, editora Juruá, 2011.
Eis o artigo.

92 Como destaca pelo grande historiador, a Revolução de Outubro marcou o ‘breve século’ in-
delevelmente (HOBSBAWM, 1995). Pode-se dizer que, junto da Revolução Francesa, são os dois
mais impactantes eventos da contemporaneidade, considerando os desdobramentos em todos
os quadrantes geográficos e temáticos do sistema internacional.
A Revolução de Outubro não alcançou todos os objetivos que perseguiu – tal como os jaco-
binos não restauraram a polis grega; os revolucionários estadunidenses não alcançaram uma pe-
quena sociedade de produtores independentes; os puritanos não deram vida à sociedade bíblica
imaginada. Não surpreende que haja descompasso entre consciência subjetiva e os processos
contraditórios da realidade objetiva (LOSURDO, 2017, p. 337-8).
Ainda assim, não se pode entender o século XX sem as consequências diretas e indiretas
dos eventos que se seguiram à Revolução Russa de 1917. É inegável a vitória soviética contra a
maior máquina de guerra racista-colonial representada pelas forças nazi-fascistas durante a Se-
gunda Guerra Mundial a partir das batalhas de Moscou e Stalingrado (PITILLO, 2014). Embora
a história não seja dada a suposições, uma eventual vitória do eixo nipo-alemão teria efeitos
devastadores sobre a humanidade.
Ademais, não parece coincidência que a expansão dos direitos sociais esteja diretamente
relacionada com a formação do campo soviético. As três grandes discriminações (gênero, cen-
sitária/democrática e racial) tiveram notável expansão, desde as lutas antirracistas nos EUA
até a difusão do sufrágio universal na Europa e além (LOSURDO, 2017, p. 336). Aliás, o forta-
lecimento e o colapso do campo soviético coincidem com a do Estado de Bem Estar Social – em
oposição à trajetória do neoliberalismo. Os dados sobre polarização social (PIKETTY, 2014) são
exaustivos para corroborar essa dinâmica socioeconômica.
Além disso, o socialismo real, nucleado pela URSS, marcou o mundo do século XX pela
construção de uma experiência – a primeira vez em larga escala – de uma sociedade igualitária.
Não obstante as contradições, a revolução consolidou a ideia de cidadania como portador de
direitos, ao passo que atingiu níveis inéditos de igualdade, segurança, serviços de saúde e edu-
cação, habitação, emprego e cultura. Pôs fim à discriminação racial e de gênero, desemprego
e pobreza extrema. Por um lado, trabalhadores passaram a participar de decisões em diversas
esferas do poder, apesar das disfunções políticas fruto também de guerras e cerco permanentes;

22 DE MAIO | 2017
REVISTA IHU ON-LINE

“Mesmo que a descolonização não


rompa com as novas formas de
colonialismos e colonialidades”

por outro, pela primeira vez na história passaram a ser consumidores de cultura, como museus,
cinemas, música e livros (KEERAN; KENNY, 2008, p. 13-15).
Outro aspecto relevante que se deve ser levado em conta são os processos de libertação
nacional que sacudiram o mundo a partir da Revolução Russa. Lênin foi cirúrgico ao mudar o
chamamento de Marx: “Proletários de todos os países, e nações oprimidas do mundo, uni-vos!”.
Essa diretriz política rompeu o etnocentrismo reinante no movimento operário europeu. E abriu
um ciclo de lutas que resultou no mais impressionante processo de libertação nacional e afir-
mação da autodeterminação dos povos. A ONU fundada em 1945 teve 51 signatários; entre 1950
e 70, mais de uma centena de países se tornaram independentes e hoje a ONU conta com 193
membros. Mesmo que a descolonização não rompa com as novas formas de colonialismos e co-
lonialidades, é o passo primordial no acúmulo de forças. Nesse sentido, o movimento comunista
internacional exerceu papel central no financiamento, apoio material, treinamento e inspiração
ideológica para essas revoltas na periferia do sistema. Por isso, muitos se transformaram em
países socialistas, da China, passando pelos países do Sudeste Asiático, até Angola e Cuba, entre
muitos outros.
93
Há, evidentemente, uma esquerda messiânica, cujo misto de purismo e autofobia, a dis-
tanciam dos legados e lições da Revolução Russa, capitulando à narrativa ocidental-conserva-
dora. Tornam-se simultaneamente contra o ‘socialismo num só país’ e a exportação da revolu-
ção no Leste Europeu e alhures; contra a falta de radicalidade na implantação das relações de
produção autenticamente socialistas e a repressão dos kulaks (camponeses ricos da Rússia);
contra a opção autárquica ( e a estagnação) e também a opção de se integrar à economia mun-
dial; contra o descaso com o movimento socialista internacional e o aparelhamento militar
deste; contra a ética produtivista e a carência material e atraso em relação aos países capi-
talistas (LOSURDO, 2015, 197-9); contra a hipertrofia do poder e a participação de setores
burgueses e ingerências externas.
Enfim, a Revolução Russa representou um período de mais de sete décadas, cujo campo
socialista chegou a abarcar 32 nações em seu ápice e um terço da população mundial. Não só
transformou um país atrasado numa superpotência, como abriu caminho para novas experiên-
cias, muitas delas resistindo e se reinventando na atualidade. Enquanto setores políticos diver-
sos insistem em apagar este período histórico, permanece o desafio de compreender as lições
e desafios dessa complexa experiência com objetividade e depurado do frenesi anti-comunista
(VISENTINI, 2017).
Fica o desafio às forças progressistas: ou retoma de maneira crítica o legado iniciado em
2017, reconstruindo uma identidade coletiva capaz de transcender tribos endogâmicas, microi-
dentidades e corporativismo extremos, hierarquizando as lutas de classes, centrada em projetos
nacionais e na crítica ao imperialismo. Ou a autofagia, o sectarismo e a capitulação ante a narra-
tiva dominante irão ter um papel autodestrutivo por longo período. ■

Expediente
Coordenador do curso de Relações Internacionais da Unisinos: Prof. Ms. Álvaro Augusto
Stumpf Paes Leme
Editor: Prof. Dr. Bruno Lima Rocha

EDIÇÃO 505
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Outras edições em www.ihuonline.unisinos.br/edicoes-anteriores

O Estado de exceção e a vida nua: A lei


política moderna
Edição 81 | Ano III | 27-10-2003

“Como falar do estado de exceção em plena vigência democrática? Não


é um desatino? Na semana de publicação desta edição da IHU On-Line
ocorreu o evento Abrindo o Livro, promovido pelo Instituto Humanitas
Unisinos - IHU, onde foi apresentado Homo Sacer. O poder soberano e
a vida nua, de Giorgio Agamben. A obra foi oportunamente publicada,
na sua versão em português, pela editora UFMG. A obra de Agamben,
relativamente pouco conhecida no meio acadêmico brasileiro, é o tema
central desta edição.”

Michel Foucault, 80 anos


95

Edição 203 | Ano VI | 6-11-2006

“Discutir a importância do legado do filósofo francês Michel Foucault,


que em 15 de outubro de 2006 completaria 80 anos de vida. Essa é a
proposta da presente edição da IHU On-Line, que já na edição 119, de
18-10-2004, refletiu a respeito desse pensador, por ocasião dos 20 anos
do seu falecimento.”

Cuidado de si e biopolítica

Edição 472 | Ano XV | 14-9-2015

“Pensar os processos biopolíticos a partir de um paradigma contempo-


râneo exige abordar a realidade em nível molecular. Quando os biopo-
deres operam de forma fragmentária, particularizada, o cuidado de si,
com todos seus discursos, práticas e procedimentos tecnocráticos, torna-
-se um tipo de governo descentralizado da vida humana, permeando to-
dos os âmbitos de nossa experiência em sociedade.”

EDIÇÃO 505
96

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