Sei sulla pagina 1di 113

ST 24: Viver entre animais: etnografias da recalcitrância e do consentimento

Coordenadores: Felipe Vander Velden (UFSCar), Andréa Osório (UFF)

Resumo: Críticos têm recusado a oposição humanos/não humanos, insistindo que a última categoria
agrega seres demais e ignora suas diferenças. Engajemo-nos, portanto, com os animais (ainda que a
categoria pareça ausente em diversos contextos socioculturais), o que implica em aceitar a existência
de um conjunto específico de seres, e em fazer justiça à sua materialidade concreta não como um
coletivo definido em função do contraste com o humano e sob sua sombra ou tutela, mas como seres
diversos, cujas vidas, escolhas e destinos são de sua responsabilidade e nada devem aos projetos
humanos. Isso nos força a pensar em sua recalcitrância: em como resistem a tais projetos, seja como
indivíduos, espécies ou nichos. E mesmo que pareçam concordar com nossas intenções que buscam
ser mais-do-que-humanas, é bem provável que o façam por razões distintas das que imaginamos para
eles. Isso implica numa reflexão sobre como resistências ou concordâncias, aliadas às ações humanas,
produzem interações, contextos e paisagens naturalculturais cuja riqueza só agora começamos a
compreender. Este Simpósio Temático pretende agregar pesquisas em torno do “viver entre animais”
nos mais diversos contextos etnográficos, visto que esbarramos com eles em toda parte e juntos
compomos os ritmos e rumos de nossas existências comuns. Seu foco está na consideração dos
animais enquanto seres em si mesmos e nos modos como diferentes coletivos humanos, sempre com
os animais, elaboram os mundos que nós todos temos para habitar.

Palavras-chave: Animais, Natureza, Cultura, Recalcitrância, Consentimento

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 1


Da domesticidade à biopolítica: agenciamentos e controvérsias multiespecíficas em
torno da presença canina no Campus do Vale da UFRGS

Bernardo Lewgoy1

Esse texto decorre, inicialmente de informações e depoimentos colhidos em meu trabalho de


campo com protetoras de animais na UFRGS. Em determinado momento, provocado pelos eventos
críticos da descoberta de casos de casos de cães considerados soropositivos para Leishmaniose
Visceral Canina em áreas p'roximas ao Morro Santana onde o Campus do Vale da UFRGS2, onde as
três primeiras mortes por Leishmaniose Visceral Humana3 foram registradas.

. O problema é o confronto entre, de um lado, a leitura biopolítica e bioeconômica das zoonoses


como ameaça a ser enfrentada com medidas eugênicas de guerra sanitária (eutanásia de cães) e, de
outro, a entrada em cena das novos atores, sensibilidades e moralidades da proteção animal
(Lewgoy,Sordi e Pinto,2015) na esfera pública, para além da inserção filantrópica do ciclo resgate,
medicalização e doação de animais de companhia, para o qual a existência da Secretaria Especial de
Defesa dos Animais, desde 2011, tem tido importante protagonismo. Para essas novas moralidades e
sensibilidades a santidade da vida individual canina é um valor central. Parte-se da hipótese de que
a irrupção de determinadas zoonoses pode representar um processo de requalificação no qual a
proteção animal deve levar em conta as novas inflexões da rede ocasionada pela conjuntura do jogo
biopolítico (com autoridades sanitárias e academicas conversando pela primeira vez com protetoras

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 2


e a entrada em cena de um remédio inovador para a LVC, de uma poderosa farmacêutica). Presume-
se que essa mudança induz os actantes a operar novas traduções em seu repertório e ações - como o
incoporação de novas modalidades de tecnologias de governo e controle para as protetoras, assim
como o Estado não pode mais agir como se não existissem os pleitos ligados à proteção animal

A questão apareceu inicialmente em entrevistas com protetoras atuando na área do Campus


do Vale 4 , que relataram-me a existencia da leishmaniose visceral canina nos cães abrigados ou
assistidos pelas ONGs que atuam na universidade e seus entornos. Voltarei a este ponto.

Antes é preciso fazer um détour e precisar algumas informações sobre a doença, que na
antropologia já mereceu a atenção da antropologa argentina Andrea Mastrangelo em texto seminal
(2016)

Segundo o site do laboratório francês VIRBAC, criador do medicamento-chave Milteforan,


"a Leishmaniose Visceral Canina é caracterizada pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como
uma das seis doenças infecciosas mais importantes do mundo. Ela já foi detectada em pelo menos 12
países da América Latina, sendo que 90% dos casos ocorrem no Brasil. Entre 2009 e 2013 foram
registrados aproximadamente 18 mil casos confirmados em seres humanos e, para cada caso
reportado, estima-se que haja 200 cães infectados, segundo pesquisas do Ministério da Saúde
juntamente com a Secretaria de Vigilância em Saúde.5

Embora o cão não seja vetor, ele é considerado um reservatório da doença ou seja, outros
mosquitos podem picar o animal infectado e contaminar humanos. Trata-se de doença endêmica em

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 3


zonas rurais de clima quente, que agora atinge os meios urbanos. Para os humanos há tratamento
gratuito disponibilizado na rede pública, o que não ocorre com os animais6.

Não é nova a preocupação com a Leishmaniose Visceral no Brasil. No entanto, poucos casos
autóctones haviam sido constatados no Rio Grande do Sul até poucos anos atrás sendo uma doença
própria das áreas de clima quente, como o o Norte e o Nordeste, sendo também discutida nos foruns
da chamada Medicina Tropical. Em 2012 a prefeitura de Porto Alegre já realizava o II seminário
gaúcho de Leishmaniose. O astro do encontro foi o médico piauiense Carlos Henrique Nery Costa,
doutor em medicina tropical e especialista em leishmaniose, que se opunha veementemente ao
exterminio de animais contaminados considerando-a uma medida ineficaz7.

Quando eu organizava meus dados, deparei-me com uma evento crítico: em 2 de maio de
2017 a Secretaria Municipal de Saúde Porto Alegre publicou no Diário Oficial uma dispensa de
licitação contratar serviços veterinários a fim de realizar a eutanásia de 300 cães considerados
soropositivos para a Leishmaniose Visceral Canina, anunciando que a clínica Animed havia sido
contratada para realizar o procedimento. A informação, tornada denúncia pela deputada estadual
Regina Becker - criadora da Secretaria Especial de Proteção dos Animais - repercutiu como uma
bomba nas redes sociais, suscitando uma forte mobilização das protetoras de animais com ações de
mobilização convocadas via Internet, como o protesto diante da clínica que realizaria a eutanásia.
Inicialmente seriam eutanasiados 14 cães com suspeita de Leishmaniose da Unidade de Medicina
Veterinária do Canil Municipal da SEDA. para depois completar os 300 casos constatados, com
recolhimento compulsório dos animais de seus tutores.

Minuciados de informações sobre a doença, o mote do movimento foi espelhado em cartazes,


banners e panfletos "Não culpe o cão, culpe o mosquito" e "O cão não é o vilão", "o vilão é o
mosquito, não o meu amigo":

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 4


https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1283858985046069&set=pcb.1366499140093673&typ
e=3&theater, acesso em 30/05/2017

Manifestação de protetoras e animalistas contra a eutanásia de cães com LVC em frente à Prefeitura
municipal de Porto Alegre em 24/11/2017. (foto de Daniela Pedroso).
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=1390468251038686&set=pcb.1367182490025338&typ
e=3&theater. acesso em 29/05/2017

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 5


A ação da vigilância sanitária e secretaria da saúde foi disparada pela informação de três
mortes por Leishmaniose Visceral Humana, uma em novembro de 2016, abril e maio de 2017 em
áreas da zona leste de Porto Alegre, todas mais ou menos próximas ao Campus da UFRGS (jardim
Carvalho e Morro Santana, onde situa-se o campus do vale da UFRGS.). As protetoras dividiram-se
em duas ações de protesto e fiscalização, uma no canil municipal da SEDA e outra em frente à clínica
Animed, onde se realizariam as eutanásias. NO mesmo dia da denúncia, a deputada Regina Becker
protocolou pedido de liminar no Foro Central de Porto Alegre para, nos termos das protetoras, a
suspensão da matança, deferida pelo justiça. Na decisão do juiz foi enfatizado quen não se contrariava
a Portaria Interministerial de 20088 do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (que
proíbe o uso de medicamento para humanos e determina a eutanásia dos animais contaminados) mas
que se acolhia o argumento da não-conclusividade dos exames aplicados para a constatação da
doença nos cães examinados. O juiz, mesmo ordenando a suspensão das eutanásias, não atuou por
analogia com a jurisprudência do STF de 2013 - nos precedentes de proibição de eutanásia em Campo
Grande e Cuiabá - que considerou nula a portaria 1246/2008 por coibir o livre exercício da profissão
de veterinário, as convençoes internacionais e o contexto juridico brasileiro9.

O próprio Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento já havia aprovado o uso do


Milteforan em 2016, mas como exceção para uso privado e não como política de saúde pública10. A
controvérsia inicial centrou-se no uso de medicamentos humanos em animais, o que é proibido pela
portaria interministerial de 2008 do MAPA, a mesma que determina a eutanásia dos animais. Ora
essa portaria foi seguida por notas técnicas do Conselho Federal de Medicina Veterinária

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 6


determinando para os profissionais a notificação compulsória de casos para a vigilância sanitária, o
não tratamento e a eutanásia, sob pena de perda do registro profissional, decisão que tem sido
relativizada nos últimos tempos dada a forte resistencia de muitos profissionais e a jurisprudencia
supramencionada. A publicização do medicamento Milteforan desde 2009 mudou a compreensão da
doença. A controvérsia inicial está relacionada ao uso de medicamentos humanos em animais, o que
é proibido pela portaria interministerial de 2008 do MAPA, a mesma que determina a eutanásia dos
animais. Ora essa portaria foi seguida por notas técnicas do Conselho Federal de Medicina Veterinária
determinando para os profissionais a notificação compulsória de casos para a vigilância sanitária, o
não tratamento e a eutanásia,sob pena de perda do registro profissional, decisão que tem sido
relativizada nos últimos tempos dada a forte resistência de muitos veterinários em realizar eutanásias
de valor duvidoso e a jurisprudência supramencionada. A polêmica das protetoras contra a eutanásia
de cães com LVC já tinha um forte aliado com os pesquisadores do grupo de pesquisa Brasileish,
apoiado pelo laboratório VIRBAC, que influenciou ao Ministério da Agricultura para a liberação do
tratamento com Milteforan com base em estatísticas mundiais sobre a ineficácia da eutanásia para o
controle da disseminação da doença:

"A questão é que, dos 88 países do mundo onde a doença é endêmica, o Brasil é o único que ainda
utiliza a morte dos animais como instrumento de saúde pública. “A leishmaniose visceral canina tem
controle, tem tratamento eficaz e, portanto, não é necessário fazer a eutanásia do animal, exceto em
casos específicos”, afirma o veterinário Leonardo Maciel, da Clínica Veterinária Animal Center.
Isso porque, após o tratamento, o cão deixa de ser um reservatório ativo e, portanto, não é mais um
transmissor."11

Os novos fatos obrigaram a prefeitura a suspender temporariamente as eutanásias e recolher


os animais de volta para uma parte isolada da Unidade de Medicina. Veterinária da SEDA.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 7


Alguns dias depois foi anunciado um acordo entre a SEDA e a Vigilância Sanitária do
município.Noticiou-se que a VIRBAC, propôs-se a fornecer um lote para a primeira parte do
tratamento dos cães comprovadamente soropositivados12 .

O medicamento Milteforan, conhecido há cerca de 10 anos é o único que consegue tratar o animal e
mantê-lo não infectante por tempo indeterminado, ainda que não o proteja de reinfecções e possíveis
recidivas. É preciso salientar que o custo privado do tratamento por animal é de mil reais por mês,
além das medidas protetivas indicadas como uso de coleira inseticida e recolhimento dos animais em
áreas teladas durante o período de ação do mosquito palha em regiões onde se constata a existência
de vetores contaminados. A VIRBAC exige, ainda, registro de veterinário e tutor responsável para
cada animal, assim como microchipagem própria que permite monitorar todos os animais tratados
pelo medicamento no mundo13.

Também no Campus do Vale da UFRGS, a vigilância sanitária exigiu a individualização da


relação de cada cachorro com um tutor e um veterinário que se tornariam seus responsaveis legais,
microchipando cada animal e, no caso dos animais já rastreados foi usado, segundo relato da protetora
Ana, um sistema de sensoriamento remoto para rastrear o deslocamento dos cães

Todos esses procedimentos biopolíticos geraram resistências. O Campus do Vale da UFRGS


localiza-se no Morro Santana, cujo cume chega a 311 metros.. Inserido no bioma da mata atlântica
ele tem cerca de mil hectares, sendo que 600 hectares pertencem à universidade, com uma área de
conservação, também unidade de refugio de vida silvestre, que ocupa 321 hectares 14 . Ali vivem

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 8


animais como gato-palheiro, sabiá-cica, bugios, macacos-pregos, preás e gambás. Desde a expansão
da universidade, nos anos 1990, muitos cães foram ali abandonados, o que gerou uma movimentação
de funcionários e estudantes para ajudá-los15. Mais de um projeto e grupo de proteção, a maioria
conduzidos por mulheres, como sói acontecer na proteção animal, foram criados ao longo do tempo,
todos envolvidos em acolher, tratar e doar os animais que ali chegam.. Segundo as entrevistadas a
Universidade nunca deu apoio institucional para os projetos e seus gestores manifestaram pouca
disposição para apoiar os projetos de proteção animal nas dependências da instituição. As reuniões
com diferentes atores - vigilância sanitária, veterinários, protetores de animais e representantes da
reitoria - tiveram que enfrentar dificuldades de reconhecimento mútuo, face a anos de atritos dos
protetores com diretores de unidades e setores de infraestrutura. A proposta inicial por recolhimento
e eutanásia de animais infectados - considerada "polêmica" encontrou forte resistência entre
protetores e veterinários. Isso não é exatamente novidade diante do envolvimento voluntário do curso
de veterinária em impedir eutanásias de animais após cirurgias didáticas 16 . Não se admitia, que
animais com quem as pessoas tem relações afetivas e familiares e que pudessem ser tratados, fossem
retirados de seus donos por uma medida considerada cruel e ineficaz, e foi apontada a necessidade de
medidas educacionais e sanitárias alternativas que não provocassem traumas ou assassinatos.

Segundo a protetora Ana 17 , veterana do mais antigo dos projetos de proteção animal no
Campus do Vale, que remonta aos inícios dos anos 2000 - uma comissão foi formada para preparar
uma campanha de esclarecimento aos moradores. Houve um grande esforço para fazer folders e
cartazes alertando e esclarecendo sobre a doença - custeados pelas próprias protetoras - mas isso
esbarrou mais de uma vez com interrupções de comunicação e não explicadas saídas de cena das

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 9


autoridades universitárias, como se a instituição não quisesse arcar com o ônus de ter casos de
leishmaniose em seu espaço ou não visasse ter que reconhecer as ONGs como presenças e parceiras
legítimas na Universidade.

A UFRGS recusou-se a ceder sua gráfica exigindo que, antes, a cada animal fosse atribuído
um tutor que fosse seu representante legal, e um veterinário responsável, exigência que intimidou as
protetoras pelos custos econômicos e problemas jurídicos que isto acarretaria. A tentativa de sujeição
dos projetos e dos cães a um dispositivo de controle biopolítico , bem como a responsabilização
jurídica passada integralmente às protetoras, a par das inúmeras recusas de suporte para os animais
abandonados ao longo dos anos, foram medidas não aceitas, pelos custos econômicos e riscos
jurídicos envolvidos.

Ainda segundo o relato de Ana, o processo de cooperação na universidade foi suspenso. Como
em outras vezes diante da recorrente decepção com a burocracia e a governança acadêmica, as
protetoras foram buscar soluções individuais para os cães doentes sob sua guarda.

Tanto no episódio dos cães da SEDA quanto no Campus do Vale temos não apenas uma
dificuldade de articulação e diálogo entre diferentes agentes um embate entre, de um lado, uma
macro-ótica e biopolítica campanhista do Estado e, de outro, as micropolíticas da solidariedade entre
protetores de animais recém ingressadas nas lutas políticas da vida pública. Com a possível diferença
que zoonoses, como a LVC, obrigam os atores a um inédito reconhecimento dialógico mútuo e em
rede, incorporando novas pautas e conhecimentos em seus repertórios. Nessas fricções e interações,
o dado que mais chama atenção é o papel cumprido pelo novos actantes, o medicamento Milteforan
e a multinacional VIRBAC, em sua tentativa de domesticação bioeconômica e disciplinar dos
diversos atores envolvidos.

Referências bibliográficas:

LEWGOY, Bernardo; SORDI, Caetano; Pinto; Leandra. Domesticando o Humano para uma
Antropologia Moral da Proteção Animal. Ilha, v. 17, n. 2, p. 75-100, ago./dez. 2015. Florianópolis,
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. 2015.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 10


MASTRANGELO, Andrea. Nombre y rostro, amistad y parentesco: dimensión da la relación
intersubjetiva humano - perro en una área con Leishmaniosis Visceral emergente (Depto. e Iguazú,
Misiones, Argentina). Buenos Aires: 2016 (mimeo).

PINTO, Leandra. Resgatando afetos: um estudo antropológico sobre redes urbanas de proteção
animal. Dissertação de mestrado em Antropologia Social. Porto Alegre: Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social, 2016.

SEGATA, Jean. A doença socialista e o mosquito dos pobres. Iluminuras, Porto Alegre, v. 17, n. 42,
p. 372-389, ago/dez, 2016.

SORDI, Caetano e LEWGOY, Bernardo. O que pode um príon? O caso atípico de Vaca Louca no
Brasil e seus desdobramentos. Revista ANTHROPOLÓGICAS, ano 17, volume 24(1): 2013

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 11


Os seres da/na cidade: experiência vivida no vilarejo Passo dos Negros, Pelotas/RS

Daniel Vaz Lima18, Flávia Rieth19 & Louise Prado Alfonso20

Resumo: A experiência vivida na localidade do Passo dos Negros – pequeno vilarejo localizado às
margens do canal São Gonçalo em Pelotas/RS -motiva uma série de reflexões acerca do fazer cidade
por meio das interações entre os humanos e os outros animais. Nos deparamos com um lugar onde,
desde há muito tempo, estes coletivos coexistem de forma constante e próxima, constituindo
diferentes modos de habitar. Remonta à época das charqueadas, em que a região se configurou como
um contexto de circulação das tropas de gado bovino, tocadas a cavalo e cães, que cruzavam a região
em direção aos abatedouros localizados às margens dos rios. Atualmente, ao vivenciar o lugar,
percebemos em nossa volta a presença e circulação de animais junto às outras pessoas, automóveis e
motocicletas. Observamos diversos cavalos e vacas presos por cordas a beira das valetas ou pastando
pelas áreas de campo. Cruzamos por pessoas montadas em cavalos e por diversos cães soltos
circulando pelas estradas, trazendo a sensação de outras temporalidades, outros modos de habitar a
cidade. Assim, a proposta consiste em perceber os animais não humanos, em um aspecto relacional,
como detendo um modo de viver em interação, que não necessariamente está vinculado aos humanos.
O texto propõe descrever etnograficamente a composição desse contexto dentro de um processo
histórico e cultural.

Palavras-chave: Humanos e outros animais, modos de habitar, cidade.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 12


1 – Introdução

Ao propormos como título desta narrativa a seguinte frase “os seres da/na cidade”, certamente
estamos indicando uma referência ao vídeo etnográfico “Os seres da mata e suas vidas como pessoas”
(DEVOS et al, 2010) em que os autores apresentam a relação estabelecida entre os guarani com os
animais (os seres da mata). Em determinado momento o cacique diz que as pessoas não sabem o que
representam “aqueles bichinhos” para os guarani, considerando que cada ser tem uma história
relacionada a um processo de transformação. Todos eram seres humanos e num determinado
momento se transformaram em outro ser, ao passo que alguns, mantém uma proximidade de
parentesco. Os seres da mata compartilham com os guarani o ambiente e o movimento do tempo –
por exemplo, o cardeal anuncia o amanhecer e é somente depois que ele canta que os guarani podem
se levantar. Assim, partir da referência deste outro contexto de interação e compartilhamento de vidas
entre humanos e outros animais, elaboramos este texto nos desafiando a uma reflexão etnográfica
sobre os animais não humanos em contextos urbanos e suas maneiras de construir a cidade enquanto
seres, agentes e viventes citadinos. O texto é resultado de um conjunto de pesquisas que viemos
elaborando acerca da presença dos animais nos ambientes urbanos, tendo como contexto as cidades
pampeanas.

Nesse sentido, este texto etnográfico se insere em processo que se inicia a partir da pesquisa
do Inventário Nacional de Referências Culturais – INRC – lidas campeiras na região de Bagé/RS21
em que fora apontado a presença dos animais constituindo os contextos urbanos. Esta presença se
dava pela dinâmica de circulação dos trabalhadores campeiros, arraigada em um modo de ser e viver
- que adentra os contextos urbanos – de estreitas relações entre humanos e outros animais (SILVA,
2013; LIMA, 2014). Por conseguinte, tem-se nossa participação no Grupo de Estudos Etnográficos

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 13


Urbanos22 (GEEUR) sendo um grupo de pesquisa e extensão que, no projeto de 2016, atentou para
as diferentes dimensões de uma cidade plural aprofundando as reflexões sobre as fronteiras e as
margens enquanto territorialidades especificas da cidade e constituídas sob as dinâmicas de diferentes
produções de sentido e também sob a experiência urbana dos citadinos (GEEUR, 2016). Em síntese,
as discussões que fazíamos enquanto grupo atentavam para as diferentes maneiras de “fazer a cidade”.

Vinculado ao GEEUR o projeto de extensão intitulado “Narrativas do Passo dos Negros:


Exercício de etnografia coletiva para antropólogos/as em formação”23 mescla, a partir da experiência
vivida no vilarejo Passo dos Negros – Pelotas/RS, perspectivas da arqueologia pública com a
antropologia urbana, com vistas a reflexões sobre processos de vulnerabilidade e exclusão, sobre os
modos de habitar, sobre territorialidades e buscando compreender como são significados os processos
históricos, entrelaçando trajetórias de vida com a história local. Além disso, propõem-se identificar
as formas de ocupação do lugar, as diferentes relações com o Estado e as políticas públicas, as
disputas de interesses, enfatizando os modos de viver dos grupos marginalizados em relação à cidade.

Estas concepções, costuradas em nossas experiências acadêmicas para um olhar sensível às


múltiplas maneiras de se fazer a cidade no Passo dos Negros, para além do ato exclusivamente
humano, mesclou-se à nossa experiência em campo que atentou, inicialmente, para a presença e
circulação de cavalos (LIMA et al, 2016). Posteriormente, foi-se constituindo a percepção de um
contexto marcado pela presença de outros animais, junto às pessoas, carros e motocicletas que, em
seus fluxos e movimentos, nos motivou a ampliar as reflexões acerca do fazer cidade por meio das
interações entre os humanos e os outros animais. Portanto, esta proposta consiste em perceber os
animais não humanos em um aspecto relacional, como detendo um modo de viver em interação, que
não necessariamente está vinculado aos humanos. O texto propõe descrever etnograficamente a
composição do vilarejo Passo dos Negros dentro de um processo histórico e cultural.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 14


2. A cidade e suas margens

Desenhar uma “cidade múltipla”. Eis a noção que Michel Agier (2011; 2015) concebe à uma
antropologia que se debruça a uma pesquisa urbana. Por conseguinte, é uma cidade desenhada pelos
antropólogos por meio de uma junção de experiência pessoal com experimentação teórica de alguns
conceitos e modos de observar. Portanto, a antropologia da/na cidade propõe estabelecer um diálogo
com definições normativas, estatísticas e urbanísticas, enfatizando a possibilidade de uma pesquisa
relacional, local e micrológica buscando, assim, uma cidade contextualizada, ou seja, uma cidade
vivida, desterritorializada e em movimento (AGIER, 2011). Tal concepção alimenta uma infinidade
de problemáticas hibridas, complexas, sendo fonte para repensar as teorias da antropologia geral. O
ponto de vista do antropólogo sobre a cidade se dá pela convivência do(s) pesquisador(res) com os
diversos grupos e lugares, levando em conta suas experiências e práticas de “fazer cidade”. A proposta
é descrever a cidade por meio de “situações etnográficas” – cidade enquanto um “todo decomposto”
percebido e vivido em situação (idem, 2011, p. 38).

Nesse sentido, ao invés de nos questionarmos “sobre o que é a cidade”, atentamos para uma
descrição “sobre o que faz a cidade”. Enquanto um processo vivo e em constante (trans)formação,
desafia os antropólogos a vivenciarem as “múltiplas maneiras de ‘fazer cidade’” (AGIER, 2011, p.
41). “A cidade é feita de movimento” de transformação permanente no tempo e no espaço (idem,
2015, p. 484). Por conseguinte, Agier ressalta olharmos, não para o que se perde nas fronteiras da
“não cidade” – cidade desterritorializada -, mas o que aí nasce. Isso nos leva a uma “etnografia das
margens”, entendendo a margem não como fato cultural, social ou geográfico, mas, em uma oposição
epistemológica e política, “aprender o limite do que existe” (idem, 2015, p.487). O que é vivido nestes
lugares precários e extraterritoriais? Bairros populares, ocupações constituem-se enquanto lugares em
construção permanente. No caso específico das ocupações urbanas – caso de nosso estudo – constitui
a maneiras dos excluídos exercerem seu direito à cidade em suas presenças recalcitrantes.

Entretanto, a experiência etnográfica no Passo dos Negros nos levou à percepção de que não
somente as presenças recalcitrantes humanas que (des)fazem o lugar, mas também de outros animais,
que detém um modo de viver em interação, que não necessariamente está vinculado aos humanos,
mas que se constitui enquanto experiência de habitar. Humanos e outros animais tem suas
experiências cruzadas produzindo a cidade o que pode ser apreendido por meio de uma etnografia

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 15


multiespécie (SEGATA, 2015). Enquanto uma questão emergente na antropologia a “virada
animalistica” é um movimento de construção de etnografias cujo o olhar atenta para o lugar que os
animais não humanos ocupam na composição do social (SEGATA, 2015). Esses trabalhos se inserem
nos debates que questionam a ontologia do ocidente pautado nas distinções cartesianas - sob o rótulo
da distinção entre natureza e sociedade - sendo uma delas a distinção entre humanidade e animalidade.
A animalidade, assim, foi definida como uma deficiência daquilo que nós, humanos, supostamente
temos, tais como linguagem, razão e consciência moral (INGOLD, 1995). Nessa ontologia, os
animais não humanos são considerados autômatos, não dotados de capacidade subjetiva e de um
propósito consciente em seus atos (INGOLD, 1989). Nesse sentido, estava teoricamente
impossibilitada a sociabilidade entre humanos e os outros animais a não ser sob o efeito de projeções
simbólicas construídas pelos primeiros enquanto os detentores, por excelência, de cultura.

Questionando tais distinções, a antropologia simétrica, propõe uma visão alternativa de social
como vocábulo para “uma série de associações entre elementos heterogêneos” (LATOUR, 2012, p.
23) formando, assim, uma rede interligada de atores humanos e não humanos. A questão não está em
levantar a priori uma distinção e muito menos uma simetria, mas em atentar, a partir das relações
estabelecidas, à maneira como os não humanos tem agencia nas relações. Desta forma, adota-se a
compreensão de que eles também são atores, ou seja, exercem influência na composição de
determinada configuração social sendo um esforço de multiplicar e diversificar os agentes para além
do ato humano.

Todo o antropólogo está constantemente repensando e reinventando a antropologia sendo a


etnografia, mais do que um método, uma “formulação teórico-etnográfica” (PEIRANO, 2014, p.
383). E essas constantes reanálises que fazemos dos textos etnográficos são formas de dar voz às
experiências daqueles que nos antecederam – sejam os etnógrafos, sejam seus interlocutores - e nos
fazer refletir. O etnógrafo está constantemente disposto a deixar-se ensinar pelas pessoas com quem
vivencia, aprendendo as possibilidades dos modos de ser e, é nesse movimento, que se constitui o
nosso saber e modo de fazer. Esses encontros da teoria com a experiência fazem da antropologia um
constante “tornar-se”, uma teoria vivida (PEIRANO, 2008).Assim, esta pesquisa se insere no
conjunto dos demais trabalhos que compõem o projeto atentando para a multiplicidade de
possibilidades de se “fazer a cidade” a partir dos diversos agenciamentos dos humanos e dos não
humanos.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 16


Nesse sentido, que retomamos Agier (2011) ao enfatizar que o antropólogo desenha a cidade
entrelaçando experiência pessoal com conceitos e modos de observar. Entretanto, discordamos do
autor em sua concepção, baseada em Geertz (1989), de olhar a cidade por cima do ombro dos
citadinos. Neste passo que pensamos a partir de Roy Wagner (2010) que entende o trabalho de/no
campo como uma experiência do antropólogo em que, por meio dos seus próprios universos de
significados, identifica novas possibilidades de se viver a vida. Assim, experienciamos e cidade
enquanto também habitantes dela e o trabalho de campo é uma troca de aprendizagem que leva a uma
invenção da cidade e da antropologia. Vivenciamos o contexto da região do Passo dos Negros,
caminhando pelas estradas, conversando com as pessoas, sentindo as coisas e os lugares, o que nos
levou a reconstruir e vivenciar a memória e a história da cidade de Pelotas. Além disso, realizamos
uma etnografia coletiva (PEREIRA et al, 2015) onde as diversas etapas do trabalho de campo são
realizadas de maneira coletiva, constituindo diferentes relações entre pesquisadores e os diferentes
grupos que habitam o lugar. Uma etnografia coletiva possibilita diferentes formas de perceber o
contexto tornando o conhecimento um processo multidisciplinar.

Caminhar junto aos outros caminhantes, – nas palavras de De Certeau (1998, p. 171) –
“praticantes ordinários” do lugar e “cujo o corpo obedece aos cheios e vazios de um ‘texto’ urbano
que escrevem sem poder lê-lo”, remete aos traços deixados por quem passou pelo lugar. A experiência
de uma visita à localidade do Passo dos Negros consiste numa forma de reconstruir e conhecer - por
meio das pessoas e suas histórias - a memória e a história da cidade de Pelotas.

A região do Passo dos Negros está inserida no roteiro terrestre da “rota das charqueadas” - lei
número 4497, de 14 de outubro de 2003. O art 1° entende tal roteiro como “referência de fatos
históricos e de bens materiais e imateriais pertencentes à cultura do ciclo econômico do charque no
Município de Pelotas”. Em contraponto, apesar de ser uma região de referência cultural da cidade, a
mesma encontra-se em processo de abando pelo poder público local – sem redes de esgoto, sem rede
de luz elétrica e água. É parte da história pelotense levando a um passado de esplendor da elite – pelo
auge das industrias saladeiras de carne bovina e pelo suntuoso engenho de arroz marcando um novo
ciclo econômico do Rio Grande do Sul-, e ao mesmo tempo de um passado de escravidão para aqueles
em processo de exclusão considerando a existência de uma ponte de pedra construída pelos negros
escravizados (ALFONSO et al, 2015).

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 17


Ao longe os prédios novos que buscam um sentido de “modernidade” para a cidade. Prédios
bonitos e altos contrastam com os campos baldios, pequenas casas que habitam o local, sendo muitas
feitas de madeira. Mas a cidade avança sobre o lugar, considerado no seu plano diretor como um
“vazio urbano”, e os prédios – em construções - se apresentam cada dia mais perto. A existência de
um condomínio de classe média marca esta presença. O Passo dos Negros é constantemente
ameaçado, de um lado, pelo canal são Gonçalo com as suas águas correntes que espreitam a cidade
ansiosas para preencher os vazios da cidade que tenta domesticá-la, e de outro, o capitalismo
imobiliário que, aparado em segregação, distinção social, poder econômico e político, força as
pessoas a saírem de suas residências, dos seus locais de habitar. O Passo dos Negros carrega em sua
história a invisibilidade dos projetos urbanísticos embora participando como contexto dos mais
importantes momentos históricos da cidade.

Imagem 1 - Foto de Guilherme Rodrigues.24

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 18


Às margens do Canal São Gonçalo nos deparamos com um lugar onde, desde há muito tempo,
coexistem humanos e não humanos de forma constante e próxima. À época das charqueadas as tropas
de gado cruzavam o passo para depois serem levadas aos saladeiros localizados às margens do Canal,
o qual, servia para escoar a produção do charque. Entretanto, apesar de não existirem mais tropas
cruzando Passo dos Negros, nas idas a campo foi possível perceber que os animais não humanos são
parte importante daquele lugar. Foi possível observar a circulação de muitos cachorros, gatos,
cavalos, pássaros e, até mesmo, alguns porcos pela região. Experienciamos outra temporalidade dos
movimentos que nos convidou a contemplar a paisagem, nos chamando para os campos baldios que
contrastavam com a dinâmica de um lugar densamente habitado, nos conduzindo para outro modo de
estar na cidade.

2 – “Me criei olhando as tropas passar”: a rota dos caminhos das tropas

Em contraposição à uma concepção de cidade arquitetada dentro de um projeto político,


considera-se uma cidade, para além desse projeto político e arquitetônico, constituída por múltiplos
agentes com diferentes trajetórias. A elaboração desta referência histórica atenta para os caminhos
traçados por meio de passos que moldam espaços e tecem os lugares (DE CERTEAU, 1998, p. 176).
Nesse sentido, este texto inicia a caminhada retornando a um ponto da história que marca a elaboração
destes caminhos. Ao que segue, apresentamos uma narrativa sobre a economia saladeril e escravista
enquanto contexto para a elaboração de uma concepção da região do Passo dos Negros, assim,
inserida em um processo histórico. Uma relação com o passado mediada pelo presente, ou seja, são
as vozes contemporâneas que estão orientando um encontro com o material referente ao passado
(MELLO, 2012, p. 82).

O município de Pelotas, localizado ao sul do Rio Grande do Sul, Brasil, às margens do canal
São Gonçalo e do Arroio Pelotas, se estruturou por meio dos caminhos das tropas (RAMOS, 2013)
levando ao período da economia saladeril e escravista momento que marca a ocupação branca do
território. Em 1758 é outorgada a carta de sesmaria ao coronel Thomáz Luiz Osório constituindo o
chamado “rincão das pelotas”. Por ser uma região de disputa entre espanhóis e portugueses, a coroa
portuguesa voltada à expansão do domínio colonial, em prol da expulsão e o massacre dos povos

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 19


indígenas que ali habitavam, doou sesmarias de campo a militares, líderes de grupos armados e alguns
religiosos (GUTIERREZ, 2006). Posteriormente o chamado “rincão das Pelotas” fora dividido em
sete sesmarias: Feitoria, Pelotas, Santa Bárbara, São Thomé, Pavão, Santana e Monte bonito sendo
este último cuja localização consistia nos limites tendo a leste o arroio pelotas, a oeste o canal santa
bárbara, ao sul o canal são Gonçalo e a norte a serra dos tapes. Por conseguinte, fora divido, em 1780,
em 19 datas de terras (GUTIERREZ, 2006; RAMOS, 2013) em que se instalaram as primeiras
charqueadas, sendo locais em que se produzia carne bovina salgada e seca ao sol - charque.

O vasto gado existente nos campos neutrais, a facilidade de acesso às redes fluviais forma
uma das razões da partilha destes quinhões de terras com vistas a produção de charque. Conforme
Gutierrez (2006) estas divisões deram-se no mesmo sentido ficando as manufaturas de produção do
charque nas margens ribeirinhas – para o transporte do charque e para lançar os dejetos - e ao fundo
o limite com as terras destinadas ao logradouro público local em que gado era comercializado.

A instalação das charqueadas considerou a viabilidade do escoamento da produção e


recebimento de mercadorias, dentre elas a mão de obra escrava. O transporte fluvial era a opção viável
pois a proximidade com a Lagoa dos Patos facilitava o acesso ao Oceano Atlântico. Desse modo, as
charqueadas estavam ligadas as demais regiões do Brasil e ao mercado mundial (ROCHA, 2014;
MAESTRI, 1984). Aproximadamente 40 indústrias charqueadoras se instalaram na região da atual
área urbana do município de Pelotas, às margens do canal São Gonçalo e do Arroio Pelotas.

No decorrer do século XIX, durante o auge da produção de charque, Pelotas teve grande
concentração de mão de obra escrava considerando que a produção para o mercado externo
demandava significativa mão de obra. Além disso, o abate e processamento de um boi demandava
uma série de pessoas especializadas (RODRIGUES, 2015). À época, o Passo dos Negros, às margens
do canal São Gonçalo, foi um local de embarque e desembarque de pessoas escravizadas que
desembarcavam dos navios negreiros no porto do Rio Grande e se deslocavam via lagoa dos patos
entrando no canal São Gonçalo para serem comercializadas no Passo dos Negros e encaminhadas
para outros dos diversos pontos de comercialização (ROSA, 2012, ROCHA 2014, RODRIGUES,
2015). A tão grande concentração de negros “acolherados e levas como tropa em leilão” (DE LEON,
2001) levou a região a receber esta denominação de Passo dos Negros.

O termo “passo” indica um lugar, no curso de um rio, canal ou riacho, que serve para passagem
de humanos e animais. Nesse sentido o local também se constituía como lugar de passagem dos

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 20


rebanhos animais que se deslocavam, das fazendas da região sul, das chamadas vacarias del mar e
também do Uruguai. Tropeiros, cavalos, cachorro e bois atravessavam o canal onde iniciavam a
trajetória pelo Corredor das tropas que levava ao centro de comercialização, denominada Tablada.
Conforme De Leon (2001) a estrada ficava congestionada com o intenso fluxo de tropas (de humanos
e animais). A Tablada fora construída de maneira que ficasse contigua ao fundo das áreas das
charqueadas e, assim, o gado vendido se deslocava por dentro da propriedade até o lugar de abate,
entretanto, alguns saladeiros, localizados as margens do canal São Gonçalo não estavam ligados à
área da tablada, tendo os tropeiros fazer uso do corredor das tropas para se deslocarem. Assim, havia
encontro de tropas de gado sendo que uma aglomerava para deixar a outra passar. Este intenso
movimento danificava as estradas e, sendo a região marcada por banhados, em 1820, a câmara de
vereadores solicitou aos charqueadores a disponibilização de negros escravizados para a construção
da ponte de pedra que hoje é uma das referências ao passado de escravidão da cidade.

Imagem 2 -Travessia do São Gonçalo para as charqueadas de Pelotas (Jean Baptiste Debret) –
Disponívelem:http://www.vivaocharque.com.br/interativo/artigo27. Acesso–25desetembrode2015.

Seguindo os caminhos das tropas estas chegavam à Tablada para serem comercializadas.
Hebert Smith (1922), naturalista norte-americano que viajou pelo Rio Grande do Sul na segunda
metade do século XIX descreve o processo de maneira tão instigante a atenção de quem lê, que
decidimos colocar a sua descrição do ambiente da tablada e o caminho que o gado tomava depois de
vendido:

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 21


Uma das mais características e ao mesmo tempo mais selvagens e interessantes vistas de
Pelotas é a Tablada. Chama-se assim um descampado extenso e quase liso, onde de dezembro
a maio se vendem as manadas que chegam. Algumas trazem quinze dias de viagem. Pôde
haver aqui ao mesmo tempo umas vinte datas, cada uma de centenas de cabeças; rudes
gaúchos, vestidos com a habitual camisa de chita, ceroulas fofas ou bombachas e ponchos
riscados, galopam em todas as direções, conservando os animais nos lugares e impedindo
que se misturem as tropas; o gado, cansado do longo caminho o espantado da cena estranha,
conserva-se junto, movendo os chifres e urrando em tom de queixume. Os donos das
charqueadas movem-se rapidamente aqui e ali em belos cavalos, examinando as várias tropas,
calculando-lhes o valor com rapidez e precisão admiráveis, e fechando os negócios ás pressas
com estancieiros e peões. O mercado é sempre ativo, porque a concorrência é muito forte
entre os vinte ou trinta charqueadores; em geral as boiadas inteiras estão vendidas pouco
tempo depois de chegadas.

Imediatamente levam-nas para uma das charqueadas junto ao rio, onde as prendem algumas
vezes por muitas horas, em cercados que se chamam mangueiras. Estas se adelgaçam em
ponta numa das extremidades, onde comunicam com um curral menor chamado mangueira
da matança, capaz de conter trinta cabeças do gado juntas, afocinhando em ambas as
extremidades, fortemente cercado, com um pavimento de pedras lisas ou chaprões inclinados
para a extremidade oposta à entrada; por fora da cerca, e rodeando-a, há um passeio de
taboões para os trabalhadores.

A matança em geral é de manhã. Cheia de gado a mangueira da matança, fecham-na, e atira-


se um laço ao chifre ou à cabeça do animal; este laço, passado por um moitão, é preso a uma
junta de bois ou cavalos, os quais são tangidos imediatamente do curral, arrastando o animal
laçado, pelo declive escorregadio até em baixo: aqui fica diretamente debaixo da mão do
desnucador, que levanta um punhal comprido e muito afiado e embebe-o no pescoço do
animal, geralmente entre o atlas e os ossos ocipitaes. Este golpe não mata instantaneamente,
porém priva de toda sensibilidade; o animal cai em um carro de plataforma, que é continuo
com o soalho da mangueira; levanta-se uma porta, tira-se rapidamente o carro, descarregam-
no e põem-no de novo no lugar, a tempo de receber outro animal que, entrementes, foi laçado.
A operação inteira leva cerca de um minuto, e muitas vezes num só estabelecimento no
mesmo dia matam-se 600 e 700 cabeças de gado.

A carcaça, puxada do carro por um homem a cavalo, está agora no grande edifício em que
são executadas as operações restantes, quase sempre por escravos. Esfola-se rapidamente o
couro, tomando cuidado, ao abrir o pescoço, de enterrar uma faca no coração, que ainda bate.
Acabada a esfolação, tira-se limpamente a carne dos ossos em oito pedaços, que são lançados
em estacas horizontais; dois trabalhadores hábeis cortam-na e retalham-na então de maneira

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 22


que cada pedaço fica reduzido a espessura uniforme de cerca de quinze milímetros. Para esta
operação emprega-se um verbo especial — charquear — e d'ele derivam os substantivos
charque, charqueada, charqueador. (SMITH, 1922, p 137 e 139)

Ester Gutierres (2006) escreve o estranhamento dos viajantes que cruzaram a região. O cheiro
horrível nas águas com ilhas de sangue em putrefação e de carne apodrecendo nos campos
alimentando uma multidão de cães selvagens e de abutres que viviam sobrevoando a região. O
estranhamento de Smith é emblemático. Uma cidade “rica” e “prospera” marcada, às suas margens,
pela impressão horrível da morte, da dor, da sujeira, do cheiro de carne apodrecendo.

Ha um não sei que de revoltante e ao mesmo tempo cativador nestes grandes matadouros; os
trabalhadores negros, seminus, escorrendo sangue; os animais que lutam, os soalhos e sarjetas
correndo rubros, os feitores estólidos, vigiando imóveis sessenta mortes por hora, os montes
de carne fresca ‘dessorando', o vapor assobiando das caldeiras, a confusão, que, entretanto, é
ordem: tudo isto combina-se para formar uma pintura tão peregrina e hórrida quanto pôde
caber na imaginação. De toda esta carnificina dimanou a riqueza de Pelotas, uma das mais
prosperas entre as cidades menores do Brasil. (SMITH, 1922, p 140)

A partir do século XX tem-se a decadência do ciclo do charque e a emergência de novos ciclos


de produção tais como a introdução de novos cultivos como o arroz e a transformação de algumas
charqueadas em frigoríficos seguindo a circulação das tropas junto as transformações da cidade até
meados da década de 1980.Nesse sentido, que a história passa a ser contada pelas narrativas do artesão
Camilo Pereira. A casa/oficina do Camilo fica próxima ao campus da Universidade Federal de Pelotas
(UFPel), localizada a beira do São Gonçalo. Anteriormente o local foi a charqueada de Brutus
Almeida que, em 1916, sediou o primeiro frigorífico gaúcho denominado “Companhia Frigorífica
Rio Grande” vendida, em 1924 e ficando desativada até 1942, quando iniciaram as obras de
construção e adequação de um novo Frigorífico chamado Anglo. A estrutura permitia o abate diário
de mil bovinos, quinhentos suínos, quinhentos ovinos e mil aves. No local em que o artesão reside
ficavam as entradas das mangueiras em que colocavam o gado antes de serem abatidos.

Camilo é um artesão reconhecido no Rio Grande do Sul por suas esculturas em madeira que
representam as lidas campeiras – saberes e modos de fazer pecuário. O próprio artesão foi peão
campeiro e diz que o que aprendeu nessas atividades é a inspiração para as formas que esculpe. Não
é a junção de peças separadas, mas em um só tronco de madeira, se molda toda a forma: carreta, bois,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 23


cangas, cabeçalhos e o carreteiro com a guiada. Em volta da oficina encontram-se estantes penduradas
na parede contendo algumas esculturas de cavalos pulando, peões laçando bois.

O escultor nos contou que havia iniciado na arte de desenhar, mostrando-nos alguns desenhos
que fizera, embora sua preferência fosse pelo artesanato em argila, retirando o barro sovado pelas
tropas que passavam em frente à sua casa para construir a cerâmica. Mais do que isso, atribui seu
gosto pela arte e pelas lidas campeiras a partir do encanto gerado pela passagem das tropas.

Eu me criei olhando as tropas passar. Era bastante gado. Aquilo custava a passar e
a gente ficava olhando. Eu me encantava – veja a tendência já da coisa. [...] aquilo
era boi, boi... e não parava de passar boi e nos torcendo para que eles descem de
volte. Sabe, as vezes acontecia de dar um estouro e as tropas voltarem correndo
para trás. A gente era guri e gostava de ver aquilo. (Entrevista em 16 de fevereiro
de 2017)

Dialogando com Michel Agier (2011) em sua concepção do desenhar a cidade pelas mãos do
antropólogo, experienciamos o artesão rabiscando para nós, no chão de cimento de sua oficina, as
trajetórias das tropas pela cidade até a área do frigorífico.

As tropas vinham lá da São Francisco de Paula [antigo corredor das tropas],


passavam no pontilhãozinho [ponte dos dois arcos] e [entravam] na avenida cidade
de Rio Grande. Chegando a rótula subiam a Tiradentes, até o portão. Esse portão
que era o local de entrada para a área do frigorífico. Ali apartavam a cavalo cem
bois de um, duzentos de outro. Depois passavam nas balanças e já vinham para as
mangueiras que ficavam aqui na frente de casa. (Entrevista em 16 de fevereiro de
2017)

Assim, concebemos a agencia dos animais na construção do lugar enquanto seres que
compartilham o mundo com os humanos. Conforme Andrea Osório (2015) os animais fazem a
história a partir da interação com os humanos. Além disso, a própria noção de “história dos animais
parece tentar se afastar da cômoda zona de conforto do estudo das representações humanas para
ingressar no turbulento território em construção dos animais como agentes subjetivos, sensórios e dão
significado ao seu mundo.” (Idem, p. 91).

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 24


3 – Ao passo de humanos e outros animais

A van da universidade para em frente a um antigo engenho de arroz cujo o início das atividades
remonta ao final do século XIX. Somos recebidos por diversos cachorros que passam a nos
acompanhar por toda a caminhada. Junto a nós eles caminham pelas ruas, correm pelos banhados nos
campos baldios, brigam com outros cães e habitam o lugar sem nenhum empecilho. Cruzando uma
pequena ponte de madeira em estado de ruínas alguns moradores, charreteiros, gritavam em tons de
zombaria sobre a possibilidade desta ponte quebrar. Nosso grupo segue em direção até a antiga ponte
que marca a memória das pessoas que residem no local. A ponte dos “dois arcos” construída ao final
do antigo corredor das tropas remete os moradores ao passado, pois fora “construída pelos escravos”.
No presente, está sofrendo ameaças pela presença de um bairro residencial construído a pouco menos
de 20 metros. O Bairro é separado do local por um grande muro o qual marcava as narrativas dos
vendedores dessas moradias como a segurança de que não haviam ameaças e possibilidades de
interações com as pessoas que ali residiam.

Quando estamos na ponte somos recebidos pelo Seu Pedro que vive no local a mais de 40
anos. Observamos em volta da ponte a presença de tartarugas e pássaros nos juncais que escondem
um canal com mais de 5 metros de profundidade. Por baixo desta ponte cruzam as águas que vão
desembocar dentro do canal São Gonçalo. Seu Pedro lamenta que antes da construção do condomínio
ao lado, haviam muitos peixes jundiás neste pequeno canal, entretanto, o esgoto vindo das casas do
condomínio passou a ser jogado dentro do canal o que ocasionou a morte destes peixes.

Seu Pedro possuía cinco cavalos que habitavam os terrenos baldios, sendo animais de tração
para fretes e recolhimento de resíduos sólidos pela cidade. O terreno onde deixava seus cavalos era
propriedade de um grande produtor de arroz, porém esses campos nunca tiveram cercas e os
proprietários não se preocuparam em fechar. Ao ser perguntado sobre a relação com os grupos de
proteção animal respondeu que nunca teve embates: “Qualquer lugar que tiver que ir o cara vai.
Nossos cavalos não são rachando de gordo, mas não são magros pois damos ração para eles.” Para
ele, a questão do bem-estar animal está vinculada a ter um cavalo em condições de puxar a charrete.
Há muitos cavalos nos campos e, devido a isso, tem-se uma precariedade de pastos sendo necessário,
para aqueles que tem condições financeiras, suplementar com ração.

Por conseguinte, a pergunta sobre a questão dos grupos de proteção animal se insere em um
contexto em que a cidade discute – grupos de proteção e poder público - a substituição das carroças,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 25


puxadas por tração animal, por outras formas alternativas. Andréa Osório (2013) discorre sobre a
noção de que com o processo de modernização das cidades o lugar dos animais passa a não ser na
rua, mas o ambiente doméstico. No processo de modernização entre os séculos XIX e XX alguns
animais não humanos considerados nocivos às pessoas ou à modernidade da cidade, eram
exterminados pelo poder público. A partir da segunda metade do século XX, há uma alteração nas
relações entre Estado e animal passando, do extermínio, para uma noção de “posse responsável”,
sendo a fase de prevenção ao abandono. O Estado passa regular as relações a partir de uma concepção
que considera que são os humanos os seres nocivos aos outros animais. Porém, embora sejam
diferentes concepções, elas estão levando a ideia de que a rua não é o local para a presença e
circulação dos animais não humanos.

O diálogo com a autora se dá no sentido de o vilarejo não ser considerado pelos moradores
como cidade. No plano diretor do município a região encontra-se no perímetro urbano dentro da
subdivisão administrativa São Gonçalo. Retomando nossas conversas com Camilo Pereira, este aluga
uma “chácara” no Passo dos Negros onde coloca seus cavalos de montaria. Camilo frequenta
diariamente a sua chácara, que fica a 5 minutos de carro do lugar em que reside e possui sua oficina.
Em nenhum momento se referiu da maneira como as pessoas na região dizem quando vão para o meio
rural que é usar a expressão “ir para fora”. Aliás, em sua hospedaria em diz fugir do “forno da cidade”
indicando os barulhos de carros, a violência e a própria temporalidade no que considera cidade. Nesse
sentido que o diálogo com Andrea Osório se faz interessante considerando que os animais
compartilham as ruas com os humanos que não consideram o lugar como cidade, sendo suas
presenças, de certa forma, aceitas.

Os cavalos não são, em sua maioria, utilizados para trabalho. Em nossas caminhadas
encontramos hospedarias para cavalos, nas quais os proprietários destes animais alugam espaços ou
têm permissão dos responsáveis dos campos para deixarem seus animais. Nas proximidades destes
lugares, também passeiam com seus cavalos, seja pela estrada, seja galopando pelos campos. Em
certo momento, nos deparamos com um senhor que segurava um cavalo por uma corda enquanto este
pastava. Seu Odilon residia num bairro próximo e criava quatro cavalos. Quando o encontramos,
estava cuidando sua égua de montaria chamada “Estrela”. No decorrer da conversa enfatizou a
docilidade da Estrela: “Foi mansinha desde pequena. Consegui ela, acho que ela tinha uns 7 meses.”
Onde mora, a transformação do lugar tirou os espaços para esses animais. Por isso, deixa seus cavalos

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 26


nas áreas de campo que tem no Passo dos Negros. Nos contou que os cavalos são criados pelos
moradores do Passo e de localidades próximas “Só por ter mesmo, para passear, para dar uma banda
de vez em quando (...).”

Não somente os animais são aceitos pelas pessoas que habitam o lugar como também é
contexto onde as pessoas que querem se desfazer de seus bichos de estimação, utilizam para largá-
los. A presença de animais nesta situação mobiliza a ação de entidades protetoras dos animais que,
dentro das concepções etnografadas por Andrea Osório (2013), objetivam diminuir a presença destes
nas ruas.

Tem uma moça que vem aqui sempre, até ela é vereadora agora. Ela vem, trata os
cachorros, faz campanha para castrar as cadelas, cachorros e gatos. Para diminuir
um pouco porque é um horror de bicho que tem aqui. As pessoas jogam os bichos
fora tudo aqui. Aí vem dar comida, alimenta esta bicharada toda, traz remédios, faz
tudo aí. (Entrevista em 12 de junho de 2016).

O tempo é constituído por este caminhar dos animais junto às pessoas. Alguns cavalos soltos
caminhavam em duplas ou grupos pelas ruas sem nenhuma intervenção humana. Suas presenças
recalcitrantes (des)fazem o lugar em constante transformação pelos seus movimentos. Detém um
modo de viver em interação que se constituem enquanto experiência de habitar.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 27


Imagem 3 – Foto de Guilherme Rodrigues.

Mas a rua não deixa de ser um lugar de risco e, nesse caso, também para os humanos. A
emblemática presença de um “fio de gato” que, jogado ao chão próximo a uma valeta em paralelo a
estrada, leva energia para os lugares que as políticas públicas não chegaram. Este fio gera a
possibilidade de morte, tanto para humanos, quanto para os outros animais. A narrativa de uma
senhora que reside na última casa que possui energia elétrica traz questões interessantes para o
compartilhamento de vidas. Ao ser perguntada sobre os riscos de choque ela nos falou que já
morreram vacas, cachorros e cavalos por acidentes com este fio. As pessoas também arriscam suas
vidas como é o caso de uma moça grávida que concertou os fios:

Outro dia uma guria ali, grávida, com uma barriga enorme. Chovendo e ela lá
arrumando os fios. Deu curto e o fio rebentou. Ali ela pegou o fio a mão desencapou
com o alicate, torceu com este alicate e jogou em cima do capim, sem uma fita
isolante, nem nada. (Entrevista no dia 12 de junho de 2016)

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 28


A mesma sorte não teve uma vaca prenhe que pastava no local. A interlocutora enfatiza o fato
com o espanto de o animal está na mesma situação de estar gestando uma nova vida:

Teve uma época que estava dando choque na rua. Aí foram ali e deram uma ajeitada.
Agora não está dando choque. A vaca, coitada, deus me perdoe. A vaca, prenhe,
pronta para dar cria. Sabe o que fizeram? Puxaram ela mais para lá e carnearam
para comer a carne. O bicho morreu eletrocutada, grávida, ficou acho que tres
horas ali e depois carnearam. Que perigo! Os cachorros morrem e eles atiram
dentro do canal.”

A noção de “pobreza como risco” (SEGATA, 2015) ultrapassa para além do humano, para os
não humanos que vivenciam o lugar destituído de políticas públicas básicas como energia elétrica.
Esta senhora, refere-se ao fato de a empresa considerar como fator para instalarem energia elétrica
em tal lugar, a compra e implantação de no mínimo três postes de luz cujos os valores são acima do
poder de compra dos habitantes que, assim, preferem fazer o “gato”:

“A CEEE [Companhia Estadual de Energia Elétrica] disse para mim que para
resolver isso eu tinha que fazer uma denúncia formal e assinada para eles vim
retirar. Eu disse que não ia fazer porque não queria me incomodar. Aí eles [ a
CEEEE] vem, arrancam os fios e os caras ligam os fios de novo e é eu que vou ficar
queimada. E daqui para lá tem uns quantos que vivem só de roubo. Podem vir em
minha casa e roubar. Eu não vou estar arrumando incomodarão com este tipo de
pessoa.”

4 – Considerações finais

“Tecer a rede” (FREIRE, 2006) implica em descrever as conexões entre os atores – humanos
e não humanos - que deixam traços ou efeitos visíveis em outros agentes, ou seja, quando se tornam
parte na construção de uma rede de relações. No contexto do vilarejo do Passo dos Negros, localizado
na região sul da área urbana de Pelotas/RS, atentamos para a maneira como os humanos e outros
animais tem suas experiências cruzadas, dentro de um processo histórico e cultural, produzindo a
cidade. A existência de tais coletivos remonta à época das charqueadas enquanto contexto de
circulação das tropas de gado bovino, que cruzavam o lugar com seus berros “queixosos” e cansados
sendo tocados aos gritos pelos tropeiros montados em cavalos e auxiliados por cães, em direção a

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 29


tablada ou aos matadouros localizados às margens dos rios. Atualmente, ao vivenciar o lugar,
percebemos nas ruas e nos terrenos baldios o compartilhamento de vidas pela circulação de animais
junto às outras pessoas, automóveis e motocicletas, e de risco de morte e de doenças que a
contaminação dos canais e do próprio São Gonçalo podem trazer. Embora ainda não se retirou dos
animais não humanos a responsabilidades por suas próprias vidas, dando-lhes o “direito à cidade”
(OSÓRIO, 2013; AGIER, 2015) o avanço do capitalismo imobiliário poderá retirar tais direitos dados
tanto aos humanos quanto, aos outros animais.

Imagem 4 – Foto de Guilherme Rodrigues

5 - Referencias

ALFONSO, L. P.; Ortiz, S ; SEGER, D ; PEREIRA, I. K. S. ; ARAUJO, J.M. Aflorando memórias:


narrativas de escravidão do Passo dos Negros. In: XVIII Congresso da SAB, 2015, Goiânia. Livro
de Resumos XVIII Congresso da SAB, 2015.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 30


DE CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998.

DE LEON, Z. P. Pontes. Viva o Charque. Disponível em:


http://www.vivaocharque.com.br/cenarios/pontes.php. 2001. Acesso em 27 de dezembro de 2016.

DEVOS, R. V.; POTY, V; ROCHA, Ana Luiza Carvalho da. Os seres da mata e sua vida como
pessoas. 2010. (Documentário Etnográfico)

AGIER, M. Antropologia da cidade: lugares, situações, movimentos. São Paulo: Editora Terceiro
Nome, 2011.

AGIER, M. Do direito à cidade ao fazer cidade: o antropólogo, a margem e o centro. MANA, 21(3),
p. 483 – 498, 2015.

FREIRE, L. L. Seguindo Bruno Latour: notas para uma antropologia simétrica. Comum, v.11, n.26,
p. 46 – 65, 2006.

GEERTZ, C. Uma descrição densa: Por uma teoria interpretativa da cultura. In: A interpretação das
culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008, pag. 05 – 21.

GEEUR. Terceiro Ciclo de Estudos: cidade, margens e materialidade. Projeto de ensino, 2016.

GUTIERREZ, E. J. Sítio Charqueador Pelotense. In: BOEIRA, Nelson; GOLIN, Tau (Coord.).
História Geral do Rio Grande do Sul. Passo Fundo: Editora da UPF, 2006. pp. 231-256.

INGOLD, T. The Architect and the Bee: Reflections on the Work of Animals and Men. Man, New
Series, Vol. 18, No. 1, p. 1-20, Mar., 1983.

________. Humanidade e animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Junho de 1995.

LATOUR, B. Reagregando o Social: uma introdução à Teoria do Ator-Rede.

Salvador/Bauru: Edufba/Edusc, 2012, 399p.

LEI Nº 4.977, DE 14 DE OUTUBRO DE 2003. Institui o Roteiro das Charqueadas como referência
cultural e dá outras providências.

LIMA, D.V. “Cada doma é um livro”: A relação entre humanos e cavalos no pampa

sul-rio-grandense. 2015, 146f, Dissertação (Mestrado em Antropologia), ICH, UFPel,

Pelotas.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 31


LIMA, D.V.; ARAUJO, J. M.G.; ALFONSO, L. P.; RIETH, F. Ao passo de humanos e cavalos:
etnografia na localidade Passo dos Negros em Pelotas-RS. Anais do XVIII Encontro de Pós-
Graduação da Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, 2016.

MAESTRI, M. J. O Escravo no Rio Grande do Sul: a charqueada e a gênese do escravismo gaúcho.


Porto Alegre: EST (Escola Superior de Teologia São Lourenço de Brindes); Editora da Universidade
de Caxias do Sul, 1984.

MELLO, M. M. Reminiscências dos Quilombos: territórios da memória em uma comunidade negra


rural. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012. 267p.

OSÓRIO, A. A cidade e os animais: da modernização à posse responsável. TEORIA E


SOCIEDADE, nº 21.1 - janeiro-junho de 2013.

________. Entre o real e o representado: um debate na história dos animais. Caderno Eletrônico de
Ciências Sociais, v. 3, n.1, p. 75 – 94, 2015.

PEIRANO, M. Etnografia, ou a teoria vivida, Ponto Urbe, 2 , 2008.

_______. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v. 20, n. 42, p. 377-
391, 2014.

PEREIRA, I. K. S.; SEGER, D. D.; ORTIZ, S. F.; ALFONSO, L. P. O passo dos negros: desafios
da etnografia coletiva em um projeto de extensão. Anais do Congresso de extensão e cultura, Pelotas,
2016.

RAMOS, S. M. P. Estrutura urbana histórica: A importância dos primeiros caminhos e sua


permanência na estrutura urbana de Pelotas, RS. Dissertação (Mestrado em Geografia), Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande – FURG, 2013.

ROCHA, M. G. Arqueologia da Escravidão e Patrimônio Cultural no Passo dos Negros (Pelotas,


RS). Pelotas: UFPEL - Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio Cultural (Dissertação
de Mestrado), 2014.

RODRIGUES, M. B. “A vida é um jogo para quem tem ancas”: uma arqueologia documental de
mulheres escravas domésticas em Pelotas/RS no século XIX. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) – Programa de Pós-Graduação em Antropologia - Instituto de Ciências Humanas /
Universidade Federal de Pelotas. Pelotas, junho de 2015.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 32


ROSA, E. J. Paisagens Negras: arqueologia da escravidão nas charqueadas de Pelotas (RS, Brasil).
Pelotas: UFPEL – Programa de Pós-Graduação em Memória e Patrimônio Cultural (Dissertação de
Mestrado), 2012.

SEGATA, J. O que faz um animal de estimação na antropologia? Revista novos debates, vol. 1, n. 2,
p. 123-130, 2014.

________. A doença socialista e o mosquito dos pobres. Iluminuras, Porto Alegre, v. 17, n. 42, p.
372-389, ago/dez, 2016.

SILVA, L. B. M.. Entre lidas: Um estudo de masculinidades e trabalho campeiro na cidade. Trabalho
de conclusão de curso (Dissertação de mestrado). Programa de Pós-Graduação em Antropologia –
Mestrado (PPGA). Universidade Federal de Pelotas (UFPel), 2014.

SMITH, H. Do Rio de Janeiro a Cuyabá: Notas de um naturalista. São Paulo:

Melhoramentos, 1922.

WAGNER, R. A invenção da cultura. São Paulo: Cosac Naify, 2010.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 33


“Entre o desprezo e a estima habitam pombos, ou, como se conviver com o cotidiano não
amado”25

Sarah Faria Moreno26

Resumo: Este trabalho pretende abordar uma reflexão a respeito das diversas relações entre pessoas
e pombos urbanos no contexto da cidade de Santos, especialmente no porto – que se faz como local
foco de minha pesquisa. Essas reflexões partem da noção de unloved others, de Deborah Rose e Thom
van Dooren (2011), bem como da antropologia da vida, de Eduardo Kohn (2007; 2013). Nota-se, a
partir dos dados trazidos, tanto por meio de notícias, quanto de minha pesquisa de campo, dois
pressupostos antitéticos de relações entre pessoas e pombos, os quais apontam para interações de
combate, nojo, controle e apreciação, proteção, convívio por parte das pessoas. Espera-se trazer,
então, ao debate, questões referentes às possibilidades de convivência, ou, como se propõe neste
contexto de discussão, o viver entre animais. Entendendo que estas interações se dão de maneiras
diversas, procuro refletir como a noção de unloved others pode auxiliar para se pensar os pombos,
uma vez que, estes, em determinados contextos e situações, podem se tratar de uma espécie tida como
não querida pelas pessoas. Também se fará necessário mostrar o contraste das relações, isto é,
situações em que pombos são apreciados pelas pessoas, bem como o contraste com outras espécies
animais que se aproximam, ou distanciam, destas posições de apreço e desgosto. Desta maneira, trago
alguns dados iniciais de meu campo que apontam para possibilidades ambíguas de se conviver com
os pombos, bem como no que diz respeito aos espaços por eles habitados, principalmente o Porto de
Santos.

Palavras-chave: humanos e animais; pombos; unloved others; cidades.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 34


Mais próximo do que parece; mais conhecido do que se pensa: quem são esses não amados de
nosso cotidiano?

A proposta deste artigo é pensar os pombos urbanos a partir da noção de unloved others, de
Deborah Rose e Thom van Dooren (2011), levando em consideração diversos contextos e situações
das relações entre as pessoas e estas aves. Não se trata de já pressupor que pombos sejam, de fato,
não amados, uma vez que, como veremos adiante, alguns dados apontam para a apreciação dos
pombos; trata-se, portanto, de analisar como essa noção pode nos ajudar a pensar os pombos urbanos,
verificando se existem similaridades com as relações já estudadas por antropólogos que se utilizam
deste termo (VAN DOOREN, 2011; TSING, 2011), com o material inicial que venho coletando a
respeito das relações diversas entre pessoas e pombos. Este é um dos interesses de minha dissertação
de mestrado, a qual deverá abarcar, para além desta, outras questões que interessam à Antropologia,
a partir das relações entre humanos e animais – em específico as aves –, a saber: como os pombos
são pensados a partir de critérios éticos, estéticos, políticos, religiosos, sanitários, e de que modo eles
nos ajudam a refletir sobre as relações entre natureza e cultura nas cidades.

Os dados de campo, previamente coletados, são notícias veiculadas pela imprensa, local e
global, sobre algumas relações estabelecidas entre pessoas e pombos urbanos – as quais me foram
essenciais para a construção da ideia de pesquisa –, bem como os primeiros relatos de minha pesquisa
de campo, a qual tem como foco o Porto de Santos, por se tratar de um local atrativo aos pombos,
tanto pelas condições de sua arquitetura, quanto de sua dinâmica; isto é, devida a grande
movimentação de grãos, e consequentemente seu derramamento, que ali ocorre, os pombos passam a
ocupar, principalmente, os terminais do porto.

Esses dados apontam para algumas possibilidades de relação, como o combate, nojo,
controle, apreciação, proteção e convívio. As notícias trazem os pombos como pragas urbanas,
vetores a serem combatidos de diversas formas, geradores de um enorme incômodo às pessoas, mas
também apontam para um convívio positivo entre as pessoas e os pombos, seja alimentando-os ou
deixando-os empoleirarem em seus corpos e moradias; outras notícias, ainda, relatam um quesito
artístico de apreço pelas aves na forma de fotografias, bem como intervenções artísticas com as
mesmas. Já os dados de campo, embora iniciais, apontam para algumas tensões dentro disso que estou
chamando, provisoriamente, de rede portuária – isto é, todos os agentes envolvidos e em relação

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 35


dentro do contexto do porto, como a CODESP (Companhia Docas do Estado de São Paulo) e seus
funcionários, os terminais e gates, as cargas, os pombos, a empresa que atua no controle das aves, as
barreiras e repelentes instalados, a prefeitura e, possivelmente, a antropóloga em questão. Tanto as
notícias, quanto o campo, serão exploradas em detalhes adiante.

Quando pensamos nos pombos dentro das relações de apreciação, proteção e convívio, talvez
não pareça cabível a ideia de unloved others, uma vez que, em sua maioria, são espécies não
mamíferas que estão mais próximas do cotidiano humano, como os abutres ou urubus 27 (VAN
DOOREN, 2011) e cogumelos (TSING, 2011), porém menos visíveis e menos bonitas em
comparação aos animais tidos como “queridos”, que capturam nosso imaginário e são encontrados,
geralmente, nas visitas a zoológicos, como os ursos pandas, tigres, baleias – para utilizar os exemplos
de Rose e van Dooren (2011). É válido mencionar, nesse sentido, a questão do especismo, discutida
por Philippe Descola (1998), de que a simpatia dos humanos por alguns animais se deve a aspectos
comportamentais, fisiológicos e outros, desses animais; por isso, acredita-se que os “mamíferos são
os mais bem aquinhoados nessa hierarquia do interesse” (DESCOLA, 1998:23). Contudo, lembremo-
nos que ratos e morcegos são mamíferos e, nem por isso, parecem ser tão aquinhoados assim pelas
pessoas. Já outros não mamíferos, como as tartarugas-marinhas, por exemplo, parecem cativar bem
mais os humanos, no sentido em que existe, por parte desses, toda uma proteção às tartarugas, como
o Projeto Tamar. Esses exemplos servem-nos para mostrar que existem muitas exceções em relação
às espécies que abrangem esses unloved others, bem como as situações em que esses mesmos se
encontram. Pombos – ou ratos de asas, como são popularmente, e odiosamente, ditos –, portanto,
podem ser também unloved others, uma vez que são desprezados e considerados sujos por muitas
pessoas.

Entendendo, então, quem são esses unloved others, apresentarei as relações já estudadas por
Thom van Dooren (2011) e Anna Tsing (2011) para verificarmos algumas possibilidades de
convivência entre humanos e não humanos e, em seguida, as relações estudadas por Eduardo Kohn
(2007), para melhor compreendermos a ideia de antropologia da vida – que está também atrelada à

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 36


etnografia multiespecífica de Kirksey e Helmreich (2010), a qual preza pelos efeitos do
emaranhamento das relações entre diversas vidas, além das humanas. Assim, ao perceber o mundo
como mais-que-humano, essas relações interespécies atravessam as fronteiras entre natureza e
cultura, animal e humano. Uma vez entendendo essas noções, partirei para a análise dos dados, a fim
de perceber de que forma eles podem dialogar com as propostas destes autores.

Mundos multiespecíficos; saberes mais-que-humanos

Thom van Dooren (2011) trata da questão da extinção dos abutres na Índia, explicando um
pouco das causas e consequências dessa extinção. Destacarei alguns pontos que me interessam aqui,
a respeito dos ambientes que os abutres habitam e suas relações com as pessoas e outros agentes. O
primeiro destes, que deve ser deixado claro de antemão, é que este é um caso específico da Índia,
tendo em vista a cultura e religião hinduísta, a qual reflete nos hábitos alimentares das pessoas. Lá,
bovinos não são comidos por pessoas, e quando um destes animais morre, fica exposto a céu aberto
– nas ruas ou lixões – sendo comido pelos abutres. O problema da extinção dos abutres começou
quando os bois passaram a ser tratados com diclofenaco. O medicamento permanece na carcaça do
boi após a morte e, quando os abutres se alimentam dessa carcaça, o medicamento é também ingerido,
ocasionando a morte em massa destes últimos, o que tem afetado toda uma cadeia de seres vivos.

Um segundo ponto é a posição entre a vida e a morte em que os abutres se encontram, isto
é, é na morte (dos bois) que os abutres encontram sua fonte de sustento (nourishment). Esta condição,
como bem sugere van Dooren (op. cit.), se atrela à ideia de becoming-with de Donna Haraway (2008),
uma vez que os abutres são capazes de “tornar a morte em vida novamente” 28 e entendem o
emaranhado da vida e da morte, como uma possibilidade de continuidade de comunidades
multiespecíficas.

A partir disso, quando ocorre o envenenamento dos abutres por meio do diclofenaco, outro
ponto passa a interessar-me aqui. Os abutres, na Índia, vivem próximos aos humanos, pois é em

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 37


ambientes urbanos e semiurbanos que encontram carcaças para se alimentarem. O fato de se
alimentarem dessas carcaças nesses ambientes, faz com que estes se mantenham, de certa forma,
limpos e livres de doenças e potencial contaminação que ameaçam os humanos. Pode-se dizer que os
abutres contribuem para uma manutenção de higiene na cidade. No entanto, quando o cenário muda,
ocorrendo a morte em massa dos abutres, algumas consequências são ocasionadas. Van Dooren
(op.cit.) destaca que se trata de uma cadeia em que os dependentes diretos de certas relações sintam
mais as consequências do que outros; por exemplo, cães, que agora passam a contrair raiva por se
alimentar das carcaças de que, outrora, os abutres se alimentavam. Desta forma, passa a ocorrer o que
van Dooren (op.cit.) chama de “morte dupla” (dos abutres e cães), e que, diferentemente da morte
dos bovinos, esta morte dupla não é geradora de vida. O ponto principal, portanto, e que perpassa os
demais, é o de que todo esse emaranhado de relações entre humanos e não humanos (abutres, bovinos,
diclofenaco, cães) atravessam o binarismo dessas relações reduzido à natureza/cultura para a
“produção de um vasto mundo multiespecífico” (VAN DOOREN, 2011:56-57 – tradução minha).

Assim como van Dooren, Anna Tsing (2011) também apresenta a questão de mundos
multiespecíficos a partir de algumas formas de amor em relação aos cogumelos em seu artigo Arts of
inclusion, or how to love a mushroom. Não nos interessa aprofundar nas formas de amor em si, mas
como estas estão ligadas aos mundos multiespecíficos. A autora descreve a paisagem formada pelos
cogumelos nas florestas como uma cidade: uma cidade subterrânea (underground city) onde se
entretecem redes de emaranhados entre os fungos e as raízes das árvores, denominadas micorriza. A
partir dessas micorrizas, são estabelecidas relações de alimentação nesta cidade, por onde circulam
nutrientes entre os fungos e as árvores. Adiante, Tsing contrasta a cidade subterrânea com a cidade
humana, apontando as destruições necessárias para novas construções, e a extinção da cidade
subterrânea (ou desse mundo multiespecífico) decorrente destas destruições humanas.

As formas de amor em relação aos cogumelos, que a autora traz em seu texto, são uma
alternativa a essa extinção das cidades subterrâneas, uma vez que, a partir destas práticas (como a
taxonomia dos fungos, a coleta de cogumelos que não podem ser cultivados, ou a disseminação de
conhecimento a respeito desses fungos), a diversidade dessas vidas possa ser reconhecida. No fundo,
Tsing busca enfatizar uma nova linha de estudos chamada “multispecies love” em contraste a algumas
maneiras tradicionais de se fazer ciência. Nas palavras de Tsing (2011:19), “unlike earlier forms of

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 38


science studies, its raison d’être is not, mainly, the critique of science, although it can be critical.
Instead, it allows something new: passionate immersion in the lives of the nonhumans being studied.”

Se, por um lado, Tsing (op.cit.) propõe brevemente uma nova linha de estudos de imersão
nas vidas de seres não humanos, por outro lado, Eduardo Kohn (2007) já trazia a proposta de se fazer
uma antropologia da vida – embora ambas não sejam a mesma coisa, é possível notar que se trata de
propostas semelhantes, no sentido em que ambas são mais-que-humanas.

Kohn (op.cit.) analisa minuciosamente a relação entre os cães e seus donos na Amazônia
equatoriana, a partir de um evento ocorrido em que três cães foram capturados por um jaguar e isso
não pudera ser previsto em seus sonhos (dos cães). Os pontos de maior interesse aqui são como é feita
uma antropologia da vida e como se dá a comunicação entre as pessoas e os cães. Esses pontos estão
intimamente relacionados, tendo em vista que Kohn utiliza-se de Bruno Latour para explicar que
humanos e não humanos são tidos como “agentes” (selves), já que não apenas são representados (os
últimos pelos primeiros), mas também constroem representações. Desta forma, ele nos explica que
não se trata de olhar só para o humano, ou só para o animal, mas para as interações entre estes, uma
vez que ambos são agentes e, portanto, ambos constroem representações uns dos outros. Isso só se
torna possível compreender, a partir do momento em que percebemos o mundo como “mais do que
humano”, isto é, entendendo que não humanos podem se comunicar – porém, sem necessariamente
falar, tal como os humanos, uma vez que essa comunicação excede a fala. Assim, passamos a entender
que os humanos não são os únicos “conhecedores” (knowers), como sugere Kohn (2007; 2013), e que
o que ele entende por vida é um processo de criação e representação de signos – em outras palavras,
semiótica. Mas se não humanos também constroem representações, logo, “what we share with
nonhuman living creatures, then, is not our embodiment, as certain strains of phenomenological
approaches would hold, but the fact that we all live with and through signs. We all use signs as “canes”
that represent parts of the world to us in some way or another. In doing so, signs make us what we
are.” (KOHN, 2013:09 – grifo meu).

A partir disso, Kohn (2007) apresenta algumas especificidades do povo Ávila Runa, por
exemplo, alguns perigos nas interações entre humanos e não humanos – pois, se cada ser habita uma

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 39


natureza distinta29, a partir de seu ponto de vista, ao tentar adotar um ponto de vista outro, isso pode
resultar no que Kohn chamou de devir; as interpretações atribuídas aos sonhos dos cães, de acordo
com a maneira que latem, e; o procedimento adotado para os donos falarem com seus cães. Esta
última especificidade é interessante por apresentar um rompimento das fronteiras entre o que é o
humano e não humano. O procedimento adotado, duas vezes na presença de Kohn, é o de dar um
alucinógeno ao cão para que, sob o efeito da droga, o cão possa tornar-se xamã30 e, assim, atravessar
a fronteira que o separa dos humanos. Desta forma, é possível que o cão compreenda a fala de seu
dono. No entanto, o dono adota uma nova forma de linguagem, um pidgin, a qual Kohn compara à
maneira com que uma mãe fala com seu bebê (motherese). Percebe-se, neste caso, que não apenas o
cão, mas também seu dono, atravessam uma fronteira – talvez de ordens distintas, já que são pontos
de vistas distintos, o do dono e o do cão. Contudo, cão e dono parecem passar por um “devir outro”
que ocorre, exatamente, nesta relação de comunicação entre ambos. Segundo Kohn (2007:18 – grifo
meu), “these pidgins also conform to something more abstract about the referential possibilities
available to any kind of self, regardless of its ontological status as human, organic, or even terrestrial,
and this involves the constraints of certain kinds of semiotic forms.”

O que temos em comum entre os três textos aqui é a proposta de se fazer uma nova
antropologia que considere o mundo mais-que-humano – no caso de Kohn, não considerando o
humano como único “conhecedor”. Seja uma antropologia da vida ou multiespecífica, o ponto comum
que as atravessa é o de encarar como seres interagem, agem e afetam nossas percepções, mas também
percebem o mundo.

No caso específico de minha pesquisa, analisarei os dados de campo previamente coletados


a respeito das relações entre as pessoas e os pombos urbanos tendo como base as discussões em torno
dos unloved others e a estratégia dessa nova antropologia.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 40


Entre o desprezo e a estima habita um pombo; entre mares e terras, um porto

Conforme exposto no início deste artigo, as relações entre humanos e pombos urbanos são
das mais diversas. Podemos pensá-las, simploriamente, como negativas e positivas, no sentido em
que as negativas seriam as que fazem referência a combate, nojo e controle, ao passo que as positivas
seriam as de apreciação, proteção e convívio. Agrupei-as desta forma apenas para fins de melhor
organização na exposição das notícias, porém, entende-se que estas relações são muito mais
complexas que apenas negativas ou positivas. Assim, em relação às negativas, valem, sobretudo, as
notícias que apontam para proibições de alimentar as aves e extermínios das mesmas. A esse respeito,
vários municípios já adotam leis que proíbem as pessoas de alimentarem pombos, sob pena de multa,
uma vez que essas aves, neste contexto, passam a ser consideradas pragas urbanas, vetores a serem
controlados. Alguns dos municípios a adotarem tal lei são Caxias do Sul/RS31, Guarulhos/SP32 e
Veneza (Itália)33. O caso de Veneza faz-se interessante por apresentar outros aspectos, referente ao
turismo e à conservação patrimonial. Pode-se dizer que os pombos fazem – ou ao menos faziam,
antes da proibição – parte do turismo veneziano, uma vez que a Praça de São Marcos recebe turistas
diariamente que interagem de diversas formas com as aves, seja alimentando-as, tirando fotos, ou
deixando-as empoleirarem em seus corpos. Além disso, também havia vendedores de grãos na Praça
com a finalidade de movimentar esse turismo e as práticas de alimentação por parte dos turistas. Com
a proibição desta prática, em 2008, foi também proibido o comércio de grãos na Praça, com a

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 41


justificativa de que as fezes dos pombos estavam deteriorando monumentos e que a limpeza e
restauração dos mesmos custariam em torno de 200 euros por morador anualmente34.

No que diz respeito ao extermínio das aves, de acordo com os dados das notícias, estes
ocorrem de duas maneiras: como uma medida de controle da superpopulação de pombos, e de maneira
criminosa. No primeiro caso, tem-se o registro de medidas tais como utilização de falcões, que são
os “predadores naturais” dos pombos, em Campo Grande/MS35, e a utilização de robôs que imitam
falcões, batendo asas e emitindo sons para espantar os pombos, em Edimburgo (Escócia), Reino
Unido e Holanda36. Já no segundo caso, as medidas são adotadas por sujeitos ocultos, e não por um
órgão público e/ou responsável pelas atividades de controle de zoonoses. Trata-se de abates por
envenenamento das aves: em Caxias do Sul/RS37, após as aves ingerirem um farelo amarelo, e em
Belo Horizonte /MG, com “chumbinho” 38. Logo, considera-se um extermínio criminoso, tendo em
vista a Lei de Crimes Ambientais, que julga crime contra a fauna “praticar ato de abuso, maus-tratos,
ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos”.

É válido ainda mencionar o caso específico de Londrina – PR, a fim de análises posteriores,
onde um monsenhor defende o abate de pombos na Praça da Catedral, desafiando ambientalistas: “Se

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 42


ambientalista quer saber, que venha aqui, que more aqui, que fique um dia, quando tem esse cheiro.
Nós estamos defendendo a saúde. Estamos defendendo a população”.39

Já no que se refere às relações positivas, sobressaem-se as de convívio, em que pombos são,


ou passam a ser, queridos pelas pessoas. Isso ocorre, conforme já mencionado no caso de Veneza,
quando as pessoas alimentam os pombos e deixam-nos empoleirarem em seus corpos. O que parece
ser uma cena cotidiana comum pode acarretar na reabilitação de praças, como no caso de Teresina –
PI40, em que uma praça pública foi reabilitada por conta da interação das pessoas com os pombos:
turistas iam ao local alimentar e tirar fotos com os pombos empoleirados em seus ombros, tornando
tal prática comum ali. E ainda, segundo um vendedor de lanches da praça, uma mulher ficou
conhecida como “rainha dos pombos” por alimentá-los diariamente. No entanto, o desprezo por
pombos é estendido também às pessoas que os alimentam, como ocorreu em São Vicente/SP onde,
por duas vezes, uma residência foi motivo de reclamação da vizinhança à imprensa local41 e prefeitura
por existir um acúmulo de pombos, já que eram ali alimentados.

Outra situação é a dos pombos como arte. Em 2012, na Bienal de Arquitetura de Veneza,
dois artistas fizeram um projeto intitulado “Some pigeons are more equal than others”, que consistia
em colorir os pombos da Praça São Marcos de variadas cores (amarelo, azul, roxo, verde) com o
objetivo de que os pássaros fossem mais bem aceitos pelas pessoas: “se você for capaz de mostrar
isso [que cada pombo tem uma identidade própria] por meio de diferentes cores, os pombos serão

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 43


mais aceitos pelas pessoas”, diz a notícia42. Além deste projeto, o fotógrafo Andrew Garn fotografa
pombos com a finalidade de capturar a essência e a personalidade das aves. Ele entende que a
quantidade de pombos é problemática e um fator que influencia na percepção das pessoas, uma vez
que, se em menor quantidade, as pessoas os veriam de forma diferente. Ele compara a raridade às
joias:

“The problem is that there are just too many pigeons,” says Garn. “If they were rare,
people would see them differently. I see them as jewels.” [...] “It’s easy to
photograph something that is already considered beautiful, like a flower in a
meadow, but harder to focus on something that is seen everyday” he says.43

Além de arte, pombos também podem ser atletas, quando olhamos para as práticas de
columbofilia. Mesmo sendo mais popular na em Portugal, por exemplo, a columbofilia também é
praticada no Brasil. O esporte é, basicamente, uma competição de “pombos-correios”. Estas aves,
consideradas “atletas alados” 44 , são diferenciadas dos “pombos urbanos”, diferenciação esta
evidenciada na fala de um criador de pombos-correios que afirma: “os animais em questão [os
pombos-correios] sofrem um forte preconceito por conta de um senso comum em relação às espécies
encontradas nas ruas”. Nota-se claramente a diferenciação neste trecho, mas faz-se um tanto
contraditório ao dizer em seguida que “[o]s pombos não transmitem doenças como se é veiculado [...]
não existe doença exclusiva de pombo”45. Ora, se de fato não existe doença exclusiva de pombo, não

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 44


seria preciso enfatizar que os “atletas” sofrem preconceito em decorrência dos demais pombos. De
uma maneira ou de outra, é sugerido que, devido aos cuidados específicos para com os pombos-
correios, estes estão “imunes” à posição comum de vetores em que os “pombos urbanos” se
encontram.

Estas notícias conduziram minha pesquisa a tratar das controversas relações entre pessoas e
pombos urbanos. Deste modo, trago agora alguns relatos etnográficos46 ainda iniciais na cidade e no
Porto de Santos – SP. A escolha deste campo, conforme já explicada, se deu pela abundância das
aves ali: a expansão das atividades portuárias, combinada com a ausência de predadores naturais de
pombos (gaviões e falcões) – uma característica de Santos – SP –, faz com que o local seja um atrativo
aos pombos. No entanto, essa presença em demasia das aves passou a se tornar um problema para a
cidade e para o porto, os quais passaram a trabalhar com medidas de controle de pombos. Uma dessas
medidas se trata de um programa de controle de pombos, instituído pela CODESP (Companhia Docas
do Estado de São Paulo) no Porto de Santos, e ficando a cargo da GESET (Gerência de Segurança do
Trabalho). O responsável por esse programa é um médico veterinário da CODESP e chefe de serviço
da GESET, com o qual iniciei o contato a fim de acompanhar o programa em questão.

Já em nossa primeira reunião, algumas tensões entre terminais, CODESP e cidade


começavam a aparecer. Para fins de contextualização, entrei em contato com o veterinário da
CODESP, Vicente, por e-mail, explicando o interesse de minha pesquisa. Marcamos essa reunião –
que foi na verdade uma conversa sobre minhas intenções e metodologia – no prédio da GESET, para
que eu já fosse apresentada à equipe. Conversamos eu, Vicente e Felícia (também veterinária da
CODESP), discutindo a respeito dos procedimentos de minha pesquisa, em que eu poderia ir aos
terminais, cais, docas e presidência conversar com as pessoas e acompanhar as atividades de
instalação de barreiras e repelentes de pombos nas edificações da CODESP. Com exceção da
presidência – que tudo indica ser o prédio da CODESP –, nos demais lugares eu deverei estar sempre

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 45


acompanhada de um dos técnicos da GESET, já que se trata de lugares perigosos, segundo os
veterinários.

As tensões na rede portuária, que notei existirem, apareceram claramente na fala dos
veterinários. A primeira delas é entre terminais e CODESP. Vicente me explicou que “o Porto de
Santos é CODESP”, e dentro dele estão os terminais, que são empresas privadas, responsáveis pelas
cargas de importação e exportação – isto é, o trânsito de cargas dos trens vindos do interior do Estado
aos navios e vice-versa. O primeiro problema é que, por tratar-se de empresas privadas, a CODESP
não pode atuar com o programa de controle de pombos nesses terminais; caberia a essas empresas
tomarem medidas. O segundo problema é que os trabalhadores dos terminais responsabilizam a
CODESP pelo acúmulo de pombos. Essa tensão é estendida para as palestras promovidas pela
GESET, onde, segundo Vicente e Felícia, os participantes discutem seriamente, e polemicamente,
culpando uns aos outros.

Tive a oportunidade de acompanhar uma dessas palestras, que tratou, justamente, do


programa de controle de pombos. Foi uma ocasião que se mostrou muito interessante para pensar,
inicialmente, as relações das pessoas com os pombos no Porto de Santos. A palestra foi oferecida pela
empresa, contratada pela CODESP, responsável pela atuação do programa, e a equipe consistia,
basicamente, de um biólogo, uma engenheira agrônoma e um médico veterinário. O palestrante
principal foi o biólogo, iniciando sua fala com algumas características biológicas e comportamentais
dos pombos – hábitos de alimentação, frequência de reprodução, etc. – pois, segundo ele “é preciso
conhecer a biologia do pombo para poder manejar”. Ele também deixou claro que o objetivo do
programa “não é eliminar, não é fazer o controle, é fazer o manejo”, já que os pombos “podem
proporcionar risco de saúde pública e econômica”. Em relação à saúde pública, o médico veterinário
da equipe explicou as principais doenças que podem ser transmitidas pelos pombos aos humanos – a
maioria delas, a partir do contato com as fezes. Já em relação à economia, o biólogo mencionou a
possibilidade de contaminação de cereais e silos, danos a estruturas, superfícies e equipamentos, bem
como obstrução de calhas e dutos – o que também pode, segundo ele, desencadear na proliferação do
Aedes Aegypti nessas calhas. No mais, ao longo da palestra, foram explicados os procedimentos de
instalações de barreiras físicas e trazidos os resultados de locais em que já ocorreram essas
instalações, para que fosse mostrada a eficiência na redução do número de pombos no local. Uma das
falas do biólogo que mais me chamou a atenção foi que “não é só colocar tela, é saber colocar”

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 46


porque, ao explicar que o programa é constante, devido a característica de adaptação da fauna, “o
pombo não é tão besta assim, você colocou uma coisa, ele vai ficar estudando”. E mais, “o pombo
pode conviver no mesmo local que eu, desde que não contamine meu alimento, água e local de
trabalho”. Ou seja, o incômodo, por parte do biólogo, se mostrou totalmente em relação às
possibilidades de contaminação, e não ao pombo em si.

A respeito das tensões, ao término da palestra, fui conversar com Felícia. Disse a ela que a
palestra tinha sido muito útil para minha e que tinha gostado. Ela disse que dessa vez tinha sido
tranquila, porque “o pessoal, dos terminais, que gosta de reclamar não vieram, mas quando você for
ao cais você vai ver; vá preparada para ouvir”. Assim, a segunda tensão que pude notar é entre porto
e cidade, e é muito curiosa. Como já dito acima, segundo os veterinários, o Porto é CODESP47. Eles
enfatizaram para mim essa separação territorial, explicando que Santos começa onde o porto se finda,
por isso os projetos da CODESP não são os mesmos que da prefeitura. Contudo, Felícia disse que,
quando se trata de questões de saúde, eles devem se unir e agir em conjunto, pois todos são afetados.
Nesse sentido, os pombos parecem unir, de alguma forma, porto e cidade, e fazer desta uma relação
positiva – mesmo que seja no que diz respeito ao controle das aves. Por outro lado, ao conversar com
algumas pessoas da cidade de Santos, todas apontam para aspectos negativos do porto em relação à
cidade: “a região da praia mais próxima ao porto não é boa, é suja”; “as praias de Santos não são
bonitas por causa desses navios”; “a região do porto é perigosa e lá é uma zona de prostituição”.
Porém, economicamente, o porto parece ser muito favorável à cidade, elevando os índices de riqueza,
arrecadação de impostos e PIB, de acordo com o site48 da prefeitura de Santos. Ora, se pombos são
um incômodo (sobretudo) ao porto, talvez se possa dizer que o porto, em muitos aspectos, seja um
incômodo à cidade.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 47


Convivências ambíguas: o problema de ser legião

Uma vez tomada ciência das relações diversas entre humanos e pombos, adentrarei agora à
reflexão sobre estas aves enquanto unloved others. Se partirmos da definição de Deborah Rose e
Thom van Dooren (op. cit.) de que estes sujeitos, em maioria (mas não somente) seres não mamíferos
que estão tão mais próximos de nosso cotidiano, podemos, talvez, dizer que, pombos sejam, de fato,
não amados. No entanto, olhemos agora um pouco mais de perto aos dados que apresentei.

No primeiro caso, temos a proibição por lei de alimentar as aves, sendo extremamente
curioso o caso veneziano. Neste contexto, percebemos as aves enquanto pragas urbanas, sujeitos não
tolerados na cidade, a qual, como bem nos lembra Lévi-Strauss (1957:126), é “a coisa humana por
excelência”. Deste modo, não é difícil associar a figura do pombo urbano com a dos ratos e ratazanas
que habitam, incomodam e contaminam os centros urbanos. Não à toa, muitas pessoas se referem aos
pombos como ratos de asas. Isto é, pombos se distanciam de outros pássaros, os quais capturam o
imaginário humano e são queridos – seja por suas cores ou cantos – e assemelham-se mais aos animais
que são alvos de escória, como os ratos, por exemplo. No caso de Veneza aparecem dois fatores para
além da relação, de certa forma restrita, entre pessoas e pombos: o turismo e a arquitetura local.
Percebe-se uma rede de agentes e relações, tal como nos mundos multiespecíficos descritos
anteriormente, envolvendo turistas, comerciantes, pombos, suas fezes, arquitetura local, ou mesmo o
cartão-postal da cidade, a Praça de São Marcos. Ao adotar a lei de proibição, assim como no caso dos
abutres da Índia descritos por van Dooren (op.cit.), toda a rede de agentes é afetada: comerciantes de
grãos foram proibidos de continuar a venda no local; o turismo talvez sofra alguma consequência em
longo prazo; as pessoas que insistirem em alimentar as aves deverão agora pagar uma multa, e a
arquitetura talvez não mais receba fezes de pombos, e sim um restauro. Ou, talvez, os pombos
continuem a habitar a Praça e interagir com os turistas, buscando apenas outra forma de alimentação.

Este também parece ser o caso do Porto de Santos, embora ainda seja muito cedo para
conclusões. Contudo, os primeiros dados de campo apontam para toda uma rede portuária que é
afetada a partir da relação de controle e não controle – no caso da não atuação da CODESP nos
terminais – de pombos, o que também nos remete ao caso dos abutres de van Dooren (op.cit.). Isso
permitiria estendermos a rede até a antropologia, pois, certamente, eu, como antropóloga, agora me
encontro inserida nessa rede portuária por causa dos pombos. Desse modo, a presença das aves produz
essa malha de relações envolvendo CODESP, terminais, cargas, barreiras e repelentes, prefeitura e

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 48


antropólogos (ou antropóloga, no caso). Os afetos propriamente ditos ainda não se fizeram visíveis
para mim, e espero poder notá-los, em minhas visitas ao porto, no modo de operação desta rede.

O segundo caso que apresentei trata do extermínio das aves, tanto como uma medida de
controle populacional, em benefício das cidades – locais de maior concentração dos pombos – e da
saúde das pessoas – tendo em vista que pombos podem ser agentes transmissores de patógenos que,
por sua vez, podem ou não ocasionar doenças –, como também de maneira criminosa, por
envenenamento. Aqui também se insere a fala do monsenhor, em Londrina, destacada acima, que
defende o abate das aves em nome da saúde pública e desafiando ambientalistas, os quais,
supostamente, seriam os agentes “defensores” das aves e que proporiam medidas menos extremas.
No entanto, o incômodo com os pombos, a sujeira e o mau cheiro pareceu ser tão assombrosos que é
possível – ao monsenhor e aos assinantes do abaixo-assinado, ao menos – desconsiderar o fato de
que, por trás de cada pombo a ser abatido, existe uma vida mais-que-humana e um crime ambiental.
Como o monsenhor declara, “estamos defendendo a população”, porém os pombos não se fazem
defensáveis. E essa defesa à população nos remete a um já conhecido nosso: Foucault. Não é minha
intenção aqui adentrar ao pensamento foucaultiano, ou ainda realizar uma reflexão pormenorizada
em cima de sua obra, mas trazer à tona sua questão de que “é preciso defender a sociedade”
(FOUCAULT, 2005). De que(m)? São cenários, tempos e agentes distintos; no entanto, o ponto
comum que os interligam é a existência de um indivíduo perigoso, do qual a sociedade deve ser
defendida. Se antes esses indivíduos perigosos eram humanos, neste caso são as aves – e outros
animais indesejados. É preciso, então, defender a sociedade dos perigos trazidos pelos pombos
urbanos!

Todavia, muitas pessoas parecem não ver este perigo nas aves e preferem tratá-las como
companhia. No caso de Teresina, outra rede de agentes é estabelecida: uma praça reabilitada, pombos,
transeuntes, turistas, um vendedor de lanches, e até mesmo uma “rainha dos pombos”. Estas
interações, ao reabilitarem a praça, pode-se dizer que, também geraram uma vida, não da mesma
forma que os abutres (no caso descrito por van Dooren) o fazem, mas no sentido de gerar a habitação
da praça outrora abandonada.

Quando olhamos para o último caso, da apreciação dos pombos enquanto arte e atletas, a
relação entre individualidade e multidão é notória. Sendo os pombos coloridos, ou competidores, e
cada qual com sua identidade, percebe-se certa individualidade nestas aves, o que colabora para uma

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 49


apreciação além do belo, uma apreciação de originalidade, em contraponto à noção de multidão – ou
legião, bando – em que a individualidade é perdida, e, portanto, não apreciada. Este aspecto também
é enfatizado na fala do fotógrafo Andrew Garn, o qual diz que o problema é que os pombos são
abundantes; se fossem raros, as pessoas os veriam de outra forma. A respeito dessa tensão entre
individualidade e multidão, resgato a noção de legião de Deleuze & Guattari (1997). Para os filósofos
existem animais edipianos e animais que conduzem a um devir, que são exatamente os animais que
compõem legiões, matilhas, enxames, ou seja, opostos à individualidade do animal edipiano. Estes
animais de legiões pressupõem uma reprodução por contágio, epidemia. Pensando a partir destas
categorias, pombos, na condição de multidão, podem ser pragas, transmissores de patógenos,
indesejados, unloved others, ao passo que, como sujeitos individuais, podem ser apreciados, seja
como arte, esporte, ou companhia. Contudo, fazem-se também ambíguos, não podendo se valer como
uma regra, pois nos casos de turismo, tanto de Veneza, quanto de Teresina, os pombos são queridos
enquanto multidão.

Considerações Finais

É evidente, então, essa posição ambígua49 em que os pombos se encontram devido a sua
condição enquanto indivíduos ou multidão. Mas tal ambiguidade também se refere ao ambiente
habitado pelas aves. E aqui atentemo-nos ao seguinte: sendo muitas, elas passam a oferecer um risco
à saúde humana e, portanto, indesejadas na “coisa humana por excelência” que é a cidade. Mas aqui
emerge outra noção, embora tenha passado despercebida ao longo do texto, que diz respeito à
impureza em seu sentido ocidental. Esta ideia de impureza, segundo Mary Douglas (1991), constitui
um tipo de relação, isto é, algo não é impuro em si, mas quando fora da ordem, quando fora do lugar
em que deveria estar. Nesse sentido, se pombos em sua abundância não devem habitar a cidade, logo,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 50


passam a ser considerados impuros, além de indesejados. Mas o que faz dessas aves tão indesejadas
no espaço urbano?

Podemos elencar algumas possibilidades como a estética das aves, já que pombos não
apresentam uma variedade de cores, ou cantos cativantes, como outras aves; sua existência em
abundância, que parece, às vezes, incomodar enquanto legião; o risco oferecido à saúde humana, que
se atrela a outros fatores, como as condições em que estão sujeitas para ocasionar este risco, bem
como a situação inversa – dos humanos oferecerem riscos às aves 50 – que mal é levada em
consideração. Além disso, poderia se dizer que “é na companhia dos homens que os animais
domésticos se degradam; concepção que insinua uma vida humana igualmente degradada”
(FARAGE, 2011:297 – grifo meu); ou a sujeira decorrente de suas fezes, que pode remeter a uma
ideia da estética do grotesco no Ocidente, em que os orifícios eram seus maiores símbolos, tendo em
vista a expulsão de excrementos que sugerem a ideia de exceder os limites do corpo, atravessar
fronteiras (BAKHTIN, 1987). Estas possibilidades, no entanto, parecem todas decorrentes de uma
visão de mundo não mais-que-humana. Se passarmos a olhar para o mundo como mais-que-humano,
não hierarquizaremos as espécies, tampouco poríamos o humano num pedestal da vida. Logo, essa
antropologia da vida, ou multiespecífica, possibilitaria que pensássemos em estratégias de convívio
– para utilizar os termos de to live with de Donna Haraway (2008) – em benefício não só dos humanos,
mas de toda a rede de agentes envolvidos em relação.

Bibliografia:

BAKHTIN, Mikhail. “A imagem grotesca do corpo em Rabelais e suas fontes”. In: A cultura popular
na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais. São Paulo: Hucitec; Brasília:
Editora da Universidade de Brasília, 1987.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 51


BRASIL. Lei nº 9.605 de 12 de fevereiro de 1998: Dispõe sobre as sanções penais e administrativas
derivadas de condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, e dá outras providências. (Lei dos
Crimes Ambientais).

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. São Paulo:
Editora 34, 1997.

DESCOLA, Philippe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana, Rio de
Janeiro, n. 4, v. 1, p. 23-45, 1995.

DOUGLAS, Mary. Pureza e perigo: ensaio sobre a noção de poluição e tabu. Rio de Janeiro: Edições
70, 1991.

FARAGE, Nádia. “De ratos e outros homens: resistência biopolítica no Brasil moderno”. In: LÉPINE,
C; HOFBAUER, A; SCHWARCZ, L. M. (Org.) Manuela Carneiro da Cunha: o lugar da cultura e o
papel da Antropologia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2011.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

HARAWAY, Donna. When species meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.

KIRKSEY, S. Eben; HELMREICH, Stefan. The emergence of multispecies ethnography. Cultural


Anthropology, v. 25, issue 4, p. 545–576, 2010.

KOHN, Eduardo. How dogs dream: Amazonian natures and the politics of transspecies engagement.
American Ethnologist, v. 34, n. 1, p. 3–24, 2007.

______. How forest think: toward an anthropology beyond the human. Berkeley: University of
California Press, 2013.

LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. São Paulo: Anhembi, 1957.

ROSE, Deborah Bird; VAN DOOREN, Thom. Unloved Others: Death of the Disregarded in the Time
of Extinctions. Australian Humanities Review, issue 50, 2011.

TSING, Anna. Arts of Inclusion, or, How to Love a Mushroom. Australian Humanities Review, issue
50, p. 05-21, 2011.

VAN DOOREN, Thom. Vultures and their People in India: Equity and Entanglement in a Time of
Extinctions. Australian Humanities Review, issue 50, p. 45-61, 2011.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 52


Cães, gatos, mamães e pet sitters: a relação entre humanos e animais de estimação e seus
contrapontos

Kênia Mara Gaedtke51

Resumo: As relações interespecíficas estão presentes em nosso cotidiano desde o início do que se
convencionou chamar Humanidade, e vêm transformando e sofrendo transformações, marcadas por
uma trajetória não necessariamente linear, mas com ambiguidades e controvérsias. Num intento de
compreender, a partir de uma mirada sociológica, os cuidados humanos nos processos de
adoecimento, envelhecimento e morte de animais de estimação, realizei uma etnografia em um
hospital veterinário localizado num bairro de classe média alta na cidade de Curitiba – PR,
acompanhando veterinárias e responsáveis pelos animais. Este trabalho expõe as principais reflexões
advindas desse contato, especialmente ligadas a emoções e modelo social de afeto, expansão da
produção e consumo ligados à saúde animal, luto e procedimentos funerários. Mais do que isso,
pretendo apresentar as primeiras impressões surgidas a partir de um grupo focal, desenvolvido
posteriormente à etnografia, com estudantes de Educação de Jovens e Adultos na cidade de Jaraguá
do Sul - SC, que já atuaram como cuidadoras de animais ou empregadas domésticas em residências
em que havia animais de estimação. Diante da dificuldade de compreender aquilo que os próprios
cães ou gatos sentem em relação aos humanos, uma saída metodológica interessante é a de contrapor
as diferentes visões humanas acerca da relação entre os animais de estimação e seus responsáveis
humanos.

Palavras-chave: etnografia; animais de estimação; relações interespecíficas.

A sociedade humana está, desde o seu início, profundamente inter-relacionada com as demais
espécies animais. Uma completa transformação na relação entre os humanos e aqueles que chamamos
animais (não só os que estimamos) vem sendo identificada e discutida por uma série de autores, como,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 53


por exemplo, Derrida (2011, p. 50), para quem “esta alteração, de qualquer maneira que se a nomeie
ou interprete, ninguém poderá negar que ela se acelera, que ela se intensifica, não sabendo mais para
onde ela se dirige, há mais ou menos dois séculos, em uma profundidade e a um ritmo incalculáveis”.

Essas relações interespecíficas ganham atenções diferentes nas diferentes ciências humanas:
há áreas que já estão atentas à necessidade de inseri-las nas análises – e a antropologia possivelmente
é a principal nesse aspecto -, mas preocupa o certo desinteresse que outras áreas insistem em
apresentar para essas relações, e aqui me refiro mais diretamente à sociologia, em especial à produção
no Brasil. Pesquisando esta temática há mais de quatro anos, ainda observo o desconforto de alguns
colegas sociólogos diante da proposta, bem como a dificuldade de encontrar chamadas de publicações
e eventos sociológicos que estejam abertos a esta discussão52.

Para Kruse (2002, p. 375), as resistências da sociologia ao estudo dos animais estão
diminuindo, mas ainda são fortes. De acordo com o autor, para muitos sociólogos, seu ofício é estudar
pessoas, e não outras criaturas. No entanto, quando nos esforçamos em estudar exclusivamente os
humanos, paradoxalmente negligenciamos uma grande faceta da existência humana. Afinal, as
sociedades humanas estão profundamente relacionadas com outras espécies, muito mais do que a
sociologia faz parecer.

Muitos de nós, quando dizemos a outros sociólogos de nosso interesse nos animais,
sofremos reações que variam entre diversão e escárnio. Não há razão para isso. Animais
compartilham nossos lares como companheiros - os quais muitas vezes tratamos como
membros da família; nós ainda podemos comprar roupas para eles, comemorar seus
aniversários, e levá-los conosco quando vamos de férias. Ao mesmo tempo, a maioria
de nós consumimos sua carne e usamos suas peles. Nós nos referimos a eles quando
falamos que alguém é "astuto como uma raposa" ou ao chamar alguém de "vaca"
[tradução minha]. (KRUSE, 2002, p. 377)

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 54


Quem ama quem?: Ambivalências e sentimentos sob o olhar das teorias

As ambivalências na relação humano/animal começam já nas definições. O que define qual


animal é o quê? Segundo Thomas (2010, p. 159), no início da idade moderna na Inglaterra, há três
traços particulares que distinguem o animal de estimação dos demais: permissão de entrar na casa;
recebimento de um nome pessoal e individualizado; e a impossibilidade de servir como alimento.
Sobre estas características, já haveria fontes documentais a partir do século XV.

Em trabalhos mais atuais, porém, as definições daquilo que se considera um pet se tornam
mais complexas. Para Wrye (2009, p. 1037), sociólogos e outros estudiosos, particularmente aqueles
que trabalham no campo das relações animal-humano, devem lembrar que traçar essas definições
deve ser um exercício cauteloso, pois investir em um dualismo pet/não-pet suspeitosamente lembra
afirmações do humano como exceção, que situa os seres humanos em oposição aos animais.

Animais de estimação não têm características essenciais e são exclusivamente criados pela
visão que os seres humanos têm deles. Esta é provavelmente a razão pela qual não está
acordada uma definição do que torna um animal um animal de estimação - há simplesmente
muitos traços que ambos os animais - de estimação ou não – possuem [tradução minha].
(Wrye, 2009, p. 1043)

A partir de Wrye, é possível pensar o que define um animal para amar, e um animal para
comer, por exemplo. Seguindo por esse caminho, Gary Francione (2013) tem sido uma voz ativa – e
polêmica – dos direitos animais. Ao rejeitar qualquer ideia de animal como recurso ou propriedade,
Francione se afasta das teorias de Peter Singer e Tom Regan, que poderiam ser descritos como mais
relativistas. E se posiciona de forma clara em relação aos pets: “A indústria pet, ou indústria de
‘animais de estimação’, na realidade não difere da indústria de ‘animais para comida’ ou da indústria
de ‘animais para laboratório’”. (op cit, p. 147). Sua crítica não se restringe à indústria em si, mas ao
próprio papel de proprietário de animais:

O fato de alguns de nós darmos um grande valor aos nossos companheiros animais não
significa que esses animais tenham deixado de ser propriedade. De fato, é precisamente
porque os pets são nossa propriedade que podemos valorá-los como algo mais do que
mercadorias. [...] Se levássemos os interesses dos animais a sério, não os estaríamos
domesticando como pets. [...] Por mais que amemos os cachorros e os gatos, eles continuam

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 55


sendo nossa propriedade e não conseguimos evitar conceitualizá-los como tal, em qualquer
situação hipotética. (FRANCIONE, 2013, 148; 269)

De fato, ambivalências e controvérsias parecem permear essas relações. Em seu artigo, Wrye
(2009) retoma alguns autores que irão enfatizar o caráter ambivalente das razões que levam os seres
humanos a terem animais de estimação: amor verdadeiro vinculado a um desejo de dominação –
afinal tem-se o poder de definir a alimentação, o sono, o modo de vida do animal; preocupações tanto
com o bem-estar animal quanto com a qualidade de vida humana adquirida pela companhia do animal;
prazer pela companhia que não inviabiliza o uso utilitário do animal (como guarda, caçador,
reprodutor, etc.). Aponta também que os animais podem servir ainda como elemento de chantagem
em relações humanas – especialmente nas familiares -, ou como objeto de desejo na zoofilia.

Certamente muitos animais de estimação são ativa e imensamente amados. No entanto,


nem todos o são. Eles podem ser tratados como bens, como no direito canadense. Podem
ser insultados, podem ser usados como brinquedos, ignorados, negligenciados,
abusados cruelmente. Animais de estimação parecem existir em um estado estranho,
onde podem ser entes queridos, familiares, amigos, descartáveis, companheiros, fontes
de apoio, objetos de frustração, pragas, danos ambientais ou vítimas [tradução minha].
(Wrye, 2009, p.1039)

A pesquisa de campo, os afetos – e alguns desafetos

Em busca das respostas para as questões que envolviam os cuidados humanos nos processos
de envelhecimento, adoecimento e morte de animais de estimação, a pesquisa empírica teve muitas
frentes53. Além de mapear os aspectos políticos (frentes parlamentares, projetos de lei, propostas de
campanhas, etc.) e econômicos, através dos investimentos da indústria farmacêutica na saúde animal,
em específico, e da indústria pet em geral (acompanhando os lançamentos na maior feira do setor da
América Latina, em São Paulo - SP), pareceu fundamental, desde o início, realizar uma etnografia
em um hospital veterinário.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 56


A etnografia ocorreu em 2015, em um hospital veterinário de atendimento 24 horas localizado
em um bairro de classe média alta de Curitiba – PR. Pude acompanhar a rotina daquele espaço a partir
de várias perspectivas: a do casal proprietário do hospital; a das médicas; a da recepcionista; a dos
responsáveis pelos animais54 e inclusive a perspectiva do proprietário do crematório de animais que
presta serviço para os clientes do hospital.

Essa incursão tornou perceptível que a relação humano-pet, enquanto fenômeno social, é uma
espécie de um pêndulo que oscila entre afeto e mercado, e muitas vezes é difícil definir qual é a
relação de causa e efeito: o afeto gera o mercado consumidor, ou o mercado instiga a correlação entre
sentir afeto e consumir? De qualquer forma, é possível afirmar que há algo de retroalimentar-se,
trazendo inclusive elementos que mesclam afeto, gosto, classe e consumo, lembrando a noção de
distinção de Bourdieu (2013), já muito bem trabalhada na relação entre humanos e não humanos por
Oliveira (2006).

Ainda assim, a questão das relações de classe (e seus conflitos) ainda não havia surgido tão
intensamente no campo – talvez também porque o ponto de partida teórico tratava o tema como “pós-
material” (INGLEHART, 2001), como são vistos, por exemplo, os movimentos ambientais, de defesa
dos direitos animais ou o veganismo. Todavia, no ano de 2016, quando eu já havia finalizado o campo
previsto no projeto, uma conversa em uma aula promoveu um profundo repensar dessa temática: eu
lecionava sociologia para uma turma de Educação de Jovens e Adultos no Instituto Federal –
estudantes com o perfil típico desse curso: pessoas pobres, que retornavam para a escola depois de
muito tempo, com um histórico de desemprego e/ou subempregos. Tratávamos de pesquisa social e
lhes expliquei um pouco sobre minha pesquisa de doutorado. As discussões sobre os produtos e
serviços hoje disponíveis para pets (fisioterapia, psicoterapia, cremação, cerveja, panetone, sorvete,
óleo de massagem, tatuagem) os deixaram estupefatos. Mas três estudantes em especial chamaram
minha atenção: elas haviam trabalhado como empregadas domésticas em casas em que havia
cachorros de estimação, e uma delas era cuidadora dos animais quando a patroa viajava. Suas histórias
eram impressionantes e enfatizavam que os conflitos de classe também estavam ali, imbricados nas

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 57


já complexas relações interespecíficas. Pedi então às estudantes que fizéssemos um encontro para
tratar disso e utilizei o método de grupo focal. Passei a considerar também essas informações em
minhas reflexões sobre o tema, e apresento aqui uma amostra das conexões interpretativas que esses
campos tão diferentes me possibilitaram, partindo da ideia de famílias multiespécies.

Desse modo, dentre o conjunto de transformações que ocorrem nas configurações familiares
no cenário das sociedades urbanas contemporâneas, interessa aqui particularmente a noção de
famílias multiespécies. Faraco e Seminotti (2010) apresentam a noção de famílias multiespécies a
partir de Bowen (1978), apontando a existência de um sistema familiar emocional, que permite
incorporar não só pessoas da família estendida ou sem grau de parentesco, mas membros de outras
espécies, como cães, gatos ou outros.

Nessa composição familiar, os membros animais, muitas vezes ocupando o papel de filhos,
podem estar vinculados tanto ao movimento intitulado Childfree, que são pessoas que defendem uma
vida sem filhos – humanos (Segata, 2012), quanto inseridos em contextos em que há crianças e
adolescentes. Aí, os filhos animais teriam também, muitas vezes, o papel de irmãos. De maneira geral,
o que se observa é a “filhotização dos animais”, como apontaram Lewgoy, Sordi e Pinto (2015), o
que é também reiterado nas falas dos informantes desta pesquisa: as veterinárias entrevistadas são
unânimes ao dizer que a grande maioria dos clientes trata os animais como filhos, e apontam os
aspectos positivos e negativos disso. Por um lado, o cliente tende a dispensar um maior cuidado ao
animal; mas pode também ocasionar problemas comportamentais nos animais, que agiriam tais como
filhos “mimados”. As ambivalências são apontadas em alguns momentos, por exemplo, pela
veterinária que afirma que a humanização dos animais ainda lhe choca:

Eu já peguei coisas assim, um animal foi comprado há uma semana, e desta uma
semana passou três dias internado, e a pessoa já tava “ai filho, filha...”, e chorava, e
isso pra mim é estranho... E ao mesmo tempo que a gente vê gente fazendo isso, a
gente vê quem leva o animal embora, recusa atendimento, gente que gasta dinheiro
com coleira de brilhante e reclama de pagar consulta, acontece de gente sair de carro
importado e dar calote, a gente levou calote de mulher que falou “quer depositar o
cheque deposita, ele não tem fundo” já faz de propósito, e você ouvir isso depois de
ter salvo dois cães, dois dálmatas, que não são animais baratos, que precisam de
investimento, carro importado, condomínio fechado, tudo bonitinho e mesmo
assim... (Médica Veterinária I, 2015)

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 58


Dentre as informantes responsáveis por animais, há quem faça a defesa de que “criança é
criança, animal é animal” (Responsável pela Sofia, 2015). Mas o olhar para o animal como neném é
cada vez mais presente:

A gente deixava a televisão ligada o dia inteiro porque eu achava que como ele estava
sozinho, a televisão iria ajudar. Todo mundo dizia “gente, não tem nada a ver isso aí”,
mas eu penso assim, então eu deixava ligada, e colocava no Discovery Kids ainda (risos)
e de manhã cedo eu falava “olha neném, vai começar a Pepa” e ele olhava, então ele
assistia mesmo! (Responsável pelo Godofredo, 2015)

Como contraponto, aqui vale destacar dois aspectos que apareceram constantemente na
conversa que tive com as estudantes que atuaram como empregadas domésticas em casas com animais
de estimação. O primeiro é o estranhamento delas diante da filhotização: “eu entendo o que é amar
um cachorro, eu tenho o meu e o amo, mas esse negócio de tratar como filho, chamar de ‘ai meu
filhinho’, pra mim isso já é demais. Às vezes eu achava que ela [patroa] amava mais o cachorro que
o filho dela” (Estudante I, 2016). O segundo relaciona a filhotização com a questão econômica,
quando comentam o valor da ração para os animais, que “é mais cara que o quilo da carne que eu
compro pra mim e pros meus filhos” (Estudante II, 2016).

Ao criar um cachorro como um bebê, as tarefas típicas do cuidado com um pequeno humano
também se incorporam no cotidiano da família multiespécie, tal como limpar a bunda ou colocar para
dormir:

O único probleminha que teve foi que ele não mexia mais o rabo, então a cada popô
você tinha que limpar com um lencinho, tinha que passar hipoglós porque ele ficava
assado, todo o mês, tinha que passar talquinho pra não ficar fedido, no verão quando
tava quente ao invés de passar lencinho a gente lavava pra não ficar assado, dava
banho (Responsável pelo Godofredo, 2015)

A Tininha quando fazia as necessidades dela você tinha que fazer o “paninho
paninho”, você tinha que limpar a bunda dela com lenço umedecido ou com paninho
molhado, mas só eu fazia! Ninguém levantava o rabo pra limpar, se eu viajasse uma
semana e ficasse tudo duro, ia ficar duro, porque ela não deixava (Responsável pela
Tininha, 2015)

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 59


Toda noite [colocava o animal para dormir]. Até ele pegar no sono. Deitava no chão,
na caminha dele, e minha mãe brigava comigo porque eu comecei a ter dor na coluna.
Ficava toda torta com ele, mas se eu não fosse ele ficava latindo e não dormia.
(Responsável pelo Godofredo, 2015)

Há então outra questão importante para compreender a família multiespécie: mais do que os
animais serem filhos, as mulheres são mães. A vinculação com a ideia de instinto, que é tanto animal
quanto materno, é muito presente quando as mulheres se referem aos animais dizendo que “foi ela
quem me escolheu” ou “ele quem me adotou”:

Cheguei lá, olhei o Godofredo, ele olhou pra mim, só tinha ele à venda, os outros já
tinham sido todos vendidos, eu não sabia que era só ele, eu o peguei e falei “esse é
meu, vou levar, depois o meu marido vem conversar com você”. Não perguntei
preço, se podia, nada. Só coloquei ele em mim e decidi que ia levar. (Responsável
pelo Godofredo, 2015)

Há uma questão de gênero bastante presente nas famílias multiespécies. Lewgoy, Sordi e Pinto
(2015) apontam a dificuldade analítica disso, sendo necessário não estigmatizar ou estereotipar uma
situação que já é, por si só, bastante complexa. No caso apresentado por estes autores, as próprias
protetoras de animais apresentavam uma indignação maior quando os maus-tratos ou o abandono
provinha de uma mulher55.

No hospital veterinário, observou-se aos menos três facetas da genderificação da relação


humano-animal: alguns responsáveis ainda mantêm um discurso que relaciona castração com
comportamento esperado para homens e mulheres. Enquanto há, de acordo com as veterinárias,
responsáveis (geralmente homens) que recusam a castração de seus cães machos por afirmarem que
isso tiraria a sua masculinidade, uma senhora idosa, aguardando a castração de sua cadela, me falou
que a fêmea finalmente aprenderia a lição e pararia de se oferecer aos cachorros da vizinhança – o
que me remeteu a uma espécie de castigo moralizante.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 60


Uma segunda questão é o lidar com o corpo do animal morto. Em vários relatos,
imediatamente após a morte, a figura da mulher se recolhe na esfera íntima enquanto os homens
cuidam dos trâmites da destinação do corpo. Por outro lado, a ritualística posterior à morte (altar,
fotos, destinação simbólica das cinzas, etc.) é uma tarefa predominantemente feminina.

Há outro apontamento nesse sentido, que se refletiu na própria obtenção de entrevistas: Os


homens contatados para falarem sobre a morte do seu animal não se dispuseram a tal, e dos casais
contatados, vieram apenas as mulheres. Isso por si só já é um dado relevante, mas a partir de outros
elementos do campo, como as entrevistas com as veterinárias ou as observações no hospital, é
perceptível que as mulheres tendem a se posicionar em relação aos animais de uma maneira mais
protetora, muitas vezes maternal, enquanto os homens os veem como amigos, como companheiros.
Este parece ser um aspecto das famílias multiespécies que merece ter mais atenção em trabalhos
posteriores, visto que representa a complexidade que envolve a masculinidade e a paternidade nas
sociedades contemporâneas.

No seio desta família multiespécie está também a discussão sobre a adoção. Trabalhos como os
de Lewgoy, Sordi e Pinto (2015) e Pastori e Matos (2016) apontam para uma forte relação entre a
adoção de animais e adoção de crianças:

Tal como na adoção de crianças, cuja preferência é por bebês recém-nascidos, do


sexo feminino e de cor branca, o mesmo ocorre com os animais disponíveis para
adoção, cuja preferência recai sob aqueles de pequeno porte e ainda filhotes. (Pastori
e Matos, 2016, p. 124)

Além disso, este processo de institucionalização da posse de animais até então abandonados
carrega em si o conceito de posse responsável, a partir da qual os grupos protetores buscam certificar-
se de que a adoção não é mero impulso, ou que o animal não sofrerá privações ou maus-tratos. Por
outro lado, há as famílias que querem adotar, mas criticam o excesso de burocracia e a invasão de
privacidade que marcam o processo. Muitas alegam inclusive desistir de adotar por estas razões
(Lewgoy, Sordi e Pinto, 2015).

Tudo isso parece fazer parte do que estes autores destacaram como uma vigilância biopolítica
das relações interespecíficas, de caráter intervencionista, regulador e moralizante (Lewgoy, Sordi e
Pinto, 2015). A vigilância fica evidente no discurso da responsabilização que está afixado a uma série

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 61


de produtos e serviços56: microchipe seu pet; quem ama cuida; bicho não é lixo; fim digno; we take
care of their health, you take care of their hapiness; comida de verdade para um amigo de verdade;
o cuidado que eles merecem; cães precisam brincar; seu animal mais seguro; enriqueça o ambiente
do seu cão; quem é amigo cuida assim; mime seu pet; proteger é seu primeiro gesto de amor, etc.

No entanto, ainda que se projete principalmente sobre a esfera privada, ou seja, sobre a família,
há indícios de que a reivindicação dessa vigilância biopolítica é recíproca. Nas entrevistas, nas
conversas informais e na análise das redes sociais, é possível notar o rigor com o qual as famílias
buscam informações a respeito de seus membros animais, quer seja através dos recursos tecnológicos
de captação de som e imagem (pet shops, clínicas, hotéis e creches com videomonitoramento) ou de
uma exigência de maior esclarecimento e transparência nos processos médicos e/ou de destinação do
corpo após o óbito. As diferentes vigilâncias parecem estar todas calcadas num pressuposto de
desconfiança das ações humanas diante da incapacidade de autodefesa animal.

Aqui, parece oportuno trazer o relato da estudante que cuidava dos cachorros de seus patrões
quando estes viajavam. Essa informante que, aliás, nessas situações era chamada de pet sitter pela
patroa, sem saber o significado da expressão. Incomodada com o “apelido”, perguntou o que
significava e então eles lhe disseram que se tratava da baby sitter dos cães – ela, no entanto, afirmou
nunca ter gostado de ser chamada assim:

Eu ficava chateada porque quando eles vinham buscar os cachorros no domingo a


[patroa] ficava apalpando eles inteiros, olhando tudo, meio que desconfiada que a
gente tivesse machucado ou algo do tipo. E isso me chateava porque eu tinha o meu
ali também, poxa, se eu cuidava bem do meu, por que eu iria machucar os dela?
(Estudante III, 2016).

Nessa rede de relações interespecíficas, acentua-se o caráter dinâmico da domesticação. O


processo de domesticação não está dado nem terminado. Tampouco é exclusividade dos animais: os
humanos também somos domesticados (Lorenz, 1973; Ingold, 2000; Segata, 2012; Lestel, 2011;
Lewgoy, Sordi e Pinto, 2015), e isso se dá de muitas formas: pelo modelo social de afeto e de

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 62


responsabilidade que diz como o animal deve ser cuidado; pelas mudanças no estilo de vida e na
rotina que a vinda de um animal à família promove; pelas transformações e novos aprendizados que
os processos de adoecimento e envelhecimento do animal exigem (aprender a aplicar injeções, fazer
curativos, dar comida na boca, carregar no colo); e pela convivência, pura e simplesmente:

A gente levava ele lá pra cima e ele ficava lá tranquilo. Aí quando ele cansava, latia,
e a gente descia ele de novo. Era tudo do jeito que ele queria – ele domesticou a
gente perfeitamente. Eu não consegui ensinar nada pra ele! (Responsável pelo
Godofredo, 2015).

A casa da família multiespécie, neste processo de domesticação, inevitavelmente acaba por


sofrer transformações: seja porque o cão come o pé da mesa ou o gato rasga todo o sofá57, nos mais
simples dos casos, até famílias que se mudam de apartamentos para casas em busca de espaço e bem-
estar para os animais. O caso mais emblemático acompanhado foi o de Godofredo, que morava em
um andar inteiro do sobrado da família. Quando sofreu uma queda e foi operado, todo o solo do andar
foi revestido com material anti-impacto e antiderrapante. Meses depois da morte do animal, aquele
espaço da casa continuava sem uso, intacto, com suas coisas dispostas no mesmo lugar.

Por outro lado, a domesticação é ainda mais evidente nos animais. O mapeamento do conjunto
de características das famílias multiespécies reforça as transformações que vêm ocorrendo nas
relações de afeto. E para que os animais de estimação estejam inseridos nessas famílias, o processo
civilizatório parece ter chegado até eles. Muito dos apontamentos feitos pelos autores que pensam a
relação entre humanos e pets nos remetem ao que Elias (1994) observava na educação dada às
crianças:

O círculo de preceitos e normas é traçado com tanta nitidez em volta das pessoas, a
censura e pressão da vida social que lhes modela os hábitos são tão fortes, que os
jovens têm apenas uma alternativa: submeter-se a um padrão de comportamento
exigido pela sociedade, ou ser excluído da vida num “ambiente decente”. A criança
que não atinge o nível de controle das emoções exigido pela sociedade é considerada

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 63


como “doente”, “anormal”, “criminosa”, ou simplesmente “insuportável”, do ponto
de vista de uma determinada casta ou classe e, em consequência, excluída da vida da
mesma. (Elias, 1994, p. 146)

Como se pode ver, os sentimentos, no interior das famílias multiespecíficas, são intensos e
muitas vezes controversos, tais como em uma família exclusivamente humana. A ideia de sacrificar-
se pelo outro, a noção de culpa e as crises devido à presença dos animais podem ser mais constantes
do que se imagina a priori. Os animais doentes, moribundos, são os que mais incitam as falas de
sacrifício. Mais que mera auto-piedade ou sentimento altruísta, o sacrifício pelo outro mostra-se aqui
enleado no paradoxal petshismo apresentado por Digard (1999), que vê a relação com os pets como
um fetiche das sociedades urbanas contemporâneas, supervalorizada e ao mesmo tempo coisificada,
permeada de consumo. Uma fonte inesgotável de amor verdadeiro, mas ao mesmo tempo uma
responsabilidade do doar-se.

A ideia do animal especial, que requer cuidados para além de um animal comum, carrega em
si a noção do sacrifício:

A gente teve um bebê especial, que dá mais trabalho ainda! Eu morria de medo de
alguém maltratá-lo, nossa, e a gente pensava que ele era mimado porque ele era
especial, né? Porque ele tinha tudo quanto era problema, a gente brinca que ele era
especial, tadinho (Responsável por Godofredo, 2015).

Ela só viveu esse tempo porque eu cuidei, pelo porte, muito pequenininha, teria ido
muito antes, então eu cuidava, levava no veterinário, dava vacina, dava banho.
(Responsável pela Tininha, 2015).

Encontrei a Sofia numa situação super triste, ela estava obesa, tava diabética, tava
cega, que foi o que mais me chocou quando a gente chegou. E eu fiquei totalmente
sem chão, a gente não sabia o que fazer! Aí a cachorrinha ficou na casa da minha
irmã, eu ia lá todos os dias, eu tinha a chave da casa, ia à noite com o meu marido,
íamos ali, tratávamos, ficávamos com ela, levávamos no parque no fim de semana.
Mas eu não curtia mais a Sofia, isso é que foi o pior. Na verdade eu cuidava dela.
Mas acho que todo animal você tem que fazer isso, tem que cuidar dele.
(Responsável pela Sofia, 2015).

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 64


A culpa é outro dos elementos característicos da família humana – especialmente da judaico-
cristã (Scliar, 2006) -, que não desaparece nas relações interespecíficas. Aqui parece haver ainda um
adicional de culpa pela não-agência do animal, por ele não poder expressar-se como os humanos. As
culpas dos responsáveis estão ligadas a ter deixado o animal sob o cuidado de terceiros; a deixar outro
animal se aproximar de suas coisas após a sua morte; ou até mesmo culpa diante do dilema de ter ou
não ter outro animal depois do óbito 58 . Uma veterinária entrevistada, que perdeu seu animal no
hospital, mostrou-se culpada por ter feito muita pressão nos colegas para que salvassem sua cachorra.
E todas as veterinárias mostram sinais de culpa diante da perda de um animal e do eterno dilema “será
que eu poderia ter feito mais alguma coisa?”. Esta pergunta parece ser fonte de culpa não só dos
profissionais veterinários, mas também dos responsáveis, especialmente quando precisam autorizar
uma eutanásia. E a culpa parece não se dissipar automaticamente junto com a morte:

Eu dou abertura para que eles venham conversar comigo. E eles vêm mesmo, às
vezes meses depois, vem conversar, perguntar “mas será que fizemos tudo? E se a
gente tivesse tentado tal coisa?”, então isso leva tempo mesmo. (Médica Veterinária
II, 2015)

Além da culpa, é possível identificar o ciúme que alguns humanos têm em relação aos seus
animais:

Eu tinha muito ciúme. Eles colocaram câmera lá pra gente poder acompanhar o
banho e eu fui ver um banho dele, e ele lá, sentadão enquanto a moça dava banho,
depois ela começou a secá-lo e ele ficou lambendo o rosto dela, um monte, um
monte, eu desliguei. Eu falei “que raiva, eu não vou ver isso”, e ele cheio de amor
pra dar (risos).” (Responsável pelo Godofredo, 2015)

A presença de membros de outras espécies na família e a forma como são tratados nem sempre
é algo consensual ou pacífico. Os conflitos nas famílias geralmente emergem nas entrevistas e nas
observações no campo, e podem estar atrelados à dissonância entre como se dará essa relação (quais
espaços o animal ocupará, quanto de atenção, de tempo e de recursos tomará dos membros humanos,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 65


etc.), a perda de confiança de que um humano cuidará suficientemente bem do animal, ou até mesmo
caso de ciúmes – e aqui, o ciúme é um sentimento que pode partir tanto do humano quanto do animal.

Eu disse “gente, mas você não é veterinária?”, e aí eu me sinto meio assim, porque
eu já levei uma dessas: “a veterinária sou eu”, então pra falar qualquer coisa, por
exemplo, sobre a doença da Sofia, foi muito difícil pra mim, porque minha irmã dava
a entender que tudo ela sabia. Só que ela sabia, mas não teve atitude nenhuma pra
ajudar. Não fazia nada, ela não fez nada. Ela ficou de braços cruzados esperando a
coisa acontecer (Responsável pela Sofia, 2015)

E tinha que ter tapete em casa, tá? Porque ele só dormia no tapete. E meu marido
brabo, reclamando que o tapete tinha cheiro de cachorro, que a casa tava com cheiro
de cachorro, e eu dizia é o tapete dele, ué? O que eu posso fazer? Se tirasse o tapete
ele ficava brabo! (Responsável pelo Godofredo, 2015)

Essa falta de consenso sobre quais os “limites” do membro não-humano se estende para além
da própria família, compreendendo também quem faz a limpeza da casa: “[A patroa] e eu discutimos
algumas vezes porque toda semana era a mesma coisa: eu tinha acabado de limpar o chão e o cachorro
entrava correndo todo sujo de lama e grama e sujava tudo de novo. Porque ele podia entrar e sair na
hora que queria, ele fazia o que queria naquela casa!” (Estudante II, 2016).

O agrupamento familiar multiespecífico, assim, ainda que apresente uma série de características
próprias, carrega em si ambivalências, contradições e conflitos inerentes à família unicamente
humana. Nem tudo é amor na relação entre humanos e animais.

O público urbano é altamente sensível para com animais de estimação e fauna


selvagem – mas altamente ambíguos como consumidores em relação aos animais de
produção – na medida em que a era pós-doméstica faz um resgate paradoxal do pré-
doméstico, em que era alto o grau de subjetivação de animais não humanos, mesmo
as presas de caça (similar ao “animismo” em Descola e Ingold) (LEWGOY, SORDI
e PINTO, 2015, p. 83)

Semelhante apontamento é feito por Pessanha e Carvalho (2015), que, ao analisarem as


campanhas de marketing voltadas aos responsáveis por animais de estimação, identificaram uma
concomitante antropomorfização afetiva que se dá no ato de consumo, entre os humanos e os animais

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 66


de estimação. Na linha borrada entre humanidade e animalidade, há espaço para introduzir novos
hábitos e necessidades de consumo:

As empresas de bens e serviços para animais de estimação, mesmo cientes da


distinção animais e humanos, produzem campanhas de marketing onde estas duas
categorias se confundem, tendo em vista fortalecer a motivação para a compra de
seus produtos por parte dos potenciais consumidores. (Pessanha e Carvalho, 2015,
p. 189)

Considerações Finais

As relações interespecíficas nos interessam a partir de muitos pontos de vista. Há elementos


que solicitam uma análise antropológica, outros psicológica, outros etológica - ainda que todos,
obviamente, estejam permeados por reflexões mais amplas, transdisciplinares. No entanto, há
elementos dessas relações, e das famílias multiespécies mais especificamente, que podem e devem
ser encarados a partir de uma mirada sociológica.

A verdade é que a perspectiva antropocêntrica da sociologia deve ser superada. A ciência que
surgiu para compreender os grandes feitos (e efeitos) da modernidade precisa compreender que o ser
humano nunca esteve sozinho nessa empreitada, e que seus objetos de pesquisa – as instituições
sociais, os grupos sociais, a vida em sociedade, em geral – sempre estiveram marcados pelas relações
interespecíficas.

Trazer a questão de classe para este debate não deve ser encarado, absolutamente, como uma
ingenuidade analítica de que pets são exclusividade das camadas ricas. A verdade é que as classes
média, média baixa e baixa também têm seus animais de estimação (algumas vezes de raça,
comprados com grande esforço), e mantêm o mercado pet brasileiro, o segundo maior do mundo,
bastante aquecido. E para esse público consumidor específico, o das classes populares, como já havia
demonstrado Bourdieu (2013), há um conjunto de substitutos dos artigos consumidos pelas classes
dominantes. No caso do mercado pet, são rações com preços mais acessíveis, bijuterias como
substitutos das joias, acessórios e brinquedos de polímeros de qualidade inferior.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 67


Tratar de classe aqui, então, é exemplar para enfatizar que nem só de costumes e cultura vivem
as relações entre humanos e não-humanos, mas que há imbricadas conexões entre os aspectos
culturais, psicológicos, históricos, sociais, políticos e econômicos que regem essas relações.

De qualquer modo, é perceptível que há, nas relações interespecíficas, mais elementos e
complexidade que nos faz crer uma imagem de um ser humano abraçando seu cachorrinho. Mais do
que situações que vinculam classe e distinção, há afetos e desafetos, animais que duram mais que a
estimação (Segata, 2016) e uma balança a calcular o tempo todo a relação entre custo e amor.

Bauman (2004) já dizia que estamos em tempos de amor líquido, em que um filho, por exemplo,
é acima de tudo, um objeto de consumo emocional.

Objetos de consumo servem a necessidades, desejos ou impulsos do consumidor. Assim


também os filhos. Eles não são desejados pelas alegrias do prazer paternal ou maternal
que se espera que proporcionem – alegrias de uma espécie que nenhum objeto de
consumo, por mais engenhoso e sofisticado que seja, pode proporcionar. Para a tristeza
dos comerciantes, o mercado de bens de consumo não é capaz de fornecer substitutos à
altura, embora essa tristeza de alguma forma seja compensada pelo espaço cada vez
maior que o mundo do comércio vem ganhando na produção e manutenção desses bens.
(BAUMAN, 2004, p. 59)

Talvez o que Bauman não previu é que os comerciantes poderiam não encontrar um substituto
exatamente à altura dos filhos, mas fariam de tudo para que todos amassem os pets, que apresentam
um potencial de consumo vinculado tal qual os pequenos humanos. Nessa sociedade de amor
espetacular (e líquido), não ser petlover é quase sinônimo de mau caráter. Mas abandonar filhotes de
coelhos no mato na segunda-feira em seguida da páscoa é cada vez mais comum.

Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Amor líquido – sobre a fragilidade dos laços humanos. RJ: Zahar, 2004.

BOURDIEU, P. A distinção – crítica social do julgamento. Porto Alegre: Zouk, 2013.

BOWEN, M. Family therapy in clinical practice. New York: Jason Aronson, 1978.

DERRIDA, J. O animal que logo sou. São Paulo: Unesp, 2011.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 68


DIGARD, J.P. Les français et leurs animaux – ethnologie d´un phenomene de societé. Paris:
Fayard, 1999.

ELIAS, N. O processo civilizador – volume I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994.

FARACO, C. B; SEMINOTTI, N. Sistema social humano-cão a partir da autopoiese em


Maturana. Psico, v. 41, n. 3, p. 4, 2010.

FRANCIONE, G. Introdução aos direitos animais – seu filho ou o cachorro?. Campinas:


Unicamp, 2013.

GAEDTKE, K. M.. Relações entre humanos e animais de estimação: pela defesa de um olhar
sociológico. In: Anais do 38º Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e
Pesquisa em Ciências Sociais. Caxambu: ANPOCS, 2014.

__________. A medicalização da vida animal: afeto, cuidado e consumo na relação entre humanos
e seus animais de estimação.. In: Anais do Congresso da Associação Latino Americana de
Sociologia – ALAS. San Jose: ALAS, 2015.

____________. Reflexões Sobre a Morte e o Luto em Famílias Multiespécies. In Anais da 11th


International Conference on Interdisciplinary Social Sciences. Londres: Common Ground,
2016a.

____________. Os debates sobre direitos animais em espaço políticos brasileiros: ampliação e


ambivalências das relações interespecíficas. In: Anais do XXI Seminário Acadêmico Internacional
da Associação dos Pesquisadores e Estudantes Brasileiros em Catalunha. Barcelona: 2016b.

INGLEHART, R. Modernización y posmodernización: el cambio cultural, económico y político


en 43 sociedades. Madrid: Centro de Investigaciones Sociológicas/Siglo Veintiuno, 2001.

INGOLD, T. The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling and skill.
London/NY: Routledge, 2000.

KRUSE, C. R. Social Animals: animal studies and sociology. In: Society & Animals [online].
Leiden, v.10,.n 4, 2002.

LESTEL, D. A animalidade, o humano e as “comunidades híbridas”. In: MACIEL, M. E. (org.).


Pensar/escrever o animal – ensaios de zoopoética e biopolítica. Florianópolis: UFSC, 2011.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 69


LEWGOY, B.; SORDI, C.; PINTO, L.O. Domesticando o Humano: para uma antropologia moral da
proteção animal. Ilha Revista de Antropologia, v. 17, n. 2, p. 075-100, 2015.

LORENZ, K. Civilização e pecado – os oito erros capitais do homem. São Paulo: Círculo do livro,
1973.

OLIVEIRA, S. B. C. Sobre homens e cães: um estudo antropológico sobre afetividade, consumo


e distinção (Dissertação de Mestrado – PPGSA/IFCS/UFRJ). Rio de Janeiro: UFRJ, 2006.

PASTORI, E.; DE MATOS, L. G. Da paixão à “ajuda animalitária”: o paradoxo do “amor


incondicional” no cuidado e no abandono de animais de estimação. Caderno Eletrônico de Ciências
Sociais, v. 3, n. 1, p. 112-132, 2016.

PESSANHA, L. e CARVALHO, R. L. Famílias, animais de estimação e consumo: um estudo do


marketing dirigido aos proprietários de animais de estimação. Signos do Consumo, v. 6, n. 2, p. 187-
203, 2015.

SEGATA, J. Os cães com depressão e os seus humanos de estimação. Anuário Antropológico, n. II,
p. 177-204, 2012.

__________. Quando o animal dura mais que a estimação. Mana, v. 22, n. 3, p. 831-856, 2016.

SCLIAR, M. Enigmas da culpa. São Paulo: Editora Objetiva, 2006.

THOMAS, K. O homem e o mundo natural – mudanças de atitude em relação às plantas e aos


animais (1500-1800). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

WRYE, J. “Beyond pets: exploring relational perspectives of petness”. In: Canadian Journal of
Sociology/Cahiers canadiens de sociologie (online). 34(4), 2009.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 70


Tratamento humanitário dos animais de produção: trabalhadores e gado no frigorífico

Ana Paula Perrota59

Resumo: A construção da condição humana na modernidade em oposição à condição animal diz


respeito a distinção entre sujeito e objeto. Entretanto as oposições humano - animal e sujeito - objeto
compreendem múltiplas relações, mais complexas do que tais dicotomias expressam. Atualmente
existe uma série de normatividades que incidem sobre os ambientes de abate dos animais de produção
que visam assegurar um “abate humanitário” e as condições de “bem-estar animal”. Esses próprios
termos, que dão nome às instruções normativas, já demonstrariam essa complexidade. As
preocupações com as condições de vida e morte dos animais são expressas nos termos das
preocupações com as dos humanos, demonstrando um embaralhamento dos pares dicotômicos citados
acima. A partir de pesquisa realizada em um frigorífico industrial, que contou com visita ao local e
entrevistas com funcionários e ex-funcionários, meu objetivo é trazer luz a esse embaralhamento. A
ideia é pensar em como a relação entre humanos e gado expõe as ambiguidades entre as categorias
sujeito e objeto e deixam claro a fluidez dessa fronteira. Discutiremos, a partir das ações do gado no
frigorífico, bem como a partir de como os trabalhadores pensam e se relacionam com os animais, que
o gado destinado ao abate transita entre os polos sujeito e objeto. Como veremos, as interações entre
humanos e animais conjugam essas duas realidades, e levam em conta o animal como um objeto
manipulável, mas que possui também uma realidade subjetiva.

Palavras chaves: relações humano-animal; sociologia e antropologia da moral; movimentos


políticos; direito dos animais.

1 - Introdução

A construção da condição humana na modernidade em oposição à condição animal diz


respeito a distinção entre sujeito e objeto. Atualmente existem no Brasil e em diferentes países

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 71


organizações políticas que reivindicam que animais sejam considerados sujeitos de direitos. Esses
grupos partem da perspectiva crítica de que os animais são considerados como objetos e este status
seria um grave erro epstemolótgico e moral. Como forma de reparar essa situação, os defensores dos
animais empreendem uma reforma do status dos animais, que passaria de sua consideração de objeto
(a)moral para sujeito moral.

Para justificar esse tratamento aos animais, os defensores constroem sua argumentação,
afirmando que os animais assim como os humanos, possuem uma vida interior e, portanto, têm o
direito de viver. Mobilizando saberes das ciências biológicas, que atestam que animais também são
seres sencientes, isto é, possuem capacidade de sentir e, portanto, de sofrer, esses grupos políticos
denúnciam que as atividades que fazem uso de animais os tornam vítimas de dor, sofrimento, privação
da liberdade e da própria morte. E como forma de garantir uma vida digna para os animais e o seu
próprio direito de viver, esses grupos constroem e buscam dar sustentação a uma teoria ética e dos
direitos dos animais.

Entretanto as oposições humano - animal e sujeito - objeto compreendem múltiplas relações,


mais complexas do que tais dicotomias expressam. Atualmente existe uma série de normatividades
que incidem sobre os ambientes de abate dos animais de produção que visam assegurar um “abate
humanitário” e as condições de “bem-estar animal”. Esses próprios termos, que dão nome às
instruções normativas, já demonstrariam essa complexidade. As preocupações com as condições de
vida e morte dos animais são expressas nos termos das preocupações com as dos humanos,
demonstrando um embaralhamento dos pares dicotômicos citados acima.

A partir de pesquisa realizada em um frigorífico industrial, que contou com visita ao local e
entrevistas com funcionários e ex-funcionários, meu objetivo é trazer luz a esse embaralhamento. A
ideia é pensar em como a relação entre humanos e gado expõe as ambiguidades entre as categorias
sujeito e objeto e deixam claro a fluidez dessa fronteira. Discutiremos, a partir das ações do gado no
frigorífico, bem como a partir de como os trabalhadores pensam e se relacionam com os animais, que
o gado destinado ao abate transita entre os polos sujeito e objeto. Como veremos, as interações entre
humanos e animais conjugam essas duas realidades, e levam em conta o animal como um objeto
manipulável, mas que possui também uma realidade subjetiva.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 72


2- Sobre a objetivação dos animais de produção

A produção da carne, a partir de uma perspectiva histórica, envolve modos distintos de criação
dos animais e de sua transformação em alimento. As técnicas e os modelos de organização produtivos
para a confecção desse bem alimentício assumem diferentes características ao longo do tempo e
conforme os lugares.

A carne diz respeito a um “objeto político trabalhado conforme preocupações higiênicas,


econômicas e morais (Ferrière apud Remy, 2005). Como afirma Noélie Vialles (1987), nem todo
corpo de um animal se torna carne comestível, do mesmo modo que nem todo tipo de morte do animal
produz a carne como um alimento. Esta mercadoria não é mero artefato, mas, como define Catherine
Remy (2005), trata-se de um objeto situacional confuso e importante que envolve operações
interacionais entre diversas categorias de agentes. Em conformidade com essa perspectiva, Patricia
Pellegrini (1999) chama atenção para a diversidade de agentes que trabalham sobre e com os animais
de produção:

Os criadores que lidam com os animais no cotidiano, os zootecnistas, que garantem o controle
aos criadores das orientações dadas às raças (leite menos gordo, facilidades no parto, docilidade...)
os veterinários que tratam os animais, mas também regulam os suplementos e autorizam a
comercialização, engenheiros agrônomos que trabalham para o melhoramento da raça, biólogos
interessados na adaptação dos animais, ecologistas, usando gado para gerir os espaços em direção
à proteção ecológica. (PELLEGRINI, 1999, p. 2).

O modo de organização que aqui será discutido diz respeito à forma moderna de produção da
carne. Chamo de forma moderna, pois se trata da estrutura produtiva institucionalizada e
regulamentada pelo Estado, além de corresponder, nas sociedades modernas e industriais, ao modelo
responsável pela maior parte da produção desse bem. Considera-se, portanto, que “as representações
e as atitudes dos criadores contemporâneos, os sistemas de criação, as estruturas estatais e privadas
que organizam a produção agrícola são produtos dessa história e não podem ser compreendidos sem
assumir o caráter conflituoso de sua evolução” (PORCHER, 2002, p. 7). Esse modelo produtivo é
recente em nossa história, e as denúncias sobre o “sofrimento animal” dialogam diretamente com sua
estrutura organizacional.

Levar em conta a “interioridade” dos animais destinados à produção de alimento, tal como é
atualmente reivindicado pelos defensores, não é um processo novo e faz parte desse caráter

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 73


conflituoso. Mas, nos dias de hoje, essa questão é recolocada num contexto de hiperobjetivação dos
animais, levado à frente nos frigoríficos industriais. Este fato torna importante que tenhamos olhar
mais detalhado sobre a relação humano/animal nesses locais. Portanto, trataremos inicialmente do
modelo de produção industrial da carne, não só em termos de técnicas, mas também de vínculos.

De maneira simplificada, o sistema de produção da carne consiste em dar vida aos animais,
criá-los e, como última etapa, promover seu abate de modo a obter a mercadoria final. Esses
processos, por sua vez, podem ser conduzidos de diferentes maneiras. Não só a forma de abate se
organiza a partir de diferentes critérios, mas a maneira como os animais são criados também difere
segundo os modelos de organização. Pensar nessas diferentes etapas envolve mundos particulares
próprios60. Como já foi dito, no que se refere à produção da carne, tratarei das atividades dentro do
frigorífico, pensando sobre como os animais são comprados, como são manejados durante a espera
para o abate e durante o próprio abate, e como ocorre a produção final da carne.

O modelo de abate bovino industrial, tal como se organiza hoje nas sociedades
contemporâneas, tem seu surgimento no início do século XIX, e se caracteriza como uma forma de
organização inédita. Nesse contexto de mudanças, tanto os aspectos técnicos quanto o modo e a
concepção acerca da relação entre humanos e animais são transformados. Essas transformações
ocorrem em meio a um processo mais amplo de urbanização e industrialização, e seguem a dinâmica
de reordenamento do espaço urbano das grandes cidades. A cidade de Chicago, nos Estados Unidos,
é discutida por historiadores e cientistas sociais como paradigma dessa nova modalidade produtiva,
devido às instalações pioneiras das empresas Swift e Armourn, nas primeiras décadas do século XIX.
Nesse mesmo período, os chamados frigoríficos industriais foram igualmente implantados em cidades
europeias como Paris e Londres. A partir de então, esse modelo se expandiu entre os países
capitalistas. Desde o final do século XIX, a transformação da estrutura de abate no Brasil seguiu essa
mesma dinâmica:

A construção do matadouro no Campo de São José, em Santa Cruz, na cidade


do Rio de Janeiro, distante do centro da cidade cinquenta e cinco quilômetros

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 74


e oficialmente inaugurado no dia 30 de dezembro de 1881, prometia uma
solução modernizadora para a capital do Império. (…) Para o novo
estabelecimento, encomendaram-se todos os acessórios, maquinário, e
mesmo os portões, “dos países civilizados da Europa”, no intuito de erguer,
na cidade do Rio de Janeiro, um matadouro modelo. (DIAS, 2009, p 5)

A industrialização do abate diz respeito a uma série de reordenamentos acerca do modo como
os animais são manipulados. O primeiro desses reordenamentos consiste na construção de um espaço
centralizador das atividades para a produção da carne. Os animais, antes abatidos nas ruas, em meio
às casas e pessoas, passaram a ser abatidos em um espaço delimitado e destinado para esse fim. Como
afirma Catherine Remy (2005), no começo do século XIX foram criados os frigoríficos como espaços
fechados e sob vigilância. A partir de então, tornou-se obrigatório que os animais fossem abatidos
nesses estabelecimentos municipais, construídos longe dos centros urbanos (GASCAR, 1973). Nesse
sentido, o frigorífico surge a partir de uma dupla definição: diz respeito tanto a um lugar, quanto a
uma prática (VIALLES, 1987).

A construção desses espaços especializados promoveu uma ruptura dos diferentes ofícios
realizados. Anteriormente, os chamados açougueiros se ocupavam da produção da carne em sua
totalidade: eles matavam, desmembravam o corpo, separavam a carne e a vendiam. Mas, com o
processo de industrialização, houve “a cisão entre o matador e o açougueiro, e a aparição de um corpo
de profissionais, os trabalhadores do frigorífico ou ainda os matadores do frigorífico” (REMY, 2005,
p. 193). Essa ruptura também ocorreu com relação aos criadores de gado destinado para corte61. Estes
não podem mais abater os animais, mas devem vendê-los obrigatoriamente aos frigoríficos, que se
encarregarão do restante da produção. A industrialização dessa atividade correspondeu então a uma
transformação do vínculo entre os criadores e seus animais, uma vez que os donos dos animais foram
impedidos de realizar todas as etapas necessárias para a produção da carne.

A reestruturação produtiva da carne é orientada por um modelo cientificista e um ideal de


modernização e primor técnico, que buscam atender tanto à expectativa de aumento da rentabilidade,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 75


como às novas pressões existentes para o controle sanitário dos animais e da carne. A criação de um
local específico para o abate e a divisão de etapas distintas e separadas produziram, em primeiro lugar,
uma extensa divisão do trabalho dentro do próprio frigorífico. O método de abate deixa de ser
artesanal e se torna um processo mecanizado e massivo, orientado predominantemente pela razão
econômica, assumindo as características e condições gerais de toda indústria (PORCHER, 2002). Os
frigoríficos são organizados a partir de normas estritas de produção, que garantem uma estrutura
técnica capaz de atingir maior produtividade. O trabalho se torna, portanto, racionalizado em sua
busca por aperfeiçoar as relações artesanais, baseadas no vínculo afetivo entre as pessoas e os animais
(PORCHER, 2011).

O controle sanitário corresponde ao segundo critério levado em consideração para a criação


dessa nova estrutura organizacional. A centralização e o distanciamento das atividades do abate fazem
parte de uma política de urbanização e de higiene pública, responsável por garantir a vigilância da
produção, visando a qualidade da carne e evitando a existência de fraudes. A carne passa a ser tratada
como um vetor de riscos, e novas formas de controle e técnicas de assepsia são engendradas para o
cumprimento de diferentes funções: a vigilância das práticas, a ocultação dos “restos” desse processo
produtivo e de seus efeitos, como o mau odor, o afastamento de animais que se alimentam desses
“restos”, o fim das contaminações etc. Ao inviabilizar que o abate fosse realizado fora dos
frigoríficos, “fazia-se desaparecer da rua o “espetáculo nojento” de sangue derramando pela degola
dos animais”. Esse trecho, citado por Catherine Remy (2003), é parte do documento emitido pelo
conselho municipal de Paris, redigido em 1937, quando foi consagrada a criação desses
estabelecimentos.

Em meio ao processo de criação dos frigoríficos industriais, o Estado se tornou responsável


pela inspeção desses estabelecimentos através de um corpo de inspetores que fiscalizam a higiene e
as instalações do ambiente. Esse processo foi acompanhado da entrada e legitimação da medicina
veterinária e de suas práticas, que fizeram do frigorífico um lugar considerado decisivo para a
segurança sanitária dos alimentos (BONNAUD e COPPALE, 2011). Compondo o quadro técnico dos
frigoríficos, os inspetores são responsáveis por examinar os animais quando chegam, o abate e a sua
carcaça, em busca de alguma doença ou lesão (BONNAUD e COPPALE, 2011). São esses
profissionais que atestam a qualidade do produto, ou seja, se o alimento está apropriado ou não para
o consumo humano. Nesses termos, a produção da carne se torna fonte de preocupações para a saúde

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 76


pública e, conforme Vialles (1987) ressalta, adquire características de um ambiente laboratorial, em
razão da brancura e assepsia.

Além dos aspectos econômicos e sanitários, outro aspecto discutido como motivação para a
centralização e o distanciamento dos frigoríficos diz respeito à preocupação moral em impedir a
visibilidade pública da morte que acompanha o abate. A construção dos frigoríficos de acordo com
essas características tinha como objetivo responder aos anseios contra a violência entre os próprios
humanos. Como esclarece Remy, os frigoríficos deveriam “esconder a morte para não dar às crianças
essa ideia” (2009, p. 28). Nesse caso, o afastamento do abate segue um movimento conjunto de tornar
oculta a morte de humanos e animais. Pois se a morte era considerada um espetáculo público, a partir
do século XX se torna um tabu (Esquerre e Truc, 2011). Desde então, o trânsito e as mortes dos
animais nas cidades se tornaram inaceitáveis.

A preocupação em ocultar as atividades presente no abate é satisfeita também através da


divisão do trabalho existente nos frigoríficos. A identificação do responsável pela morte do animal é
escondida, pois os animais são manipulados por diferentes pessoas. De acordo com Remy (2009), a
industrialização parcializa a atividade e destrói assim a unidade do vivante, que se torna uma matéria
a ser “desmontada” em uma cadeia de produção (2009, p. 24). A figura do “matador” desaparece na
medida em que o animal é abatido por todos e, ao mesmo tempo, por ninguém (REMY, 2009). O
momento propriamente da morte do animal se torna invisível, uma vez que o emprego de diferentes
técnicas “permite esconder os signos seculares da morte dos animais” (VIALLES, 1987, p. 20). O
abate deixa de ser um gesto violento ou uma ação de morte, e passa a ser uma sucessão de atividades
produtivas.

O afastamento e a centralidade do abate cumprem, portanto, o papel de tornar invisível o que


antes era tratado como um espetáculo público e, ao mesmo tempo, esconder o vermelho do sangue
que é trocado pelo branco, seja dos revestimentos das paredes, dos acessórios ou das roupas dos
funcionários. Expulsos dos centros urbanos, esses estabelecimentos passaram a ser construídos em
periferias, adquirindo o status de lugares “incômodos, insalubres e perigosos” (VIALLES, 1987, p.
27).

Observamos então as características mais gerais acerca da construção dos frigoríficos, que
dizem respeito a um esforço de modernização, pautado pela industrialização, racionalização,
concentração e distanciamento das atividades. Essas mudanças visam o aumento da lucratividade, a

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 77


segurança santitária e a invisibilidade do abate. Em torno dessas características, Noélie Vialles
descreve a nova configuração do frigorífico, dizendo que este “deve ser industrial, isto é, massivo e
anônimo, deve ser não violento, idealmente: indolor, deve ser invisível, idealmente: inexistente. Ele
deve ser como se não fosse” (1987, p. 21). Para atender a todas essas características, nenhuma
atividade do frigorífico permanece livre ou contingencial. Ao contrário, todos os procedimentos,
desde a chegada do animal, até o transporte da carne, são realizados através de inúmeras
regulamentações.

A discussão sobre as transformações técnicas dos frigoríficos por parte de cientistas sociais é
acompanhada também da problematização sobre a mudança de vínculo com os animais. A
compreensão feita segue a perspectiva crítica dos defensores dos animais, de que tais relações
passaram a ocorrer a partir de uma consideração dos animais como mero objetos. Alguns autores
como Noélie Vialles (1987); Catherien Remy (2003); Jocelyne Porcher (2002); e Ghilhem Anzalone
(2005) falam de um processo de “objetivação”, “dessingularização” e “desanimalização” para se
referirem ao que acontece com os animais nesses ambientes. Esses autores ressaltam o
enfraquecimento do vínculo com os animais e tratam do que seria a redução do animal a uma matéria
insensível. Desse modo, a relação interespécies nos frigoríficos seria orientada em torno de uma
lógica técnico-econômica, que se satisfaz em termos de uma política de produtividade e assepsia.

Nesses termos, por “objetivação do sensível” e “desanimalização”, os autores se referem à


reificação do animal de produção e à banalização do abate na medida em que transformam “os
‘matadores’ em ‘operadores’, e o animal carne em artefato” (REMY, 2003). Nessa mesma perspectiva
Porcher (2002) diz que há uma reificação do status dos animais de produção e, ao mesmo tempo, a
negação do vínculo entre criadores e animais. Os animais, de acordo com a autora, são considerados
de forma unilateral, uma vez que o único objetivo de sua existência se torna o lucro. Haveria, portanto,
um esquecimento do sentido de sua vida. Em complemento a essa discussão, Blondeau (2002) afirma
que os animais de produção perdem sua personalidade, sua natureza animal e sua visibilidade. Em
decorrência dessa perspectiva, o animal dever responder unicamente aos critérios e performances
definidos pelos técnicos, e aos conteúdos econômicos da produção. Os animais de produção são,
portanto, considerados ferramentas de produção ou produtos. A perda do vínculo ou da dimensão
afetiva dos e para com os animais permite a construção do seu corpo como objeto (Remy, 2003), e os

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 78


animais são definidos por consideração ao que eles se tornarão e não por consideração ao que eles
ainda são (ANZALONE, 2005).

Na consideração desses autores, anteriormente à industrialização da produção da carne,


existiria uma dimensão afetiva entre humanos e animais que foi perdida, permanecendo apenas as
relações econômicas e utilitárias. A exclusão dessa dimensão teria contribuído para a existência de
um tratamento cruel dos animais, pois, desumanizados, não haveria sentido em destinar a eles um
tratamento humanitário. Nesse contexto, os animais se tornaram apenas “coisas a serem manipuladas
tecnicamente e concretamente para otimizar sua produção” (PORCHER, 2011, p. 24).

Conforme o trabalho desses autores, observamos então um ponto de ruptura entre o que seria
a criação de animais e a produção industrial, que marca um passado e um presente. No passado,
haveria um sistema de criação em que os animais eram tratados de forma individualizada e como
agentes do trabalho. Devido a essa forma de tratamento, era possível a existência de uma vida
econômica em comum com os animais. De acordo com Jocelyne Porcher (2011), as mudanças
ocorridas não permitem mais que tratemos da relação entre humanos e animais de produção nesses
termos. Agora devemos falar de sistemas industriais. Nesses sistemas, os animais são conduzidos por
assalariados e não por criadores, de modo que, a racionalidade técnico-econômica do trabalho se opõe
à existência de quaisquer sentimentos. Na produção industrial, há a perda da identidade e da
singularidade dos animais, que são tratados em massa.

A crítica acadêmica sobre a “desanimalização dos animais” é acompanhada pela crítica dos
defensores dos animais contra a “crueldade” que seria cometida nesses ambientes, em termos físicos
e emocionais. Da perspectiva de acadêmicos e defensores, a reificação dos animais de produção, bem
como o isolamento físico e moral do processo de abate, produz uma “insensibilidade” e
“invisibilidade” que fazem com que os animais sejam tratados de forma “cruel” e “violenta”.

Ainda no século XIX foram fundadas as primeiras associações protetoras dos animais, em
países como Inglaterra e França. E, no começo do século XX, veterinários passaram a considerar os
métodos de abate industrial como “bárbaro e cruel”. Nesse contexto, surgiram estudos sobre a
dimensão emotiva dos animais e uma regulamentação humanitária que versa sobre os animais de
produção. Como nos explica Remy (2003), nas primeiras décadas do século XX, começou na França
uma discussão sobre técnicas de abate que questionava se os animais deveriam estar conscientes ou

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 79


insensibilizados durante a sangria. E em 1930, na cidade de Lyon, foi introduzida a pistola de ar
pneumático, que garantia um atordoamento instantâneo e indolor.

3 – Tratamento humanitário destinado aos animais de produção

Durante a jornada de trabalho para o cumprimento das etapas produtivas realizadas para o
abate dos animais, os operadores devem seguir o ritmo da nora e realizar suas atividades num tempo
contado em segundos, para a otimização da fabricação da carne. Preocupações com a maior
rentabilidade da produção, com a segurança sanitária da carne, minimização de danos ambientais e
com a qualidade do trabalho dos operadores soma-se às preocupações com o bem-estar dos animais.

Esse modelo de organização industrial que segundo a consideração de cientistas sociais e


defensores dos animais reifica os bovinos destinados ao abate precisa levar em conta a realidade viva
dos animais. As instruções normativas que versam sobre abate humanitário e bem estar dos animais
de produção trazem para o escopo técnico que é preciso encarar os animais como agentes capazes de
se tornar conscientes ao que acontece ao seu redor. As questões técnicas no frigorífico envolvem,
portanto, o fato de que a matéria-prima manipulada é um material vivo, orgânico. Há, nesse sentido,
uma realidade orgânica do animal que pode ser impoderável a toda organização técnica devido a suas
características particulares, e que fazem dessa linha produtiva um universo diferente de uma
montadora de carros, por exemplo.

As atividades de produção da carne apresentam a dualidade sujeito-objeto e todas as


implicações resultantes dessa realidade. E o tratamento humanitário que se reivindica aos animais,
que poderia ser tratado como um parodoxo desse sistema produtivo, precisa ser incorporado e adquirir
sentido como mais uma dimensão técnica do frigorífico. Mais uma vez considero necessário enfatizar
que essa questão não é nova. Podemos dizer que a dualidade sujeito-objeto sempre esteve presente,
afinal o boi destinado ao abate sempre foi um vivante, ou seja, antes da morte, nunca foi
carne/mercadoria. Esses dois polos sempre existiram e foram fontes de tensão e negociação, que
implicam em definições contraditórias dos animais de produção (REMY, 2003).

Essa injunção do animal ao mesmo tempo como sujeito e objeto é vivenciada pelos
trabalhadores do frigorífico a medida em que estes avaliam tanto o comportamento dos animais,
quanto o desenvolvimento das técnicas produtivas a partir da subjetividade dos animais ou seja,

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 80


avaliam sua capacidade de agência quando resistem a andar pelo corredor ou quando precisam manter
o rebanho de donos diferentes separados para que os animais não se estressam com a presença de
outros desconhecidos.

Os autores anteriormente citados falam sobre a “perda de sentimentos”, “perda da identidade”


e “perda da singularidade” dos animais de produção nos frigoríficos industriais. Sobre a crítica de que
esses estabelecimentos “desanimalizaram” os animais, devemos entender, no entanto, que o termo se
refere mais a um conceito. O animal, de fato, não é desanimalizado durante as interações no dia a dia
do frigorífico e nem os trabalhadores assim os percebem inteiramente. É indiscutível que essa
percepção conceitual do animal como objeto reflete no tratamento que recebe e na estrutura produtiva
montada. Ao serem contados às centenas e manipulados irrestritamente para aumentar a eficiência
produtiva da rede, não é possível prestar atenção na singularidade de cada um. O gado que chega ao
frigorífico é homogêneo: raça, tamanho, peso. A socióloga Rhoda Wilkie (2005) aborda essa
discussão em um artigo que problematiza o que chama de commodities sencientes. A autora afirma
que qualquer animal que desvia da rotina do processo de produção pode se distanciar do rebanho e se
tornar reconhecido individualmente. Esse animal teria mais significado para o trabalhador e se tonaria
mais que um animal.

Considerando a escala comercial desse processo produtivo, não sobra espaço e tempo para
que de maneira recorrente os animais se distanciem do rebanho. Mas não significa que em
determinados momentos alguns animais adquiram essa singularidade em razão do seu
comportamento. Em poucos minutos de conversas com os trabalhadores dos frigoríficos surgem
exemplos de animais que pularam o muro do corredor de quase dois metros de altura que os leva para
o abate, animais que se recusam a sair do caminhão, animais que balançam a cabeça para fugir da
pistolagem de insensibilização, animais que pulam da baia que deveria imobiliza-lo para receber a
pistolagem, e etc.

Ao realizarem essas considerações, identificamos que os funcionários os percebem como seres


dotados de personalidade, que se impõem e resistem de algum modo ao processo que culminará na
sua morte. Concretamente, portanto, a personalidade do animal não desaparece, embora a
“desumanização” contribua de fato para que haja um tratamento que pode ser considerado violento
ou cruel.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 81


E essa consideração sobre a capacidade de agência do animal se traduz na própria organização
técnica do frigorífico. Observamos por exemplo que os animais precisam se deslocar dos currais para
o galpão em que ocorre o abate. Esse caminho é realizado por um corredor. Para a realização desse
deslocamento, os animais são conduzidos a partir de pequenos choques que recebem dos funcionários
por meio de cumpridas barras. De acordo com o gerente de produção, os animais não sairiam do lugar
se não houvesse esse choque. Há então um dispositivo técnico utilizado para a vencer a resistência
empregada pelo animal em não seguir adiante ou mesmo em fazer o caminho de volta.

Outro modo de organização relevante sobre o que estamos discutindo diz respeito ao modo
como os animais são dispostos nos currais. Os bovinos que chegam ao frigorífico são dispostos entre
os oito currais que existem no local que visitei. A separação dos bovinos entre os currais tem como
objetivo a identificação do rebanho de cada criador. A separação por criadores é utilizada para garantir
o controle sobre a pesagem futura da carcaça e o somatório do valor a ser pago aos criadores. Os
animais são abatidos conforme a divisão de lotes dos diferentes fazendeiros e ainda são registrados
pela identificação das fazendas, para efeito de fiscalização das agências governamentais. No entanto,
a preocupação com a divisão e o espaço ocupado pelos bovinos é justificada também como uma
estratégia ligada ao bem estar do animal. A alocação do gado nos currais leva em conta a existência
de um espaço que deve ser considerado adequado para se locomoverem. Conforme as explicações do
gerente, os animais não podem ficar muito apertados, pois isso aumenta o risco de estresse e brigas.
E não se deve juntar animais de produtores diferentes porque esse compartilhamento do espaço
ocasiona ”brigas” entre eles. O convívio do gado entre rebanhos diferentes geraria conflitos, pois os
animais não reconheceriam seus líderes, e a situação já “estressante” seria acirrada.

Como pude observar durante a visita técnica que realizei no frigorífico, o comportamento dos
animais pelo corredor, até a entrada no box, é o que tornaria mais clara a sua capacidade de agência.
O corredor estava molhado e, portanto, escorregadio então os animais patinavam e caíam devido aos
seus gestos bruscos ao tentar voltar, fazer o caminho inverso. De fato, é difícil não projetar a ideia de
que os animais, conscientemente, lutam para sobreviver. Quando vi os animais agitados no corredor,
querendo fazer o retorno e não seguir o caminho à frente, num gesto de desespero e violência, a ideia
imediata foi a de que estavam vivendo a angústia de saber que a morte era uma situação iminente e
seus gestos significavam uma tentativa de evita-la.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 82


Além desses aspectos, outra questão a respeito dessa condição subjetiva dos animais de
produção e que pode ser discutida faz referência ao mal-estar dos próprios operadores em terem que
lidar com uma atividade produtiva que tira a vida dos animais. Embora seja gerida como uma etapa
produtiva, o abate não significa um simples processo mecânico. Ao contrário, diz respeito a questões
morais que envolvem a vida e a morte dos animais. Sobre essa discussão, Catherine Rémy (2009)
afirma que a observação in situ confirma que os matadores efetuam uma atividade problemática,
mesmo se tentam banaliza-la. Em conformidade com esse caráter problemático, o encarregado do
setor do abate, em entrevista, relatou que essa etapa da produção seria o pior momento do processo,
pois o animal estaria “vivinho” (Entrevista concedida em Açailândia, MA, em Julho de 2012).

Durante sua entrevista, o encarregado me relatou que prefere não ocupar o posto de
pistolagem. Embora tenha dito que saiba cumprir a função, a única coisa que não faz “é matar boi”.
Questionado por mim se já havia trabalhado com essa função, a resposta que tive foi a de que nunca
trabalhou. Só matou uma vez e ficou “foi assustado”. O encarregado considera que todo o processo
do abate é incômodo, mas ter que tirar a vida do animal “vivinho” seria a pior tarefa. Em razão disso,
falou-me do que compreendi como sua solidariedade com o pistoleiro:

A pistola está ruim, está vazando a pistola, eu casco logo um mecânico, casco
logo um jeito de arrumar porque eu sei que é ruim. Na faca é ruim. Sangrar o
boi é ruim, atordoado, ainda mais matar ele, ele vivinho, para acertar aquela
pistola de pressão nele. Quando ele sai ali eu sei que é ruim, já que é ruim
para ele que o boi já está quase morto, ainda matar o boi, insensibilizar ele,
sei lá se é ruim. Eu até botei uma escada para o pistoleiro, porque o espaço é
pequeno, às vezes o boi vira e fica quase imprensando ele na parede, aí fui e
dei um jeito de colocar uma escada, quando o boi levanta, ele sobe na escada,
aí não se preocupa mais. (Entrevista concedida em Açailândia, MA, em Julho
de 2012).

Essas situações explicitam a realidade do animal como uma matéria a ser trabalhada e ao
mesmo tempo como uma criatura inocente que “sacrificamos” (Remy, 2009). A conjugação dessas
duas perspectivas nos permite observar, então, a condição dos bovinos de “animal-máquina” (REMY,
2003) ou “zoomáquina” (SORDI e LEWGOY, 2012). E como forma de lidar com o que Catherine
Remy (2009) chamou de “injunção paradoxal”, os trabalhadores refutam a subjetivação positiva e

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 83


introduz a subjetivação negativa do animal. Nesse caso, o animal que resiste a morte se torna um
inimigo desafiador, suscitando comportamento violento. Em consideração a essa perspectiva, Remy
afirma que o animal, enquanto ser sensível e ativo, em razão de suas singularidades e de sua
capacidade de se surpreender, não pode ser dissolvido em uma cadeia de produção automatizada.

Nas últimas décadas, a ética e o direito animalista, fazendo uso e em conjunto com estudos
científicos das áreas biológicas, acentuam essa realidade viva ou subjetiva dos bovinos nos ambientes
de produção. A discussão sobre os estados emocionais dos animais gera um movimento que se coloca
na contracorrente do conceito do animal como objeto e da realidade que se busca vivenciar nesses
ambientes, em direção ao maior controle técnico. Desse modo, o sistema industrial de produção da
carne reifica os animais, mas agora precisa conjugar essa objetivação com uma subjetivação, que traz
o imperativo de dispensar a eles um “tratamento ético”. As emoções são trazidas institucionalmente
para o frigorífico, deixando de fazer parte apenas do senso comum e das interações cotidianas com
os agentes que trabalham com a produção da carne.

A dimensão subjetiva do animal, como ficou explícito nas entrevistas, já compõe o imaginário
dos funcionários. Em diferentes situações, tornou-se claro em suas falas um posicionamento ou
opinião que levava em conta a intencionalidade dos bovinos. A partir do discurso do abate
humanitário, observamos de forma mais recorrente por parte dos funcionários uma série de
observações comportamentais dos animais relacionada às emoções. Os funcionários se referem aos
animais enfocando condições como estresse, incômodo por estar em um lugar apertado ou
desconhecido, calma ou nervosismo, dor e sofrimento, relaxamento, cansaço e ferimentos, se estão
bem ou doentes etc. Diversas considerações são feitas a respeito das sensações de bem-estar e mal-
estar dos animais. Essa nova realidade, se assim podemos dizer, é incorporada em diferentes vias:
moral, técnica e institucional.

O sofrimento animal se torna um fator socialmente relevante e parte integrante dos cálculos
do valor econômico para a produção dos bens de origem animal. Os saberes em torno do abate
humanitário engendram novas técnicas que promovem impactos sobre a rede de produção da carne.
Os animais abatidos são agora animais que “sentem”, que têm “inteligência”, em suma, que são
“como os humanos”. Nesse sentido, são introduzidas técnicas, ferramentas e instalações que visam
evitar “estresse”, “agitação”, “sofrimento”, além de lesões físicas. Desde os anos 1960, são
estabelecidas novas formas de manejo para a criação, o transporte e o abate dos animais. Tais

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 84


mudanças se constituem numa nova tensão e fonte de medidas disciplinatórias: tratar bem animais
que irão morrer.

4 - Tecnologias da morte: a conciliação da subjetivacão e objetivação dos animais

Ao consideramos, primeiro, que animais sofrem e, segundo, as denúncias contra o “sofrimento


animal”, observamos que o ato de matar animais para comer passa por uma situação de crise que
promove mudanças no campo econômico. A legislação existente sobre bem-estar, no âmbito nacional
e internacional, demonstra que de fato está em curso uma perspectiva que aceita de forma legítima a
capacidade dos animais de sentir e que, por conseguinte, pressiona o mercado da carne a levar em
consideração essa nova realidade. Os agentes desse mercado são obrigados, portanto, a adotar novas
estratégias com o intuito de reordenar em termos morais e práticos sua forma de atuação. A respeito
dessa tensão que permeia o estatuto do animal como sujeito e objeto, simultaneamente, observamos
que a incorporação da perspectiva de que os animais são seres que sentem não promoveu a reversão
da condição desses animais, considerados a partir de sua condição como matéria-prima para a
produção de um bem alimentício.

No âmbito das normas de bem-estar não se fala em garantir o direito à vida dos animais, mas
em otimizar os rendimentos econômicos dessa indústria. Haveria, podemos dizer então, uma aparente
contradição, se considerarmos a lógica acerca do valor da vida expressa pelos defensores dos direitos
dos animais. Pois não sofrer consistiria também em não ser morto, já que a perda da vida seria
considerada fonte de sofrimento. Nesse caso, é preciso lidar então com o fato de que os animais
continuarão a ser abatidos para a produção de carne. Para lidar com essa aparente contradição, o
gerente de produção do frigorífico explora o que entende como uma existência diferente entre as
espécies animais que, como consequência, traz a cada delas uma forma de tratamento particular:

Eu, quando comecei aqui há nove anos atrás (sic), o dono era um português e
aí ele conversando comigo no dia da minha entrevista para começar a
trabalhar aqui, você é veterinário, tem que cuidar dos animais, você quer
matar os animais, como é isso, me explica isso, eu falei não, isso daí não é
animal de estimação, vivemos em um país capitalista, a gente mata os animais

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 85


para alimento (Visita técnica no frigorífico JBS em Açailândia, MA, em Julho
de 2012).

Os bovinos estão inseridos na rede de produção da carne como matéria-prima, logo privá-los
da morte é que seria contraditório dentro desse sistema econômico. Incorporar a subjetividade
atribuída aos animais na perspectiva mais radical, que justifica a igual consideração moral entre
humanos e não humanos, pode ser entendida como uma ação disparatada por parte desse mercado,
uma vez que não faria sentido à sua lógica de funcionamento. Podemos pensar que esse cenário
dificulta a elaboração de um discurso para o animal em si. Mas como então o princípio do bem-estar
adquire razoabilidade? Haveria espaço para a preocupação ética com o bem-estar dos animais na
cadeia produtiva da carne? Observamos que de fato esse princípio é reconhecido e levado a frente,
contudo, seu fundamento adquire outros contornos. A preocupação com o “sofrimento animal” não
adquire sentido a partir da sacralidade da vida, mas se torna pertinente com relação à eficiência
produtiva. Temos, então, uma argumentação plural, que oscila entre a subjetivação e objetivação do
animal.

A partir da discussão realizada até aqui, observamos que a disposição moral a respeito do
cuidado com a vida dos animais de produção no frigorífico raramente é refletida como um
componente importante. A regulamentação humanitária, como afirma Remy (2003), necessita de um
recurso a um discurso específico sobre o animal. E como vimos, ainda que a subjetividade seja
incorporada e, portanto, considerada uma dimensão válida, os agentes econômicos elaboram um
discurso relacionado à qualidade da carne. Evitar o “sofrimento”, a “dor”, o “desconforto” aparece
como uma exigência que atende aos bons padrões de produção da indústria. Desse modo, se, por um
lado, os defensores acionam as evidências científicas sobre a consciência dos animais para
fundamentar denúncias contra as situações de violência e morte a eles infligidas, por outro lado, a
maneira como o sofrimento é incorporado no âmbito das relações mercantis se dá por meio de um
deslocamento desse sentido.

O bem-estar animal surge como uma forma normativa que visa refundar o vínculo entre
humanos e animais para além da lógica industrial e do mercado e da relação entre operadores e
matéria-prima. Mas observamos que as questões afetivas e éticas têm menor centralidade do que a
preocupação econômica. Ou importam como critério que assegura a boa gestão do animal/máquina.
Aceitar os aspectos que garantam a boa vida dos animais significa garantir a qualidade de sua

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 86


transformação em mercadoria. Realizar o manejo de uma maneira que leve em conta as sensações
dos animais e estabelecer um ambiente “calmo”, “confortável” e “livre de estresse” é importante para
a eficácia do gerenciamento técnico.

As emoções, que são tratadas no campo do imponderável, do que seria o contrário da razão, e
o que não se pode controlar, são cientificamente definidas, tecnicamente controladas e geridas em um
sistema econômico de produção em massa. A comprovação científica sobre a capacidade de ter
emoções faz dessa realidade um imperativo técnico e não um imperativo moral. Portanto, através de
uma pressão externa e ética, a perspectiva do bem-estar é apropriada e ressignificada, tornando-se
uma diretriz gerencial interna, implicada com a lógica produtiva. Nesses termos, abate humanitário
significa cuidar bem do produto, ou seja, tratar os animais adequadamente é importante, pois se trata
de uma mercadoria valiosa.

Os animais de produção são sujeitos, mas também são objetos porque são matáveis (Agamben,
2007). O que significa dizer que possuem uma subjetividade, mas não são dotados integralmente da
condição moral de pessoa. Pois se fala de um tratamento humanitário, e os animais são merecedores
deles, mas, no final do processo, perderão a vida, o que seria uma violação do que compreendemos
como os direitos humanitários básicos e invioláveis.

Entendemos ainda que embora as relações entre humanos e animais no frigorífico são
vivenciadas também como uma relação entre sujeitos dotados de intenção e consciência reflexiva, a
produção da carne escapa do assassinato e o seu consumo, do canibalismo. Os animais são sujeitos
de um tipo inferior. Sofrem como os humanos, mas não são humanos. Humanos e bovinos são
semelhantes, mas também são diferentes. A preocupação moral com a vida dos animais é limitada,
pois são compreendidos como seres predestinados para se tornarem alimento. Essa perspectiva pode
ser observada na fala do gerente de produção, descrita acima, quando justifica porque, mesmo sendo
médico veterinário, trabalhava produzindo a morte de animais.

Observamos então que o discurso do abate humanitário se constitui como um mecanismo que
incorpora a crítica e faz dela o próprio meio para se livrar do mal moral em torno da crescente
sensibilização com os animais, imputado também sobre essa estrutura produtiva. Atribuir
humanidade aos animais poderia ser compreendido como uma ação que tornaria ainda mais
inconcebível o que se tenta autorizar. Mas é justamente pela radicalização da sensibilidade que esse
mercado colocará fim ao problema moral de matar animais: pois o abate humanitário garante uma

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 87


morte digna. A morte e o tratamento que a antecede seguem as orientações em torno dos cuidados
paliativos que conduzem à “boa morte”. Portanto, a discussão sobre abate humanitário torna
conciliável o que poderia parecer-nos inconciliável, ao fazer uso de práticas que tornariam ético o
processo de morrer nos frigoríficos.

A antropóloga Rachel Aisengart Menezes (2003) discute a morte na contemporaneidade que,


em contraste a uma situação em que moribundos eram abandonados para morrer, passa a ser
conduzida por profissionais de saúde em direção à “boa morte”. Esse processo de morrer consiste em
assistir o paciente terminal “até os seus últimos momentos, buscando minimizar tanto quanto possível
sua dor e desconforto” (2003, p. 132). Esse modelo, ainda segundo a antropóloga, compreende a
categoria “dignidade no morrer”. Os animais de produção não são moribundos e nem pacientes
terminais, mas sua morte é igualmente irreversível. E, levando em conta sua subjetividade, torna-se
ético conferir-lhes o direito de morrer dignamente. Assim, seria colocado fim, ou ao menos diminuiria
o problema de ter que matar o animal para a produção de alimento. Portanto, ainda que o abate
humanitário se justifique em termos técnicos, é possível comparar seus procedimentos com a lógica
que a morte adquire na contemporaneidade, a fim de compreendermos de que modo a indústria da
carne busca legitimidade. As técnicas de abate humanitário e bem estar animal nos permitem observar
uma ética cuidadosa no tratamento dos animais que serão transformados em comida.

Essa preocupação ética é um tema discutido pelos antropólogos que estudam as relações entre
humanos e não humanos no pensamento e prática indígenas. Para discutir sobre o problema moral e
ontológico da caça, Carlos Fausto (2002) trata dos caçadores da floresta boreal americana. De acordo
com Carlos Fusto, para essas sociedades, “animais, vegetais, deuses e monstros podem também ser
“pessoas” e ocupar a posição de sujeito na relação com os seres humanos” (2002, p. 9) . Desse modo,
os caçadores apresentam uma “uma etiqueta rigorosa que determina os modos de matar, consumir e
falar sobre os animais” (p. 9). De acordo com o antropólogo, essa ética responde ao problema moral
da predação e possui uma ênfase ideológica na regeneração da caça. Portanto, o abate dos animais é
feito mediante:

Uma ética cuidadosa no tratamento das presas: morte rápida e limpa, corte e preparação
apropriados, oferendas, deposição adequada dos ossos, consumo completo da carne. É
preciso respeitar os animais sob pena de dificultar o processo de sua regeneração, de perder

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 88


a comunicação onírica com eles, levando-os assim a desaparecer do território de caça.
(FAUSTO, 2002, p. 10)

Comparativamente às técnicas de abate entre sociedades ameríndias, observamos, a partir da


regulamentação humanitária, que os animais, igualmente, não são considerados meros artefatos. Na
medida em que sua subjetividade é aceita e respeitada, os frigoríficos deixam de ser lugares de pessoas
cruéis e a morte dos animais não é mais tratada de forma banal. Na medida em que as condições
físicas e emocionais dos animais são levadas a sério, considera-se que, mesmo diante da morte
inevitável, eles são tratados dignamente, sem sofrimento desnecessário.

Considerações finais

O abate humanitário propõe, então, uma conciliação entre o animal-objeto dos modernos, e o
animal-sujeito dos defensores, mas produzindo uma nova tensão: sujeitos matáveis. Os homens
devem ser radicalmente opostos ao animal, pois reside aí a justificativa sobre sua distinção moral.
Essa oposição é constituída por ausências, o animal se caracteriza por aquilo que não tem, em
comparação com os humanos. Entretanto, se tomarmos a normatização humanitária como uma
estratégia para lidar com o mal-estar de comer carne, que pode ser assim pensado tanto do ponto de
vista de antropólogos, como Claude Lévi-Strauss (2009) e Stephen Hugh-Jones (1996) ou da crítica
dos próprios defensores, observamos que o controle sobre os animais de produção se justifica através
da confirmação de uma semelhança ou presença.

O discurso do bem-estar reconhece a subjetividade dos animais e enfatiza a necessidade de


garantirmos a eles boas condições de vida e de morte, mas autoriza a matá-los legitimamente. O que
seria uma contradição da modernidade, misturar esses dois domínios ontológicos, os frigoríficos o
fazem por excelência e como condição para a sua existência. Embaralhando sujeito e objeto, simetria
e assimetria, o sistema industrial de produção da carne acentua a fluidez da linha demarcatória entre
humano e animal, mas faz dessa fluidez um atenuador de sua prática.

Humanos e não humanos podem partilhar uma condição comum de pessoa. A determinação
ontológica dos seres e as consequências políticas que dela se originam extrapolam a abstração
conceitual em torno de uma organização do mundo que opera a partir de categorias binárias. Os
defensores confrontam essa dualidade ao afirmar que animais também têm direito à vida, mas, de

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 89


outra perspectiva, reafirmam essa mesma dualidade, pois transportam os animais para o lado da
fronteira do humano, pessoa e sujeito de direito para reivindicar seu pertencimento a comunidade
moral.

Dessa distorção, discutida pela antropologia e que não teria sido provocada primeiramente ou
exclusivamente pelos defensores, estes têm ao seu dispor uma abertura para fazer valer sua forma de
compreensão do mundo, no que se refere à simetria do valor moral da vida entre humanos e animais.
Assim observamos, na modernidade, que os animais compartilham cada vez mais do mundo dos
humanos como humanos.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer. O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2007.

ANZALONE, Guilhem. La viande comme merchandise (enquête) », Terrains & travaux 2/2005 (n°
9), p. 125-142.

BONNAUD, Laure e COPPALE.Qui contrôle ce que nous mangeons ? La sécurité sanitaire des
aliments. Paris : Ellipses, La France de demain, 2011.

DIAS, Juliana Vergueiro Gomes. O rigor da morte: a construção simbólica do animal de açougue na
produção industrial brasileira. Dissertação de Mestrado: PPGAS, IFCH, UNICAMP: 2009.

ESQUERRE, Arnaud e TRUC, Gerôme. Les morts, leurs lieux liens. Raisons politiques 1/2011 (n°
41), p. 5-11.

FAUSTO, Carlos. Banquete de gente: comensalidade e canibalismo na Amazônia. MANA 8(2):7-44,


2002

GASCAR, Pierre. Les bouchers. Editions Neuf, França :1973.

HUGH-JONES, Stephen. Bonnes-raisons ou mauvaise conscience? De l’ambivalence de certains


Amazoniens envers la consommation de viande. Terrain [En ligne], 26 | 1996

LEVI-STRAUSS, Claude. A lição de sabedoria das vaca loucas. In: Estudos Avançados 23 (67),
2009.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 90


LEWGOY, Bernardo e SORDI, Caetano. Devorando a carcaça: contracozinhas e dietas alternativas
na alimentação animal. Anuário Antropológico/2011-II, 2012: 159-175.

MENEZES, Rachel Aisengart. Tecnologia e “morte natural”: o morrer na contemporaneidade.


PHYSIS: Rev. Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 13(2):129-147, 2003.

PORCHER, Jocelyne. Eleveurs et animaux : réinventer le lien. Presses Universitaires de France,


2002.

______. Vivre avec les animaux: une utopie pour le XXI siècle. Paris: Éditions la découverte, 2011.

RÉMY, Catherine. Une denrée trouble : la viande dans l'abattoir: Jeux interactionnels autour d'un
“objet” instable (observation), Terrains & travaux, 2005/2 n° 9, p. 192-210.

______. Une mise à mort industrielle “humaine”? L’abattoir ou l’impossible objectivation des
animaux. In : Politix. Vol. 16, n64. Quatrième trimestre 2003. pp. 51-73

______.La fin des bêtes. Paris: Economica, 200

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 91


“Ofensa de cobra”: corpos, venenos e mundos em conflito

Luzimar Paulo Pereira62

Resumo: Nesse paper, apresento os temas do temor às serpentes e do poder de seus venenos, tendo como foco
os modos pelos quais são descritas e vividas as relações entre homens e animais na zona rural de Urucuia, MG.
Os chamados “causos de cobra” ocupam lugar de destaque no cotidiano dos urucuianos e emergem em
situações sociais diversas para tratarem de encontros entre homens e serpentes, sempre pontuados por algum
evento dramático: uma mordida efetivamente ocorrida, seu risco eminente de ocorrer, as sequelas físicas e
morais decorrentes ou a morte de um ou ambos os personagens (ser humano e animal). Evocando saberes
específicos sobre serpentes, seus comportamentos e morfologias, além das ameaças que representam aos seres
humanos e suas criações, os relatos apresentam os animais enquanto espécies companheiras, seres que possuem
existências conectadas e mutuamente constitutivas com os seres humanos. Os “causos” amplificam a ideia de
que as interações entre pessoas e cobras seriam responsáveis pelas constituições mútuas dos seres, das formas
de socialidade e dos espaços rurais. A própria existência do relato é um efeito da relação interespecífica. Nos
“causos de cobra”, o corpo (humano ou animal) ganha bastante destaque. Ele nunca emerge como possuidor
de uma essência imutável, mas como resultado de “descobertas” narrativas que decifram sinais de inúmeros
contatos entre seres e coisas que habitam um mesmo ambiente.

Palavras-chaves: narrativas; animais humanos e não-humanos; acidentes ofídicos.

Nesse paper, apresento os temas do temor às serpentes e do poder de seus venenos, tendo
como foco os modos pelos quais são descritas e vividas as relações entre homens e animais na zona
rural de Urucuia, MG63. Em particular, trabalho com relatos de acidentes ofídicos e os modos pelos
quais eles são apresentados pelos seus habitantes. Os chamados “causos de cobra” ocupam lugar de

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 92


destaque no cotidiano dos urucuianos. Os relatos emergem em situações sociais diversas e tratam de
encontros entre homens e serpentes, sempre pontuados por algum evento dramático: uma mordida
efetivamente ocorrida, seu risco eminente de ocorrer, as sequelas físicas e morais decorrentes ou a
morte de um ou ambos os personagens (ser humano e animal). Evocando saberes específicos sobre
as cobras, seus comportamentos e morfologias, além das ameaças que representam aos seres humanos
e suas criações, eles não são apenas expressões de um idioma operacionalizado para “representar”
relações sociais, valores e visões de mundo (Mundkur, 1978; Drummond, 1981; entre outros)64. Nos
relatos de acidente ofídico, as serpentes não aparecem como meras portadoras passivas de projeções
simbólicas, mas enquanto espécies companheiras, seres que possuem existências conectadas e
mutuamente constitutivas com os seres humanos (Haraway, 2008). Os “causos” amplificam a ideia
de que as interações entre pessoas e animais seriam responsáveis pelas constituições mútuas dos seres,
das formas de socialidade e dos espaços rurais. A própria existência do relato é um efeito direto da
relação interespecífica65.

Nos “causos de cobra”, o corpo (humano ou animal) ganha destaque. As narrativas seguem
as pistas dadas pelos rastros deixados pela ação das cobras e seus venenos nas peles, no sangue, nos
membros e nos órgãos internos de suas vítimas. Além disso, tratam da constituição física das próprias
serpentes, da produção de seus venenos e dos modos pelos quais eles podem ser alojados nos mesmos
animais e injetados em outros seres. Nem mesmo as interações entre seres e ambiente são deixadas
de lado. Os relatos de encontros e acidentes ofídicos implicam descrições sobre a maneira como as
cobras e as pessoas circulam por matas, trilhas, pastos, terreiros e mesmo no interior das casas.
Sentidos como os da visão, os do tato, os da audição, os do olfato e do paladar, além de outros que
parecem transcender os cinco sentidos conhecidos, são evocados. Nas histórias, os corpos nunca
emergem como possuidores de uma essência imutável, mas como resultados de “descobertas”

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 93


narrativas que decifram sinais de inúmeros contatos entre seres e coisas que habitam um mesmo
ambiente.

Bruno Latour (2007) argumenta que a concepção de um “corpo que fala” nos obriga a pensá-
lo como uma interface que se torna mais e mais descritível na medida em que aprendemos a ser
afetados por mais e mais elementos. Diz o autor:

O corpo é, portanto, não a morada provisória de algo de superior - uma alma imortal, o
universal, o pensamento - mas aquilo que deixa uma trajectória dinâmica através da qual
aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. É esta a grande virtude
da nossa definição: não faz sentido definir o corpo directamente, só faz sentido sensibilizá-lo
para o que são estes outros elementos. Concentrando-nos no corpo, somos imediatamente - ou
antes, mediatamente - conduzidos àquilo de que o corpo se tomou consciente (2007: 39).

Nos relatos sobre serpentes, em Urucuia, o corpo não é apenas a morada do espírito, mas é o
canal por meio do qual as pessoas se realizam num mundo que pode ser perigoso, impregnado por
diversos venenos. Obviamente, como católicos e cristãos, em sua maioria, os habitantes das zonas
rurais urucuianas elaboram inúmeras reflexões a respeito das dimensões espirituais de sua existência.
A “alma” e seus destinos são temas recorrentes nas conversas. Sabe-se – e defende-se – que o espírito
dos mortos podem vagar pelo mundo, quando não seguem em direção ao “céu” (ou “inferno”) ao
encontro de deus (ou da danação eterna). No entanto, a alma, aqui, não é oposta ao corpo. O espírito
é contraposto à “carne”. O corpo é aquilo que existe quando alma e carne coabitam-se mutuamente
num mundo igualmente habitado por outros corpos. Em Urucuia, o corpo é verbo, ou melhor dizendo,
o testemunho do verbo. A plenitude da existência é experienciada nele, em suas dimensões sagradas
ou mundanas. Expressão mesma da vida, a festa religiosa se faz com reza e comida em abundância,
em momentos de contrição e danças, em contato com santos e com outras pessoas (Pereira, 2011). A
morte, por sua vez, é o desmembramento do corpo que dá lugar à alma desencarnada e a carne
degradada. Nos relatos sobre acidentes ofídicos, o que se observa é esse mesmo corpo em risco de
eminente dissolução, enquanto coisa ao mesmo tempo física, moral e espiritual.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 94


O drama

Miguel, filho de Seu Manoel, meu principal informante e anfitrião durante todo período da
pesquisa de campo em Urucuia/MG, foi picado por uma cobra jararaca quando ainda era menino.
Num fim de tarde, por volta de 1975, trabalhava mais seu pai numa roça de mandioca. Miguel calçava
apenas um par de “chinelas” quando bateu a enxada num tufo de mato. Imediatamente, sentiu a
pontada (“bem no dedão do pé”) da mordida da serpente que estava escondida embaixo das folhas
grossas de uma macambira (Bromelia laciniosa). Num primeiro momento, Miguel nem sabia o que
o havia atingido (pensou ser espinho), até enxergar o rabo da cobra sumindo entre os ramos
espalhados pelo chão. Avisado pelo filho, Manoel procurou, avistou, identificou e matou a serpente
com uma foice. A “ofensa”, “por sorte”, foi “pouca”; apenas uma presa da jararaca acertou o dedão
do pé direito de Miguel. Além disso, ao que parece, a picada não foi tão profunda, impedindo que o
animal inoculasse grande quantidade de veneno no corpo de sua vítima. A dor da mordida, no entanto,
não deixou de ser intensa, e aumentava rapidamente. Um edema, que logo ganharia proporções ainda
maiores, apareceu. “Um roxão, assim, que depois pegou a perna inteira”, comentava Miguel.

O menino foi deixado em casa, aos cuidados da mãe e de parentes próximos, enquanto seu pai
seguiu em direção à Fazenda Gameleira para arranjar soro antiofídico junto ao velho Cavalcanti,
grande criador de gado da região. Na Urucuia de então, à época apenas uma localidade longínqua do
município de São Francisco, distante quase cem quilômetros da sede, apenas o fazendeiro possuía o
antídoto adequado nas proximidades. No entanto, o velho Cavalcanti recusou-se a ceder o soro,
mesmo diante dos pedidos de Manoel. “Ele não queria dar. Só vender”, dizia o pai, “E meu dinheiro
era pouco”. Manoel seguiu, então, em busca de um “rezador de cobra”, especialista local no
tratamento contra picadas de serpentes. A personagem, como todo urucuiano sabe, nunca pede
dinheiro pelos seus serviços. Solicitado, iniciou prontamente os trabalhos. O tratamento receitado
consistia na realização de preces dedicadas a diversos santos, principalmente São Bento, e na
administração de remédios específicos, com destaque para uma bebida feita da mistura de querosene
e cachaça. Ao longo das semanas, a perna de Miguel “inchou”, “roxeou”; ele sangrava pelas gengivas
e pela urina. A dor parecia insuportável. Durante o tratamento, seus pais e demais familiares temeram
por sua vida. No entanto, o corpo do menino de 13 anos reagiu bem. “Passado mais de mês” depois
da picada, ele estava totalmente curado. “Graças a Deus”, concluem pai e filho.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 95


Em Urucuia, os relatos daquilo que profissionais da medicina, zoólogos e herpetólogos
denominam “acidentes ofídicos” – ou seja, ataques de serpentes peçonhentas a seres humanos –
conferem ao eventos caráter dramático. Dramático não apenas porque os “causos” fazem referência
a acontecimentos que irrompem sem aviso prévio, chacoalhando o cotidiano das pessoas para colocar
suas vidas em risco. O drama, para usar a terminologia de Victor Turner (1957), também é uma
espécie de evento liminar que põe em evidência alguns dos principais traços constitutivos dos
coletivos humanos, de outra forma “escondidos” ao longo do seu dia a dia. O enquadramento proposto
pelo drama orienta movimentos em prol da resolução de conflitos ou desemboca em verdadeiras
irrupções. O acidente de Miguel – dentre outros - foi dramático porque, além de perigoso, mobilizou
santos, pessoas, coletividades inteiras em torno de um acontecimento extraordinário. Familiares e
parentes vieram socorrer; um fazendeiro de renome foi procurado; santos e seus intermediários
terrenos foram acionados. Durante seus momentos mais liminares, auxílios mútuos, preocupações,
vigílias, remédios, serviços mágicos e religiosos, entre outras coisas, circulavam em decorrência de
um encontro não planejado com uma cobra. Mais do que mero acidente de ordem fisiológica ou
biológica, a picada adquiriu status de autêntico fato social total (Mauss, 2003).

A reunião inesperada de pessoas e santos em torno dos acidentes ofídicos não resulta apenas
na pronta mobilização de coletivos humanos em prol do benefício das vítimas. O caso de Miguel
também revelava conflitos, tensões e limites nas redes de apoio que unem pessoas e famílias no meio
rural urucuiano. Não era segredo para ninguém que o velho fazendeiro Cavalcanti possuía soro
antiofídico em sua propriedade. Também não deveria ser do desconhecimento de seu Manoel que o
dono da terra deixava o remédio prioritariamente à disposição daqueles que viviam e trabalhavam em
sua fazenda. A grande propriedade urucuiana opera, então, como uma verdadeira entidade moral,
mantendo o seu dono em relação de obrigação e cuidado para com aqueles que vivem sob sua tutela.
Manoel, que era sitiante autônomo e dono da sua própria terra, não era parte direta do círculo de
prestações e contra-prestações da Gameleira, nem parecia ter nenhuma relação especial com seu dono.
Por outro lado, no entanto, ele morava próximo de Cavalcanti. No entrecruzar de duas posições
sociais distintas, seu pedido de “ajuda” pode ser compreendido a partir das regras de obrigações que
vizinhos devem ter uns para com os outros em momentos de necessidade. No entanto, entende-se
também a recusa. Fora dos limites da fazenda, Cavalcanti só cederia o soro por dinheiro porque
Manoel não estava no rol de pessoas com as quais devia algum tipo de obrigação moral.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 96


Sem o soro de Cavalcanti, um rezador de cobra foi acionado para auxiliar o menino ofendido.
Em Urucuia, o especialista é alguém que detém um saber “antigo” a respeito do trato com serpentes
peçonhentas e dos efeitos de suas picadas na vida das pessoas e criações. O conhecimento do rezador
articula um conjunto de técnicas de manuseio de substâncias e um repertório de rezas por meio das
quais aciona entidades sagradas em seu auxílio. Dizia um rezador do município de Chapada Gaúcha:

Isso vem de antes, de tradição e de fé desses povo mais antigo (...) Tem gente que aprende
aquilo e fica tipo uma bestagem, aquilo não serve... Aquilo é usado nas hora de grande
precisão, quando a pessoa procura, né? Mas aquilo tem as palavra, tem as palavra que fala
naquilo. E as pessoa tem um santo. O santo que comanda as cobra, na época de Cristo, é São
Bento. Cê tem que chamar primeiro Deus e Virgem Maria, fala o nome de São Bento e de
Deus e da Virgem Maria pra curar os males (Ze Erotides, Chapada Gaúcha, MG)

O saber lidar com cobras venenosas é um patrimônio do rezador. Sua transmissão, no entanto,
não pode ser levada adiante sem uma contrapartida inegociável. Quando perguntei a Zé Erotides o
“sentido” da sua prática, ou seja, quando quis saber como fazia as coisas que todo rezador deve fazer,
ele me respondeu com outra questão: “cê quer saber mesmo?”. Ele me dizia então que há obrigações
que sustentam sua atividade. Ao modo de outras especialidades mágico-religiosas observadas em
Urucuia, a aquisição de conhecimentos e poderes no trato com cobras implica dívida de compromisso
para com toda a coletividade. O saber do rezador foi ensinado pelo próprio São Bento. Na medida em
que não é seu único dono, o especialista também não pode usá-lo para enriquecer ou obter vantagens
pessoais. O que ele pode ganhar são pequenos “agrados”. Sem pedir dinheiro pelos seus serviços, o
rezador, “no máximo”, me dizia Zé Erotides, “recebe uma galinha ou uma vela pra gente queimar pro
santo”. Num sentido inverso, portanto, trata-se também de uma obrigação para com as personagens
sagradas. “Ajudar” aos outros é uma maneira de servir como intermediários dos santos e, dessa
maneira, atualizar sua presença no mundo dos homens.

O drama pelo qual passou Miguel e sua família não se assentava, portanto, num dilema que
opunha o uso de saberes médicos e o recurso às rezas mágico-religiosas66. A questão que mobiliza a

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 97


narrativa é outra, opondo o fazendeiro ao rezador segundo suas atitudes diante da necessidade de
“ajudar” os outros. O drama destaca as formas pelas quais são estabelecidos compromissos mútuos
entre os homens ao mesmo tempo em que revela conflitos e tensões. De um ponto de vista
sociológico, o caso parece colocar em relevo o velho dilema maussiano da troca de dádivas, entre
dom e dinheiro, aliança e guerra, compromisso coletivo e interesse pessoal. Do ponto de vista
cosmológico, a “sorte” de Miguel – pela “graça de deus” – opõe-se ao fim trágico de outras vítimas
das serpentes, que são mortas ou aleijadas. Uma picada de cobra também evoca o merecimento de
dons divinos.

Ofensa de cobra

Não deve passar desapercebido, no entanto, que o drama vivido por Miguel e sua família foi
resultado da ação de uma serpente. As circulações dos dons e contradons, nas formas de remédios,
rezas, cuidados e preocupações, além da própria recusa do velho Cavalcanti em ajudar, foram efeitos
sentidos na ordem humana da agência de um animal. Nada teria ocorrido sem a participação decisiva
da jararaca. No relatos, a ação da cobra não está destituída de sentidos morais, mágicos e religiosos,
da mesma ordem que poderíamos observar nos comportamentos exclusivamente humanos de Manoel,
do fazendeiro e do rezador. As serpentes, antes de tudo, são “bichos maus” que “ofendem” as suas
vítimas.

A noção de “ofensa” evoca algum tipo de dano físico ou moral sofrido por pessoa ou coisa.
Conceito eminentemente relacional, implica a transmutação de seres em “ofendidos” - aquele ou
aquilo que sofre com a ação – e “ofensores”. No caso dos ataques de serpentes peçonhentas, as
“ofensas” podem ser medidas em intensidade através da conjugação de dados referentes às cobras
que realizaram o ataque, à atuação dos “venenos” nos corpos e dos seus efeitos na vida de suas
vítimas. Assim, elas podem ser “pouca” ou “muita coisa”. O ataque a Miguel, por exemplo, teve um
desfecho feliz, já que a jararaca – animal de “menos peçonha”- injetou pequena quantidade de toxinas
em seu sangue e não ocasionou nenhum tipo de sequela. O que, por outro lado, não poderia ser dito
em relação à cobra, que foi trucidada pela ação de uma enxada. No entanto, há pessoas que não podem
narrar seus encontros com serpentes da mesma maneira. A “sorte” não é para todos. Quando não vêm
a falecer depois de um ataque, as vítimas podem carregar as marcas dos encontros por toda a vida.
Nos primeiros meses do meu trabalho de campo, quando percebi a presença de homens que

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 98


apresentavam problemas de locomoção, pensei estar diante de uma localidade que não foi
devidamente atendida pelas campanhas nacionais de controle da poliomielite. Mais tarde, soube que
boa parte dos “coxos” não era vítima de alguma doença, mas de serpentes venenosas, principalmente
cascavéis.

A ação dos venenos tem início quando é injetado na corrente sanguínea por meio do “bote”
proferido pelo animal. Rápidos e precisos, os ataques implicam movimentos extremamente
coordenados: a cobra se lança em direção à vítima, abre a boca e projeta suas presas que perfuram a
pele para introduzir as toxinas. Os procedimentos realizados logo após a “ofensa” – os usos de
“torniquetes” para evitar que a peçonha se espalhe pelo corpo e de técnicas de sucção com a boca -
evocam a ideia de que a mistura de sangue e veneno é uma composição espúria. Os “remédios”
acionados após as picadas também parecem indicar a mesma noção. Manipulados com o intuito de
estancar a ação do veneno e retirá-lo do corpo da vítima, a cachaça e o querosene – da mesma maneira
que o soro antiofídico - evocam substâncias que atuam para dissolver as toxinas que devem sair
lentamente nas excreções (na urina). O fígado da serpente assassina, ao ser utilizado, pretende replicar
o papel que desempenha em seu próprio organismo - dentro do corpo da cobra, é esse o órgão
responsável por separar o veneno do seu sangue.

A circulação sanguínea, em princípio, mantém a vida dos seres humanos e animais. Os


alimentos, ao serem ingeridos, por exemplo, entram em contato com o sangue de modo a
estabelecerem composições com os corpos que garantem potência, saúde e desenvolvimento. Ao
circular misturado ao sangue, no entanto, a toxina inverte sua função vital. Ao se compor com os
venenos, o fluido se decompõe dentro das veias, decompondo, por sua vez, o próprio corpo em sua
integralidade. O “roxo” que se espalha a partir do local da picada é o índice de que o sangue não
circula mais, causando a morte dos tecidos imediatamente atingidos. Espalhando-se envenenado pelas
veias, contamina os sistemas nervoso e respiratório, causando dores, ataques cardíacos, paradas
respiratórias etc.. Há sangramentos pelas gengivas e urina. Os efeitos nocivos dos venenos implicam
a falência total dos órgãos ou a perda da visão ou de um ou mais membros do corpo. No limite,
causam a morte, que pode ser entendida como a fragmentação total do corpo, inclusive separando a

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 99


alma da carne 67 . Compondo-se com o sangue, o veneno, nos termos de Spinoza, desintegra,
desmembra e degrada68.

Não se trata, em absoluto, apenas de falência fisiológica. Além de atuar na carne, a peçonha
também pode ter efeitos na alma. Incapacitadas, algumas vítimas ficam impossibilitadas de trabalhar
e precisam viver da “ajuda” de outras pessoas. Casos isolados, que se conhece de “ouvi dizer”, mais
do que testemunhados, evocam até vidas na mendicância. Um morador de Chapada Gaúcha,
município vizinho a Urucuia, relatava o caso de um cunhado, picado na mão por uma cascavel.
Motorista, ele “virou aleijado” e a maior preocupação era saber como ele poderia trabalhar:

É difícil salva, quando não morre, fica aleijado. É difícil. Tem um cunhado que ela mordeu,
faz dois mês. Virou aleijado, perdeu a mão. Ficou em Brasília, internado, mais de mês, mexeu
e virou, endureceu a mão. A mão direita. Ele é motorista. Ainda tá inflamado ainda, aquelas
pereba. Foi a cascavel. Ele lascou a mão, partiu. (Jonas, Chapada Gaúcha, MG).

A cura, por essa razão, também pode evocar poderes morais e divinos. A reza para São Bento
– realizada sobre o ferimento por meio de palavras incompreensíveis e sinais da cruz – promete anular
o efeito do veneno que, então, deve sair do corpo da vítima sem afetá-lo. Os poderes morais e divinos
muitas vezes também parecem estar relacionados à personagens que parecem protegidos ou imunes
aos ataques de cobra. Nas antigas feiras do sertão, haviam homens que carregavam cobras
peçonhentas, as quais deixavam picá-los na frente das pessoas, apenas para mostrar o quão imunes
eram aos seus venenos.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 100


Veneno de cobra

Os moradores de Urucuia costumam dizer que as serpentes mais temidas na região são três: a
jararaca (Bothrops jararaca), a cascavel (Crotalus durissus) e a quatro presas 69 . A primeira, de
“menos peçonha”, é citada porque é aquela que causa mais acidentes ofídicos, embora raramente
deixem sequelas ou façam vítimas fatais. As duas outras são lembradas porque seriam capazes de
ofender com maior gravidade. No que se refere aos ataques aos seres humanos e criações, as “ofensas”
da jararaca se destacam pela quantidade; as da cascavel e da quatro presas, pela intensidade70. Numa
tarde, diante do forno de torrar farinha, seu João, agricultor aposentado e renomado farinheiro,
contava “causo”, desse do “povo antigo”, que ilustrava a vantagem da quatro presas em relação à
cascavel, as duas cobras peçonhentas mais poderosas que se conhece:

Um dia, a quatro presa perguntou para cascavel: ‘uai, por que você morde e enrola depois?’.
E a cascavel pergunta pra quatro-presa: ‘e você que morde e corre?’ A quatro-presa responde:
‘mas eu sou diferente: eu corro é pra modi de não cair em cima de mim’ (risos) (João, Urucuia,
MG).

A suposta “covardia” da quatro presas (que morde e foge) é contraposta, por meio de um
desafio, à natureza “valente” da cascavel (que pica e se enrola para enfrentar sua vítima mais uma
vez). No entanto, e aí reside a graça da narrativa, o aparente medo demonstrado pela primeira é na
verdade a consciência do poder de seu próprio veneno. Enquanto a cascavel espera para enfrentar
novamente seu contendor ferido, demonstrando assim sua coragem, a quatro presas foge
inteligentemente, com receio de ser esmagada pela vítima que cai já desfalecida. No relato, as
serpentes não estão simplesmente desempenhando atributos instintivos. As singularidades dos seus
comportamentos atualizam moralidades específicas. A bravura quente da cascavel se opõe ao veneno
extremamente eficiente da fria quatro presas.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 101


Não há, obviamente, consenso em torno da ideia da superioridade da peçonha da quatro presas
em relação à da cascavel. Na mesma conversa, Satu, compadre de João, apresentava sua discordância.
“Menos pegadeira”, ou seja, menos propensa a dar botes mesmo quando ameaçada, a cascavel
também é muito letal. Dizia ele: “Cascavel não é pegadeira, mas também é difícil pegar e escapar.
Ela fica na paciência... Mas se ela pega também, precisa de muito remédio para poder salvar...”
(Saturnino, Urucuia, MG)

O causo contato por João destacava a ação rápida e mortal do veneno da quatro presas. A
resposta de Satu enfatizava os efeitos lentos, mas irreparáveis da mordida da cascavel. No limite, sua
picada, quando não mata, aleija. No relato de Satu, a natureza “valente” e mortal da cascavel também
não exclui a ideia de que a cobra também é “menos pegadeira”. Na verdade, o que ele quis dizer é
que a serpente, ao contrário de todas as outras, não teria o hábito de atacar as pessoas o tempo todo,
mas quando ameaçada demonstra excessiva agressividade. “Mansa”, a cobra pode se tornar bastante
violenta. Zé Erotides, rezador do município de Chapada Gaúcha, vizinho a Urucuia, me explicava
certa vez: Com a cascavel, você só precisa ter o cuidado para não “pisar em cima” dela. Dizia:

Ela [a cascavel] é mansa, só se pisá nela. Pisa em riba... Ela não é uma cobra muito atentada,
não. Pisô, ela bate, morde, daí é difícil salvar. Mas até ela pegar, cê tem que... Ela é besta, mas
um veneno mata, ela mata. Agora, se um cachorro tiver acuando... sempre ela mata mais
cachorro, né? Ela não erra o bote igual a jararaca. Mas ela não é muito valente, não! Ela é
valente se você pegá e pisá nela, roçando o mato, pegá a enfeza dela, aí ela avoa mesmo (José
Erotides, Chapada Gaúcha, MG).

Na fala de Zé Erotides, ao contrário das jararacas, as cascavéis realizam botes certeiros e


mortais. No entanto, só atacam quando se sentem seriamente ameaçadas (em Urucuia, diz-se, a única
cobra que morde mesmo estando fora de perigo é a surucucu, extremamente “valente”, porque
“valente” o tempo todo). Um detalhe da constituição física das cascavéis parece servir de índice para
seu comportamento ambivalente. Os guizos que têm na ponta da cauda, resultado de inúmeras trocas
de pele, ao serem vibrados, servem de aviso. Na relação que as serpentes estabelecem com homens e
outros animais, o ruído age de modo a evitar confrontos. As cascavéis, como nenhuma outra cobra,
comunicam quais são suas intenções diante de uma vítima em potencial. Me dizia Jonas, agricultor
da Chapada Gaúcha:

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 102


Porque o cascavel, ele já tem um sirenizinha pra tocar, né? (...) Porque o cascavel, ele é uma
cobra muito braba, que na hora que cê chega perto, ele primeiro dá um aviso, toca o chocalho,
e dá um aviso. Agora, que o cê não percebeu, ocê encostou, ai, agora, ele já avisou, ai agora é
só pegá a gente. É a cobra mais braba que existe... Lá pro lado de Goiás tem o urutu cruzeiro,
esse é brabo, porque gosta de pousá em cima de pau, né? Só pega na cabeça. Já pega pra não
escapar (Jonas, Chapada Gaúcha, MG)

A comparação com a urutu cruzeiro acentua a natureza singular da cascavel. Enquanto esta
não faz segredo da sua presença, a serpente que se encontra “lá pro lado de Goiás” age na surdina. A
valentia honrada da cascavel contrapõe-se à natureza ardilosa da urutu cruzeiro. A primeira, mesmo
evitando, não foge ao confronto, enquanto a segunda, à “traição”, “pega para [a vítima] não escapar”.
Não deve ser por outra razão que alguns violeiros da região norte de Minas Gerais gostam de colocar
guizos de cascavel no interior de seus instrumentos musicais para se protegerem de feitiços lançados
por tocadores mal-intencionados (Pereira, 2011). O amuleto, ao condensar as qualidades da serpente,
é ao mesmo tempo um aviso e uma arma de defesa contra o ataque de forças malignas: se um
malefício vier, ele não só será ineficaz como voltará para quem o enviou71.

A “valentia” da cascavel também é a fraqueza da serpente. Num dia, acompanhava Ivan,


agricultor e pequeno criados de gado, ensinar ao primo técnica infalível para matar esta espécie de
cobra. A serpente, de tão “brava”, se torna previsível e, por isso, presa fácil:

E o cascavel é tao brabo que cê encontra com ele hoje, e se você quise matá ele e no tive nada
pra mata ele, cê pode tirar o chapéu, e deixa de junto aí, cê pode deixar que cê mata ele amanhã.
Amanha cê vê. O chapéu tá ali onde cê pôs e ele tá rodeado ainda, por causo do chapéu. Ele
vigia mesmo (Ivan, Urucuia, MG).

A “valentia” extremada da cascavel é oposta a “inteligência” (de homens e cobras). A morte


da serpente por mãos humanas implica o reforço de certas distinções. Ao matar uma cascavel, temida
e até certo ponto respeitada, as pessoas demonstram não apenas sua coragem frente a violência
extrema, mas também a sagacidade de quem está acima do animal “bruto”. O gesto atualiza os valores

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 103


da “coragem” e da “inteligência”, qualidades que os próprios moradores de Urucuia entendem ser
essenciais para quem vive nos “sertões”.

“Valente” ao invés de “ardilosa”, a cascavel também pode, em certas condições, tornar-se


“vingativa”. Quando ofendida, procura meios de replicar, mesmo depois de passado o perigo.
Enquanto planeja a retribuição, a serpente deixa de se alimentar e literalmente “seca”, para se tornar
“só veneno”. Os efeitos da sua picada também mudam na mesma medida de sua raiva. Em frente ao
forno de fabricação de farinha, João, Satu e Conceição discutiam mais um “causo de cascavel”:

João: Cê já ouviu fala na história do homem que bateu na cobra ... e sumiu por dez anos. Que
ele voltou, ele ia passando lá na estrada e oiô [e falou]: “faz uns ano bati numa cobra e joguei
ela aqui...” Ele não acabou de falar...

Satu: e ele ainda foi falar...

João: e ele ainda foi falar...

Conceição: Mordeu ele?

João: Matou ele na hora! Era só veneno.

Satu: Tava até seca...

As personagens não-humanas dos “causos de cobra”, em geral, não são animais


individualizados, possuidores de um nome próprio ou quaisquer sinais que possam singularizá-los.
Num primeiro momento, os comportamentos distintos das cascavéis, quatro-presas, urutus-cruzeiro,
surucucus e jararacas traduziriam diferenças específicas a partir de um sistema classificatório que se
esforça por encaixar o organismo individual em categorias mais abrangentes e hierarquicamente
estruturadas (Ingold, 2015). No entanto, o destaque dado, em diversos relatos, às marcas que
porventura permanecem no corpo da cascavel ofendida (“A mesma com rabo cortado”), indica que a
busca por vingança singulariza a serpente. O animal moralmente imbuído de revidar um ataque –
mesmo depois de muito tempo passado – é único, assim como o seu oponente é um indivíduo marcado
para morrer pelo seu veneno. Enquanto as demais cobras não veem variar seus humores e também
seus venenos, a cascavel pode “ofender” de várias maneiras a depender dos seus sentimentos. A
transformação não se dá de modo, dir-se-ia, abstrato, mas por meio de modificações em seu próprio
equilíbrio corporal. Ao deixar de se alimentar e mesmo de beber água quando em demanda de

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 104


vingança, a cascavel parece alterar a proporção entre as substâncias que compõem seu corpo. Um
equilíbrio inicial se transforma num desiquilíbrio potencialmente mortal.

A vingança insere a cascavel “ofendida” e sua vítima no circuito moral da honra perdida e da
luta por sua reconquista. A “questão” da cobra com o ser humano, por assim dizer, torna-se
“pessoal” 72 . Absorvida na vingança, a cascavel também se abstém de vibrar os guizos. A ação
vingativa se realiza, assim, sem aviso prévio, na forma de uma “tocaia” ou emboscada: a ação de
ocultar-se para atacar inimigo ou caçar. Bide, que estava próximo, mas até então se mantinha em
silêncio diante das conversas de João, Satu e Conceição, lembrou-se de outra história:

E tinha um outro que morava do outro lado ali. Aí, ele evém pro Ribeirão um dia, uma cascavel
jogou nele e ele meteu o facão nela, cortou um bocado do rabo dela. Passou uns dois mês –
morava lá do outro lado do ribeirão – passou uns dois mês, ele tava deitado, aí levantou, tava
dentro de casa, e quando ele abriu a porta, tava a cobra rodeada na entrada da porta. A mesma
com rabo cortado! Passou a mão na espingarda, matou ela...A mesminha! (Bide, Urucuia, MG)

Alguns rezadores sustentam que as serpentes retiram do ar o “mau” que é transformado em


veneno: doenças, crueldades, coisas “ruins” ou qualidades de pessoas “maldosas”. No corpo das
cobras, as peçonhas seriam, então, efeitos de um trabalho permanente de purificação do ambiente;
atividade benéfica, inclusive, aos seres humanos. A maldade é absorvida pelas vias respiratórias para
adentrar a corrente sanguínea dos animais. Misturado ao seu sangue, o veneno, no entanto, será
apartado pela ação do fígado para ser alojado nas peçonhas, encontradas na cabeça do animal, mais
especificamente na boca, atrás das presas. O resultado imediato desse processo é que os próprios
corpos das serpentes possuiriam propriedades tóxicas. O ferimento causado pelos ossos do seu
esqueleto, segundo relatos, pode envenenar. Por isso, o costume de deixá-las mortas em cima de
cercas ou galhos de árvore. No corpo da serpente, os venenos se mantem em equilíbrio com seus
humores, peles, ossos e demais órgãos internos. Ao contrário do que ocorre no corpo humano, onde
seus efeitos são devastadores, na cobra, ele integra e garante a vida do animal.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 105


Há um verdadeiro paralelismo entre os efeitos fisiológicos e morais dos venenos nos corpos
das serpentes. Num primeiro momento, considerando-se todas as cobras, a qualidade da toxina está
intimamente relacionada ao comportamento dos animais constituindo assim as características
específicas. Não há nenhuma variação segundo as espécies consideradas. No caso da cascavel
vingativa, entretanto, que, segundo depoimentos, abdica de comer e beber para “secar” e se tornar
puro veneno, o “mau” se acumula na mesma medida em que o ódio que alimenta contra seu desafeto
modifica seus equilíbrios corporais. Na cobra, emoções e venenos influenciam-se mutualmente para
introduzir o animal num arco bastante heteróclito de potenciais corporalidades. Em condições
normais, a cascavel é “mansa”, mas pode ser tornar extremamente brava, caso provocada. Também
em condições normais, sua peçonha age de modo lento, inevitável e devastador - dir-se-ia, de maneira
quase metódica. Em demanda de vingança, no entanto, adquire extremo poder de malefício.
Concentrado enquanto a cobra “seca” pelo ódio ao seu contendor, depois de inoculado, o veneno
mata imediatamente.

Mundos em conflito

A relação entre serpentes venenosas e homens instaura-se a partir da suposição mútua de que
as primeiras são ameaças à vida dos segundos. E vice-versa. A “ofensa” em potencial explica a tensão
permanente entre as espécies. A suspeição recíproca é a mesma que ronda a convivência forçada entre
dois vizinhos que, por alguma razão, se tornam “inimigos”. Para evitarem conflitos abertos, ambos
fazem o possível para não se encontrarem nos mesmos lugares, de se verem dividindo os mesmos
espaços. Do ponto de vista humano em relação às serpentes, as estratégias de evitação incluem
mudança de caminhos e trilhas, limpeza permanente de terrenos e pastos, rezas dedicadas aos santos,
principalmente, São Bento, além do uso de amuletos, como crucifixos e imagens de santos. Quando
o encontro acontece, a etiqueta a ser seguida – caso a luta não seja desejada - é a do afastamento.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 106


Segundo se sabe, a excessiva proximidade física entre os adversários aumenta os riscos de
enfrentamentos73. A ameaça de embate violento suscita o cuidado com as distâncias.

Diferentemente das pessoas, que, a despeito dos conflitos, podem se tornar aliadas por meio
de casamentos, compadrios, vizinhanças e práticas de auxílio mútuo, ou mesmo dos animais de
“criação”, que podem se tornar “da casa” e membros das “famílias” humanas (Andriolli, 2011), em
função de inúmeras trocas de fidelidade e zelo, as serpentes nunca se tornam “amigas” de ninguém74.
As cobras são, noutros termos, inimigos potenciais com os quais não se pode fazer alianças75. Animais
que não possuem moradia fixa e vizinhos fixos, família constituída, compadres ou companheiros, as
serpentes são seres essencialmente desgarrados e solitários. As serpentes vivem num mundo
essencialmente agonístico. Uma cobra venenosa, diz-se, sempre dorme sozinha e com o “bote
armado”. Não respeitando nenhum tratado de guerra interespecífico, algumas serpentes também
seriam ardilosas.

A cascavel vingativa confirma a ideia do animal desgarrado, solitário e agonístico ao mesmo


tempo em que se apresenta como notável exceção. A serpente parece condensar, a despeito das suas
diferenças, as potencialidades ofensivas de todas as outras. Cobra “mansa”, como a coral-verdadeira,
ela é igualmente “valente”, como a surucucu, ao mesmo tempo em que extremamente venenosa, como
a jararaca, a quatro presas e a urutu cruzeiro. Animal total, a cascavel também pode ir além da simples
serpente para adquirir características verdadeiramente humanas. Ao evitar o ataque comunicando-se
com suas potenciais vítimas, de alguma maneira abdicando da “traição” para referendar certo código
de ética compartilhado em relacionamentos interespecíficos, ela simultaneamente antecipa o mais

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 107


obscuro de todos os conflitos: a “vingança”. A cobra ofende e pode ser ofendida. Enquanto as demais
serpentes não parecem preocupadas em revidar um ataque sofrido, a cascavel traz no corpo e na alma
as marcas da vendetta. O animal se aproxima dos homens (e do masculino, visto ser muitas vezes
referido como “o” cascavel) porque, acenando para alguma aliança, responde eventuais “ofensas
graves” com violência mortal.

As serpentes, em Urucuia, são, para todos os efeitos, espécies próximas indesejadas, mas
inevitáveis. Sua presença invisível informa que os perigos podem estar escondidos em todos os
lugares, mesmo os mais ordinários76. As cobras habitam um mundo existencial invisível aos humanos.
Elas podem estar “escondidas” “atrás”, “sob” ou “debaixo” de pneus, tijolos, pedras, portas, camas,
sofás, cortinas, sacas de grãos, galhos, moitas, plantas, roupas. Com poucas exceções, elas atacam do
chão, e raramente atingem outros membros, que não os “inferiores”. No entanto, mesmo quando agem
“por cima”, permanecem invisíveis, mimetizando o ambiente e confundindo-se com galhos, folhas,
cipós e pedaços de paus. Animais do “baixo” e do “entre”, as cobras peçonhentas também possuem
hábitos noturnos; são, noutros termos, seres da “escuridão”. Os fins de tarde e madrugadas, quando
saem para caçar suas presas, são os momentos mais propícios à ocorrência de acidentes ofídicos. Em
termos relacionais, se o universo experiencial das pessoas remete ao “alto”, ao “divisado” e ao “claro”
é porque as serpentes peçonhentas são vistas como seres que se movimentam preferencialmente nos
invisíveis metafóricos e literais do subterrâneo, do confuso e da noite.

Os riscos para os seres humanos são decorrências da invisibilidade do animal. Vinda de baixo,
do entre ou do escuro, a serpente sai em vantagem. Sem verem as cobras, enquanto são vistas por
elas, as pessoas se tornam alvos fáceis. A ameaça intrínseca aos encontros é, no entanto, mútua. Uma
serpente avistada também corre risco de ser morta, mesmo que não ofereça risco imediato. Sem ter a
vantagem da invisibilidade, é o animal que se transforma em alvo fácil. Não há nenhuma compaixão
implicada no comportamento humano. A matança de serpentes venenosas é considerada, por muitos,
gesto profilático. “Tem que matar”, dizia um agricultor, “senão pode pegar alguém”. A ética

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 108


urucuiana em relação às cobras venenosas advoga fundamentalmente uma demonstração de cuidado
para com os outros seres humanos. A honra das pessoas – principalmente homens – parece atrelada
ao destino dos animais77. Enquanto a “ofensa” infringida pelas cobras aproxima-se das noções de
“traição”, comportamento moralmente reprovável (“o bicho fez maldade comigo”), sua morte por
profilaxia está associada ao bem comum. O veneno da serpente transforma-se em dom generalizado
através do seu holocausto.

A sensação de que serpentes e seres humanos vivem em permanente conflito sustenta a ideia
de que os mundos existenciais que ambos habitam seriam incompatíveis um ao outro. A presença de
mediadores humanos e não-humanos, no entanto, indica alternativas de pacificação. As cobras podem
ser percebidas por outros animais que também coabitam as moradias das pessoas. As aves do terreiro,
os cães e os gatos, entre outros aliados, são bichos capazes de servirem de olhos, narizes e ouvidos
estendidos dos seus donos, garantindo proteção contra os seres do baixo, do entre e da escuridão.
Alguns dentre eles, podem, inclusive, ser imunes aos venenos das serpentes. Era o que dizia seu
Manoel:

Diz que gato não morre de ofensa de cobra. Só se pegar na cabeça ele morre. (...) É porque ele
lambe o lugar da picada. [A língua] É que nem lixa, né? Tira o veneno todo. (...) Porco, se
tiver andando em dois, também não morre. Nunca vi morrer. Só se tiver sozinho (Manoel,
Urucuia, MG).

Os mediadores também podem ser entidades sagradas. Ao entrar numa trilha em que suspeita
ter serpente, um caminhante pode realizar prece a São Bento para se proteger. O santo é o “dono das
cobras”78. Por isso, entende-se que tem autoridade moral sobre elas. Um rezador de Bela Vista, no
estado de Goiás, também em região de cerrado, afirma que a “reza de São Bento” tem o poder de dar
tranquilidade ao caminhante: “onde eu entrar, eu já não tenho medo mais. Não precisa ter medo”
(2005). Apelando ao santo, a prece evita a ocorrência do encontro indesejado, acalmando a serpente

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 109


e neutralizando sua potencial agressividade: “Santo Bento/Água Benta/Jesus Cristo no altar/Bicho
mau/Que tá nesse caminho/Abaixa cabeça/Pro filho de Deus passar/Amém”.

A reza, não obstante seus efeitos, não anula as limitações visuais que separam os mundos dos
homens e das cobras. Mediador por excelência entre o visível e o invisível, o santo possui o poder
necessário para enxergar o “outro mundo” das serpentes. Além dele, apenas o rezador, a personagem
especializada no trato com as cobras e seus efeitos nocivos sobre os seres humanos, também é capaz
de ver ou, pelo menos, sentir a proximidade dos animais. A força do especialista, como já foi dito,
vem do próprio São Bento. Dizia o mesmo Zetinho, de Goiás.

Já aconteceu comigo, de eu andar no meio do mato... Na verdade, eu não sinto dor de cabeça.
Mas eu sei quando a cobra me viu, e eu não vi ela. Dá uma dorzinha de cabeça. Esse é um
caso real. É um caso antigo, mas é real. Quando cê vê uma cobra venenosa... Cê não vê ela, e
ela te vê... Dá uma dorzinha de cabeça (Zetinho, Bela Vista, GO)

Além de “sentir” presença dos animais, o rezador pode identificá-los e saber, a pedido dos
seres humanos, onde estão as serpentes que porventura estejam atacando pessoas e criações em pastos
e roças. Um dos meus interlocutores em Urucuia é compadre de um desses rezadores (o compadrio,
aliás, foi estabelecido depois e por causa de um serviço “bem” realizado). Numa ocasião, os animais
de pasto de Ivan estavam sendo atacados por cobras. Já preocupado, porque uma ou duas de suas
novilhas morreram envenenadas, ele procurou o velho Jango para tratar do assunto. Dizia Ivan:

Cheguei lá e o Jango fez uma reza. Depois falou pra mim que tinha 23 cobras no meu pasto.
E no dia seguinte elas iam sair pelo lado da roça de mandioca. Ele falou: “avisa seu povo pra
não trabalhar na roça amanhã, porque vai tudo pra lá.” (...) O velho Jango [também] disse que
uma cascavel não ia sair do pasto. “Ela tá pisada de gado, mas tá viva. Cês procura lá que vai
achar”. E tava, direitinho lá (Ivan, Urucuia, MG).

Localizado nas fimbrias de dois mundos em conflito, o rezador afasta as cobras das
proximidades ao mesmo tempo em que garante que os seres humanos não irão molestá-las: “O Jango
falou pra ninguém matar as bicha”. Era o que dizia também o especialista Zé Erotides, de Chapada
Gaúcha:

Aqui nesse bloco mesmo, sinceramente, aqui tem um vizinho meu, que ele é chefe de uma
fazenda. Ele falou: “seu zé, o patrão mandou pra você um bando de presente. Nunca mais
daquele tempo pra cá morreu gado lá” [picado de cobra]. Toda semana morria uma, depois

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 110


desaparecia. Só que nós podia pedir pra ver ela. Mas só que não: “tá isolada, (??) nunca mais
ela volta, se ela tem olho, não vai enxergar, se tem a boca, não vai abrir, se tem os dentões,
não vai ofender”. Vamo deixar ela viver a vida dela lá, só unicamente ela pega a alimentação
e pronto, deixa ela lá. (Zé Erotides, Chapada Gaúcha, MG)

A atitude do especialista parece explicar gestos de consideração explícitos por parte das
cobras. Em Urucuia, ouvi algumas vezes o relato a seguir:

Nas margens do Rio Acari, diz-se, vivia um rezador excepcional. Quando morreu, o velório,
como de costume, realizou-se em sua residência. A surpresa dos participantes do funeral se
deu quando perceberam que, durante a noite de vigília, o terreiro estava cercado de cobras. De
alguma maneira, as pessoas concluíram, os animais também prestavam suas homenagens ao
rezador (Caderno de campo, Urucuia, 2013).

As serpentes, ao se comunicarem com os rezadores, tornam-se mais humanas. Num sentido


inverso, o próprio especialista se torna mais cobra. Embora não tenha ouvido caso a respeito, não é
difícil de imaginar que alguns rezadores possam ter sido acusados de enviar serpentes para realizar
vinganças pessoais. Na versão não-publicada do seu conto “O Bicho Mau”, João Guimarães Rosa
narra a vingança de um rezador do norte de Minas que, acusado de charlatão, é expulso da fazenda
onde vivia como agregado, para depois mandar inúmeras cobras venenosas invadirem a propriedade
(Rattes, 2009). Em contraponto a uma relação diádica eminentemente predatória entre seres humanos
e serpentes, o rezador estabelece mediação entre os mundos em conflito através da linguagem da
dádiva. A inimizade que opõe bichos e homens é substituída por alianças duplamente avalizadas pelo
poder do sagrado, de modo manter os contendores afastados uns dos outros. Obviamente, em
demanda de vingança, o rezador pode fazer usos das cobras para reverter a qualidade dos laços que
deve uni-los aos seus pares. A dádiva, nesse caso, torna-se veneno.

Biólogos, zoólogos e herpetólogos lamentam o costume dos habitantes de áreas rurais


brasileiras de perseguirem e matarem serpentes peçonhentas e mesmo não-peçonhentas. A matança,
associada ao aumento dos desmatamentos e ao avanço das ocupações humanas em áreas antes
“preservadas”, teria como resultado a quase extinção de espécies endêmicas que habitam os mais
variados biomas do país. Em Urucuia, uma eventual campanha conservacionista poderia ter início
com a compreensão do papel desempenhado pelo rezador. Ao contrário do que pensam alguns
cientistas (Auto, 2005), a personagem não é, por seu apelo à magia e à religião, a antítese do

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 111


conservacionista. O rezador é, antes, sua imagem simétrica e inversa. Enquanto os cientistas apelam
para a linguagem classificatória da diversidade biológica com o intuito de defender o direito dos
animais de terem seu lugar num mundo “preservado”, longe dos seres humanos, os rezadores fazem
uso da linguagem narrativa da dádiva para reconhecerem, através de sua prática, que os universos das
serpentes e dos homens podem estar próximos sem se encontrarem. Os códigos da ciência natural nos
lembram dos riscos da coabitação interespecífica, evocando habitats apartados horizontalmente um
dos outros. No plano do rezador, ao contrário, a “boa” coexistência de homens e serpentes implica
garantir a separação parcial de mundos existenciais sobrepostos e eventualmente conectados em
momentos de grande dramaticidade.

Bibliografia

ANDRIOLLI, Carmen Silvia. Sob as vestes de Sertão Veredas, o Gerais. Mexer com criação” no
Sertão do IBAMA. Campinas: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2011 (tese de doutorado).

AUTO, Hélvio José de Farias. Animais peçonhentos. Maceió: EDUFAL, 2005.

CARNEIRO, Ana. “Os rumos da prosa: parentes chegados, primos cunhados”. Revista de Ciências
Sociais, Fortaleza, v. 44, n. 2, jul/dez, 2013, p. 196-215

DELEUZE, Gilles. Spinoza: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.

DRUMMOND, Lee. “The serpent’s children: semiotics of cultural genesis in Arawak and Trobriand
myth”. American Ethnologist, n. 8, v. 3, p. 633-660, 1981.

HARAWAY, Donna. When Species Meet. Minneapolis: University of Minnesota Press, 2008.

INGOLD, Tim. Estar Vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes,
2015.

LATOUR, Bruno. “Como falar do corpo? A dimensão normativa dos estudos sobre a ciência”. In:
NUNES, J. & ROQUE, R. (orgs). Objetos impuros: experiências em estudos sociais da ciência.
Porto: Edições Afrontamento, 2007, pp. 40-61.

MARQUES, Ana Cláudia. Intrigas e questões: vingança de família e tramas sociais no sertão de
Pernambuco. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 112


MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Cosac e Naife, 2003.

MUNDKUR, Balaji. “The Roots of Ophidian Symbolism”. Ethos, Vol. 6, No. 3, 1978, pp. 125-158

PEREIRA, Luzimar Paulo. Os giros do sagrado: um estudo etnográfico sobre folias em Urucuia,
MG. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.

RATTES, Kleyton G. O mel que os outros faveiam: Guimarães Rosa e a antropologia. Dissertação
em Antropologia Social. Museu Nacional, UFRJ, 2009.

TURNER, Victor. Schism and continuity in an African society. Manchester: Manchester University
Press, 1957.

Filmografia

O Rezador de Cobras | Doc, 7 min, 2005, GO.

Endereço eletrônico: https://www.youtube.com/watch?v=2fZuuv9Salg

Anais da VI Reunião de Antropologia da Ciência e Tecnologia - ISSN: 2358-5684 113

Potrebbero piacerti anche