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pubticação mensa! do CED!

número 173
janeiro/fevereiro de 1982

Q M L O M B O L A S
K. Thompson — CMí
EDITORIAL ipresença
publicação mensal do CEDI
número 173
“Desce novamente às redes janeiro/fevereiro de 1982
da vida do teu Povo Negro,
Negra Aparecida” Tempo e Presença Editora Ltda.

Diretor
Domício Pereira de Matos

Conselho Editorial
Verdade ou não o fato é que Maria Acrescente-se a esta Missa a reflexão Paulo Ayres de Matos
sempre fo i largamente devocionada teológica de um pastor negro dos Leticia Cotrim
pelos homens e mulheres “de cor”. EUA: pensem um pouco na dimensão Heloisa Martins
Aluisio Mercadante
Santa blasfêmia! Por que “de cor”? da teologia negra que este homem de Zwinglio Mota Dias
Talvez porque a força do colorido Deus nos propõe. Neide Esterci
seja mais evidente nos seus rostos e Jether Ramalho
corpos, talvez porque nossa E ainda, o depoimento de Abgail e de Carlos Rodrigues Brandão
Sant’Ana sobre a discriminação Paulo Cezar Loureiro Botas
fragilidade branca seja mais evidente Carlos Cunha
com o corar vergonhoso das nossas racial. A h l... para avançar, aos mais Rubem T. de Almeida
faces. cítricos acrescentamos a análise crítica
de Hoornaert sobre a Missa dos Fotolitos e Impressão
O fato é que as pessoas “de cor” Quilombos e concordamos com a sua Clip — Rua do Senado, 200
Tel. 252-4610
começaram a descobrir que juntas são afirmação de que este acontecimento
uma força e que têm uma enorme se situa no nível de uma luta cultural e Composição
tradição de cultura, de música e de que muitos agentes de pastoral Gráfica Editora Prensa Ltda.
dança que os degredados “sem cor”, influenciados por uma tradição Rua Comandante Vergueiro
descendentes dos prisioneiros e ocidental que remonta ao Iluminismo da Cruz, 26
prostitutas portuguesas se do século X V III mal percebem a Olaria — Tel. 280-8507
apropriaram deixando-lhes a relevância da luta cultural. Em suas Assinatura anual: Cr$ 600,00
vergonha da raça e profissões como palavras, “esquecem que cada Remessa em cheques pagáveis no
domésticas, motoristas, porteiros símbolo, cada discurso, cada Rio para Tempo e Presença
expressão cultural é uma arma a favor Editora Ltda.
etc... Caixa Postal 16082
ou contra o p o v o ”. 22221 Rio de Janeiro, RJ
A Igreja penitencia-se depois de
tantos anos! “Houvesse a Igreja da E finalmente, encerramos com o Publicação mensal
época marcado presença mais na profético Hélder no seu belo Registro de acordo com a
improviso após a ladainha de Lei de Imprensa
senzala do que na casa-grande, mais
nos quilombos do que nas cortes, Mariama:
outros teriam sido os rumos da CEDI
História do Brasil desde os seus “Nem precisa ir tão longe como no Centro Ecumênico
primórdios... ” Epenitencia-se em de Documentação e Informação
teu hino.
público numa Missa dos Quilombos Nem precisa que os ricos saiam de Rua Cosme Velho, 98 fundos
onde antes declarava o seu celebrante mãos vazias e os pobres de mãos Telefone 2055197
principal D. José Maria Pires, cheias. 22241 Rio de Janeiro, RJ
arcebispo da Paraíba: “Não sou mais Nem pobre nem rico. Av. Higienópolis, 983
D. Pelé, sou agora D. Zum bi”. Nada de escravo de hoje ser senhor de Telefone 667273
escravos amanhã. ” 01238 São Paulo, SP
Este número de Tempo e Presença
quer testemunhar este acontecimento Um mundo de irmãos e de Coordenador de Publicações
Paulo Cezar Loureiro Botas
histórico e relevante para a Igreja e as fraternidade propõe o profeta. E fo i
culturas afros. A recuperação da este mundo que os homens e mulheres Redatores
identidade cultural começa a ser um “de cor” ensinaram para nós os “sem Carlos Cunha
germe forte após três séculos de cor” durante os cem anos dos Rubem T. de Almeida
Luis Roncari
Zumbi e dos quilombos. Esta luta se quilombos. É esta proposta Elter Dias Maciel
junta a tantas outras de nossa alternativa de uma sociedade de Zwinglio Mota Dias
sociedade brasileira. Junta-se à dos irmãos que queremos celebrar e que
trabalhadores urbanos e rurais, à das celebraram nossos bispos e nossas Equipe de Arte
Anita Slade
mulheres, à das minorias sexuais, à Comunidades Eclesiais de Base no Martha Braga
dos estudantes e de todos os que Recife.
procuram transformar a face do nosso Produtor Gráfico
país numa face digna e sem temores. Celebremos pois, ecumenicamente, os Ãlvaro A. Ramos
QUILOMBOLAS da VIDA e da Assinaturas e Expedição
FRA TERNIDADE H U M A N A . Eduardo Spiller Penna

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DOCMMfWrO

Homilia para a
MISSA DOS QUILOMBOS
Pretos, meus irmãos:

Estamos recolhendo, hoje e aqui, os frutos do sangue de


Zumbi, símbolo da resistência de nossos antepassados.
Eles foram trazidos à força da África para estas terras,
arrancados de sua Pátria, separados de seu povo e de sua
família, misturados com pretos de outras línguas e de
outros costumes. Violentaram-lhes a consciência, impuse­
ram-lhes uma religião que não escolheram. Até o nome
lhes roubaram e os chamaram por nomes destituídos de
significado para eles.
Estamos presenciando hoje e aqui os sinais de uma nova
aurora que vem despertar a Igreja de Jesus Cristo. No
passado, ela não se mostrou suficientemente solidária
com a causa dos escravos. Não condenou a escravidão do
negro, não denunciou as torturas de escravos, não amal­
diçoou o pelourinho, não abençoou os quilombos, não
excomungou os exércitos que se organizaram para com­
batê-los e destruí-los. A Igreja não estava com os negros
e hoje parece que começa a estar. Começa a nos querer
bem. A respeitar nossa cultura e a não tratá-la mais como
grosseira superstição. A Igreja começa a ficar de nosso
lado, a nos ajudar a ressuscitar nossa memória histórica,
a incentivar nossa organização.

Pretos, meus irmãos! Como nossos antepassados, viemos


de vários lugares. Diferentes deles e menos puros do que
eles, trazemos na pele colorações variadas. Na alma,
crenças diferentes. Mas neles e em nós estão presentes e
são indeléveis as marcas de negritude. Somos negros e
não nos envergonhamos, não queremos mais nos enver­
Nilton Pereira

gonhar de sê-lo.
Brancos, nossos amigos! Conosco vos reunis. Descenden­
tes embora dos que humilharam e torturaram nossa raça,
viestes hoje nos aplaudir. Não sendo negros, vos mostrais
solidários com nossa causa e não quereis ver prolongadas
Dom José Maria Pires em nós as conseqüências nefastas da escravidão que opri­
Arcebispo da Paraíba miu nossos avós.
Neste encontro histórico, faltam muitos irmãos negros
que, levando ainda vida de escravos, não puderam com-

3
Vatdir Afonso
Dança fina) da Missa dos Qudom bos.

partilhar dessa celebração da hberdade. E faitam descen­ sistema que legitimava a escravidão. A Igreja, por sua
dentes daqueies que reduziram nossa gente ao cativeiro. vez, a aceitou sem maior relutância e procurou justifi­
Eies não acreditam que os negros, enquanto tais, são os cá-la com a teoria do mal que vem para bem: se os negros
mais marginalizados no BrasiL Vêem nosso encontro co­ perdiam a liberdade do corpo, em compensação, ganha­
mo uma espécie de provocação ou uma demonstração de vam a da alma e se incorporavam à civilização cristã
racismo que, segundo eies, não existe nem deve ser des­ abandonando o paganismo. Bela Teologia!
pertado entre nós, como um gesto de conteúdo mais ideo­
lógico e poiítico do que evangélico e reiigioso. Somos Hoje não falta quem condene a Teologia da Libertação
gratos aos que, sem serem negros, se mostram partidários — também chamada do Cativeiro — que justifica e in­
de nossa causa; iamentamos que aiguns não vejam em centiva, à luz da Palavra de Deus, os esforços dos opri­
nossa movimentação um sinai de que "a Boa-Nova está midos para se livrarem da marginalização a que foram
sendo anunciada aos pobres" (Lc 4.18), mas assegura­ reduzidos. Essa empreitada a que metem ombros tantos
mos que não iremos retroceder em nossa caminhada pelo dos nossos melhores teólogos é certamente simpática, hu­
fato de alguns nos interpretarem mal. mana e conforme com a mente de Deus, características
que não podem ser invocadas em favor da pretensão de
legitimar com a Bíblia qualquer tipo de escravidão. Hou­
I vesse a Igreja da época marcado presença mais na senzala
do que na casa-grande, mais nos quilombos do que nas
Mais longa do que a servidão do Egito, mais dura do que cortes, outros teriam sido os rumos da História do Brasil
o cativeiro da Babilônia foi a escravidão do negro no desde os seus primórdios, outra teria sido a contribuição
Brasil. do negro ao nosso desenvolvimento porque, mesmo de­
senraizado de seu povo e de sua terra, mesmo reduzido
Podemos entender — aceitar não — a escravidão como ao cativeiro e sujeito a jornadas de até 18 horas de traba­
consequência de uma guerra ou em pagamento de uma lho, conservou em si forças de aglutinação e de preser­
dívida. Só mesmo um total desrespeito à pessoa humana vação de seus valores originais. Estas forças foram prin­
associado à torpe ambição do lucro pode levar homens a cipalmente a religião e a combatividade.
transformar outros homens em propriedade sua a fim de
explorá-los, igualando-os a animais de carga. No Egito Obrigado a abandonar suas divindades e a trocar de no­
como na Babilônia, os hebreus foram submetidos a dura me no "Batismo", o negro soube fazer a síntese do an­
servidão. Puderam, entretanto, conservar sua consciência tigo com o novo: aceitou a religião de seus opressores
de povo e a dignidade de pessoa. O africano, ao invés, transformando-a por vezes em símbolo de crença de seus
foi desenraizado de seu meio e separado propositalmente antepassados. As imagens de santos tornaram-se as mate­
de sua gente e de sua família. Foi reduzido à condição de rializações de seus orixás. Nossa Senhora da Conceição é
um objeto que se pode vender, se pode dar, trocar ou Iemanjá, São Jorge é Ogum, Santa Bárbara, Iansã... Por
destruir. Do escravo se exigia o máximo de produção mais alienadas e alienantes que pudessem parecer essas
com o mínimo de despesa. Não havia preocupação com formas populares de devoção, foram elas que proporcio­
sua saúde ou alimentação. A média de vida dos cativos naram a muitos escravos africanos o meio de comuni­
era baixíssima. Castigos os mais humilhantes e severos cação que lhes permitiu conservar valores que, de outro
eram infligidos por qualquer ato de desobediência ou ges­ modo, teriam sido tragados na voragem do cruel cati­
to de rebeldia. Submissão absoluta, aniquilamento de si, veiro. Nas irmandades de Nossa Senhora do Rosário para
renúncia total à própria vontade tornaram-se para os es­ os Homens Pretos, no candomblé ou no xangô, a religião
cravos condição de sobrevivência. Leis houve e não pou­ ofereceu aos escravos um espaço de liberdade onde, pelo
cas, destinadas a coibir os excessos nos maus tratos aos menos enquanto durava o ato religioso, eles podiam sen­
cativos. Ficaram, porém, letra morta pois era o próprio tir-se eles mesmos e recuperar a dimensão de pessoa hu­
mana.
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Niiton Pereira
A combatividade de nossos antepassados pareceu ter-se II
apagado no coração da maioria. O escravo mostrava-se
conformado e submisso. Chegou a coiaborar com seu Chegou o tempo de tanto sangue ser semente, de tanta
opressor. A afeiçoar-se a eie. Essas atitudes, porém, po­ semente germinar.
diam ser interpretadas como um expediente da natureza
humana em busca da sobrevivência. No fundo, mesmo Está sendo longa a espera, meus irmãos. Da morte de
adormecido, permanecia vivo o sentimento de aitivez que Zumbi até nós são decorridos já quase três séculos. Mas a
se rebelava contra a escravidão e buscava formas de ex­ terra conservou o sangue de nossos mártires. Este sangue
pressar a revoita. Não foram poucos os casos em que fala, clama e seu clamor começa a ser ouvido. Primeiro
escravos mataram feitores ou eliminaram senhores cruéis. por nós negros que estamos recuperando nossa identi­
A rebelião teve também sua manifestação coletiva, mais dade e começando a nos orgulhar do que somos e do que
organizada e, por isso mesmo, mais eficaz. Foram os foram nossos antepassados. A sociedade também escuta
quilombos. A estas verdadeiras comunidades de escravos esse clamor. Muitos do seio dela nos apóiam e se colocam
fugidos se uniam frequentemente índios que viviam situa­ ao nosso lado para caminharmos juntos. A viagem é lon­
ção parecida e até alguns brancos, vítimas, eles também, ga e penosa. Quase tudo está por fazer. O negro como
da exploração. negro continua marginalizado. Não existe em grau de
embaixador, em posto de general, em função de Ministro
Pela sua extensão territorial, pela sua organização social de Estado. Na própria Igreja, são tão poucas as exceções
e política e pela sua longa duração, o Quilombo dos Pal­ que não abalam a tranquilidade do preconceito racial.
mares foi o mais importante de quantos existiram entre
nós. Os quilombos jamais constituíram um perigo para as Tomar consciência do problema de negros que gostariam
cidades, as povoações, os engenhos ou fazendas. Os ne­ de ser ou ao menos de parecer brancos e de brancos que
gros fugidos procuravam terras até então inabitadas e negam que haja racismo no Brasil já é um passo impor­
desconhecidas, ai se instalavam, organizavam a produção tante nessa caminhada. Na Eucaristia que estamos cele­
de modo a se tornarem o mais possível auto-suficientes e brando, negros e brancos se encontram não como escra­
acolhiam outros negros que buscavam refúgio e liberdade vos e senhores mas feitos irmãos no mesmo Cristo que a
no quilombo. Não se tem notícia de ataques feitos por todos resgatou da escravidão do pecado. Aqui, descen­
quilombos contra as povoações. Não há vestígio de orga­ dentes dos que humilharam nossos pais se humilham e
nização militar entre eles a não ser em Palmares quando pedem perdão enquanto nós, acolhendo-os no abraço da
tiveram necessidade de se defenderem. No entanto os qui­ paz, renunciamos a todo tipo de revanchismo e protes­
lombos foram severamente perseguidos. Temia-se que es­ tamos não admitir que ódio e violência se instalem em
sa organização rudimentar de negros se tornasse cada vez nossos corações. Se, no início, ouvimos as lamentações
mais poderosa e inflingisse um golpe de morte na escra­ do Profeta Jeremias, ouvimos depois, no Evangelho, as
vidão, o que viria prejudicar os interesses econômicos da palavras de conforto e as promessas da esperança. Que
classe dominante. E, como sempre, a polícia foi acionada tudo isso que estamos celebrando impregne nossas vidas e
contra humildes escravos. As forças militares receberam invada as relações sociais para que de verdade se realize
a incumbência de destruir os quilombos, apoderar-se das hoje o que, nos tempos do Apóstolo Paulo, já começava
lavouras feitas pelos quilombos, prendê-los e reconduzi- a ser a maneira de viver dos discípulos de Cristo: "Já não
los ao cativeiro ou exterminá-los. Muito sangue correu, há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem
muita esperança se afogou. nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus"
(G! 3.20).
Tudo em vão ou terá havido algum proveito?
Em Recife, 22 de novembro de 1981

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I. ABERTURA D. Pedro CasaldáMga II. EM NOME DO DEUS...
ESTAMOS CHEGANDO... Pedro T!erra
Milton Nascimento (coro, contado)
(coro, con/acfo)
Em nome do Deus de todos os nomes
A de ó (chegamos, estamos aqui) Javé
Obatalá
Estamos chegando ao fundo da terra, Olorum
estamos chegando do ventre da noite, Oió.
da carne do açoite nós somos,
viemos lembrar. Em nome do Deus, que a todos os
Homens
Estamos chegando da morte nos mares, nos faz da ternura e do pó.
estamos chegando dos turvos porões,
herdeiros do banzo nós somos, Em nome do Pai, que faz toda carne,
viemos chorar. a preta e a branca,
vermelhas no sangue.
Estamos chegando dos pretos rosários
estamos chegando dos nossos terreiros Em nome do Filho, Jesus nosso irmão,
dos santos malditos nós somos, que nasceu moreno
viemos rezar. da raça de Abraão.
Estamos chegando do chão da oficina, Em nome do Espirito Santo,
estamos chegando do som e das formas, bandeira do canto
da arte negada que somos do negro folião.
viemos criar. A de ó (recitccfo)
Em nome do Deus verdadeiro,
Estamos chegando do fundo do medo, Estamos chegando do ventre das Minas, que amou-nos primeiro
estamos chegando das surdas correntes, estamos chegando dos tristes mocambos, sem dividição.
um longo lamento nós somos, dos gritos calados nós somos,
viemos louvar. viemos cobrar. Em nome dos Três
que são um Deus só,
A de ó (recitado) Estamos chegando do chão dos Aquele que era,
Quilombos, que é,
Do Exilio da vida, estamos sangrando a cruz do Batismo, que será.
das Minas da Noite, marcados a ferro nós fomos,
da carne vendida, viemos gritar. Em nome do Povo que espera,
da Lei do açoite, na graça da Fé,
do Banzo dos mares... Estamos chegando do alto dos morros, à voz do Xangô,
estamos chegando da lei da Baixada, o Quilombo-Páscoa que o libertará.
aos novos Albores! das covas sem nome chegamos,
vamos a Palmares, viemos clamar. Em nome do Povo sempre deportado
todos os tambores!!! pelas brancas velas
Estamos chegando do chão dos no exilio dos mares;
Estamos chegando dos ricos fogões, Palmares, marginalizado
estamos chegando dos pobres bordéis, estamos chegando do som dos tambores, nos cais, nas favelas
da carne vendida nós somos, dos Novos Palmares nós somos, e até nos altares.
viemos amar. viemos lutar.
Em nome do Povo
Estamos chegando das velhas senzalas, A de ó (rccifaofo) que fez seu Palmares,
estamos chegando das novas favelas, que ainda fará
das margens do mundo nós somos, Palmares de novo
viemos dançar. Palmares, Palmares, Palmares
do Povo!!!
Estamos chegando dos trens dos
subúrbios,
estamos chegando nos loucos pingentes,
com a vida entre os dentes chegamos,
viemos cantar.

Estamos chegando dos grandes estádios,


estamos chegando da escola de samba,
sambando a revolta chegamos,
viemos gingar. Pai-Nosso... (Missa dos
Quilombos, Recife).

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III. RITO PENITENCIAL (zec/Zar/o) Ressaca dos Portos, (coro negro, con/ar/o)
Harlem dos Impérios,
(coro, con/cJo) Carne em toneladas, Apartheid em casa, Mulato iludido,
fardos de porão. favela do mundo. fica do teu lado,
Kyrie eleison! Quota da Coroa Com "direito a enterro", do lado do Negro.
Christe eleison! fichas de Batismo, sem direito à vida. Não faças, Mulato,
Kyrie eleison! marcados a ferro Pelourinhos brancos, a branca traição.
para a Salvação. flagelados pretos.
Alma não é branca, Entregues à Morte, Negro sem emprego, (zec/rabo)
luto não é negro, sendo Cristo a vida. sem voz e sem vez,
negro não é folk. Humanos leilões, sem direito a ser, Padres estudados,
peças de cobiça, a ser e a ser Negro. Pastores ouvidos,
Kyrie eleison! trezentos milhões Freiras ajeitadas,
de africanos mortos Dobrados nos eitos, Doutores da sorte,
Senhor do Bonfim na Segregação. os peitos quebrados. Cantores de turno,
do bom começar: Caça das Bandeiras, Os peitos sugados Monarcas de estádio...
não seja a alegria do Esquadrão da Morte por filhos alheios, Não negueis o Sangue,
apenas de um dia; Exus do destino, senhores ingratos. o grito dos Mortos,
não seja a folia capitães-do-mato. Bebês imolados o cheiro do Negro,
para desfilar Quantos Jorge Velho pelas Anas Paes. o aroma da Raça,
na avenida sua. de todos os Lucros, Testas humilhadas a força do Povo,
Que seja, por fim, de todos os Tempos, nas águas dos cais. a voz de Aruanda,
a tua Alforria de todas as Guardas! Bronze incandescente a volta aos QUILOMBOS!
e nossa a rua, Quantas Áureas Leis nas bocas dos fornos.
Senhor do Bonfim! da Justiça Branca! Peões de fazenda, (so/o, can/at/o)
pé de bóia-fria,
Kyrie eleison! (coro branco, can/abo) artista varrido Bom Jesus de Pirapora,
Christe eleison! no pó da oficina, na procura desta hora,
Kyrie eleison! Queimamos, de medo garçom de boteco, tem piedade de nós.
— do medo da História sombra de cozinha,
(zec/Zar/o) os nossos arquivos. mão de subemprego, (cozo)
Pusemos em branco carne de bordel...
Da raça maldita a nossa memória. Pixotes nas ruas, Kyrie eleison!
gratuitamente, caçados nos morros,
a raça de Cam. (zec/tar/o) mortos no xadrez! (so/o, caa/ado)

Secular estigma Cultura à margem, Negro embranquecido Senhor Morto, Deus da Vida,
da escrava Agar, Culto condenado, pra sobreviver. nesta luta proibida,
Mãe espoliada, Fé de freguesia, (Branco enegrecido tem piedade de nós.
Ismael dos Povos, Giro tolerado, para gozação.)
denegrida África. Revolta ignorada, Negro embranquecido, (cozo)
História mentida. morto mansamente
(cozo negzo, caa/at/o) pela integração. Christe eleison!

Terras de Luanda, (so/o, caa/at/o)


Costa do Marfim,
Reino de Guiné, Irmão Mór da Irmandade,
Pátria de Aruanda na Paixão da Liberdade,
Awa de! tem piedade de nós.
(Estamos
aqui) (cozo)
Kyrie eleison!

Vista Gerai dos Ceiebrantes:


D. Pedro Casaidáiiga. D. Marceio
Carvaiheira. D. José Maria.
D. Héider.

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IV. ALELUIA (recitado) Com a força dos braços, o grito entre
os dentes,
(coro, cantado) Trazemos no corpo a alma em pedaços, erguemos impérios,
o mel do suor, fizemos a América dos filhos dos
Aleluiá, aleluià, aleluiá! trazemos nos olhos brancos!
a dança da vida.
Fala, Jesus, Palavra de Deus: trazemos na luta, a Morte vencida. (coro, contado)
Tu tens a palavra! No peito marcado trazemos o Amor.
Na Páscoa do Filho, A brasa dos ferros lavrou-nos na pele,
Aleluiá... a Páscoa dos filhos lavrou-nos na alma, caminhos de cruz.
recebe, Senhor. Recusa, Oloru, o grito, as correntes
Irmão que fala a Verdade aos Irmãos, e a voz do feitor, recebe o lamento,
dá-nos tua nova Libertação. (vo/o, cantado) acolhe a revolta dos negros, Senhor!
Quilombolas livres do lucro e do medo,
nós viveremos o teu Evangelho, Trazemos nos olhos, (recitado)
nós gritaremos o teu Evangelho! as águas dos rios,
o brilho dos peixes, Trazemos no peito
Aleluiá... a sombra da mata, os santos rosários,
Nenhum poder o orvalho da noite, rosários de penas, rosários de fé
nos calará! o espanto da caça, na vida liberta, na paz dos quilombos
Aleluiá, aleluiá, aleluiá! a dança dos ventos, de negros e brancos
a luta de prata, vermelhos no sangue.
Contra tantos mandatos do Ódio, trazemos nos olhos A Nova Aruanda dos filhos do Povo
Tu nos trazes a Lei do Amor. o mundo, Senhor! acolhe, Olorum!
Frente a tanta Mentira,
Tu és a Verdade, Senhor. (recitado) (recitado)
Entre tanta noticia de Morte, — Na palma das mãos trazemos o Recebe,Senhor
Tu tens a Palavra da Vida. milho, a cabeça cortada
Sob tanta promessa fingida, a cana cortada, o branco algodão, do Negro Zumbi,
sobre tanta esperança frustrada, o fumo-resgate, a pinga-refúgio, guerreiro do Povo,
Tu tens, da carne da terra moldamos os potes irmão dos rebeldes
Senhor Jesus, que guardam a água, a flor de alecrim, nascidos aqui,
a última palavra. no cheiro de incenso, erguemos o fruto do fundo das veias, do fundo da raça,
E nós apostamos em Ti! !! do nosso trabalho, Senhor! Olorum! o pranto dos negros, acolhe Senhor!
Aleluiá... (voio, cantado) (coro, cantado)
A Tua Verdade nos libertará.
Aleluiá!... O som do atabaque Os pés tolerados na roda de samba,
marcando a cadência o corpo domado nos ternos do congo,
dos negros batuques inventam na sombra a nova cadência,
nas noites imensas rompendo cadeias,
V. OFERTÓRIO da África negra, forçando caminhos,
da negra Bahia, ensaiam, libertos,
(recitado) das Minas Gerais, a marcha do Po,,.;
os surdos lamentos, a festa dos negros, acolhe Olorum!
Na cuia das mãos calados tormentos,
trazemos o vinho e o pão, acolhe Olorum! (es'trióid;o)
a luta e a fé dos irmãos,
que o Corpo e o Sangue do Cristo (recitado)
serão.
Com a força dos braços lavramos a terra,
(recitado) cortamos a cana, amarga doçura
na mesa dos brancos.
O ouro do Milho
e não o dos Templos, Com a força dos braços cavamos a terra,
o sangue da Cana colhemos o ouro que hoje recobre
e não dos Engenhos, a igreja dos brancos.
o pranto do Vinho,
no sangue dos Negros, Com a força dos braços plantamos, na terra,
O Pão da Partilha o negro café, perene alimento
dos Pobres Libertos. do lucro dos brancos.

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VII. RITO DA PAZ VIII. COMUNHÃO
(coro, canfodo) (recdodo)
Saravá, Bebendo a divina bebida
A-i-é, do teu Sangue Limpo, Senhor,
Aba! lavamos as marcas da vida,
libertos na Lei do Amor.
A Paz d'Aque!e, que é
nossa Paz! Comendo a carne vivente
A Paz, que o Povo fará! do Teu Corpo morto na Cruz,
vencemos a Morte insolente
Saravá, na vida mais forte, Jesus.
A-i-é
Abá! Nutrindo a luta na Aliança
e a Marcha em teu novo Maná,
A iouca Esperança queremos firmar a Esperança
de ver todo irmão da Aruanda que um dia virá.
caindo na dança
da vida, Ara wara kosi mi fara.
VI. O SENHOR É SANTO cantando vencida
toda Escravidão! Todos unidos
(coro, canfacfo) num mesmo Corpo,
Vai ser abolida nada no mundo
O Senhor é Sanot! O Senhor é Santo! a paz da Aboiição nos vencerá.
O Senhor é Santo! que agora temos. Todos unidos em Cristo Jesus,
E contra a paz cedida, Oxalá!
O Senhor é o só Senhor. a Paz conquistada teremos!!!
Todos nós somos iguais. Ara wara kosi mi fara.
Oxalá o Reino do Pai Saravá,
seja sempre o nosso Reino. do novo Quilombo de amanhã. (so/o, /nascu/mo)
A-i-é dessa "festa de todos", que virá!
O Senhor é Santo... Partilha diária em mesa de irmãos.
(d wanerro de um pregdo) Porque não é livre quem não tem
O Reino nos vem seu pão.
em Cristo Rei Salvador. Aos treze de maio de mii-oitocentos-e-
O Reino se faz oitenta-e-oito, (vo/o, ycfnmmo)
no Povo Libertador. nos deram apenas decreto em palavras.
Mas a Liberdade Partilha constante, na festa e na dor.
Hosana! Hosana! Hosana! vamos conquistá-la! Porque não é livre quem não sente amor.
(coro, contado) (jo/o, /MOSCM/mo)
A-i-é, Partilha fraterna de bantus iguais.
A paz d'Aquele, que é Porque não é livre quem junta de mais.
nossa Paz!
(so/o, /e/nmmc)
Abá,
a Paz que o Povo fará! Partilha de muitos unidos na fé.
Porque não é livre quem não é o que è.
Palmares das lutas da Libertação.
Palmeiras da Páscoa da Ressurreição. (so/o, mascM/ino)
Saravá, A-i-é, Abá!!! Partilha arriscada de vir a perder.
Porque não é livre quem teme morrer.
(so/o, /cfTunmo)

Partilha segura da Libertação,


que o Cristo partilha a Ressurreição.
Valdir Afonso

Ara wara kosi mi fara, etc....


Milton Nascimento, em compasso
de ação de graças.

9
IX. LADAINHA (/crnãana) ( /c /n ó u n a )
Lumumba, tambor-tempestade da Santos Reis dos presentes da terra e
(/e/for) África levantada. do culto, peregrinos incansáveis à luz
da estrela, atrás do Menino.
Unidos à procura dos quilombos da (ntasca/tna)
Libertação, celebramos a "memória Chimpa-Vita, Beatriz do Congo, (movca/tno)
perigosa" da Páscoa de Jesus, bandeira em chamas das São Benedito, irmão acolhedor dos
comungando a força do seu Corpo negras-coragem, e todas as pedidos dos Pobres.
Ressuscitado. mães-pretas arrancadas da pedra
Recolhemos na mesma comunhão o morta para as lutas da vida! E todas (/cnanfna)
trabalho, as lutas, o martirio do Povo as Marlys das baixadas Santo Agostinho, mente e coração da
Negro de todos os tempos e de todos desmascarando o rosto dos assassinos, África Mãe.
os lugares. e todas as anônimas heróicas
E invocamos sobre a caminhada, a comadres negras, eixo fecundo da (tnasca/ina)
presença amiga dos Santos, das Sobrevivência da Raça. São Martinho de Lima, porteiro
Testemunhas, dos militantes, dos solicito da América Negra.
Artistas, e de todos os construtores (/cmáuna)
anônimos da Esperança Negra. Negrinho do Pastoreio, anjo dos (/cndntna)
vaqueiros das reses perdidas e todos Santa Ifigênia, discipula do Apóstolo
(so/o, contado) os guias negros das causas do Povo. e congregadora de virgens.

Porque está na hora, (ntasca/tna) (tnasca/tna)


pedimos o auxilio de todos os santos, Crianças de Soweto e de Atlanta, São Pedro Claver, escravo fraterno
chamamos a força dos mortos na luta massacres da prepotência racial, dos escravos negros.
porque está na hora, colheita prematura da Juventude
o jeito dos mestres da reza e do canto; Negra. (/em dana)
porque está na hora, São Gonçalo de Amarante, peregrino
cantamos malembes pra Nossa Senhora. (/cnun/na) e evangelizador dos Pobres.
Santeiro Aleijadinho, entalhador dos
(coro, cantado) Santos do Povo. (masca/tna)
São Cosme e Damião, curadores do
Caô — Cabê em si — Iobá (nta-sca/tna) povo sofredor.
Todos os santos nos vão ajudar! Louis Armstrong e todos os metais e
todas as cordas e todos os Negros (/emtntna)
(recitado) Spirituals da América Negra. Valência Cano, mártir bom pastor do
(voz, masca/ina) Litoral Negro, Irmão Lourenço de
(/cnt/ntna) Nossa Senhora, garimpeiro do
Zumbi dos Palmares, Patriarca mártir Amílcar Cabral, pai educador da Evangelho, ermitão da Comunidade.
de todos os Quilombos de ontem, de Liberdade Africana. Frei Gregório de José Maria,
hoje e de amanhã. deportado para o Amazonas, Padre
(/nasco/Ina) Canabarro, vigário comprometido no
(voz, Tcm/nina) James Meredith, paixão matinal e Sul e todos os pastores, romeiros,
Dragão do Mar, Francisco José do todos os estudantes dos campus e das missionários, ermitães e confrades
Nascimento, João Cândido que a ruas que marchais abrindo História. devotados ao pranto e à Esperança do
chibata não dobrou, Pedro Ivo Povo Negro.
sombra dos Praieiros pernambucanos (/c/n/nina)
Angelim dos Cabanos, madeira da Solano Trindade e todos os poetas da (masca/tna)
Resistência e todos os rebeldes do madeira, da palavra e da alma negra Santo Onofre, anacoreta da longa
Povo, na Terra e no Mar. nunca embranquecida. solidão.
(masca/tna) (mavca//na) (/em/nma)
José do Patrocínio e todos os Santo Dias, Companheiro, suor e Carlos Lwanga e companheiros
pregoeiros da Libertação. sangue da Periferia, mártir na cruz mártires de Uganda.
das Empresas, e todos os retirantes,
(/cnan/na) lavradores, bóias-frias e operários, (mavca/ma)
Haussás, Nagôs e Alfaiates da Negra construtores do Sindicato livre e da Martim Luther King, pastor na vida e
Bahia, e todos os Grupos e Comunidade Fraterna. na morte, voz permanente da marcha
movimentos Negros que reivindicam o da Libertação, e todos os mártires da
Futuro. (coro, contado) Paz perseguida.
(masca/tna) Caô... (coro, cantado)
Arturo Alfonso Schomburg, memória
do "Povo sem História", voz Caô...
libertária do Caribe.

10
Dança do ofertório, reatizada petos
membros da Comunidade de Brasítia Teimosa.
X. LOUVAÇÃO A MARIAMA

Vatdir Afonso
(coro, cun/aafo)

Mariama,
Iya, Iya, ô,
Mãe do Bom Senhor!

Maria Mulata,
Maria daqueia
coiônia faveia,
que foi Nazaré.
Morena formosa,
Mater doiorosa,
Sinhá vitoriosa, XI. MARCHA FINAL
Rosário dos pretos mistérios da Fé. (música de Banzo e de Esperança)
Seremos Zumbi, construtores
Mãe do Santo, Santa, (rec/íac/o) dos novos QUILOMBOS queridos.
Comadre de tantas, Nos muros remidos
liberta mulhé. Banzo da Terra que será nossa, da nossa Cidade,
banzo de todos na Liberdade, nos Campos, por fim repartidos,
Pobre do Presépio, Forte do Calvário, banzo da vida que vai ser outra, na Igreja do Rei,
Saravá da Páscoa de Ressurreição, banzo do Reino, maior saudade, de novo do Povo,
Roseira e corrente do nosso Rosário, saudade em luta do Amanhã, seremos a Lei
Fiel Companheira da Libertação. vontade da Aruanda que um dia virá! da nova Irmandade,
Saudade da Terra e dos Céus, Iremos vestidos
Por teu Ventre Livre, que é o verdadeiro, o banzo do Homem, saudade de Deus. das palmas da Vida.
pois nos gera livres no Libertador, Teremos a cor da Igualdade.
acalanta o Povo que está em cativeiro, (recZ/ac/o) Seremos a exata medida
Mucama Senhora e Mãe do Senhor. da humana feliz Dignidade.
Trancados na Noite, Milênios afora
Canta sobre o Morro tua Profecia, forçamos agora, Berimbaus da Páscoa marcarão o pé,
que derruba os ricos e os grandes, Maria.as portas do Dia. o pé quilombola do novo Toré.
Faremos um Povo de igual Rebeldia. Pela Terra inteira
Ergue os submetidos, marca os renegados, Faremos um Povo de bantus iguais. juntos dançaremos
samba na alegria dos pés congregados. Faremos de todos os lares nossa Capoeira.
fraternas senzalas, sem mais. Seremos bandeira,
Encoraja os gritos, acende os olhares, Faremos a Negra Utopia seremos foliões.
ajunta os escravos em novos Palmares. do novo PALMARES No Novo Israel plantaremos
na só Casa Grande dos filhos do Pai. as tendas dos filhos do Santo.
Desce novamente às redes da vida i Os prantos, os gritos, unidos num canto
do teu Povo Negro, Negra Aparecida!!! Os Negros da África, de irmãos corações,
os afros da América, na luta e na festa do ano inteiro.
os Negros do Mundo,
na Aliança com todos os Pobres (rec/Zac/o)
da Terra.
No rosto de todos os homens sinceros,
Seremos o Povo dos Povos: a marca da tribo de Deus,
Povo resgatado, o Sangue sinal do Cordeiro.
Povo aquilombado,
livre de senhores, (rec/Zac/o)
de ninguém escravo,
senhores de nós, E à espera do nosso Quilombo total
irmãos de senhores, — o alto Quilombo dos Céus —,
filhos do Senhor! os braços erguidos, os Povos unidos
serão a muralha ao Medo e ao Mal,
(rcc/Zaí/o) serão valhacouto da Aurora desperta
nos olhos do Povo,
Sendo Negro o Negro, da Terra liberta
sendo indio o índio, no QUILOMBO NOVO!!!
sendo cada um
como nos tem feito (más/ca /mu/)
a mão de Olorum.

11
Eduardo Hoornaert A Missa dos Quilombo:
Na noite de 22 de novembro de 1981 celebrou-se na Praça
do Carmo, no Recife, no local exato onde a cabeça do
líder negro Zumbi foi exposta em 1695, a Missa dos
Quilombos. Naquela noite a "memória perigosa" de
Zumbi pairou sobre uma multidão de aproximadamente
8 mil pessoas que com notável atenção e até devoção
acompanhavam uma liturgia penitencial inédita no
Brasil, na América e no âmbito católico em geral: alguns
altos representantes da Igreja Católica (no palco central,
em torno do altar, estavam Dom José Maria Pires, Dom
Hélder Câmara, Dom Manuel Pereira, Dom Pedro
Casaldáliga, Dom Marcelo Carvalheira), em presença de

Valdir Afonso
representantes do clero e do povo, se penitenciaram e
pediram perdão pela atitude multissecular da Igreja
diante dos negros, da "denegrida África" e
especialmente diante dos escravos fujões e aquilombados
considerados os maiores inimigos da empresa cristã
durante séculos, conforme diz uma carta do Padre Pero
Rodrigues de 1? de maio de 1597: "Os primeiros inimigos
são os negros da Guiné alevantados que estão em
algumas serras, donde vêm a fazer saltos, e dão muito
trabalho e pode vir tempo em que se atrevam a destruir
fazendas como fazem seus parentes na ilha de São
Tomé" (cf. Serafim Leite, /Vistorio r/o Compon/ha
Vasos /?o /?ros;7, II, 358).

Essa Missa dos Quilombos certamente não brotou das


bases negras do povo nem da prática eclesial das
comunidades de base, mas sim da sensibilidade de alguns

Valdir Afonso
intelectuais. Aí está a precariedade desta celebração: será
que ela realmente terá o impacto histórico que os mais
entusiasmados lhe atribuem? Qual pode ser sua
funcionalidade no catolicismo histórico dentro do qual
estamos inseridos? Há indícios de que esta celebração
Visão de Conjunto diante da Igreja do Carmo e vista geral da praça.
pode vir a ter desdobramentos no nível das práticas
eclesias na base? Quais seriam estes indícios?
Nesta perspectiva há algo a dizer. Em primeiro lugar,
celebrar a Missa do Quilombo não significa apenas
comemorar o passado, significa antes de tudo intuir o comportamento das pessoas no ônibus que faz o trajeto
presente. Quilombo no Brasil é atualidade, não passado. centro-periferia revelou como o pessoal do bairro fica
Pois os bairros populares das grandes metrópoles mais silencioso, "bem comportado" e individualista na
brasileiras são na verdade quilombos, onde os negros se medida em que o ônibus se aproxima do centro da cidade
sentem em casa (quilombo ou mocambo significa casa). e se solta (solta palavrões) ao aproximar-se do bairro.
O mundo do trabalho é adverso ao trabalhador, o mundo Viver num bairro popular comporta uma maneira
do bairro lhe é familiar. Aí ele se refaz, conversa, anda específica de se relacionar e de se identificar. O fato de o
no meio da rua, transforma a rua em campo improvisado bairro ser considerado perigoso, "cheio de ladrões e
de futebol, distingue entre "quilombolas" (os maloqueiros", afasta os burgueses e os faz desistir de seu
maloqueiros) e forasteiros, se sente aceito. Um estudo projeto de apoderar-se destes terrenos que são
feito por um estudante em teologia acerca do frequentemente muito bem localizados e agradáveis,

12
chegou tarde demais?
como no caso dos morros do Recife. A especulação se vê, o ar que se respira, a pele em que se vive" (cit.
imobiiiária que ameaça os bairros popuiares encontra M. Groetelaars, M;7agre <?re/ig/oj/dacle Pojpn/ar, Vozes,
neste "caráter quiiomboia" dos mesmos um 1981, 96). Os colonizadores se convencionaram a chamar
impedimento. No dia em que estes bairros perderem este a esta religião de "animismo" (ou espiritismo,
caráter, eies não terão muita resistência diante da invasão especialmente no Brasil) e pelo resto não se interessaram
burguesa. Desta forma, preservar o quilombo é preservar em descobrir-lhe a profundidade e o significado.
uma raiz importante do povo de descendência africana.
Haveria muita coisa a dizer sobre os quilombos urbanos e Em terceiro lugar: coloca-se aqui de forma premente a
seu significado. Basta recordar quantos nomes de bairros questão da organicidade dos atuais agentes de pastoral.
suburbanos lembram a "denegrida África". Só para Influenciados por uma já longa tradição ocidental que
falar em Rio de Janeiro: Catete, Catumbi, Gamboa, remonta ao iluminismo (século XVIII), os agentes de
Calabouço, Livramento, Morro do Desterro, etc. pastoral mal percebem a relevância da luta cultural. Eles
compreendem a importância da luta pela libertação nos
Uma segunda consideração: a atual religião dos níveis econômicos, sociais e políticos, mas fazem com
"quilombos urbanos" guardou os traços fundamentais dificuldade a passagem entre estes "niveis" e a luta
dos quilombos antigos. Os descendentes dos africanos no cultural. Esquecem que cada símbolo, cada discurso,
Brasil foram e ainda são de uma surpreendente fidelidade cada expressão cultural é uma arma, a favor ou contra o
a uma estratégia que o sistema colonial lhes possibilitou: povo. As ciências, da forma em que foram praticadas na
a estratégia da resistência pela religião. A "Relação das Europa e na América do Norte, acreditam demais nos
guerras feitas aos Palmares de Pernambuco no tempo do esquemas de progresso e desenvolvimento para darem a
Governador Dom Pedro de Almeida, de 1675 a 1678", devida atenção às experiências de luta e resistência dos
único documento contemporâneo da época de Palmares, povos oprimidos codificadas, celebradas e vivificadas
reza assim: "E com serem estes bárbaros tão esquecidos pela religião.
de toda sujeição, não perderam de todo o
reconhecimento da igreja: nesta cidade (de Macaco) têm Eis a razão profunda, na nossa opinião, da pouca
capela a que recorrem nos seus apertos e imagens a que receptividade diante desta Missa dos Quilombos em
encomendam suas tenções. Quando se entrou nesta certos ambientes eclesiais sinceramente engajados nas
capela achou-se uma imagem do Menino Jesus...; lutas populares. Acreditamos mesmo que a Igreja na
escolhem um dos mais ladinos a quem veneram como a América Latina necessita de uma nova "patrística", não
pároco: este os batiza e os casa...; ensinam-se entre eles no sentido de uma aliança com o pensamento elitista e
algumas orações cristãs, observam-se os documentos da erudito da época, mas no sentido de uma aliança com a
fé que cabem na sua capacidade" fRevtsf# <7o /fMt/fMfo religião vivida pelos pobres. Até hoje só temos
//ÁsTónco G<?ogrú/7co 22, 1859, 306-307). O tipologias acerca da assim chamada "religiosidade
mesmo se verifica hoje: no bairro da periferia do Recife popular" mas falta-nos um mergulho mais profundo e
chamado Alto do Pascoal (o tal do Pascoal foi fujão mais "compreensivo". Como diria Michel de Certeau, só
também) existem 17 Centros Espíritas, 56 terreiros de um diálogo cultural em toda a profundidade no nível dos
Xangô, 7 Assembléias de Deus, 5 Igrejas Batistas, 3 problemas existenciais pode fazer com que se
Igrejas Presbiterianas e apenas 2 igrejas (ou capelas) compreenda o significado dos significantes da religião
católicas. Pode-se dizer que os habitantes deste bairro dos "quilombolas" de nossos mundos suburbanos.
"não perderam de todo o reconhecimento da Igreja",
que eles "observam os documentos da fé que cabem na Eis o desafio desta Missa dos Quilombos: o de se situar
sua capacidade", mas que a religião mesmo é de raiz em profundidade diante da realidade negra deste país,
africana, mesmo sob a "lei dos crentes", como bem como disse Dom José Maria Pires no seu excelente
observou Émile Léonard no seu estudo acerca do sermão. Ou será que já é tarde demais e que o
protestantismo brasileiro ao falar do "caráter iluminista" catolicismo já não significa mais nada para as massas
(ou iluminado, entusiasmado) do protestantismo de cor negra senão um mero cenário, simplesmente uma
popular. Sob as três "leis" (a católica, a protestante, a plataforma de credibilidade junto à sociedade
espírita) tremula a chama da esperança africana, da estabelecida?
identidade quiiomboia. Os habitantes destes bairros
vivem uma religião na qual a "idéia de Deus é a luz que
Dfpo/Mf/Vro A questão racial:
pontos de vista.
Abgail Paschoa Alves de Souza Assistente Social
Presidente da Junta Governativa do tnstituto de
Pesquisa das Cuituras Negras

1. Os primeiros negros trazidos ao 2. Foi somente na última década que É muito difícil para os negros brasilei­
Brasii como escravos pertenciam a vá­ os negros brasileiros tiveram coragem ros passarem a pensar como negros —
rias etnias e eram oriundos de diversas de assumir o gostar da cor de sua pele, e é muito importante que o façam —
regiões africanas. Embarcado, geral- de admitir que havia alguma coisa de sem identificarem, de uma forma mui­
mente, através da Costa Noroeste, era extremamente belo na cor negra. to simplista, o opressor com "os bran­
o homem africano, antes de tudo, o Este despertar coincide e é influencia­ cos". À medida que caem em mais
perdedor de uma guerra em sua aideia do pelo ecoar no mundo do brado de este equívoco, estão afirmando a ideo­
interiorana. Vencido em sua terra, liberdade da África Negra. logia do opressor e adotando a postu­
aprisionado peio invasor, a chegada Até então o negro brasileiro trazia em ra escravista que, reduzindo a questão
destes homens às terras do Brasii, na­ sua cor o estigma do cativeiro de seu do poder e da dominação a critérios
da tem de heróico. Foram ievados pa­ povo. E a ideologia do dominador es­ raciais, determinou nos portos africa­
ra um porto e embarcados, junto com tava de tal forma impregnada em seu nos que os povos ali submetidos eram
outros homens, de outras nacionalida- pensar que identifica negritude com negros e portanto passíveis de serem
des que faiavam outra iíngua e prati­ escravidão. E mais, acredita que a cor escravizados, brutalizados e até cris­
cavam outras religiões. Em comum, de sua pele seja o elemento causal da tianizados...
tinham apenas a vioiência de que fo­ escravidão. Os grupos negros — e todos aqueles
ram vítimas. O horror da viagem, en­ Não é por acaso que os livros escola­ — que tentam entender a questão ra­
tretanto, os irmana e, à chegada, não res ensinam que os negros eram mais cial devem ter claro que à ideologia
existem mais iinguas ou Cajangas, ou "afeitos" à escravidão que os índios. racista de dominação e, somente a ela,
Acquaitunes, mas simpiesmente NE­ E os negros se envergonham por ser serve a valoração da cor da pele, em
GROS. "afeitos" à escravidão sem levar em qualquer análise sobre o relaciona­
É a trajetória destes negros sem nome, conta que homem algum escolhe ser mento entre os homens.
rebatizado de João, Maria, Benedito, escravo, mas alguns escolhem ser es­
Caiixto... que nós, seus descendentes, cravizados. Este equívoco levou o ne­
buscamos entender. gro e a totalidade dos brasileiros, seus 4. Os grupos negros são cada dia mais
É importante para nós, negros brasi­ irmãos, a coisificar mais uma vez o numerosos e, neste processo de orga­
leiros, apreender as formas de sobre­ escravo, negando-lhe seu passado de nização dos negros brasileiros, onde
vivência dos escravos, nossos avós. homem livre. Foram as duas lutas dos as questões fundamentais estão longe
Ao descobrir que força os sustentou, povos africanos, contra os regimes co­ de serem resolvidas, surge um risco sé­
submetidos ao horror do cativeiro, loniais que os submetiam, que trans­ rio a ser levado em consideração: as
coisificados na mão do opressor, va­ formaram, a nossos olhos, o negro num tentativas de cooptação de que são ví­
mos iograr encontrar o caminho da ser lutador, heróico e livre. E, o mais timas por parte do sistema de opres­
nossa própria identidade perdida. importante, deu condições para o res­ são.
Porque se escravo resistiu ao regime gate na memória dos brasileiros de O movimento negro, formado de vá­
desumano de trabaiho, às torturas seus heróis negros — Ganga Zumba, rios pequenos grupos, sem um contato
aviltantes, a ser possuido por um ou­ Zumbi e muitos outros, cujos nomes formal entre si, é representado ainda
tro homem, o negro perdeu o amor os seus opressores não foram capazes por um número muito pequeno de ho­
peia sua cor. E, por mais que os ne­ de apagar, e nem a condição de luta. mens e mulheres que buscam a sua
gros escravos lutassem contra a sub­ identidade étnica e lutam pelo resgate
missão totai, por mais que conseguis­ da memória histórica de sua gente, da
sem empurrar seus elementos culturais 3. É só, a partir deste despertar da importância de seus antepassados na
até os dias de hoje e, por mais que consciência negra, que alguns grupos formação do Brasil de hoje.
seus descendentes sejam a maioria do passam a repensar o negro no Brasil. A sua trajetória de volta ao homem
povo brasileiro — junto com o nome O movimento negro começa a desco­ livre africano, a revisão que tentam
foi-lhes arrancada a negritude. Fo­ brir que — na relação opressor/opri- fazer da historiografia brasileira, a co­
ram-lhe impostos os valores do opres­ mido — o oprimido algumas vezes é ragem com que falam sobre o precon­
sor: e a cabeça do Brasil é BRANCA. branco mas o opressor nunca é negro. ceito racial, antes negado pelos pró­
Esta colocação deixa de ser meramen­ prios negros, envergonhados de serem
te racial e a questão pode começar a vitimas, tudo isso, coloca estes negros
ser recolocada em termos políticos.
14
despertos numa posição de iiderança
frente à comunidade de que fazem
parte.
E são tantos os negros brasiieiros, são
Será o Brasil
tantos os descendentes de escravos que
hoje escapam do processo de bran­
queamento por que passou o povo
uma democracia racial?
brasileiro, que o pequeno grupo de Antônio Olímpio de Sant Ana Membro do MONEME (Movimento Negro da
militantes passa a despertar o interesse Pastor Metodista Igreja Metodista)
dos donos do poder. Secretário Executivo de Ação Comunitária da Um dos coordenadores do projeto Reiações
Igreja Metodista no Brasii Raciais no Protestantismo Brasileiro do ISER
Estes já não os podem fazer acreditar Membro da Pastoral Universitária do Instituto (Instituto Superior de Estudos da Religião. Rio
que um dia se tornarão brancos. Esses Metodista de Ensino Superior — SBC — SP de Janeiro).
não podem transformá-los em fenô­
menos individuais, novos Patrocínios
e Pelés.
É preciso, pois, apresá-los. É preciso Somos parte de uma sociedade em cri­ branco preconceituoso, dono do po­
transformá-los em cativos de uma no­ se permanente, onde a maioria domi­ der, e o negro oprimido e marginali­
va espécie. É necessário criar uma ca­ nante tem na exploração do trabalho zado.
tegoria especial de negros que sirvam alheio e na marginalização de segmen­
como porta-vozes do poder junto à tos sociais a fonte de sua riqueza e Procurando desenvolver este conceito
grande massa negra. poder, sociedade que procura silenciar de "democracia racial" no exterior, o
os oprimidos pela violência e opressão Brasil tem-se aproximado de países
em nome da "ordem e paz social" e africanos; tem criado órgãos afro-bra-
5. À medida em que as organizações pelo racismo disfarçado de "democra­ sileiros que possam facilitar e incre­
negras avançarem, o sistema de poder cia racial". Não há harmonia entre mentar as relações comerciais, cultu­
irá oferecer-lhes vantagens, irá conce- classes nem "democracia racial" nu­ rais e econômicas com a África (a
der-lhes espaços e recuará taticamen­ ma sociedade onde a maioria negra África é hoje uma das maiores opções
te. A consciência de que a luta pela tem o seu direito ao trabalho, ao salá­ comerciais do mundo); tem-se coloca­
liberdade é a grande herança que rece­ rio condigno e à segurança social ne­ do contra a África do Sul em sua polí­
bemos de nossos antepassados e que, gados pela força, sendo submetida a tica a favor do "apartheid"; tem ofe­
esta herança, poderá ser compartida cruéis condições de vida, confinada recido bolsas de estudos para estudan­
com todo o povo brasileiro, dará a nas favelas, alagados, cortiços, lixões, tes africanos nas universidades brasi­
nós, militantes negros, a legitimidade malocas, mocambos, humilhada pela leiras. Estas e outras atitudes do go­
de nossa luta. violência policial que objetiva intimi­ verno brasileiro, elogiáveis a nível de
A redenção daquele homem negro, li­ dar e destruir a resistência moral fren­ politica externa, não se refletem, con­
vre, de quem tiraram tudo e a quem te à opressão. tudo, nas relações interétnicas interna­
jogaram cativo nestas terras do Brasil mente. A realidade é outra. O povo
se dará no dia. em que a eterna sede de O mundo pensa que o Brasil é um pa­ brasileiro é racista, classista, e tem um
liberdade que nos legou, seja saciada raíso racial. Essa falsa idéia difundida acentuado preconceito de cor. Ao
por todos os brasileiros, seus filhos, pelos órgãos oficiais é uma tentativa contrário das informações oficiais, o
sem diferença de cor, credo ou raça. para esconder a realidade das relações negro é vítima de uma violência racial
interétnicas que acontecem entre o profunda, difundida e diversificada.
"O negro e Mróero e servd, tendo
nnscido do nudo. "
Reuter, sociólogo racista americano

"O negro e de^experodotnente óno-


ra/."
John Mecklin, sociólogo racista americano

"A /ufa da rapa hranca contra ax de­


mais é tnevdáve/ e e.sttrna/a o pro­
gresso. "
Herbert Spencer. sociólogo racista americano

Para mascarar a violência da qual o


negro é vitima, os ideólogos do siste­
Lourdes Grzybowski

ma criaram a imagem de um Brasil pa­


raíso multi-racial e há mecanismos para
manter esta imagem falsa. Ao mesmo
tempo em que violentam ao negro,
criam mecanismos para camuflar esta
violência. Criam certos mitos que são

15
repassados através de nossa literatura,
textos escolares, meios de comunica­
ção sociai, literatura de cordel onde o
negro aparece como sinônimo de dia­
bo. O esquema de desvalorização do
negro é tão perfeito que conseguiu pe­
netrar na mente das camadas sociais
onde se reflete através de uma série de
estereótipos que inferiorizam o negro
diante do branco. Além disso, estes
mitos objetivam repassar a falsa idéia
de uma sociedade onde não há racis­
mo, onde há a ausência de processos
aculturadores, de embranquecimento,

Lourdes Grzybowskt
onde há integração social. Todos estes
mitos são hoje usados como instru­
mentos de manipulação ideológica.
Estes mitos dificultam a percepção da
verdadeira realidade que o negro en­
frenta no Brasil.

Estamos vivendo em uma sociedade,


não só racista, mas também classista. "ÍAwa convc/âncõz ca/parfa parece /w- "O ãtvcMzvo //óera/ é o trapo orarcanfe
A Europa, homogênea racialmente, peaf;'r <yae ve cfevcMÓram ov wecaniv- ãe novva é/ivfóWa. 7?ev?rào, cvátenfe-
estabelece categorias econômicas se­ o?os /avtórárov e vocáav ?ae /evaraw o raenfe, ao avq/rato ãav cawaãav ão-
gundo suas posses: oprimidos e opres­ negro 6 ra.sv7e;ro a ve encontrar na v;'- oanantev... Rcnaaã/capõev popa/arev
sores na medida em que possuam ou faapão em qaa ve encontra... Evte /oraw veo:pre reprówá/av co/no óaaã/-
não dinheiro, fábricas ou terras. E o procevvo /nvtórico <7e evnraganrento tívoro, povfav à margem ãa /V;'vtór;'a,
espirito capitalista e imperialista dos vocta/, ca/tara/ e po/íttco expttca por crámafo-ve ãevta /orm a o mtto ãa ãe-
europeus levou-os a invadir o mundo <yae o negro ve encontra nov á/tãnov mocrac/a racáz/. " Prof? Dulce C.A.
conhecido da época, levando as suas patawarev rte ama vocfedacfe <yac e/e . Whitaker, UNESP, Araraquara, São Paulo
doutrinas religiosas, políticas e so­ não apenav q/actoa a convtratr, mav
ciais. O capitalismo europeu provoca ãa qaa/ /o t o granrte convtrator. " O negro é neutralizado como sujeito
inequivocamente a luta de classes, e o Clóvis Moura, sociólogo. São Pauio de sua própria História. A sua Histó­
negro, dentro do contexto de reação ria tem sido até hoje a História do
de todos os explorados e marginaliza­ A violência contra o negro é histórica. branco, contada à sua maneira, obje­
dos, reage por melhores salários, mo­ Ela se prolonga até à África, a Pátria- tivando legitimar interesses racistas.
radias adequadas à sobrevivência hu­ Mãe dos negros de todo o mundo. E, Como negros precisamos de uma His­
mana, escolas para todos e não so­ na medida em que a África se liberta tória pesquisada, interpretada e rela­
mente para um grupo de privilegia­ de seus opressores e se reestrutura, tada pelo próprio negro. História on­
dos. Não podemos, contudo, reduzir provoca no negro brasileiro o desejo de sejamos sujeitos e não objetos de
a exploração de que o negro é vítima a de redescobrir cada vez mais a sua ne­ análise. É preciso revelar a existência
uma dimensão somente econômica e gritude, a sua identidade, capacitan- de tantos negros que fizeram História
política de classe. Por outro lado não do-se assim para dinamizar a reação, e que a História branca escondeu.
podemos, também, isolar a domina­ que já é evidente, contra a ideologia
ção racial como um problema em si e de dominação que sustenta como O negro é neutralizado em sua inicia­
para si, à margem de toda considera­ "consequência natural" a inferiorida­ tiva para a libertação. Os mecanismos
ção estrutural, separando as lutas do de racial e cultural do negro e a "su­ de controle e dominação oficiais neu­
racismo das lutas populares. Pablo perioridade natural" do branco. O ne­ tralizam sua iniciativa através da per­
Richard, teólogo costarriquenho, afir­ gro, dizem os racistas, está em um es­ seguição sistemática aos seus mais di­
ma que em toda dominação de classes tágio evolutivo inferior cultural e ra­ nâmicos movimentos. Em 1930 cria­
há sempre uma segregação e discrimi­ cial, estando, portanto, incapacitado ram o mito da democracia racial e ao
nação racial. O opressor sempre con­ para participar como sujeito do pro­ mesmo tempo iniciou-se uma perse­
sidera o oprimido como raça inferior; cesso econômico, social e político. guição sistematizada e o fechamento
o pobre tem sempre outra cor. Não Permitem aos negros certas manifesta­ dos principais movimentos politicos
podemos, afirma ele, contrapor luta ções culturais e religiosas que na reali­ dos negros, desenvolvendo na mesma
racial e luta de classes, nem reduzi-las dade objetivam "manter o negro no ocasião uma intolerância etnocêntrica
uma à outra. A força da luta popular seu devido lugar". Os temas políticos contra as manifestações culturais e re­
de libertação está na combinação dia­ e culturais conscientizadores, bem co­ ligiosas, transformando-as em simples
lética de ambas, que se reforçam mu­ mo as instituições, não são aceitas co­ manifestações folclóricas. O negro é
tuamente no interior de um mesmo mo integrantes dinâmicas das demais violentado na sua cultura quando a vê
processo politico de libertação. instituições sociais e essa recusa pro­ transformada em simples passatempo
voca, consequentemente, o isolamento para as horas de lazer e curiosidade
que justifica o conceito de inferiori­ dos brancos. O mito da democracia
dade da cultura negra.
16
racial procura esconder a existência e sarjetas e bueiros fétidos, olheiros de VIOLÊNCIA POLICIAL
força de uma cultura negra, isto é, um ponto do jogo de bicho, lixeiros, guar­
sistema cultural simbólico com regras das de banco, carteiros, lavadores de A população negra tem sido vítima de
próprias, possuidoras de um caráter carros, lavradores. Há negros ricos? uma repressão policial violenta atra­
popular e erudito, em condições para Há. Existem negros exercendo profis­ vés da História. Desde os tempos da
responder pela identidade histórica do sões liberais? Existem. Contudo eles Colônia até aos nossos dias, a violên­
homem negro no Brasil. são exceções reduzidíssimas. O baixís­ cia policial procura manter o negro
simo salário que a grande maioria re­ submisso, impotente, medroso, "em
"y4s- vez/zze/zz.s estão no zz/zezzzzção zzzezz- cebe a obriga a residir nos guetos bra­ seu devido lugar". O mito da demo­
fzz/, no zzzz/zez*zzz/zyzzzo czr/trrrzr/. Os zzzo/- sileiros que são as favelas, os mocam­ cracia racial iguala a todas as pessoas
z/as r/e re/erêncz'a zzzzzzz, zrozzzo zza Á/z-z- bos, as malocas, os cortiços, os alaga­ e se o negro está desempregado, é por­
ca, são oczí/enrazs. /Vossos sáózos não dos, onde as pessoas vivem em péssi­ que é vagabundo; se reclama os seus
são reeon/zeezc/os ate ç a e reeehazn o mas condições de saúde e higiene, sem direitos, é subversivo; e, para os "va­
zzvzz/ z/zz Earo/za o a atos /Tstaãos Uzzz- transportes e escolas. Nestes locais os gabundos e subversivos", há todo um
ãos. O /zró/zrzo znoãe/o ate eznhranz/ae- negros e outros marginalizados per­ aparato policial pronto a agir em
czznento e azna sezyae/a ala co/ozzz'zzz- manecem sofrendo e resistindo, apren­ qualquer lugar, hora ou circunstância,
ção. v4 c a /ta ra hrasz/ezaa é azna szntese dendo sobre si mesmos, capacitando- como acontecia antes da "abolição da
a/e ea/taz*as, cozn tena/êncza m arcaa/a se através do próprio sofrimento e re­ escravatura", quando os quilombos
jcaz-a o hz*an?aeaznento. Va as razxes sistência a questionar os papéis e luga­ eram perseguidos e destruídos e de­
a[/z*z'eanas n ão são znazto /zrzvz/egzaatas res reservados para eles pela sociedade pois da "abolição", quando iniciaram
e zsso /zaaa zzzzzzz e eonse<yaénez'a z/zz co- branca opressora, pois esta prisão psi­ uma perseguição aos clubes recreati­
/onzzação." cológica e física os mantém em cons­ vos dos negros, às escolas de samba
Prot. Kabenguele Nunanga, Zaire tante desvantagem com relação às (hoje não perseguem tanto porque
conquistas sociais. elas rendem milhões de cruzeiros para
Os estereótipos representam, também, os brancos manipuladores da diversão
uma das maiores violências praticadas A Europa ocidental tem uma grande pública), aos terreiros de umbanda e
contra o negro no Brasil. Eis alguns: dívida para com a África e os negros candomblé, nas ruas e bares onde os
"serviço de preto", "negro de alma da diáspora. Ela tornou-se opulenta e negros se aglomeravam.
branca", "negro rico é branco", "ne­ poderosa, também, através da transfe­
gro, quando não faz na entrada faz na rência de riquezas africanas; ela tor- E as Igrejas? Como se têm colocado
saída", "negro que é negro, não mija nou-se desenvolvida e abastada atra­ diante do problema do negro?
fora do penico", "negro que se pre­ vés da exploração de milhões de ne­
za", "a situação está preta", "negro gros africanos e da diáspora. E nós, A grande maioria delas está simples­
metido a besta", "negro não vai para negros brasileiros, sabemos do sacri­ mente ausente. Não tomam nenhum
o céu nem que seja rezador, tem ca­ fício e dolorido sofrimento que tive­ conhecimento do drama que o negro
belo de espeto, que espetou Nosso Se­ mos nas lavouras e nas minas de ouro enfrenta diariam ente. Lamentavel­
nhor". para manter o luxo e a opulência das mente elas se tornam reforço ponderá­
cortes européias, principalmente as de vel da ideologia dominante. O conser­
A violência racial profunda, difundi­ Portugal e Inglaterra. vadorismo da maioria das Igrejas Pro­
da e diversificada, gerou em toda a testantes brasileiras tem concorrido
comunidade negra um outro elemento " O zY zcZsrzzo é zzzzzzz r/ zzzzczrsã o as?z*zz/zz- para a manutenção do status quo e o
altamente pernicioso para a sua sobre­ zYz/ z/o .s*z'.fZczzzzz czzpzZzz/AZzz,' zz/ézzz z/<? jcz* que é pior, para aprofundar os pre­
vivência: o medo psicológico. Essa zzzzzzz v z o / z z ç ã o z/o.s D z z e z t o i /Vzzzzzzzzzos <? conceitos de que o negro é vítima. Os
violência psiquica gerou no negro a Zzzzzzbézzz zzzzzzz zzzzzzzz/as/zzção cozzzztzzz*zz/ seus hinos racistas são um exemplo
vergonha de ser negro, levando-o a z/o ZZTgSZZZO SZVZCZZZZZ. " disso: expressões como "alvo mais
adotar, para poder sobreviver, os pró­ Pab)o Richard, teóiogo, Costa Rica que a neve", ou "negro como o peca­
prios valores preconceituosos de uma do", "o meu coração era preto..."
sociedade racista, facilitando assim o "C/VAB. tz*zz/zzz/úzzz/oz* zzegz*o z*eceóc o nada concorrem para ajudar o negro
seu controle, a sua desestruturação, a zzzezzoz*yzz/ãz*z'o.'brzzzzcoj, 72%, zzegz-os, na sua luta, ao contrário...
sua impotência e submissão, interiori­ 23%. De /oz/o.s ov szz/ãzw.s zto Azzís,
zaram no negro o papel básico de ser 72% /zczzzzz cozzz o.s ezzzpz*egzzz/o.s bz*zzzz- Há esperanças, contudo. Nem todas
mão-de-obra barata, com possibilida­ czM <?zze z*e/7z*ayezz?zzzzz 37% z/ov zzYzózz- as Igrejas têm-se calado. A Igreja Me­
des de realizar apenas trabalhos mais //zzzãoras. Os zzegz*oj t?tze z*ejpz*asezz?zzzzz todista acaba de criar a PASTORAL
simples e penosos. Mas, apesar desta 40% z/zz /bz-çzz zfe tzYzbzz/úo, /evzzzzz pztzvz DO NEGRO. A Igreja Católica acaba
interiorização maléfica, diabólica, os czz.szz vozzzezzZe 23% z/ov z*ezzr/z'zzzezztzM. de criar o GRUPO UNIÃO E CONS­
negros têm resistido heroicamente du­ /Vo czzzzz/zo, ozzz/e os OzYzzzcos são /zgez- CIÊNCIA NEGRA. Temas relaciona­
rante séculos, encontrando-se hoje an­ z*zzzzzezzte zzz/ez-zores zzos zzegz*os (4#,3%), dos com os negros têm sido alvo de
dando pelas ruas como bêbados, men­ 37% t/os szz/ãz*z'os /úes são z/esZz'zzzzz/os. diálogo nas igrejas locais e comuni­
digos, loucos (pela dureza da vida que A zzzaszzzzz z/zspzzz*zz/zzz/e zzcozztece zzos dades eclesiais de base. Tudo indica
são obrigados a viver), desemprega­ sez*vz'ços brzzçzzzs zzz*ózzzzo.s, ozzz/e os que teremos fortes aliados em nossa
dos; trabalhando como empregadas bz-zzzzcos (34%) gzzzz/zzzzzz zzzzzzs z/e z/ozs luta pela libertação apesar de toda a
domésticas, motoristas, trocadores de Zez-ços <7os szz/ãrzos, z/ezxzzzzz/o cozzz os violência praticada contra nós.
ônibus, vendendores ambulantes, zzcgz*os zz/zezzzzs 37%. EsZzz z/z/cz*czzçzz c
prostitutas, serventes, limpadores de cozzsZzzZzzz/zz czzz zoz/zzs zzs oczrpzzções. "
Pesquisa do IBASE para a CNBB

17
g/PAM//OJE " c ...

O <?Ke é T g o í o g t a C r t s ^ ã

Eu quero dirigir o tema: "Teoiogia Ecumênica num con­ diferentes perspectivas diriam a mesma coisa, eu posso
texto intercuiturai" examinando uma questão: "O que é apenas explicar a estrutura essencial da minha perspectiva
Teoiogia Cristã?". hermenêutica. Parece claro para mim que qualquer outra
coisa que nós possamos dizer sobre as Escrituras é que
Teoiogia é iinguagem sobre Deus. Teoiogia Crísó? é lin- primeiramente elas são a história do povo israelita que
guagem sobre a atividade iibertadora de Deus em nome acreditava que Javé estava envolvido na sua história. No
da iiberdade dos oprimidos. Velho Testamento a história começa com o primeiro êxo­
do dos escravos hebreus do Egito e continua através do
Quaiquer faia sobre Deus que faihe na liberação de Deus segundo êxodo da Babilônia. E com a reconstrução do
para os oprimidos, sua premissa não é cristã. Pode ser templo. Para ser preciso, há muitas maneiras de se olhar
fiiosófica e ter aiguma reiação com a Escritura, mas não esta história, mas a importância da mensagem bíblica é
é cristã. Pois a paiavra "cristã" conecta a teoiogia inse­ clara nesse ponto: a salvação de Deus é revelada na liber­
paravelmente à vontade de Deus de iibertar os cativos. tação dos escravos da servidão sócio-política. Verdadeira­
mente, o julgamento de Deus é infligido ao povo de Is­
Eu penso que essa compreensão da Teoiogia e Cristia­ rael, quando eles humilham os pobres e os órfãos. "Vo­
nismo não é a visão central da tradição teológica ociden­ cês não deverão maltratar a nenhuma viúva ou criança
tal e não é também o ponto de vista dominante da teo­ sem pais. Se vocês assim o fizerem, estejam certos de que
logia euro-americana contemporânea. Entretanto, a ver­ eu escutarei se eles a mim apelarem. Minha ira levantar-
dade não deve ser definida peia maioria ou peio interesse se-á e eu os matarei com a espada" (Êx 22. 23,24. Neb).
intelectual dominante dos academicistas da Universidade.
O propósito desse ensaio é examinar os pressupostos teo­ Claro que há outros temas no Velho Testamento e eles
lógicos que sublinham o clamor de que a teologia cristã é são importantes. Mas a sua importância é encontrada na
linguagem da libertação de Deus para as vítimas da opres­ iluminação do tema central da libertação divina. Falhar
são social e política. em ver esse ponto é entender mal o Velho Testamento e
conseqüentemente distorcer a sua mensagem.

1 Minha colocação de que a teologia cristã é linguagem Minha colocação de que a Escritura é a história da liber­
sobre a atividade libertadora de Deus para os pobres é tação dos pobres por Deus também se aplica ao Novo
baseada no fato de assumir que a Escritura é a primeira Testamento, onde a história é levada para dimensões uni­
fonte do discurso religioso. Usar a Escritura como pre­ versais. O Novo Testamento não invalida o Velho. O
missa da teologia não quer dizer dispensar outras fontes, significado de Jesus Cristo é encontrado na vontade de
tais quais a filosofia, a tradição e o nosso contexto con­ Deus de fazer da libertação, não uma simples proprie­
temporâneo. Simplesmente significa que a Escritura defi­ dade de um só povo, mas de toda a humanidade. Deus
nirá como essas fontes vão funcionar na teologia. tornou-se um pobre judeu em Israel e a partir daí identi­
ficou-se com os desamparados de Israel. A cruz de Jesus
Essa teologia cristã deve começar pelo fato de que a Es­ não é mais do que a vontade de Deus de estar com os
critura parece auto-evidente. Sem esse testemunho básico pobres e de ser como eles. A ressurreição significa que
o cristianismo não teria significado. Esse ponto parece Deus alcançou a vitória sobre a opressão, sendo que os
tão óbvio para mim que seria quase impossível pensar de pobres não mais têm de ser determinados pela sua pobre­
outra maneira. Entretanto, esse ponto precisa de escla­ za. Isto é verdade não somente para a "casa de Israel",
recimento. Há muitas perspectivas na Escritura. Há algu­ mas para os destroçados da terra. A encarnação então é
mas que a veem como infalível, e há outras que dizem simplesmente Deus tomando para a sua divina pessoa o
que ela é apenas um importante corpo de literatura. Há sofrimento e a humilhação humanas. A ressurreição é a
aproximadamente tantas perspectivas na teologia quanto divina vitória sobre o sofrimento, o dom da liberdade
há teólogos. Na medida em que não posso valorar a vali­ para todos os fracos e oprimidos. Isto e nada mais é a
dade da maioria dos pontos de vista, eu posso colocar o mensagem central da história bíblica.
que eu acredito ser a mensagem central da Escritura.
Se a teologia é derivada da história divina, então deve ser
Eu acredito que a minha perspectiva sobre a Escritura é linguagem sobre libertação. Qualquer outra coisa seria
derivada da própria Escritura. Desde que outros, com uma distorção ideológica da mensagem do Evangelho.

18
Aqui, então, está o meu primeiro ponto sobre o contexto Porque a teologia deve relacionar a mensagem com a
ecumênico da teoiogia. A Escritura deve ser a premissa situação do envolvimento da Igreja no mundo, a Teolo­
primária para discussão e diàiogo. Sejam quais forem as gia deve usar outras fontes em adição à Escritura. Nesse
diferenças entre os povos, há um ponto em comum para ponto, Bultmann e Tillich são mais apropriados que
todos os cristãos o qual é encontrado no ciamor absoluto Barth, embora, eles deturpassem a função da cultura na
de que o Deus bíblico está com eles. Ser cristão é acredi­ teologia. Distintamente de Barth, meu desacordo com
tar que o Deus da Escritura é o Deus de toda huma­ Bultmann e Tillich não está em se a teologia deveria usar
nidade. a cultura (filosofia, sociologia e psicologia) na interpreta­
ção do Evangelho.
2 Porque a teologia cristã começa e termina com a histó­ Que a nossa linguagem sobre Deus está inseparavelmente
ria bíblica da libertação de Deus para os fracos, ela é ligada à nossa própria historicidade parece tão óbvio que
também linguagem cristológica. Neste ponto Karl Barth negá-la é tornar-se escravizado pela nossa própria ideo­
estava certo. Lamentavelmente Barth não explicou esse logia.
ponto cristológico com a devida clareza, porque sua teo­
logia estava demasiadamente determinada pela tradição Não obstante Karl Barth afirmar que a premissa da teolo­
teológica de Agostinho e Calvino e muito pouco pela gia natural está morta, pelo menos, na medida em que
Escritura. Enquanto a premissa teológica de Barth o ca­ nossa linguagem não é simplesmente sobre Deus, e tão-
pacitava para chegar mais perto da mensagem bíblica do somente isso, bem que podíamos desejar que falasse de
que os seus contemporâneos, o seu entendimento de teo­ outra forma. Isso quer dizer que a teologia não pode
logia não era derivado da visão bíblica de Jesus o liber­ evitar a filosofia e outras perspectivas no mundo. A pre­
tador dos oprimidos. Porque Jesus o libertador não é o missa, então, não é se nós podemos ou devemos evitar
centro da cristologia de Barth, sua visão da teologia é falar da cultura humana no ato de fazer teologia. A ques­
também defeituosa neste ponto. Porque a teologia co­ tão é mais se a revelação divina na escritura nos garante a
meça com a Escritura, ela precisa começar também com possibilidade de dizermos alguma coisa sobre Deus que
Cristo. A teologia cristã é linguagem sobre o Cristo cruci­ não seja simplesmente sobre nós mesmos. A menos que
ficado e levantado, que garante liberdade para todos os essa possibilidade seja dada, mesmo que pouco seja, en­
que são falsamente condenados numa sociedade opres­ tão parece não haver nenhuma razão para falarmos na
siva. Que outra coisa pode a crucificação significar, exce­ distinção entre teologia branca e teologia negra ou a dife­
to que Deus, o Santo de Israel, se tornasse identificado rença entre falsidade e verdade.
com as vítimas da opressão? Que outra coisa pode a
ressurreição significar a não ser que a vitória de Deus em Eu creio que enfocando a Escritura, é garantida a liber­
Cristo é a vitória das pessoas pobres sobre a pobreza? Se dade à teologia de tomar seriamente a situação social e
a teologia não tomar isso seriamente, como pode o nome política sem ela ser determinada por isso. Consequente­
de cristão ter algum valor? Se a Igreja, a comunidade da mente, a questão não é se nós tomamos a sério nossa
qual surge a teologia, não faz da libertação de Deus para existência social mas, cowo e de <?ue /waneira nós toma­
os oprimidos, o centro de sua missão e proclamação, mos isso seriamente. Que situação social representa a
como pode ela descansar em paz tendo um criminoso nossa teologia? De quem nós falamos? A importância da
condenado como o símbolo dominante da sua mensa­ Escritura na nossa teologia está em que ela pode ajudar-
gem? nos a responder àquela questão de como representar o
interesse público daqueles a respeito dos quais o cristia­
Para a teologia ecumênica dentro de um contexto inter- nismo fala. Através do uso da Escritura, nós somos for­
cultural, nós poderíamos dizer que todas as teologias cris­ çados por ela própria a enfocar a nossa existência social,
tãs não somente começam com a Escritura, elas também mas não meramente em termos de nossos próprios inte­
começam com o testemunho bíblico de Cristo. Ao invés resses, embora estes estejam sempre envolvidos. A Escri­
de nos separar, Cristo nos traz juntos desde diferentes tura pode libertar a teologia para ser cristã na situação
contextos culturais e, a partir daí, nos presenteia a todos contemporânea. Ela pode tirar os teólogos das suas ideo­
com a identidade da liberdade que é afirmada ou negada logias sociais e capacitá-los a escutar a palavra que não
de acordo com o nosso compromisso com a libertação de seja outra senão a sua própria consciência.
todos.
Essa "outra" em teologia é distinta mas nunca separada
da nossa existência social. Deus tornou-se humano em
3 Porque a teologia cristã é mais do que o recontar da Cristo de maneira que nós somos livres para falar sobre
história bíblica, ela também tem de fazer mais do que a Deus em termos de humanidade. Verdadeiramente qual­
exegese da Escritura. O significado da Escritura não é quer outra fala não é sobre o Senhor crucificado e levan­
auto-evidente em toda situação. Por isso mesmo, é fun­ tado. A presença do Senhor crucificado e levantado co­
ção da teologia relacionar a mensagem da Bíblia a cada mo testemunhada nas Escrituras determina quais interes­
situação. Não é uma tarefa fácil na medida em que as ses sociais nós devemos representar e a nossa proposta é a
situações são diferentes e a Palavra de Deus para a huma­ de sermos fiéis a Ele.
nidade não é sempre auto-evidente.
No intento de fazer teologia à luz do testemunho da Es­
critura em relação ao Cristo crucificado e levantado co-
19
mo eie é encontrado dentro da nossa situação contempo­ essa possibiiidade. Quando os oprimidos estão inciinados
rânea, eu tenho faiado de teoiogia cristã como teoiogia a usar sua posição como um priviiégio, como uma imuni­
negra. Logicamente há outras maneiras de faiar de Deus dade para o erro, eies fazem bem em iembrar que o teste­
que também são cristãs. Eu nunca neguei isso, e não munho da justiça divina na Escritura não tem nada a ver
desejo negar hoje. A teoiogia cristã pode ser escrita a com aiguma coisa que seja humana. Nesse ponto Kari
partir das perspectivas dos povos vermeiho, marrom e Barth estava certo. Há uma infinita distinção quaiitativa
amareio. Eia também pode ser escrita à iuz da experiên­ entre Deus e Humanidade. Quando eu iimito a teoiogia
cia feminina no Japão. Eu fiquei impressionado peia ma­ cristã à comunidade oprimida, minha intenção é a de
neira como os cristãos coreanos estão escutando a paia- dizer nada mais do que aquiio que acredito ser a mensa­
vra da divina iibertação dentro de uma cuitura japonesa gem centrai da Escritura. Deus escoiheu mostrar a justiça
opressora. A teoiogia cristã também pode ser escrita a divina através da iibertação dos pobres. A partir daí estar
partir de uma perspectiva de ciasse como tem sido pro­ fora dessa comunidade é estar num iugar onde se está
fundamente coiocada nos escritos dos teóiogos da iiber­ exciuido da possibiiidade de escutar e obedecer à paiavra
tação iatino-americanos. É também possívei combinar as de iibertação de Deus. Através do fato de ter-se tornado
premissas de ciasse, sexo e cor como foi recentemente pobre e ter confiado a reveiação divina ao carpinteiro de
mostrada no trabaiho de Letty Russei: "Libertação hu­ Nazaré, Deus deixa ciaro o iugar onde se tem que estar
mana numa perspectiva feminista". As possibilidades são para se escutar a paiavra divina e experimentar a presen­
muitas e variadas. Não há uma teoiogia cristã, mas mui­ ça divina. Se Jesus houvesse nascido na corte do rei e
tas teoiogias cristãs que são expressões váiidas do Evan- tivesse sido o conseiheiro do imperador de Roma, o que
geiho de Jesus. eu estou dizendo não teria vaiidade. Se Jesus não tivesse
feito distinção entre rico e pobre, entre o fraco e o forte,
Mas o que não é possívei é fazer teoiogia cristã separada então o Evangeiho cristão não teria a paiavra de iiberta­
do ciamor bibiico de que Deus veio em Cristo para coio- ção para os oprimidos. Se Jesus não tivesse sido crucifi­
car os cativos em iiberdade. Não é possivei fazer teoiogia cado como um criminoso de Roma e condenado como
cristã como se os pobres não existissem. Verdadeiramente um biasfemador peios iíderes reiigiosos judeus, então o
não pode haver nenhum discurso cristão sobre Deus que meu ciamor sobre teoiogia cristã e sobre os oprimidos
não represente o interesse das vitimas da nossa sociedade. não teria sentido. É apenas porque a Escritura é tão deci­
Se nós apenas fizéssemos com que esse ponto fosse incor­ sivamente ciara a respeito desse ponto que eu insisto em
poração da nossa identidade cristã, então nós teríamos que a teologia não pode separar-se da história cuiturai
percorrido um iongo caminho desde os dias de Cons- dos oprimidos, se eia pretende ser fiei àqueie que faz a
tantino. iinguagem cristã possívei.

Lima teoiogia ecumênica num contexto intercuiturai não O que então temos a dizer sobre essas outras também
simpiesmente começa com a Bíbiia e Cristo, mas da ma­ chamadas teoiogias cristãs? Na medida em que eias fa-
neira como o Cristo bibiico é encontrado entre os pobres iham em permanecer fiéis à mensagem centrai do Evange­
e fracos de todas as cuituras. Quando a teoiogia começa iho, eias são heréticas. Em dizendo isso, eu não pretendo
com o testemunho bibiico em Cristo, eia é forçada peio sugerir que possuo a verdade totai e nada aiém da ver­
próprio Cristo a iocaiizar a identidade da teoiogia cristã dade. De fato eu é que poderia ser o herético. Aiém do
no contexto cuiturai das vítimas. Isso nos ieva ao pró­ mais, eu não acredito que o propósito de identificar a
ximo ponto. heresia esteja em capacitar a identificação dos bons e dos
maus, ou diferenciar a verdade infaiivei do erro. Eu me­
ramente pretendo dizer o que eu acredito ser fiei ao Evan­
4 Porque a teoiogia cristã é iinguagem de Deus para a geiho de Jesus, assim como está testemunhado na Escri­
iibertação dos fracos como assim é definido peia Escri­ tura, nada mais e nada menos. Se não dissermos em que
tura em reiação a nossa situação contemporânea, a teoio­ acreditamos, em amor, e fé, e esperança, se não estiver­
gia cristã é inseparaveimente conectada com a comuni­ mos faiando e praticando a verdade, então para que fa­
dade oprimida. Se Deus é o Deus dos pobres, aqueie que iarmos? Se não há diferença entre verdade e erro, Evan­
os está iibertando da escravidão, como podemos faiar geiho e heresia, então não há meios para se dizer o que a
constantemente sobre este Deus, de outra forma, a não teoiogia cristã é. Nós temos que ser capazes de dizer
ser que nossa iinguagem seja ievantada a partir da comu­ quando a iinguagem não é cristã, se não sempre, peio
nidade onde Deus é encontrado? Se a teoiogia cristã é a menos às vezes.
iinguagem sobre o crucificado e ievantado, aqueie que
eiegeu a todos para a iiberdade, que outra iinguagem Eu devo dizer que a teoiogia americana branca é heresia
pode ser eia, a não ser a iinguagem daqueies que estão não peio fato de querer queimar ninguém no cadafaiso.
iutando peia iiberdade? A identificação da heresia não é para o propósito de
tomar medidas drásticas sobre quem deve viver ou mor­
Minha iimitação de teoiogia cristã para a comunidade rer, ou quem será saivo ou condenado. Saber o que here­
oprimida não significa que tudo que os oprimidos faiam sia é, é saber o que parece ser verdadeiro, mas que na
sobre Deus seja porque eies sejam fracos e desampara­ verdade é faiso. A partir disso é peia própria causa da
dos. Fazer isso seria iguaiar a paiavra dos oprimidos à verdade do Evangeiho que nós devemos coiocar o que
paiavra de Deus. Não há nada na Escritura que garanta não é verdade.

20
Dizer o que a verdade é está intimamente iigado com o
praticar a verdade. Saber a verdade é praticar a verdade.
Faiar e fazer estão juntos, daí o que dissermos pode ape­
nas ser autenticado por aquiio que fizermos. Lamentavel­
mente, a igreja ocidentai não tem sido sempre ciara a
esse respeito. Seu erro tem constantemente sido a identi­
ficação da heresia mais em reiação à paiavra do que em
reiação à ação. Ao faihar na expiicação da conexão entre
a paiavra e a ação, a Igreja tendeu a identificar o Evan-
geiho com o discurso da direita e conseqüentemente tor-
nou-se chefe dos heréticos. A Igreja tornou-se tão preo­
cupada com a sua própria paiavra faiada sobre Deus que
faihou em escutar e conseqüentemente em viver de acor­
do com a paiavra de Deus para a liberdade dos pobres.
De Agostinho a Schieiermacher, é dificii encontrar um
teóiogo na Igreja ocidental que defina o Evangeiho em
termos de iibertação de Deus para os oprimidos.

O mesmo é verdade em muitos dos discursos contempo­


râneos sobre Deus. Isso pode ser visto na separação da
teologia da ética e na faita de iibertação em ambos. O
erro base da teoiogia contemporânea não é simpiesmente
encontrado no que eia diz a respeito de Deus, embora
isso também não esteja exciuído. Eie é encontrado na sua
separação entre teoria e praxis, e na faita do ponto de
vista iibertador na sua anáiise do Evangeiho.

5 A iimitação da teoiogia cristã em reiação à comunidade


oprimida não apenas nos ajuda a identificar a heresia,

Sidney Waismann
mas também nos ajuda a reexaminar as fontes do discur­
so teoiógico. A iinguagem da iibertação deve refietir as
experiências do povo sobre quem nós queremos faiar.
Dizer que determinado discurso é teoiogia da iibertação
não significa que eia represente os oprimidos.

Há muitas teoiogias da iibertação e nem todas represen­ ria com a maioria dos papéis apresentados nas sociedades
tam os fracos e desfavorecidos. A diferença entre teoio­ bíbiica e teoiógica. Nem se pareceria com "teoiogia pro­
gia da iibertação em gerai e teoiogia da iibertação dentro cesso", "teoiogia iiberai", "teoiogia da morte de Deus".
de uma perspectiva cristã é encontrada na iinguagem so­ E uma porção de outros adjetivos usados peios universi­
bre iiberdade se é derivada da participação na iuta dos tários para descrever seus esforços inteiectuais.
oprimidos. Se a iinguagem sobre iiberdade é derivada do
envoivimento na iuta dos oprimidos peia iiberdade, então Meu próprio trabaiho construtivo em teoiogia tem focaii-
eia é definitivamente uma iinguagem cristã. Eia é uma zado o contexto cuiturai da comunidade negra na Amé­
iinguagem que é computada ao Deus encontrado na co­ rica do Norte. Eu tinha que começar meus esforços teo-
munidade oprimida, e não a aigum Deus abstrato dentro iógicos aqui, porque nasci na comunidade negra. Eu ti­
de um livro teórico. Dizer que determinada teoiogia re­ nha que perguntar: o que tem a ver o Evangeiho de Jesus
presenta os pobres significa que a representação reflete as com os negros fracos e desfavorecidos que estão iutando
paiavras e os atos dos pobres. O teóiogo começa a faiar contra o racismo branco? Quando eu coioquei essa ques­
como os pobres, a orar como os pobres e a pregar com tão, eu cheguei à conclusão de que a teoiogia derivava
os pobres em mente. Ao invés de fazer de Barth, Tiiiich e das lamentações e dos gritos dos negros oprimidos que
Pannrubere a fonte exciusiva para se fazer teoiogia, o mostram um consenso bem diferente dos probiemas do
verdadeiro teóiogo da iibertação é compeiido a escutar os que aqueles apresentados nos iivros de teoiogia teórica
choros e as iamentações do povo que canta "eu queria dos brancos. Ao invés de perguntar se a Bibiia é infaiívei,
saber como é ser iivre, eu desejaria quebrar todas as cor­ o povo negro quer saber se eia é reai, isto é, se o Deus
rentes que me prendem". cujo testemunho eia sustenta está presente na sua iuta. A
teologia negra procura investigar o sentido que tem a
O que seria a teoiogia se nós ievássemos a sério a coioca- confiança do povo negro na proposta bibiica de que Je­
ção de que teoiogia cristã é o discurso dos pobres, sobre sus é o caminho, a verdade e a vida. A teoiogia negra é a
suas esperanças e sonhos de que um dia "os probiemas consciência do povo anaiisando o significado de sua fé
não mais existirão?" Uma coisa é certa: eia não parece­ quando eies têm de viver numa situação extrema de sofri-

21
disco no meio do disco", de "A rosa de Sharon" e de
"O Senhor da vida". O povo negro proclama que ele
curou os enfermos, deu vista aos cegos e capacitou os
inválidos para andar. "Jesus", eles dizem, "faz de tudo".

6 A presença de Jesus como ponto de partida da teologia


negra não significa que ela passe por cima da experiência
de sofrimento na vida negra. Toda a teologia que leva a
sério a libertação deve também levar a sério a presença
contínua de sofrimento na vida negra. Como podemos
clamar que "Deus vai acertar as coisas" para os pobres
quando os pobres ainda vivem em pobreza?

Os "blues", folclores e outras expressões seculares são a


constante memória de que uma visão simplista da liberta­
ção divina não é nunca adequada para o povo na sua luta
contra a opressão. A religião negra nunca foi silenciosa
em relação ao tema do sofrimento. Verdadeiramente a fé
negra surgiu da experiência de sofrimento do povo negro.
Sem o quebrantamento na existência negra, sem sua dor e
sua tristeza, não haveria nenhuma razão para a existência
da fé negra:

/V/ngMê/H SHÓe t/o.s tr/Ó M /açõa? v/


/V/ngMêfM s a ó e ã # m /n /ta fr E /e z a
/V;'ngMê?H SYZ^e ã a s r r /ó a /a ç õ e s <yae c a v/
G/óWa, A/e/a/a/

O "Glória e Aleluia" no final desse cântico não foi uma


SidnevWaismann

negação da tribulação mas a afirmação de fé que a tribu­


lação não tem a última palavra para a experiência negra.
Isso significa que o mal e o sofrimento enquanto ainda
inquestionavelmente presentes, não podem contar decisi­
vamente contra a fé do povo em que Jesus está também
presente com eles, lutando contra as tribulações. Sua di­
vina presença conta mais do que a dor que o povo experi­
mento. Como pode a teologia negra permanecer fiel ao menta na sua história. Jesus é para o povo "a balada na
povo e ao Deus revelado na sua luta, se ela não respeita a terra dos exaustos" e o seu "abrigo em tempos de tem­
conceituação do povo de que "Deus fará o caminho de pestade". Não importa quão difíceis as penas da vida
nenhum caminho". Ele realmente acredita que: possam se tornar, elas não podem destruir a confiança do
povo em que a vitória sobre o sofrimento já foi ganha na
QMont/o você astó ooV&M/ar/o, ressurreição de Jesus. Dai o povo canta:
So^roca/ vcgocfo r/e cnzênctoj,
E não soòe o r/Me /ãzcr, vezes aóahro o ccóepa e c/:oro
/Vão temo CH7 c/zoHtor pe/o HOHtc ãc/c Mas VasH.s enxrMgcrá /netís o//tos gne cEoraw.
c e/e occrtorã ^ coEoj poro você.
Logicamente não há evidência de que o clamor da fé do
A teologia derivada da experiência negra deve refletir o povo negro seja "objetivamente" ou "cientificamente"
ritmo e o espírito, a paixão e o êxtase, a alegria e a verdadeira. Consequentemente quando William Jones,
tristeza de um povo na sua luta para libertar-se das garras um critico negro da teologia cristã, pergunta se a liberta­
da opressão. Essa teologia deve ser negra porque o povo ção é o evento decisivo na história negra, ele está pondo a
é negro. Ela deve lidar com a libertação porque o povo é questão de um ponto de vista que é exterior à fé negra
oprimido. Ela deve ser bíblica porque o povo clama pelo (1). Porque a fé negra afirma que Jesus é a única evidên­
Deus do Êxodo e dos Profetas, de Jesus e do Apóstolo cia que alguém precisa ter a fim de estar seguro de que
Paulo que está envolvido na sua história, libertando-os Deus não abandonou os pequeninos na servidão. Para os
da servidão. A teologia derivada das fontes negras teria que estão fora dessa fé, tal clamor é um escândalo, ele é
de focalizar em Jesus Cristo como o começo e o fim da
fé, porque essa afirmação é o sumário do testemunho (t) Veja Wiiliam Jones. "É Deus um racista branco?" (Nova York.
negro que "Jesus me pegou, me transformou, e colocou Douhieday. t973). Para uma crítica mais compieta de Jones. veja o meu
meus pés em chão sólido". Ele é às vezes chamado de "O "Deus dos oprimidos" (Nova York. Seabury Press. 1975 — Cap. VHÍ).

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uma idiotice para aqueles cuja sabedoria é derivada da fé negra, ela não vai se importar muito com as contra­
história intelectual européia. "Mas para aqueles que são dições lógicas das suas colocações quando elas são com­
chamados... Cristo (é) o poder de Deus, e a sabedoria de paradas com a filosofia branca ocidental. Apesar do hu­
Deus (1 Co 1.24). Na religião negra, Cristo é o alfa e o manismo de William Jones, alguns de nós negros ainda
ômega, aquele que veio para fazer dos primeiros os últi­ acreditamos que:
mos e dos últimos os primeiros. O conhecimento dessa
verdade não é encontrado na filosofia, sociologia ou psi­ Sem Deas ea aão poáer/a /azer aaâa,
cologia. Ela é encontrada na presença imediata de Jesus Sem Dea.s mm/:a váfa /a/úar/a
com o povo, "restaurando-os onde se acham destruídos e Sem Dea.s mm/:a v/t/a veria dara
levantando-os em cada queda". A evidência de que Jesus /tvvim como am navio sem navegar.
os está libertando da servidão é encontrada no seu cami­
nhar e falar com Ele, contando a Ele as suas tribulações. Note a falta de ceticismo filosófico no próximo verso:
Ela é encontrada na força e na coragem que Ele coloca
no povo quando eles lutam para humanizar o seu desen­ Sem ama dá vida, eie é mea Sa/vador
volvimento. Sim mináa /orça ao /onge do mea camináo
Sim em ágaas /mq/andav, e/e é mini:a âncora
Essas respostas podem não satisfazer o problema (da) E através da /e e/e me protegera darante todo o mea
teodicéia como foi definido por Sartre e Camus. Mas as camináo.
colocações da fé negra nunca pretenderam ser respostas
para os problemas intelectuais nascidos de uma experiên­ É justamente porque o povo negro se sente seguro "em
cia cultural diferente. Elas são reflexões negras sobre a encostar-se e depender de Jesus" que eles freqüentemente
vida e pretendem ser testemunhos para os oprimidos, pa­ levantam suas vozes em louvor e adoração, cantando:
ra que eles não desanimem no desespero. Elas não são "Obrigado Jesus, eu lhe agradeço Senhor, porque você
argumentos racionais. Consequentemente a verdade des­ me trouxe um longo caminho poderoso. Você tem sido
ses clamores não é encontrada no fato da perspectiva da meu médico, tem sido meu advogado e tem sido meu
fé negra ser uma resposta para o problema da teodicéia amigo. Você tem sido o meu tudo". O povo de maneira
colocado na "praga" de Camus ou no "ser e o nada" de total crê que com a presença de Jesus eles não podem
Sartre. A verdade do clamor da fé negra é encontrada no perder. A vitória sobre a opressão e o sofrimento é certa.
fato do povo receber aquela força extra para lutar até Se não agora, então nos "bons tempos" de Deus", "um
que a liberdade venha. Sua verdade é encontrada no fato dia tudo passará". Nós vamos "atravessar o Jordão" e
de que sendo o povo vítima da filosofia e da teologia "sentar-nos-emos com o Pai e conversaremos com o Fi­
branca sejam levados a lutar para fazer existir a liber­ lho" e "contaremos a eles sobre o mundo do qual vie­
dade da qual eles falam. O mesmo é verdade em relação à mos". Daí, que a luta do povo negro pela liberdade não é
teologia e à filosofia negras que procuram falar em nome em vão. Isso é o que o povo negro quer dizer quando eles
do povo. Se William Jones está certo ou se minha análise cantam: "Estou tão feliz porque as tribulações não per­
está correta, não deveria ser decidido através de um cri­ manecem sempre". Porque a tribulação não tem a última
tério teórico decorrente da filosofia e da teologia ociden­ palavra, nós podemos lutar agora para realizar em nosso
tais. Teoria pura é para aqueles que têm tempo disponível presente aquilo que sabemos estar vindo no futuro de
para o prazer da reflexão, mas não para aqueles que são Deus.
as vítimas da terra. A verdade, portanto, da nossa análise
teológica deve ser decidida pela função histórica das nos­ Quando o povo oprimido tomar consciência de que eles
sas colocações para a comunidade a qual nós afirmamos se tornaram pobres pelos opressores, então eles podem
representar. Qual a análise que leva a praxis histórica lutar contra tais condições, sabendo que Deus está lutan­
contra a opressão? Eu argumentaria que o humanismo do com eles. E é esse grito de liberdade, fundamentado
negro, assim como foi articulado por William Jones, não em Cristo, que estabelece nossa identidade como cristãos
leva o povo a lutar contra a opressão, mas ao contrário, e nos capacita a nos comunicarmos entre nós mesmo que
leva-os a desistir no desespero, no sentimento de que seja entrecortando diferentes linhas culturais.
pouco eu posso fazer contra o poder branco. Mas minha
análise da fé negra, com Jesus como "o capitão do velho
navio de Sion" pode levar o povo a acreditar que a sua
luta não é em vão. Foi por isso que Martin Luther King O Dr. James Cone é teólogo da Igreja Metodista Primitiva (Igreja negra)
e professor de Teologia Sistemática no Union Theoiogicai Seminary de
Jr. pôde mover o povo para lutar por justiça. Ele tinha o Nova York aiém de membro da Ass. Teoi. do 3? Mundo. Autor de vários
sonho de que estava ligado a Jesus. Sem Jesus, o povo iivros (entre os quais Biack Theology and Biack Power. The God of the
teria permanecido passivo e satisfeito com a humilhação Oppressed), é hoje um dos teóiogos exponencias da chamada Teoiogia
e o sofrimento. Quando eu me volto para a análise filo­ Negra nos Estados Unidos, pais onde o movimento de defesa e
emancipação da raça negra consolidou-se como força social imporatnte
sófica ocidental da metafísica e da ontologia, eu não sei nos últimos 30 anos. Sua visão do Evangelho e da tarefa da Teologia
se King estava certo, isto se o direito é definido pelo parte de sua situação concreta de membro da comunidade negra
racionalismo americano branco. Mas no contexto da fé norte-americana, vítima secuiar do racismo branco, presente e atuante
nessa sociedade.
da religião negra, King estava certo, porque o povo foi
levado a atuar de acordo com a fé que eles professavam. Tradução
Se a teologia negra existe para ser a teologia da e para a Pauio Cc/ar Veira da Costa

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Ü Í 7 7 /M /3
P/ÍG/AM
D. Hétder Câmara
Mar/ama, /Vossa Sendora,
Mãe de Cr/sVo e Mãe dos Tfomens/
Mar/ama, Mãe dos Comens de /odas a.s ra^as,
de rodas as Cores, de /odos os can/os da Terra.
Pede ao /ea Pddo <?ae es/a /es/a não /erm/ne aça/,
a mareia /m a/ va/ ser dnda de v/ver.
Mas é /mpor/an/e, Mar/ama, <yae a /gre/a de /ea T7/do
não //pae em pa/avra, não //^ae em ap/aaso.
O /mpor/an/e é r/ae a C/VBR, a Con/erênc/a dos R/spos,
emdar<yae de cde/o na caasa dos negros,
como en/roa de cde/o na Pas/ora/ da Terra e na Pas/ora/ dos /nd/os.
/Vão das/a ped/r perdão pe/os erros de on/em.
É prec/so acer/ar o passo do/e sem //gar ao <yae d/sserem.
C/aro í/ae d/rão, Mar/ama, <?ae é po////ca, sadversão, çae e coman/smo.
P, Pvange/do de Cr/s/o, Mar/ama.
Mar/ama, Mãe <?aer/da, prod/ema de negro,
acada se //gando com /odos os grandes prod/emas damanos.
Com /odos os adsardos contra a /mman/dade,
com /odas as /nyas//(as e opressões.
Mar/ama, <yae se acade, mas se acade mesmo a ma/dda /zdr/ca^ão de armas.
O mando prec/sa /adr/car é Pa?.
Ras/a de /n/as/z/a, de ans sem sader o pae /a?er com /an/a /erra
e mddões sem am pa/mo de /erra onde morar.
Ras/a de ans /endo de vomáar pra poder comer ma/s
e c/n^ãen/a mddõès morrendo de /om e nam ano sõ.
Ras/a de ans com empresas se derramando pe/o mando /odo
e mddões sem am can/o onde gandar o pão de cada d/a.
Mar/ama, /Vossa Sen/iora, Mãe <?aer/da,
nem prec/sa /r /ão /onge como no /ea /ano.
Nem prec/sa <?ae os r/cos sa/am de mãos va?/as
e os podres de mãos cde/as.
/Ve/n podre nem r/co.
/Vada de escravo de do/e ser sendor de escravos amandã.
Ras/a de escravos.
Cm mando sem sendor e sem escravos.
Cm mando de /rmãos.
De /rmãos não sõ de nome e de men/Zra.
De /rmãos de verdade, M /lPM M rl.

^ I
.<á
A QUEM NOS LÊ.

É lugar comum falarmos de crises, uma constante de todos no Brasil de


hoje. Também estamos sendo atingidos.

A periodicidade do Presenpa não pôde ser mantida da maneira como


desejávamos. Entretanto não queremos deixar quem nos lê em falta.

Remeteremos sempre, nos próximos meses, alguma publicação nossa, até


completarmos, pelo menos, doze remessas neste ano. Enviaremos, ora
Presença, ora Cadernos, ora Aconteceu Especial, porém não vamos deixar
os que nos apoiam sem algo de nossas publicações.

Um novo e mais amplo projeto para nossas publicações está em andamento


e teremos a alegria de brevemente informarmos.

O apoio e compreensão de quantos nos leem, se mantido, apesar das falhas,


hão de permitir-nos superar a crise.

Agradecidos por toda atenção.

CEDI
Centro Ecumênico de Documentação e Informação

Rio de Janeiro, maio de 1982

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