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ENSINAMENTOS ÚTEIS DOS MANUAIS CÓDIGO DO


BOM-TOM E ADOREMUS (CAICÓ-RN, SÉCULO XVIII E XIX).

Franselma Fernandes de Figueirêdo


Universidade Federal do Rio Grande do Norte

RESUMO

Na Capitania do Rio Grande, a exemplo das demais capitanias de domínio português, destacou-se o
predomínio da cultura oral sob a cultura escrita, o que favoreceu a transmissão de saberes elementares
do ler, falar, rezar e contar, para depois aprender a escrever. No começo da povoação da atual cidade
de Caicó, por volta de 1700, na incapacidade do Estado Português em conceber para seus domínios
lusitanos uma política escolar, o que somente aconteceu na colônia brasileira com a Lei de 6 de
novembro de 1772, a “educação doméstica” foi o “modelo pedagógico,” digamos assim, mais
propagado entre seus primeiros habitantes, fato constatado pelas leituras de títulos dos livros e de
textos bíblicos que serviram de letramento individual e coletivo desses primeiros moradores,
esforçando-se em conservar nesse meio colonial o valor dado a instrução, às tradições, às práticas
religiosas e aos seus modos de comportamento e de seus antepassados lusitanos. O presente trabalho
tem como objeto de estudo as maneiras de comportamento, normas de condutas, regras de etiquetas e
crenças fundantes da fé religiosa aprendidas pelos caicoenses, objetivando compreender como estas
modelaram maneiras e vivências sociais e religiosas do caicoense no século XVIII. Para a análise das
obras-fontes Código do Bom-Tom, de J.I Roquete e Adoremus, de Dom Frei Eduardo  bastante lidas
na época em Caicó  ancoramos na noção de letramento de Soares (2004), segundo a qual quem
aprende a ler e também a escrever adquire um outro estado, uma outra condição social de “pessoa
letrada.” Em outras palavras, não se trata propriamente de uma mudança de classe social, mas de uma
aquisição do domínio básico da cultura da leitura, do “bem falar” e, por último, do escrever. Em
termos de resultados é possível dizer que na aquisição do caicoense setecentista desses domínios
básicos da cultura letrada, permitida pela leitura, por exemplo, do Código do Bom-Tom, aprendia-se
que a educação escolar deveria ser desenvolvida qualquer que fosse a modalidade ao alcance dos pais.
Não obstante, sentimentos elevados, virtudes mais recatadas, saber expressar-se corretamente eram
aprendidos por meio da leitura de obras literárias e da educação escolar e extra-escolar. Nessa obra,
onde encontra-se regras de civilidade e de bem viver, o caicoense aprendia, acima de tudo, condutas e
posturas de convivência social. O Adoremus, manual de orações e de exercícios piedosos, ensinava
como participar da liturgia na Igreja, a recitar orações diárias desde o nascer do sol ao deitar para
dormir, a devoção aos santos tidos em casa, capelas e igrejas, a regozijar-se com a humildade, a
ternura, a piedade e o amor a Deus, bem como o respeito e veneração à hierarquia eclesiástica da
Igreja católica e do Estado. Suas orações, ensinamentos e deveres destinados ao cristão fomentou a
piedade de milhares de sertanejos e confortou muitas almas com a ajuda da prece. A leitura dessas
obras contribuíram para a inserção do caicoense numa cultura literária, permitindo àqueles indivíduos
que faziam uso das funções sociais da leitura de acordo com as demandas individuais, sociais ou
religiosas, sua inserção na cultura letrada. Desta feita, os ensinamentos transmitidos através dessas
leituras possibilitavam ao povo caicoense uma concepção de vida diferente das demais áreas da
capitania norte-riograndense, prevalecendo nessa zona o gosto pela educação e cultura.
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TRABALHO COMPLETO

Na Capitania do Rio Grande, a exemplo das demais capitanias de domínio português,


destacou-se o predomínio da cultura oral sobre a cultura escrita, o que favoreceu a transmissão de
saberes elementares do ler, falar, rezar e contar, para depois aprender a escrever. No começo da
povoação da atual cidade de Caicó, por volta de 1700, a exemplo do que acontecia em outras
capitanias, a “educação doméstica” foi o “modelo pedagógico,” digamos assim, mais propagado entre
seus primeiros habitantes, fato constatado pelas leituras de títulos dos livros e de textos bíblicos que
serviram de letramento individual e coletivo desses primeiros moradores, esforçando-se em conservar
nesse meio colonial o valor dado à instrução, às tradições, às práticas religiosas e aos seus modos de
comportamento e de seus antepassados lusitanos.
O presente trabalho tem como objeto de estudo as maneiras de comportamento, normas de
condutas, regras de etiquetas e crenças fundantes da fé religiosa aprendidas pelos caicoenses,
objetivando compreender como estas modelaram maneiras e vivências sociais e religiosas do
caicoense no século XVIII. Para a análise das obras fontes Código do Bom-Tom e Adoremus 
bastante lidas na época em Caicó  ancoramos na noção de letramento de Soares (2004), segundo a
qual quem aprende a ler e também a escrever adquire um outro estado, uma outra condição social de
“pessoa letrada.” Em outras palavras, não se trata propriamente de uma mudança de classe social, mas
de uma aquisição do domínio básico da cultural da leitura, do “bem falar” e, por último, do escrever.
Letramento é uma noção que só recentemente ganhou estatuto teórico no campo da educação e
das ciências humanas. O termo letramento tem sua raiz etimológica na expressão literacy de língua
inglesa. Literacy vem do latim littera (letra), que denota condição ou estado que assume aquele que
aprende a ler e escrever. Para Soares (2004), está implícita neste conceito a idéia de que a leitura e a
escrita trazem conseqüências sociais, culturais, políticas, econômicas, quer para um dado grupo social
em que seja introduzida, quer para o indivíduo que adquire a “competência” do ler e do escrever. É
esse, pois, o sentido atual que tem a noção letramento.
É importante refletir sobre o fato de que nos séculos XVIII e XIX muitos indivíduos sabiam
ler, embora não soubessem escrever, isto porque havia a predominância da cultura oral e quase não
existia escolas públicas onde os caicoenses aprendessem os saberes elementares do ler e escrever,
prevalecendo, portanto, como modelo pedagógico, a educação doméstica. Ao longo do século XVIII
foi esta a educação conhecida pelos caicoenses, adentrando no século XIX e continuando presente na
instrução desse povo, embora já se registre nesse século a educação escolar pública, institucionalizada
a partir da lei de 15 de outubro de 1827, o que veiculou a criação do ensino primário no Brasil.
Nos séculos XVII e XVIII valorizavam-se o “bem falar”, os saberes elementares do ler, rezar,
contar e escrever (este último para uma pequena parcela da população), as regras de civilidade e de
bem viver, e a formação dentro dos princípios cristão pregados pela Igreja Católica. A posteriori, no
século XIX, com os movimentos de universalização para todos, passou-se a admitir uma
correspondência direta entre não escolarizado (aquele que não freqüentou uma escola) e analfabeto.
Portanto, o referente na correspondência entre alfabetizado e escolarizado teria sido escolas de
primeiras letras “[...] com mestres selectivamente recrutados e desenvolvendo uma acção pedagógica e
didáctica multidimencional e graduada, onde as aprendizagens da leitura e da escrita são meios e não
fins em si próprios [...].” (MAGALHÃES, 1996, p. 43).
Para Magalhães (1996), essa estreita correspondência de teor acentuadamente positivista
possibilitou a compreensão de uma história da alfabetização, seja na América Portuguesa, seja na
Europa.
Nos século XVIII (mesmo após as reformas pombalinas de 1759 e 1772) e XIX, uma escola
de primeiras letras, com matriz urbana e elitista, cuja escolarização exigiu muito tempo de
aprendizagem, teria sido uma exceção, ou rara exceção, para o Estado Português e suas colônias
ultramarinas. Nesses séculos

[...] é muito provável que o número de leitores e o número de escreventes


rudimentares, seja sensivelmente superior ao número de diplomados pela
escola, estando muitos daqueles impedidos de assinarem, dada a
rudimentaridade do seu traço. (MAGALHÃES, 1996, p. 43).
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Assim sendo, o presente trabalho ancora-se na noção de letramento num sentido amplo de um
estado de letrar-se, e não no sentido de uma educação escolar, ou seja, letrar sob diferentes leituras,
condições de ler e escrever, sob diferentes modalidades de escola, (não só na escola, mas também
extra-escola), sob diferentes exercícios de aprendizagens culturais.
Por o conceito de letramento abranger sutilezas, complexidades distintas e difíceis de ser
contempladas com apenas um entendimento, e envolver uma dimensão individual e social

[...] é um estado, uma condição: o estado ou condição de quem interage com


diferentes portadores de leitura e de escrita, com diferentes gêneros e tipos de
leitura e de escrita, com as diferentes funções que a leitura e a escrita
desempenham na nossa vida. Enfim: letramento é o estado ou condição de
quem se envolve nas numerosas e variadas práticas sociais de leitura e de
escrita. (SOARES, 2004, p.44).

Nesse entendimento o letrar-se é o ponto de partida para estudar as maneiras de


comportamento, normas de condutas, regras de etiquetas e crenças fundantes da fé religiosa
aprendidas pelos caicoenses e compreender como estas modelaram as maneiras e vivências sociais e
religiosas do caicoense no século XVIII e XIX, o que envolve tanto a dimensão individual quanto a
dimensão social. Ao longo desses séculos, meninos e meninas (essas com menor freqüência) podiam
estudar em escolas domésticas (localizadas nas casas das fazendas, capelas ou na própria residência
dos mestres), em aulas públicas (ministradas por um professor público) ou nas escolas de primeiras
letras (Lei de 15 de outubro de 1827). Do ponto de vista individual letrar-se, aprender a ler ou a
escrever e envolver-se em práticas sociais de leitura e de escrita, traz conseqüências para o indivíduo
alterando seu estado ou condição em variados aspectos, o que também acontece do ponto de vista
social, quando a escrita é introduzida num determinado grupo[...].” (SOARES, 2004). Essas duas
dimensões da noção de letramento são importantes para a compreensão do processo de aquisição da
leitura e da escrita do caicoense nos séculos XVIII e XIX, tendo em vista que envolvem atributos
individuais (habilidades individuais de ler e escrever) e sociais, fazendo com que, do ponto de vista
social, o letrar envolva, conseqüentemente, aspectos culturais que exigem “[...] práticas sociais ligadas
à leitura e a escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social.”(SOARES, 2004, p.
72).
Para entender como se deu o processo de alfabetização e/ou escolarização do caicoense, assim
como sua inserção e envolvimento com as práticas sociais de leitura e escrita, faz-se necessário
mencionar alguns fatos que remontam ao povoamento da “região” do Seridó no final do Século XVII.
Alguns dos primeiros povoadores do Caicó antigo eram pessoas da classe média ou de classes
privilegiadas sob o aspecto social e devido a esse fato eram “[...] possuidores de mediana instrução e
costumes de civilidade [...]” (SANTA ROSA, 1979, p. 119). Esses primeiros povoadores esforçaram-
se em conservar nesse meio colonial o valor dado a instrução, às tradições, às práticas religiosas e aos
seus modos de comportamento e de seus antepassados lusitanos, o que pode ser confirmado através do
historiador Santa Rosa.

Esses povoadores esforçaram-se em conservar no novo meio, como medida


de união, os hábitos de trabalho, o gosto pela instrução, as práticas
religiosas, as tradições, o modo de comportamento familiar, recebidas dos
seus antepassados lusitanos, adaptando-se às novas condições, especialmente
dedicando-se com interesse à criação de gados, sem deixar contudo as
atividades da pequena agricultura. (SANTA ROSA, 1979, p.119, grifos
nossos).

António Gomes Ferreira, em estudo que trata da educação e regras de convivência e de bom
comportamento nos séculos XVIII e XIX, em Portugal, esclarece que ao longo do século XVIII havia
naquele país “[...] a preocupação com as boas maneiras, a polidez, a urbanidade, a cortesia e a
civilidade [...] (FERREIRA, 2004, p.02) parecendo desenhar-se, em Portugal, uma tendência para se
valorizar este aspecto da educação, onde ensinava-se as regras de civilidade e “bem viver” .
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Não distante do que acontecia no território português, a historiografia aponta para o fato de
que no século XVIII havia uma grande preocupação por parte dos seridoenses em criar e formar seus
filhos “nos dogmas da religião católica e regras de bem viver”, confirmando o apego da população
seridoense à instrução e práticas religiosas, o que para D. Adelino Dantas (1961) era muito importante
na mentalidade austera do patriarcalismo sertanejo.
No século XVIII, a sociedade caicoense, e por extensão, a seridoense, vivia em sua maior
parte nas fazendas de criar gado, e mesmo com a inexistência de escolas públicas onde alfabetizar seus
filhos, mantinham a preocupação de inserir-lhes na cultura letrada, proporcionando-lhes os saberes
elementares do ler, falar, rezar e contar, e quando possível, escrever. Ficava assim a educação dos
meninos e meninas seridoeneses sob a responsabilidade, em primeiro lugar, da família, em segundo,
da igreja e, por último, do estado português, já que na época ainda não existia nenhuma lei portuguesa
que regulamentasse a instrução pública.
Embora já se encontre sinais marcantes dessa preocupação com a inserção do povo seridoense
na cultura letrada, havia nesse século um grande índice de analfabetismo, fato constatado pela prática
de marcar os documentos da época com um sinal da cruz, conhecido entre a população como “sinal
costumado”, conforme pode ser constatado na reunião para leitura da comunicação da Anuência
Régia de 9 de fevereiro de 1772, realizada em 27 de dezembro de 1773, no consistório da Matriz de
Sant’Ana:

Dessa reunião resultou a ata famosa, redigida pelo mestre José Inácio de
Figueiredo. Nela põem suas rubricas quarenta e três pessoas, das quais
apenas quatro sabiam ler e escrever... Plantou-se no documento uma floresta
de cruzes, pois, sem excetuar o Rei e a Rainha, eram analfabetos todos os
oficiais da Mêsa [...]”. (DANTAS, 1961, p. 61-62).

No primeira metade do século XIX acentua-se a necessidade da escolarização da população,


assunto intensamente discutido nas províncias de todo Império, o que consequentemente acontecia na
região do Seridó. Nesse período, difundia-se a idéia de que “[...] a instrução escolar atenderia de forma
efetiva o objetivo de moralizar e educar o povo[...].”(ROSA, 2003, p.104).
No entanto, embora já existisse essa mentalidade do povo seridoense no tocante à
escolarização dos filhos, a sociedade caicoense testemunha ainda a ausência de escolas públicas onde
educá-los, o que, conforme dito, só veio acontecer na segunda metade deste século com a
institucionalização do Ensino Primário no Brasil (Lei de 15 de outubro de 1827). Tal fato aponta para
a realidade de que, ao longo desse século, a instrução escolar caicoense recebeu a herança da educação
doméstica, bem como na maior parte dos lugares mineiros, conforme discorre Rosa (2003), ao tratar
da escolarização em Minas Gerais.
Esse quadro de escolarização do caicoense nos séculos XVIII e XIX, onde a cultura oral
prevalecia sobre a cultura escrita, e a educação doméstica era o modelo vigente pelo menos até a
segunda metade do século XIX, exigia primeiro o aprendizado do ler, falar, rezar e contar para depois
aprender a escrever.
Assim, a educação doméstica como uma maneira de sociabilidade, ao lado das práticas
religiosas, exigia, para o aprendizagem desses saberes elementares, a leitura de manuais de caris
religioso e didático, como no caso do Adoremus (composto por Frei Eduardo) e Código do Bom-Tom
(José Inácio Roquette), que, por sua vez, passaram a fazer parte do letramento individual e coletivo
dos caicoenses setecentistas e oitocentistas.
O Adoremus é um manual de orações e exercícios piedosos, cujo valor maior é transmitir às
famílias seridoenses o Officium Parvum e para auxiliar os cristãos na participação da liturgia da Igreja.
Segundo Medeiros Filho e Faria (2001, p. 91) “Este livrinho é um complemento à biblioteca dos
nossos antepassados”, tornando-se indispensável nos oratórios das fazendas seridoenses, por conter
Orações Diárias, modo de acompanhar os Sacramentos: Santa Missa, Santa confissão, Sagrada
comunhão, várias Orações e Devoções aos Santos e um modo de ajudar a Santa Missa com as
respectivas respostas em Latim.
Durante os séculos XVIII e XIX, conforme aponta Macêdo (1998), a Igreja Católica mantinha
grande poder moral sobre os habitantes do Seridó, controlando e passando ensinamentos das crenças
religiosas, os hábitos de obediência, da civilidade cristã e da sensibilidade estética para os gestos
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cotidianos, decidindo, inclusive, quais os livros deveriam ser adotados no processo de escolarização,
resultando, portanto, na adoção daqueles que tinham “[...] procedência de autores católicos ou
professavam o catolicismo” (ARAÚJO, 2003, p.O4). Pinheiro (2004) falando sobre a instrução pública
e particular na Província da Parahyba do Norte, no século XIX, confirma essa influência da Igreja
Católica sob a educação do povo das capitanias de domínio português.
Dentro desse contexto, onde a Igreja era uma instituição poderosa e influente, o caicoense do
século XVIII e XIX, através do Adoremus, composto por Frei Eduardo, não só aprendeu práticas de
leitura e escrita como também as crenças fundantes da fé religiosa.
Numa época em que o ensino das primeiras letras devia se acompanhar do ensino dos bons
costumes “A piedade se destaca com efeito, como virtude principal, traduzindo-se precisamente pela
vivência no ‘mundo de Deus’.” (PAIVA, 2004, p. 86), e uma vez que a piedade era vista como o
caminho para se levar aos bons costumes, conseqüentemente o cristão adotaria comportamentos que
agradariam a Deus.
No Adoremus, a exemplo dos manuais de civilidade, existe a preocupação de interligar a
educação moral e religiosa com as maneiras de civilidade, confirmando a afirmação feita por Macêdo
(1998) de que a Igreja Católica controlava e passava os ensinamentos da civilidade cristã e da
sensibilidade estética para os gestos cotidianos. Esta preocupação pode ser confirmada através do
ensinamento que segue: “É a mesa um dos lugares onde bem se conhece a virtude. Uma pessoa
piedosa, verdadeiramente piedosa, come, segundo a sua condição lhe permite, para viver e não vive
para comer.” (ADOREMUS..., 1962, p.16).
Esses advertências feitas ao longo do Adoremus mostram ao pecador como se tornar um bom
cristão, piedoso e temente a Deus, auxiliando-o inclusive a abster-se dos pecados capitais, conforme
constata-se no exemplo acima ou ainda nos fragmentos que seguem, repassados através de uma
Leitura Espiritual:

Não haverá nenhum vício que não tenha ali seu peculiar tormento. Os
soberbos serão acabrunhados de tôda a sorte de confusão, e os avarentos
reduzidos a misérrima penúria.
[...]
Então se alegrará mais a pura e boa consciência do que a filosofia dos sábios.
Então se estimará mais o desprezo das riquezas, do que todos os tesouros dos
ricos da terra. Então te consolarás mais de ter orado com devoção, do que
haver comido com regalo. (ADOREMUS..., 1962, p.62-63).

A aprendizagem do ler, falar, rezar contar e escrever, por mais elementar que viesse a ser,
apresentava-se segundo Magalhães (1996a, p. 23) como “[...] um fator de equilibração entre o homem
social e o individual, um fator de mediação entre o bem e o mal.”
Um fator facilmente perceptível entre o bem e o mal pode ser constatado através da leitura de
orações e cumprimento dos exercícios piedosos do Adoremus, constituindo-se presença indispensável
no aprendizado religioso, cultural e educacional do caicoense e por extensão do seridoense. Contendo
ensinamentos pregados pela Santa Igreja Católica, este manual de orações apresenta indícios de
equilíbrio entre o bem e o mal, conforme transcrito neste trecho do Ato de Contrição.

Ó meu Deus e Pai amorosíssimo, com toda dor da minha alma eu me acuso
de Vos ter hoje muitas vezes ofendido por minha culpa, minha tão grande
culpa [...]. Pesa-me, meu Deus, de ter sido ingrato. [...] Proponho
firmemente, mediante vossa santa Graça, emendar-me. Ajudai-me, abençoai-
me e defendei-me contra o espírito maligno nesta noite e sempre, na vida e
na morte. (ADOREMUS..., 1962, p.19-20).

Fazia parte também letramento individual e coletivo dos caicoenses no século XIX o Código
do Bom-Tom, escrito por José Inácio Roquette, que reúne em suas páginas um rico guia didático de
civilidade. Esse guia, cuja estrutura “[...] recupera o modelo dos demais manuais de civilidade.”
(SCHWARZ, 1997, p.22), também se preocupa com os ensinamentos religiosos, e mostra como deve
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ser o comportamento na Igreja, no Paço e nas cerimônias de cada um. Fala dos gestos de cortesias de
modo airoso, do comportamento na mesa, nos salões, como devem ser os cumprimentos e escritas as
mensagens para as mais variadas ocasiões. (MEDEIROS FILHO; LAMARTINE, 2001).
Numa compreensão genérica da noção de letramento defendida por Soares (2004), esse
manual de civilidade serviu de ferramenta para que os caicoenses do século XIX adquirissem, através
de sua leitura, os domínios básicos da cultura da leitura, do “bem falar” e da escrita.
Já que durante esse século havia uma grande preocupação com o “bem falar”, o seridoense,
que vivia numa sociedade de base eminentemente oral (CASCUDO, 1984), deixava transparecer em
sua linguagem cotidiana o cuidado com a fala, a exemplo do que ensina o Cônego em seu Manual, à
medida que vai introduzindo os leitores nas especificidades da vida em sociedade. Esse cuidado do
povo caicoense com a fala foi destacado por Santa Rosa (1979), quando afirma que o seridoense
apresenta “[...] uma cultura no sentido de comportamento humano equilibrado, expresso no
pensamento, na ação e na fala.” (SANTA ROSA, 1979, p.125).
Nos séculos XVII, XVIII e XIX, principalmente até meados do século XVIII, como
conseqüência da ausência de Escolas de Primeiras Letras (Escolas Públicas), a educaçãoescolar da
criança ficava sob a responsabilidade dos pais ou da família. Essa preocupação com a educação
escolar dos filhos deveria começar logo na infância e, conforme depreende-se na leitura do Código do
Bom-Tom, deveria ser desenvolvida qualquer que fosse a modalidade ao alcance dos pais:

Outro pensamento ocupava continuamente meu espírito: era vossa educação,


meus filhos. Quanto a mim, bem sabia eu que meu primeiro dever era
instruir-me, por todos os meios que estivessem ao meu alcance, para poder
inspecionar vossa educação, visto que eu não podia fazer só. Comecei desde
logo a estudar comigo mesmo todos os meios para que ela fosse a mais
perfeita possível. Este era o meu único cuidado, este o pensamento de que
sempre estive preocupado. (ROQUETTE, 1997, p.53-54).

A valorização do ensino das boas maneiras e regras de civilidade, vista como aspecto
educativo e cultural, está prescrita na Lei de 6 de novembro de 1772, ao determinar que os mestres de
ler, escrever e contar deveriam ensinar também as regras de civilidade que constavam nos manuais
destinados a esse tipo de educação.

Que os Mestres de ler, escrever e contar sejam obrigados a ensinar não


somente a boa forma dos caracteres; mas também as Regras Gerais de
Ortografia Portuguesa: e o que necessário for da Sintaxe dela, para que os
seus respectivos Discípulos possam escrever corretamente, e ordenamente.
Ensinando-lhes pelo menos as quatro espécies de Aritmética simples: o
Catecismo, e Regras da Civilidade em um breve Compêndio: Porque sendo
tão indispensáveis para a felicidade dos Estados, e dos indivíduos deles são
muito fáceis de instilar nos primeiros anos aos meninos tenros, dóceis, e
suscetíveis das boas impressões daqueles Mestres, que dignamente se
aplicam a instruí-los. (PORTUGAL. Lei de 6...).

No Brasil Colonial, a exemplo do que acontecia em Portugal, havia essa preocupação em


ensinar as regras de civilidade, o que se constituía num forte aliado para a aprendizagem das regras e
códigos de bom-tom entre os brasileiros de maneira geral e para os caicoenses em particular.

Estes manuais pretendiam, pela leitura, contribuir para normatização de


condutas, a formação do caráter, uma dada consolidação da práticas de
higiene através de uma código de valores em que numerosas prescrições
eram estabelecidas e deveriam ser seguidas como regras de bom tom para
convivência social. Pode-se dizer que funcionavam como dispositivos
textuais que atuavam na transformação das sensibilidades e como tal
procuravam internalizar severos procedimentos de controle social. (CUNHA,
2004, p.2, grifos nossos).
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A leitura desses manuais, que, de acordo com Cunha (2004), funcionava como dispositivos
textuais, contribuiu para o letramento individual e social do caicoense, confirmando a noção de
letramento Soares (2004), ao abordar a amplitude do estado de letrar-se, não no sentido de uma
educação escolar, ou seja, letrar sob diferentes leituras, condições de ler e escrever, sob diferentes
modalidades de escola, (não só na escola, mas também extra-escola), sob diferentes exercícios de
aprendizagens culturais.
Esses manuais podem ser vistos, segundo Ferreira (2004, p. 6), como um exemplo claro “[...]
de como passa pela aprendizagem da leitura e da escrita a aprendizagem da civilidade e da formação
moral e até religiosa.”
Em termos de resultados é possível dizer que, na aquisição do caicoense oitocentista dos
domínios básicos da cultura letrada, permitida pela leitura, por exemplo, do Código do Bom-Tom,
aprendia-se que a educação escolar deveria ser desenvolvida qualquer que fosse a modalidade ao
alcance dos pais. Não obstante, sentimentos elevados, virtudes mais recatadas, saber expressar-se
corretamente eram aprendidos por meio da leitura de obras literárias e da educação escolar e extra-
escolar. O Adoremus, manual de orações e de exercícios piedosos, ensinava a recitar orações diárias
desde o nascer do sol ao deitar para dormir, a devoção aos santos tidos em casa, capelas e igrejas, a
regozijar-se com a humildade, a ternura, a piedade e o amor a Deus, bem como o respeito e veneração
à hierarquia eclesiástica da Igreja católica e do Estado.
Nesses séculos passados, grande parte dos homens e mulheres conviviam, em suas práticas
cotidianas, com a cultura do ler, independente do escrever. A leitura e a escrita rudimentares
(assinatura do nome) eram, no entanto, meios de aprender crenças fundantes da fé religiosa, de
adquirir boas maneiras, normas de conduta, histórias da cavalaria, histórias de proveito e exemplo,
gramática, história, mitologia e ciência popular.
Assim, estudos como os de Soares (2004) permitem entender que definições genéricas como
letramento podem ser utilizadas, não como ponto de chegada, mas como ponto de partida para a
interpretação e explicação histórica das demandas das práticas de leitura e escrita de uma dada
sociedade, envolvendo a correlação entre oral e escrito, individual e social, “bem falar” e “mal falar”,
exercício da fé católica e conduta social.

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