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H E L M U T R E IC H E L T

SOBRE A ES TRU TUR A LÓGICA


DO CO NCEITO DE CAPITAL
EM KARL MARX

TRADUÇÃO

Nélio Schneider

IE D I T O R ~Ã U H I C A H P
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1 990. Em vigor no Brasil a partir de Z009.

F IC H A CATALOGRÁFICA ELABORADA PELO


S IS T E M A D E B IB L IO T E C A S D A U N IC A M P
D IR E T O R IA DE TRA TA M EN TO DA IN FO RM AÇÃ O

H elm u t R eich elt.


R271S Sobre a estrutura lógica do conceito de capital em K a rl M a rx / H elm ut Reichelt; tra­
dução N élio Schneider. - Cam pinas, SP: Editora da Unicam p, 2013.

1. Karl M arx, 1818-1883. 2. Valor (Econom ia). 3. C apital (Econom ia). 4. Econom ia
marxista. I. Nélio Schneider, 1966-. II. Título.

CDD 330.1594
335.412
ISBN 978-85-268-IO35-8 332.041

índices para catálogo sistemático:

1. Karl Marx, 1818-1883 33°-I594


2. Valor (Economia) 335.412
3. Capital (Economia) 330.1594
4. Economia marxista 332.041

Titulo original: Z u r logischen Struktur des Kapitalbegriffs bei K arl M arx

Copyright © by Helmut Reichelt


Copyright © 2013 by Editora da Unicamp

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No método de processamento, prestou-me um grande serviço
o fato de eu by mere accident [...] ter folheado novamente a
Lógica de Hegel.
Karl Marx
SUMÁRIO

OBSERVAÇÕES DA EDIÇÃO ORIGINAL............................................................................... 9

OBSERVAÇÕES DO TRADUTOR............................................................................................ 9

PREFÁCIO.............................................................................................................................. 11

IN T R O D U Ç Ã O ........................................................................................................................ 23

1- A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NAOBRA INICIAL DEMARX....... 29

2- SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O CAPITAL ........................................................ 83


A. A sp ecto s gerais do conceito de ca pita l....................................................... 83
B. C rítica da econom ia p o lítica clá ssic a ........................................................ 104
1. Os fisio c ra tas.................................................................................................. 105
2. A dam S m ith..................................................................................................... 108
3. D avid R ica rd o ................................................................................................. 119

3 - A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL......................................................................................... 133


1. Sobre a relação entre m étodo lógico e m étodo h istó ric o ................... 133
2. O conceito m arxiano de v alo r................................................................... 143
A. A i categorias da circulação sim p le s........................................................... 156
1. D uplicação id e a l............................................................................................ 158
2. Duplicação real.................................................................................... 165
3. A primeira determinação do dinheiro................................................ 175
4. Excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente
necessário................................................................................................. 179
5. A segunda determinação do dinheiro................................................ 187
6. Excurso sobre a teoria da crise........................................................... 189
7. A segunda determinação do dinheiro (continuação)....................... 197
8. A terceira determinação do dinheiro................................................. 207
B. A p assa g em p a ra o ca p ita l ..................................................................... 231
1. Sobre a relação entre circulação simples e capital......................... 231
2. A mais abstrata das formas do capital............................................... 246
OBSERVAÇÕES DA EDIÇÃO ORIGINAL

Os escritos de Marx e Engels são citados no corpo do texto entre parênteses


com base em

MEW: Marx e Engels, Werke. Berlin, 1956 e ss., 43 vols.


MEGA: Marx e Engels, Gesamtausgabe. Berlin, 1975 e ss.
U: Marx, “Urtext zur Kritik der politischen Ökonomie”, em: Grundrisse der
Kritik der politischen Ökonomie. Berlin, 1974.

E x em plo:
(23/169) = MEW, vol. 23, p. 169.
(II.5/43) = MEGA, Segunda Seção, vol. 5, p. 43.

OBSERVAÇÕES DO TR AD UT OR

1. Para a tradução das citações literais das obras de Marx, aproveitaram-se


as traduções mais recentes disponíveis atualmente no Brasil. A referência bi­
bliográfica completa de cada obra citada encontra-se no rodapé da prim eira
ocorrência da obra, que, dali por diante, é citada sempre abreviadamente me­
diante título, volume (se for o caso) e página.
2. A abreviatura “modif.” ao final de uma referência significa que a tradução
original foi modificada para adequar-se à terminologia usada na obra de Rei-
chelt ou à terminologia científica mais atual. E o caso, por exemplo, da expres­
são “mais-valia”, que vem sendo substituída com razão pelo termo "mais-valor”
(cf. Mario Duayer. Apresentação, em K. Marx, Grundrisse. São Paulo, Boi-
tempo, 2011, p. 23).
PREFÁC IO

Durante a preparação desta investigação sobre a estrutura lógica do conceito


de capital em Marx, apresentada na forma de dissertação como primeira ten­
tativa de reconstrução do método dialético de Marx em O capital, não me dei
conta de uma indicação central: logo depois da publicação do escrito Para a
crítica cla economia política, no ano de 1859, Marx escreveu a Engels, dizendo
que a continuação será “muito mais popular e o método bem mais escondido
do que na Parte I” (III.3/49)1. Ou seja, Marx não facilitou as coisas para os seus
leitores: por um lado, ele apresenta uma obra com um nível elevado de exigên­
cia científica; por outro lado, ele “esconde” justam ente o método pelo qual se
define a sua cientificidade. Gerd Gõhler já constatou que a dialética sofreu
“redução” em O capital2, e de fato é possível provar que, já na segunda edição
de O capital, Marx simplesmente riscou passagens metodológicas essenciais
para a compreensão do seu procedim ento3. Razões, am plitude e significado
dessa “redução” ainda não foram esclarecidos. Porém, se quisermos investigá-
-la e reconstruir o método, evidentemente é preciso ater-se aos escritos em que
ele se apresenta, por assim dizer, “não escondido”, a saber, nos trabalhos dire­
tamente preparatórios para O capital, ou seja, sobretudo no assim chamado
Rascunho [Rohentw urf*] de O capital e no Texto original [Urtext] do escrito
Para a crítica da economia política.

* Rascunho (Rohentwurf) é. por assim dizer, o apelido que os Esboços (Grundrisse) receberam
em sua primeira edição de 1939, que saiu com o seguinte título: Grundrisse der Kritik des

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Marx orientou-se na lógica de Hegel para redigir esse volumoso rascunho,


o que se deduz das indicações explícitas do próprio autor; porém, conhecimen­
tos a respeito de Hegel por si sós não oferecem garantia nenhum a de uma
compreensão adequada desse texto. Muitos hegelianos tentaram isso com esse
texto sem êxito. Mesmo que se parta do pressuposto de que, nos dois escritos
mencionados, o método “ainda não foi escondido”, é evidente que há outros
obstáculos que dificultam o acesso. Ao lado da observação metodológica mar-
xiana citada anteriormente, eu, a exemplo de todos os demais autores que se
ocuparam com as mudanças de plano em O capital, não me dei conta de uma
diferença fundamental entre o Rascunho e os escritos publicados, cujo signi­
ficado, todavia, só se descortina diante do pano de fundo dos questionamentos
categoriais vinculados com a reconstrução do método dialético. No Rascunho,
Marx diferencia entre o “o intercâmbio que põe valor de troca” e o “trabalho
que põe valor de troca”. O primeiro também é caracterizado por ele como “cir­
culação simples”, uma expressão que quase não aparece mais em Para a crí­
tica da economia política e sumiu completamente em O capital·, o conceito do
trabalho que põe valor de troca pode ser lido como determinação mais antiga
do caráter duplo do trabalho, e continua a ser utilizado com alguma frequência
em Para a crítica da economia política. O trabalho que põe valor de troca é
caracterizado também como “trabalho abstrato que se tornou verdadeiro na
prática” (cf. 42/39 e 42/219 [ed. bras. Grundrisse, pp. 58 e 231]*); o antônimo
não é caracterizado expressamente como “verdade teórica” do trabalho abstrato,
mas, na concepção da exposição, o trabalho abstrato é tratado como “trabalho
em si”, como categoria, que “é ainda mais relevante para a nossa reflexão
subjetiva” (42/219 [ed. bras. Grundrisse, p. 231]).
Na bibliografia sobre o assunto, comenta-se que, no Rascunho, Marx busca
estruturar a sua exposição de modo diferente do que faz em O capital·, ele
enfatiza muitas vezes que o valor é a primeira das categorias econômicas a ser
submetida à crítica ou que, “para desenvolver o conceito de capital, é necessá­
rio partir não do trabalho, mas do valor e, de fato, do valor de troca já desen­
volvido no movimento da circulação” (42/183 [ed. bras. Grundrisse, p. 200]).
Contudo, a observação autocrítica que se encontra no contexto do desenvolvi-

politischen Ökonomie (Rohentwurf). Nesta tradução, mantém-se a distinção terminológica


adotada pelo original, embora se trate do mesmo texto. (N. do T.)
* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-
-1858. Esboços da crítica da economia política. Trad. Mario Duayer e Nélio Schneider. São
Paulo, Boitempo, 2011. (N. do T.)

12
PREFÁCIO

mento do dinheiro, a saber, que “será necessário mais tarde [...] corrigir o modo
idealista da apresentação que produz a aparência de que se trata simplesmente
das determinações conceituais e da dialética desses conceitos” (42/85-6 [ed.
bras. Grundrisse, p. 100]), é tida como confirmação de que o Rascunho ainda
representaria um desenvolvimento idealista, meramente conceituai imanente,
em relação a Para a crítica da economia política e O capital, em que Marx
teria partido da mercadoria e, desse modo, se moveria em terreno materialista
firme4. É possível até mesmo delim itar tem poralm ente o momento em que
ocorreu essa mudança na concepção da exposição, mas em lugar nenhum se
encontram indicações explícitas para as razões dessa mudança".
De que trata esse conceito da circulação simples, para o qual, a seu tempo,
já chamei a atenção?6 Esse conceito tem duplo sentido: por um lado, o intercâm­
bio que põe valor de troca é entendido numa dimensão histórica, ainda que não
no sentido de uma descrição histórica trivial (como a que foi canonizada na
ortodoxia m arxista como relação entre lógico e histórico, em conexão com
certas formulações infelizes de Engels); essa dimensão pode ser apreendida,
m uito antes, como a interpenetração recíproca de uma lógica do desenvol­
vimento e uma dinâmica do desenvolvimento, que, no entanto, não foi elabo­
rada explicitamente por Marx. Por outro lado, com o conceito da circulação
simples M arx vincula a concepção de uma "superfície” do processo de re­
produção capitalista geral, que manifestamente está orientada na lógica hege-
liana. Há formulações em que se chega a ter a impressão de que Marx assumiu
textos em toda a sua literalidade, como, por exemplo, na passagem para o ca­
pital, cuja formulação segue o modelo da passagem da lógica do ser para a
lógica da essência7.
Deixar de perceber o sentido duplo dessa concepção (o que até agora sem­
pre aconteceu) leva a manter trancado o acesso ao método que Marx “aplica”
no Rascunho, uma formulação no m ínimo perturbadora de Marx — pois a
expressão “aplicar” dá a entender que se trata, nesse caso, de um método já
pronto que estaria à disposição. Mas seria possível “aplicar” a outro objeto um
método do qual insistentemente se diz que não pode ser explicitado indepen­
dentemente do seu conteúdo? E ainda por cima sem pagar por isso o preço do
idealismo — pois, em Hegel, esse conteúdo é o “automovimento da coisa” e
este é, em última instância, o conceito que explicita a si mesmo? Isso dá mar­
gem à crítica de que a exposição marxiana do “conceito geral do capital” seria
meramente uma construção teórica que sugere uma necessidade interior e que
procura desenvolver o capital como uma explicação conceituai lógico-imanente,
tanto mais porque M arx jam ais esclareceu nem mesmo rudim entarm ente a

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

razão objetiva que o levou a traduzir a realidade do capitalismo na forma de


um “conceito geral do capital”8.
Em carta a Lassalle, Marx caracterizou o seu trabalho teórico como “críti­
ca das categorias econômicas, ou, ifyou like [se preferir], o sistema da econo­
mia burguesa apresentado criticam ente” (29/550). Como demonstrou Hans-
-Georg Backhaus9 detalhadamente com base nos textos de Marx, o conceito da
crítica e a expressão “sistem a da economia burguesa” não se referem só à
crítica de outras teorias, como foi entendido em termos exclusivos pelo mar­
xismo ortodoxo, mas também à realidade desse sistema econômico. Mas o que
é a realidade desse sistema econômico? Ele é constituído pelas formas sob as
quais os seres humanos produzem e trocam, as formas que se ajustam para
formar um sistema sacudido por contradições e crises, uma engrenagem autono­
mizada, que ele caracteriza já nos Manuscritos de Paris como mundo distor­
cido, cuja eliminação prática deveria ser o objetivo do movimento comunista:
“O existente que o com unism o cria é precisam ente a base real para tornar
impossível tudo o que existe independentemente dos indivíduos, na medida em
que o existente nada mais é do que um produto do intercâmbio anterior dos
próprios indivíduos” (3/70 [ed. bras. Ideologia alemã, p. 67]*). Portanto, a crí­
tica marxiana da economia política não consiste em uma nova variante da assim
chamada teoria do valor do trabalho (isso também), mas — é isso que diferen­
cia a crítica econômica marxiana de toda teoria econômica — é o desenvolvi­
mento teórico dessa distorção e autonom ização reais. O conceito de crítica
nesse sentido é idêntico ao conceito da exposição como desenvolvimento ge­
nético gradativo dessa autonomização a partir de um “princípio real” ; Adorno
o chama de princípio da troca, a partir do qual deveria ser desenvolvida a so­
ciedade, que ele caracteriza com palavras quase idênticas às utilizadas pelo
jovem Marx: “A racionalidade objetiva da sociedade, a da troca, distancia-se,
por sua dinâmica, cada vez mais do modelo da razão lógica. É por isso que a
sociedade, o autonomizado, por sua vez, já não pode mais ser compreendida;
unicamente a lei da autonomização [pode ser compreendida]” (grifos meus,
H. R .)10. Uma caracterização certeira da dialética marxiana, a saber, a recons­
trução da lei do processo social de irracionalização.
Tentemos acercar-nos do problem a no plano da ciência econômica. Em
muitas de suas publicações11, Hans-Georg Backhaus apontou reiteradamente

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx e F. Engels. A ideologia alemã. Trad. R. Enderle,
N. Schneider e L. Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007. (N. do T.)

14
PREFÁCIO

para o fato de que a ciência econômica é caracterizada por uma contradição,


da qual, porém, bem poucos economistas têm consciência: em todas as suas
ponderações macroeconômicas, a ciência econômica pressupõe um valor ab­
soluto, objetivo, abstrato, que ela própria, todavia, não consegue fundamentar.
Na bibliografia mais antiga, esse valor é caracterizado como quantidade de
valor, volume de valor, o produto social enquanto massa de valor. Esse valor
abstrato, objetivo, adicionável, que, além disso, cresce, constituindo, portanto,
um valor objetivo intertemporal, é a condição da possibilidade da ciência eco­
nômica, seu objeto “propriamente dito”, mas só poucos economistas viram
isso. Schumpeter constata o seguinte: “A rigor” os conceitos da macroecono­
mia, portanto as suas grandezas totais, são “sem sentido”12. Por essa razão, ele
também zomba dos economistas — mencionando, entre outros, também Key­
nes — por “operarem com essas grandezas sem apresentar sintomas de cons­
ciência crítica”13. Esse valor foi caracterizado pelo economista Sismondi (por­
tanto, na primeira metade do século XIX) como “ideia comercial”, em alusão
bem consciente à teoria platônica das ideias. Ele compara esse valor com uma
“qualidade não substancial, metafísica, de posse do mesmo cultivateur [culti­
vador, lavrador]”. E esse valor se situa além das duas teorias do valor, ou seja,
da teoria subjetiva do valor ou teoria da utilidade do valor e da assim chamada
teoria objetiva ou teoria do valor-trabalho, que foi elaborada por Adam Smith
e especialmente por David Ricardo. Essas duas teorias do valor, até onde con­
sigo ver, nem são mais discutidas hoje, e tampouco o terceiro conceito de valor.
Trata-se, por assim dizer, de uma ciência econômica “sem valor”. (De modo
similar, Adorno falou da sociologia como ciência sem sociedade.) Schumpeter
anota, em sua história dos dogmas, que Marx desenvolve, em O capital, uma
teoria que confere centralidade precisam ente a essa problem ática, sem, no
entanto, m encionar isso explicitam ente: a saber, a fundamentação do valor
objetivo e do valor absoluto, isto é, valores adicionáveis que podem ser compu­
tados como produto social. Porém, nessa passagem de sua história dos dogmas,
Schumpeter não diz como pretende lidar com essa descoberta.
Surpreendentemente essa descoberta foi feita também por um filósofo, a
saber, por Klaus Hartmann, em seu volumoso livro sobre Marx. Ele também
constata isto:

Se o valor de troca fosse o único conceito econômico de valor, ele não passaria de
um conceito relacional, uma categoria intermediadora para atos de troca. Nesse caso,
não seria possível somar tais valores de troca, nem calcular um valor total. Porém, isso
deve ser possível, na medida em que Marx pretende explicar a acumulação de valor e

15
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A D O C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

dinheiro e capital, e, numa passagem posterior, passa a fazer um cálculo macroeconô­


mico total14.

Portanto, Hartmann vê o problema com bastante precisão. A solução só pode


consistir num valor absoluto; mas isso seria — e esta é a crítica enviada por
ele ao endereço de Marx — uma “escamoteação”. Werner Hoffman, economis­
ta falecido há poucos anos, passa a falar de modo coerente do valor absoluto
quando ele discute as teorias do crescimento.
Esse valor absoluto, objetivo e abstrato, que a teoria macroeconômica vai
somando até chegar a uma quantidade total de valor do produto social, cons­
titui o objeto central da crítica marxiana, que explicita esse valor desde os seus
primórdios até chegar à forma em que “toda a riqueza da sociedade” aparece
como uma quantidade de mercadorias, portanto, uma quantidade de valor. Re­
petidamente encontram-se no Rascunho expressões como estas: o valor “não
desenvolvido”, o “ulterior desenvolvimento do valor de troca” (42/164 [ed. bras.
Grundrisse, pp. 180-1]), o “valor de troca em seu m ovim ento” (42/163 [ed.
bras. Grundrisse, p. 178]), o “valor de troca autonomizado” (42/146 [ed. bras.
Grundrisse, p. 163]; II.2/77 e 78), o “valor de troca consumado” (42/160 [ed.
bras. Grundrisse, p. 177]). Fala-se expressamente de um movimento do valor,
mas esse modo de falar pode mesmo apontar para algo significativo ou trata-se
de pura especulação? O que poderia significar movimento nesse contexto?
Pensa-se num universal idêntico a si mesmo que assume diferentes formas, que
se conserva em meio a essa mudança de forma e, além disso, pode crescer. Mas
o que é esse universal? Naturalmente é o valor! Porém, o que é o valor? Tem­
po de trabalho objetivado é o que consta no Rascunho. Isso acarreta problemas
consideráveis que serão abordados mais adiante. No Rascunho, isso simples-
mente é afirmado e faz-se a tentativa de compreender o valor autonomizado na
circulação — a saber, a forma-dinheiro — como ponto de partida de todo o
movimento de autonom ização, de derivar o “conceito do capital” do valor
presente na circulação. Em vários passos (que são reconstituídos neste livro),
esse processo de autonomização é acompanhado, tanto no Rascunho como no
Texto original [Urtext], até o primeiro conceito abstrato do capital: “A autono­
mização aparece não só na forma em que se confronta, como valor de troca
abstrato autônomo — dinheiro — , com a circulação, mas também em que esta
constitui simultaneamente o processo de sua autonomização; ele [o capital, H.
R.] provém dela como autonomizado” (II.2/82).
Ora, não é possível repetir aqui toda a argumentação; o que interessa é
unicamente a prova de que a intenção m arxiana no Rascunho e também no

16
PREFÁCIO

Texto original [Urtext] estava direcionada para desenvolver o capital com toda
a sua contraditoriedade e regularidade a partir da efetuação dessa autonomiza­
ção do valor.

O desenvolvimento exato do conceito de capital é necessário, porque é o conceito


fundam ental da Econom ia m oderna, da m esm a m aneira que o próprio capital, cuja
contraimagem abstrata é seu conceito, é o fundamento da sociedade burguesa. Da con­
cepção rigorosa do pressuposto fundamental da relação têm de resultar todas as contra­
dições da produção burguesa, assim como o limite em que a relação impulsiona para
além de si mesma. (42/250 [ed. bras. Grundrisse, p. 261])

Mediante alusão a uma observação autocrítica sobre os limites da “forma dialé­


tica de exposição” (II.2/91), com frequência se constatou que a execução dessa
concepção dialética suscita problemas metodológicos. Nessa constatação, Marx
se refere à existência da classe trabalhadora, cujo surgimento não pode, ele
próprio, ser “desenvolvido a partir do conceito” .
Ora, anteriormente já apontamos para o duplo significado do conceito da
circulação simples. No decorrer do registro por escrito, essa duplicidade se
tom a mais precisa e, desse modo, aumenta também a nitidez do seguinte pro­
blema: o que Marx identifica no Rascunho como a esfera da aparência, a cir­
culação simples, que já ali é caracterizada por ele como superfície do proces­
so capitalista de reprodução, é a m ercadoria como produto do capital. O
processo de circulação aparece como simples troca, e a economia assume essa
aparência; enquanto teoria, ela constitui a formulação dessa aparência. Em si,
porém, sempre já estamos lidando com o processo de circulação do capital,
que provém do processo de produção e lança a mercadoria no mercado. É com
essa mercadoria que Marx inicia a exposição no escrito Para a crítica da eco­
nomia política, bem como depois em O capital. Desse modo, um dos dois
significados desse conceito é absolutizado e a expressão “circulação simples”
não é mais usada; ao mesmo tempo, parece ilógico continuar a falar de um
movimento da autonomização do valor quando Marx já começa com a mer­
cadoria como produto do processo capitalista de produção, com o resultado
social desse processo de distorção e autonomização. Quando a explicitação do
conceito de capital é eliminada do valor autonomizado na circulação, a expli­
citação ulterior do capital dificilmente poderá ser feita segundo esse método:
ela precisa, portanto, ser “ocultada” . Assim, todas as indicações para esse pro­
cedimento são sistematicamente eliminadas ou relegadas a segundo plano15.

17
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Ligada a essa concepção expositiva encontra-se outra problemática teórica


e metodológica. O Rascunho — em correspondência à diferenciação entre o
intercâmbio que põe valor de troca e o trabalho que põe valor de troca — di­
ferencia entre a “verdade teórica” do trabalho abstrato, que “ainda incide antes
na nossa reflexão subjetiva”, e o trabalho abstrato efetivado na prática, e, des­
se modo, pela primeira vez fundamenta sistematicamente a categoria do tra­
balho abstrato-universal, assim como a teoria do valor do trabalho; em contra­
posição a isso, em O capital, o conceito do trabalho abstrato é introduzido em
termos definitórios. Abstraindo do fato de isso já ter sido alvo de crítica logo
após a publicação do primeiro volume, o próprio conceito permanece obscuro
e não foi esclarecido em toda a história da discussão sobre a teoria marxiana
do valor; e também a conexão com o próprio valor ainda carece de explicação.
No fundo, porém, essa questão só surge quando a natureza específica da abs­
tração da troca é posta em debate. Em conexão com a cunhagem do termo por
Simmel16, Sohn-Rethel falou de uma abstração real; Adorno assumiu essa ideia
de Sohn-Rethel e caracterizou a abstração da troca como uma “conceitualida-
de objetiva reinante na própria coisa”, como uma “abstração objetiva”. Porém,
as interpretações permaneceram insatisfatórias ou, como no caso de Adorno,
não passaram de indicações programáticas.
Podemos de fato recorrer a Marx que não deixa margem a dúvidas ao afir­
mar que o valor representa um produto de abstração gerado pelos próprios
envolvidos na troca. Todavia não é no Rascunho, mas só depois, em O capital,
que se encontram indicações explícitas quanto ao que se deve im aginar por
categorias e em que termos estas devem ser desenvolvidas em conexão com o
valor enquanto abstração efetuada pelos próprios agentes da troca. As catego­
rias são caracterizadas ali com toda a clareza desejável como “formas de pen­
samento [...] dotadas de objetividade” (23/90 [ed. bras. O capital, vol. I, p.
151]*), como formas “subjetivas-objetivas”, e o valor como produto da abstra­
ção que “existe na cabeça”: “Equivalente significa aqui apenas igualdade de
grandeza depois que as duas coisas foram reduzidas tacitam ente, na nossa
cabeça, à abstração ‘valor’” (II.5/632).
Em vista dessa determinação do valor como abstração ideal, levanta-se a
questão referente ao modo como deve ser concebida a conexão entre trabalho
e valor. Mas isso só é viável se levarmos a sério o programa de Marx do jeito
que ele o sumarizou sucintamente no primeiro volume:

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, O capital. Crítica da economia política. Livro I: O
processo de produção do capital. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo, 2013. (N. do T.)

18
PREFÁCIO

É verdade que a economia política analisou, mesmo que incompletamente, o valor


e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais
sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por
que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua
duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? (23/94-5. [ed. bras. O
capital, vol. I, p. 151])

Porém, como é que o trabalho humano-abstrato, que é definido como “dispên­


dio produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc. hum anos” (23/58 [ed.
bras. O capital, vol. I, p. 121]), se transforma nessa abstração do valor? Como
esse dispêndio consegue “assumir a forma do valor”? Como uma abstração se
relaciona com a outra?
A meu ver, a resposta a essa pergunta só pode ser obtida pela via da expli­
cação aprofundada de uma concepção da qual em Marx só aparecem breves
indicações e que, em toda a discussão sobre a teoria marxiana, não foi desco­
berta nem abordada mais detidamente. Em O capital, Marx opera com uma
concepção de validade impossível de ser ignorada terminológicamente — ele
fala bem mais de 30 vezes de validade em diversas locuções só na prim eira
edição do anexo “A forma de valor” — , mas ele elucida apenas indiretamente,
por meio de alusões e exemplos velados, essa ideia que tem como ponto de
partida a concepção da reflexão ponente e da reflexão exterior da lógica hege-
liana da essência. É só nesse contexto que parece ser possível tematizar satis­
fatoriamente a “ abstração ‘valor’” — enquanto unidade de validade e ser. Isso
também possibilitaria outra interpretação do conceito do trabalho universal-
-abstrato, bem como ofereceria uma resposta à pergunta anteriormente levan­
tada referente à razão pela qual Marx consegue expor o capitalismo na forma
de um “conceito geral do capital”17.

Bremen, setembro de 2001

N o ta s
1 Quem chamou minha atenção para essa passagem epistolar foi Hans-Georg Backhaus.
2 Gerhard Gõhler, Die Reduktion der Dialektik durch Marx, Stuttgart, 1980.
3 Por exemplo, o seguinte parágrafo, que faz a ponte para o segundo capítulo tanto em Para a
crítica como em O capital, e que, na segunda edição, foi simplesmente riscado: “A mercado­
ria é unidade imediata de valor de uso e valor de troca, portanto, de dois opostos. Por conse­
guinte, ela é uma contradição imediata. Essa contradição necessariamente ficará explícita no

19
SO B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

momento em que ela não for considerada, como até agora, analíticamente ora do ponto
de vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de troca, mas quando, na condição de
totalidade, realmente for posta em relação com outras mercadorias. A relação real das merca-
dorias entre si é o seu processo de troca” (II.5/51). O mesmo ocorre com a frase de transição
no capítulo da acumulação: “O prosseguimento da exposição levará mais tarde, através de sua
própria dialética, àquelas formas mais concretas”, após a seguinte frase: “Consequentemente
a sua análise pura exige que se abstraiam provisoriamente todos os fenómenos que escondem
o funcionamento interno do seu mecanismo” (II.5/457).
4 Cf. Fred E. Schräder, Restauration und Revolution, Die Vorarbeiten zum “Kapital” von Karl
Marx in seinen Studienheften 1850-1859, Hildesheim, 1980, p. 205.
5 Schräder, pp. 204-5.
6 Essa concepção não deve ser confundida com a ideia da “produção simples de mercadorias”,
desenvolvida por Friedrich Engels e delimitada por ele contra a produção capitalista de mer­
cadorias. Cf. Engels, em: “Ergänzung und Nachtrag zum 3. Buch des Kapital [Suplemento ao
Livro Terceiro de O capitcil]” (25/905 e ss. [ed. bras. O capital, vol. III, Tomo 2, pp. 319 e ss.]).
Por não ser idêntica à ideia de Engels, a concepção da circulação simples não podia ser dis­
cutida na União Soviética. Sobre o conceito da circulação simples, ver agora também: Nadja
Rakowitz, Einfache Warenproduktion, Ideal und Ideologie. Freiburg, 2000.
7 “O dinheiro, em sua determinação última, acabada, manifesta-se, pois, sob todos os aspectos,
como uma contradição que se resolve a si mesma; que tende à sua própria resolução” (42/160
[ed. bras. Grundrisse, pp. 176-7]). E, Hegel diz. na passagem para a essência: "Porém, o su-
prassumir-se da determinação da indiferença já ocorreu; na explicitação do seu ser-posto. ela
se manifestou, em todos os seus aspectos, como uma contradição. Ela é em si a totalidade, na
qual todas as determinações do ser estão suprassumidas e contidas" (G. W. Hegel, Wissens­
chaft der Logik I. Frankfurt. 1986, p. 456). Quando, tempos depois, Marx caracterizou a sua
relação com Hegel como um coqueteio com a linguagem hegeliana, isso não só é uma subes-
timação dos fatos, mas um evidente despiste, porque se verifica uma profunda coincidência
na estruturação concepcional. Assim como todas as determinações da lógica do ser são su­
prassumidas na lógica da essência, Marx também quer mostrar que a esfera da circulação
simples se manifesta no decurso subsequente como uma abstração: "Considerada em si mes­
ma, a circulação é a mediação entre extremos pressupostos. Porém, não é ela que põe esses
extremos. Por conseguinte, sendo ela própria a totalidade da mediação, o processo total, ela
necessariamente é mediada. Por conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência. Ela é o
fenômeno de um processo que se desenrola às suas costas. Ela passa, então, a ser negada em
cada um dos seus momentos, enquanto mercadoria, enquanto dinheiro e enquanto relação
entre ambos, ou seja, enquanto troca simples entre os dois, enquanto circulação” (II.2/64).
8 A totalidade das investigações sobre as alterações de planos por parte de Marx evita esse
problema; o objeto sempre se limita à questão referente ao que deve ser atribuído a esse “con­
ceito geral”, ao “capital em geral” e ao que não pertence mais a ele.
9 Hans-Georg Backhaus, "Über den Doppelsinn der Begriffe ‘politische Ökonomie’ und ‘Kritik'
bei Marx und in der Frankfurter Schule”, em: Wolfgang Harich zum Gedächtnis. Eine
Gedenkschrift in zwei Bänden. München, 2000, vol. 2. pp. 10-213.
10 Theodor W. Adorno. "Einleitung zum ‘Positivismusstreit in der deutschen Soziologie’”, em:
GS, vol. 8, p. 296.
11 Sintetizado em grande parte em: Dialektik der Wertform, Untersuchungen zur Marxschen
Ökonomiekritik. Freiburg, 1997.
12 Josef Schumpeter, Geschichte der ökonomischen Analyse, 2 vols., ed. E. B. Schumpeter.
Göttingen, 1965, vol. 1, p. 754.
13 Schumpeter, vol. 2, p. 1.213.

20
PREFACIO

14 Klaus Hartmann, Die Marxsche Theorie. Eine philosophische Untersuchung zu den


Hauptschriften. Berlin, 1970, p. 269.
15 Não obstante, é possível encontrar formulações correspondentes, como, por exemplo, no de­
senvolvimento da denominação monetária no terceiro capítulo: “Por outro lado, é necessário
que o valor, em contraste com os variados corpos do mundo das mercadorias, desenvolva-se
nessa forma material, desprovida de conceito, mas também simplesmente social” (23/116 [ed.
bras. O capital, vol. I, p. 175]).
16 Cf. Georg Simmel, Philosophie des Geldes. Frankfurt, 1989, p. 57. “O fato de que, desse modo,
não só a análise da economia, mas a própria economia consiste, por assim dizer, numa abs­
tração real a partir da realidade abrangente dos processos de valoração” (grifo meu, H. R.).
17 Cf. a minha investigação “Die Marxsche Kritik ökonomischer Kategorien. Überlegungen zum
Problem der Geltung in der dialektischen Darstellungsmethode im Kapital”, em: Iring Fetscher,
Jürgen Ritsert, Alfred Schmidt (eds.), Emanzipation als Versöhnung. Zu Adornos Kritik der
Warentausch-Gesellschaft und Perspektiven der Transformation. Frankfurt, 2001.

21
INTRODU ÇÃ O

Quando, no ano de 1948, Roman Rosdolsky teve a oportunidade de estudar o


Rascunho de O capital pela prim eira vez, ele supôs que a publicação desse
volumoso texto inauguraria uma nova fase na pesquisa sobre a obra de Marx.
Ele não acreditava — como se pode inferir do prefácio do seu comentário ao
Rascunho1-— que esse texto fosse ter penetração num círculo mais amplo de
leitores; essa possibilidade estava excluída por causa da “forma peculiar e do
modo de se expressar, em parte difícil de entender”. Não obstante, ele estava
convicto de que, no futuro, dificilmente seria possível escrever um livro sobre
Marx sem antes ter estudado precisamente o método em O capital e sua relação
com a filosofia hegeliana: e isso, mais cedo ou mais tarde, levaria a uma acla­
ração geral de muitas questões não resolvidas na obra de Marx.
Essa expectativa era perfeitamente justificada e, pelo visto, não muito difí­
cil de cumprir-se. A análise dos problemas m etodológicos na obra tardia de
Marx na verdade nem poderia descer a um nível ainda mais baixo; a seu ver,
o que havia sido publicado até aquele momento não passava de meros lugares-
-comuns; não havia nem mesmo rudimentos de um trabalho sobre a dialética
em O capital que pudesse ser levado a sério. Pelo contrário, quando se chegava
a falar de dialética, isso acontecia somente em sentido desaprovador; não se
estava disposto a ver nela mais que um ingrediente estilístico, até porque o
próprio M arx falava apenas de um coqueteio com o modo hegeliano de se
expressar. O apreço que se tinha por Marx, em todo caso, não era por causa da
dialética. Schumpeter escreve, por exemplo: “Marx gostava muito de dar tes-

23
SO B R E A E ST RU T U RA L Ó G IC A D O C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

temunho do seu hegelianismo e de fazer uso do modo hegeliano de se expres­


sar. Mas também não passou disso. Em lugar nenhum ele traiu a ciência posi­
tiva à m etafísica”2. A essa superficialidade, como a vê Rosdolsky, o Rascunho
de O capital, de qualquer modo, poria um fim.
Entrementes o interesse foi se voltando cada vez mais para a obra tardia de
Marx, mas parece que não se chegou nem um passo mais perto da esperada
aclaração dos problemas metodológicos. O comentário redigido por Rosdolsky
tampouco mudou muita coisa nesse tocante. Embora ele diga que exatamente
o Rascunho nos mostra o quanto “a estruturação de O capital de Marx é dialé­
tica do começo ao fim”, no final das contas, isso não passa de uma asseveração.
Uma das debilidades do seu livro consiste especialm ente no fato de apenas
chamar a atenção para o uso das categorias hegelianas e, no mesmo fôlego,
reproduzir quase sem comentários passagens inteiras que se distinguem por
suas formulações de cunho altamente especulativo e, por isso mesmo, extre­
mamente carentes de interpretação. Isso suscita ao natural a pergunta se Ros­
dolsky não teria incorrido igualmente na superficialidade por ele censurada;
se — apesar de afirmar isso — ele chegou mesmo a abandonar a posição
que vê na dialética presente em O capital apenas um ingrediente estilístico que
permanece exterior ao assunto tratado. Contudo, não se pode deixar de m en­
cionar aqui que Rosdolsky tinha plena consciência da provisoriedade do seu
comentário, já que não era, como ele mesmo diz, “nem economista nem filó­
sofo ex professo”. Ele viu seu escrito meramente como contribuição para rea­
nim ar uma discussão que havia sido interrom pida por décadas e, como ele
prossegue, não teria ousado escrever um comentário se tivesse havido teóricos
mais capacitados para a tarefa.
Por mais que essa confissão de Rosdolsky deva ser valorizada como prova
de sua modéstia pessoal, a alegação de uma maior ou menor qualificação es­
pecializada não consegue convencer plenamente. Que importância poderá ter
um conhecimento especializado em economia e filosofia para a interpretação
de uma teoria que se compreendeu explicitamente como crítica dessas disci­
plinas? Não seria preciso perguntar nesse caso, muito antes, não apenas se a
atividade científica que procede com base na divisão do trabalho obstaculiza
a abordagem marxiana, mas se a relação entre a teoria marxiana e essa ciência
em seu conjunto deve ser concebida no sentido de que Marx, ao criticar o
conteúdo, critica também a forma da ciência? Nesse caso, as dificuldades que
barram o caminho da ocupação com a dialética materialista deveriam ser pro­
curadas justam ente onde Rosdolsky provavelmente não teria presumido que
estivessem: nas próprias disciplinas particulares.

24
INTRO D U ÇÃO

Essa concepção é sugerida exatam ente pelo Rascunho de O capital. Ao


passo que de O capital, caso necessário, ainda se podem extrair teoremas iso­
lados e discuti-los no horizonte da ciência especializada sem logo ser pego em
flagrante violação da totalidade da concepção, nos Grundrisse da crítica da
economia política, no Rascunho de O capital, isso não é mais possível. Neles
aparece muito mais claramente do que em O capital que o “modo hegeliano
de se expressar, difícil de compreender”, é componente integral da crítica mar-
xiana. Neles, o entrelaçamento de temas que tradicionalmente são atribuídos
à ciência econômica com uma forma de exposição desses temas orientada na
lógica hegeliana é tão estreito que se torna inviável abordar uma coisa separa­
da da outra. O conjunto da exposição do sistema econômico apresenta uma
profusão de ponderações sutis de ordem metodológica e sistemática, mas é
impossível apartar e explanar separadamente quaisquer ideias sem violar a sua
substância ou conferir-lhes a forma de dogmas. Porém, se faz parte como que
do acervo doutrinal da teoria dialética que conteúdo e forma não são exteriores
um ao outro, inversamente deve valer que a exterioridade da forma perante o
conteúdo igualmente não deixará o conteúdo intacto, que, portanto, também
nesse ponto existe uma relação essencial, ainda que sob claves negativas. Isso
significaria que, no caso da economia política criticada por Marx, desde sem­
pre já se tratou de uma ciência que — ainda antes de serem levadas a cabo
reflexões explicitamente metodológicas — pré-forma seu objeto numa dispo­
sição categorial prévia da qual ela não tem consciência, à qual pode se associar
como que sem rupturas uma forma de considerações metodológicas que cor­
responde a essa disposição prévia num sentido bem determinado; em outras
palavras: o próprio assunto de antem ão já é concebido de tal m aneira que
considerações metodológicas sempre só podem ser levadas a cabo sob a forma
de uma m etodologia enquanto considerações, portanto, que podem ser em­
preendidas independentem ente da discussão sobre o m aterial a ser concei-
tualmente elaborado. Se isso estiver correto, é de perguntar, todavia, se a posi-
tividade da ciência positiva, da qual fala Schum peter, não se deve a uma
dissociação forçada de momentos que, mediante a forma da dissociação, só
podem continuar a existir no formato de disposições precariamente metafísicas
ou então assumir a forma de uma doutrina do método tomada de empréstimo
da ciência positiva real, da ciência natural. Assim sendo, justam ente ao Ras­
cunho de O capital caberia uma posição-chave na ciência social: seria possí­
vel deduzir dele mesmo não só por que a teoria econômica é necessariamente
falha, mas também por que grande parte da crítica lançada contra a obra de
Marx de cara deve ser rejeitada como insuficiente, a saber, como crítica que

25
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

desde o começo resulta de uma posição irremediavelm ente suplantada pela


teoria marxiana.
Não se trata aqui meramente de uma nova forma de suposições especulati­
vas, o que pode ser aclarado mediante uma indicação antecipada. Se examinar­
mos com mais exatidão a obra tardia de Marx, fica evidente que o que diferencia
a crítica da economia política de toda a formulação teórica de ordem econô­
mica — inclusive da atual — é a seguinte problematização específica — assim
se poderia sintetizar a abordagem marxiana na forma de uma pergunta: O que
se oculta atrás das categorias mesmas? Qual é o teor peculiar das determinida-
des formais de cunho econômico, portanto da/orm a-m ercadoria, da form a-
-dinheiro, d a/o ra a-c ap ital, âa form a do lucro, do juro etc.? Enquanto a eco­
nomia política burguesa de modo geral se caracteriza por apreender exterior­
mente as categorias, Marx insiste numa rigorosa derivação da gênese dessas
formas — um procedimento programático que evoca de imediato a crítica de
Hegel à filosofia transcendental de Kant. Porém, só há um caminho que leva à
derivação das categorias, que é o “ir-além-de-si-mesmo imanente”, como diz
Hegel — e esse é o método dialético em O capital. Assim sendo — para esco­
lher um exemplo — , a teoria marxiana do preço não deve ser concebida como
teoria do preço no sentido tradicional; Marx se ocupa tão somente com a deri­
vação da própria forma do preço, uma forma que tem a sua finalização lógica
na denominação monetária. Na análise marxiana das categorias, essa forma se
apresenta, por sua vez, como condição da possibilidade daquilo que comumente
se quer dizer com teoria do preço. Mas, se a teoria marxiana não for apreendi­
da desse ponto de vista, se, portanto — permanecendo no nosso exemplo — ,
não se perceber que a teoria marxiana do valor leva à derivação dessa forma,
isso im plica não só que não está sendo percebida a especificidade da teoria
marxiana, mas sim ultaneam ente tam bém que o próprio intérprete de Marx
ainda assume a posição que Marx já deixou para trás: o teórico decididamente
continua a defrontar-se perplexo com a/o m a-d in h eiro , uma postura que, por
seu turno, é caracterizada pelo fato de que, na ciência econômica, reinam ape­
nas noções obscuras sobre o significado e a finalidade de uma teoria do valor.
Apenas mencionaremos aqui que a teoria dos modelos e a metodologia pres­
supõem a parentesiação previamente efetuada desses assuntos e igualmente se
detêm diante das categorias como realidade última, não derivável.
E possível abordar essa temática ainda por outro aspecto. Não se pretende
deixar de mencionar aqui que a formulação do problema deste trabalho é par­
cialm ente convergente com a daquele que é objeto de persistente discussão
entre os representantes da Teoria Crítica e os representantes da ciência social

26
INTRODUÇÃO

positivista, a saber, a pré-form ação do conhecim ento do sujeito que reflete


sobre o social, uma pré-formação constitutiva do objeto, ela própria já social­
mente condicionada — um dado que se expressa na exigência de repetir a crí­
tica feita por Hegel a Kant no plano da ciência social. Contudo, um estudo mais
preciso da forma dialética de exposição das categorias enseja a pergunta se
esse procedimento programático já não foi levado a cabo materialiter por Marx,
a saber, como crítica da ciência de um sujeito, para o qual o seu próprio mun­
do, o mundo produzido por ele próprio, só se apresenta sob uma forma — a do
objeto. Isso, porém, é uma das formas do positivismo que tanto o jovem Marx
rastreia na forma do idealismo hegeliano, como o Marx maduro desvenda no
procedimento adotado pela economia política burguesa, ao assumir as catego­
rias de modo exterior a partir da empiria. Por essa razão, a exposição dialética
das categorias deve ser analisada sob dois pontos de vista: por um lado, crítica
e derivação da forma da consciência a-histórica do sujeito burguês; por outro
lado, reconstituição da gênese desse sujeito mesmo, enquanto exposição de um
processo de constituição similar ao natural sob a forma de uma capa de obje­
tividade social que esse sujeito apenas continua arrastando consigo, mas que,
ao mesmo tempo, ainda é produzida por esse sujeito justam ente na forma da
capa, da autonomização frente ao sujeito. Em vista desse conceito de objetivi­
dade social, como implicado pela exposição categorial, e do fato de a Teoria
Crítica até hoje não ter aportado nada de essencial para aclarar a dialética em
O capital, parece justificar-se a pergunta se as ideias propostas pela Teoria
Crítica sobre a relação entre teoria e práxis não continuariam igualmente ex­
postas à crítica marxiana. Em outras palavras: não seria talvez característico
da própria Teoria Crítica conseguir formular a teoria dialética apenas como
program a e, na investigação material da sociedade capitalista (e também na
recepção da obra tardia de Marx), assumir simultaneamente uma posição que
Marx criticou como a do positivismo opaco para si mesmo? De acordo com a
autocompreensão marxiana, O capital enquanto exposição do “conceito geral
do capital” não é só a primeira ciência positiva real do capitalismo, no sentido
de que pela primeira vez se oferece um conhecimento indissimulado sobre ele,
mas possui validade enquanto existir o objeto exposto nessa forma específica.
Nesse caso, trata-se — assim se deve concluir — da teoria de um processo que
vai proliferando de modo similar a um processo natural, no qual os seres hu­
manos, como de praxe, são levados de roldão pela logicidade imanente de suas
relações sociais — ainda produzidas por eles próprios na forma da autonomi­
zação — , mas depois de Marx sempre têm também a possibilidade, quando

27
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

não de emancipar-se de imediato dessa forma de subsunção, certamente de


obter clareza sobre ela pela via científica.
Analisar a teoria marxiana por esse ponto de vista será a tarefa da pesquisa
futura que deverá orientar-se especialmente na diferenciação feita por Marx
entre o “conceito geral do capital” e a exposição — posta explicitamente entre
parênteses por Marx — da concorrência real e, portanto, do capitalismo exis­
tente. Só quando houver clareza sobre o sentido dessa diferenciação, o qual só
será desvendado pela via da reconstituição detalhada da exposição dialética
das categorias e da discussão das implicações dessa forma de exposição, será
possível manifestar-se de modo definitivo sobre o método marxiano e sua ap­
tidão para a análise do capitalismo atual. No presente trabalho, trata-se apenas
da tentativa de reconstituir uma parte da exposição categorial; ele se entende
como aporte provisório para uma nova discussão sobre a obra de Marx, que foi
inaugurada pelos trabalhos de Alfred Schmidt e Hans-Georg Backhaus, em
especial por sua investigação Sobre a dialética da form a de valor3.
Este trabalho, fomentado gentilmente pela Fundação Friedrich Ebert, foi
apresentado como dissertação à Faculdade de Economia e Ciência Social da
Universidade Johann Wolfgang Goethe de Frankfurt.

Notas
1 Cf. Roman Rosdolsky, Zur Entstehungsgeschichte des Marxschen “Kapital”. Frankfurt, 1968,
vol. 1, pp. 7 e ss.
2 Apud Rosdolsky, cit., p. 8.
3 Hans-Georg Backhaus, “Zur Dialektik der Wertform”, em: Dialektik der Wertform. Untersu-
chungen zur Marxschen Õkonomiekritik. Freiburg, 1997, pp. 41 e ss.

28
C A P ÍT U L O 1

A CO N CE PÇ Ã O MATERIALISTA DE HIS TÓ RIA


NA OBRA INICIAL DE MARX

A crítica hegeliana aos sistemas de direito natural modernos contém uma acu­
sação específica: a de confundir e trocar Estado e sociedade. Diante disso,
Hegel insiste numa separação explícita. No § 182 da Filosofia do direito, consta
o seguinte:

Aliás, a criação da sociedade civil burguesa faz parte do mundo moderno, o primei­
ro a fazer jus a todas as determinações da ideia. Quando o Estado é apresentado como
unidade de pessoas distintas, como unidade que se limita ao interesse comum, tem-se
em mente apenas a determinação da sociedade civil burguesa. Muitos dos professores
de direito público não lograram ir além dessa visão do Estado*.

De fato, entre as peculiaridades da filosofia política da Era Moderna figura


esta: no que se refere à relação entre Estado e sociedade, ela mostra uma es­
tranha falta de consciência. Embora essa separação se reflita em suas formu­
lações antitéticas, na contraposição de direito natural e ciência política, de
moral e política, ela não é explicitamente constatada. Pelo contrário, segundo
o modelo da Politeia [República] de Platão e da Política de Aristóteles, o Es­
tado é concebido como comunidade de cidadãos e esta é equiparada diretamente
com a sociedade civil. Essa identificação pode ser encontrada ainda na M eta­

* Essa passagem faz parte do adendo ao § 182, não constando, portanto, da tradução oferecida
em: G. W. F. Hegel, Linhas fundamentais da filosofia do direito ou direito natural e ciência
do Estado em compêndio. Trad. Paulo Meneses et al. São Leopoldo, Unisinos, 2010. (N. do T.)

29
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

física dos costumes, de Kant: “Os membros dessa sociedade que se acham
unidos para legislar (societas civilis), ou seja, os membros de um Estado, são
chamados de cidadãos (eives)”* (cf. § 45). Hegel foi o primeiro a conferir à
expressão “sociedade civil” um sentido especificamente social, e a formulação
na Filosofia do direito é condicionada de modo determinante pela elaboração
conceituai explicitamente efetuada da dissociação de Estado e sociedade. A
separação própria do direito natural entre ser humano e cidadão, na forma como
embasa as declarações dos direitos do homem e do cidadão das revoluções
norte-americana e francesa, não é mais mantida nessa forma. Para Hegel, não
existe o ser humano em si conforme o direito natural; desde sempre, ele já é
um ser de carecimento e, como tal, reproduz-se na sociedade civil burguesa;
ele exerce sua atividade como ser humano privado, como cidadão ou, conforme
o com plem ento em francês, como bourgeois [burguês]. Ao mesmo tempo,
porém, ele é esse cidadão-burguês também como membro da comunidade po­
lítica, como Hegel observa já na Filosofia real de lena : “Ele próprio provê o
sustento para si e sua família, trabalha, firma contratos etc. e do mesmo modo
trabalha também para a universalidade, tendo esta como fim. Conforme o pri­
meiro aspecto, ele é chamado de bourgeois, conforme o segundo, de citoyen”1.
Essa duplicidade peculiar dos seres humanos modernos, expressa enquan­
to tal pela primeira vez por Hegel, foi decifrada pelo jovem Marx, que, após a
sua controvérsia com a Allgemeine Augsburger Zeitung, se dedicou, num pri­
meiro momento, à Filosofia do direito de Hegel, como o centro propriamente
dito dessa filosofia do direito e caracterizada expressamente como duplicação.
No comentário ao § 304, consta o seguinte: “Enquanto a organização da socie­
dade civil era política ou o Estado político era a sociedade civil, ainda não
havia essa separação e duplicação de significado dos estamentos” (1/286 [ed.
bras. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 99]**). E no tratado Sobre a
questão judaica, no qual essa separação entre o idealista do Estado e o membro
da sociedade civil ocupa o centro, encontramos igualmente esse modo de ex­
pressar-se;

Onde o Estado político atingiu a sua verdadeira forma definitiva, o homem leva uma
vida dupla não só mentalmente, na consciência, mas também na realidade, na vida
concreta', ele leva uma vida celestial e uma vida terrena, a vida na comunidade política,

* Cit. consta no § 46 de I. Kant, A metafísica dos costumes. Trad. Edson Bini. 2. ed. rev. Bauru,
Edipro, 2008, p. 156. (N. do T.)
** Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. R.
Enderle e Leonardo de Deus. São Paulo, Boitempo, 2005. (N. do T.)

30
A C O N C E P Ç Ã O M A T E R IA L IS T A D E H IS T O R IA NA O BRA IN IC IA L D E M A R X

na qual ele se considera um ente comunitário, e a vida na sociedade burguesa, na qual


ele atua como pessoa particular. (1/354-5 [ed. bras. Sobre a questão judaica, p. 40]*)

Deixaremos de reproduzir aqui a crítica de M arx a Hegel assim como a


argumentação utilizada em Sobre a questão judaica', essencial para o nosso
contexto é, muito antes, a constatação de que, no que se refere à articulação da
relação entre Estado e sociedade, Marx parte do que havia de mais avançado
na consciência do seu tempo, mas ao mesmo tempo vai decisivamente além
déla. Em A crítica do direito do Estado de Hegel**, Marx diz o seguinte:

A separação da sociedade civil e do Estado político aparece necessariamente como


uma separação entre o cidadão político, o cidadão do Estado, e a sociedade civil, a sua
própria realidade empírica, efetiva, pois como idealista do Estado ele é um ser totalmen­
te diferente de sua realidade, um ser distinto, diverso, oposto. A sociedade civil realiza,
aqui, dentro de si mesma, a relação entre Estado e sociedade civil. (1/281-2 [ed. bras.
Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 95])

A última frase permite deduzir claramente que a forma da duplicação deve


ser derivada da própria estrutura da sociedade civil, o que dá a entender também
o último parágrafo da primeira parte de Sobre a questão judaica:

Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o homem indi­


vidual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se tornado ente genérico na
qualidade de homem individual na sua vida empírica, no seu trabalho individual, ñas
suas relações individuais, quando o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces
propes” [forças próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de
si mesmo a força social na forma de força política. (1/370 [ed. bras. Sobre a questão
judaica, p. 54])

Nessas formulações se oculta a ruptura radical com toda e qualquer teoria


burguesa, como adiante ainda mostraremos mais precisamente. Marx concor­
da com Hegel em que o Estado só se tomará realmente Estado quando aparecer
como Estado da sociedade civil, ou seja, quando assumir a forma do Estado

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Sobre a questão judaica. Trad. Nélio Schneider.
São Paulo, Boitempo, 2010. (N. do T.)
** No original: Kritik des Hegelschen Staatsrechts, o primeiro subtítulo posto pelo editor à
obra Zur Kritik der Hegelschen Rechtsphilosophie [Critica da filosofia do direito de Hegel}.
(N. do T.)

31
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

político ao lado e independentem ente da sociedade civil, permitindo, desse


modo, que também a sociedade apareça como sociedade. No desenvolvimento
histórico, a gênese de ambos aparece como simultânea, “a realização plena
do idealismo do Estado representou concomitantemente a realização plena do
m aterialism o da sociedade burguesa. O ato de sacudir de si o jugo político
representou concomitantemente sacudir de si as amarras que prendiam o espí­
rito egoísta da sociedade burguesa” (1/369 [ed. bras. Sobre a questão judaica,
p. 52]). Contudo, em contraposição a toda teoria burguesa, que por ser burgue­
sa se caracteriza justam ente por não dar o próximo passo, Marx insiste em que
a derivação da forma do Estado político, do Estado que existe como Estado,
ou seja, a forma da separação entre a existência política do cidadão e a sua
existência como membro da sociedade civil, deve resultar da atividade do pró­
prio cidadão. E a partir da forma bem determinada da atividade que deve ser
desenvolvida a duplicação do ser humano em bourgeois e citoyen.
Na medida em que se trata da estrutura formal dessa problemática, não só
voltaremos a deparar-nos com ela na nossa análise subsequente da crítica da
economia política como motivo central da teoria do dinheiro, na condição de
exigência de derivar a forma-dinheiro da forma-mercadoria, de compreender
o dinheiro como a duplicação da mercadoria em m ercadoria e dinheiro, mas
ela também coincide com a crítica da religião ou então com a crítica da filoso­
fia, que, por certo, “nada mais é que a religião posta em pensamento e expli­
citada reflexivamente” (40/62 [ed. bras. M anuscritos económico-filosóficos,
p. 117 modif.]*). No escrito Crítica da filosofia do direito de Hegel — Introdu­
ção, consta o seguinte:

É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem fa z a religião, a religião não faz


o homem. [...] Mas o homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem
é o mundo do homem, Estado, sociedade. Esse Estado e essa sociedade produzem a
religião, uma consciência distorcida do mundo, porque eles são um mundo distorcido.
(1/378 [ed. bras. Crítica da filosofia do direito de Hegel, p. 145]**)

Nisso está sintetizada a crítica de Feuerbach à religião e simultaneamente a


crítica de Marx a Feuerbach. Feuerbach decifra a forma da consciência reli-

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Manuscritos económico-filosóficos. Trad. Jesus


Ranieri. São Paulo, Boitempo, 2004. (N. do T.)
** Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, “Crítica da filosofia do direito de Hegel — In­
trodução”, em: Crítica da filosofia do direito de Hegel. Trad. R. Enderle e Leonardo de Deus.
São Paulo, Boitempo, 2005, pp. 145-56. (N. do T.)

32
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

giosa como produto do próprio ser humano, mas não prossegue derivando essa
forma mesma da estrutura do mundo do ser humano. Algum tempo depois,
Marx diria:

Feuerbach parte do fato da autoalienação religiosa, da duplicação do mundo num


mundo religioso e num mundo mundano. Seu trabalho consiste em dissolver o mundo
religioso em seu fundamento mundano. Mas que o fundamento mundano se destaque
de si mesmo e construa para si um reino autônomo nas nuvens pode ser esclarecido
apenas a partir do autoesfacelamento e do contradizer-a-si-mesmo desse fundamento
mundano. (3/6 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 534]*)

Também nesse ponto, ao fazer questão da derivação da forma mesma, Marx


se diferencia da consciência teórica mais avançada do seu tempo, que é como se
apresenta a ele a crítica de Feuerbach à religião. Nesse caso, é questão secun­
dária saber qual o conteúdo com que a consciência religiosa possa estar ocu­
pada; a única coisa essencial é a forma da própria consciência religiosa, e essa
é, para Marx, uma forma de manifestação do mundo distorcido. A distorção
se torna manifesta na própria forma; do mesmo modo que a forma do Estado
político se origina de um mundo em que as relações individuais dos próprios
seres humanos se distorceram. Nos dois casos, a forma é expressão de uma
distorção central da qual ela procede para superar essa distorção no seu próprio
terreno:

A relação entre o Estado político e a sociedade burguesa é tão espiritualista quanto


a relação entre o céu e a terra. A antítese entre os dois é a mesma, e o Estado político a
supera da mesma maneira que a religião supera a limitação do mundo profano [...]. A
contradição que se interpõe entre o homem religioso e o homem político é a mesma que
existe entre [o bourgeois e o citoyen, entre]** o membro da sociedade burguesa e sua pele
de leão política. (1/355 [ed. bras. Sobre a questão judaica, pp. 40-1])

Dessas primeiras formulações da relação entre base, superestrutura e ideo­


logia, da relação entre ser e consciência, ainda é possível depreender explici­
tamente o que não decorre mais tão diretamente do famoso Prefácio à crítica
da economia política: que as demais formas devem ser derivadas da estrutura

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, “Ad Feuerbach (1845)”, em: K. Marx e F. Engels,
A ideologia alemã. Trad. R. Enderle, N. Schneider e L. Martorano. São Paulo, Boitempo, 2007,
pp. 533-6. (N. do T.)
** Parte da citação omitida pelo autor provavelmente por acidente. (N. do T.)

33
SO B R E A EST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

da própria base como necessariam ente oriundas dessa base. O jovem Marx
formularia isso mais ou menos assim: o ser humano individual não constitui
também um ser genérico em suas relações empíricas, mas chega a distorcer
esse mesmo ser genérico em meio à sua vida individual, razão pela qual inclu­
sive o ser humano comunitário necessariamente aparece de forma distorcida.
O antigo e rigoroso conceito da base refere-se expressamente a esse caráter
distorcido da existência sensível-individual do ser humano, a partir do qual
devem ser explicitadas todas as demais formas dessa distorção.
Mas o que significa distorção da existência sensível-individual do ser hu­
mano? As primeiras indicações mais precisas se encontram em Sobre a ques­
tão judaica'.

O que na religião judaica se encontra de modo abstrato, o desprezo pela teoria, pela
arte, pela história, pelo homem como fim em si mesmo, constitui a perspectiva cons­
ciente e real, a virtude do homem do dinheiro. A própria relação de gênero, a relação
entre homem e mulher etc. torna-se um objeto de comércio! A mulher é negociada. [...]
O dinheiro é o valor universal de todas as coisas, constituído em função de si mesmo.
Em consequência, ele despojou o mundo inteiro, tanto o mundo humano quanto a natu­
reza, de seu valor singular e próprio. O dinheiro é a essência do trabalho e da existência
humanos, alienada do homem; essa essência estranha a ele o domina e ele a cultua. (1/375
[ed. bras. Sobre a questão judaica, p. 58])

A exposição exata dessa ideia é O capital, como ainda veremos. O que Marx
tem em vista aqui, ele caracterizaria mais tarde, no Rascunho de O capital,
como “capital existente para si”, e em O capital como personificação de cate­
gorias econômicas. Em Sobre a questão judaica, ao contrário, isso não passa
de um indício, que, como indício, no entanto, só pode ser decifrado sobre o
pano de fundo da obra tardia. Por essa razão, queremos aplicar mais uma vez
à própria obra de Marx a sua indicação m etodológica quanto à elaboração
conceituai de formações sociais mais antigas — que a anatomia do ser hum a­
no é a chave para a anatomia do macaco, “que os indícios de formas superiores
nas espécies animais inferiores só podem ser compreendidos quando a própria
forma superior já é conhecida. Do mesmo modo, a economia burguesa fornece
a chave da economia antiga etc.” (42/39 [ed. bras. Grundrisse, p. 58]) — e in­
terpreta as formulações anteriores a partir da perspectiva da obra tardia.
Sob esse aspecto queremos voltar nossa atenção para o primeiro ensaio de
exposição sistemática do “fundamento mundano autoesfacelado e autocontra-
ditório”, da distorção da existência sensível-individual enquanto fundamento

34
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

de toda duplicação: para os M anuscritos económico-filosóficos. A linha de


pensamento desse escrito, que de modo geral é tida como obscura e difícil,
pode ser perfeitamente compreendida como formulação transparente se pon­
d eram o s que, naquela época, Marx ainda não havia desenvolvido o aparato
categorial com cujo auxílio a distorção pudesse ser apreendida adequadamente
como distorção; ao mesmo tempo, porém, ele determina que as categorias da
economia nacional burguesa não se prestam para esse empreendimento, visto
que essa ciência de saída já se move no contexto do estranhamento e, por essa
razão, não pode fazer jus à peculiaridade do mundo distorcido.

A economia nacional parte do fato da propriedade privada. Ela não nos explica esse
fato. [...]. A economia nacional não nos dá esclarecimento algum a respeito da razão da
divisão entre trabalho e capital, entre capital e terra. Quando ela, por exemplo, determina
a relação do salário com o lucro do capital, o que lhe vale como razão última é o inte­
resse do capitalista; ou seja, ela supõe o que deve explicitar. Do mesmo modo, a con­
corrência entra por toda parte. Ela é explicada a partir de circunstâncias exteriores. A
economia nacional nada nos ensina sobre até que ponto essas circunstâncias exteriores,
aparentem ente casuais, são apenas a expressão de um desenvolvimento necessário.
(40/510 [ed. bras. M anuscritos económico-filosóficos, p. 79 modif.])

Quando nos ocuparmos com a obra posterior, veremos que nessas sentenças
se encontram resumidos os motivos centrais da crítica da economia política.
O modo arbitrário de tratar da concorrência e a aceitação superficial de cate­
gorias previam ente dadas se apresentam já ao jovem Marx como modo de
proceder necessário de uma ciência que, em sua essência, como que deixou
de ser capaz de perceber a forma social da distorção enquanto tal. É por isso
que, na fase inicial, Marx não desenvolve a distorção mesma sob a forma de
uma exposição crítica das categorias, mas procura apreendê-la diretamente
como aquilo que ela é: uma forma distorcida da apropriação da natureza.
Nos Manuscritos econômico-filosóficos, Marx compreende, pela primeira
vez, o metabolismo humano com a natureza como uma dialética de sujeito e
objeto no interior da totalidade da natureza, na qual os dois poios — a hum a­
nidade de um lado, a natureza de outro — são mediados um pelo outro, mas
não se dissolvem nessa mediação.

A natureza é o corpo inorgânico do ser humano, a saber, a natureza enquanto ela


mesma não é corpo humano. O ser humano vive da natureza significa: a natureza é seu
corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida

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SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

física e mental do ser humano está interconectada com a natureza não tem outro sentido
senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o ser humano é uma
parte da natureza. (40/516 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 84 modif.])

A contraposição dos dois momentos e, ao mesmo tempo, a sua simultânea


mediação devem-se ao trabalho humano, mediante o qual essa unidade do ser
humano com a natureza se apresenta numa forma diferente em cada caso. Por
meio do seu trabalho, o ser humano transform a a natureza exterior, confor­
mando-a consigo mesmo, num ato que acarreta mudanças no próprio sujeito.
A humanização da natureza por meio da apropriação ativa corresponde uma
mudança do sujeito, que só nesse processo de confrontação com a natureza
chega a desenvolver as suas qualidades humanas. A atividade histórico-mundial
das gerações passadas sedimenta-se, em cada caso, num determinado grau de
desenvolvimento das forças produtivas, de modo que Marx com razão aponta
que “a atividade social e a fruição* social de modo algum existem u n ic a m e n te
na forma de uma atividade im ed ia ta m en te comunitária”, mas cada atividade já
é pré-form ada quanto à forma e ao conteúdo pela totalidade do trabalho da
humanidade histórica. “Não apenas o material da minha atividade — como a
própria língua na qual o pensador é ativo — me é dado como produto social,
a minha p ró p ria existência é atividade social” (40/538 [ed. bras. M a n u sc rito s
e c o n ó m ico -filo só fico s, p. 107])2. Por conseguinte, o que quer que o indivíduo
faça, sempre já se trata de uma determinada síntese dentro desse gigantesco
processo, no qual a natureza, por assim dizer, faz a mediação consigo mesma,
mas simultaneamente — e nisso a concepção marxiana se diferencia de todo
materialismo que simplesmente substitui o Espírito Absoluto pela palavra “ma­
téria” ou “cosmo” — esse processo não só constitui a mediação da natureza
consigo mesma, mas o devir da natureza para o ser humano, a autoprodução
do ser humano. “Mas, na medida em que, para o ser humano socialista, toda
a assim d en o m in a d a h istó ria m u n d ia l nada mais é que o engendramento do ser
humano mediante o trabalho humano, o devir da natureza para o ser humano,
ele tem nela, portanto, a prova explícita, irresistível, do seu n a sc im e n to por
meio de si mesmo, do seu p ro c e sso de g ê n e se ' ’ (40/546 [ed. bras. M a n u sc rito s
e c o n ó m ic o -filo só fic o s, p. 114 modif.]). O fato de M arx falar do ser humano
socialista nesse contexto de modo algum é casual. Reflete-se nisso que Marx
compreende até mesmo a sua própria concepção como resultado desse proces-

* C orreção de G eist = espírito, para Genuss = fruição, conform e o texto original de Marx.
(N. doT .)

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A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

so, um processo que só descortina a sua própria estrutura num determinado


estágio do desenvolvimento. Pois a apropriação ativa da natureza pelo ser hu­
mano se efetua sob forma estranhada, a unidade sempre cambiante de sujeito
e objeto no interior da totalidade da natureza é uma identidade rompida, dis­
torcida, do ser humano com a natureza, que pode ser reconhecida como tal só
em seu ponto de culminação, numa forma não mais superável da distorção.
Somente agora, através da mais extrema das formas do estranhamento, é pos­
sível apreender e conhecer o estranhamento enquanto estranhamento, é possí­
vel apreender e conhecer que a história até agora foi o processo de constituição
do próprio ser humano, processo que decorreu de modo similar ao natural; esse
ser humano só se constituiu como ser humano sob a forma de um comporta­
mento distorcido para com a natureza. O ponto de culminação dessa distorção
é explicitado por Marx nos Manuscritos económico-filosóficos sob o conceito
do trabalho estranhado e de um correlato que ele expõe como personificação
das condições autonomizadas da produção. Sem se deixar impressionar pela
derivação burguesa da propriedade, na maioria das vezes baseada no modelo
de Locke, sobre cujo caráter peculiar oriundo da aparência da esfera da circu­
lação ele, naquela época, ainda não podia ter clareza, M arx tenta captar de
modo imediato a essência do processo capitalista em seu todo. Ele parte de um
“fato atual, próprio da economia nacional”, a saber, do fato de que, no ato de
apropriação da natureza, o ser humano concomítantemente coproduz uma for­
ma de reprodução, na qual o sujeito se converte em objeto, o ser humano ativo
que produz essas estruturas é dominado por esse produto gerado por ele próprio
e se submete à logicidade deste. Porém, como captar sucintamente esse pro­
cesso, cuja exposição exata alguns anos mais tarde levou a uma volumosa obra,
se a linguagem da economia nacional não se presta para isso? Marx soluciona
esse problema confrontando esse processo com a “propriedade verdadeiramen­
te hum ana”, descrevendo-o como o oposto da relação essencial entre o ser
humano e sua natureza inorgânica, como distorção da relação condicionada
pela natureza —- independentemente de como ela seja mediada — entre a exis­
tência subjetiva e sua continuidade objetiva, compreendendo, portanto, a pró­
pria realidade capitalista como duas estruturas que se refletem uma na outra de
modo grotesco.

Esse fato nada mais exprime, senão isto: o objeto que o trabalho produz, o seu pro­
duto, se lhe defronta como um ser estranho, como um poder independente do produtor.
O produto do trabalho é o trabalho que se fixou num objeto, fez-se coisa, é a objetivação
do trabalho. A efetivação do trabalho é a sua objetivação. Essa efetivação do trabalho

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SO B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

manifesta-se, no estado da economia nacional, como desefetivação do trabalhador, a


objetivação m anifesta-se como perda do objeto e servidão ao objeto, a apropriação
manifesta-se como estranhamento, como alienação. (40/511-2 [ed. bras. M anuscritos
econômico-filosóficos, p. 80 modif.])

Com isso se tem em mente mecanismos bem concretos: Marx tem em vis­
ta aqui os seguintes fatos: o trabalhador — que desde sempre já é compreen­
dido como trabalhador por excelência, como o ser humano sob a forma de
trabalhador assalariado — de modo algum vai enriquecendo à m edida que
cresce a força produtiva do seu trabalho, mas, pelo contrário, o valor da sua
força de trabalho diminui à medida que a produtividade aumenta; a maior di­
ferenciação do produto é acompanhada da crescente unilateralidade da ativi­
dade; o trabalhador inclusive coproduz o mecanismo da crise e, por essa via,
transforma o próprio trabalho em objeto, do qual ele consegue se “apoderar só
com extremo esforço e com as mais irregulares interrupções” . O mundo, no
qual vive o ser humano e que de fato só pode ser o mundo do próprio ser hu­
mano, evidencia-se no plano imediato como o oposto daquilo que é alcançado
no processo da confrontação com a natureza. Sendo parte da natureza, o ser
humano é remetido a ela no ato de sua apropriação e ela se oferece de modo
cada vez mais diversificado. No entanto, quanto mais a natureza se tom a aces­
sível ao ser humano através do seu trabalho, tanto mais ela se fecha. É esse
paradoxo da realidade que Marx tem em mente com o conceito da objetivação,
que é simultaneamente perda do objeto, da apropriação, que é simultaneamente
estranhamento.

Examinemos agora, mais de perto, a objetivação, a produção do trabalhador e, nela,


o estranhamento, a perda do objeto, do seu produto.
O trabalhador nada pode criar sem a natureza, sem o mundo exterior sensível. Este
é a matéria na qual o seu trabalho se efetiva, na qual seu trabalho é ativo, a partir da
qual e por meio da qual o trabalho produz.
Mas como a natureza oferece os meios cle vida do trabalho, no sentido de que o
trabalho não pode viver sem os objetos em que é exercido, assim ela também oferece,
por outro lado, os meios de vida no sentido mais estrito, isto é, o meio de subsistência
física do próprio trabalhador.
Portanto, quanto mais o trabalhador se apropria do mundo exterior, da natureza
sensível, por meio do trabalho, tanto mais ele se priva dos meios de vida segundo um
duplo sentido: primeiro, no sentido de que o mundo exterior sensível cada vez mais
deixa de ser um objeto pertencente ao seu trabalho, um meio de vida do seu trabalho;

38
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

segundo, no sentido de que cada vez mais ele deixa de ser um meio de vida no sentido
imediato, um meio para a subsistência física do trabalhador.
Segundo esse duplo aspecto, o trabalhador se torna, portanto, um servo do seu ob­
jeto. Primeiro, porque ele recebe um objeto do trabalho, isto é, recebe trabalho-, e, se­
gundo, porque recebe meios de subsistência. Portanto, para que ele possa existir, em
primeiro lugar, como trabalhador e, em segundo lugar, como sujeito físico. O auge
dessa servidão é que só como trabalhador ele pode continuar se mantendo como sujei­
to físico e só como sujeito físico ele pode continuar a ser trabalhador. (40/512-3 [ed. bras.
M anuscritos econômico-filosóficos, pp. 81-2 modif.])

A conexão natural entre a existência subjetiva e sua continuação objetiva


só é, por assim dizer, ainda levada de arrasto, rebaixada a penduricalho do
mundo que se tomou independente, estranhado do sujeito ativo e, não obstante,
produzido por ele mesmo nessa forma do estranhamento.
Mas isso ainda não encerra a questão.

Até aqui examinamos o estranhamento, a exteriorização do trabalhador sob apenas


um dos seus aspectos, qual seja, a sua relação com os produtos do seu trabalho. Porém,
o estranhamento não se mostra somente no resultado, mas também no ato da produção,
dentro da própria atividade produtiva. Como poderia o trabalhador defrontar-se como
estranho com o produto de sua atividade, se no ato mesmo da produção ele não se es­
tranhasse a si mesmo? Pois o produto é somente o resumo da atividade, da produção.
Portanto, se o produto do trabalho é a exteriorização, então a própria produção tem de
ser a exteriorização ativa, a exteriorização da atividade, a atividade da exteriorização.
No estranhamento do objeto do trabalho, resume-se somente o estranhamento, a exte­
riorização na própria atividade do trabalho. (40/514 [ed. bras. M anuscritos econômico-
-filosóficos, p. 82 modif.])

A distorção também se manifesta no fato de que a atividade pela qual o ser


humano chega a tornar-se ser humano, o trabalho, pelo qual ele se diferencia
do animal, evidencia-se justam ente como o meio para constantemente voltar a
anular essa diferença. O ser humano se relaciona com a sua mais essencial
manifestação de vida como se fosse algo exterior a ele; o próprio trabalho, a
sua essência propriamente dita, não é, para ele, a satisfação de uma necessida­
de, mas apenas um meio para satisfazer necessidades distintas desse trabalho.
O caráter exterior e estranho do trabalho “evidencia-se de forma pura no fato”
de que se foge do trabalho como da peste no momento em que não existe coer­
ção física.

39
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

O trabalhador só se sente, por conseguinte, junto a si quando está fora do trabalho


e fora de si quando está no trabalho. Ele está em casa quando não trabalha e quando
trabalha não está em casa. [...]. Chega-se, por conseguinte, ao resultado de que o ser
humano (o trabalhador) só se sente ainda livre e ativo em suas funções animais, comer,
beber e procriar, quando muito ainda habitação, adornos etc., e em suas funções huma­
nas só se sente ainda como animal. O animal se torna humano e o humano, animal. É
verdade que comer, beber e procriar etc. também são funções genuinamente humanas.
Porém, na abstração que as separa da esfera restante da atividade humana e faz delas
atividades últimas e exclusivas, são funções animais. (40/514-5 [ed. bras. Manuscritos
económico-filosóficos, p. 83 modif.])

Portanto, não só no processam ento da natureza esta ainda resiste ao ser


humano, mas também o trabalho pelo qual é produzida essa grotesca distorção
é contrário em si mesmo: ao produzir a si mesmo pelo trabalho, o ser humano
se relaciona com ele como uma “atividade voltada contra ele mesmo, indepen­
dente dele, não pertencente a ele. É o estranhamento de si, tal qual acima o
estranhamento da coisa” (40/515 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos,
p. 83 modif.]).
Essa descrição do nexo natural distorcido entre a existência subjetiva ativa
e a continuação objetiva é com plem entada pela derivação da propriedade
privada.

Partimos de um fato da economia nacional, do estranhamento do trabalhador e de


sua produção. Enunciamos o conceito desse fato: o trabalho estranhado, exteriorizado.
Analisamos esse conceito; analisamos, portanto, apenas um fato da economia nacional.
Continuemos agora a observar como tem de se enunciar e apresentar, na realidade, esse
conceito do trabalho estranhado, exteriorizado. (40/518 [ed. bras. Manuscritos econó­
mico-filosóficos, p. 86 modif.])

As duas determinações remetem para um complemento dentro do contexto


global do mundo distorcido, a saber, para uma forma do complemento que se
apresenta quase como um correlato espelhado do estranhamento do produto e
do estranham ento de si. “Se o produto do trabalho me é estranho, se ele se
defronta comigo como poder estranho, a quem pertence então? Se a minha
própria atividade não me pertence, sendo uma atividade estranha, forçada, a
quem ela pertence então? A outro ser que não eu. Quem é esse ser?” (40/518
[ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 86 modif.]). Serão os deuses?,
pergunta Marx, referindo-se a um motivo que se impôs a ele na análise da
exteriorização, a saber, a religião como paralelo da estrutura da apropriação

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A C O N C E P Ç Ã O M A T E R IA L IS T A D E H IS T O R IA NA O BRA IN IC IA L D E M A R X

distorcida da natureza. “É do mesmo modo na religião. Quanto mais o ser hu­


mano transfere para Deus, tanto menos ele retém em si mesmo. O trabalhador
deposita a sua vida no objeto, mas agora ela não pertence mais a ele, e sim ao
objeto. Portanto, quanto maior essa atividade, tanto mais irrelevante o traba­
lhador" (40/512 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 81 modif.]).
Porém, a pergunta é de cunho apenas retórico, pois os deuses jamais poderão
entrar em cena como patrões, assim como tampouco a natureza o pode.

E que contradição seria também se, quanto mais o ser humano subjugasse a nature­
za pelo seu trabalho, quanto mais os prodígios dos deuses se tornassem supérfluos
mediante os prodígios da indústria, [tanto mais] o ser humano tivesse de renunciar à
alegria e à fruição da produção por amor a esses poderes. (40/518 [ed. bras. Manuscritos
económico-filosóficos, p. 86 modif.])

A resposta correta tem o seguinte teor:

O ser estranho ao qual pertence o trabalho e o produto do trabalho, a cujo serviço


está o trabalho e para cuja fruição se destina o produto do trabalho, só pode ser o próprio
ser humano. Se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, se um poder estranho
se defronta com ele, então isso só é possível porque o produto do trabalho pertence a
outro ser humano fora o trabalhador. Se a sua atividade lhe é martírio, então ela tem de
ser fruição para outro e alegria de viver para outro. Não os deuses, nem a natureza,
apenas o ser humano mesmo pode ser esse poder estranho sobre o ser humano. [...]. Se
ele se relaciona, portanto, com o produto do seu trabalho, com o seu trabalho objetivado,
como se fosse um objeto estranho, hostil, poderoso, independente dele, então se rela­
ciona com ele de form a tal que outro ser humano estranho a ele, hostil, poderoso e
independente dele é o senhor desse objeto. Se ele se relaciona com a sua própria ati­
vidade como uma atividade não livre, ele se relaciona com ela como a atividade a servi­
ço de, sob o domínio, a coerção e o jugo de outro ser humano. (40/518-9 [ed. bras. M a­
nuscritos económico-filosóficos, pp. 86-7 modif.])

A exemplo do procedimento adotado na análise da exteriorização do pro­


duto e do estranhamento de si, nos Manuscritos económico-filosóficos, Marx
também quer expor o lado do “senhor do trabalho”, e isso precisam ente no
sentido de um complemento espelhado invertido no interior do contexto global
da forma distorcida da apropriação da natureza:

Se vimos que com respeito ao trabalhador, que se apropria da natureza através do


trabalho, a apropriação aparece como estranhamento, a atividade para si aparece como

41
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

atividade para outro e como atividade de outro, a vitalidade como sacrifício da vida, a
produção do objeto como perda do objeto para um poder estranho, para um ser humano
estranho, passemos a analisar agora a relação desse ser humano estranho ao trabalho e
ao trabalhador com o trabalhador, com o trabalho e o seu objeto. Em primeiro lugar, é
de notar que tudo que aparece no trabalhador como atividade da exteriorização, do
estranhamento, aparece no não trabalhador como estado da exteriorização, do estra­
nhamento. Em segundo lugar, que o comportamento efetivo, prático do trabalhador na
produção e com o produto (enquanto estado mental) aparece no não trabalhador que se
defronta com ele como comportamento teórico. Terceiro: O não trabalhador faz contra
o trabalhador tudo o que o trabalhador faz contra si mesmo, mas não faz contra si mes­
mo o que faz contra o trabalhador. Examinemos mais de perto essas três relações. (40/522
[ed. bras. M anuscritos económico-filosóficos, p. 90 modif.])

Lamentavelmente a seção sobre o trabalho estranhado term ina com essa


frase, de modo que o intérprete depende de extrapolações. Contudo, não fare­
mos aqui a tentativa de continuar as ideias de Marx, principalmente porque do
que foi explicitado até agora é possível deduzir claramente a estrutura da for­
mulação: de qualquer modo, o conceito da propriedade privada já se refere à
totalidade da forma distorcida da apropriação da natureza, o trabalho estranha­
do por um lado e, por outro, a separação a ele associada entre a existência
subjetiva e a sua continuação objetiva, a separação entre o produtor e os meios
de produção e a sua personificação, o fato, portanto, de que as condições de
produção estranhadas do trabalhador, os seus meios de vida, como Marx diz
nos Manuscritos económico-filosóficos, ganham existência subjetiva na pessoa
do senhor do trabalho e aparecem como poder pessoal do proprietário privado.
Marx resume essa constelação com poucas palavras:

Examinamos um dos aspectos, o trabalho exteriorizado no que se refere ao próprio


trabalhador, ou seja, a relação do trabalho exteriorizado consigo mesmo. Como pro­
duto, como resultado necessário dessa relação, encontramos a relação de propriedade
do não trabalhador com o trabalhador e com o trabalho. A propriedade privada, como
a expressão material, resumida, do trabalho exteriorizado abarca as duas relações, a
relação do trabalhador com o trabalho e com o produto do seu trabalho e com o não
trabalhador e a relação do não trabalhador com o trabalhador e com o produto do seu
trabalho. (40/522 [ed. bras. M anuscritos económico-filosóficos, pp. 89-90])

Esse conceito de propriedade privada é significativo em muitos sentidos.


Como prim eira exposição do “fundamento mundano autocontraditório”, sua

42
A C O N C E P Ç Ã O M A T E R IA L IS T A D E H IS T Ó R IA NA O BRA IN IC IA L D E M A R X

intenção é resum ir da forma mais abstrata possível como que a essência do


capitalismo enquanto forma insuperável de apropriação distorcida da natureza.

Assim como encontramos, por análise, a partir do conceito do trabalho estranhado,


exteriorizado, o conceito de propriedade privada, assim podem, com a ajuda desses dois
fatores, ser desenvolvidas todas as categorías nacional-económicas, e haveremos de
reencontrar em cada categoria, como, por exemplo, nas do regateio, da concorrência, do
capital, do dinheiro, apenas uma expressão determinada e desenvolvida desses primei­
ros fundamentos. (40/521 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 89])

A primeira formulação mais precisa da existência individual sensível dis­


torcida do ser humano em Sobre a questão judaica mostra-a* já agora como
urna forma entre outras dentro do processo de reprodução global da sociedade.
O “valor de todas as coisas constituido para si”, o dinheiro, que priva o mundo
inteiro, tanto o mundo humano quanto a natureza, do seu valor peculiar; o “ente
estranho que o ser humano cultua” é a circunscrição incipiente do movimento
de descomedimento próprio da má infinitude, a caça permanente da riqueza na
forma imediatamente universal que aponta em si mesma para seu outro, para
o trabalho como criador da riqueza abstrata. Como veremos na análise da obra
tardia, trata-se ai da forma mais abstrata do capital, a “fórmula universal”, que
assume um valor central na exposição dialética das categorias.
Sim ultaneamente se resume nesse conceito a essência de toda a historia
humana pregressa. “Somente no derradeiro ponto de culminância do desenvol­
vimento da propriedade privada vem à tona novamente este seu m istério”
(40/520 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 88]). Somente depois
de passar pela forma mais extrema da ruptura de identidade entre ser humano
e natureza é que a historia se descortina como historia do desenvolvimento
dessa estrutura básica. Assim sendo, a propriedade fundiária feudal passa a
ser interpretada como urna forma da distorção que ainda precisa aparecer como
tal — como relação de capital; existente, por assim dizer, apenas em si, ela só
pode ser reconhecida através daquela como o em-si da forma mais extrema da
apropriação distorcida da natureza. Ela já é

[...] na sua essência, a térra vendida ao desbarato, a terra estranhada ao ser humano e,
por isso, a terra fazendo frente a ele na figura de alguns poucos grandes senhores. Já na

* Modificação no texto original de "sich” (que se refere a “formulação mais precisa”) para "sie”
(que se refere a “existência individual”). (N. do T.)

43
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

posse fundiária feudal situa-se o domínio da terra como um poder estranho sobre as
pessoas. O servo é o acidente da terra. De igual modo, o morgado, o primogênito, per­
tence a terra. Ela o herda. Em geral, o domínio da propriedade privada começa com a
posse fundiária; ela é a sua base. (40/505 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos,
p. 74 modif.])

A distorção é a mesma que ocorre no capitalismo; neste também as condi­


ções da produção reinam sobre os produtores, ao trabalho estranhado de um
lado corresponde a personificação das condições estranhadas de produção do
outro, que ganham existência subjetiva como poder “de alguns poucos grandes
senhores”. Só que essa estrutura ainda não aparece como tal. Muito antes,

[...] pelo menos o senhor aparece como rei da posse fundiária. [...]. De igual modo, os
cultivadores da posse fundiária não têm com ele a relação de diaristas, mas sim, em
parte, eles próprios são sua propriedade, como os servos, e em parte estão numa relação
de respeito, de submissão e de obrigação para com ele. Sua posição com relação a eles
é, por isso, imediatamente política e possui igualmente um aspecto cômodo. (40/506 [ed.
bras. Manuscritos económico-filosóficos, pp. 74-5 modif.])

Tendemos a dizer — com Hegel — , no entanto, que a essência precisa


manifestar-se.

E necessário que essa aparência seja suprassumida, que a propriedade fundiária, a


raiz da propriedade privada, seja completamente arrastada para dentro do movimento
da propriedade privada e se torne mercadoria; que a dominação do proprietário apareça
como a pura dominação da propriedade privada, do capital, despojado de toda a colora­
ção política; que a relação entre proprietário e trabalhador se reduza à relação nacional-
-econômica entre explorador e explorado; que toda relação pessoal do proprietário com
a sua propriedade termine, e esta se torne apenas riqueza material coisal·, que no lugar
do casamento de honra com a terra se instale o casamento por interesse e a terra, tal
como o ser humano, desça ao nível de valor de regateio. É necessário que aquilo que é
a raiz da propriedade fundiária, o sórdido interesse pessoal, apareça também na sua
cínica figura. (40/506-7 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 75 modif.])

A forma pela qual se consuma esse desenvolvimento permanece obscura


nos Manuscritos económico-filosóficos. Assegurado está apenas que o processo
da história universal, o desenvolvimento e a formação plena do gênero humano,
sob a forma da apropriação estranhada da natureza, são impelidos para o ponto

44
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

de culminação da polarização insuperável entre trabalho vivo e trabalho obje­


tivado — para o trabalho “enquanto exclusão da propriedade e [para] o capital,
o trabalho objetivo enquanto exclusão do trabalho” (40/533 [ed. bras. Manus­
critos económico-filosóficos, p. 103]). Não só a humanidade precisa ter passa­
do por essa forma extrema da unidade distorcida do ser humano com a natureza
para experimentar e suprimir o estranhamento enquanto estranhamento, mas
também o desenvolvimento mesmo está implantado no trabalho estranhado.
Exatamente esta última ideia pode ser inferida em especial dos “Excertos do
livro Élemens d ’économ iepolitique, de James M ill” (40/445 e ss.)*. Contraria­
mente ao procedimento adotado nos M anuscritos económico-filosóficos, em
que ele tenta explicitar o “mistério da propriedade privada” de modo imediato
no capitalism o enquanto forma derradeira da polarização, aqui ele parte da
situação simples da troca e tenta com preendê-la como o embrião de todo o
processo de distorção. Nesse ponto, é significativo que Marx, ainda antes de
ter acolhido plenamente a teoria do valor do trabalho e formulado uma teoria
própria do mais-valor, desenvolve os motivos centrais da posterior crítica da
economia política, mediante os quais ela não só escapa de antemão à classifi­
cação costumeira em teoria da utilidade marginal e teoria do valor do trabalho,
mas ainda permite criticar essa subdivisão mesma enquanto procedimento res­
trito ao horizonte da especialidade econômica. Porque quando dois objetos de
uso são trocados, o produto sensível-concreto do trabalho se distorce necessa­
riamente em representante do outro produto, na medida em que esse mesmo
produto, por sua vez, é representante do produto que está diante dele, tornando-
-se, desse modo, ambos representantes de um terceiro diferente deles.

O seu lugar foi tomado por uma propriedade privada de outra natureza, assim como
ela própria ocupa o lugar de uma propriedade privada de outra natureza. De ambos os
lados aparece, portanto, a propriedade privada como representante de uma propriedade
privada de outra natureza, como o idêntico de outro produto da natureza, e os dois lados
se relacionam um com o outro de tal maneira que cada um deles representa a existência
do seu outro e ambos se relacionam reciprocamente um com o outro como substitutos
de si mesmos e do seu outro. A existência da propriedade privada como tal converteu-se,
por conseguinte, em reposição, em equivalente. Em vez de ser unidade imediata consigo
mesma, ela só é mais referência a outra coisa. Sendo um equivalente, a sua existência

* Essa parte, abrangendo as folhas XXII a XXXIII dos Manuscritos económico-filosóficos


originais, foi omitida na edição brasileira. Cf. p. 149, em que ocorre o salto da folha XXI para
a folha XXXIV. (N. do T.)

45
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

não é mais aquela que lhe é peculiar. Consequentemente ela se converteu em valor e, de
modo imediato, em valor de troca. A sua existência enquanto valor é uma existência
distinta da sua existência imediata, exterior à sua essência específica, um a determ i­
nação exteriorizada de si mesma; uma existência apenas relativa da sua essência espe­
cífica. (40/453)

Ainda antes de poder se expressar com mais precisão sobre a substância do


valor e a medida do seu tamanho, Marx vê o valor como algo exterior à coisa
concreta de uso; a esse valor os produtos concreto-sensíveis do trabalho ne­
cessariamente são reduzidos durante o intercâmbio, e, por conseguinte, vê nele
uma indiferença essencial ao valor de uso, sem a qual o processo de troca não
pode ser efetuado. É preciso que essa existência essencial da “propriedade
privada” no processo de troca enquanto equivalente se tom e autônoma e ad­
quira existência própria — enquanto dinheiro, enquanto valor existente para
si. “O equivalente adquire sua existência como equivalente em dinheiro”
(40/455). Contudo, no momento em que esse “mediador do processo de troca”
adquire existência própria, ele se distorce num primeiro:

Está claro que esse m ediador passa a ser o Deus real, pois o mediador é o poder real
sobre aquilo com que ele me intermedeia. O seu culto se transforma em fim em si. Se­
parados desse mediador, os objetos perderam o seu valor. Portanto, eles só têm valor na
m edida em que o representam, ao passo que originalm ente parecia que ele só tinha
valor na medida em que ele os representasse. Essa inversão da relação original é neces­
sária. (40/446)

Visto que dali por diante cada objeto é só mais representante do dinheiro,
não passando de “corpo do espírito dinheiro”, também a produção tem de se
tornar autônoma em relação ao consumo, já que o produto de antemão já é
produzido como “invólucro sensível” do valor. “A produção se tornou fonte de
renda, trabalho rentável. Portanto, ao passo que na primeira relação a neces­
sidade constitui a medida da produção, na segunda relação a produção ou,
melhor, a posse do produto constitui a medida com que as necessidades podem
ser satisfeitas” (40/459). Uma vez posto em marcha, esse desenvolvimento tem
de prosseguir e alcança o seu ponto alto no capitalismo:

Pressuposta a relação da troca, o trabalho se converte em trabalho rentável imedia­


to. Essa relação do trabalho estranhado só alcança o seu auge quando (1) de um lado, o
trabalho rentável, o produto do trabalhador, não tem relação imediata com a sua neces-

46
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

sidade e com a destinação do seu trabalho, mas é determinado nos dois aspectos por
uma combinação social estranha ao trabalhador; quando (2) aquele que compra o pro­
duto não produz pessoalmente, mas troca aquilo que é produzido por outro. (40/454)

Contudo, nesse excerto, aparece só indicativamente o que, na obra tardia,


foi explicitado com exatidão — sob a forma da exposição dialética das catego­
rias: a saber, que o capitalismo já está implantado na simples situação da troca.
Da troca de mercadorias se origina o dinheiro e a partir do dinheiro acaba se
desenvolvendo o capitalismo. A grotesca distorção, cuja forma definitiva Marx
tenta expressar em seu conceito mais abstrato nos Manuscritos econômico-fi-
losóficos, já está contida na troca simples de produtos, e o desenvolvimento
ulterior apenas consiste ainda numa potenciação progressiva dessa distorção.
Com outras palavras: as categorias da economia política são a expressão mais
abstrata do processo de constituição do gênero humano, na medida em que esse
processo é produzido, em sua logicidade imanente, pelos próprios seres hum a­
nos, mas estes, ao mesmo tempo, estão sujeitos a ele e, mesmo estando ainda
numa forma similar à da natureza, são como que “extraídos” da natureza. O
ser humano é produto de si mesmo, mas ele se produz sob a forma de um man­
to de objetividade social. Em consequência disso, a origem desse manto de
objetividade social deve ser derivada da situação simples de troca; já nela deve
ficar evidenciado como a subjetividade constitui a objetividade ou, com as
palavras de Marx: como o nosso produto se levanta contra nós sobre as patas
traseiras, como nos tornamos propriedade de nossa própria produção.

Aos teus olhos o teu produto é um instrumento, um meio para apropriar-se do meu
produto e, em consequência, para satisfazer a tua necessidade. Porém, aos meus olhos
ele é o fim da nossa troca. Para mim, tu és meio e instrumento para a produção desse
objeto que é um fim para mim mais do que, inversamente, meu objeto nessa relação.
Porém, (1) cada um de nós realmente fa z aquilo que o outro considera dele. Tu realmen­
te também te tornaste o meio, o instrumento, o produtor do teu próprio objeto, visando
apropriar-te do meu; (2) o teu próprio objeto é, para ti, apenas o invólucro sensível, a
form a oculta do meu objeto; porque a sua produção significa, quer expressar isto: a
aquisição do meu objeto. Portanto, de fato te tornaste, para ti mesmo, o meio, o instru­
mento do teu objeto, cuja serva é a tua cobiça e realizaste trabalho de servo para que o
objeto da tua cobiça jam ais torne a demonstrar alguma graça. Ora, o fato de essa servi­
dão recíproca ao objeto aparecer entre nós, no início do desenvolvimento, realmente
como a relação da dominação com a escravidão, isso nada mais é que a expressão crua
e,franca da nossa relação essencial. (40/462)

47
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Analogamente à interpretação nos Manuscritos económico-filosóficos, nos


quais ele determina a feudalidade como propriedade privada que ainda precisa
se mostrar “em sua forma cínica” e permite identificar somente a sua real es­
sência através dessa forma de manifestação, Marx também procede com refe­
rência à célula em brionária de toda distorção, ao simples ato de troca: só é
possível reconhecer que o capitalism o está im plantado na simples troca de
produtos depois que o capitalismo se desenvolveu. Isso se depreende clara­
mente da última frase da citação acima.
Não continuaremos a nos ocupar aqui do modo como M arx interpreta a
relação mútua entre essas duas estruturas, entre o feudalismo, de um lado, como
a dominação, ainda não manifesta em sua essência, das condições de produção
sobre o produtor, e, de outro, a conexão entre intercâmbio de mercadorias e
capitalismo. É preciso registrar, antes de tudo, que Marx compreende toda a
história como a marcha do desenvolvimento que decorre de forma similar à
natural, como processo de constituição do gênero humano que labora para
retirar-se da natureza sob a forma de uma unidade distorcida do ser humano
com a natureza.

Como, perguntamos agora, o ser humano chegou ao ponto de exteriorizar, de estra­


nhar o seu trabalho? Como esse estranhamento está fundado na essência do desenvol­
vimento humano? Já obtivemos muito para a solução do problema quando transmutamos
a questão sobre a origem da propriedade privada na questão sobre a relação entre
trabalho exteriorizado e a marcha do desenvolvimento da humanidade. Pois, quando se
fala em propriedade privada, acredita-se estar tratando de uma coisa fora do ser huma­
no. Quando se fala do trabalho, está-se tratando, imediatamente, do próprio ser humano.
Essa nova disposição da questão já é inclusive a sua solução. (40/521 [ed. bras. M anus­
critos económico-filosóficos, p. 89 modif.])

Essa nova formulação da questão inclui explicitamente na reflexão que esse


processo histórico-m undial atingiu um ponto para além do qual não é mais
possível um desenvolvimento nos mesmos termos da história decorrida. O
comportamento estranhado do ser humano para com a natureza assumiu uma
forma que, em si mesma, impele para além da forma do estranhamento. Só
agora, nesse “derradeiro ponto de culminação do desenvolvimento da proprie­
dade privada”, a humanidade se emancipa da forma da identidade distorcida
com a natureza, ao não mais substituir uma forma antiquada da propriedade
privada por uma nova forma da propriedade privada, uma forma envelhecida
da identidade rota por uma forma nova, ainda mais distorcida, da unidade do

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A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTORIA NA OBRA INICIAL DE MARX

ser humano com a natureza, mas ao abolir a propriedade privada, a distorção


pura e simples. Sem dúvida pode-se presumir que o próprio Marx ainda com­
preenda esse processo de emancipação da forma da distorção e, desse modo,
também da forma de todos os limiares de emancipação havidos até aquele
momento, segundo o modelo de processos de emancipação passados no interior
da historia da apropriação distorcida da natureza. Essencial, contudo, é que,
de acordo com a autocompreensão marxiana, a visão da estrutura da historia
global só se descortina nesse ponto de culminação, no qual, passando pela
forma de um comportamento não estranhado — num primeiro momento, ape­
nas mentalmente antecipado — do ser humano para com a natureza, a história
da humanidade se revela como processo de desenvolvimento do gênero huma­
no sob a forma do estranhamento.

Para suprassumir a ideia da propriedade privada basta, de todo, o comunismo p en ­


sado. Para suprassumir a propriedade privada real é preciso uma ação comunista real.
A história a trará e aquele movimento que, em pensamento, já sabemos ser um movi­
mento que suprassume a si mesmo passará, na realidade, por um processo muito áspero
e extenso. Temos de considerar, porém, como um progresso real que, desde o princípio,
adquirimos uma consciência tanto da lim itação quanto da finalidade do movimento
histórico, e uma consciência que as sobrepuja. (40/553 [ed. bras. M anuscritos económi­
co-filosóficos, pp. 145-6 modif.])

Marx compreende a sua própria concepção da propriedade privada como


expressão teórica do ponto de interseção de duas épocas mundiais que só po­
dem ser captadas em sua determ inidade depois de cruzarem o seu próprio
oposto. Isso se evidencia nesse conceito mesmo. Constatamos anteriormente
que, para desenvolver o conceito da propriedade privada, M arx descreve a
realidade capitalista como duas estruturas que se refletem um a na outra de
maneira grotesca. O conceito da propriedade privada, que abrange a relação
de complementação, por assim dizer, espelhada entre trabalho estranhado e
personificação das condições estranhadas de produção no interior do mundo
distorcido, não pode ser pensado — enquanto conceito da distorção pura e
simples — sem o seu próprio oposto, o não distorcido, a relação essencial do
ser humano com a sua natureza inorgânica, com a “propriedade verdadeira­
mente humana”.

E aqui que, peia primeira vez, a sua existência natural se tornou, para ele, existência
humana e a natureza se tomou, para ele, ser humano. Portanto, a sociedade [comunista

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SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K A R L M A R X

(H. R.)] é a unidade essencial consumada do ser humano com a natureza, [...] o natura­
lismo realizado do ser humano e o humanismo realizado da natureza. (40/538 [ed. bras.
Manuscritos económico-filosóficos, p. 107 modif.])

Na própria formulação do conceito, reflete-se que a velha sociedade está


grávida da nova, como dirá Marx mais tarde. Sem a antecipação em pensamento
“da dissolução verdadeira do conflito entre o ser humano e a natureza e entre
ser humano e ser humano” não é possível apreender adequadamente o tempo
presente, ainda que não seja possível pintar em termos positivos um quadro
dessa identidade não estranhada e conscientem ente formada — a ser produ­
zida — do ser humano com a natureza. Isso não deve ser interpretado como
um efeito da proibição veterotestam entária de imagens no judeu Marx, pois
isso contradiria a concepção global. Quando os indivíduos chegam a conquis­
tar o seu direito e não são mais subsumidos sob um abstrato-universal ainda
produzido por eles próprios nessa forma, torna-se impossível fazer enunciados
genéricos. Com a abolição da objetividade social, com a negação abstrata da
individualidade real, desaparece também o objeto de toda e qualquer teoria.
Essa verdadeira identidade do ser humano com a natureza na futura socie­
dade, que está ciente de ser o “enigma resolvido da história”, é considerada
por Marx sob dois aspectos, na medida em que é encarada como sociedade
antecipada da qual a presente sociedade está grávida e na medida em que só
pode ser apreendida de modo adequado justam ente como sociedade em estado
de gravidez. Porque, sendo o conceito da propriedade privada a representação
mais abstrata possível do “autoesfacelamento do fundamento mundano”, pre­
tende-se que ele nos franqueie ao mesmo tempo o acesso à dissolução da du­
plicação do ser humano em bourgeois e citoyen, da duplicação do mundo em
religioso e secular. Se as duas determinações — exteriorização do objeto e
estranhamento de si ou, então, o seu correlato, ou seja, o conceito da proprie­
dade privada — se referem à relação distorcida do ser humano com a natureza,
os aspectos subsequentes da distorção, derivados dessas duas determinações,
referem-se às “superestruturas idealistas”, como ele diz em A ideologia alemã,
ou seja, à superestrutura. Anteriormente já destacamos que Marx compreende
o ser humano como produto de seu próprio trabalho, mediante o qual a natu­
reza se decompõe no interior de si m esm a num a existência subjetiva e na
continuação objetiva desta, numa constelação “sujeito-objeto” no interior da
totalidade da natureza, que em cada caso concreto se apresenta numa forma
diferente. Porque o trabalho sempre é trabalho determinado que se realiza no
horizonte de um estado do domínio da natureza condicionado pela atividade

50
/1 C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H I S T Ó R I A N A O B R A I N I C I A L D E M A R X

de muitas gerações, mas que, por sua vez, torna a modificar esse horizonte no
ato mesmo de sua apropriação, transmitindo-o à próxima geração ao estilo de
um apriori transcendental. Desse modo, as formas de apropriação da natureza
se tornam cada vez mais diversificadas, e, por fim, elas se manifestam também
na forma da diversidade em que o ser humano torna até mesmo o específico da
existência humana, o trabalho, a atividade vital que o “define” como ser huma­
no, em objeto da sua vontade e, então, enquanto ser humano, ela é justamente
isto, podendo, enquanto sujeito abrangente, comportar-se livremente para con­
sigo mesmo, para com a sua própria atividade vital. É a isso que se refere o
conceito do ser genérico nos Manuscritos económico-filosóficos, no qual não
é difícil identificar a herança hegeliana, o conceito enfático do espírito.

O animal é imediatamente uno com a sua atividade vital. Não se distingue dela. É
ela. O ser humano faz da sua atividade vital mesma um objeto da sua vontade e da sua
consciência. Ele tem atividade vital consciente. Esta não é uma determinidade com a
qual ele conflui imediatamente. A atividade vital consciente distingue o ser humano
imediatamente da atividade vital animal. Justamente por isso e só por isso ele é um ser
genérico. Ou ele só é um ser consciente, isto é, a sua própria vida lhe é objeto, precisa­
mente porque é um ser genérico. Eis por que a sua atividade é atividade livre. (40/516
[ed. bras. M anuscritos económico-filosóficos, p. 84 modif.])

Ao mesmo tempo, esse conceito central é, para Marx, a verdade da irracio­


nalidade existente. No capitalismo desenvolvido, o ser humano genérico en­
tendido dessa maneira aparece sob a forma da distorção completa, visto que o
ser humano — sob a forma do trabalhador “livre” — de modo algum possui
uma relação livre com a sua própria atividade vital; pelo contrário, quando
imposta de fora, o seu próprio ser genérico se transforma meramente em meio
de conservação da sua existência individual-abstrata, da sua existência física.

Na medida em que o trabalho estranhado 1) torna o ser humano estranho à natureza,


2) e torna-o estranho a si mesmo, de sua própria função ativa, de sua atividade vital, ela
estranha do ser humano o gênero', faz-lhe da vida genérica apenas um meio para a vida
individual. [...] O trabalho estranhado inverte a relação a tal ponto que o ser humano,
precisamente porque é um ser consciente, faz da sua atividade vital, da sua essência,
apenas um meio para sua existência. (40/516 [ed. bras. Manuscritos económico-filosófi­
cos, pp. 84-5 modif.])

51
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Assim como o estranhamento de si se evidencia como distorção do ser ge­


nérico em meio de conservação da existência física, assim também a “desefe-
tivação” do trabalhador, a privação total de seus meios de vida, evidencia-se
como perda da objetividade genérica. Porque a sua atividade vital, o trabalho,
mediante o qual o ser humano produz a si próprio como ser universal que se
relaciona de maneiras cada vez mais diversificadas com a natureza e tem ciên­
cia até mesmo dessa sua diversidade, dessa sua universalidade, e faz dela o
objeto da sua vontade, essa sua atividade vital modifica, ao mesmo tempo, a
natureza. O que do lado do sujeito aparece como desenvolvimento rumo à uni­
versalidade aparece do lado da “continuação objetiva”, do lado da natureza
inorgânica do ser humano, como modificação da natureza, como geração prá­
tica de um mundo material. Esse seu mundo próprio, gerado por ele mesmo, a
objetivação do gênero, escapa ao ser humano no “estado económico-nacional”,
que se apresenta assim como o estado da objetividade genérica indisponível,
perdida.

Por isso, é precisam ente na elaboração do mundo objetivo que o ser humano se
confirma, em primeiro lugar e efetivamente, como ser genérico. Essa produção é a sua
vida genérica operativa. Através dela a natureza aparece como a sua obra e a sua reali­
dade. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida genérica dos seres huma­
nos·. na medida em que o ser humano se duplica não só na consciência intelectualmente,
mas também operativa, efetivamente, contemplando-se, portanto, num mundo criado
por ele. Consequentemente, quando arranca do ser humano o objeto da sua produção, o
trabalho estranhado arranca dele a sua vida genérica, a sua efetiva objetividade genéri­
ca. (40/517 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 85 modif.])

A análise do estranhamento de si e do estranhamento do objeto sob a pers­


pectiva do ser genérico humano é complementada por Marx com a referência
à forma estranhada da relação dos seres humanos entre si:

Uma consequência im ediata de o ser humano ser estranhado do produto do seu


trabalho, de sua atividade vital, do seu ser genérico, é o fato de o ser humano estranhar-
s e do próprio ser humano. Quando o ser humano está frente a frente consigo mesmo,
quem está diante dele é o outro ser humano. O que vale para a relação do ser humano
com o seu trabalho, com o produto do seu trabalho e consigo mesmo, isso vale também
para a relação do ser humano com o outro ser humano, assim como com o trabalho e
com o objeto do trabalho do outro ser humano. (40/517-8 [ed. bras. Manuscritos econô-
mico-filosóficos, pp. 85-6 modif.])

52
A C O N C E P Ç Ã O M A T E R IA LIST A DE H ISTÓ R IA NA OBRA IN IC IA L D E M A R X

A isso Marx contrapõe a “verdadeira resolução do conflito entre existência


e essência, entre objetivação e autoafirmação, entre liberdade e necessidade,
entre indivíduo e gênero" [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 105]:

Posto que tivéssemos produzido como seres humanos: com nossa produção, cada
um de nós teria afirmado duplamente a si próprio e ao outro. (1) Com a minha produção
eu teria objetivado a minha individualidade, a peculiaridade dela e consequentemente
teria desfrutado de uma manifestação individual de vida durante a atividade, tanto quan­
to teria tido, na contem plação do objeto, a alegria individual de saber que a minha
personalidade é uma força objetiva, contem plávelpelos sentidos e, por essa razão, aci­
ma de qualquer dúvida. (2) Na fruição ou no uso do meu produto por ti, eu teria de
imediato o prazer tanto da consciência de ter satisfeito, com o meu trabalho, uma carên­
cia humana, quanto de ter objetivado a essência humana e, em consequência, providen­
ciado um objeto correspondente à carência de outro ser humano', (3) de ter sido para ti
o mediador entre ti e o gênero, ou seja, de ser conhecido e sentido por ti mesmo como
complemento do teu próprio ser e como parte necessária de ti mesmo, sabendo-me,
portanto, confirmado tanto em teu pensamento quanto no teu amor; (4) de ter criado
com a minha manifestação individual de vida, no plano imediato, a tua manifestação de
vida, de ter, portanto, confirmado e realizado, na minha atividade individual, no plano
imediato, a minha verdadeira essência, a minha essência humana, a minha essência
coletiva. (40/462)

E dessa futura forma de sociedade, na qual o ser humano individual real se


tornou ser genérico em sua vida empírica, em seu trabalho individual, em suas
relações individuais, como consta em Sobre a questão judaica, que está grá­
vida a velha sociedade, que agora, em sua totalidade, só aparece mais como
forma distorcida, sob a qual o ser humano se apresenta como ser genérico in­
dividualizado. Pelo fato de, nela, a vida genérica do ser humano se distorcer
em meio à vida individual, a essência coletiva desse ser humano necessaria­
mente aparecerá sob a forma do estranhamento, sendo apenas “a caricatura de
sua real essência coletiva, da sua verdadeira vida genérica’" (40/451).
Essas ideias abrigam uma crítica radical, ainda que, num primeiro momen­
to, só abstratamente antecipatória, de toda ciência que não compreende a du­
plicação à maneira de Marx. Se a teoria se detiver na forma burguesa da repro­
dução enquanto algo último e não mais derivável, não só a forma estranhada,
sob a qual a sociedade humana se apresenta, tomará a feição petrificada de algo
indevassável para ela, mas também a relação real entre ser humano e natureza,
a constelação em constante mudança de sujeito e objeto dentro do todo da
natureza, permanecerá inacessível a ela.

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SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Vê-se como a historia da indústria e a existência objetiva da indústria conforme veio


a ser são livro aberto das forças essenciais humanas, a psicologia humana presente
sensivelmente, a qual não foi até agora apreendida em sua conexão com a essência do
ser humano, mas sempre apenas numa relação externa de utilidade, porque — movendo-
-se no interior do estranhamento — só sabia apreender, enquanto realidade das forças
essenciais humanas e enquanto atos genéricos humanos, a existência universal do ser
humano, a religião ou a história na sua essência universal-abstrata, enquanto política,
arte, literatura etc. Na indústria material, comum [...] temos diante de nós as forças
essenciais objetivadas do ser humano sob a forma de objetos sensíveis, estranhos, úteis,
sob a forma do estranhamento. (40/542-3 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos,
p. 111 modif.])

O fato de o gênero humano se separar da natureza pelo trabalho, sob a


forma da distorção, que em sua totalidade se apresenta como duplicação, mol­
da também o conteúdo e a forma de todos os produtos teóricos. O objeto — em
si unitário — , o processo de constituição do gênero humano, aparece na cons­
ciência dos seres humanos na forma da indiferença m útua das disciplinas in­
dividuais, cada uma delas ocupando-se com um aspecto específico desse ob­
jeto que se apresenta sob forma estranhada. Uma união posterior da ciência
que, mediante o seu objeto — pré-formado — , impõe a si própria a forma da
fragmentação necessariamente permanecerá exterior ao objeto enquanto o pró­
prio conteúdo não for também modificado.

As ciências naturais desenvolveram uma enorme atividade e se apropriaram de um


material sempre crescente. Entretanto, a filosofia permaneceu para elas exatamente tão
estranha quanto elas permaneceram estranhas para a filosofia. A união momentânea foi
uma ilusão fantástica. Havia a vontade, mas faltou a capacidade. A própria historiogra­
fia só de passagem leva em consideração a ciência natural como momento do esclareci­
mento, da utilidade, das grandes descobertas singulares. Porém, tanto mais prático foi
o modo como a ciência natural interferiu na vida humana mediante a indústria, reconfi­
gurou-a e preparou a emancipação humana, por mais que tivesse de consumar, de ma­
neira imediata, a desumanização. A indústria é a relação histórica efetiva da natureza e,
em consequência, da ciência natural com o ser humano; por isso, se ela for apreendida
como revelação exotérica das força s essenciais humanas, então também a essência
humana da natureza ou a essência natural do ser humano será com preendida dessa
forma e, em consequência, a ciência natural perderá a sua orientação abstratamente
material ou, antes, idealista e se tornará a base da ciência humana, como agora já se
tomou — ainda que numa forma estranhada — a base da vida efetivamente humana; ter

54
A C O N CEPÇ ÃO M ATERIA LISTA D E H ISTO RIA NA OBRA IN IC IA L DE M ARX

outra base para a vida e outra para a ciência é de antemão uma mentira. (40/543 [ed.
bras. M anuscritos económico-filosóficos, pp. 111-2 modif.])

A ciência só poderá ser transposta de forma unitária, não fragm entada,


quando apreender a relação real entre ser humano e natureza, visto que então
poderá descrever o objeto — em si — unitário também como objeto unitário,
a saber, como processo de constituição do género que se efetua sob forma
estranhada. Isso significa, porém, ao mesmo tempo, que essa ciência entende
a si própria como ciência a ser suprassumida, e somente como ciência que
suprassume a si mesma estará em condições de apreender o seu objeto propria­
mente dito, um objeto que cedo ou tarde igualmente desaparecerá.

É fácil reconhecer a necessidade de que o movimento revolucionário inteiro encon­


tre a sua base tanto empírica como teórica no movimento da propriedade privada. Essa
propriedade privada material, imediatamente sensível, é a expressão material sensível
da vida humana estranhada. O seu movimento — a produção e o consumo — é a reve­
lação sensível do movimento de toda a produção até aqui. isto é, da realização ou reali­
dade do ser humano. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc. são
apenas modos específicos da produção e caem sob sua lei geral. A suprassunção posi­
tiva da propriedade privada, enquanto apropriação da vida humana, é, por conseguinte,
a suprassunção positiva de todo estranham ento e, portanto, o retorno do ser humano
de religião, família, Estado etc. à sua existência humana, isto é, social. O estranha­
mento religioso enquanto tal somente se manifesta na região da consciência, do interior
humano, mas o estranhamento econômico é o da vida real — sua suprassunção abrange,
por isso, ambos os aspectos. (40/536-7 [ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos,
p. 106 modif.])

Na futura sociedade, na sociedade da identidade não estranhada, ainda a


ser estabelecida, do ser humano com a natureza, de qualquer modo só poderá
haver uma ciência. “Mais tarde a ciência natural subsumirá a ciência do ser
humano exatamente da mesma forma que a ciência do ser humano subsumirá
a ciência natural: haverá uma só ciência” (40/544 [ed. bras. Manuscritos eco-
nômico-filosóficos, p. 112 modif.]).
Em A ideologia alemã, obra à qual queremos nos dedicar agora, essas linhas
de pensamento são em parte formuladas de forma mais precisa, mas em parte
também expostas de uma forma inadequada ao seu teor real. Este último dado
se explica a partir da confrontação — historicamente já ultrapassada, segundo
a autocompreensão de Marx — a que se deve esse escrito: a discussão com um

55
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

adversário que, por assim dizer, não mais pode dar satisfações afeta também a
forma como ela é levada a cabo. Por conseguinte, quando Marx enfatiza pe­
rante os jovens-hegelianos que seu ponto de partida são os “pressupostos reais”,
os indivíduos reais, as suas ações e as suas condições materiais de vida, que
são “constatáveis por vias puramente empíricas”, é claro que não se trata de
nenhum empirismo ingênuo que se entrega alegrem ente e sem ressalvas ao
mundo dos fatos. A análise mais acurada mostra imediatamente que Marx não
esquece um instante sequer que essa viravolta ainda se deve igualm ente à
práxis histórico-mundial desses indivíduos. Mesmo que ele não enfatize isso
permanentemente, está implícito no seu pensamento que só no estágio mais
elevado da apropriação distorcida da natureza esse processo histórico-mundial
franqueia a visão para a verdadeira relação entre ser humano e natureza, que
só então é possível vincular com a historiografia o m aterial compilado pela
“enorme atividade” das ciências naturais, que só então é possível analisar a
“indústria material ordinária” não só do ponto de vista de uma “relação exterior
de utilidade”, mas compreendê-la também como a “condição histórica real da
natureza” . Porém, nos Manuscritos económico-filosóficos, essa mesma “con­
dição histórica real” é exposta mais uma vez de forma abstrata: a constelação
“sujeito-objeto” no interior da totalidade da natureza, que se apresenta na for­
ma de trabalho social, não é reconstituída em seu caráter processual, mas como
que formulada em termos de categoria, permitindo, por conseguinte, só algumas
poucas constatações conclusivas, visto que essa constelação se apresenta numa
figura diferente para cada caso. Considerando que a história só pode ser a
história da sucessão de gerações individuais; que a história social da humani­
dade é tão somente a história do desenvolvimento individual dos seres humanos;
que cada geração edifica sobre as forças produtivas da geração precedente,
assumindo seu saber e suas capacidades, os meios de trabalho e o substrato
natural encontrado e processado por aqueles seres humanos, cujo uso como
m atéria-prim a e arsenal de possíveis novos meios de trabalho e objetos de
trabalho igualmente ainda é determinado pelo estado da apropriação da natu­
reza, assim como a natureza exterior, por sua vez, mediante a sua própria es­
trutura em patamares de desenvolvimento sempre diferenciados de domínio da
natureza, influencia o desenvolvimento ulterior dos seres humanos, conclui-se
automaticamente que, por um lado, existe um nexo material tangível na histó­
ria, mas que, por outro lado, só é possível constatar algo sobre esse nexo e,
desse modo, sobre a inter-relação entre ser humano e natureza mediante recur­
so à empiria. Isso ganha expressão em A ideologia alemã:

56
A C O N C E P Ç Ã O M ATERIA LISTA D E H ISTO RIA NA OBRA IN IC IA L D E M A R X

Naturalmente não podemos abordar aqui nem a constituição física dos seres hum a­
nos nem as condições naturais, geológicas, oro-hidrográficas, climáticas e outras con­
dições já encontradas pelos seres humanos. Toda historiografía deve partir desses fun­
damentos naturais e de sua modificação pela ação dos seres humanos no decorrer da
historia. (3/21 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 86-7 modif.])3

Contudo, enquanto o “processo vital real” dos seres humanos não tiver sido
assumido nessa forma pela teoria, o materialismo e a ciência histórica se ex­
cluirão mutuamente. O material da historiografia de antemão já foi pré-mol-
dado pela forma (distorcida) com que é concebida a relação entre ser humano
e natureza — como foi indicado anteriorm ente na análise dos M anuscritos
económico-filosóficos —, pois só o que “aparece como algo separado da vida
comum, como algo extra e supraterreno” [ed. bras., p. 43] é objeto dessa dis­
ciplina, que apenas se ocupa ainda com a historia da sociedade humana em sua
forma estranhada, com a historia das “ações políticas dos príncipes e dos Es­
tados” [ed. bras., p. 95]. Assim sendo, de saída essa ciencia está condenada a
claudicar entre uma empiria abstrata, uma “coleção de fatos mortos” (3/27 [ed.
bras., p. 94]) e uma especulação idealista fajuta.
Por outro lado, mediante a concepção correta do processo material de re­
produção, igualmente se impõe à ciência histórica uma determinada forma: a
teoria m aterialista se converte potencialm ente em historiografia, cuja tarefa
consiste em retraçar todo o decurso do desenvolvimento da humanidade. Isso
é constatado expressamente em A ideologia alemã mediante a introdução do
conceito da exposição, tomado da filosofia hegeliana, e suas implicações. E
nesse contexto que Marx também fala pela prim eira vez de sua teoria como
“ciência positiva”, uma formulação que — em vista das linhas de pensamento
esboçadas anteriormente — só pode se referir à autocompreensão marxiana de
ser o primeiro teórico a apreender a realidade social de modo não obstruído
por uma pré-formação do conhecimento constitutiva do objeto e ainda social­
mente condicionada. “Ali onde term ina a especulação, na vida real, começa
também, portanto, a ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do
processo prático de desenvolvimento dos seres hum anos” (3/27 [ed. bras. A
ideologia alemã, p. 95]). O posicionamento e o modo de proceder dos M anus­
critos económico-filosóficos são mantidos, mas agora esse mesmo modo de
proceder ainda é compreendido como um procedimento abstrato, como sínte­
se de algumas “abstrações”, cujo auxílio é imprescindível para que a história
possa ser escrita.

57
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

A filosofia autônoma perde, como a exposição da realidade, seu meio de existência.


Em seu lugar pode aparecer, no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que
se deixam abstrair da observação do desenvolvimento histórico dos seres humanos. Se
separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem servir
apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão de seus
estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma receita
ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser ajeitadas a bel-prazer.
A dificuldade começa, ao contrário, somente quando se passa à consideração e à orde­
nação do material, seja de uma época passada ou do presente, quando se passa à expo­
sição real. (3/27 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 95])

Se quisermos fazer jus ao pensamento de Marx ao nos ocuparmos com a


sua obra daqui por diante, teremos de nos orientar nessa diferenciação entre
“abstração” e “exposição real”, tão importante para o método marxiano. Fica­
rá evidente — e isto seja dito aqui apenas como antecipação — que só em O
capital se pode falar de uma “exposição real” , de uma exposição que, em
certo sentido, deve ser encarada, ela própria, como uma reiterada instrução de
pesquisa, a saber, a “exposição do conceito geral do capital”, que Marx distin­
gue da exposição da concorrência. De qualquer modo, aqui, em A ideologia
alemã, na qual todos os motivos centrais da teoria materialista estão sintetiza­
dos, estamos tratando meramente de “abstrações”: “Destacaremos aqui algumas
dessas abstrações, a fim de contrapô-las à ideologia, ilustrando-as com alguns
exemplos históricos” (3/27 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 95]).
Deve ser encarada como uma dessas “abstrações” a tentativa de vincular a
relação alternante entre ser humano e natureza, que está na base de toda a
história, com uma sucessão de formações sociais distintas, ou seja, descrever
o decurso da forma distorcida da apropriação da natureza, que é o que pela
primeira vez confere à sociedade humana o caráter de humana. Nesse ponto,
ele tampouco vai muito além das ideias contidas nos Manuscritos econômico-
-filosóficos e do procedimento ali adotado; o que ocorre é que essas construções
são expostas numa forma diferente. Para não voltar a dar aos jovens-hegelianos
o pretexto para “entender mal o desenvolvim ento real e para acreditar que
apenas se tratava, então, de mais uma nova versão dos seus velhos e desbotados
casacões teóricos” (3/218 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 231]), Marx utiliza
uma terminologia conscientemente não filosófica, que, contudo, por sua vez,
nem sempre expressa com exatidão os teores das ideias explicitadas nos M a­
nuscritos económico-filosóficos. Expressões como “vida genérica” e “ser ge­
nérico” não aparecem mais e, em vez de dizer trabalho estranhado, ele usa o

58
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

termo “divisão do trabalho”. Quem não está familiarizado com a linha de pen­
samento dos Manuscritos económico-filosóficos dificilmente ainda poderá de­
duzir de A ideologia alemã que ele associa a esse termo um sentido diferente
do que faz a teoria burguesa. Indicações como, por exemplo, a seguinte neces­
sariamente permanecerão enigmáticas: “Além do mais, divisão do trabalho e
propriedade privada são expressões idênticas — numa é dito com relação à
própria atividade aquilo que na outra é dito com relação ao produto da ativi­
dade” (3/32 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 37]). Se lermos essa observação
tendo como pano de fundo os Manuscritos económico-filosóficos, naturalmente
não se pode ignorar que ela se refere a uma temática bem específica: à perso­
nificação das condições de produção estranhadas do produtor imediato.
Essa formulação, enquanto o mais abstrato dos conceitos do “autoesface-
lamento” e do “autocontradizer-se” do fundamento mundano, do qual deve ser
derivada a duplicação em suas diversas manifestações, está, por sua vez, na
base do uso do termo “sociedade civil”. Marx enfatiza que a sociedade de
concorrência a que ele se refere só surgiu na Era Moderna, mas usa essa ex­
pressão ao mesmo tempo num sentido abrangente.

A sociedade civil como tal desenvolve-se somente com a burguesia; com esse mes­
mo nome, no entanto, foi continuamente designada a organização social que se desen­
volve diretamente a partir da produção e do intercâmbio e que constitui em todos os
tempos a base do Estado e das dem ais superestruturas idealistas. (3/36 [ed. bras. A
ideologia alemã, p. 74])

Nesse uso variante dos termos, já se reflete o procedimento exercitado nos


Manuscritos económico-filosóficos, em que ele interpreta o feudalismo através
da estrutura do capitalism o desenvolvido como um a form ação social que,
em sua essência, não se diferencia do capitalismo. A propriedade fundiária feu­
dal — assim consta ali, como vimos anteriorm ente — é, “na sua essência,
a terra vendida ao desbarato, a terra estranhada ao ser humano e, por isso, a
terra fazendo frente a ele na figura de alguns poucos grandes senhores” [ed.
bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 74]. Agora é preciso que ela apa­
reça como tal, “é necessário que aquilo que é a raiz da propriedade fundiária,
o sórdido interesse pessoal, apareça também na sua cínica figura” [ed. bras.
M anuscritos económico-filosóficos, p. 75]; M arx procede de modo análogo
também em A ideologia alemã: visto que, na sociedade civil moderna, mani­
festa-se o universal que está na base de toda a história, e visto que só por essa

59
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

razão ele pode ser reconhecido como tal, Marx pode reinterpretar a estrutura
civil ao mesmo tempo como estrutura básica de toda a história:

Essa concepção de história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de


produção a partir da produção material da vida imediata e em conceber a forma de in­
tercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele engendrada, quer dizer, a so­
ciedade civil em seus diferentes estágios, como o fundam ento de toda a história, (grifo
meu, H. R.) (3/37-8 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 42])

Nesse ponto, também fica claro, ao mesmo tempo, o que se oculta atrás da
ideia, exposta pela primeira vez em A ideologia alemã, relativa à interpenetra­
ção de forças produtivas e condições de produção (que aqui ainda são desig­
nadas com o termo “forma de intercâm bio”): igualmente o conceito da pro­
priedade privada, obtido a partir do capitalismo desenvolvido, no qual — enquanto
conceito abstrato para designar a forma da apropriação distorcida da natureza
característica de toda a pré-história da humanidade — foram processadas duas
estruturas que se refletem uma na outra: o comportamento do ser humano para
com a natureza e a objetividade social produzida com o ato de reprodução, sob
a qual se efetua a apropriação da natureza. A interpenetração dessas duas es­
truturas é generalizada em A ideologia alemã a ponto de ficar irreconhecível:

A produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na procriação,


aparece desde já como uma relação dupla — de um lado, como relação natural, de outro,
como relação social — , social no sentido de que por ela se entende a cooperação de
vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o modo e a finalidade. Segue-se
daí que um determinado modo de produção ou uma determinada fase industrial estão
sempre ligados a um determ inado modo de cooperação ou a um a determ inada fase
social — modo de cooperação que é, ele próprio, uma “força produtiva” — , que a soma
das forças produtivas acessíveis ao ser humano condiciona o estado social. (3/29-30 [ed.
bras. A ideologia alemã, p. 34])

A propriedade privada mesmo, portanto, não é mais derivada historicamen­


te, mas sempre já é pressuposta; com outras palavras: o processo de produção
sempre já é pensado como unidade de processo de produção e processo de
distribuição. Não se deveria ocultar aqui que Marx não se peja de fazer interpre­
tações em traços rudimentares, até porque isso permite ilustrar especialmente
bem o fato de tratar-se sempre só de uma variação da mesma estrutura básica.

60
/1 C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H IS T Ó R IA NA O B R A IN IC IA L D E M A R X

Com a divisão do trabalho [...] estão dadas, ao mesmo tempo, a distribuição e, mais
precisamente, a distribuição desigual, tanto quantitativa quanto qualitativamente, do
trabalho e dos seus produtos; portanto, está dada a propriedade, que já tem seu embrião,
a sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A
escravidão na família, ainda latente e rústica, é a primeira propriedade, que aqui, diga-se
de passagem, já corresponde perfeitamente à definição dos economistas modernos, se­
gundo a qual a propriedade é o poder de dispor da força de trabalho alheia. (3/32 [ed.
bras. A ideologia alemã, pp. 36-7])

Como faz nos Manuscritos econômico-filosóficos, também em A ideologia


alemã Marx parte do ponto de culminação histórico, para além do qual não é
mais possível conceber um desenvolvimento ulterior no sentido da história
transcorrida.

Na época presente, o domínio das relações materiais sobre os indivíduos, o esma­


gamento da individualidade pela casualidade, atingiu sua forma mais aguda e universal
e, com isso, designou aos indivíduos existentes uma missão bem determinada. Ele deu
aos indivíduos a missão de, no lugar do domínio das relações dadas e da casualidade
sobre os indivíduos, instaurar o domínio dos indivíduos sobre a casualidade e sobre as
relações. (3/423-4 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 422])

Só agora, no capitalismo desenvolvido, evidencia-se que, sob a forma da


objetividade social, a humanidade como que laborou no interior da totalidade
da natureza para sair da natureza, que ela se desenvolveu em indivíduos sob
a forma de um excedente — produzido pelos próprios indivíduos ainda nessa
forma da autonomização ante a subjetividade constituinte — de suas relações
sociais.

No decorrer do desenvolvimento histórico, e justamente devido à inevitável autono­


mização das relações sociais no interior da divisão do trabalho, surge uma divisão na
vida de cada indivíduo, na medida em que há uma diferença entre a sua vida pessoal e
a sua vida enquanto subsumida a um ramo qualquer do trabalho e às condições a ele
correspondentes. [...] No estamento (e mais ainda na tribo) esse fato permanece escon­
dido; por exemplo, um nobre continua sempre um nobre e um roturier [retalheiro]
continua um roturier, abstração feita de suas demais relações, é uma qualidade insepa­
rável de sua individualidade. A diferença entre o indivíduo pessoal e o indivíduo de
classe, a contingência das condições de vida para o indivíduo aparecem apenas junta­
mente com a classe que é, ela mesma, um produto da burguesia. Somente a concorrência

61
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

e a luta dos indivíduos entre si é que engendram e desenvolvem a contingência como


tal. (3/75-6 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 64-5])

Esse afastamento entre o indivíduo acidental e o indivíduo pessoal com a


simultânea subsunção do indivíduo pessoal no indivíduo acidental, na m ásca­
ra de um personagem a ser representado, não é simples “distinção conceituai,
mas um fato histórico” (3/71 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 67]). A constata­
ção consciente dessa diferença é reflexo de um ponto culminante na história
mundial, em cuja travessia a autonom ização aflora como autonomização, a
casualidade como casualidade no mesmo instante em que a individualidade se
torna reconhecível como individualidade, podendo se livrar da casualidade
mediante a ação prática e até mesmo devendo se em ancipar dela, se quiser
sobreviver. Esse ponto de culminação, que o Marx dos Manuscritos econômi-
co-filosóficos sintetiza no conceito da propriedade privada, da personificação
das condições de produção estranhadas do trabalhador, Marx descreve em A
ideologia alemã com as seguintes palavras:

Aqui se mostram, portanto, dois fatos. Primeiro, as forças produtivas aparecem como
plenamente independentes e separadas dos indivíduos, [...] o que tem sua razão de ser
no fato de que os indivíduos, dos quais elas são as forças, existem dispersos e em opo­
sição uns com os outros, enquanto, por outro lado, essas forças só são forças reais no
intercâmbio e na conexão desses indivíduos. Portanto, de um lado, há uma totalidade de
forças produtivas que assumiram como que uma forma objetiva e que, para os próprios
indivíduos, não são mais as forças dos indivíduos, mas as da propriedade privada e, por
isso, são as forças dos indivíduos somente na m edida em que eles são proprietários
privados. Em nenhum período anterior as forças produtivas assumiram essa forma in­
diferente para o intercâmbio dos indivíduos na qualidade de indivíduos, porque o seu
próprio intercâmbio ainda era limitado. De outro lado, confronta-se com essas forças
produtivas a maioria dos indivíduos, dos quais essas forças se separaram e que, por isso,
privados de todo conteúdo real de vida, tornaram-se indivíduos abstratos, mas que so­
mente assim são colocados em condições de estabelecer relações uns com os outros na
qualidade de indivíduos. (3/67 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 72])

Sob o pressuposto desse estado do desenvolvimento das forças produtivas


e da forma com que estas se defrontam com os produtores, a emancipação dos
indivíduos em relação à própria objetividade de suas relações sociais ainda se
torna condição da manutenção e do desenvolvimento continuados do metabo­
lismo entre ser humano e natureza.

62
,4 C O N C E P Ç Ã O M A T E R I A L I S T A D E H ISTO RIA NA OBRA IN IC IA L D E M A R X

Na grande industria e na concorrência, o conjunto de condições de existência, de


condicionamentos e limitações individuais está fundido nas duas formas mais simples:
propriedade privada e trabalho. Com o dinheiro, toda forma de intercâmbio e o próprio
intercâmbio são postos para os individuos como algo acidental. Portanto, no próprio di­
nheiro já está presente o fato de que todo intercâmbio anterior era somente intercâmbio
de indivíduos sob determinadas condições, e não de indivíduos enquanto indivíduos.
Essas condições encontram-se reduzidas a duas: trabalho acumulado ou propriedade
privada e trabalho real. Desaparecendo ambas ou uma delas, interrompe-se o intercâm­
bio. (3/66 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 71])

Já para assegurar “a sua existência” os seres humanos são forçados a pri­


meiro tornar realmente verdadeiro o dito de Hegel sobre a Revolução Francesa:
postar-se em cima da ideia e edificar a realidade de acordo com ela. O ser social
não deve mais determinar a sua consciência, mas sua consciência deve deter­
minar o ser social; em suma: com a emancipação em relação à última forma
possível da máscara do personagem a ser representado, os seres humanos se
emancipam de uma história caracterizada por um manto de objetividade social,
uma objetividade que, nessa forma da autonomização, ainda tinha sido pro­
duzida pelos próprios seres humanos. “O existente que o comunismo cria é
precisamente a base real para tornar impossível tudo o que existe independen­
temente dos indivíduos, na medida em que o existente nada mais é do que um
produto do intercâmbio anterior dos próprios indivíduos” (3/70-1 [ed. bras. A
ideologia alemã, p. 67]). Contudo, também em A ideologia alemã, Marx gasta
poucas palavras a respeito do modo como se parecerá esse novo ser social, no
qual os seres humanos colocarão as suas condições de existência sob seu con­
trole social em vez de se deixarem dominar por elas, a respeito do modo como
deve ser im aginada essa sociedade, da qual “os indivíduos participam na
qualidade de indivíduos” e não mais intercambiam uns com os outros sob a
forma de indivíduos medianos ou de classe acidentais, coisais. Como já vimos
na análise dos Manuscritos económico-filosóficos, ele não consegue decifrar a
estrutura da distorção sem visualizar o aspecto de um a identidade racional
de ser humano e natureza; sobre esta, entretanto, nada se consegue vislumbrar.
Marx certamente percebe que a forma estranhada sob a qual os seres humanos
laboram no interior da natureza para saírem da natureza ainda cunha as próprias
estruturas de necessidade e que é pura e simplesmente impossível fazer uma
diferenciação entre natureza im ediata e natureza mediada. Contudo, por ter
certeza de que a forma do estranhamento é uma forma histórica e não pode ser
identificada com o ser natural, não importando o quanto este tenha sido histo-

63
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

ricamente modificado, ele pode deixar esse problema tranquilamente a cargo


do futuro.

A organização comunista atua de maneira dupla sobre os anseios que produzem as


condições atuais no indivíduo: uma parte desses anseios, a saber, aquela que existe sob
todas as condições e que é transformada apenas em sua forma e tendência pelas distintas
condições sociais, também só é transformada sob essa nova forma social quando lhe são
dados os meios para o seu desenvolvimento normal; uma outra parte, em contrapartida,
a saber, aqueles anseios que devem sua origem tão somente a uma determinada forma
social, a determinadas condições de produção e intercâmbio, é totalmente privada de suas
condições vitais. Ora, quais são os anseios que, sob a organização comunista, serão trans­
formados e quais os que serão desfeitos é algo que só se pode decidir de forma prática,
pela transformação dos “anseios” realmente práticos, e não mediante comparação com
condições históricas precedentes. (3/238-9 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 250, nota a])

Partindo dessa forma extrema, conclusiva do estranhamento, Marx tenta


compreender a história transcorrida como história de um “intercâmbio limi­
tado”, que se apresenta como uma sucessão de diferentes formas de proprie­
dade privada. “N a medida em que, no interior do trabalho, a propriedade pri­
vada se defronta com o trabalho, ela se desenvolve a partir da necessidade da
acumulação e, de início, ainda conserva bastante a forma da comunidade; po­
rém, em seu desenvolvimento ulterior, ela se aproxima cada vez mais da forma
moderna da propriedade privada” (3/66 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 71-2]).
As formas do “intercâmbio limitado” que se alternam sucessivamente podem
ser compreendidas como fases diferentes — elas próprias ainda condicionadas
pelo desenvolvimento das forças produtivas — da divisão do trabalho, que se
apresentam, em correspondência ao conceito anteriormente analisado de pro­
priedade privada, como formas diferentes da personificação das condições de
produção estranhadas do produtor imediato: “As diferentes fases do desenvol­
vimento da divisão do trabalho significam outras tantas formas diferentes da
propriedade; quer dizer, cada nova fase da divisão do trabalho determina tam ­
bém as relações dos indivíduos uns com os outros no que diz respeito ao m a­
terial, ao instrumento e ao produto do trabalho” (3/22 [ed. bras. A ideologia
alemã, p. 89]). Renunciaremos aqui a uma reconstituição detalhada do cons-
truto marxiano; visto que, nesse tempo, ele ainda não tinha desenvolvido os
motivos decisivos da crítica econômica, especialmente a teoria do mais-valor
e a estrutura do nexo imanente das categorias, o conceito da divisão do traba­
lho precisou realizar para Marx mais do que podia ser exigido dele. No fundo,

64
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTORIA NA OBRA INICIAL DE MARX

Marx tem em mente a integração e a conversão crescentes de todos os organis­


mos naturais de produção num sistema gigantesco de dependência universal
que acaba por identificar-se como mercado mundial. O caminho trilhado nos
Excertos [do livro Élemens d ’économie politique, de James Mili], de derivar
o capitalismo da estrutura do processo simples de troca, é tomado indicativa­
mente, mas ao mesmo tempo associado a um conceito de capital que, urna vez
mais, vincula-se diretamente a ideias da anterior Crítica do direito do Estado
de Hegel [= Crítica da filosofia do direito de Hegel], em que Marx elabora pela
primeira vez, com o auxílio da inalienabilidade da propriedade fundiária feudal,
o princípio da distorção e descreve o proprietário de terras feudal como más­
cara de um personagem a ser representado. Em contraposição à glorificação
hegeliana do morgadio, Marx ressalta ali que

[...] a propriedade privada (a propriedade fundiária) é assegurada contra o próprio ar­


bítrio do proprietário pelo fato de a esfera do seu arbitrio se ter transformado, de arbitrio
humano geral, no arbitrio específico da propriedade privada', a propriedade privada
se tornou o sujeito da vontade e a vontade o mero predicado da propriedade privada. A
propriedade privada não é mais um objeto determinado do arbitrio, mas o arbitrio é o
predicado determinado da propriedade privada. (1/305 [ed. bras. Crítica da filosofia do
direito de Hegel, p. 116])

Essa propriedade privada “petrificada”, “assegurada”, “exata” está na base


do conceito de capital de A ideologia alemã: o capital é capital “estamental”
que com a crescente divisão do trabalho pode “liquefazer-se” cada vez mais.

O capital [...] era um capital natural que consistia na habitação, nas ferramentas e
na clientela natural e hereditária, e que tinha de ser legado de pai para filho como capi­
tal irrealizável, devido ao intercâmbio não desenvolvido e à circulação incompleta. Esse
capital não era, como o moderno, calculável em dinheiro e para o qual é indiferente se
ele é aplicado em uma ou outra coisa, mas sim um capital im ediatam ente ligado ao
trabalho determinado do possuidor e inseparável dele; era, nessa medida, um capital
estamental. (3/52 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 54])

O capital é descrito como algo universal que se mantém idêntico em meio à


alternância das diferentes formas de objetivação, mas ainda não alcançou —
enquanto tal processo — o modo de existência que lhe corresponde. Porém,
com a expansão do comércio e da divisão do trabalho surge a possibilidade da
“realização” e, com isso, da acumulação e da concentração desse capital que

65
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

vai se tomando cada vez mais mobilizável, que, por assim dizer, pode “estar
investido em coisas cada vez maiores” . O capital foi perdendo gradativamente
o “caráter natural que ainda se encontrava preso a ele” (3/59 [ed. bras. A ideo-
logia alemã, p. 59]), foi “liquefazendo-se” cada vez mais e, ao mesmo tempo,
concentrando-se em meios de trabalho cada vez m aiores, até alcançar, por
fim — passando pelo capital corporativo e manufatureiro — , a sua última fase
de desenvolvimento na “grande indústria”. Esse processo caminha de mãos
dadas com a dissociação entre o produtor imediato e os seus meios de trabalho,
sendo que a forma da conexão im ediata da existência subjetiva com a sua
continuidade objetiva é dissolvida passo a passo e se apresenta, por fim, como
sistema de distorção absoluta, como o poder das condições de produção auto­
nomizadas, dissociadas do trabalhador, as quais ganham existência subjetiva
na pessoa do capitalista.
Esse conceito de capital e as indicações nos Manuscritos econômico-filo-
sóficos fornecem-nos concomitantemente também uma chave para interpretar
como “burguesas” as estruturas em que os meios de trabalho e a divisão do
trabalho são pouco desenvolvidos. Propriedade tribal, propriedade comunitária
e pública antiga e propriedade feudal ou estamental — são estas as três formas
que Marx menciona em A ideologia alemã — ainda devem ser compreendidas
igualmente como expressão do “intercâmbio limitado” . Não há dúvida de que
também aí as condições de produção dominam o produtor, mas essa distorção
se apresenta em outra forma, a saber, na forma da imediatidade, que só pode
ser apreendida como tal quando se passa pela forma desenvolvida da distorção.
Se o capitalismo for despido da sua aparência dissimuladora oriunda da esfera
da circulação, segundo a qual os seres humanos intercam biam uns com os
outros como livres e iguais, também ele se apresenta apenas como forma de
reprodução na qual o próprio trabalho é adicionado às condições de produção.
É desse modo que Marx interpreta as condições pré-burguesas de dominação.
As pessoas “encontram-se como instrumentos de produção ao lado do instru­
mento de produção dado” (3/65 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 51]). A domina­
ção das condições de produção sobre os seres humanos, que caracterizou todas
as formações sociais da pré-história humana, aparece aqui na forma da sub-
sunção imediata dos seres humanos à natureza: os “indivíduos são subsumidos
à natureza” (3/65 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 51]). Por um lado, o próprio
trabalho, “seja na forma do escravo, seja na do servo, é arrolado entre os demais
seres naturais como condição inorgânica da produção, ao lado do gado ou como
apêndice da terra” (42/397 [ed. bras. Grundrisse, p. 401]), como diz Marx mais
tarde nos Grundrisse-, por outro lado, porém, também o correlato funcional no

66
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

interior do mundo distorcido, o não trabalhador, é “acidente da terra. De igual


modo, o morgado, o primogênito, pertence a terra. Ela o herda” (40/505 [ed.
bras. Manuscritos econômico- filosóficos, p. 74]). A dependência das pessoas em
relação às condições de produção aparece aqui ainda sob a forma de uma re­
lação pessoal. Isso é ressaltado uma vez mais nos Grundrisse: “Essas relações
externas [as relações burguesas, H. R.] tampouco são uma supressão das ‘rela­
ções de dependência’, dado que são apenas a sua resolução em uma forma
universal; são, ao contrário, a elaboração do fundamento universal das relações
pessoais de dependência. Também aqui os indivíduos só entram em relação
entre si como indivíduos determinados” (42/97 [ed. bras. Grundrisse, pp. 111-2]).
Sob o aspecto de uma forma de sociedade ainda a ser construída, na qual
os seres humanos passariam a controlar comunitariamente as suas condições
de produção — desenvolvidas sob a forma da “grande indústria” — e, desse
modo, ao mesmo tempo, criariam os pressupostos para uma unidade racional
conscientemente praticada do ser humano com a natureza, apresenta-se, por­
tanto, ao jovem Marx a história da humanidade inteira como uma sucessão
de distintas formas de dominação das condições de produção sobre o produtor.
O domínio crescente da natureza, que se reflete precipuamente na forma dos
meios de trabalho e na forma do processo do trabalho por eles condicionada,
vem acompanhado de um a transform ação na form a de intercâm bio, que se
diferencia da antiga forma de intercâmbio, das condições de produção anti­
quadas, por meio de uma nova forma de manifestação da personificação das
condições de produção estranhadas do trabalhador imediato. O vínculo ime­
diato, desde sempre já compreendido como estranhado, da existência subjetiva
com a sua continuidade objetiva diverge cada vez mais da form a social da
separação do produtor das condições de sua atividade, forma sob a qual foi
alcançado, ao mesmo tempo, o patamar mais elevado da apropriação da natu­
reza no interior do mundo distorcido da propriedade privada:

Partimos, até agora, dos instrumentos de produção e já aqui se mostra a necessidade


da propriedade privada para certas fases industriais. Na industrie extractive [indústria
extrativa], a propriedade privada ainda coincide plenamente com o trabalho; na peque­
na indústria e em toda a agricultura anterior, a propriedade é consequência necessária
dos instrumentos de produção existentes; na grande indústria, a contradição entre o
instrumento de produção e a propriedade privada é, desde já, o seu produto, para cuja
elaboração a indústria deve estar já bastante desenvolvida. É somente com a grande
indústria, portanto, que se torna possível a superação da propriedade privada. (3/66 [ed.
bras. A ideologia alemã, pp. 51-2])

67
SO B R E A ESTRU TU RA L Ó G IC A D O C O N C E IT O DE C APITAL EM K A R L M A R X

Quando se passa a expor conceitualmente esse evento como um processo


que transcorre objetivamente, deve-se lembrar, contudo, que, nessa forma de
exposição, sempre já está implícita na reflexão a condição de sua própria pos­
sibilidade, a saber, o fato de que o processo de constituição do gênero humano
transcorreu sob a forma da objetividade social — uma forma cuja especifici­
dade consiste justam ente em que a subjetividade que a constitui desaparece
completamente atrás dela — e só no ponto de culminação desse desenvolvi­
mento se torna transparente enquanto tal processo. Em A miséria da filosofia,
Marx diz nesse sentido:

Esquadrinhar todas essas questões [levantadas por Proudhon, H. R.] não significa
investigar a história profana real dos seres humanos de todo e qualquer século, descrever
esses seres humanos a um só tempo na qualidade de autores e atores de seu próprio
drama? Mas, a partir do momento em que se apresentam os seres humanos como os
atores e os autores de sua própria história, retorna-se, por um desvio, ao ponto de par­
tida real. (4/135 [ed. bras. A miséria da filosofia, p. 105 modif.]*)

Desse ponto de vista, a história da propriedade privada se apresenta como


sequência gradativa de diferentes limiares de emancipação, em cada um dos
quais os seres humanos se redefinem, retiram as máscaras do personagem que
representavam e adquirem nova identidade, no momento em que, mediante o
desenvolvimento de suas capacidades produtivas no confronto com a natureza,
uma forma de intercâmbio se tornou exterior e, por isso, objetivada enquanto
forma de intercâmbio ultrapassada, antiquada. Nesse ponto, assoma o signifi­
cado mais profundo do processo de reprodução sempre já compreendido como
unidade do processo de produção e distribuição, como interpenetração de for­
ças produtivas e condições de produção. Pois, o fato de a produção da vida
“desde já ” aparecer como uma relação dupla,

[...] de um lado, como relação natural, de outro, como relação social — social no senti­
do de que por ela se entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as
condições, o modo e a finalidade. [...] que um determinado modo de produção ou uma
determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de cooperação
ou a uma determinada fase social — modo de cooperação que é, ele próprio, uma “for­
ça produtiva" — [...]. (3/29-30 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 34])

* Ref. com pleta da edição brasileira: K. M arx, A m iséria da filosofia. Trad. Paulo Roberto
Banhara. São Paulo. Escala, 2007. (N. do T.)

68
/1 CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

significa tão somente que a máscara social deve ser compreendida como forma
necessária da autoatividade dos seres humanos, como forma que não é exterior
à sua individualidade, mas inclusive define historicamente em cada caso con­
creto a forma determinada da individualidade.

As condições sob as quais os indivíduos intercambiam uns com os outros [...] são
condições inerentes à sua individualidade e não algo externo a eles, condições sob as
quais esses indivíduos determinados, que existem sob determinadas relações, podem
produzir a sua vida material e tudo o que com ela se relaciona; são, portanto, as condi­
ções de sua autoatividade e produzidas por essa autoatividade. (3/71-2 [ed. bras. A ideo­
logia alemã, p. 68])

Contudo, ao atuarem sobre a natureza, modificarem a si próprios e a natu­


reza, os seres humanos modificam, ao mesmo tempo, a base das condições sob
as quais intercambiam, ou seja, modificam as máscaras de seus personagens
no sentido mais amplo possível. A forma de intercâmbio não é mais adequada
à nova constelação de ser humano e natureza e se objetiva cada vez mais como
entrave — a ser removido — , que cada vez mais se evidencia como algo ex­
terno ao indivíduo: “Os servos fugitivos consideravam a sua servidão anterior
como algo acidental à sua personalidade. Mas, com isso, apenas fizeram o que
faz toda classe que se liberta de um entrave” (3/76 [ed. bras. A ideologia alemã,
p. 65]). O gênero humano se desenvolve como humano, ao, por assim dizer,
mudar de pele como uma cobra e despir-se de diferentes formas de intercâmbio,
um a após a outra. Sobre a base de determ inadas formas do confronto com
a natureza, os indivíduos entram em contato uns com os outros só como in­
divíduos determinados, intercambiam sob condições restritas, que se consoli­
dam em m áscaras, mas que, por sua vez, voltam a ser solapadas por novas
formas de domínio da natureza e são substituídas por condições diferentes de
intercâmbio.

Essas diferentes condições, que apareceram primeiro como condições da autoativi­


dade e, mais tarde, como entraves a ela, formam ao longo de todo o desenvolvimento
histórico uma sequência concatenada de formas de intercâmbio, cujo encadeamento
consiste em que, no lugar da forma anterior de intercâmbio, que se tornou um entrave,
é colocada uma nova forma, que corresponde às forças produtivas mais desenvolvidas
e, com isso, ao avançado modo de autoadvidade dos indivíduos, uma forma que, à son
tour [por sua vez], toma-se novamente um entrave e é, então, substituída por outra. Dado
que essas condições, em cada fase, correspondem ao desenvolvimento simultâneo das

69
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

forças produtivas, sua história é, ao mesmo tempo, a história das forças produtivas em
desenvolvimento e que foram recebidas por cada nova geração e, desse modo, é a his­
tória do desenvolvimento das forças dos próprios indivíduos. (3/72 [ed. bras. A ideologia
alemã, p. 68])

De acordo com isso, a forma de intercâm bio aparece aos indivíduos en­
quanto forma de intercâmbio, enquanto algo externo e acidental à sua perso­
nalidade, no momento em que ela não mais corresponde ao estado do desen­
volvimento desses indivíduos. Enquanto a atitude do ser humano para com a
natureza coincidir como que substancialmente com a forma sob a qual os in­
divíduos intercam biam uns com os outros, esses indivíduos de antem ão já
estão impedidos de reconhecer como máscaras as máscaras do personagem que
representam. Assim sendo, a autorreflexão do sujeito que define a sua identi­
dade na objetivação de uma forma de intercâmbio e na emancipação em relação
a ela deve ser compreendida, ao mesmo tempo, como expressão de uma nova
formação social que se constituiu no ventre da antiga:

A condição determinada sob a qual eles produzem corresponde, assim, enquanto


não surge a contradição [entre forças produtivas e condições de produção, H. R.], à
sua real condicionalidade, à sua existência unilateral, unilateralidade que se mostra
apenas com o surgimento da contradição e que, portanto, existe somente para os pós­
teros. Assim, essa condição aparece como um entrave acidental. (3/72 [ed. bras. A ideo­
logia alemã, p. 68])

A forma como a acidentalidade é compreendida, a forma em que se revelam


ao indivíduo as m áscaras antiquadas depende, por sua vez, novam ente da
forma bem determinada do confronto do ser humano com a natureza, à qual
correspondem novas condições sob as quais os seres humanos podem inter­
cambiar uns com os outros e desenvolver as suas forças produtivas. Sendo elas
próprias mais uma vez condições limitadas do intercâmbio, que, todavia, ain­
da não podem ser percebidas como tais pelo sujeito, elas, ainda assim, con­
dicionam simultaneamente a forma em que se revela a máscara antiquada do
seu personagem.

A diferença entre indivíduo pessoal e indivíduo acidental não é uma distinção con­
ceituai, mas um fato histórico. Essa distinção tem um sentido distinto em épocas distin­
tas, por exemplo, o estamento como algo acidental para o indivíduo do século XVIII e,
plus ou moins [mais ou menos], também a família. E uma distinção que não nos cabe

70
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

fazer para cada época, mas que cada época faz por si mesma a partir dos diferentes
elementos que encontra, não segundo o conceito, mas forçada pelas condições m ate­
riais da vida. O que, em contraposição à época anterior, parece acidental à época poste­
rior — o mesmo vale também para os elementos que foram transmitidos da época anterior
à posterior — é uma forma de intercâmbio que correspondia a um determinado estágio
do desenvolvimento das forças produtivas. (3/71 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 67-8])

Esse processo da progressiva “m udança de pele”, no qual as pessoas se


reconhecem como “expositoras” relativamente à sua nova forma de intercâm­
bio — que ainda não pode ser decifrada por elas como sistema de máscaras — ,
objetiva-se igualmente, no “derradeiro ponto de culminação do desenvolvi­
mento da propriedade privada”, ainda enquanto tal processo de decifração
relativa das máscaras removidas e de emancipação em relação às formas de
intercâmbio antiquadas. Ele se objetiva na medida em que as pessoas mesmas,
tendo como base uma forma bem determinada de apropriação da natureza, se
emancipam daquela estrutura na qual, depois de certo tempo, as condições do
seu intercâmbio (as condições da distribuição) se evidenciam como novo en­
trave do confronto continuado do ser humano com a natureza.

Todas as apropriações revolucionárias anteriores [do instrumento de produção, H.


R.] foram limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade estava lim itada por um instru­
mento de produção e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se desse instrumento
de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. Seu instru­
mento de produção tornava-se sua propriedade, mas eles mesmos permaneciam subsu­
midos à divisão do trabalho e ao seu próprio instrumento de produção. Em todas as
apropriações anteriores, uma massa de indivíduos permanecia subsumida a um único
instrumento de produção; na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos
de produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsumida a todos.
O moderno intercâm bio universal não pode ser subsum ido aos indivíduos senão na
condição de ser subsumido a todos. (3/68 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 73])

Como vemos, oculta-se no conceito marxiano da propriedade privada a


pretensão de uma crítica definitiva de um positivismo duplo: por um lado, a da
positividade real, da objetividade das relações sociais com que os sujeitos se
defrontam na forma bem determ inada da autonomização; por outro lado, a
crítica de todo saber pré-marxiano como positivismo, na medida em que, nes­
se saber, os seres humanos tomam consciência da objetividade numa forma
não transparente para eles próprios. Esse segundo aspecto é o tema da concep-

71
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

ção de ideologia, ao qual queremos nos dedicar agora. Quando começamos a


nos ocupar com a obra inicial de Marx, vimos que os teoremas centrais sobre
a relação entre base, superestrutura e ideologia são formulados em discussão,
por um lado, com a filosofia do direito de Hegel e com o escrito Sobre a ques­
tão judaica de Bruno Bauer e, por outro lado, com a crítica feuerbachiana da
religião ou então a crítica da filosofia hegeliana. Nos dois casos, Marx constata
um “destacar-se a si mesmo” de um fundamento mundano, uma duplicação,
que — e isso não transparece mais explicitamente de escritos posteriores, como,
por exemplo, do Prefácio à crítica da economia política — deve ser explicada
ainda a partir da própria estrutura da base, do “autoesfacelamento e do auto-
contradizer-se desse fundamento m undano”. Como vimos, nos Manuscritos
económ ico-filosóficos, isso é feito de form a extrem am ente ampla. Além
da crítica abstrata antecipatória de toda teoria que não compreende a duplica­
ção à m aneira do próprio Marx, a explicação assume meramente a forma da
asseveração.

É fácil reconhecer a necessidade de que o movimento revolucionário inteiro encon­


tre a sua base tanto empírica como teórica no movimento da propriedade privada. Essa
propriedade privada material, imediatamente sensível, é a expressão material sensível
da vida humana estranhada. O seu movimento — a produção e o consumo — é a reve­
lação sensível do movimento de toda a produção até aqui, isto é, da realização ou reali­
dade do ser humano. Religião, família, Estado, direito, moral, ciência, arte etc. são
apenas modos específicos da produção e caem sob sua lei geral. (40/536-7 [ed. bras.
Manuscritos econômico-fdosófcos, p. 106 modif.])

Em A ideologia alemã, Marx, no fundo, tampouco vai muito além dessa


forma de explicação. Não obstante, encontram-se indicações significativas, das
quais se pode deduzir — quando lidas sobre o pano de fundo da teoria do di­
nheiro desenvolvida na obra tardia — de que modo essa derivação deve ser
feita, pelo menos no que se refere à forma das superestruturas política e ju rí­
dica. Assim como a forma-dinheiro provém da mercadoria enquanto unidade
im ediata de dois momentos que se excluem mutuamente, o Estado burguês
também deve ser derivado da dualidade de dois estados de interesse m utua­
m ente excludentes que caracterizam o modo de existência burguês: por um
lado, os indivíduos se desenvolvem sobre a base de condições que são comuns
a muitos e que são mantidas e asseguradas pelos indivíduos como condições
coletivas de existência; por outro lado, cada um desses indivíduos vai atrás dos
seus interesses particulares à custa de todos os demais, agindo, portanto, es-

72
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

sencialmente contra os seus próprios interesses, ou seja, contra os interesses


que ele tem em comum com todos os demais. Marx circunscreve da seguinte
m aneira essa contraditoriedade que define o sujeito burguês:

A atitude do burguês para com as instituições do seu regime é como a atitude do


judeu para com a lei; ele as transgride sempre que isso é possível em cada caso particular,
mas quer que todos os outros as observem. Se todos os burgueses, em massa e ao mesmo
tempo, transgredissem as instituições burguesas, eles deixariam de ser burgueses — um
comportamento que eles naturalmente não pensam em adotar e que de forma alguma é
algo que dependa do seu querer ou de seu proceder. O burguês corrompido transgride
as leis do casamento e secretamente comete adultério; o comerciante transgride a insti­
tuição da propriedade quando, pela especulação, pela falência etc., priva outrem da sua
propriedade; o jovem burguês, quando o pode, torna-se independente da sua própria
família e abole praticamente a família para si; mas o casamento, a propriedade, a famí­
lia permanecem intocados na teoria porque constituem, na prática, as bases sobre as
quais a burguesia erigiu o seu domínio, porque essas instituições, em sua forma burguesa,
são as condições que fazem do burguês um burguês, assim como a lei constantemente
transgredida faz do judeu religioso um judeu religioso. (3/163-4 [ed. bras. A ideologia
alemã, p. 181])

Dessa contradição peculiar de dois interesses que se excluem mutuamente


e que existem diretamente um ao lado do outro no sujeito burguês deve ser
derivada a forma do Estado, que existe ao lado da sociedade burguesa enquanto
Estado. E dessa “contradição do interesse particular com o interesse coletivo
que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma autônom a” (3/33
[ed. bras. A ideologia alemã, p. 37, nota o]). O interesse que o indivíduo tem
em comum com muitas pessoas deve ser articulado e imposto numa forma em
que, sendo válida para todos os indivíduos, aparece como separada e indepen­
dente de todos os indivíduos — como “vontade de Estado, como lei”. “Todos
os membros da sociedade burguesa (são) forçados a se constituir como Nós,
como pessoa moral, como Estado, para assegurar os seus interesses comuns”
(3/340 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 345]).

Assim como não depende da sua vontade ou arbitrariedade idealista o fato de seus
corpos serem pesados, tampouco depende dela impor a sua própria vontade na forma da
lei, pondo-a, ao mesmo tempo, fora do alcance da arbitrariedade pessoal de cada um
deles. Seu domínio pessoal deve se constituir simultaneamente como um domínio médio.
Seu poder pessoal se apoia em condições de vida que se desenvolvem como condições
comuns a muitos, cuja continuidade eles, na condição de dominadores, devem afirmar

73
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

contra outras e, ao mesmo tempo, como válidas para todos. A expressão dessa vontade
condicionada por seu interesse comum é a lei. Justamente a imposição dos indivíduos
independentes uns dos outros e da sua própria vontade, que sobre essa base é necessa­
riamente egoísta em seu comportamento recíproco, torna necessária a autorrenúncia na
lei e no direito, autorrenúncia como exceção, autoafirmação dos seus interesses na mé­
dia dos casos. (3/311-2 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 318 modif.])

É a essas indicações que, no essencial, limita-se a derivação da forma, na


qual os burgueses fazem valer os seus interesses coletivos. Usando como pa­
râmetro a execução rigorosa dessa forma de derivação na obra tardia, as linhas
de pensamento de A ideologia alemã se apresentam como “abstrações” em
duplo sentido: por um lado — já apontamos para isso — , Marx entende a con­
cepção m aterialista de história, na form a em que foi posta em A ideologia
alemã, como método auxiliar para iniciar o estudo e a apresentação da história.
Por outro lado — e nesse ponto o procedimento coincide amplamente com o
praticado nos Manuscritos económico-filosóficos — , não há como não perceber
que, com referência à forma de explicação da “sociedade burguesa em sua ação
como Estado”, trata-se igualmente de ideias que ainda carecem de uma expli­
citação mais exata.
Não obstante, tanto na discussão com a filosofia dos jovens-hegelianos
quanto nos Manuscritos económico-filosóficos, Marx toma como ponto de par­
tida a estrutura de duplicação e aqui, no fundo, apenas aclara aquilo que lá
havia sido dito com poucas frases. Quando se examina mais de perto o modo
da argumentação de Marx, fica evidente que essa aclaração tem preponderan­
temente a forma de ilustração, um fato que é condicionado pelo caráter de sua
própria concepção. Como sabemos, em A ideologia alemã, Marx fala da con­
cepção m aterialista da historia como de uma “ciência positiva”, positiva no
sentido de um conhecimento da realidade social que, pela primeira vez, é cris­
talina — que não é, ela própria, ainda pré-formada pelo objeto a ser conhecido.
Corresponde a isso urna crítica generalizada de toda a formulação teórica pré-
-marxiana no sentido mais amplo possível; essa teoria pré-marxiana, não im­
portando a forma com que entre em cena nem o quanto se diferencie em seus
detalhes, diverge, em seu conjunto, da concepção marxiana por não mais ser
capaz de acolher os seus próprios pressupostos materiais no processo reflexivo.
Se visualizam os que, para o jovem Marx, a historia transcorrida é a historia
da sociedade burguesa em suas diversas fases, pode-se falar de modo genera­
lizado de teoria burguesa, sendo que a peculiaridade da crítica marxiana con­
siste em que Marx informa de antemão sobre o elemento constituidor do cará-

74
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

ter burguês da teoria burguesa. Nesse caso, a filosofía dos jovens-hegelianos,


com a qual ele se ocupa em A ideologia alemã, apresenta-se só mais como um
caso específico de um tipo teórico que Marx decifra de modo geral como falsa
consciência.
Numa anotação à margem em A ideologia alemã, encontramos uma obser­
vação que sintetiza numa forma brevíssima o que é peculiar à teoria burguesa
em seu conjunto: “Preexistência da classe nos filósofos” (3/75 [ed. bras. A
ideologia alemã, p. 63, nota a\). A filosofia se caracteriza por uma inconsciên­
cia específica que precisa deter-se diante das formas que se encontram dadas
e nas quais se reflete o mundo ossificado, como se fossem instância última e
não mais derivável. A máscara é o objeto propriamente dito de sua realização;
porém, o fato de a filosofia não ter clareza sobre isso, por assim dizer, faz
parte do seu próprio conceito: ela não tem como refletir dentro do seu próprio
horizonte sobre o fato de a filosofia enquanto filosofia igualmente pertencer ao
mundo petrificado. As consequências disso, porém, são significativas: a filo­
sofia ou teoria geral que não mais inclui na reflexão os seus próprios pressu­
postos m ateriais já é — ainda antes de tom ar posição conscientem ente em
relação ao mundo — em si mesma, por sua forma, a afirmação do existente. O
seu objeto é o mundo inumano, sobre-humano, que ela, justam ente por não
identificar esse fato, aceita como humano, distorce em humano — é isso que
M arx quer dizer com interpretação na últim a tese sobre Feuerbach. Assim
sendo, essa interpretação sempre já é concom itantem ente uma contradição
existente, para a qual Marx aponta em outra oportunidade:

A economia política que aceita as relações da propriedade privada como se fossem


relações humanas e racionais move-se em uma constante contradição contra sua premis­
sa fundamental, a propriedade privada, numa contradição análoga à do teólogo que in­
terpreta constantemente as noções religiosas a partir de um ponto de vista humano e
justam ente através disso atenta sem cessar contra a sua premissa fundamental, o caráter
sobre-humano da religião. (2/33 [ed. bras. A sagrada fam ília, p. 44]*)

Porém, visto que à máscara burguesa é peculiar a forma do esfacelamento,


a teoria que se ocupa com essa máscara e, desse modo, também essa contradi­
ção que caracteriza a teoria burguesa em sua totalidade se apresentam em va-

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, A sagrada família. Trad. Marcelo Backes. São
Paulo, Boitempo, 2003. (N. do T.)

75
SO B R E A E ST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

riadas formas. Permaneçamos, primeiramente, naquela forma pela qual a teo­


ria se apresenta como exposição da base não consciente de si m esma: a
economia política. Enquanto tal, ela parte, como Marx já enfatizou nos M a­
nuscritos económico-filosóficos, do “fato da propriedade privada. Ela não nos
explica esse fato” [ed. bras., p. 79 modif.]. Furtivamente a forma da reprodução
burguesa se transform a para ela em forma natural da produção. Mais tarde,
quando nos ocuparmos com a crítica da economia política, veremos como essa
forma específica da própria consciência a-histórica ainda deve ser derivada da
natureza peculiar das categorias econômicas. Comparada com essa forma ori-
ginal-substancial do caráter burguês, como se encontra na “ciência da base”
clássica, a saber, nos fisiócratas, em Adam Smith e David Ricardo, a distorção
da forma histórica em forma natural feita pelos jovens-hegelianos aparenta ser
até mesmo grosseira. Esse dado e o fato de que, segundo a autocompreensão
marxiana, a teoria burguesa passou da época e só é ainda possível na forma de
apologia consciente também afetam a forma da sua própria crítica:

“Stirner” refutou, acima, a supressão comunista da propriedade privada ao converter


a propriedade privada no “ter” e, em seguida, ao declarar o verbo “ter” uma palavra
indispensável, uma verdade eterna, pois também na sociedade comunista poderia ocor­
rer de ele “ter" dor de barriga. Exatamente do mesmo modo, ele fundamenta, aqui, a
im possibilidade de se abolir a propriedade privada, transform ando-a no conceito da
propriedade, explorando o nexo etimológico entre “propriedade" e “próprio” e decla­
rando a palavra “próprio” uma verdade eterna, pois também sob o regime comunista
pode ocorrer que alguma dor de barriga lhe seja “própria”. (3/211 [ed. bras. A ideologia
alemã, pp. 224-5])

Em outra passagem, consta assim:

[...] quando o burguês explica aos comunistas: ao suprimirdes a minha existência


como burguês, suprimis a minha existência como indivíduo — quando, dessa maneira,
ele, na qualidade de burguês, identifica-se consigo mesmo como indivíduo — , então se
pode, ao menos, mostrar reconhecimento pela franqueza e pelo descaramento. Para o
burguês, este é realmente o caso; ele só acredita ser indivíduo na medida em que é bur­
guês. Mas o absurdo só começa a se tornar solene e sagrado no momento em que os
teóricos da burguesia entram em cena e conferem a essa afirmação uma expressão uni­
versal, ao identificar também teoricamente a propriedade do burguês com a individua­
lidade e ao querer justificar logicamente essa identificação. (3/210-1 [ed. bras. A ideolo­
gia alemã, p. 224])

76
A CONCEPÇÃO MATERIALISTA DE HISTÓRIA NA OBRA INICIAL DE MARX

Quando a teoria assume a forma da apología, aparece aquilo que, por assim
dizer, está na base de toda teoria burguesa: a revogação teórica da distorção
real. Através dela mesma, enquanto teoria, enquanto expressão do mundo dis­
torcido, ela justam ente não percebe dita distorção, mas a distorce novamente
em forma natural. A forma social da individualidade desatada é, para ela, últi­
ma instância, algo não mais derivável, que ela identifica com a individualida­
de natural — como quer que esta seja mediada. A isso Marx contrapõe:

Propriedade privada real é exatamente a coisa mais universal, que não tem absolu­
tamente nada a ver com a individualidade e que inclusive a derruba. Na mesma propor­
ção em que sou considerado como proprietário privado, deixo de ser considerado como
indivíduo — uma frase que os casamentos por dinheiro diariamente comprovam. (3/211
[ed. bras. A ideologia alemã, p. 225, nota a\)

Por se tratar sempre só do mesmo procedimento da identificação, a crítica


marxiana só pode ser tão boa ou tão ruim quanto aquilo mesmo que ela criti­
ca. A crítica a ser feita ao direito natural burguês e à economia política bur­
guesa deve ser diferente da utilizada contra o mesmo procedimento nos jovens-
-hegelianos. Por essa razão, queremos nos restringir a esses dois exemplos e
apenas lembrar que ainda nos depararemos com formas mais sutis de desvela-
mento dessa identificação, um a identificação que obstrui sim ultaneam ente
a visão para a relação real do ser humano com a natureza, pois essa distorção
da determinidade social da forma em forma natural vem diretamente acompa­
nhada da mistificação da própria natureza, como igualmente ainda veremos.
Quando nos voltamos para a crítica ideológica “propriamente dita”, depa-
ramo-nos, também aí, com a contradição central, peculiar a toda teoria burgue­
sa: com a distorção, da qual ela própria não tem consciência, do mundo sobre-
-humano em mundo humano, ou, nas palavras da última tese sobre Feuerbach,
com a interpretação do mundo. Porém, visto que a ideologia se ocupa especi­
ficamente com a sociedade que se m anifesta sob a forma estranhada, essa
contradição também se apresenta de outro modo: como teoria idealista. “Aqui,
como em geral ocorre com os ideólogos, é de notar que eles necessariamente
colocam a questão de cabeça para baixo e veem na sua ideologia tanto a força
motriz como o objetivo de todas as relações sociais, enquanto ela é tão somente
sua expressão ou sintom a” (3/405 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 405]). A
acima mencionada distorção em forma natural da forma social da individuali­
dade desatada, que é característica de toda a “ciência da base” burguesa, está
pressuposta aqui e, por assim dizer, define a ideologia pura e simplesmente

77
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

como uma forma da consciência, para a qual a base não está presente como
base. Portanto, em razão de partir igualmente da forma burguesa de reprodução
como forma natural da reprodução, de antemão já lhe está obstruído o acesso
à peculiaridade de todas as formas, nas quais os burgueses articulam e impõem
o seu interesse coletivo. O ato político não é mais compreendido como forma
específica da ação de um sujeito que, sob a forma da objetividade social, ainda
está laborando para deixar a natureza, mas só pode ainda ser apreendido como
atividade autoconsciente de um ser humano natural. Não há mais como perce­
ber a determinidade formal como tal, o fato de que os indivíduos nessas relações
determinadas têm de conferir expressão à sua vontade determinada por essas
relações numa determinada forma, ou seja, como “vontade do Estado e lei” ;
reina, muito antes, a “ilusão, como se a lei se baseasse na vontade e, mais
ainda, na vontade separada de sua base real, na vontade livre” (3/62 [ed. bras.
A ideologia alemã, p. 76]). Analogamente à teoria, ainda a ser tratada, dos fa­
tores da produção da economia política, que se deriva, como tendência de in­
terpretação quase que natural, da estrutura de superfície da totalidade do pro­
cesso capitalista, o idealismo de Hegel se apresenta ao jovem Marx apenas
como continuidade das ideias com que se ocupam os “estamentos ideológicos”
por força do ofício:

As relações de produção dos indivíduos até aqui estabelecidas igualmente devem


ganhar expressão em relações políticas e jurídicas. [...]. No âmbito da divisão do traba­
lho, essas relações obrigatoriamente se tornam independentes dos indivíduos. Todas as
relações só podem ser expressas em termos de linguagem na forma de conceitos. O fato
de essas generalizações e esses conceitos serem considerados como forças misteriosas
é uma consequência necessária da autonomização das relações reais, cuja expressão eles
constituem. Além dessa validade para a consciência comum, essas generalidades ainda
adquirem uma validade e uma conformação especial dos políticos e juristas, os quais,
em virtude da divisão do trabalho, dependem do cultivo desses conceitos e veem neles,
e não nas relações de produção, o verdadeiro fundamento de todas as reais relações de
propriedade. (3/347 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 351])

“Hegel idealizou as representações que tinham do Estado os ideólogos po­


líticos que ainda partiam dos indivíduos isolados, embora partissem meramen­
te da vontade desses indivíduos; Hegel transform a a vontade comum desses
indivíduos em vontade absoluta” (3/331 [ed. bras., p. 336]). Segundo a crítica
marxiana, o sistema hegeliano tanto quanto a teoria econômica burguesa estão
embasados na distorção, que não pode ser percebida por si própria, daquelas

78
A C O N C E P Ç Ã O M A T E R IA L IS T A D E H IS T O R IA NA O B R A IN IC IA L D E M A R X

determinações formais especificamente históricas para a forma natural, ou seja,


na identificação imediata da objetividade social — nessa forma determinada
da autonomização ainda produzida pelos próprios sujeitos — exatamente com
esses sujeitos naturais. O sistema gigantesco, que alega deduzir o mundo in­
teiro de um só princípio, é, para o Marx de A ideologia alemã, somente ainda
a expressão mais extremada e insuperável da revogação teórica da distorção
real e, portanto, igualmente ainda teoria de um sujeito que apenas “está parado
diante” do seu próprio mundo, conseguindo percebê-lo tão somente sob a for­
ma da contemplação, do objeto. Diante desse pano de fundo, as concepções
dos jovens-hegelianos sobre a relação entre teoria e práxis igualmente aparecem
como ainda pertencentes, de um modo que lhes é imperceptível, àquele mundo
que eles criticam, aparecem como forma específica de participação consciente
no interior da distorção existente:

Os velhos-hegelianos haviam compreendido tudo, desde que tudo fora reduzido a


uma categoria da lógica hegeliana. Os jovens-hegelianos criticavam tudo, introduzindo
furtivamente representações religiosas por debaixo de tudo ou declarando tudo como
algo teológico. Os jovens-hegelianos concordam com os velhos-hegelianos no que diz
respeito à crença no domínio da religião, dos conceitos, do universal no mundo exis­
tente. Só que uns combatem como uma usurpação do domínio o que os outros saúdam
como legítimo. (3/19 [ed. bras., p. 84])

Nesse ponto, ainda é preciso apontar para o aspecto anteriormente mencio­


nado da decifração relativa de formas antiquadas de intercâmbio, relativa na
medida em que a própria nova forma de intercâmbio ainda ingressa de modo
constitutivamente desfigurador na percepção das máscaras já postas de lado.
O sujeito burguês, para o qual a sociedade da livre concorrência se manifesta
como forma absoluta de existência da individualidade livre, tem, em decorrên­
cia disso, uma ideia diferente da do jovem Marx sobre a forma de sociedade da
qual ele se emancipou como se fosse um entrave. Ele aborda explicitamente
esse ponto mais tarde em A miséria cla filosofia.

Os economistas têm uma maneira invulgar de proceder. Para eles, só há duas espécies
de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições do feudalismo são instituições
artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Nesse ponto, assemelham-se aos
teólogos que também diferenciam duas espécies de religião. Qualquer religião que não
é a sua é invenção humana, ao passo que sua própria religião é uma revelação de Deus.
Quando os economistas dizem que as relações atuais, as relações da produção burguesa

79
S O B R E /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

são naturais, eles dão a entender que se trata de relações nas quais a geração da riqueza
e o desenvolvimento das forças produtivas se dão em conformidade com as leis da na­
tureza. Portanto, essas relações são, elas próprias, leis naturais independentes da influên­
cia do tempo. São leis eternas que devem reger sempre a sociedade. Assim, houve his­
tória, mas não haverá mais; houve história, visto que existiram instituições feudais e,
nessas instituições do feudalismo, encontram-se relações de produção totalmente dife­
rentes daquelas da sociedade burguesa, que os economistas querem fazer passar por
naturais e, portanto, eternas. (4/140 [ed. bras. A miséria da filosofia, p. 110 modif.])

No exame da obra tardia, ficará evidente que essa forma da consciência


a-histórica não se explica só porque a forma burguesa de reprodução é adequa­
da ao estado da apropriação da natureza, mas, além disso, por estar ancorada
na natureza peculiar das categorias econômicas.
Como vimos, a posição desenvolvida nos Manuscritos económico-filosófi­
cos não se alterou fundamentalmente. Também para o Marx de A ideologia
alemã não há dúvida de que a ciência se ocupa sempre de um mesmo objeto.
Só que uma delas se detém diante da forma estranhada como se fosse a última
instância e, desse modo, ela própria ainda está condicionada em sua forma, ao
passo que a outra compreende o objeto enquanto objeto na forma estranhada
e, por isso, pode, pela primeira vez, levantar a pretensão de ser uma ciência.
Nos Manuscritos económico-filosóficos, esse objeto é determinado como iden­
tidade do ser humano com a natureza, e a ciência é ciência da forma distorcida
dessa constelação “sujeito-objeto” alternante dentro da totalidade da natureza,
ou, com outras palavras: reconstituição do processo de constituição do gênero
humano que ainda transcorre de forma semelhante à da natureza e de forma
crítica de toda ciência pré-m arxiana enquanto ciência ainda enredada nesse
processo. Em A ideologia alemã, essa pretensão é mantida.

Toda concepção histórica até então ou tem deixado completamente desconsiderada


essa base real da história ou a tem considerado apenas como algo acessório, fora de toda
e qualquer conexão com o fluxo histórico. A história deve, por isso, ser sempre escrita
segundo um padrão situado fora dela; a produção real da vida aparece como algo pré-
-histórico, enquanto o elemento histórico aparece como algo separado da vida comum,
como algo extra e supraterreno. Com isso, a relação dos seres humanos com a natureza
é excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. (3/39 [ed.
bras. A ideologia alemã, pp. 43-4 modif.])

80
A C O N C E P Ç Ã O M A TE R IA LISTA D E H ISTO R IA NA OBRA IN IC IA L D E M A R X

Em contraposição, quando é identificada a relação real entre ser humano e


natureza, também a ciência despe a forma do estranhamento, tornando-se urna
ciência, e a oposição de natureza e historia é desmascarada como antagonismo
no interior da forma estranhada da ciência:

Conhecemos uma única ciência, a ciência da história. A historia pode ser examina­
da de dois lados, dividida em historia da natureza e historia humana. Os dois lados não
podem, no entanto, ser separados; enquanto existirem seres humanos, historia da natu­
reza e historia humana se condicionarão reciprocamente. A historia da natureza, a assim
chamada ciência natural, não nos diz respeito aqui; mas quanto à historia humana, será
preciso examiná-la, pois quase toda a ideologia se reduz ou a uma concepção distorcida
dessa historia ou a uma abstração total dela. A própria ideologia é apenas um dos lados
dessa historia. (3/18 [ed. bras. A ideologia alemã, pp. 86-7, nota d modif.])

N o ta s
1 Jenaer R ealphilosophie. Ed. por Johannes H offm eister, reim pressão de 1967, p. 249. Essa
elaboração específica da relação entre Estado e sociedade na filosofia política m oderna foi
exposta incisivamente em diversos ensaios por M anfred Riedel. Cf. Studien zu Hegels R echts­
philosophie. Frankfurt, 1969.
2 A relação entre ser hum ano e natureza em M arx foi explicitada desse modo pela primeira vez
por Alfred Schmidt. Cf. D er B egriff der N atur in der Lehre von Marx. Frankfurt, 1962.
3 K. A. W ittfogel m ostrou de que m aneira essa concepção de uma constelação “sujeito-objeto"
alternante no interior da totalidade da natureza pode ser convertida num instrum ento sutil
da análise sociocientífica. Cf. “G eopolitik, G eographischer M aterialism us und M arx is­
m us". em: Unter dem Banner des M arxism us, ano 3, 1929; e: “Die natürlichen Ursachen der
W irtschaftsgeschichte", em: Archiv fü r Sozialwissenschaft und Sozialpolitik, vol. 67, 1932.

81
C A PÍTU LO 2

SOCIEDA DE E CO N H EC IM EN T O EM O C A P I T A L

A. A s p e c t o s g e ra is do c o n c e ito de c a p ita l

A obra tardia de Marx não resiste à comparação com a pretensão imanente às


declarações programáticas feitas em A ideologia alemã. “Conceber [...] a so­
ciedade civil em seus diferentes estágios, como o fundamento de toda a histó­
ria, tanto a apresentando em sua ação como Estado como explicando a partir
dela o conjunto das diferentes criações teóricas e formas de consciência” (3/37-
8 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 42]), constitui — como já foi indicado — um
programa de pesquisa gigantesco, em relação ao qual toda tentativa de reali­
zação sempre só pode parecer um começo. Não se encontra um a derivação
sistem ática de todas as “superestruturas idealistas” a partir da base, nem se
explicita completam ente essa base. Marx passou a fazer uma diferenciação
muito exata entre estrutura burguesa e estrutura pré-burguesa; sobre os ele­
mentos pré-burgueses há apenas esboços, mas também a exposição da base
da sociedade burguesa, a anatomia da sociedade burguesa, não foi levada a
cabo do modo abrangente como foi concebida inclusive ainda no início da
redação do Rascunho. Naquela oportunidade, ele planejou um a reprodução
abrangente da totalidade do sistema capitalista, incluindo a análise dos impos­
tos e das dívidas do Estado, a abordagem da política colonialista, do comércio
exterior e das crises (42/188 [ed. bras. Grundrisse, pp. 204-5]). É mérito de dois
autores, Roman Rosdolsky e Vitali Solomonovitch Vigotski1, terem demons­
trado detalhadam ente que todo O capital de M arx representa, no fundo, a

83
SO B R E A ESTRU TU RA LÓ G IC A DO C O N CEITO D E CAPITAL EM KARL M ARX

execução apenas da primeira seção dessa concepção original do ano de 1857:


a saber, o desenvolvimento do “conceito geral do capitar'. Quanto mais Marx
se ocupa com a economia política, tanto mais o material se estrutura em coisas
prim árias e coisas secundárias; esse “conceito geral do capital” torna-se o
conceito dominante que o leva a não escrever os livros originalmente planeja­
dos sobre trabalho assalariado, propriedade fundiária, Estado e comércio ex­
terior, mas apenas acolher certas partes desses livros, que acabaram por não
ser escritos nessa “investigação geral”, que é como ele mais tarde também a
denomina algumas vezes. Não se trata, contudo, em primeiro plano de uma
abreviação, mas algo que foi percebido por Marx como uma forma perfeita­
mente adequada de dar conta de todo o material. Isso se depreende de uma
carta de dezembro de 1862 a Kugelmann, na qual ele escreve que se trata da
quintessência da economia política, e que “a explicitação do que decorre daí
[...] poderia ser facilmente levada a cabo por outros sobre a base do que foi
entregue” (30/639). (Com exceção, acrescenta ele, da relação das diferentes
formas de Estado com as diferentes estruturas econômicas da sociedade. Essa
era uma tarefa que ele queria reservar para si.)
Mas o que significa: exposição do “conceito geral do capital”? Para o eco­
nomista profissional essa formulação “hegelianizadora” será apenas uma pro­
va a mais de que Marx nunca chegou a se libertar completamente da esfera de
influência da especulação hegeliana. Ou então descarta-se essa formulação
como uma peculiaridade linguística que tem pouco ou nenhum significado
concreto. A interpretação de Marx durante o período da Segunda Internacional
procedeu, em seu conjunto, de acordo com esse princípio. Contudo, não há
como negar que o próprio Marx praticamente provocou essa maneira de inter­
pretá-lo. No posfácio à segunda edição de O capital, ele escreve:

Critiquei o lado mistificador da dialética hegeliana há quase trinta anos, quando ela
ainda estava na moda. Mas quando eu elaborava o primeiro volume de O capital, os
enfadonhos, presunçosos e medíocres epígonos que hoje pontificam na Alemanha culta
acharam-se no direito de tratar Hegel como o bom Moses Mendelssohn tratava Espino-
sa na época de Lessing: como um "cachorro morto". Por essa razão, declarei-me publi­
camente como discípulo daquele grande pensador e, no capítulo sobre a teoria do valor,
cheguei até a coquetear aqui e ali com seus modos peculiares de expressão. (23/27 [ed.
bras. O capital, vol. I, p. 91])

Expressões como "coquetear” com certeza não contribuem para encorajar


o intérprete a refletir sobre a real relação entre Marx e Hegel. Há cientistas que
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

até mesmo tendem a achar que Marx de modo algum estava suficientemente
consciente de seu próprio procedim ento2. Não se deve deixar de mencionar
aqui que essa interpretação consegue apoiar-se em enunciados notavelmente
banais de Marx. No entanto, queremos deixar de lado a ideia de abordar mais
detidamente esse argumento, visto que a impropriedade de muitas observações
pode ser derivada da m esma maneira, ao menos parcialm ente, da natureza
do objeto a ser exposto, cuja peculiaridade consiste justam ente em que, disso­
ciado da execução da sua exposição, praticam ente nada se pode discernir a
respeito do método.
Parece-nos que uma outra interpretação faz mais sentido. A posição m ate­
rialista e a sua relação com a filosofia do idealismo absoluto não foram fixadas
de uma vez por todas na análise crítica de Hegel do período inicial, mas, pelo
contrário, o Marx maduro se submeteu a um segundo estudo sobre Hegel. Esse
fato foi ressaltado em especial por Alfred Schmidt3. Nesse contexto, é preciso
apontar para uma carta em que Marx enfatiza o “grande serviço” que lhe pres­
tou a lógica hegeliana “no método de processar dados” (29/260). Essa obser­
vação foi feita no período da redação do Rascunho de O capital, e, nesse
momento, Marx pela primeira vez não fala mais simplesmente de exposição,
mas explicitam ente de forma dialética de exposição. No Rascunho, que foi
escrito por Marx exclusivamente para aclarar sua própria compreensão, essa
relação entre economia e dialética é tão estreita que já nem é mais possível
dissociar um “conteúdo econômico” de sua forma da exposição, de tal modo
que justamente essa obra oferece dificuldades quase insuperáveis à leitura, mas,
ao mesmo tempo, é só mediante essa forma que é franqueado o acesso aos
conteúdos próprios da crítica econômica marxiana e, desse modo, também à
estrutura lógica do capital. Uma leitura micrológica do primeiro volume da
obra principal de Marx, ainda publicada por ele próprio e em cuja redação ele
usa com m uita consciência uma linguagem extremamente sóbria (ele certa­
mente também o faz para não facilitar demais aos seus críticos a objeção de
ter assumido sem rupturas a filosofia hegeliana e suas implicações), mostra que
não é só no primeiro capítulo que ele "coqueteia” com o modo hegeliano de se
expressar. No quarto capítulo, ele descreve o valor em seu movimento enquan­
to capital como “sujeito autom ático”, “o sujeito abrangente de um processo
em que ele, por debaixo de sua constante variação de forma, aparecendo ora
como dinheiro, ora como mercadoria, altera sua própria grandeza", como “subs­
tância que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinheiro não são mais
do que meras formas” (23/169 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 230]). Trata-se de
formulações que, por um lado, vinculam-se a motivos da filosofia hegeliana.

85
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

mas, por outro lado, praticamente não evidenciam mais o momento de arbitra­
riedade im plícito na expressão “coquetear”. É preciso assumir, muito antes,
que também em O capital, Marx tem de recorrer a essas estruturas por ser
forçado a fazê-lo em função do tema, e não só por isso, mas também porque
existe uma identidade estrutural entre o conceito marxiano de capital e o con­
ceito hegeliano de espírito. Essa conexão poderia ser reforçada mediante com­
paração com formulações anteriores de Marx, nas quais ele, ao caracterizar o
dinheiro como “conceito existente e atuante do valor de todas as coisas” (40/566
[ed. bras. Manuscritos económico-filosóficos, p. 160 modif.]), usa formulações
que lembram a Filosofia real de lena, na qual Hegel constata explicitamente
essa identidade de estrutura do espírito e estrutura do dinheiro: “Existe aí o
princípio formal da razão. (Porém, esse dinheiro, que tem o significado de
todas as necessidades, é, ele próprio, apenas uma coisa imediata) — É a abs­
tração de toda particularidade, de todo caráter etc., de toda qualificação do
indivíduo”4. Essa conexão fica ainda mais evidente numa manifestação que se
encontra no volume III de O capital·. “Em tal investigação geral supõe-se so­
bretudo sempre que as condições reais correspondam a seu conceito” (25/152
[ed. bras. O capital, vol. III, tomo 1, p. 111]*). Essa passagem deveria constituir
o ponto de partida de toda análise séria da obra marxiana, e a futura interpre­
tação de Marx deverá ser avaliada pela medida com que explicitou as implica­
ções dessa indicação. Fundamentalmente tem-se em mente o mesmo procedi­
mento que ele caracteriza no Rascunho como “exposição do conceito geral do
capital”, sendo que aqui se torna totalmente manifesto que os pontos estruturais
em comum com a filosofia hegeliana chegam até o princípio central de Hegel:
no pressuposto de que as relações reais “correspondem ao seu conceito”, ocul­
ta-se nada menos que o conceito de verdade de Hegel, que rompe radicalmen­
te com a concepção tradicional de verdade como relação unilateral de repre­
sentação. “No sentido filosófico, verdade significa, em term os abstratos,
concordância de um conteúdo consigo mesmo”, diz Hegel no Sistema da filo ­
sofia**. A pergunta se o conceito corresponde à coisa ele equipara a contraper-
gunta, a saber, se a coisa também corresponde ao conceito. Não nos preocupe­
mos aqui com o fato de esse conceito de verdade ser obtido por um preço

* Ref. com pleta da edição brasileira: K. M arx, O capital. Ed. Friedrich Engels. Trad. Régis
Barbosa e Flávio R. Kothe. São Paulo, Abril Cultural, 1983, vol. III, tomo 1. (N. do T.)
** Cf. passagem sim ilar em G. W. F. Hegel, Enciclopédia das ciências filosóficas em com pên­
dio. Vol. I: A ciência da lógica. Trad. Paulo M eneses. São Paulo, Loyola, 1995, p. 82 (§ 24,
adendo 2). (N. do T.)

86
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

que seria muito alto para a filosofia da reflexão criticada por Hegel, ou seja, o
da sua superação, ainda que isso se dê no seu próprio terreno, no terreno filo­
sófico. Ao inflar o conceito até o absoluto, Hegel corta o nó górdio da filosofia
moderna, que desejou ir além do conceito com meios conceituais, mas na
tentativa de transpor a diferença entre sujeito e objeto simultaneamente esta­
belece essa diferença como intransponível. Isso pode acarretar, em muitos
aspectos, um retrocesso em relação a posições há muito alcançadas. Porém, só
o que nos interessa aqui é o fato de que, sobre a base dessa distorção total,
Hegel estrutura uma filosofia que apresenta paralelismos surpreendentes com
o sistema marxiano, constituindo em parte diretamente um modelo metodoló­
gico para Marx. Hegel antecipa no plano filosófico aquilo que Marx decifra
como enigma da sociedade burguesa: a distorção de algo originado em algo
originário. Por conseguinte, a inflação do conceito em absoluto é, para Marx,
a expressão adequada de uma realidade em que esse processo se desenrola de
modo análogo. Sobretudo no Rascunho de O capital vem à tona que, na expo­
sição marxiana, o capital tem bem mais pontos em comum com o conceito
absoluto de Hegel do que gostaria de admitir uma ciência com uma postura
solidamente materialista. Isso não deve ser entendido no sentido de uma simples
equiparação de capital e espírito universal, embora também se tenha em mente
esse aspecto. Nessa linha, é preciso apontar aqui, antes de tudo, que, no próprio
capitalismo, o motor do desenvolvimento social, a saber, a mudança das forças
produtivas, ainda se deve à natureza da relação central de produção. Enquanto
em épocas anteriores, as forças produtivas se desenvolviam mais ou menos ao
acaso no interior de determinadas relações de produção, aqui o desenvolvimen­
to de novas formas de apropriação da natureza se tornou um momento integral
da autopreservação do capital; a própria mudança constante da constelação
“sujeito-objeto” — a humanidade de um lado, a natureza do outro — torna-se
algo como que estático. “No conceito mais simples do capital, têm de estar
contidas em si suas tendências civilizatórias etc.; não podem aparecer, tal qual
nas teorias econômicas até aqui, como meras consequências externas” (42/327
[ed. bras. Grundrisse, p. 338]).

Portanto, da mesma maneira que a produção baseada no capital cria, por um lado, a
indústria universal [...], cria também, por outro lado, um sistema da exploração univer­
sal das qualidades naturais e humanas, um sistema da utilidade universal, do qual a
própria ciência aparece como portadora tão perfeita quanto todas as qualidades físicas
e espirituais, ao passo que nada aparece elevado-em-si-mesmo, legítimo-em-si-mesmo
fora desse círculo de produção e troca sociais. Dessa forma, é só o capital que cria a

87
S O B R E .4 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

sociedade burguesa e a apropriação universal da natureza, bem como da própria conexão


social pelos membros da sociedade. Daí a grande influência civilizadora do capital; sua
produção de um nível de sociedade, em comparação com o qual todos os anteriores
aparecem apenas como desenvolvimentos locais da humanidade e como idolatria da
natureza. Só então a natureza torna-se puro objeto para o ser humano, pura coisa da
utilidade; deixa de ser reconhecida como poder em si; e o próprio conhecimento teórico
de suas leis autônomas aparece unicamente como ardil para submetê-la às necessidades
humanas, seja como objeto do consumo, seja como meio da produção. O capital, de
acordo com essa sua tendência, move-se para além tanto das barreiras e dos preconcei­
tos nacionais quanto da divinização da natureza, bem como da satisfação tradicional das
necessidades correntes, complacentemente circunscrita a certos limites, e da reprodução
do modo de vida anterior. O capital é destrutivo disso tudo e revoluciona constantemen­
te, derruba todas as barreiras que impedem o desenvolvimento das forças produtivas, a
ampliação das necessidades, a diversidade da produção e a exploração e a troca da na­
tureza e das forças espirituais. (42/323 [ed. bras. Grundrisse, pp. 333-4])

Além disso, Marx, pelo visto, compreende o seu conceito de capital também
como decifração m aterialista de antinomias centrais da filosofia burguesa da
história. Em A ideologia alemã, encontra-se a sucinta indicação de que o “po­
der estranho” , ao qual os indivíduos estão subsumidos e que eles concebem
“como um ardil do assim chamado espírito universal”, “revela-se, em última
instância, como mercado mundial” (3/37 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 40]).
Mais tarde fica claro que ele vê o capital como o substrato material do sujeito
unitário da filosofia burguesa da história, substrato que — antes de franquear
a visão para a sua própria natureza interna numa determinada fase de desen­
volvimento — só podia ter aparecido nessa forma — filosófica — para o su­
jeito reflexivo, que necessariamente distorce em forma natural a forma social
da individualidade desatada. Marx diz já em ¿4 ideologia alemã que, na Era
Moderna, os indivíduos só são mais livres nas “ideias”, na “representação”,
mas, na realidade, são menos livres que na era pré-burguesa por estarem mais
subsumidos ao poder das coisas (3/76 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 65]). No
Rascunho, porém, ele mostra como ganha existência essa representação de
liberdade com a simultaneamente crescente falta de liberdade, como o próprio
capital existente produz essa forma de liberdade, através da qual ele realiza a
sua regularidade imanente. “Na livre concorrência, não são os indivíduos que
são liberados, mas o capital. [...] Em consequência, esse tipo de liberdade in­
dividual é ao mesmo tempo a mais completa supressão de toda liberdade indi­
vidual e a total subjugação da individualidade sob condições sociais que assu-
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

mem a forma de poderes coisais, na verdade, de coisas superpoderosas [...]”


(42/550-1 [ed. bras. Grundrisse, pp. 545-6]). Por essa razão, só é livre o indiví­
duo sob a forma da máscara, cuja atuação já está pré-formada, que de qualquer
modo já é um agir universal, ainda que se trate de um agir universal na forma
da particularidade. Já depreendemos de A ideologia alemã que a teoria m ate­
rialista se ocupa exclusivamente com a máscara social e que a propriedade
privada deve ser equiparada à abstração real de toda a individualidade: “Pro­
priedade privada real é exatamente a coisa mais universal, que não tem abso­
lutam ente nada a ver com a individualidade e que inclusive a derruba. Na
mesma proporção em que sou considerado como proprietário privado, deixo
de ser considerado como indivíduo — uma frase que os casamentos por dinheiro
diariamente comprovam” (3/211 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 225, nota a]).
No Rascunho, essa ideia é desenvolvida sistematicamente sob a forma do “ca­
pital existente para si”, do capital que existe, referindo-se a si mesmo como
outro capital, e então em O capital não mais com a term inologia orientada
diretamente em Hegel, mas idêntica quanto ao teor como personificação de
categorias econômicas:

Para evitar possíveis erros de compreensão, ainda algumas palavras. De modo algum
retrato com cores róseas as figuras do capitalista e do proprietário fundiário. Mas aqui
só se trata de pessoas na medida em que elas constituem a personificação de categorias
econômicas, as portadoras de determinadas relações e interesses de classes. Meu ponto
de vista, que apreende o desenvolvimento da formação econômica da sociedade como
um processo histórico-natural, pode menos do que qualquer outro responsabilizar
o indivíduo por relações das quais ele continua a ser socialmente uma criatura, por
mais que, subjetivamente, ele possa se colocar acima delas. (23/16 [ed. bras. O capital,
vol. I, p. 80])

O idealismo de Hegel, ao afirmar que os seres humanos obedecem a um


conceito detentor de poder, é essencialm ente mais adequado a esse mundo
distorcido do que qualquer teoria nom inalista que aceita o universal tão so­
mente como algo subjetivamente conceituai. Ele é a sociedade civil — enquan­
to ontologia. A diluição do não idêntico à condição de pura categoria tem seu
substrato real nessa distorção fática, na qual a individualidade viva é absorvida
pela própria máscara do seu personagem. Sob esse aspecto, o conceito da ex­
posição, tomado de Hegel, aparece sob uma nova luz. Anteriormente já foi
mencionado que, na época da redação do Rascunho, Marx dedicou-se a um
segundo estudo de Hegel e que, depois disso, fala pela primeira vez explicita-

89
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

mente do conceito da “exposição dialética” . Em janeiro de 1858, ele escreve a


Friedrich Engels:

No método de processamento, prestou-me um grande serviço o fato de eu by mere


accident [acidentalmente] — Freiligrath encontrou alguns volumes de Hegel original­
mente pertencentes a Bakunin e os mandou de presente para mim — ter folheado nova­
mente a Lógica de Hegel. Se algum dia eu tiver tempo para realizar esse trabalho, teria
m uita vontade de tornar acessível ao entendim ento humano comum, em dois ou três
cadernos de impressão, o aspecto racional do método que Hegel descobriu, mas ao
mesmo tempo mistificou. (29/260)

Tendo em vista os grandes mal-entendidos sobre a dialética materialista,


que até hoje não foram dirimidos, só se pode lam entar que M arx não tenha
mais encontrado tempo para executar esse trabalho. Ele não chegou sequer a
dar indícios sobre o que foi esse serviço que a lógica hegeliana lhe prestou no
método de processamento, nem desenvolveu de forma sistemática no que ele
vislumbrou o aspecto racional do método hegeliano. Isso é lamentável, sobre­
tudo porque as poucas manifestações sobre a dialética de modo algum fran­
queiam ao iniciante o acesso ao método dialético, mas só são compreensíveis
para quem de qualquer modo já sabe do que se trata.
Mesmo que Marx não explicite isso com tanta clareza, é de presumir que
ele não entendeu o método dialético como um procedimento de validade su-
pratem poral, mas bem m ais com o um m étodo que é tão bom ou tão ruim
quanto a sociedade a que ele corresponde. Ele só tem validade onde impõe um
universal à custa do individual. Enquanto dialética idealista, ele é a duplicação
filosófica da distorção real; enquanto dialética m aterialista, é método a ser
revogado, que desaparecerá junto com as condições de sua existência. Em
consequência, induz a erro sobretudo falar da “aplicação do método dialético”,
o que transm ite a im pressão de tratar-se de um procedim ento que pode ser
aprendido, que pode ser assentado a partir de fora a diversos conteúdos. Marx,
no entanto, jamais teve essa intenção; esse equívoco deve ser remontado muito
antes ao nosso modo atual de ver as coisas, que mais do que nunca se orienta
no ideal metodológico das ciências naturais. Marx insiste em que — e nisso
ele se revelou um discípulo autêntico de Hegel — nada se pode dizer sobre o
método independentemente do seu conteúdo. Baseado justam ente nos ensaios
econômicos de Ferdinand Lassalle, ele critica essa transposição singela e acrí-
tica da dialética hegeliana para novos objetos. Em fevereiro de 1858, ou seja,

90
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

no período em que estava trabalhando no Rascunho de O capital, Marx escreve


a Friedrich Engels:

A partir dessa única anotação, já vejo que o rapaz pretende expor a economia polí­
tica em termos hegelianos no seu segundo grande opus. Ele descobrirá para o seu próprio
prejuízo que uma coisa é deixar uma ciência, mediante a crítica, no ponto de poder ser
exposta dialeticamente e outra bem diferente é aplicar um sistema da lógica abstrato e
já pronto a intuições justam ente de tal sistema. (29/275)

Tendo como pano de fundo o conjunto da teoria materialista, é óbvio que essa
observação se refere unicamente à ciência da economia política, que, enquan­
to exposição da base, de qualquer modo constitui o ponto de partida científico
para o desenvolvimento da teoria do Estado e de toda ideologia. Só a economia
política é, de modo geral, objeto da exposição dialética; ela própria exige essa
forma; o fato de Marx “folhear” a Lógica de Hegel justam ente na época em
que está ocupado com a redação do Rascunho, podendo assim agregá-la como
modelo m etodológico, está, por isso mesmo, condicionado igualmente pela
apreensão mais precisa do objeto propriamente dito dessa ciência, a qual ele,
mais ou menos no mesmo período, caracteriza, numa carta a Lassalle, como
“crítica das categorias econômicas” (29/550). Significativo e característico ao
mesmo tempo é o fato de Marx não se estender sobre o tema, mas contentar-se
com essa indicação.
Contudo, quando se tem alguma familiaridade com a natureza desse objeto
e com a estrutura complexa de sua exposição, com O capital, torna-se com ­
preensível por que é questionável toda tentativa de caracterização genérica não
só do sistema de categorias e do método de exposição, mas também de todo o
processo capitalista real, e por que ela de antemão forçosamente se equivoca­
rá quanto ao objeto. De fato, também deve valer aqui o que Hegel reivindica
para a sua filosofia: o caminho para a ciência é ela mesma. A única forma
possível da definição é a efetuação do sistema em sua totalidade, que em alguns
“pontos nodais” dá ensejo a observações mais genéricas, cuja discussão, con­
tudo, jam ais deveria ser dissociada da respectiva estrutura em que se encontra
no interior da exposição global. Assim sendo, em última análise, também as
poucas referências à natureza das categorias, que ele descreve como “formas
ideais objetivas”, só podem ser plenamente apreendidas enquanto “formas de
manifestação de relações essenciais” ou “expressões de funções” no seu lugar
concreto. Contudo, para delinear o horizonte geral diante do qual deve ser
vista a crítica das categorias econômicas, será feita aqui, não obstante, uma

91
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

tentativa, dissociada do “conceito geral do capital” e anterior à sua efetuação,


de dizer algo sobre a estrutura do sistema global, e isso mediante o esboço de
alguns problemas da economia política.
Visando à exposição, Marx diferencia radicalmente, no Rascunho, “capital
em geral” de capital individual, e, nesse contexto, sempre indica que a análise
da concorrência só será feita bem mais tarde. Contudo, o modo da diferencia­
ção é sumamente significativo, visto que ele não só permite adquirir uma pri­
m eira noção provisória do método da exposição, mas tam bém engloba por
princípio também toda a crítica da economia política burguesa. Expressando
concordância, Marx menciona que, em seu comentário sobre a obra de Adam
Smith, Wakefield “farejou corretamente” que “a livre concorrência [...] jam ais
foi elaborada pelos economistas, por mais que tagarelem sobre ela e que seja
a base de toda a produção burguesa, da produção fundada no capital” (42/327
[ed. bras. Grundrisse, p. 338]). De fato, o conceito da concorrência permite
demonstrar de modo incisivo como a estrutura da consciência burguesa neces­
sariamente obriga o teórico a capitular. A distorção da máscara em forma na­
tural, a hipostasiação do sujeito burguês em ser humano puro e simples, que
faz com que a individualidade desatada apareça como forma absoluta de exis­
tência do sujeito livre, expressa-se como impossibilidade teórica de uma ex­
plicação positiva da concorrência. A consciência burguesa é obrigada a ater-se
a um modo de análise negativo que precisa absolutizá-la — visto que ela não
percebe o seu próprio procedimento como tal.

A concorrência, porque aparece historicamente como dissolução de obrigação cor­


porativa, regulamentação governamental, alfândegas internas e similares no interior de
um país, e no mercado mundial como supressão de barreiras ou proteção — em suma,
porque aparece historicamente como negação dos limites e das barreiras peculiares às
fases de produção que precederam o capital; porque historicam ente foi qualificada e
saudada pelos fisiocratas, de modo totalmente correto, como laissezfaire, laissez passer;
por essas razões, ela passou a ser considerada por esse aspecto puramente negativo, por
esse seu aspecto puramente histórico. (42/549-50 [ed. bras. Grundrisse, p. 544])

Essa necessária absolutização de um modo de análise meramente histórico


incide na formação da teoria como procedimento hipotético, sendo sintomáti­
co, de acordo com Marx, da força do pensamento de David Ricardo que justa­
mente a reflexão sobre a exterioridade e a arbitrariedade desse modo de pro­
ceder suscite nele um a intuição da natureza histórica das leis econômicas
burguesas, como ele próprio ressalta, reconhecendo o fato. Para fazer com que

92
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

as leis do capital assomem em sua pureza, Ricardo supõe a "concorrência ir­


restrita” e a “multiplicação dos produtos a bel-prazer”, embora a razão de ser
teórica dessa suposição não seja plausível. Na falta de clareza metodológica
dessa suposição, que ainda hoje é adotada sem discussão na bibliografia eco­
nômica, oculta-se, para Marx, toda a problemática da economia política bur­
guesa, que, naquela época, era a única ciência que continha problemas reais
que ele podia tomar como ponto de partida. Pois ela era a exposição da base,
mas, sendo ciência burguesa, era uma forma de exposição da base não cons­
ciente de si mesma enquanto base, resultando daí — se assim quisermos — a
situação paradoxal de que a base mesma ainda ingressa na sua própria exposi­
ção na condição de algo como uma cegueira categorial. O aspecto constituinte
da economia política burguesa consiste justam ente em que ela não reconhece
que, no caso do seu próprio objeto, trata-se de um processo de reprodução
social global, que se “decompõe” no trabalho privado de produtores individuais,
que não servem ao interesse universal apenas na medida em que cada indivíduo
persegue irrestritamente o seu interesse privado, mas que já no ato de perseguir
o interesse privado realizam o universal: a “natureza intrínseca” do capital.
Orientando-se diretamente na formulação lógico-especulativa que Hegel fez
do momento conceituai da particularidade [Einzelheit], da peculiaridade [Be-
sonderheit\ refletida em si mesma e, por essa via, reconduzida à universalidade
[Allgemeinheit], Marx compreende o capital existente. Assim como o “eu pen­
so” da consciência de si — portanto, o exemplo do conceito e especialmente
do momento da particularidade — só existe, só é aí no ato de pensar, enquanto
universal ele só existe quando está ciente de ser algo que se m antém como
idêntico numa determinidade, sendo a determinidade para si do eu, assim tam ­
bém o capital só pode existir como existente para si: “o capital existente para
si é o capitalista. Evidentemente é dito por socialistas que precisamos do ca­
pital, mas não do capitalista. O capital aparece então como pura coisa, não
como relação de produção, que, refletida em si mesma, é precisamente o capi­
talista” (42/224-5 [ed. bras. Grundrisse, p. 236]). Isso, porém, nada mais é que
o conceito marxiano de concorrência. O capital enquanto existente é a relação
do capital consigo mesmo como outro capital, mas enquanto capital “é a re­
pulsão de si mesmo, os muitos capitais totalmente indiferentes entre si” (42/336
[ed. bras. Grundrisse, p. 345]). “Conceitualmente a concorrência nada mais é
que natureza interna do capital, sua determinação essencial, que se manifesta
e se realiza como ação recíproca dos vários capitais uns sobre os outros, a
tendência interna como necessidade externa” (42/327 [ed. bras. Grundrisse,
p. 338]). A isso se limita a análise marxiana da concorrência no Rascunho de

93
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

O capital, que se ocupa unicamente com a exposição rigorosa do “conceito


geral do capital”. Contudo, em O capital a coisa é diferente. A diferenciação
radical entre conceito geral e concorrência enquanto capital existente, cuja
exposição não se pretende mais acolher na investigação geral, não é mais efe­
tuada do mesmo modo que no Rascunho:

Do que neste Livro Terceiro se trata não pode ser da formulação de reflexões gerais
sobre essa unidade [de processo de produção e de circulação, H. R.]. Trata-se muito mais
de encontrar e expor as formas concretas que surgem do processo de movimento do
capital considerado como um todo. Em seu movimento real, os capitais se defrontam
em tais formas concretas, para as quais a figura do capital no processo de produção di­
reto, bem como a sua figura no processo de circulação, só aparece como momento es­
pecífico. As configurações do capital, como as que desenvolvemos neste livro, aproxi­
mam-se, portanto, passo a passo, da forma em que elas mesmas aparecem na superfície
da sociedade, na ação dos diferentes capitais entre si, na concorrência e na consciência
costumeira dos agentes da produção. (25/33 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 1, p. 23])

Seja comentado aqui apenas que, por essa via, não só foi modificada a es­
truturação dos dois primeiros volumes de O capital, que coincidem em termos
de conteúdo aproximadamente com a do Rascunho, mas que essa reestruturação
está associada, em termos gerais, com a inclusão de material que não pode ser
“derivado do conceito”. Em contrapartida, como já foi indicado — e em Teorias
da mais-valia, assim como em O capital, encontram-se passagens suficientes
que com provam isso — , M arx faz questão de dizer que se trata apenas da
“análise geral”, sempre só da exposição das relações reais, na medida em que
correspondem ao seu conceito. Em consequência disso, é preciso passar a di­
ferenciar explicitam ente dois aspectos no conceito da concorrência: de um
lado, o capital enquanto ele mesmo e sua própria superfície, o capital enquan­
to unidade processual de essência e fenômeno, que ainda ganha expressão na
exposição conceituai; de outro, o capital na realidade histórica. Esse segundo
aspecto é fundamentalmente excluído:

Ao expor a reificação das relações de produção e sua autonomização em relação aos


agentes da produção, não entramos na análise do modo em que as conexões do mercado
mundial, suas conjunturas, o movimento dos preços de mercado, os períodos do crédito,
os ciclos da indústria e do comércio, as alternâncias de prosperidade e crise, lhes apa­
recem como leis naturais onipotentes, que os dominam contra sua vontade, impondo-se
a eles como cega necessidade natural. Não o fizemos porque o movimento real da con­

94
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM 0 C A P IT A L

corrência está fora de nosso plano e só queremos apresentar a organização intrínseca do


modo de produção capitalista em sua média ideal, por assim dizer. (25/839 [ed. bras. O
capital, vol. III, tomo 2, p. 280])

No quadro da nossa investigação da obra de Marx, nós também queremos


excluir esse complexo e ocupar-nos tão somente com o capital, na medida em
que, como capital existente, capital existente para si, igualmente ainda entra
na exposição do conceito geral. Um aspecto para o qual Marx indica apenas
uma vez no Rascunho passa a ter importância central:

Na concorrência aparece [...] tudo invertido. A figura acabada das relações econô­
micas, tal como se mostra na superfície, em sua existência real e, portanto, também nas
concepções mediante as quais os portadores e os agentes dessas relações procuram se
esclarecer sobre as mesmas, difere consideravelmente, sendo de fato o inverso, o opos­
to de sua figura medular interna, essencial mas oculta, e do conceito que lhe corresponde.
(25/219 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 1, p. 160])

Trata-se aqui de uma observação — repetidas vezes enunciada em O capi­


tal — que só pode ser entendida como outra formulação dos problemas fun­
damentais da economia burguesa. O processo de reprodução social global, o
capital enquanto “form a coesa” do trabalho social, que só existe enquanto
síntese social global no ato da decomposição de si mesmo em capitais indi­
viduais, impõe ao capitalista individual, nessa unidade processual de repulsão
e atração, como “necessidade exterior, o que corresponde à natureza do capital”
(42/550 [ed. bras. Grundrisse, pp. 544-5]). É precipuamente nessa relação entre
natureza interna do capital e seu modo de existência que M arx caracteriza
as categorias como “formas de m anifestação de relações essenciais”, assim
como se refere em primeira linha a esse contexto a frase frequentemente cita­
da sobre a ciência, da qual ele diz que seria supérflua se “a forma de manifesta­
ção e a essência das coisas coincidissem” (25/825 [ed. bras. O capital, vol. III,
tomo 2, p. 271]).
Não é preciso continuar ressaltando aqui que uma “crítica ao essencialismo”
que se orienta exclusivamente pela aceitação dessas categorias extremamente
prejudicadas pela tradição metafísica equivoca-se quanto à questão. Essa acei­
tação igualmente ainda é condicionada pelo objeto a ser exposto, que exige
uma concepção de essência e fenômeno, na qual essa relação não seja conce­
bida como intransponível. Correspondendo ao caráter metateórico da ciência
materialista, essa ciência a ser revogada, Marx se orienta bem mais pela filo­

95
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

sofia hegeliana ao compreender a essência não como absolutamente transcen­


dente, mas como essência que tem de aparecer — como na concepção hegelia­
na — , mais exatamente, tem de aparecer plenamente; se não aparecesse, não
seria a essência. Nesse caso, as categorias só são “formas de manifestação de
relações essenciais” porque o capital universal “aparece” para o capitalista,
para o “capital existente para si”, mas aparece — e esse é justam ente o ponto
de vista decisivo — ao mesmo tempo que se oculta no ato de aparecer. É isso
que gera problemas para a ciência, pois esta só se constitui em virtude dessa
diferença entre essência e fenômeno.
Por essa razão, examinemos a forma em que se apresenta o processo capi­
talista global do ponto de vista do capital individual. Para o capitalista operan­
do na prática é uma obviedade que salário, juros e renda funcionam como
elementos da formação de preços; que o preço final do novo produto é decisi­
vamente determinado pela adição dos preços dos diferentes fatores da produção.
Essas categorias, como naturalmente a do lucro, que ele precisa antecipar em
certa medida, são as formas centrais que “definem” o seu modo de existência
enquanto capitalista individual; elas são pressupostas pela totalidade das suas
ponderações, e sua atividade se realiza no interior desse arcabouço categorial:

Na concorrência, tanto dos capitalistas individuais entre si quanto na concorrência


no mercado mundial, são as grandezas dadas e pressupostas de salário, juros e renda que
entram no cálculo como grandezas constantes e reguladoras; constantes não no sentido
de que elas não alteram a sua dimensão, mas no sentido de que, em cada caso individual,
elas são dadas e constituem o limite constante para os preços de mercado em constante
flutuação. Por exemplo, na concorrência no mercado mundial, trata-se exclusivamente
de saber se, com o salário, os juros e a renda dados, a mercadoria pode ser vendida com
vantagem aos preços gerais vigentes no mercado, ou abaixo deles, isto é, com a reali­
zação de um ganho em presarial correspondente. Se num país o salário e o preço da
terra são baixos e, pelo contrário, os juros do capital são elevados porque o modo de
produção capitalista aqui nem sequer está desenvolvido, enquanto em outro país o sa­
lário e o preço da terra são nominalmente altos, mas, pelo contrário, os juros do capital
estão baixos, o capitalista emprega num país mais trabalho e terra, no outro proporcio­
nalm ente mais capital. No cálculo de saber até que ponto é possível a concorrência
entre os dois, esses fatores entram como elementos determinantes. Portanto, a experiên­
cia mostra aqui, teoricamente, e o cálculo pelo qual o capitalista se interessa mostra-o
praticam ente, que os preços das m ercadorias são determ inados por salário, juros e
renda, pelo preço do trabalho, do capital e da terra, e que esses elementos do preço são,
de fato, os constituintes reguladores do preço. (25/881-2 [ed. bras. O capital, vol. III,
tomo 2, p. 309 modif.])

96
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

Junto com a existência do capital enquanto capital individual e das catego­


rias “salário”, “juros” e “renda”, que aparecem como preços para os diferentes
fatores da produção, ou então, do ponto de vista dos proprietários desses fato­
res da produção, como receita, está dada simultaneamente a “aparência da con­
corrência” que, em termos gerais, começa a constituir os problemas da econo­
m ia nacional. A questão real de que se trata — trabalho humano enquanto
substância do valor — foi dissim ulada: na m edida em que salário, juros e
renda aparecem como pressupostos da formação de preços, parece que todos
os “fatores da produção” participam na mesma proporção do surgimento do
incremento de valor da nova produção.

Na fórmula: “capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-salário”, capital, terra e


trabalho aparecem, respectivamente, como fontes de juros (em vez de lucro), e renda
fundiária e salário como seus produtos, seus frutos; aqueles são o motivo, estes, a con­
sequência, aqueles, a causa, estes, o efeito; e isto de tal m aneira que cada uma das
fontes está referida ao seu produto como aquilo que é derivado e produzido por ela.
(25/824 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, pp. 270-1])

Essa “fórmula” é ponto de partida da ciência da economia política; nela se


concentram os problem as centrais, e, por essa razão, de modo algum é por
acaso que O capital de Marx conclui com a análise da estrutura de superfície
do capital, com a crítica dessa “fórmula trinitária” — como ele a caracteriza
com ferina ironia — “que compreende todos os segredos do processo de pro­
dução social” (25/822 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 269]). A exemplo
de Hegel, também Marx retorna à imediatidade, mostrando-a como mediada;
no fundo, todo O capital é a forma sistemática que “expressa conceitualmente”
essas “formas destituídas de conceitos” .
A categoria “salário” é a que oferece as maiores dificuldades à decifração,
mas ao mesmo tempo a sua desmistificação constitui para Marx o pressuposto
para a compenetração conceituai plena do processo global.

Sobre essa forma de manifestação, que torna invisível a relação efetiva e mostra
precisamente o oposto dessa relação, repousam todas as noções jurídicas, tanto do tra­
balhador como do capitalista, todas as mistificações do modo de produção capitalista,
todas as suas ilusões de liberdade, todas as tolices apologéticas da economia vulgar.
(23/562 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 610])

97
SO B R E A EST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

A caracterização marxiana do trabalho no capitalismo como escravidão assa­


lariada de modo algum deve ser encarada apenas como alusão cínica às relações
existentes no processo imediato de produção, mas se refere, muito antes, ao
ponto de engate do sistema, ao ponto de junção, no qual a esfera da aparência
é mediada com a esfera da essência: na passagem da esfera da circulação sim­
ples para o capital, que Marx compreende, no Rascunho, em conexão estreita
com a formulação hegeliana na lógica maior. A circulação simples enquanto
esfera da aparência, contudo, não é idêntica ao objeto do volume III de O ca­
pital., que é a “superfície” da sociedade burguesa, embora haja sobreposições.
Foi indicado acima que Marx acolheu em O capital momentos daquilo que
originalmente ficaria reservado à análise da concorrência, e que ele até proces­
sou no primeiro volume dessa obra uma grande quantidade de material empí­
rico que, no fundo, nem poderia ter sido acolhido na exposição do conceito
geral, já que não pode ser derivado do conceito. É por isso que, na exposição
rigorosa feita no Rascunho, Marx ainda não aborda o salário de modo a de­
monstrar pela irracionalidade da própria forma como deve ser compreendida
a relação entre essência e fenômeno. Visto que aqui ele trata meramente do
“capital em geral”, e não da ação do capital existente na interação dos muitos
capitais entre si, e, em consequência disso, tampouco examina a troca entre
capital e trabalho na forma em que ela se apresenta ao capitalista individual e
ao trabalhador individual, também esse problema ainda não o afeta. No Ras­
cunho, ele trata essencialmente da formulação da “inversão dialética”, median­
te a qual se dem onstra que a troca entre capital e trabalho, entre o capital
global e o trabalhador global, não é uma troca de equivalentes, mas apropriação
de trabalho alheio “sem troca, sem equivalente, mas com a aparência de troca”
(42/456 [ed. bras. Grundrisse, p. 455]), e que só esse “statement [enunciado]”
pode ser igualado à compreensão plena da natureza do processo global. Porém,
foi justam ente na solução desse problema que falharam os dois maiores teóri­
cos, Adam Smith e David Ricardo, de modo que, no final, não lhes foi possível
provar a validade universal da lei do valor no capitalismo desenvolvido.
Na superfície do processo global, a cuja exposição Marx, no fundo, dá
início já no volume I de O capital com a análise do salário, m anifesta-se a
relação entre essência e fenômeno na irracionalidade da própria forma. A eco­
nomia política clássica assume acriticamente a categoria “preço do trabalho”
da vida cotidiana, mas não reconhece que essa forma, em si mesma, é “tão
irracional quanto um logaritmo amarelo” (25/826 [ed. bras. O capital, vol. III,
tomo 2, p. 272]). Na expressão “preço” ou “valor do trabalho”, “o conceito de
valor não só se apagou por completo, mas converteu-se em seu contrário. É
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

uma expressão imaginária, como valor da terra. Essas expressões imaginárias


surgem, no entanto, das próprias relações de produção. São categorias para
as formas em que se manifestam relações essenciais” (23/559 [ed. bras. O ca­
pital, vol. I, p. 607]). A forma do salário, do preço do trabalho, encobre que o
trabalho form ador de valor, representado pelo valor das m ercadorias, nada
tem a ver com a repartição desse valor entre as diferentes categorias, assim
como, inversamente, encobre que esse trabalho, na medida em que possui esse
caráter especificamente social, não é formador de valor. Essa é a razão oculta
da teoria dos fatores da produção, na qual a própria natureza é mistificada.
Visto que, na expressão “preço do trabalho”, o trabalho assalariado não apare­
ce como uma forma social determ inada do trabalho, mas todo trabalho por
sua natureza aparece como trabalho assalariado, também cai por terra neces­
sariamente a

[...] forma socialmente determinada em que as condições de trabalho que agora se de­
frontam com o trabalho também coincidirão com sua existência material. Então, os meios
de trabalho são, enquanto tais, capital, e a terra é, enquanto tal, propriedade fundiária.
A autonomização formal dessas condições de trabalho em relação ao trabalho, a forma
específica dessa autonomização que elas possuem diante do trabalho assalariado é, en­
tão, uma propriedade inseparável deles enquanto coisas, enquanto condições de produ­
ção materiais, um caráter imanente e intrínseco que necessariamente lhes advém en­
quanto elem entos de produção. O seu caráter social determ inado no processo de
produção capitalista mediante um a época histórica determinada é um caráter material,
inato, que lhes é natural e, por assim dizer, de origem eterna, enquanto elementos do
processo de produção. (25/833 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, pp. 276-7])

A forma capitalista do processo de produção se distorce em pura forma


natural e se torna idêntica ao processo simples do trabalho, que constitui a base
de todas as formações sociais como pressuposto perene da vida humana. Ao
mesmo tempo, os meios de produção são acrescidos de forças m ísticas. As
demais receitas parecem dever-se diretamente ao papel que os meios de pro­
dução desempenham no processo simples de produção. Se o trabalho assala­
riado coincidir com o trabalho puro e simples, coincide também a parcela de
valor representada pelo salário com o valor em geral criado pelo trabalho. Em
consequência disso, também as parcelas do produto do valor que se apresentam
em outras formas devem originar-se de fontes próprias, distintas do trabalho,
ou seja, dos fatores cooperantes da produção, a cujos possuidores elas cabem
como parte.

99
S O B R E /4 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

As diferentes rendas fluem de fontes inteiramente diversas: uma provém da terra, a


outra, do capital e a terceira, do trabalho. Assim não há entre elas relacionamento hostil
por não haver entre elas conexão interna. Contudo, se atuam juntas na produção, a
atuação é harmônica [...] como, por exemplo, o camponês, o boi, o arado e a terra na
agricultura, no processo real do trabalho, trabalham juntos em harmonia, apesar de sua
diversidade. (26.3/493 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. III, p. 1.541]*)

Essa distorção peculiar decorre do processo capitalista global como ten­


dência interpretativa necessariamente mistificadora, e será importante enquan­
to existirem a propriedade fundiária e um corpo de trabalhadores assalariados
livres. Enquanto a apropriação da riqueza em sua forma geral for finalidade da
produção, o processo de reprodução social global deverá aparecer sob essa
forma, uma forma que distorce, nela mesma, a natureza histórica do processo
social em seu contrário, fazendo com que pareça puramente a-histórico. Por
isso, essas “formas irracionais” devem ser encaradas como o “centro nervoso”
de toda a teoria burguesa e só pela via da decifração será possível obter acesso
ao processamento teórico adequado do processo capitalista global. Ao mesmo
tempo, a sua compenetração abre a possibilidade de retraçar o processo de
constituição do sujeito burguês sob a forma da exposição dialética das catego­
rias. Em contraposição, se não for bem-sucedido na dissolução dessa mistifi­
cação, o teórico de antemão já está fadado a perceber o mundo burguês sob
uma única forma, a saber, a do objeto. Nesse caso, por mais que se fale de
história, as formulações dessa teoria permanecerão, em última análise, a-his-
tóricas. Em A miséria da filosofia, Marx descreveu de modo penetrante essa
singular a-historicidade da teoria burguesa:

Os economistas têm uma maneira invulgar de proceder. Para eles, só há duas es­
pécies de instituições, as da arte e as da natureza. As instituições do feudalismo são
instituições artificiais, as da burguesia são instituições naturais. Nesse ponto, asseme­
lham -se aos teólogos que tam bém diferenciam duas espécies de religião. Q ualquer
religião que não é a sua é invenção humana, ao passo que sua própria religião é uma
revelação de Deus. Quando os economistas dizem que as relações atuais, as relações
da produção burguesa, são naturais, eles dão a entender que se trata de relações nas
quais a geração da riqueza e o desenvolvimento das forças produtivas se dão em con­
form idade com as leis da natureza. Portanto, essas relações são, elas próprias, leis

* Ref. completa da edição brasileira: K. Marx, Teorias da mais-valia. H istória crítica do p e n ­


samento econômico. Trad. Reginaldo Sant'A nna. São Paulo, Difel, 1985, vol. III. (N. do T.)

100
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

naturais independentes da influência do tempo. São leis eternas que devem reger sem­
pre a sociedade. Assim, houve história, mas não haverá mais; houve história, visto que
existiram instituições feudais e, nessas instituições do feudalismo, encontram-se rela­
ções de produção totalmente diferentes daquelas da sociedade burguesa, que os eco­
nomistas querem fazer passar por naturais e, portanto, eternas. (4/140 [ed. bras. A m i­
séria da filosofia, p. 110 modif.])

O fato de o modo de produção burguês ser visto como em conformidade


com a natureza e como eterno não é — como mostra o Marx maduro — uma
suposição conscientem ente levada a cabo pelos economistas burgueses (no
plano da economia política, isso seria crítica à ideologia no sentido da teoria
da fraude clerical* do Iluminismo), mas deve ser remontado a essas formas de
m anifestação. Elas selam ao mesmo tempo a capitulação teórica diante da
estrutura da “duplicação de todos os elementos em seres burgueses e em seres
estatais”, como consta na obra inicial, e, por essa via, permitem que a história
ainda seja escrita do modo criticado por Marx em sua controvérsia com Feuer-
bach: “A produção real da vida aparece como algo a-histórico, enquanto o
elemento histórico aparece como algo separado da vida comum, como algo
extra e supraterreno. Com isso, a relação dos seres humanos com a natureza é
excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história” (3/39
[ed. bras. A ideologia alemã, pp. 43-4 modif.]).
Anteriormente já se apontou para o fato de que o capitalismo só franqueia
totalmente a visão para a sua estrutura interna em determ inada fase do seu
próprio desenvolvimento, de modo que o restringimento dos teóricos burgueses
à esfera da aparência não precisa ser remontado a momentos subjetivos. Soma-
-se a isso — como Marx observa na apreciação da obra de Adam Smith — que
uma parcela essencial de seu trabalho teórico consistiu, de modo geral, em
primeiro “descrever as formas vitais aparentes, externas dessa sociedade [bur­
guesa, H. R.] e apresentar as suas conexões como aparecem exteriormente;
achar ainda, para esses fenômenos, a nomenclatura e as correspondentes ideias
abstratas, e assim, pela primeira vez, reproduzi-los na linguagem e no proces­
so intelectual” (26.2/162 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 598]**). A
expressão “conceitos do entendimento” permite reconhecer que Marx entende

* Teoria desenvolvida por filósofos ilum inistas, especialm ente franceses, que criticava os
enunciados religiosos como invenções fraudulentas de clérigos. (N. do T.)
** Ref. com pleta da edição brasileira: K. M arx, Teorias da m ais-valia. Trad. Reginaldo de
Sant’Anna. São Paulo, Difel, 1983, vol. II.

101
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

o “conceito geral do capital” inteiramente no sentido de Hegel, ou seja, como


um sistema de conceitos racionais, e os teóricos burgueses assumem no próprio
sistema marxiano uma posição que o sistema hegeliano atribui à ciência da
experiência moderna. “Sem a formação própria da ciência da experiência, a
filosofia não teria conseguido ir além do que foram os antigos”, diz Hegel da
ciência empírica, que teria essencialmente o propósito de “encontrar gêneros,
coisas gerais, leis. E, na medida em que os produz, ela se encontra com o chão
do conceito, prepara o material empírico para o conceito, que este, então, pode
acolher corretamente”5. No entanto, essa analogia não se restringe a isso, em­
bora possa ter sido concebida por Marx unicamente nesse sentido. A apreciação
marxiana da teoria burguesa lembra simultaneamente a postura hegeliana ante
a metafísica ingênua do entendimento, à qual ele atesta ser, por seu teor, “au­
têntico filosofar especulativo”, mas, ao mesmo tempo, deixa de analisar a na­
tureza dos conceitos do entendimento e seu próprio procedimento na determi­
nação do absoluto. No entanto, isso não diz respeito à economia burguesa em
sua totalidade. Sob o aspecto da finalidade do conhecimento, Marx faz uma
diferenciação muito precisa entre teoria clássica e economia vulgar.
Marx se dedica a analisar exclusivamente a teoria clássica. Em distinção à
economia vulgar, que se caracteriza por “um a superficialidade, fundada no
princípio do culto das aparências” (23/561 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 609]),
os clássicos estão empenhados tanto quanto ele em penetrar na “fisiologia
interna” da sociedade burguesa, na essência do processo global, na medida em
que derivam todas as formas da riqueza social de uma substância comum: do
trabalho e do mais-trabalho.

Em capital-lucro ou, melhor ainda, capital-juros, terra-renda fundiária, trabalho-


-salário, nessa trindade econômica como conexão dos componentes do valor e da rique­
za em geral com suas fontes, está completa a mistificação do modo de produção capita­
lista, a reificação das relações sociais, a aglutinação imediata das relações materiais de
produção com sua determ inidade histórico-social: o mundo encantado, distorcido e
posto de cabeça para baixo, no qual M onsieur le Capital e Madame la Terre exercem
suas fantasmagorias ao mesmo tempo como caracteres sociais e imediatamente como
meras coisas. O maior mérito da Econom ia clássica consiste em ter dissolvido essa
falsa aparência, esse engodo, essa autonomização e essa ossificação dos diferentes ele­
mentos sociais da riqueza entre si, essa personificação das coisas e essa reificação das
relações de produção, essa religião da vida cotidiana, na medida em que reduz os juros
a uma parte do lucro e a renda ao excedente sobre o lucro médio, de tal modo que ambos
coincidem no mais-valor; já que representa o processo de circulação como m era me-

102
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

tamorfose das formas e, por fim, no processo imediato de produção, reduz o valor e
o mais-valor da mercadoria ao trabalho. (25/838 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2,
pp. 279-80 modif.])

Portanto, a teoria do mais-valor de modo algum é o critério exclusivo de


diferenciação entre a teoria marxiana e a teoria clássica. Essencial é, muito
antes, que, em todos os teóricos burgueses, o momento do natural-espontâneo
[.Naturwiichsigen] que caracteriza toda a pré-história da humanidade se imiscui
até no trabalho teórico sutil. Sendo teóricos burgueses, eles são fundamental­
mente cegos para o seu próprio constituinte, para a forma geral da riqueza, de
modo que, no caso deles, a questão do conteúdo da forma nem tem mais como
assomar no horizonte da reflexão. Sendo assim, essa reflexão incorre — ainda
que inconscientemente — numa situação parecida à da m etafísica do entendi­
mento criticada por Hegel. Visto que, para ela, para a teoria burguesa, as ca­
tegorias não são “formas de manifestação de relações essenciais”, tampouco
existe para ela a diferença entre essência e fenômeno. Os teóricos burgueses
não têm a mínima noção de que as categorias que assumem da vida cotidiana
não só são meios imprestáveis para captar a essência do processo global, mas
de antemão já condenam ao fracasso toda tentativa mais sutil de penetrar na
estrutura interior do capital, já que a essência a ser compreendida já é embuti­
da em cada tentativa de apreensão como inapreensível. Assim, “mesmo os seus
melhores porta-vozes, como não poderia ser diferente do ponto de vista burguês,
permanecem mais ou menos presos no mundo da aparência que sua crítica
extinguiu e, por isso, todos eles recaem, em maior ou menor grau, em formu­
lações inconsequentes, semiverdades e contradições não solucionadas” (25/838
[ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 280]). Por essa razão, a crítica marxia­
na é bastante abrangente. Marx não se restringe a vincular sua crítica a proble­
máticas pré-formuladas, já que estas com frequência só expressam a sua própria
“dissonância”, e ele detecta a “impossibilidade da solução já nas condições
postas pela tarefa”. Ademais é da essência da crítica marxiana jam ais poder
entender a economia clássica literalmente. Dado que é precisamente a carac­
terística da economia burguesa clássica querer ir além do horizonte burguês
recorrendo a meios burgueses, Marx pode, com toda razão, alegar um motivo
que lem bra a exposição hegeliana da certeza sensível: eles não conseguem
dizer o que têm em mente e, se disserem, eles o farão com meios imprestáveis.
As categorias centrais tornam -se, por essa via, conceitos verdadeiram ente
“equivocados”, visto terem de cumprir duas funções: por um lado, eles signi­
ficam o que realmente são, a saber, uma das formas burguesas da riqueza, mas,

103
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

por outro, a forma burguesa tem o significado da “forma abstrata geral”, sendo
que só no contexto geral é possível aclarar o que se quer dizer em cada caso.
Seja citado aqui apenas um exemplo característico da crítica marxiana a R i­
cardo, extraído das Teorias do mais-valor:

Em suas observações sobre lucro e salário, Ricardo abstrai da parte constante do


capital, a qual não se aplica em salário. Trata o problem a como se o capital todo se
empregasse diretamente em salário. A té aí, trata, portanto, do mais-valor e não do lucro,
e assim pode-se falar de sua teoria do mais-valor. Mas, em contrapartida, acredita falar
do lucro como tal, e sempre se insinuam na realidade pontos de vista oriundos do pres­
suposto do lucro e não do mais-valor. Onde apresenta com acerto as leis do mais-valor,
erra aos expressá-las de imediato como leis do lucro. Ademais, procura estabelecer,
como leis do mais-valor, as leis do lucro de imediato, sem os elos intermediários. Quan­
do tratamos de sua teoria do mais-valor, estamos falando, portanto, de sua teoria do
lucro, nos casos em que ele confunde este com o mais-valor, isto é, considera o lucro
em relação ao capital variável, à parcela do capital empregada em salário. Ocupar-nos-
-emos depois do que ele diz do lucro como elemento distinto do mais-valor. (26.2/375-6
[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 805-6])

B. C rítica da e c o n o m i a p o l í t i c a c lá s sic a

Embora Marx desenvolva o seu próprio sistema em estreita discussão com a


teoria clássica, não há como reduzi-lo ao que se denomina “crítica imanente”.
Repete-se, muito antes, o que havia sido antecipado por aquela divisão feita
em A ideologia alemã — exposição “positiva” do curso da evolução histórica,
mesmo que seja só no sentido de uma indicação de pesquisa, e, separada des­
ta, a crítica da consciência ideológica. O sistema econômico com a investiga­
ção conclusiva da constituição da aparência empírica estabelece a crítica da
ideologia em forma abstrata, na medida em que apenas disponibiliza os meios
metodológicos para uma crítica concreta da teoria burguesa, que, então, de fato
pode assumir a forma da “crítica imanente” — contudo, só no que se refere à
teoria clássica. Assim como a crítica hegeliana de toda a filosofia pré-hegelia-
na de qualquer modo já é feita a partir da posição do idealismo absoluto, assim
também a crítica marxiana de qualquer modo já pressupõe o sistema em sua
totalidade. Portanto, Marx de modo algum parte diretamente das aporias da
teoria burguesa, mas só é possível desenvolver estas tendo como pano de fun­
do uma teoria que reconheceu “positivamente” a essência do processo global.

104
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

Diante desse pano de fundo, as tentativas do classicismo de apreender a essên­


cia com categorias que estão como que embotadas e não servem para apreender
justam ente aquilo de que são a própria expressão são decifradas como empre­
sa que necessariam ente acabará em aporias. Por meio de alguns exemplos
serão abordados a seguir alguns motivos da crítica marxiana.

1. Os f i s i ó c r a t a s

A questão da origem do mais-valor de fato é o critério pelo qual Marx faz


a diferenciação em teoria clássica e teoria vulgar, mas a “grande teoria”, no
fundo, só principia com os projetos dos fisiócratas, que assumem uma posição
peculiar. Se a ciência econômica se inflama na diferença entre essência e fenô­
meno, se ela só se constitui depois que a riqueza tiver assumido uma forma
diferente dela mesma, diz-se, com isso, ao mesmo tempo, que não pode haver
ciência em que essa diferença não existe, ou, então, em que a essência aparece,
por assim dizer, de modo imediato. Portanto, a rigor, só pode haver teoria
econômica na sociedade burguesa; a teoria econômica de uma sociedade so­
cialista é uma contradição em si, sendo que ela tampouco é possível em modos
de produção pré-burgueses. Onde a essência aparece de modo imediato, a teo­
ria necessariamente é como um corpo estranho; ela é, muito antes, expressão
do fato de que a substância desse modo de produção pré-burguês está minada,
exatamente do mesmo modo como a justificação racional da monarquia só não
é mais concebida como crime de lesa-majestade onde já se vislumbra o ocaso
dessa forma de Estado. E desse modo que Marx interpreta a teoria fisiocrática.
O fato de a teoria econômica ter se desenvolvido primeiramente na França,
num “país onde predomina a agricultura”, e não na Inglaterra, “país onde pre­
ponderam a indústria, o comércio e a atividade marítima” (26.1/20 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. I, p. 25]*), ou seja, num país que, em comparação
com a Inglaterra, ainda estava muito atrasado, de modo algum aconteceu por
acaso, mas foi condicionado exatamente por esse atraso. Motivados pela forma
como os mercantilistas formularam o problema, os fisiócratas “deslocaram a
pesquisa sobre a origem do mais-valor da esfera da circulação para a da pro­
dução imediata, e assim lançaram o fundamento da análise da produção capi­
talista” (26.1/14 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 21]). Sem ter uma
compreensão clara da natureza do valor, a teoria fisiocrática se deparou dire-

* Ref. com pleta da edição brasileira: K. Marx, Teorias da mais-valia. História crítica do p e n ­
samento econômico. Trad. Reginaldo Sant’Anna. 2. ed. São Paulo, Difel, 1987, vol. I. (N. do T.)

105
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

tamente com a diferença entre valor e aproveitamento da capacidade de traba­


lho como princípio central da produção capitalista, o que só podia ter ocorrido
na França, pois “de todos os ramos de produção é a agricultura — na produção
prim ária” — aquele em que essa diferença “se m anifesta de m aneira mais
tangível e mais incontestável” (26.1/14 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I,
p. 21]). O que no trabalho manufatureiro se torna opaco por meio do processo
de mediação de compra e venda não pode deixar de ser percebido na análise
da produção: que a “soma dos meios de subsistência que o trabalhador conso­
me todo ano ou a massa de m atéria que absorve é menor do que a soma dos
meios de subsistência que produz” (26.1/14 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. I, p. 21]). Consequentemente para os fisiócratas o único trabalho produtivo,
por ser o único que cria mais-valor, é o trabalho na agricultura, e a “renda
fundiária é a única form a de m ais-valor que conhecem ” (26.1/14 [ed. bras.
Teorías da mais-valia, vol. I, p. 21]). Porém, por ser uma teoria burguesa, ela
não consegue articular o que tem em mente, visto que passa a enredar-se na
sua própria rede categorial, que se torna perceptível de modo restritivo. Ela
tem de verter o mais-valor numa forma burguesa e absolutizar como forma
universal uma forma particular de manifestação da riqueza. Essa função, que
em Adam Smith e David Ricardo é cumprida pelo lucro, para os fisiócratas é
levada a cabo pela renda. Embora a explicação do lucro seja o ponto de parti­
da propriamente dito, na teoria fisiocrática ele só aparece como parte da renda
fundiária. O mesmo se dá com os juros, que fluem com razão —- segundo
Turgot — para o proprietário de capital m onetário, visto que, se não fosse
assim, o capitalista monetário compraria terra, ou seja, renda fundiária, e, por
essa razão, o capital monetário deveria propiciar-lhe tanto mais-valor quanto
ele receberia na transformação de capital monetário em posse fundiária (26.1/17
[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 22]). Para os fisiócratas, nem o lucro
nem os juros constituem valor novo que foi criado; o que eles explicam é,
muito antes, “por que parte do mais-valor obtido pelos donos das terras flui
para o capitalista financeiro na forma de juros, do mesmo modo que, por outros
motivos, se explica o fluxo de parte desse mais-valor na forma do lucro para o
capitalista industrial” (26.1/17 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, pp. 22-3]).
No caso dos fisiócratas, o mundo burguês distorcido se distorce pela segunda
vez: as esferas industriais, no interior das quais o capital se desenvolve auto­
nomamente, aparecem como ramos de trabalho “improdutivos”, como “pen-
duricalhos” do trabalho agrícola, e a prim eira condição do desenvolvimento
do capital — a separação entre o produtor e os meios de produção, que na
pessoa do capitalista adquirem existência subjetiva — aparece aqui como po­

106
SOCIEDADE E CONHECIMENTO EM O C A P IT A L

der do proprietário de terras. Ele se torna o capitalista propriamente dito; numa


esfera ainda caracterizada preponderantemente por formas imediatas de domi­
nação, ele aparece como simples possuidor de mercadorias, “que acresce o
valor das mercadorias que troca por trabalho, recebe de volta, além do equiva­
lente, um excedente sobre esse equivalente, pois paga a força de trabalho ape­
nas como mercadoria” (26.1/22 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 26]).
No entanto, esse aspecto da “fisiologia interna” da sociedade está associa­
do a uma singular mistificação da natureza. O fato tangível do trabalho agrí­
cola, a saber, que o trabalhador produz mais meios de vida do que o necessário
para a reprodução da sua força de trabalho, não enseja a ponderação de que
poderia não haver esse excedente se o trabalhador trabalhasse menos. A jornada
de trabalho mesma entra na análise como uma constante natural, de modo tal
que a produtividade do trabalhador se apresenta necessariamente como produ­
tividade da terra, que o capacita a produzir mais do que o necessário para a
restauração da sua capacidade de trabalho. “Esse valor excedente aparece,
portanto, como dom da natureza; graças à cooperação desta, determinada quan­
tidade de m atéria orgânica — sem entes, anim ais — capacita o trabalho a
converter maior quantidade de matéria inorgânica em orgânica” (26.1/21 [ed.
bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 26]). Embora o simples valor de troca
constitua o ponto de partida da análise e, no valor de uso, só interesse a quanti­
dade — o excedente dos valores de uso produzidos em relação aos consum i­
dos, portanto a mera relação quantitativa dos valores de uso entre si — , para
os fisiócratas, o valor não é uma forma do trabalho social e o mais-valor não é
mais-trabalho, mas o valor é, para eles, simples valor de uso, matéria natural,
e o mais-valor é simples dádiva da natureza, que substitui dada quantidade de
matéria orgânica por uma quantidade maior de trabalho: “De um lado, a renda
fundiária — isto é, a forma econômica real da propriedade da terra — , despo­
jada do invólucro feudal, é reduzida apenas a mais-valor, o excedente do salá­
rio. Do outro, numa recidiva feudal, esse valor é derivado da natureza, e não
da sociedade, da relação com a terra e não das relações sociais” (26.1/22 [ed.
bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 27]).
Consequentemente não é sem razão que Marx compara as teorias dos fi­
siócratas com a filosofia em seu conjunto, a qual contém uma contradição se­
melhante à da teoria fisiocrática no desenvolvimento das teorias econômicas
burguesas.

Tudo isso são contradições da produção capitalista que luta por emergir da socieda­
de feudal e apenas lhe confere um sentido burguês, sem ter encontrado ainda sua forma

107
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C EITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

peculiar; algo como a filosofia que primeiro desabrocha na forma religiosa da consciên­
cia e assim destrói a religião como tal, enquanto seu conteúdo afirmativo se move con­
finado nessa esfera religiosa idealizada, decomposta em conceitos e ideias. (26.1/22 [ed.
bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 27])

Assim como a filosofia só efetuou a secularização da religião pela metade


e só pode completá-la pagando o preço do seu próprio desaparecimento, assim
também a teoria econômica no feitio feudal é uma contradição em si: “abur­
guesa-se, assim, o feudalismo e, ao mesmo tempo, dá-se aparência feudal à
sociedade burguesa" (26.1/20 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 25]).
Contudo, teoria econômica é sempre só teoria burguesa, o que é evidenciado
por uma dialética que chega a ser traiçoeira: com a ajuda dessa teoria a bur­
guesia articula as suas exigências. Como o trabalho agrícola é o único trabalho
produtivo e a indústria só converte em outra forma os valores fornecidos pela
agricultura sem lhes adicionar valor novo, parece ser totalmente legítimo e
ademais do interesse da propriedade fundiária que esse processo de transfor­
mação decorra tanto quanto possível livre de perturbações. Por essa razão, a
livre concorrência e a eliminação de todas as interferências do Estado consti­
tuem exigências da burguesia, cuja emancipação em relação à monarquia ab­
soluta edificada sobre os escombros da sociedade feudal deve ter lugar “no
interesse exclusivo do senhor feudal, transformado em capitalista preocupado
apenas em enriquecer-se” (26.1/23 [ed. bras. Teorias da m ais-valia, vol. I,
p. 28]). A interpretação burguesa da propriedade fundiária feudal revela-se
como a antecipação teórica do desmantelamento prático que ocorre na Revo­
lução Francesa. “A atuação do próprio Turgot, ministro burguês radical, pre­
ludia a Revolução Francesa. Com toda a ilusória aparência feudal, os fisiócra­
tas trabalhavam de mãos dadas com os enciclopedistas” (26.1/37 [ed. bras.
Teorias da m ais-valia, vol. I, p. 43]). Dado que supostamente só o trabalho
agrícola é produtivo, toda a carga de impostos pode com razão ser posta nos
ombros dos proprietários de terras, e isso encerra “o confisco virtual pelo Es­
tado da propriedade da terra. [...] A Revolução Francesa [...] adotou essa teoria
tributária” (26.1/37 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 43]).

2. A d a m Smith

Um passo adiante no desenvolvimento da teoria econômica clássica é re­


presentado pela obra de Adam Smith, mesmo que ele, segundo Marx, em al­
gumas formulações em parte fique aquém das noções teóricas dos fisiócratas.

108
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

Entretanto, a teoria passou a debater-se com outros problemas, visto que — e


esse é o progresso em relação à teoria fisiocrática como um todo — se faz do
trabalho com exclusividade a substância do valor, indiferentemente dos valores
de uso em que ele se apresenta. Simultaneamente também se reproduzem na
obra de Adam Smith as inconsciências características da economia clássica,
só que dessa vez na forma de círculos viciosos exemplares, nos quais ele afir­
ma a aparência da concorrência contra a sua noção mais profunda. Em conse­
quência, Marx diferencia entre uma parte “esotérica” e uma parte “exotérica”
do conjunto da sua obra (uma diferenciação que, nesse caso, é essencialmente
mais legítima do que aquela que Heinrich Heine fez na obra de Hegel com o
auxílio desses conceitos e que Marx nunca subscreveu), dependendo se Smith
avança na direção da essência do processo global ou se assume a posição do
capitalista individual.

O próprio Smith move-se com grande ingenuidade em contradição contínua. Ora


investiga as conexões causais das categorias econômicas ou a estrutura oculta do siste­
ma econômico burguês. Ora junta a essa pesquisa as conexões tais como se exteriorizam
na aparência dos fenômenos da concorrência, tais como se manifestam, portanto, ao
observador não científico e, do mesmo modo, ao que na prática está envolvido e inte­
ressado no processo da produção burguesa. Desses dois ângulos, um penetra no nexo
causal, na fisiologia, por assim dizer, do sistema burguês; o outro apenas descreve, ca­
taloga e relata, ajustando a definições esquematizantes o que se revela externamente no
processo vital, tal como se mostra e aparece: ambos, além de correrem num paralelismo
ingênuo, se misturam e se contradizem de contínuo. (26.2/162 [ed. bras. Teorias da mais-
-valia, vol. II, pp. 597-8])

Também nesse caso os problemas só surgem sobre a base de uma teoria do


mais-valor conscientemente concebida, o qual Adam Smith igualmente só cap­
ta em sua forma burguesa. Sejam citadas apenas duas passagens das quais se
depreende que ele deriva o lucro do capitalista e a renda do proprietário de
terras do trabalho não pago:

No momento em que o capital se acumulou nas mãos de pessoas particulares, algu­


mas delas naturalmente empregarão esse capital para contratar pessoas laboriosas, for-
necendo-lhes matérias-primas e subsistência a fim de auferir lucro com a venda do
produto do trabalho dessas pessoas ou com aquilo que este trabalho acrescenta ao valor
desses materiais. Ao trocar-se o produto acabado por dinheiro ou por trabalho ou por
outros bens, além do que pode ser suficiente para pagar o preço dos materiais e os salá-

109
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

rios dos trabalhadores, deverá resultar algo para pagar os lucros do empresário, pelo seu
trabalho e pelo risco que ele assume ao empreender esse negócio. Nesse caso, o valor
que os trabalhadores acrescentam aos materiais desdobra-se, pois, em duas partes, sen­
do que a primeira paga os salários dos trabalhadores e a outra, os lucros que o empre­
sário deve receber por todo o material e os salários que ele adianta no negócio6.

E a respeito da renda fundiária:

No momento em que toda a terra de um país se tornou propriedade privada, os donos


da terra, como quaisquer outras pessoas, gostam de colher onde nunca semearam, exi­
gindo uma renda, mesmo pelos produtos naturais da terra. A madeira da floresta, o capim
do campo e todos os frutos da terra, os quais, quando a terra era comum a todos, custa­
vam ao trabalhador apenas o trabalho de apanhá-los, a partir dessa nova situação têm o
seu preço onerado por algo mais, inclusive para o trabalhador. Ele passa a ter que pagar
pela permissão de apanhar esses bens, e deve dar ao proprietário da terra um a parte
daquilo que o seu trabalho colhe ou produz. Essa porção ou, o que é a mesma coisa, o
preço dessa porção constitui a renda da terra, constituindo, no caso da maior parte das
mercadorias, um terceiro componente do preço7.

Analisemos, pois, o primeiro de dois círculos viciosos centrais na obra de


Adam Smith. Marx até ressalta que Adam Smith estava “a um pulo de resolver
a questão” (24/369), mas enfatiza, em contrapartida, que a impossibilidade da
solução deve ser procurada, em última análise, em “sua concepção fundamen­
tal” : “Ele não diferencia o caráter dicotômico do próprio trabalho” (24/377),
uma diferenciação que só seria desenvolvida por Marx e que equivale a ultrapas­
sar o horizonte burguês. Trata-se aqui de um círculo como que exemplar, o que
já se depreende do fato de Marx reservar bastante espaço para tratar esse pro­
blema tanto em Teorias do mais-valor como nos volumes II e III de O capital,
ressaltando expressamente que nenhum dos teóricos posteriores a Smith con­
seguiu avançar um passo sequer nessa questão. “A confusão mental de Smith
persiste até hoje, e seu dogma perfaz artigos de fé ortodoxos da economia
política” (24/390).
Uma comparação direta entre o processo simples de trabalho e de reprodu­
ção e o capitalismo enquanto correspondente gigantesco no plano social global
é questionável, visto que o capitalismo é um “processo de reprodução distor­
cido”, no qual a relação natural dos seres humanos com a sua existência obje­
tiva é rebaixada à condição de penduricalho, sendo apenas como que arrastada
junto com o processo. Ainda assim, o fato de ela ser arrastada junto significa

110
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

ao menos que o capitalismo continua sendo um processo de reprodução e que,


por isso, deve ser possível encontrar correspondências com o processo de re­
produção simples também no plano social global. Sabemos que o capital só
existe na forma de capitais individuais e que, em consequência, o seu processo
de reprodução não pode ser senão a reprodução dos capitais individuais. Não
obstante, ele não aparece como tal.

Embora o capital social seja tão só igual à soma dos capitais individuais e, em con­
sequência, também o produto anual em mercadorias (ou o capital em mercadorias) da
sociedade seja igual à soma dos produtos em mercadorias desses capitais individuais;
embora, por conseguinte, a análise do valor das mercadorias em seus componentes,
válida para cada capital em mercadorias individual, também deva ser válida para o ca­
pital de toda a sociedade e, em seu resultado final, realmente é válida, a forma de ma­
nifestação com que se apresentam no processo de reprodução social global é diferente.
(24/369)

Contudo, visto que Adam Smith depende exclusivamente de categorias da


aparência empírica, de categorias da superfície do processo global, ao modo
como se apresentam ao capitalista em sua atividade prática, ele é forçado a
compreender o processo social global segundo o padrão do processo individual.
Sendo um teórico burguês, ele nem tem como proceder de outra maneira, já
que, para ele, a forma social coincide com a forma natural. Por essa via, ele se
envolve em problemas que, para ele, são insolúveis.
A mais simples das análises do processo de produção mostra que — abs­
traindo da ampliação da reprodução e da acumulação — uma parte do produto
deve repor o material gasto no processo de produção, caso realmente se pre­
tenda que haja reprodução no mesmo patamar. É do conhecimento corriqueiro
do teórico que essa parte do produto não pode assumir a forma de rendimentos,
ou seja, não pode constituir receita — “claro que essa noção é extraordinaria­
mente prosaica. A mais simples das percepções do processo de produção torna
isso evidente. A dificuldade só com eça no momento em que o processo de
produção é analisado em seu todo” (25/849). Visto que o valor de cada merca­
doria deve ser rem ontado ao trabalho que se subdivide em salário, lucro e
renda, ou seja, em rendimentos, e visto que isso naturalmente deve valer tam ­
bém para a totalidade das mercadorias, não se consegue descobrir a partir de
que fundo, no plano social global, se pretende repor o material gasto no pro­
cesso de produção, o material que, na análise do processo individual, aparece
como parte do produto total que não pode constituir receita. Com o pressuposto

111
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E IT O D E CA P IT A L E M K A R L M A R X

de que deva haver reprodução no mesmo patamar, o problema se concentraria


na seguinte formulação bem precisa da questão: “Como o valor do produto
vendido se iguala ao total dos elementos do valor nele contidos, trabalho adi­
cionado e capital constante, e como, apesar disso, o consumidor não paga o
capital constante e ainda compra o produto?” (26.1/120 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. I, p. 130]). Marx nota as várias diferenciações em Adam Smith,
mas trata-se de diferenciações que se formam em parte com base nessa formu­
lação do problema e, desse modo, representam apenas mais um deslocamento
do problema que — formulado dessa maneira —· apenas exprime a sua própria
insolubilidade. Não obstante, trata-se da única forma possível de formulação
do problema no horizonte burguês, que se deve à força do pensamento de Adam
Smith, que com as categorias da aparência empírica se lança em combate, por
assim dizer, contra a “linha de interpretação” posta com essas mesmas catego­
rias, como se o valor se originasse de seus próprios componentes. Analoga­
mente ao fenômeno da figura reversível, tratada detidamente pela psicologia
da Gestalt, Adam Smith não consegue manter de modo duradouro apenas um
dos aspectos e — “apesar dos grandes escrúpulos nesse ponto” (26.2/217 [ed.
bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 650]) — leva a campo a aparência da
empiria contra a sua própria noção mais profunda. Como ele não consegue
achar a — por Marx assim chamada — parte constante do valor do capital no
plano da reprodução social global, ele tenta simplesmente “exorcismá-la” me­
diante um recurso simplório ao modo de ver as coisas do capitalista em sua
atividade prática:

Uma quarta parte pode parecer necessária para repor o capital do arrendatário ou
para repor o desgaste dos seus animais de tração e dos seus instrum entos agrícolas.
Porém, deve ser levado em consideração que o preço de qualquer instrumento agrícola,
como, por exemplo, um cavalo de tração, também é composto, por sua vez, das três par­
tes acima: da renda da terra na qual foi criado, do trabalho de criação e do lucro do arren­
datário, que paga adiantado tanto a renda dessa terra quanto o salário desse trabalho. Por
conseguinte, embora o preço do grão de fato possa repor tanto o preço como os custos
de manutenção do cavalo, o preço total ainda assim se desdobra, de modo imediato ou
em última instância, nas mesmas três partes: renda da terra, trabalho e lucro. (24/373)

Ele remete de um ramo da produção ao outro e daquele a um terceiro; um


círculo que não representa a solução do problema, mas apenas reproduz esse
problema de outro modo. No horizonte burguês, esse regresso infinito só pode­
ria ser detido se fosse possível encontrar ramos de produção em que se produzis­

112
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

sem m ercadorias pelo simples dispêndio de capital variável, isto é, capital


despendido em força de trabalho, mercadorias que, por sua vez, reporiam em
sua totalidade os “meios de produção consumidos” no processo de reprodução
social global. Marx observa que nem o próprio Adam Smith acreditou ter for­
necido a prova disso ao mencionar o exemplo dos coletores de cascalho es­
coceses (24/374), mas isso mostra que Adam Smith procedeu de modo conse­
quente dentro da sua própria estrutura categorial, ainda que essa ideia,
pensada até as últimas consequências, tivesse de levar à concepção absurda de
que a humanidade histórica teria de, por assim dizer, reencetar a cada ano o
processo de disputa com a natureza, e isso sob condições de pleno desenvolvi­
mento de classes.
Nesse ponto, fica claro de modo incisivo como a diferenciação marxiana
entre trabalho universal abstrato e atividade sensível concreta transcende o
horizonte burguês, cuja peculiaridade consiste justamente em considerar idên­
ticas as duas determinações de um modo opaco para si próprio. Por essa via,
descarta-se de antemão que Adam Smith tenha qualquer possibilidade de cons­
tatar uma diferença entre o valor do produto do trabalho anual da sociedade
global e o produto anual do valor. Os dois não são a mesma coisa. Uma vez
subsumido na produção capitalista, o gigantesco complexo de meios de traba­
lho que o ser humano intercala entre si e o objeto do trabalho assume a forma
de um modo de existência material do capital que se decompõe em diversos
momentos durante o transcurso de seu automovimento no processo de produ­
ção. Portanto, esses meios se convertem em valores, cuja grandeza, contudo,
não é medida segundo o trabalho histórico que foi requerido para a sua produ­
ção (este escapa por princípio a uma determinação quantitativa), mas segundo
a medida do tempo de trabalho socialmente necessário requerido pela repro­
dução atual. O valor dos produtos da totalidade da matéria-prima processada,
por conseguinte, tem de ser essencialmente maior do que o produto anual do
valor que constitui apenas o resultado do trabalho do último ano. Visto que
Adam Smith deriva toda a receita, em última análise, do trabalho — pago e
não pago — , mas, em contrapartida, identifica a qualidade social do trabalho
com a sua forma de manifestação sensível concreta, o produto total se apre­
senta a ele — sob o pressuposto da reprodução simples — apenas na sua forma
consumível. Embora se encontrem nele os rudimentos de uma diferenciação
entre meios de produção e indústrias de bens de consumo, a qual deve ser in­
troduzida para solucionar esse problema, ele ainda não consegue conferir maior
precisão a essa ideia, já que os seus meios metodológicos simultaneamente lhe
barram o caminho até a compreensão de que, no fundo de consumo, o valor

113
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

dos meios de produção consumidos e desgastados apenas reaparece, mas não


foi produzido nem reproduzido durante o último ano pelo trabalho despendido
para esse fundo de consumo. Marx ressalta que Quesnay — “graças ao seu
horizonte restrito” — chegou mais perto da verdadeira questão do que Adam
Smith. Visto que, para Quesnay, o trabalho agrícola é o único trabalho produ­
tivo e que, no campo da agricultura, o processo econômico de reprodução, não
importa qual seja a sua forma especificamente social, se entrelaça com o pro­
cesso natural de reprodução, foi essencialmente mais fácil ter chegado ao seu
conhecimento que um a “parte do produto total — que, como cada uma das
demais partes dele, é, enquanto objeto de uso, resultado novo do trabalho anual
decorrido — [...] é simultaneamente apenas portador de valor de capital antigo,
que reaparece na m esma form a natural” (24/359) e que não circula pelo seu
tableau, mas permanece nas mãos da classe arrendatária para recomeçar ali o
seu serviço como capital.
Voltemo-nos agora para outro círculo vicioso na obra de Adam Smith, des­
crito por Marx, no qual se reflete a alternância entre o modo “esotérico” e o
modo “exotérico” da análise, uma dualidade que é, ela própria, uma vez mais
expressão do caráter burguês dessa ciência, na medida em que é caracterizada
como clássica por Marx. Se a teoria, enquanto clássica, não fosse concomitan-
temente teoria burguesa, ela teria de coincidir com a do próprio Marx, segun­
do a autocom preensão deste. Sob o pressuposto de um a teoria burguesa do
mais-valor, o teórico está diante da seguinte alternativa: se ele quer que vigore
a lei do valor, o capitalismo é impossível; ou então o capitalismo existe (o que
evidentemente é o caso) e, nesse caso, a lei do valor não pode vigorar. Segundo
a crítica marxiana, já nem se consegue mais perceber que a formulação da
questão, motivada em última análise pela “forma irracional” da expressão “va­
lor ou preço do trabalho”, é falsa em si e que contém de antemão a insolubili­
dade do problema. Essa formulação da questão deve ser vista, muito antes,
como a forma suprema da consciência teórica no horizonte burguês e, por essa
razão, Marx tributa a Adam Smith, que formulou esse problema, um elogio
especial. Marx aproveita o ensejo para mencionar que o progresso do conhe­
cimento na teoria econômica de modo algum é uniforme em todos os âmbitos.
Analogamente à formulação do problema acima esboçada, que recebeu trata­
mento mais adequado na teoria fisiocrática do que em Adam Smith, encontram-
-se também em Ricardo debilidades teóricas que Marx só pode interpretar como
retrocesso em relação a um nível já alcançado. Na prim eira parte de Teorias
da mais-valia, consta o seguinte:

114
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

O grande mérito de Adam Smith é ter percebido, e exatamente nos capítulos do livro
primeiro [...], a ocorrência de uma ruptura, ao passar ele da simples troca de mercadorias
e da correspondente lei do valor para a troca entre trabalho objetivado e trabalho vivo,
entre capital e trabalho assalariado, para o estudo do lucro e da renda fundiária em geral,
em suma, para a gênese do mais-valor; ter notado que, nesse ponto, a lei de fato se re­
voga no tocante ao resultado — não importa qual seja a razão mediata, e essa mediação
lhe escapa — , troca-se mais trabalho por menos trabalho (do ponto de vista do traba­
lhador), menos trabalho por mais trabalho (do ponto de vista do capitalista); e ter, além
disso, acentuado — e esse achado na verdade o perturba — que com a acumulação do
capital e com a propriedade da terra, isto é, ao se tomarem as condições do trabalho
independentes em relação ao próprio trabalho, algo muda na aparência (e de fato no
resultado): a lei do valor se transmuta no seu oposto. No plano teórico, a sua força está
em sentir e acentuar essa contradição, e a fraqueza está em ser por ela induzido a enga-
nar-se quanto à lei geral, mesmo no tocante à simples troca de mercadorias, em não
compreender como se introduz essa contradição com a circunstância de se tom ar mer­
cadoria a própria força de trabalho e de ser o valor de uso dessa mercadoria específica,
o qual nada tem a ver, portanto, com o seu valor de troca, a própria energia que gera o
valor de troca. Ricardo supera Adam Smith por não se deixar confundir por essas con­
tradições aparentes, de resultados operantes. Fica-lhe atrás quando nem mesmo suspei­
ta existir aí um problema e por isso em nenhum momento estranha nem o preocupa o
desenvolvim ento específico que a lei do valor assume com a form ação do capital.
(26.1/58-9 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. I, p. 66])

Interessante é uma indicação metodológica anexada por Marx, segundo a


qual a sistemática mais ampla da concepção ricardiana está diretamente vin­
culada com a cegueira para o problema manifestada por Ricardo nesse ponto
central. “Mas, ao mesmo tempo, é naturalmente por causa de sua visão pene­
trante que Adam Smith se torna perplexo, inseguro, sente faltar-lhe o chão e
não pode, ao contrário de Ricardo, chegar à visão teórica global e coerente dos
fundamentos gerais abstratos do sistema burguês” (26.1/59 [ed. bras. Teorias
da mais-valia, vol. I, pp. 66-7]).
Só no final da segunda parte de Teorias do mais-valor ficará claro a que se
refere essa crítica de Marx. Em Ricardo lê-se:

Adam Smith, que definiu com tanta exatidão a fonte original do valor de troca e que
coerentemente teve de sustentar que todas as coisas se tornam mais ou menos valiosas
na proporção do trabalho empregado para produzi-las, estabeleceu também uma outra
medida-padrão de valor, e se refere a coisas que são mais ou menos valiosas segundo
sejam trocadas por maior ou menor quantidade dessa medida-padrão. Como medida-pa-

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E IT O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

drão ele se refere algumas vezes ao trigo, outras ao trabalho; não à quantidade de traba­
lho empregada na produção de cada objeto, mas à quantidade que este pode comprar no
mercado, como se ambas fossem expressões equivalentes e como se, em virtude de se
ter tornado duas vezes mais eficiente o trabalho de um homem, podendo este produzir,
portanto, o dobro da quantidade de uma mercadoria, devesse esse homem receber, em
troca, o dobro da quantidade que antes recebia. Se isso fosse verdadeiro, se a remune­
ração do trabalhador fosse sempre proporcional ao que ele produz, a quantidade de
trabalho empregada numa mercadoria e a quantidade de trabalho que essa mercadoria
compraria seriam iguais e qualquer delas poderia medir com precisão a variação de
outras coisas. Mas não são iguais8.

Num aspecto Marx aprova a crítica ricardiana a Adam Smith: se a grande­


za de valor da mercadoria foi medida pelo tempo de trabalho nela contido, isso
não afeta a repartição desse valor, ou com as palavras de Marx: “se a relative
quantity o f labour [quantidade relativa de trabalho] era a medida dos valores
das mercadorias antes de aparecer o salário (remuneração distinta do valor do
próprio produto), não há razão alguma por que não continue a ser essa a me­
dida depois de aparecer o salário” (26.2/398-9 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, p. 829]). Contudo, essa crítica, segundo Marx, perfeitamente justificada,
a Adam Smith não vem acompanhada da solução do próprio problema; pelo
contrário, o fato de Ricardo supor que Adam Smith tenha utilizado duas me-
didas-padrão diferentes como “conceitos equivalentes” deixa transparecer,
muito antes, que Ricardo nem mesmo entendeu o real problema:

Ricardo retruca simplesmente que a coisa é assim na produção capitalista. Além de


não resolver o problema, nem sequer o nota na obra de Adam Smith. De acordo com
toda a ordenação de sua pesquisa, basta-lhe provar que o valor variável do trabalho —
em suma, o salário — não elimina a determinação do valor das mercadorias, distintas
do próprio trabalho pela quantidade relativa de trabalho nelas contida. “Não são iguais”,
a saber, “a quantidade de trabalho aplicada numa mercadoria e a quantidade de trabalho
que essa mercadoria pode comprar”. Contenta-se com constatar esse fato. (26.2/399-400
[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 830])

Como qualquer teórico burguês, também Ricardo parte da produção capi­


talista como se fosse instância última, algo não mais derivável, mas, ao con­
trário dos teóricos que “ficam perambulando” só no mundo da aparência, como
Marx às vezes diz, ele avança diretamente para a essência do processo global,
não se incomodando com as complexas mediações que justam ente fazem com

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M 0 C A P IT A L

que a essência se torne a essência e que simultaneamente constituem a condi­


ção da possibilidade de uma economia vulgar. Para ele, o valor do trabalho
singelamente é menor do que o valor do produto por ele produzido:

O excedente do valor do produto sobre o valor dos wages [salários] é igual ao mais-
-valor. (Ricardo erra ao dizer lucro, mas então [...] identifica lucro com mais-valor, e é
deste que de fato fala.) Para ele, de fato, o valor do produto é maior que o valor dos
wages [salários]. Como esse fato surge permanece obscuro. A jornada inteira é maior
que o segmento dela requerido para produzir os wages [salários]. Não se evidencia o
porquê. (26.2/408 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 837-8])

Ricardo não se dá conta de que o capitalismo só pode surgir quando o tra­


balho humano é capaz de gerar um mais-produto, ou seja, produzir mais obje­
tos de uso do que se necessita para a reprodução do produtor imediato, que só
então os meios de produção podem assumir a forma do capital ou da proprie­
dade fundiária e que só então o ser humano se apresenta como trabalhador sem
objetivo, cuja capacidade de produzir mais do que o requerido para a sua re­
produção pode ser comprada no mercado como mercadoria. Assim sendo, ele
só pode apreender essa capacidade específica como trabalho vivo, como “im-
mediate labour [trabalho imediato]”, que ele contrapõe diretamente ao trabalho
objetivado, ao “accumulated labour [trabalho acumulado]”, ao capital. Para
ele a diferença é meramente formal, um é trabalho objetivado, o outro é traba­
lho vivo, ou seja, trata-se de duas formas diferentes de trabalho, e ele não
chega a perguntar por que o trabalho assalariado deve ser tratado como mer­
cadoria, para a qual igualmente ainda deve vigorar a lei do valor:

Se essa diferença não importa à determinação do valor das mercadorias, por que
razão se torna de importância tão decisiva quando o trabalho passado (capital) se troca
por trabalho vivo? Por que deve a diferença aí anular a lei do valor, uma vez que de per
si, como se revela na mercadoria, não importa à determinação do valor? Ricardo não
responde a essa pergunta, nem mesmo a suscita. (26.2/401-2 [ed. bras. Teorias da mais-
-valia, vol. II, p. 831])

Embora para Adam Smith, pelas razões recém-mencionadas, também só


possa tratar-se de uma contraposição direta de trabalho vivo e trabalho objeti­
vado, ele divisa um problema no fato de o trabalho vivo ser oferecido simul­
taneamente como mercadoria e, por essa razão, estar sujeito às leis da troca de
equivalentes. As duas medidas-padrão, por conseguinte, de modo algum são

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“conceitos equivalentes”, como pensa Ricardo, mas expressão de uma cons­


ciência mais elevada do problema em Adam Smith:

Diz ao contrário: por não ser mais o salário do trabalhador, na produção capitalista,
igual ao seu produto, e por serem assim duas coisas diferentes, a quantidade de trabalho
que uma mercadoria custa e a quantidade de mercadoria que o trabalhador pode comprar
com esse trabalho, justam ente por isso a quantidade relativa de trabalho contida nas
mercadorias deixa de determinar o valor delas; este, ao contrário, é determinado, pelo
value o fla b o u r [valor do trabalho], pela quantidade de trabalho que posso comprar,
comandar com volume definido de mercadorias. Por essa razão, o value o fla b o u r se
torna a medida dos valores em vez da relative quantity oflabour [quantidade relativa de
trabalho]. (26.2/398 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 828-9])

E assim sucedeu que os dois pensadores formularam teorias do valor expli­


citamente distintas e, apesar disso, defenderam a mesma teoria do mais-valor.
Ambos derivaram o mais-valor, que eles, segundo Marx, de qualquer modo já
compreendiam em sua forma burguesa como lucro, a partir daquele trabalho
que vai além da medida do trabalho necessário, trabalho necessário no sentido
do tempo de trabalho que precisa ser despendido para assegurar a reprodução
do trabalhador. Se a quantidade de meios de vida necessária para um mês
consiste em um quarter de cereal, o valor do cereal pode até se alterar com a
variação da força produtiva do trabalho, mas um quarter de cereal de qualquer
maneira continua “exigindo” um mês de trabalho. E essa é, como Marx expla­
na, a “razão oculta por que Adam Smith diz que, ao intervir o capital e, em
consequência, o trabalho assalariado, o que regula o valor do produto não é a
quantity oflabour bestowed upon the produce, but the quantity oflabour it can
command [quantidade de trabalho nele aplicado e sim a quantidade de trabalho
que o produto pode comandar]” (26.2/404 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol.
II, p. 834]).
Uma quantidade idêntica de valor de uso sem pre se “serve” da mesma
quantidade de trabalho, e esse fato incide na teoria de Adam Smith de tal ma­
neira que ele converte essa quantidade idêntica de trabalho em medida do valor.
Adam Smith diz o seguinte:

Pode-se dizer que quantidades iguais de trabalho têm valor igual para o trabalhador.
Estando o trabalhador em seu estado normal de saúde, vigor e disposição e no grau
normal de sua habilidade e destreza, ele deverá aplicar sempre o mesmo contingente
de sua comodidade, de sua liberdade e de sua felicidade. O preço que ele paga deve

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ser sempre o mesmo, qualquer que seja a quantidade de bens que receba em troca do
seu trabalho9.

Os valores das demais mercadorias se relacionam com o trabalho, do mes­


mo modo que se relacionam com o cereal. Se determinada quantidade de cereal
for trocada por uma quantidade dada de trabalho e se qualquer outro valor de
uso for trocado por cereal numa determinada relação, o valor de qualquer ou­
tra mercadoria será estipulado pela medida de trabalho que ela “põe em movi­
m ento”, visto que cada mercadoria “comanda” uma determinada quantidade
de cereal, e o valor do cereal, por sua vez, é determinado pela quantidade de
trabalho que ele pode colocar a seu serviço. Essa argumentação contém um
círculo vicioso:

Mas como é determinado o valor das outras mercadorias em relação ao trigo (neces-
saries [meios de subsistência])? Pela quantity oflabour they command [quantidade de
valor que comandam]. E como se determina a quantity oflabour they commandl Pela
quantity of corn that labour commands [quantidade de trigo que o trabalho comanda].
Dá-se aí a queda irremissível de Smith no cercle vicieux [círculo vicioso], (26.2/405 [ed.
bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 835])

Esse círculo, contudo, só surge quando se pensa até as últimas consequên­


cias o modo exotérico de análise. Marx acrescenta que Adam Smith, “onde ele
realmente evolui” e, portanto, passa para o modo esotérico de análise, “nunca
emprega essa measure ofvalue [medida de valor]” (26.2/405 [ed. bras. Teorias
da mais-valia, vol. II, p. 835]).

3. D a v id Ricardo

Na avaliação de Marx, a obra de David Ricardo se apresenta como conclu­


são do desenvolvimento da grande teoria burguesa. Ricardo é o teórico mais
consequente; a dualidade da análise esotérica e exotérica que ainda atravessa
o conjunto da obra de Adam Smith não se encontra mais em Ricardo:

Mas, por fim, Ricardo entra em cena e dá o brado no campo da ciência: basta! O
fundamento, o ponto de partida da fisiologia do sistema burguês — para compreender
seus nexos orgânicos internos e seu processo vital — , é a determinação do valor pelo
tempo de trabalho. Daí parte Ricardo e leva então a ciência a abandonar a rotina vigente.
(26.2/163 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 598])

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Em contrapartida, Marx enfatiza que Ricardo tampouco conseguiu pular por


cima do horizonte burguês e que, por essa razão — como sucede com todos os
clássicos — , a obra em seu conjunto se apresenta como “contradição em si”,
como tentativa, de antemão fadada ao fracasso, de querer apreender com “con­
ceitos do entendimento” um sistema que se apresenta nessas categorias de modo
distorcido. Já foi indicado que Marx não atribui a sistemática mais ampla que
caracteriza a obra de David Ricardo quando comparada com a de Adam Smith
a um progresso linear do conhecim ento em todos os âmbitos da economia
política, mas responsabiliza pela unidade e pela maior coesão da obra ricar-
diana justam ente a falta de consciência do problem a quando ele analisa o
ponto de transição decisivo para o sistem a capitalista global — o processo
de troca entre capital e trabalho. Soma-se a isso que, embora Ricardo negue de
modo coerente a visão do Adam Smith “exotérico”, segundo a qual o valor se
origina de seus próprios componentes, Adam Smith — mais precisamente o
Adam Smith “exotérico” — “consegue envolvê-lo” de novo (26.2/214 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 648]), deixando-o enredado num ponto essen­
cial das concepções da esfera da concorrência: a teoria do preço natural.
Para Adam Smith, o preço natural é idêntico ao preço de custo que resulta
da concorrência; no entanto,

[...] para o próprio Adam Smith, esse preço de custo só se identifica ao “value [valor]”
da mercadoria quando ele olvida a sua concepção mais profunda e se aferra à errônea,
oriunda do aspecto superficial, a de que o echangeable value [valor de troca] das com-
modities [mercadorias] se forma juntando os values ofwages, profit and rent [valores
de salário, lucro e renda] determinados de maneira independente. (26.2/215 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 648 modif.])

Pressupondo que o valor da mercadoria é composto pelos valores de salário,


lucro e renda, pergunta-se como esses valores elementares são determinados
e recorre-se — igualmente partindo do fenômeno como está dado na concor­
rência — a “uma taxa comum ou média” para salário, lucro e renda, que existe
“em cada sociedade e nas suas proximidades”10.

Essas taxas comuns ou médias podem ser denominadas taxas naturais dos salários,
do lucro e da renda da terra, no tempo e lugar em que comumente vigoram. [...] Quando
o preço de uma mercadoria não é maior nem menor do que o suficiente para pagar ao
mesmo tempo a renda da terra, os salários do trabalho e os lucros do patrim ônio ou
capital empregado em obter, preparar e levar a mercadoria ao mercado, de acordo com

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

suas taxas naturais, a m ercadoria é nesse caso vendida pelo que se pode chamar seu
preço natural11.

Esse preço natural é preço de custo das mercadorias e coincide com o valor
das mercadorias, pois se pressupõe que o valor é formado pela composição de
salário, lucro e renda. “Nesse caso, a m ercadoria é vendida exatamente pelo
que vale ou pelo que ela custa realmente à pessoa que a coloca no mercado” 12.
Marx percebe que Adam Smith fica em dúvida por causa do lucro, que segundo
ele não pode ser incluído nos custos, mas ele acaba dando a mesma resposta
do “capitalista meditabundo diante dessa pergunta” (26.2/217 [ed. bras. Teorias
da mais-valia, vol. II, p. 649]):

Com efeito, embora, no linguajar comum, o que se chama custo primário de uma
mercadoria não inclua o lucro da pessoa que a revenderá, se ela a vender a um preço que
não lhe permite a taxa comum do lucro nas proximidades, ela está tendo perda no ne­
gócio, já que poderia ter auferido esse lucro empregando seu capital de alguma forma
diferente. Além disso, seu lucro é sua renda, o fundo adequado para sua subsistência.
Assim como, ao preparar e colocar os bens no mercado, ela adianta a seus empregados
seus salários ou sua subsistência, da mesma forma adianta a si mesma sua própria sub­
sistência, a qual geralmente é consentânea ao lucro que ela pode razoavelmente esperar
da venda de seus bens. Portanto, se esses bens não lhe proporcionarem esse lucro, não
lhe pagarão o que realmente lhe custaram13.

Essa identificação de preço de custo e valor ou preço natural está baseada,


portanto, segundo Marx, no fato de Adam Smith sonegar totalmente que, em
sua “parte esotérica”, valor da mercadoria é derivado de trabalho e mais-tra-
balho, mas — e isso o caracteriza como teórico burguês — não pergunta si­
multaneam ente por que esse valor da m ercadoria se apresenta para o capita­
lista individual na forma de custos. É nisso que ele tropeça ao explicitar o
preço natural.

Temos aí a história toda da origem do prix naturel [preço natural] e por cima em
linguagem e lógica de todo apropriadas, uma vez que o valeur da mercadoria é formado
pelos preços de salário, lucro e renda, mas o verdadeiro valor destes, por sua vez, se
constitui ao se enquadrarem nas taxas naturais; assim, é claro que o valeur da merca­
doria é idêntico ao preço de custo, e este ao prix naturel da mercadoria. Pressupõe-se
como dadas a taxa de lucro e também a de salário. São dadas para &formação do preço
de custo. Elas são pressupostas para ele. As taxas também se revelam dadas para o ca­

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pitalista individual. O como, as causas e as razões não o interessam. Smith aí adota o


prisma do capitalista individual, do agente da produção capitalista, quem estabelece o
preço de custo da mercadoria. Tanto para salário etc., tanto para taxa geral de lucro. Ergo
[logo]: é desse modo que aparece ao capitalista a operação por meio da qual se estabe­
lece o preço de custo da mercadoria, ou o valor da mercadoria, como a coisa lhe apare­
ce depois, porque sabe muito bem que o valor de mercado está ora acima ora abaixo
desse preço de custo que, por isso, representa para ele o preço ideal da mercadoria, o
preço absoluto em contraste com as oscilações de preço, em suma, o valor. (26.2/216
[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 649 modif.])

Na concorrência — na qual tudo aparece “invertido, posto de cabeça para


baixo” — , portanto, não é o valor que aparece como “aquilo que regula” os
preços de mercado, mas, muito antes, o preço de custo na qualidade, “por assim
dizer, de preço imanente, valor das mercadorias” (26.2/234 [ed. bras. Teorias
da mais-valia, vol. II, p. 666]).
Ponto de partida essencial da crítica marxiana a Ricardo é que essa identi­
ficação de valor e preço de custo, oriunda da análise exotérica de Adam Smith
e que não só não foi assumida, mas expressamente rejeitada por Ricardo, está
na base também de toda a obra ricardiana.

Ricardo, enquanto combate essa concepção de modo geral, aceita a confusão nela
fundada, ou seja, identifica valeur echangeable [valor de troca] ao cost price [preço de
custo] ou natural price [preço natural] de Adam Smith. Essa confusão se justifica para
Smith, porque toda a sua pesquisa sobre o prix naturel [preço natural] parte de sua
concepção errônea do value [valor]. Mas, para Ricardo, não há justificação alguma, pois
nenhures aceita ele essa ideia falsa de Smith, e ex professo [abertamente] a combate por
incoerente. Mas Smith consegue envolvê-lo de novo por meio do prix naturel [preço
natural]. (26.2/215 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 648])

Marx passa, então, a mostrar que a aceitação irrefletida desse componente


da teoria de Adam Smith é determ inante para todos os aspectos do sistema
ricardiano. O fato de Ricardo — enquanto teórico burguês — não desenvolver
geneticamente as categorias, mas ajuntá-las do terreno empírico, constitui uma
característica geral e não precisa mais ser ressaltado. Significativo é, contudo,
que, m ediante essa identificação de valor e preço de custo, ele pressupõe a
totalidade das categorias como dadas de modo tal que a única forma que resta
para comprovar a validade da lei do valor é a da lógica da subsunção: “O m é­
todo de Ricardo consiste no seguinte: parte da determinação da magnitude do

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e investiga se as demais relações


e categorias econômicas contradizem essa determinação do valor ou até onde
a modificam” (26.2/161 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 597] ). Como
para ele as formas de manifestação não são formas de manifestação, ele deve
concebê-las “de maneira im ediata e direta como prova ou representação das
leis gerais” (26.2/100 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 537]).
Marx ressalta que Ricardo foi o primeiro teórico a “refletir sobre a relação
entre a determinação do valor das mercadorias e o fenômeno de capitais de
m agnitude igual que fornecem lucros iguais” (26.3/65 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. III, p. 1.125]). A vigência da lei do valor, isto é, a troca das
mercadorias segundo a medida-padrão do tempo de trabalho nelas contido,
contradiz a existência de uma taxa geral de lucro, isto é, de uma diferença
entre valor e preço de custo das mercadorias. Ricardo, que parte da identidade
imediata, não enuncia isso do modo registrado por Marx, mas apenas “intui”
o fato, quando, com a ajuda da diferenciação entre capital fixo e circulante
assumida de Adam Smith, chama a atenção para o dado de que capitais de igual
grandeza movimentam quantidades diferentes de trabalho vivo, mas, apesar
disso, geram a mesma taxa de lucro. Porém, já que Ricardo — por causa da
identificação de valor e preço de custo — parte da existência de uma taxa geral
de lucro como se fosse um fato dado, ele só pode conceber a não coincidência
de valor e preço de custo como exceção da lei universal; sobre isso, acrescen­
ta Marx, “Malthus observa com acerto que, com o progresso da industry [in­
dústria], a regra se torna exceção e a exceção, a regra” (26.3/66 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. III, p. 1.126]). Ricardo — assim escreve Marx —
pergunta-se:

Que efeito a alta ou queda de salário tem sobre os “relative values” [valores relativos]
quando o capital fixe et circulant [o capital fixo e o circulante] ingressam neles em
proporções diferentes? E então acha naturalmente que, segundo seja maior ou menor o
capital fixe que ingressa etc., a alta ou a queda dos salários tem de influir de modo
muito diferente nos capitais, conforme parte maior ou menor deles consista em capital
variável, isto é, capital diretamente empregado em salário. Por isso, para nivelar de novo
os lucros nos diferentes ramos de produção, aliás, restabelecer a taxa geral de lucro, os
preços das mercadorias têm de ser regulados de maneira diferente, em contraposição
aos seus valores. Portanto, conclui ele deduzindo, essas diferenças influenciam os “re­
lative values” [valores relativos] ao subirem ou caírem os salários. (26.2/171-2 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 607 modif.])

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Ao lado desse caso resultante da variação no salário, no qual os valores das


mercadorias não são mais determinados pelo tempo de trabalho requerido para
a sua produção, Ricardo desdobra ainda um segundo caso:

Do mesmo modo, diferenças no tempo de rotação do capital — quer permaneça este


mais tempo no processo de produção (embora não no processo de trabalho) ou no pro­
cesso de circulação, precisando de mais tempo e não de mais trabalho para o seu return
[retomo] — não alteram a igualdade dos lucros; e isso também se opõe e constitui uma
exceção, segundo Ricardo, à lei do valor. (26.3/66 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. III, p. 1.126])

Marx argumenta que, em vez de pressupor uma taxa geral de lucro, Ricar­
do deveria ter antes perguntado se a existência dessa taxa de lucro não contra­
diz prima facie [à primeira vista] a lei do valor, em vez de corresponder a ela,
e ele descobriria que “teria primeiro de elucidar sua existência por meio de uma
série de elos interm ediários, elucidação muito diversa da subsunção pura
e simples à lei do valor” (26.2/171 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II,
pp. 606-7]). Se partirmos do fato de que o valor da mercadoria é determinado
pelo tempo de trabalho — e, de acordo com Marx, sem esse pressuposto a
ciência econômica não faria sentido — , o mais-valor gerado por um capital
não é determinado por sua grandeza absoluta, mas depende da grandeza do
capital variável, ou seja, do capital investido no salário. Em consequência dis­
so, capitais de igual grandeza, mas com composição diferente de capital cons­
tante e variável (Ricardo o chama de capital fixo e circulante) devem gerar
mais-valores desiguais. O mesmo vale também para capitais com velocidade
desigual de circulação. Inclusive quando capitais de grandeza igual produzem
valores iguais,

[...] difere, de acordo com o seu processo de circulação, o tempo em que eles podem
apropriar-se de quantidades iguais de trabalho não pago e convertê-las em dinheiro.
Isso gera, portanto, um a segunda diferença nos valores, nos m ais-valores e lucros
que capitais de igual magnitude têm de render in different trades [em diferentes ramos]
num determinado espaço de tempo. (26.2/187 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II,
pp. 621-2 modif.])

Por esse ponto de vista, a estruturação dos volumes II e III de O capital se


apresenta como demonstração sistemática do fato de que o valor é determina­
do unicamente pela medida-padrão do tempo de trabalho socialmente neces-

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

sário, como desmistificação total da aparência de que o valor pode se originar


de outras fontes além do trabalho. Marx enfatiza repetidamente que os preços
das mercadorias devem divergir dos seus valores quando se quer que capitais
de grandeza igual gerem lucros iguais em intervalos de tempo iguais. Contudo,
os preços de custo de todas as mercadorias juntas, a sua soma, são iguais aos
seus valores, assim como o lucro total é igual ao mais-valor total que esses
capitais geram juntos durante um ano.

O lucro médio e, em consequência, também os preços de custo ficariam no domínio


da pura imaginação e da inconsistência, se não tomássemos por base a determinação do
valor. O nivelamento dos mais-valores in different trades [nos diferentes ramos] em nada
muda a magnitude absoluta desse valor total, mas altera a sua repartição in different
trades. Já a determinação desse próprio mais-valor tem por única origem a determina­
ção do valor pelo tempo de trabalho. Sem este, o lucro médio é lucro médio de nada.
merafancy [fantasia], E então ele poderia ser de 1.000% ou de 10%. (26.2/187-8 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 622 modif.])

Em consequência disso, a concorrência deve ser analisada sob dois pontos


de vista, que Ricardo não distingue de modo exato por causa dessa identifi­
cação de valor e preço de custo. Em correspondência com a sua teoria do valor,
Marx diferencia entre os ram os específicos da produção e os ram os dife­
renciados da produção. Nos ramos específicos da produção, nos quais é produ­
zido um tipo bem determinado de mercadorias, o valor da m ercadoria não é
medido conforme o trabalho individualmente despendido, mas há aí apenas
um valor geral que é determinado pela massa total do tempo de trabalho social
exigido pela produção da massa total das mercadorias desse ramo específico
de produção. A concorrência, portanto, nivela os valores individuais das mer­
cadorias nessas esferas específicas da produção num valor geral, o valor de
mercado, que tem seu preço expresso no preço de mercado. O preço real de
mercado passa a situar-se acima ou abaixo desse valor de mercado ou então
preço de mercado, oscilando em torno deste, que, bem por isso, também pode
ser definido como a média dos preços reais de mercado. As condições gerais
de produção dentro dessa esfera específica são as condições médias de produ­
ção, assim como a produtividade geral do trabalho é tida como produtividade
média. Correspondendo à relação do produtor individual com as condições
gerais de produção e a produtividade geral do trabalho, o seu ganho, por con­
seguinte, será maior ou menor do que o lucro médio dentro da esfera especí­
fica de produção.

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Não é, portanto, pelo nivelamento dos lucros dentro de um ramo particular de pro­
dução que a concorrência estabelece o valor de mercado ou preço de mercado. [...] Ao
revés: a concorrência aí nivela os diferentes valores individuais ao mesmo valor de
mercado, igual, indistinto, ao permitir as diferenças no domínio dos lucros individuais,
dos lucros dos capitalistas individuais e seus desvios da taxa média de lucro do ramo.
Cria-as até ao estabelecer o mesmo valor de mercado para mercadorias produzidas em
condições de produção desiguais, por conseguinte, com produtividade desigual de traba­
lho, representando, assim, quantidades de tempo de trabalho desiguais. A mercadoria
produzida em condições mais favoráveis contém menos tempo de trabalho do que
a produzida em condições mais desfavoráveis, mas se vende ao mesmo preço, tem o
mesmo valor, como se encerrasse o mesmo tempo de trabalho, o que ela não contém.
(26.2/203-4 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 637])

Esse movimento deve ser diferenciado de um segundo, a saber, que, no caso


de capitais nos ramos diferenciados de produção, ou seja, dos capitais com
composição orgânica diferenciada, a concorrência produz uma taxa geral de
lucro mediante o nivelamento dos valores de mercado a preços de mercado que
representam os preços de custo, distintos dos reais valores de mercado. “Com
essa segunda atuação [...] a concorrência gera o preço de custo, isto é, a mesma
taxa de lucro nos diferentes ramos de produção, embora essa taxa idêntica de
lucro [...] só se possa impor por meio d e prices [preços] que se distinguem dos
valores” (26.2/204 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 638]). Ricardo
não é capaz de diferenciar com exatidão esses dois movimentos opostos da
concorrência; ele o faz de tal modo que, mesmo tendo em vista o último mo­
vimento da concorrência, ele,

[...] coisa estranha, considera-o [...] conversão do m a rke tprice [preço de mercado]
(preço diverso do valor) ao natural price [preço natural] (o valor expresso em dinheiro).
Esse blunder [tolice] decorre, porém, do erro já cometido no capítulo I “On Value”
[Sobre o valor], de identificar cost-price [preço de custo] com value [valor]. (26.2/205-6
[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 639])

Essa confusão do processo de formação do valor de mercado com o pro­


cesso de formação do preço de custo influencia, por sua vez, a teoria ricardiana
da renda fundiária, e isso de modo tal que, em função da elaboração rigorosa
de sua teoria do valor, ele nega a existência de uma renda fundiária absoluta,
como ressalta Marx reiteradamente. Todavia, antes de abordar aqui a peculia­
ridade dessa teoria da renda, é preciso m encionar que Marx não só deriva o

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

aspecto específico da teoria ricardiana do ponto de partida obscuro, mas simul­


taneamente também delineia o pano de fundo histórico sem o qual ela perm a­
neceria incompreensível. Assim sendo, ele destaca primeiramente o fato de que
Ricardo viveu num período caracterizado pelo constante aumento dos preços
do trigo, e ele sabia muito bem que a introdução de leis referentes ao cereal
visava impedir a queda dos preços. A favor de Ricardo deve-se, portanto,

[...] acentuar que a lei da renda fundiária entregue a si mesma — dentro de determinado
território — tinha de motivar o recurso a terras menos férteis, portanto, encarecimento
dos produtos agrícolas, crescimento da renda à custa da indústria e da massa da popu­
lação. E aí Ricardo tinha razão prática e historicamente. (26.2/235 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. II, p. 668])

A cresce-se a isso que Ricardo (assim como Anderson, que M arx m enciona
nesse contexto) parte da “visão considerada tão esquisita” no continente eu­
ropeu, a saber, que não há propriedade fundiária que constitua um entrave para
o investimento a bel-prazer de capital na terra. Marx ressalta que esse modo de
análise remonta à “law o f enclosures” [lei dos cercamentos] inglesa, sem analo­
gia no continente europeu, e ao fato de que em nenhum outro lugar o modo de
produção capitalista tratou as relações tradicionais da agricultura de modo tão
inescrupuloso, adequando-as às suas condições, como o fez na Inglaterra.

Nesse domínio, a Inglaterra é o país mais revolucionário do mundo. Foram implaca­


velmente liquidadas todas as condições historicamente transmitidas que contrariassem
os requisitos da produção capitalista no país ou não lhes correspondessem — a saber, a
situação das propriedades rurais, as próprias comunidades rurais, os locais habitados pela
agriculturalpopulation [população agrícola], essa própria population, os centros origi­
nais das culturas, as próprias culturas. Para os alemães, por exemplo, as condições eco­
nômicas se apresentaram determinadas por circunstâncias tradicionais referentes a lim i­
tes territoriais, locais dos centros econômicos, aglomerados fixos de população. Para os
ingleses, o capital criou progressivamente as condições históricas da agricultura, a partir
do fim do século XV. (26.2/236 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 668-9 modif.])

Quando Marx fala do capitalismo clássico, ele tem em mente as relações


inglesas, nas quais se desenvolveu adequadam ente a propriedade fundiária
moderna, que deixa livre curso à atividade do capital, o qual só se interessa
pela renda em dinheiro. “Até aí não existe, portanto, propriedade fundiária”
(26.2/237 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 669]). A adequação de

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todas as condições de produção ao modo de produção capitalista é pressupos­


to para o desenvolvimento da concepção de que sempre se passa do solo mais
fértil para o menos fértil. Determinante para o desenvolvimento dessa concep­
ção, contudo, é a “visão que os ingleses adquiriram” das colônias. Nas colônias,
especialmente naquelas em que se cultivavam exclusivamente mercadorias para
o comércio, como tabaco, algodão, açúcar etc.,

[...] o que decidia, dada a localização geográfica, era a fertilidade da terra, e dada a fer­
tilidade, a localização geográfica. Eles [os colonialistas, H. R.] não procediam como os
germanos que se estabeleceram na Alemanha para nela construir o lar, mas como pessoas
que, determinadas pelos motivos da produção burguesa, queriam produzir mercadorias
por critérios determinados, antes de tudo, não pelo produto e sim pela venda do produto.
A circunstância de Ricardo e outros autores ingleses transferirem esses critérios —
procedentes de homens que já eram, eles mesmos, produto do modo de produção capi­
talista — das colônias para o palco da história mundial e considerarem o modo capitalista
de produção condição prévia da agricultura em geral, como era para aqueles colonos,
explica-se pelo fato de reencontrarem nessas colônias e de maneira mais evidente, sem
luta contra relações tradicionais e, portanto, em toda pureza, o mesmo domínio da
produção capitalista na agricultura, domínio que salta aos olhos por toda parte no seu
próprio país. (26.2/238 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 670 modif.])

Nesse ponto, também deve-se ressaltar que, segundo Marx, o problema só


se coloca sobre a base de uma teoria do valor do trabalho sustentada de modo
coerente do começo ao fim, ainda que a comprovação da validade da lei do
valor não seja efetuada da forma feita por Marx. Onde a “natureza como tal
tem valor”, como, por exemplo, em Roscher, não se trata mais de uma concep­
ção teórica, mas de misticismo.

Para Ricardo, o problem a só existe porque o valor é determinado pelo tempo de


trabalho. Para aqueles tipos não é o caso. Segundo Roscher, a natureza como tal tem
valor. [...] Isto é, ele não sabe absolutamente o que é valor. Que o impede, portanto, de
fazer o valor da terra, na origem, entrar nos custos de produção e formar a renda, e de
supor o valor da terra, isto é, a renda, para explicar a renda? (26.2/125 [ed. bras. Teorias
da mais-valia, vol. II, p. 563])

Ricardo se pergunta: pressupondo que as mercadorias são trocadas por seus


valores e que o capital pode se movimentar livre e desimpedido em todas as
esferas de investimento, como é possível que exista ao lado do lucro do arren­
datário ainda uma renda que é paga ao proprietário da terra? Se em todas as

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S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A PIT A L

esferas de produção da indústria só existe lucro, como é possível, então, que


justam ente na agricultura exista, ao lado do lucro normal, ainda uma forma de
riqueza, a renda, que também só pode consistir em tempo de trabalho? Dado
que quantidades iguais de trabalho representam valor igual, não há razão pela
qual o capital investido na terra gere, além do lucro, ainda uma renda fundiária.
A não ser que a quantidade de trabalho empregado nessa esfera possa produzir
um valor maior do que em outras esferas. Porém, isso apenas significaria aban­
donar o conceito de valor e, junto com ele, o fundamento de toda essa ciência.
Por essa razão, a renda tampouco pode ser explicada como resultado de um
preço de monopólio, de um preço que gera mais do que o lucro médio. Se o
capital é capaz de penetrar desimpedidamente em toda e qualquer esfera de
produção (que é o que presume Ricardo), então aceitar isso implica justamente
supor o que deve ser explicado, a saber, que numa esfera específica de produ­
ção o preço das mercadorias deve gerar mais do que a taxa geral de lucro e, em
consequência, elas devem ser vendidas acima do seu valor. O que se supõe,
portanto, é que a produção agrícola está eximida das leis gerais do valor das
mercadorias, e isso só pode ser suposto dessa maneira porque a forma especí­
fica da renda ao lado da forma do lucro suscita essa aparência.
Como Ricardo resolve esse problema?

Ricardo resolve a dificuldade, supondo-a in principie [em princípio] inexistente, e


esta é na realidade a única maneira de resolver uma dificuldade na base de princípios.
Mas aí só cabem dois métodos. Ou se mostra que a contradição com o principie [prin­
cípio] é pura aparência que procede do desenvolvimento da própria coisa. Ou o pesquisa­
dor, como o faz Ricardo, ao negar a dificuldade num ponto, daí parte para poder expli­
car sua existência noutro ponto. (26.2/26 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 466])

A negação da dificuldade “num ponto” consiste, de acordo com Marx, em


que R icardo “supõe um ponto onde o capital do arrendatário, como o de
qualquer outra pessoa, só paga lucro” (26.2/26 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, p. 466]). Esse capital, portanto, não se diferencia, num primeiro mo­
mento, fundamentalmente de qualquer capital industrial, visto que não paga
nenhum a renda fundiária. A renda só surge quando aumenta a demanda por
cereal e, por essa razão, em distinção a outros ramos da indústria, é preciso
refugiar-se em solos menos produtivos. Embora o farm er [fazendeiro], como
qualquer outro capitalista, sofra prejuízo por causa do aumento dos preços dos
meios de vida, já que tem de pagar mais aos seus trabalhadores, a situação
acaba se revertendo a seu favor porque, mediante o aumento dos preços das

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m ercadorias acima do seu valor, outras mercadorias, que ingressam no seu


capital constante (Ricardo diz capital fixo), têm seu valor relativo à sua mer­
cadoria reduzido, comprando-as, portanto, mais barato, e ele, além disso, pos­
sui o valor excedente do trigo mais caro.

O lucro desse arrendatário, portanto, sobe acima da taxa média do lucro que todavia
caiu. Hence [por isso], outro capitalista vai para terreno pior, o II, que, com essa taxa
menor de lucro, pode fornecer produto ao preço de I ou talvez algo mais barato. Seja
como for, agora temos de novo em II a situação normal com o m ais-valor reduzido
apenas a lucro; mas temos a renda explicada para I, pela existência de um duplo preço
de produção, o preço de produção de II, ao mesmo tempo preço de mercado de I. (26.2/27
[ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 466-7])

A teoria da renda coincide, portanto, com a teoria do valor, o excedente do


preço acima do valor não contradiz a teoria geral do valor, porque, no interior
de cada esfera específica de produção, o valor não é determinado pela medida-
-padrão dos valores individuais das mercadorias, mas pelo valor que elas têm
nas condições gerais de produção de dada esfera.

A í também o preço dos produtos que dão renda é preço de monopólio [embora não
o seja no sentido mencionado há pouco, H. R.], monopólio como o ocorrente em todos
os ramos da indústria, mas que na agricultura se fixa e por isso toma a forma de renda,
diversa do lucro suplementar. Ainda aí há o excesso da demand [procura] sobre a supply
[oferta] ou, o que dá no mesmo, a circunstância de não se poder satisfazer a additional
demand [procura adicional] com uma additional supply [oferta adicional] aos preços
que eram os da original supply [oferta original], antes de os preços crescerem em vir­
tude do excesso da procura sobre a oferta. Ainda aí a renda surge por causa do excesso
do preço sobre o valor, por causa do aumento dos preços acima do valor no melhor solo,
o que dá origem à additional supply [oferta adicional]. (26.2/160 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. II, pp. 595-6 modif.])

Ao passo que em outros ramos da produção essa forma do monopólio é


apenas um fenômeno passageiro, já que pela m igração do capital os preços
voltam a adequar-se ao preço natural, trata-se, nesse caso, de um monopólio
que se deve à diminuição absoluta da produtividade na agricultura. Nesse pon­
to, porém, observa-se ao mesmo tempo como a identificação do valor com o
preço de custo, por assim dizer, pré-forma a sua teoria da renda. Ela até está
em consonância com a sua teoria do valor e com as representações referentes
à função niveladora da concorrência, mas a sua teoria do valor (sobre a base

130
S O C I E D A D E E C O N H E C I M E N T O E M O C A P IT A L

dessa identificação) obriga-o a negar a renda fundiária absoluta. O pior dos


solos não gera renda; se “o melhor terreno dá renda, isso apenas demonstra
que, na agricultura, a diferença entre o trabalho individualmente necessário e
o trabalho socialmente necessário se fixa, por ter esta uma base natural, en­
quanto na indústria está sempre desaparecendo” (26.2/123 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. II, p. 561 modif.]).
Se Ricardo admitisse a existência de uma renda fundiária absoluta entraria
em contradição com a sua teoria do valor; significaria que a mesma quantida­
de de trabalho cria valores diferentes, dependendo do material que ela proces­
sa. “Mas se se admite essa diversidade no valor, embora em cada um dos ramos
de produção o mesmo tempo de trabalho se materialize no produto, supõe-se
que o tempo de trabalho não determina o valor e sim algo heterogêneo. Essa
diferença das magnitudes de valor anularia o conceito de valor” (26.2/123 [ed.
bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 561]). Ricardo explica, portanto, a exis­
tência da renda diferencial, mas a propriedade fundiária permanece sem efeito
econômico para ele, embora descreva a propriedade fundiária, em contrapar­
tida, como produto de um processo de apropriação.

A lei ricardiana também reinaria mesmo quando não existisse propriedade fundiária.
Abolida a propriedade da terra e mantida a produção capitalista, remanesceria esse lucro
suplementar emergente da diferença de fertilidade. Se o Estado se apropriasse da terra
e prosseguisse a produção capitalista, a renda de II, III e IV seria paga ao Estado, a pró­
pria renda continuaria a existir. (26.2/97 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 534])

Deixando de existir a identificação de valor com preço de custo, ou seja,


com a decifração mais precisa do movimento contraditório da concorrência,
deixa de existir também “o interesse teórico que o [Ricardo, H. R.] força a
negar a renda fundiária absoluta” (26.2/242 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, p. 673]). Nesse caso, não se trata mais de explicar como o preço da
mercadoria ainda gera renda ao lado do lucro, ou seja, aparentemente violando
a lei do valor e, mediante “a elevação desse preço acima do mais-valor ima­
nente, rende mais que a taxa geral de lucros para um capital de dada magni­
tude” (26.2/31 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 470]), mas trata-se
tão somente de explicar ainda por que, quando as mercadorias são niveladas a
preços médios, uma m ercadoria não precisa ceder a outras mercadorias tanto
do seu mais-valor imanente a ponto de gerar só mais o lucro médio. Para Marx,
a existência da própria propriedade fundiária é a resposta. O capital só pode
existir sob o pressuposto da propriedade fundiária, que, porém, ao mesmo

131
SO B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO DE C APITAL EM K ARL M A R X

tempo, representa um meio de subtrair do capital um a parcela do produto


agrícola, sendo que o capital só poderia apropriar-se dessa parcela sob o pres­
suposto da não existência da propriedade fundiária. O capital tem de ceder ao
proprietário de terras o excedente do valor sobre o preço de custo. Marx expli­
ca, portanto, a existência da renda fundiária absoluta a partir da diferença na
composição orgânica do capital, que Ricardo não é capaz de apreender nessa
forma, a ponto de ser obrigado a negar a renda fundiária absoluta. Esta se deve
ao fato de que, na agricultura, as forças produtivas são menos desenvolvidas,
sendo absorvido, em consequência disso, mais trabalho vivo.

Essa diferença [na composição orgânica, H. R.] é histórica e pode, portanto, desa­
parecer. A mesma argumentação que m ostra a possibilidade de existir a renda fundiária
absoluta demonstra que esta é real, existe na qualidade de mero fa c t [fato] histórico,
próprio de certo estádio de desenvolvimento da agricultura, e pode desaparecer em es­
tádio superior. (26.2/242-3 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 674])

N o ta s
1 Cf. Roman Rosdolsky, Zur Entstehungsgeschichte des M arxschen “Kapital ”, Frankfurt. 1968,
vol. 1, pp. 24-78, e: W itali Solom onowitsch W ygodski, Die Geschichte einer großen E ntde­
ckung. Berlin, 1967. pp. 117-30.
2 Cf. sobre isso a exposição de O skar Negt em reação à contribuição de A lfred Schm idt no
Frankfurter Colloquium, em setem bro de 1967, em: K ritik der politischen Ökonomie heute
— Í00 Jahre “K apital”. Frankfurt, 1968, p. 43.
3 Cf. Alfred Schmidt, Zum Erkenntnisbegriff der K ritik der politischen Ökonomie, eit., p. 32.
4 G. W. F. Hegel, Jenaer Realphilosophie (ed. Hoffmeister), Hamburg, 1967, p. 257.
5 Hegel [Vorlesungen über die Geschichte der P hilosophie], em: Werke (Glöckner), vol. XV,
pp. 282 e ss.
6 Adam Smith, Eine Untersuchung über N atur und Wesen des Volkswohlstandes, Jena. 1923, pp.
60-1 [Ed. bras.: A riqueza das nações. Investigação sobre sua natureza e suas causas. Trad.
Luiz João Baraúna. São Paulo, Nova Cultural, 1996, vol. I, p. 102 (Os economistas).]
7 Idem, ibidem, p. 63 [ed. bras. p. 103],
8 David Ricardo, Über die Grundsätze der politischen Ökonomie und Besteuerung. Berlin. 1959,
p. 12. [Ed. bras.: Princípios de economia política e tributação. Trad. Paulo Henrique Ribeiro
Sandroni. São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 25 (Os economistas).]
9 Adam Smith, Eine Untersuchung über N atur und Wesen des Volkswohlstandes, vol. I, p. 40
[ed. bras. p. 89],
10 Adam Smith, Eine Untersuchung über N atur und Wesen des Volkswohlstandes, vol. I. p. 69
[ed. bras. p. 109].
11 Idem, ibidem, p. 70 [ed. bras. p. 109].
12 Idem, ibidem, p. 70 [ed. bras. p. 109].
13 Idem, ibidem, p. 70 [ed. bras. pp. 109-10],

132
CAPÍTULO 3

A EX POS IÇ ÃO CATEGORIAL

1. Sobre a relação entre méto do lógico e mét odo histórico

Nossa investigação a respeito do conceito da concorrência, do capital existen­


te, na medida em que, na condição de capital existente, igualmente ainda cabe
na “análise geral”, mostrou que, segundo Marx, um mal-entendido central faz
parte da essência da teoria burguesa: em nenhum momento ela se dá conta de
que analisa o processo capitalista global sempre só a partir da perspectiva do
capitalista individual, ao qual esse processo se apresenta de forma distorcida.
Como sabemos, O capital termina com a crítica da “fórmula trinitária”, daque­
la teoria mistificadora dos diversos fatores da produção que contribuem, em
seu conjunto, para o aumento de valor do produto final, tendo sido constatado
que essa visão resulta, à guisa de “tendência natural de interpretação”, do fato
de que, para o capitalista individual, salário, juros e renda funcionam como
elementos da formação de preços, entram nos seus cálculos na forma de custos.
Entre esses custos o Adam Smith “exotérico” também inclui o lucro, o qual é
antecipado em certa proporção pelo empresário, orientando-se pela taxa média
de lucro gerado por cada capital. Nessa constelação, a categoria do salário
desempenha um papel central, porque ela encobre que a repartição do valor
por diversas categorias não é idêntica à forma do trabalho produtor de valor,
assim como inversamente encobre que esse trabalho, na medida em que possui
o caráter especificamente social do trabalho assalariado, não é formador de
valor. Em consequência, todo trabalho aparece, por sua natureza, como traba­

133
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

lho assalariado, e essa é, como foi explicitado anteriormente, a razão secreta


da teoria da força mística dos fatores da produção. Pois, coincidindo o trabalho
com o trabalho assalariado, a forma social em que o produtor desnudado se
defronta com as condições estranhadas de trabalho também coincide com a
existência material dessa m esma forma. Sendo assim, os meios de trabalho
como tais são capital, e a terra como tal é propriedade fundiária; a forma social
do processo de produção distorce-se em forma natural e se torna idêntica ao
processo simples do trabalho, do modo como ele se encontra na base de todas
as formações sociais enquanto pressuposto da vida humana. As diversas recei­
tas parecem se dever ao papel que os diversos meios de produção ou então o
trabalho desempenham no processo simples da produção.
A tarefa da teoria econômica é desmantelar essa falsa aparência, e demons­
tramos com alguns exemplos da crítica marxiana à teoria burguesa clássica em
que m edida ela a cumpriu com êxito. Porém, o fato de ainda assim acabar
capitulando se deve à circunstância de não ter discernido a natureza das cate­
gorias. A isso Marx também atribui que o método da teoria burguesa sempre
permanece exterior ao seu objeto, e isso, por sua vez, tange a forma de expo­
sição do processo global. M arx aborda apenas marginalmente esse assunto,
mais propriamente apenas quando trata de Ricardo. Ele o elogia, como já ex­
pusemos, por causa da rigorosa coerência do seu procedimento, mas, ao mes­
mo tempo, indica que ele toma as categorias a partir do campo empírico, pres-
supondo-as como dadas (em vez de primeiro desenvolvê-las), para demonstrar
a sua “adequação à lei do valor” .

O método de Ricardo consiste no seguinte: parte da determinação da magnitude do


valor da mercadoria pelo tempo de trabalho e investiga se as demais relações e catego­
rias econômicas contradizem essa determinação do valor ou até onde a modificam. A
primeira vista percebe-se a legitimidade histórica dessa maneira de proceder, sua neces­
sidade científica na história da economia, mas, ao mesmo tempo, sua insuficiência cien­
tífica. A insuficiência se revela no modo de apresentação (meramente formal) e, ademais,
leva a resultados errôneos, porque omite os necessários elos intermediários e procura
de imediato provar a congruência entre as categorias econômicas. (26.2/161-2 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 597])

Ainda não trataremos aqui o que se deve entender por “elos intermediários
necessários” nesse contexto; essencial é, muito antes, a indicação de que um
método que assume exteriormente as categorias terá de levar a um modo de

134
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

exposição necessariamente falso do processo global. Isso é ressaltado clara­


mente algumas páginas mais adiante:

Daí a arquitetura de sua obra — singular ao extremo e necessariamente revirada. [...]


A teoria ricardiana está [...] toda contida nos seis primeiros capítulos da obra. Quando
falo de suas falhas arquitetônicas, trata-se dessa parte. A outra parte consiste em apli­
cações, esclarecimentos e aditamentos (excetuada a seção sobre moeda), que por sua
natureza se baralham e nada exigem da arquitetônica. Mas a arquitetônica falha da
parte teórica (os primeiros seis capítulos) não é acidental e sim resultante do método de
pesquisa do próprio Ricardo e dos objetivos determinados que impusera a sua investi­
gação. Ela revela o aspecto cientificamente insuficiente do próprio método de pesquisa.
(26.2/164 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, pp. 599-600])

Visto que Marx desde sempre já criticou a teoria clássica a partir do ponto
de vista de sua própria elaboração dos problemas econômicos, infere-se daí
simultaneamente que o método com cujo auxílio se deverá provar a validade
universal da lei do valor no capitalismo deve resultar da natureza das próprias
categorias e também toda a exposição do processo deve advir da compreensão
correta dos problemas formais. Contudo, enquanto o trabalho assalariado for
identificado com trabalho puro e simples e as determinidades sociais formais,
sob as quais as condições de produção se confrontam com o trabalhador, forem
distorcidas em qualidades naturais dessas condições de produção, a economia
burguesa não conseguirá ultrapassar o horizonte metodológico de Ricardo. O
seu método e a forma da exposição indicam simultaneamente o seu próprio
limite. Pois, nesse caso, a distorção da forma social em forma natural significa
tão somente que se deve ignorar completamente que a diferenciação da socie­
dade em classes, a forma burguesa do antagonismo de classes, expressa-se no
próprio arcabouço categorial, ou seja, que a gênese do trabalho assalariado
livre e a autonom ização das condições do trabalho em relação ao produtor
imediato constituem um só e mesmo processo: os meios de produção somente
assumem a forma de capital quando a existência subjetiva é separada de sua
base objetiva e só então aparece na forma do trabalhador puro e simples. Ao
surgir, o capitalismo oculta a sua própria origem, na medida em que todos os
membros da sociedade encontram uns aos outros na esfera da circulação, tro­
cam equivalentes e, por essa via, estão ao mesmo tempo submetidos ao pro­
cesso de distorção anteriorm ente esboçado, que faz com que o ser humano
burguês apareça como ente sem história por excelência. Como a teoria burgue­
sa não discerne dessa maneira esse conjunto de fatos, ela precisa — analoga-

135
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

mente à teoria clássica do Estado — contentar-se em ter a forma dos indivíduos


isolados como verdade completa e só pode desenvolver a gênese do processo
capitalista de reprodução, assim como o seu funcionamento, sob esse pressu­
posto (indiscernível para ela mesma). Porém, vimos na análise da crítica mar-
xiana a Adam Smith e David Ricardo que, sob esse pressuposto, justam ente
não se consegue provar a validade universal da lei do valor. M arx volta a
abordar esse contexto global por ocasião de sua discussão com Cherbuliez, que
deriva da lei do valor em sua interpretação burguesa o “direito exclusivo” do
trabalhador ao valor resultante do seu trabalho como “princípio fundamental”:

Cherbuliez não entende e não explica como a lei pela qual as mercadorias se equi­
valem e se trocam na proporção de seu valor, isto é, do tempo de trabalho nelas contido,
se transmuta fazendo, ao contrário, a produção capitalista — e só nesta é essencial a
geração do produto como mercadoria — depender da apropriação de parte do trabalho
sem haver troca. Sente apenas ocorrer aí uma transmutação. Esse princípio fundamen­
tal é pura ficção. Decorre de uma aparência da circulação das mercadorias. Estas se
trocam na proporção de seu valor, isto é, do trabalho nelas contido. Os indivíduos, ao
se confrontarem apenas como possuidores de mercadorias, só podem apoderar-se da
mercadoria alheia alienando a própria. Por isso, parece que eles têm apenas a sua própria
mercadoria para trocar, pois a troca de mercadorias que contêm trabalho alheio, desde
que elas não tenham sido, por sua vez, obtidas mediante troca de mercadorias próprias,
pressupõe relações inter-humanas que diferem das de simples possuidores de mercado­
rias, de compradores e vendedores. Na produção capitalista se desfaz essa aparência que
a própria superfície ostenta. Mas o que não se desfaz é a ilusão de que, na origem, as
pessoas se confrontam apenas como possuidoras de mercadorias e, por isso, cada um só
é proprietário na condição de trabalhador. Esse “na origem” é, como disse, miragem
oriunda da aparência da produção capitalista e nunca existiu na realidade histórica.
(26.3/369 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. III, p. 1.420 modif.])

Diante dessa aparência da circulação de mercadorias sucumbiram, segundo


Marx, todos os teóricos burgueses. É verdade que há o reconhecimento de que
o mais-valor é produzido e apropriado pelos proprietários dos meios de tra­
balho, fato para o qual Marx volta a chamar a atenção nesse ponto; o que não
se percebe é que só com a separação completa entre o produtor e seus meios
de produção toda a produção é subsumida na form a burguesa da divisão do
trabalho, e, em consequência disso, só então a lei do valor pode chegar à sua
vigência plena.

136
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Uma análise da forma específica da divisão do trabalho, das condições de produção


em que se baseia e das relações econômicas dos membros da sociedade em que essas
condições se dissolvem mostraria que todo o sistema da produção burguesa é pressu­
posto para que o valor de troca apareça como ponto de partida simples na superfície e
para que o processo de troca, da maneira como este se desdobra na circulação simples,
se mostre como metabolismo social simples, mas que abrange tanto toda a produção
como o consumo. Resultaria daí, portanto, que são pressupostas outras relações de
produção, mais intrincadas e que colidem em maior ou menor grau com a liberdade e a
independência dos indivíduos, são pressupostas relações econômicas entre esses indi­
víduos, para que se confrontem, no processo de circulação, como produtores privados
livres em suas relações simples de compra e venda, para que figurem como seus sujeitos
independentes. Do ponto de vista da circulação simples, porém, essas relações estão
extintas. (U/907)

Todos os membros da sociedade só poderão intercambiar uns com os outros


na esfera da circulação usando certas máscaras de personagens quando a forma
burguesa da cisão de classes estiver completamente desenvolvida. Somente
então, também para o capitalista individual, estarão dados de antemão, na
forma de um arcabouço categorial, os diversos elementos que determinam o
seu agir, bem como definem o seu modo de existência; na form a em que o
processo capitalista global se apresenta ao capitalista individual, esse arcabou­
ço representa simultaneamente a superfície desse processo. Neste, encontramos
a categoria “salário do trabalho”, que simula haver, na troca entre capital e
trabalho, a mesma espécie de compra e venda que há no caso de todas as demais
mercadorias. Com outras palavras: a lei do valor só vigorará quando a socie­
dade inteira estiver subsumida na forma burguesa da divisão do trabalho, mas
a demonstração de sua validade só é possível, segundo Marx, quando puder
ser mostrado que, num ponto decisivo de transição, a troca ocorre só na apa­
rência, que a relação de troca entre capital e trabalho constitui uma aparência
própria apenas do processo de circulação, “simples forma, que é estranha ao
seu conteúdo e que o m istifica”, ou seja, uma forma sob a qual o capitalista
pode se apropriar sem equivalente de uma quantidade de trabalho vivo maior
do que ele entrega de trabalho objetivado. Para Marx, por conseguinte, o pro­
cesso global se apresenta numa forma em que a concepção burguesa foi ver­
dadeiramente suprassumida no sentido hegeliano: enquanto os teóricos bur­
gueses partem da forma dos indivíduos isolados como algo não mais derivável,
Marx mostra que até mesmo essa forma é mediada, ela própria já é resultado
do capital. “A circulação, considerada em si mesma, é a mediação de extremos

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pressupostos. Mas não é ela que põe esses extremos. Sendo ela mesma a tota­
lidade da mediação, sendo ela mesma um processo total, ela consequentemen­
te precisa ser mediada. Por conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência.
Ela é o fenôm eno de um processo que se desenrola p o r trás dela” (U/920). “A
circulação simples é, muito antes, uma esfera abstrata do inteiro processo de
produção burguês, que, por suas próprias determinações, identifica-se como
momento, simples forma de manifestação de um processo mais profundo que
está por trás dela, que resulta dela tanto quanto a produz — o processo do
capital industrial” (U/922-3).
Esses fatos se refletem na exposição dialética das categorias. Na leitura cui­
dadosa do primeiro volume de O capital, deparar-nos-emos, no mais tardar na
nota de rodapé 15, com a problemática da formulação: “O leitor deve notar que
não se trata aqui da remuneração ou do valor que o trabalhador recebe por, di­
gamos, uma jornada de trabalho, mas sim do valor das mercadorias nas quais
sua jornada se objetiva. A categoria do salário ainda não existe em absoluto
nesse estágio de nossa exposição” (23/19 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 122,
n. 15]). Outra passagem essencial para a formulação encontra-se no capítulo 4
que trata da transformação de dinheiro em capital. Ali Marx escreve o seguinte:

Por que razão esse trabalhador livre se confronta com ele [com o capitalista, H. R.]
na esfera da circulação é algo que não interessa ao possuidor de dinheiro, para o qual o
mercado é uma seção particular do mercado de mercadorias. No momento, essa questão
tampouco tem interesse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como
o possuidor de dinheiro ocupa-se dela praticamente. Uma coisa, no entanto, é clara: a
natureza não produz possuidores de dinheiro e de mercadorias, de um lado, e simples
possuidores de suas próprias forças de trabalho, de outro. Essa não é uma relação his-
tórico-natural [naturgeschichtliches], tampouco uma relação social comum a todos os
períodos históricos, mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico
anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda uma série
de formas anteriores de produção social. (23/183 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 244])

No Rascunho de O capital, Marx já havia argumentado de modo semelhan­


te, quando chamou a atenção para o significado que esses fatos têm para a
forma dialética da exposição das categorias.

O possuidor do dinheiro [...] encontra já pronta no mercado, nos limites da circula­


ção, a capacidade de trabalho como mercadoria; esse pressuposto do qual partimos aqui
e do qual parte a sociedade burguesa no seu processo de produção evidentemente é o

138
A E X P O SIÇÃ O CATEG O RIAL

resultado de um longo desenvolvimento histórico, é o resumo de muitas revoluções


econômicas e pressupõe o ocaso de outros modos de produção (de outras relações sociais
de produção) e determinado desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social.
O processo histórico passado bem determinado que está dado nesse pressuposto será
formulado de maneira ainda mais determinada à medida que avança a análise da relação.
Porém, esse estágio histórico do desenvolvimento da produção econômica — do qual o
trabalhador livre já é o próprio produto — constitui o pressuposto do devir e sobretudo
da existência do capital como tal. A sua existência é o resultado de um demorado pro­
cesso histórico de configuração econômica da sociedade. Nesse ponto, evidencia-se de
modo bem nítido como a forma dialética da exposição só é correta quando está ciente
dos seus limites. (U/945)

Das passagens citadas se infere que a existência de um conjunto de traba­


lhadores assalariados livres constitui o pressuposto para a elaboração conceituai
do sistema capitalista global na forma da exposição dialética das categorias,
mas que essa forma de exposição, por seu turno, não é imediatamente idêntica
à reconstituição da gênese histórica do capital e do trabalho assalariado livre.
Essa diferenciação entre a sequência lógica das categorias e a gênese histórica
do capitalismo não se encontra na obra inicial, como vimos. E verdade que
também ali se ressalta claramente que só com a separação completa entre a
existência subjetiva e as condições objetivas de sua realização torna-se possível
vislumbrar a estrutura da história, mas naquela época ele não conseguiu chegar
à formulação teórica do curso real da história. Ele tampouco estava em condi­
ções de derivar a relação de classes do simples ato de troca, o que pelo menos
nos Manuscritos económico-filosóficos foi pretendido de modo incipiente. Com
a introdução dessa diferenciação foram superadas as inconsistências.
Engels determinou aproximadamente a relação entre método lógico e mé­
todo histórico numa resenha de Para a crítica da economia política. Nesse
texto consta que o m étodo lógico seria o m étodo despojado de sua “forma
histórica” e das “casualidades perturbadoras” (13/475 [ed. bras. Contribuição
à crítica da economia política, pp. 282-3]*); segundo Engels, a linha de pen­
samento em Para a crítica nada mais seria que “a imagem espelhada, em sua
forma abstrata e teoricam ente coerente, do curso da história” . A descrição
dessa relação entre os dois métodos refere-se só de modo extremamente me­
diado, antes de tudo, a Para a crítica da economia política e ao sistema global.

* Ref. com pleta da edição brasileira: K. M arx, Contribuição à crítica da economia política.
Trad. Florestan Fernandes. 2. ed. São Paulo, Expressão Popular, 2008. (N. do T.)

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Neste ponto, contudo, é preciso lembrar que Marx descreveu de modo total­
mente diverso o seu método de exposição no tocante à sucessão das categorias
e à sua relação com o desenvolvimento histórico:

Seria impraticável e falso, portanto, deixar as categorias econômicas sucederem-se


umas às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem
é determinada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burgue­
sa, e que é exatamente o inverso do que aparece como a sua ordem natural ou da ordem
que corresponde ao desenvolvimento histórico. (42/41 [ed. bras. Grundrisse, p. 60])

A exposição dialética como sistema consistente em si da estrutura global


das categorias tem muita similaridade com a ideia hegeliana de sistema, na
medida em que o todo só se tom a acessível mediante as partes, assim como,
inversamente, os momentos individuais da formulação global são determinados
pelo todo até nos detalhes mais concretos quanto à sua posição bem definida
no interior do todo. Ocorre, porém, que o histórico e o lógico não são idênticos
como no idealismo absoluto; a relação entre ambos é mais complexa.

Por outro lado, o que é muito mais importante para nós, o nosso método indica os
pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a economia burguesa,
como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma,
para modos históricos de produção anteriores. Por essa razão, para desenvolver as leis
da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de pro­
dução. Mas a sua correta observação e dedução, como relações que devieram elas pró­
prias históricas, levam sempre a primeiras equações — como os números empíricos, p.
ex., nas ciências naturais — que apontam para um passado situado detrás desse sistema.
Tais indicações, juntamente com a correta apreensão do presente, fornecem igualmente
a chave para a compreensão do passado — um trabalho à parte, que esperamos também
poder abordar. (42/373 [ed. bras. Grundrisse, p. 378])

Marx se refere aqui ao processo da acumulação primitiva, que leva a que,


pela primeiríssima vez, seja produzido o conjunto dos trabalhadores assalaria­
dos livres, sendo que o lugar sistemático para tratar desse processo é fixado
pela logicidade imanente da exposição categorial. Contudo, para que se possa
fazer a distinção entre essa “história efetiva das relações de produção” enquan­
to história específica e a exposição categorial, não só deve haver clareza quan­
to à estrutura do arcabouço categorial, no qual essa “história efetiva” penetra
em certos pontos nodais, mas a apreensão conceituai exata dessa “história das

140
A E X P O SIÇ Ã O C ATEG O RIAL

relações de produção” igualmente só pode ocorrer com base no conhecimento


da logicidade interna do movimento do valor. Portanto, o conceito de capital
é pressuposto para retraçar dito desenvolvimento histórico do capital que levou
até o capitalismo e, desse modo, também àquelas relações, sobre cuja base
unicamente se torna possível a formulação desse conceito.

Se no sistema burgués acabado cada relação econômica pressupõe a outra sob a


forma económico-burguesa e, desse modo, cada elemento posto é, ao mesmo tempo,
pressuposto, o mesmo sucede em todo o sistema orgânico. Como totalidade, esse próprio
sistema orgânico tem seus pressupostos, e seu desenvolvimento na totalidade consiste
precisamente em subordinar a si todos os elementos da sociedade, ou em extrair dela os
órgãos que ainda lhe faltam. É assim que ele devém uma totalidade historicamente. O
vir a ser tal totalidade constitui um momento do seu processo, de seu desenvolvimento.
(42/203 [ed. bras. Grundrisse, p. 217])

Não é preciso continuar detalhando que aqui não está sendo antecipado
nenhum teorema das teorias sociais organicistas. Seria mais plausível lembrar
o conceito hegeliano do espírito que reproduz de modo essencialmente mais
preciso o que Marx tem em vista aqui, a saber, que só mesmo o capital é capaz
de originar o capitalismo. Quando Marx, em O capital, expõe as relações efe­
tivas só na medida em que elas “correspondem ao seu próprio conceito”, ele
expressa com isso simultaneamente que o capitalismo existente não precisa
corresponder de modo imediato ao seu próprio conceito, não precisa ser “ade­
quado a si mesmo”, mas a forma em que ele existe ainda assim deve ser com­
preendida como modo de existência para o qual impele o movimento do valor;
que, por assim dizer, está implantado nele. “No conceito do capital está posto
que as condições objetivas do trabalho — e estas são produto dele mesmo —
assumem uma personalidade diante do trabalho ou, o que significa a mesma
coisa, que elas são postas como propriedade de uma personalidade estranha ao
trabalhador” (42/420 [ed. bras. Grundrisse, p. 422]). Porém, não há como con­
ceber a autonomização das condições do trabalho ante o produtor como pecu­
liaridade do capitalismo sem a existência da moderna propriedade fundiária
burguesa. As duas coisas, trabalho assalariado livre e propriedade fundiária bur­
guesa, são dois lados da mesma coisa; elas próprias ainda precisam ser com­
preendidas como produto do capital:

[...] no interior do sistem a da sociedade burguesa, o capital vem imediatam ente


depois do valor. Na história, ocorrem outros sistemas que constituem o fundamento

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S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E IT O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

material do desenvolvimento incompleto do valor. Como o valor de troca desempenha


aqui apenas um papel acessório ao lado do valor de uso, aparece como sua base real não
o capital, mas a relação da propriedade fundiária. A propriedade fundiária moderna, por
comparação, não pode de modo algum ser compreendida sem o pressuposto do capital,
porque não pode existir sem ele e aparece historicamente de fato como forma engendrada
pelo capital, posta como forma adequada a ele, da configuração histórica precedente da
propriedade fundiária. Por essa razão, é precisamente no desenvolvimento da proprie­
dade fundiária que podem ser estudadas a vitória e a formação progressivas do capital
[...]. A história da propriedade fundiária que mostrasse a transformação progressiva do
senhor feudal em rentista fundiário, do arrendatário vitalício por herança, semitributário
e frequentemente privado de liberdade no moderno fazendeiro e dos servos da gleba e
do camponês sujeito a prestação de serviços no assalariado rural seria de fato a história
da formação do capital moderno. (42/177-8 [ed. bras. Grundrisse, pp. 194-5])

Outra passagem diz o seguinte:

Historicamente a passagem é indiscutível. Já está contida no fato de que a proprie­


dade fundiária é produto do capital. Por essa razão, observamos sempre que ali onde
a propriedade fundiária, pela ação retroativa do capital sobre as formas mais antigas da
propriedade fundiária, se transforma em renda monetária (o mesmo ocorre, de outra
maneira, ali onde é criado o camponês moderno) e, por isso, a agricultura, como agri­
cultura explorada pelo capital, se transforma simultaneamente em agronomia industrial,
ali os cottiers, servos da gleba, camponeses sujeitos a prestação de serviços, enfiteutas,
colonos etc. necessariamente devêm diaristas, trabalhadores assalariados; por conse­
guinte, o trabalho assalariado em sua totalidade é inicialm ente criado pela ação do
capital sobre a propriedade fundiária e, posteriormente, tão logo esta está desenvolvida
como forma, pela ação do próprio proprietário fundiário. O próprio proprietário então
clears [limpa] a terra de suas bocas supérfluas, como diz Steuart, arranca os filhos da
terra do seio no qual cresceram e transform a, assim, o próprio trabalho na terra, de
trabalho que, segundo a sua natureza, aparece como fonte imediata de subsistência, em
trabalho como fonte de subsistência mediada, inteiramente dependente de relações so­
ciais. (42/202 [ed. bras. Grundrisse, pp. 215-6])

A exposição das categorias numa sequência determinada “pela relação que


têm entre si na moderna sociedade burguesa, e que é exatamente o inverso do
que aparece como a sua ordem natural ou da ordem que corresponde ao desen­
volvimento histórico”, deve ser compreendida, por conseguinte, nessa forma
simultaneamente como forma abstrata de exposição do processo que leva his­
toricamente ao capitalismo. Ele é — se assim o quisermos — o processo de

142
A E X P O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

constituição do sujeito burguês em sua forma mais abstrata. “Nós assistimos


ao seu processo de formação. Esse processo de formação dialético é apenas a
expressão ideal do movimento efetivo em que o capital vem a ser. As relações
ulteriores devem ser consideradas como desenvolvimentos a partir desse em­
brião” (42/231 [ed. bras. Grundrisse, p. 243]). Por essa razão, devemos formu­
lar agora de modo mais preciso a ideia citada anteriormente de que, no interior
do sistem a burguês, o capital industrial segue imediatam ente o valor. Uma
análise precisa dessa passagem mostra que entesouramento, capital comercial,
capital de juros e de usura assumem um a posição essencial na formulação
dialética dessa passagem, mas que especialmente os dois últimos são apenas
rapidamente tangidos e o tratamento detalhado só segue bem mais tarde. Re­
flete-se aí o fato de que a forma dialética de exposição das categorias simulta­
neamente é a forma adequada de exposição do movimento que historicamente
dá origem ao capitalismo. Em nossa tentativa de reconstituir o desdobramento
dialético das categorias temos de manter essa conexão em vista.

2. O conceito m arx ia no de valor

Antes de nos voltarmos para a forma da exposição dialética das categorias,


delinearemos sucintamente os problemas básicos da teoria marxiana do valor
e do dinheiro. Numa análise mais precisa das formulações centrais da questão,
o que chama a atenção é que elas apresentam a mesma estrutura das que já no
jovem Marx ocupavam o centro da discussão. Lembramos que já bem cedo ele
tentou derivar a relação entre base e superestrutura da estrutura da própria base.
As primeiras indicações em A crítica do direito do Estado de Hegel, em que
ele observa que a “sociedade burguesa implementa [...], no interior dela mes­
ma, a relação entre o Estado e a sociedade burguesa” ; a equiparação explicita­
mente efetuada de crítica da religião e crítica do Estado político, no tratado
Sobre a questão judaica', os Manuscritos económico-filosóficos, contendo a
prim eira determinação mais precisa da base; e A ideologia alemã, enquanto
tentativa de com preender a duplicação do mundo em sociedade burguesa e
superestruturas idealistas como produto do autoesfacelamento e do autocon-
tradizer-se do fundamento mundano, isto é, da sociedade burguesa em suas
diversas fases, levam diretamente à teoria marxiana do valor e do dinheiro. O
quanto as formulações do problema da obra tardia coincidem com as da obra
inicial fica claro no Rascunho de O capital, em que ele reitera a sua crítica
inicial ao hegelianismo de esquerda e a crítica tardia à economia política. Na
controvérsia com Darimon e Proudhon, ele levanta a seguinte pergunta:

143
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A D O C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

Chegamos aqui à questão fundamental, que não se relaciona mais com o ponto de
partida. A questão geral seria: as relações de produção existentes e suas correspondentes
relações de distribuição podem ser revolucionadas pela mudança no instrum ento de
circulação — na organização da circulação? Pergunta-se ainda: uma tal transformação
da circulação pode ser implementada sem tocar nas relações de produção existentes e
nas relações sociais nelas baseadas? [...]. Além disso, haveria de investigar ou se con­
verteria, muito antes, na pergunta geral se as diversas formas civilizadas do dinheiro
— dinheiro metálico, dinheiro de papel, dinheiro de crédito e dinheiro-trabalho (este
último como forma socialista) — podem realizar aquilo que delas é exigido sem abolir
a própria relação de produção expressa na categoria "dinheiro”, e se, nesse caso, por
outro lado, não é uma pretensão que se autodissolve desejar, mediante transformações
formais de uma relação, passar por cima de suas determinações essenciais? As distintas
formas de dinheiro podem corresponder melhor à produção social em diferentes etapas,
uma eliminando inconvenientes contra os quais a outra não está à altura; mas nenhuma
delas, enquanto permanecerem formas do dinheiro e enquanto o dinheiro permanecer
uma relação de produção essencial, pode abolir as contradições inerentes à relação do
dinheiro, podendo tão somente representá-las em uma ou outra forma. (42/58-9 [ed. bras.
Grundrisse, p. 74-5])

Pretender e tentar eliminar as deficiências da sociedade burguesa pela ma­


nipulação do sistema monetário e de circulação parece a Marx tão inconse­
quente quanto a insensatez dos anarquistas de quererem “eliminar” o Estado
ou a dos hegelianos de esquerda, cuja exigência de transformação da consciên­
cia só desembocaria em outra exigência: “de interpretar o existente de outra
maneira, quer dizer, de reconhecê-lo por meio de um a outra interpretação”
(3/20 [ed. bras. A ideologia alemã, p. 84]).
Assim como a forma do Estado político ou então da filosofia e da religião
enquanto representação do domínio de um universal no mundo existente é tão
somente a deficiência do mundo distorcido, oculta dele próprio, e, por essa
razão, esse “fundamento mundano autoesfacelado” precisa ser aniquilado na
prática para que aquelas formas desapareçam, assim também a eliminação do
dinheiro-ouro e sua substituição por bilhetes de horas não conseguirão atingir
o mal efetivo, visto que o dinheiro como tal representa apenas um momento
necessário da forma burguesa do processo de reprodução, encontrando-se na
mesma contraposição a ele, e o supera do mesmo modo como a religião e o
Estado superam a limitação do mundo profano:

Suprimis todos os males. Ou. antes, elevais todas as mercadorias ao monopólio até
aqui exclusivo desfrutado pelo ouro e pela prata. Deixais existir o papa, mas fazeis de

144
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

cada um um papa. Suprimis o dinheiro, fazendo de cada mercadoria dinheiro e dotando-


-a das qualidades específicas do dinheiro. A questão que aqui se coloca é justamente se
o problema não manifesta a sua própria absurdidade e se, por conseguinte, a impossibi­
lidade de solução já residiria nas condições postas para a tarefa. Muitas vezes a respos­
ta só pode consistir na crítica da pergunta, e muitas vezes também só se pode chegar a
uma solução na m edida em que a própria pergunta é negada. A questão efetiva é: o
próprio sistema de troca burguês não torna necessário um instrumento de troca especí­
fico? Não cria necessariamente um equivalente particular para todos os valores? Uma
form a desse instrum ento de troca ou desse equivalente pode ser mais prática, mais
apropriada, e envolver menos inconvenientes do que outras. Mas os inconvenientes que
resultam da existência de um instrumento de troca particular, de um equivalente parti­
cular e ainda assim universal, teriam de se reproduzir em qualquer forma, ainda que de
modo diferente. Naturalmente, Darimon passa por cima dessa questão com entusiasmo.
Suprimis o dinheiro e não suprimis o dinheiro! Suprimis o privilégio que o ouro e a
prata detêm em virtude de sua exclusividade como dinheiro, mas fazeis de todas as
mercadorias dinheiro, i.e., conferis a todas, em conjunto, uma propriedade que, separa­
da da exclusividade, não existe mais. (42/62-3 [ed. bras. Grundrisse, p. 78 modif.])

Renunciarem os aqui a um a exposição das concepções dos “teóricos do


bilhete de horas” criticados por Marx, até porque eles apenas lhe ofereceram
o ensejo para o desenvolvimento de sua própria teoria do valor e do dinheiro.
Contudo, o fato de aquelas concepções, não im portando quão efetivas elas
possam ter sido, terem tido para Marx apenas a função de “cabide” lança luz
sobre a estrutura de sua própria teoria. Assim como ele ressalta em A ideologia
alemã que os jovens-hegelianos “concordam com os velhos-hegelianos no que
diz respeito à crença no domínio da religião, dos conceitos, do universal no
mundo existente”, e só uns combatem como uma usurpação o domínio que os
outros saúdam como legítimo, mas ambos não têm clareza quanto à gênese do
universal [ed. bras. A ideologia alemã, p. 84], assim também no caso da con­
cepção de Proudhon trata-se apenas de uma variante da economia burguesa
que se caracteriza como burguesa justam ente pelo fato de não saber dizer nada
sobre o nexo intrínseco, necessário, entre tempo de trabalho, trabalho produtor
de mercadorias e forma-dinheiro. “Todavia, estava reservado ao senhor Prou­
dhon e a seus discípulos pregar seriamente que a degradação do dinheiro e a
exaltação da mercadoria são o núcleo do socialismo, e, desse modo, dissolver
o socialismo num mal-entendido elementar quanto à conexão necessária entre
mercadoria e dinheiro” (13/68-9 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia
política, p. 118 modif.]). Da crítica marxiana a Proudhon é possível inferir não

145
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

só o quanto a sua própria concepção de sociedade socialista está imbricada


com os problemas materiais da economia política burguesa; ao mesmo tempo
está implicitamente expresso que somente a compreensão da derivação teórica
da forma-dinheiro a partir da forma-mercadoria pode ser tida como critério de
recepção adequada da teoria marxiana. Nessa questão material não existe um
“direito dos pós-nascidos” . Por essa razão, na medida em que se trata de pro­
blemas estruturais da sociedade burguesa, M arx é superior não só aos seus
críticos burgueses, mas também àqueles que se entendem como marxistas e
não reconheceram a conexão entre a teoria do valor do trabalho e a teoria do
dinheiro como problema central do primeiro capítulo da obra tardia. Ao for­
mular a teoria do valor, Marx como que coloca à disposição a pedra de toque
que perm ite decifrar a crítica à sua obra e as diferentes formas de recepção
como insuficientes, isto é, como crítica e recepção efetuadas a partir de um
ponto de vista que ele há muito já superou: o do sujeito burguês.
Se tomarmos como ponto de partida a mesma estrutura de que nos inteira­
mos como problema fundamental da obra inicial, se partirmos da estrutura da
duplicação, e nos lembrarmos das características específicas da teoria burgue­
sa, podemos, também nesse caso, a saber, no da duplicação da mercadoria em
mercadoria e dinheiro, antecipar a formulação de certos motivos da crítica. O
que vale para a distorção da forma social da individualidade desatada numa
forma natural, e para as consequências dela decorrentes relativamente à elabo­
ração conceituai da forma do Estado político e das diversas formas da cons­
ciência ideológica, vale também para o caso da duplicação da m ercadoria em
m ercadoria e dinheiro. Contudo, isso não deve ser concebido no sentido de
uma analogia. Pois o recurso à base significa, ao mesmo tempo, que a raiz da
distorção no pensamento burguês deve ser procurada na distorção da forma-
-m ercadoria em forma natural do produto, ou seja, que a decifração dessa
duplicação é, para Marx, a abertura do único acesso possível ao processamen­
to teórico da sociedade burguesa como um todo. A teoria do valor do trabalho
tem, por conseguinte, uma im portância central no conjunto da teoria, não,
porém, na forma em que se encontra dada nos clássicos. Quando Marx assume
dos clássicos a teoria do valor do trabalho, não se trata de modo algum da re­
produção de um dogma, como afirma a teoria econômica subjetivista, mas,
muito antes, da crítica à forma dogmática em que essa teoria é proposta pelos
clássicos. Essa forma dogmática, no entanto, resulta da referida distorção pre­
viamente efetuada da forma-mercadoria em forma natural, distorção essa que
im possibilita uma mediação real entre trabalho e valor ou então entre tempo
de trabalho e grandeza de valor.

146
A EXPOSIÇÃO C A T E G O R I A L

É verdade que a economía política analisou, mesmo que incompletamente, o valor


e a grandeza de valor e revelou o conteúdo que se esconde nessas formas. Mas ela jamais
sequer colocou a seguinte questão: por que esse conteúdo assume aquela forma, e por
que, portanto, o trabalho se representa no valor e a medida do trabalho, por meio de sua
duração temporal, na grandeza de valor do produto do trabalho? (23/94-5 [ed. bras. O
capital, vol. I, p. 151])

Por ser clássica, ela se distingue justam ente por ter descoberto e sustentado
o trabalho como substância do valor e o tempo de trabalho como medida da
grandeza de valor; ela é teoria burguesa porque não faz jus ao momento da na­
turalidade espontânea que se expressa nas categorias da economia política e,
por essa razão, sempre já explicita o conteúdo dessas categorias de uma m a­
neira que permanece fundamentalmente exterior a elas. Assim Marx menciona
que, por exemplo, Boisguillebert fornece a prova “de que se pode considerar o
tempo de trabalho como medida de valor das mercadorias, e, todavia, confun­
dir o trabalho objetivado em valor de troca dessas mercadorias e medido pelo
tempo com a atividade natural imediata dos indivíduos” (13/41 [ed. bras. Contri­
buição à crítica da economia política, p. 84 modif.]). O mesmo vale para Adam
Smith, que confunde a “equação objetiva que o processo social estabelece vio­
lentamente entre os trabalhos distintos pela igualdade subjetiva de direitos dos
trabalhos individuais” (13/45 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia polí­
tica, p. 89]). De modo semelhante procede também Benjamín Franklin, ao qual
se deve “a primeira análise consciente e de uma clareza quase banal do valor
de troca pelo tempo de trabalho” (13/41 [ed. bras. Contribuição à crítica da
economia política, p. 84 modif.]). “Franklin considera de imediato o tempo de
trabalho unilateralmente como medida dos valores. A transformação dos pro­
dutos reais em valores de troca subentende-se, e trata-se, pois, unicamente de
encontrar uma medida para a magnitude de valor” (13/42 [ed. bras. Contribuição
à crítica da economia política, p. 84 modif.]). Marx acentua sem ressalvas que
essa forma insuficiente de mediação de conteúdo e forma bastava à análise de
estruturas mais simples, enfatizando, porém, ao mesmo tempo que, na análise
de estruturas mais complexas, a teoria burguesa necessariamente naufragaria.

[...] entre os economistas que aceitam plenamente a medida da grandeza de valor pelo
tempo de trabalho encontram-se as mais variegadas e contraditórias noções do dinheiro,
isto é, da forma pronta do equivalente universal. Isso se manifesta de modo patente, por
exemplo, no tratamento do sistema bancário, em que parece não haver lim ite para as
definições mais triviais do dinheiro. (23/95 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 155, n. 32])

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S O B R E /i E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

Não é por acaso que as dificuldades começam justam ente no desenvolvi­


mento da forma-dinheiro (cuja análise, como ainda será mostrado, constitui o
pressuposto para o desenvolvimento das demais categorias, ou seja, da form a-
-capital, da/orw?.fl-juros etc.); isso não é nenhum acaso, mas corresponde aos
fatos de que tomamos conhecimento ao rememorar os escritos iniciais. Quan­
do a forma-mercadoria se distorce em forma natural do produto do trabalho,
ou seja, quando o trabalho produtor de mercadorias “é confundido com a ati­
vidade natural im ediata dos indivíduos”, a forma-dinheiro necessariamente
permanecerá enigmática para o teórico, pois tem de assumi-la do mundo em­
pírico, que, para ele, precisamente por essa via, adquire essa forma de impene­
trabilidade porque, por meio da distorção previamente efetuada, ele se privou
da possibilidade de uma reconstituição da gênese da forma-dinheiro. Sobre
Benjamín Franklin, Marx escreve o seguinte em Para a crítica da economia
política:

Mas, por não desenvolver o trabalho contido no valor de troca como trabalho geral-
-abstrato, como trabalho social que procede da alienação universal de trabalhos indivi­
duais, ele vê, forçosamente equivocado, o dinheiro como forma de existência imediata
desse trabalho alienado. Por isso, o dinheiro e o trabalho criador do valor de troca não
têm para ele conexão interna, mas o dinheiro é, antes, um instrumento introduzido de
fora na troca por comodidade técnica. (13/42 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco­
nomia política, p. 86 modif.])

O dinheiro se torna “um expediente habilmente idealizado” (13/36 [ed. bras.


Contribuição à crítica da economia política, p. 80]), o que levou um “enge­
nhoso economista inglês” a afirmar que “seria, pois, um abuso tratar do dinhei­
ro na economia política, já que nada de comum tem com a tecnologia” (13/36-
7 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 80] ). Diante disso
M arx insiste em que, no caso do dinheiro, trata-se exclusivamente de uma
categoria econômica. “O dinheiro não nasce por convenção, como tampouco
acontece com o Estado” (42/98 [ed. bras. Grundrisse, p. 113]), escreve Marx
no Rascunho, e, por essa razão, o teórico precisa fazer jus à forma da necessi­
dade em sua formulação, ou seja, ele precisa deduzir com rigor que o dinheiro
tem de originar-se da forma do sistema burguês de produção. Por conseguinte,
a comprovação da necessidade material da forma-dinheiro significa, no aspec­
to metodológico, ao mesmo tempo, que o procedimento de ajuntar exterior­
mente, próprio do sujeito burguês, está superado e não se introduz nenhuma
categoria que não tenha se legitimado completamente.

148
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Qualquer um sabe, mesmo que não saiba mais nada além disso, que as mercadorias
possuem uma forma de valor em comum que contrasta do modo mais evidente com as
variegadas formas naturais que apresentam seus valores de uso: a forma-dinheiro. Cabe,
aqui, realizar o que jam ais foi tentado pela economia burguesa, a saber, provar a gênese
dessa forma-dinheiro, portanto seguir de perto o desenvolvimento da expressão do valor
contida na relação de valor das mercadorias, desde sua forma mais simples e opaca até
a ofuscante forma-dinheiro. Com isso, desaparece, ao mesmo tempo, o enigma do di­
nheiro. (23/62 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 125])

Do contexto da formulação do problema anteriormente esboçada resultam


duas perguntas: como deve ser concebido o conteúdo das categorias da econo­
mia política para que, na análise das formas, seja necessariamente compreen­
dido como conteúdo daquelas formas? O que quer dizer, no plano da economia
política, autoesfacelam ento e autocontradizer-se do fundamento mundano?
Vamos ater-nos à prim eira pergunta. Anteriormente já se fez alusão a que a
teoria clássica desenvolve o conteúdo de maneira exterior à forma, que ela não
desdobra a conexão necessária entre trabalho e valor ou então tempo de traba­
lho e grandeza de valor, e que essa brecha na teoria faz parte da essência do
seu caráter burguês. Na exposição do conteúdo das categorias, o sujeito burguês
de qualquer modo já tem seu alcance limitado, visto que não é capaz de aden­
trar o plano das categorias que constituem o horizonte da experiência. Porém,
o conteúdo, enquanto conteúdo dessas formas, só pode ser desenvolvido se ele
próprio igualmente for compreendido de um modo que reflete também o cará­
ter natural-espontâneo do processo global. Marx critica na teoria burguesa que
ela nunca entendeu corretamente o momento natural-espontâneo no processo
de reprodução baseado na divisão do trabalho. Assim, nos Grundrisse, ele
indica que Adam Smith e, antes dele, “outros economistas, Petty, Boisguillebert,
os italianos”, reconheceram a conexão entre divisão do trabalho e produção do
valor de troca, mas não perceberam o aspecto especificamente histórico nessa
forma de reprodução*. Isso se evidencia no fato de não diferenciarem com
exatidão as diversas formas da divisão do trabalho umas das outras e, especial­
mente na análise da forma burguesa, fazerem valer um ponto de vista de natu­
reza totalmente estranha. Em O capital, Marx escreve assim: “A economia
política, que só surge como ciência própria no período da manufatura, consi­
dera a divisão social do trabalho do ponto de vista exclusivo da divisão manu-

* Essa citação provém, mais exatamente, do Urtext, p. 909. (N. do T.)

149
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

fatureira do trabalho, isto é, como meio de produzir mais mercadorias com a


mesma quantidade de trabalho” (23/386 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 439]). A
especificidade da forma burguesa cai por terra:

A divisão do trabalho de que estamos tratando aqui é a divisão livre e natural-espon-


tânea dentro da totalidade da sociedade, que se manifesta como produção de valores de
troca, não a divisão do trabalho no interior de um a fábrica (não é sua análise e combi­
nação num único ramo da produção, mas, muito antes, a divisão social desses próprios
ramos de produção que surge como que sem a colaboração dos indivíduos). A divisão
do trabalho dentro da sociedade corresponderia ao princípio da divisão do trabalho
dentro de uma fábrica no sistema egípcio, mais do que no sistema moderno. A desagre­
gação do trabalho social em trabalhos livres, independentes uns dos outros e vinculados
numa totalidade e unidade apenas por necessidade intrínseca (não como ocorria com
aquela divisão, mediante análise e combinação consciente do analisado) [e a divisão
antiga] são coisas totalmente diferentes. (U/910)

A esse mal-entendido sobre a forma de existência especificamente histórica


do trabalho social global corresponde a não percepção do valor como uma es­
pécie de síntese transcendental, como um princípio que de modo inconsciente
promove a unidade no plano do trabalho social. Com o auxílio de dois exemplos
citados por Marx em O capital, é possível demonstrar que função o valor tem
de assumir numa sociedade que, em sua estrutura de produção, aponta para
uma unidade autoconsciente, mas não a possui.
No primeiro exemplo, Marx parodia as robinsonadas da teoria burguesa, ao
demonstrar, com o auxílio da atividade racional de Robinson, o princípio regu­
lador que se torna real, no sistema do trabalho social inconscientemente decom­
posto, mediante a forma do sujeito que age de modo racional finalista, buscando
apenas os seus interesses privados. “Apesar de seu caráter modesto”, Robinson
“tem diferentes necessidades a satisfazer e, por isso, tem de realizar trabalhos
úteis de diferentes tipos [...]. Apesar da variedade de suas funções produtivas,
ele tem consciência de que elas são apenas diferentes formas de atividade do
mesmo Robinson e, portanto, apenas diferentes formas de trabalho humano”
(23/90-1 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 151]). Acresce-se a isso a necessidade
que o obriga a administrar o seu tempo e distribuí-lo pelas diferentes atividades
do modo exigido para a consecução de determinados efeitos úteis.

A experiência lhe ensina isso, e eis que nosso Robinson, que entre os destroços do
navio salvou relógio, livro com ercial, tinta e pena, põe-se logo, como bom inglês, a

150
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

fazer a contabilidade de si mesmo. Seu inventário contém uma relação dos objetos de
uso que ele possui, das diversas operações requeridas para sua produção e, por fim, do
tempo de trabalho que lhe custa, em média, a obtenção de determinadas quantidades
desses diferentes produtos. (23/91 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 151-2])

Marx acrescenta que todas as relações entre Robinson e as coisas são sim­
ples e transparentes, “e, no entanto, nelas já estão contidas todas as determi­
nações essenciais do valor” (23/91 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 152]).
O outro exemplo é significativo por mostrar como a representação de uma
sociedade que chegou à maioridade ingressa na elaboração conceituai da es­
trutura capitalista. Isso não deve ser entendido (prevenindo um eventual mal-
-entendido) no sentido de que ele analisa o capitalismo do mesmo ponto de
vista com que deve ser concebida a organização racional de uma sociedade.
Isso seria uma interpretação tecnicista reduzida, que não só sonega o aspecto
específico da determinidade histórica da forma que está no centro aqui, mas
ainda seria, ela própria, momento de um modo de proceder atingido pela crí­
tica marxiana. Como se sabe, Marx em lugar nenhum chegou a analisar como
funciona uma economia planificada; uma atitude reservada, na qual se reflete
todo o caráter de sua teoria, que é tão somente teoria de uma sociedade, na qual
certos princípios passam a vigorar pelas costas e através das mentes das pessoas.
Contudo, onde o conteúdo do valor, ou então a grandeza de valor, é conscien­
temente elevado à condição de princípio da economia, a teoria marxiana perdeu
o seu objeto, que, enquanto objeto histórico, só pode ser compreendido e ex­
posto quando aquele conteúdo puder ser apreendido e, por essa razão, descri­
to de modo dissociado de sua forma histórica de manifestação. É só isso que
se tem em mente quando se fala, nesse ponto, que a sociedade futura antecipa­
da ingressa na compenetração teórica da presente sociedade, e nisso se repete
tão somente aquilo de que, na análise dos Manuscritos económico-filosóficos,
tomamos conhecimento como descrição fragmentária de um comportamento
não estranhado do ser humano para com a natureza, a qual necessariamente
anda de mãos dadas com a exposição da forma da distorção absoluta. Nesse
sentido, Marx diz:

Substituamos Robinson por uma associação de homens livres, que trabalham com
meios de produção coletivos e que conscientemente despendem suas forças de trabalho
individuais como uma única força social de trabalho. Todas as determinações do traba­
lho de Robinson reaparecem aqui. mas agora social, e não individualmente. (23/92 [ed.
bras. O capital, vol. I, p. 153 modif.])

151
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A D O C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

Esse caso só aparenta ser mais complexo que o de Robinson porque o pro­
duto é social e precisa ser repartido entre os membros da sociedade. Contudo,
para desenvolver também aqui as determinações essenciais do valor, ele assu­
me (como também fez mais tarde, na Crítica do programa de Gotha*, ao de­
linear o primeiro estágio da nova sociedade, que ainda traz as marcas de nas­
cença da antiga sociedade [ed. bras., p. 29]) que a parcela de cada produtor nos
meios de vida seria determinada pelo seu tempo de trabalho. Nesse caso, o
tempo de trabalho desempenharia um papel duplo:

Sua distribuição socialmente planejada regula a correta proporção das diversas fun­
ções de trabalho de acordo com as diferentes necessidades. Por outro lado, o tempo de
trabalho serve simultaneamente de medida da cota individual dos produtores no trabalho
comum e, desse modo, também na parte a ser individualmente consumida do produto
coletivo. (23/93 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 153])

Aqui também estão contidos os aspectos decisivos do conceito de valor, e


ainda assim as relações entre pessoas e coisas são simples e transparentes, “tan­
to na produção quanto na distribuição” (23/93 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 153]).
Os dois exemplos têm em comum o aspecto de o trabalho ser descrito como
força de trabalho de um sujeito consciente de si, que o reparte planejadamen-
te — sobre a base numa correlação conscientemente concebida entre necessi­
dades, objetos para a satisfação dessas necessidades e tempo necessário de
trabalho para a confecção desses objetos — pelos diversos ramos de produção1.
Em princípio, trata-se do mesmo problema no caso da sociedade burguesa, só
que ele tem de ser resolvido de outra forma. Isso é dito claramente por Marx
na carta a Kugelmann de 11 de julho de 1868:

O infeliz [autor de uma resenha de O capital. H. R.] não vê que, se não houvesse no
meu livro nenhum capítulo sobre o valor, a análise feita por mim das relações reais
conteria a prova e a demonstração da relação real do valor. A conversa fiada sobre a
necessidade de provar o conceito de valor deve-se meramente à ignorância mais com­
pleta tanto sobre o assunto de que se trata como sobre o método da ciência. Toda criança
sabe que parar o trabalho por não quero dizer um ano, mas algumas semanas significa­
ria a morte de qualquer nação. Do mesmo modo, ela sabe que as massas de produtos que
correspondem às diferentes necessidades requerem m assas diferentes e quantitati-

* Ed. bras.: Crítica do programa de Gotha. Trad. Rubens Enderle. São Paulo, Boitempo, 2012.
(N. do T.)

152
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

vãmente bem determinadas de trabalho social total. É evidente por si mesmo que essa
necessidade da repartição do trabalho social em proporções bem determinadas de modo
algum é abolida pela form a determinada da produção social, mas que pode modificar
tão somente o seu modo de manifestação. Não há m aneira de abolir leis da natureza. O
que pode se modificar em condições historicamente diferentes é apenas a form a com
que essas leis se impõem. E a forma com que essa repartição proporcional do trabalho
social se impõe numa condição social na qual o contexto trabalho social se afirma como
troca privada de produtos individuais do trabalho é exatamente o valor de troca desses
produtos. (32/552)

Com isso chegamos à segunda pergunta há pouco formulada: o que signi­


ficam autoesfacelam ento e autocontradizer-se do fundam ento m undano no
plano da economia política? A ciência burguesa igualmente constata que, na
forma burguesa do trabalho social, trata-se de uma totalidade baseada na divi­
são do trabalho; contudo, o que não se constata conscientemente é que essa
unidade social, essa totalidade social só está dada em si, só existe materialmen­
te na medida em que os produtores individuais “são membros de uma divisão
do trabalho de cunho social, natural-espontáneo, e, por conseguinte, por meio
dos seus produtos satisfazem os diferentes tipos de necessidades, cujo conjunto
compõe o sistema igualmente natural-espontáneo das necessidades sociais”
(II.5/634-5). Em si os múltiplos objetos são produtos do trabalho social global
que se decompõe numa totalidade de ramos específicos de trabalho. Porém — e
isso é essencial — , eles não aparecem como tais. De modo imediato os produ­
tos são meramente coisas concretas de uso, produtos do trabalho individual,
que não aparentam ser parte de uma unidade; que uma parte do trabalho social
global foi despendida para sua confecção. Mas caso se pretenda repartir o
tempo de trabalho que está à disposição da sociedade global pelos diferentes
ramos de produção, tendo como parâmetro determinadas estruturas de neces­
sidade, isso só será possível se os diferentes produtos se manifestarem como
expressões quantitativam ente diferentes da m esma unidade. Essa é a ideia-
-chave da teoria marxiana do valor e do dinheiro.
O fato de os produtos concretamente sensíveis necessariamente se m ani­
festarem como momentos do trabalho social global não significa, para Marx, que
a forma pela qual os produtores têm consciência de sua própria parcela no
trabalho social global também os torne simultaneamente conscientes de que o
seu trabalho constitui uma parte desse trabalho global. Isso contradiria toda a
concepção fundamental do m aterialismo histórico. Quando aqui se apontou
reiteradamente para o fato de que a formulação da teoria do valor deve ser en-

153
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

tendida como ponto de partida da reconstituição teórica do movimento que —


enquanto decifração m aterialista daquilo que a filosofia burguesa da história
só é capaz de explicitar como “astucia da razão” sob claves idealistas — se
efetua pelas costas das pessoas e simultaneamente através de suas mentes; e
quando anteriormente se enfatizou que, segundo Marx, a falha fundamental da
teoria burguesa do valor do trabalho consistiu justam ente na mediação insufi­
ciente entre tempo de trabalho e grandeza de valor, então é obvio que a forma
possui caráter universal e objetivo, sendo necessariamente irrelevantes as con­
cepções subjetivas com que as pessoas acompanham essas operações, igual­
mente efetuadas conscientemente, a que se deve essa forma:

Sua “mind” [mente], sua consciência [a dos produtores, H. R.] pode não saber ab­
solutamente — para ele pode não existir — o que in fa c t [de fato] determina o valor de
suas mercadorias ou seus produtos como valores. Estão engrenados em relações que
determinam a sua mind [mente] sem precisarem eles saber disso. Cada um pode usar o
dinheiro como dinheiro sem saber o que é o dinheiro. As categorias econômicas se re­
fletem na consciência de maneira bastante distorcida. (26.3/163 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. III, p. 1.217 modif.])

O mesmo estado de coisas pode ser exposto a partir de outro lado. Pode
ocorrer que a formulação do problema delineada há pouco seja tida como de­
masiadamente complexa diante do fato concreto e prático de que a interco-
nexão social materialmente existente dos trabalhos privados realizados inde­
pendentemente uns dos outros é mediada pela troca dos produtos; a isso Marx
contrapõe que essa objeção se baseia na mesma inconsciência categorial com
que também outras categorias são introduzidas nessa ciência sem legitimação
interior. A troca de fato ocorre, mas uma análise mais precisa do processo de
troca mostra que produtos concretos, valores de uso — entendidos em termos
categoriais — nem sequer podem ser trocados. Marx elogia Aristóteles por ter
visto esse problema. Marx cita: “A troca [...] não pode se dar sem a igualdade,
mas a igualdade não pode se dar sem a comensurabilidade” . Contudo, Aristó­
teles vê simultaneamente que essa igualdade nada tem a ver com a verdadeira
natureza dessas coisas diferentes: “ [...] é na verdade impossível que coisas tão
distintas sejam comensuráveis” e essa equiparação é, para ele, apenas um “ar­
tifício para a necessidade prática”. Marx atribui à estrutura da sociedade o fato
de Aristóteles não ter podido identificar os fatos reais: “O gênio de Aristóteles
brilha precisam ente em sua descoberta de uma relação de igualdade na ex­
pressão de valor das mercadorias. Foi apenas a limitação histórica da sociedade

154
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

em que ele vivia que o impediu de descobrir em que ‘na verdade’ consiste essa
relação de igualdade” (23/73-4 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 136]). É digno
de nota que o jovem Marx, por ocasião da análise da base, à qual foi levado
pela discussão com o direito estatal hegeliano e a crítica feuerbachiana da re­
ligião, descreveu essa estrutura de modo semelhante a Aristóteles, igualmente
sem conseguir dizer exatamente o que é o valor. Assim que produtos são tro­
cados aparece

[...] a propriedade privada como representante de uma propriedade privada de outra


natureza, como o idêntico de outro produto da natureza e os dois lados se relacionam
um com o outro de tal maneira que cada um deles representa a existencia do seu outro
e ambos se relacionam reciprocamente um com o outro como substitutos de si mesmos
e do seu outro. A existência da propriedade privada como tal converteu-se, por conse­
guinte, em reposição, em equivalente. Em vez de ser unidade imediata consigo mesma,
ela só é mais referência a outra coisa. Sendo um equivalente, a sua existência não é mais
aquela que lhe é peculiar. Consequentemente ela se converteu em valor e, de modo
imediato, em valor de troca. A sua existência enquanto valor é uma existência distinta
da sua existência imediata, exterior à sua essência específica, uma determinação exte­
riorizada de si mesma', uma existência apenas relativa da essência específica. (40/453
[excertos de James Mill])

Portanto, já bem cedo Marx vê que produtos concretos não podem ser sim­
plesmente trocados, mas que na troca necessariamente se imiscui uma distor­
ção. Em princípio, trocam-se sempre só iguais, sendo que os objetos concretos
são reciprocamente rebaixados a “invólucro sensível, forma oculta” do outro
objeto, tornando-se ambos, portanto, representantes de um terceiro diferente
deles. Essencial nesse contexto é que Marx, ainda antes de ter se apropriado
completamente da teoria do valor do trabalho, discerniu esse ato de equipara­
ção dos produtos como um procedimento que é efetuado sem que os envolvidos
tenham a correspondente consciência disso. Ao trocarem os produtos, as pes­
soas fazem ao mesmo tempo outra coisa diferente daquela que efetuam com
consciência ou então o que eles fazem realmente se sedimenta de outra forma
em sua consciência.
Sintetizemos mais uma vez sucintamente a problemática fundamental da
teoria marxiana do valor. Os indivíduos estão integrados num sistema de de­
pendência universal, num “sistema de necessidades”, por dependerem, em sua
produção concretamente sensível, da produção de todos os demais. O conteúdo
dos seus trabalhos revela o caráter social da sua atividade, que desde sempre

155
SO B R E A EST RU T U RA L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K A R L M A R X

já é produção social, mas não — e este é o ponto decisivo — conscientemente


comunitária. O fato de os indivíduos produzirem de modo social, mas ao mes­
mo tempo como indivíduos independentes uns dos outros só é possível quando
o caráter comunitário da produção igualmente se manifesta, mesmo que isso
ocorra numa configuração que corresponde, em sua forma bem determinada,
à forma estranhada da produção social. Encontramo-nos aqui, por assim dizer,
no centro nervoso da estrutura que, como vimos, é objeto de toda a obra inicial
de Marx: o sistema comunitário humano aparece sob a forma do estranhamento
porque, na forma distorcida da apropriação da natureza, a própria vida huma­
na genérica se converte em meio da vida individual. Essa conexão entre a obra
inicial e a obra tardia fica evidente em especial no Rascunho. Os produtores

[...] só existem uns para os outros objetivamente, o que na relação monetária, na qual o
seu próprio sistema comunitário aparece a todos como uma coisa exterior e, por isso,
contingente, apenas continua a ser desenvolvido. A conexão social que surge do embate
dos indivíduos independentes aparece simultaneamente como necessidade objetiva e,
ao mesmo tempo, como um vínculo exterior diante deles; esse fato representa precisa­
mente a sua independência, para a qual a existência social, sendo necessidade, constitui
apenas meio, aparecendo, portanto, aos próprios indivíduos como algo exterior e, no
dinheiro, até mesmo como uma coisa tangível. Eles produzem na e para a sociedade,
produzem como [indivíduos] sociais, mas ao mesmo tempo isso aparece como simples
meio de objetivar a sua individualidade. Visto que eles não estão subsumidos num sis­
tema comunitário natural-espontâneo, nem em contrapartida subsumem o sistema comu­
nitário em si mesmos como [indivíduos] conscientemente comunitários, este deve existir
diante deles, enquanto sujeitos independentes, como uma coisa igualmente independen­
te, exterior, contingente. Esta é justamente a condição para que eles, enquanto pessoas
privadas independentes, encontrem-se ao mesmo tempo numa conexão social. (U/909)

A. A s c a te g o r ia s da c ir c u la ç ã o s im p le s

Mesmo tendo plena consciência da tarefa a ser cumprida, a reconstituição teó­


rica da gênese da forma-dinheiro a partir da estrutura do trabalho privado — a
execução do programa da quarta tese contra Feuerbach no plano da economia
política — não foi um problem a fácil de resolver; disso dão testem unho as
diversas versões do início da formulação global. Não obstante, é possível re­
produzir com poucas frases a estrutura básica comum a todas as versões. Antes
de passarmos a isso, contudo, é preciso apontar sucintamente para a conexão

156
A E X P O SIÇ Ã O CATEG O RIÁL

entre o primeiro capítulo de Para a crítica ou então entre os dois primeiros


capítulos de O capital e os capítulos seguintes. A prim eira parte do primeiro
capítulo de Para a crítica caracteriza-se pelo fato de Marx analisar a merca-
doria primeiro do ponto de vista do valor de uso e, em seguida, do ponto de
vista do valor ou então de sua forma de manifestação. Na segunda parte desse
capítulo, ele passa a apresentar a mercadoria como unidade de valor de uso e
valor de troca. Essa estrutura corresponde em O capital ao primeiro e ao se­
gundo capítulo respectivam ente. No final do prim eiro capítulo da prim eira
edição de O capital consta isto:

A mercadoria é u n id a d e im e d ia ta d e v a lo r d e uso e v a lo r de troca, portanto de dois


opostos. Por conseguinte, ela é uma c o n tra d iç ã o imediata. Essa contradição necessaria­
mente ficará explícita no momento em que ela não for considerada, como até agora,
analiticamente ora do ponto de vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de
troca, mas quando, na condição de totalidade, realmente for posta em relação com outras
mercadorias. A relação real das mercadorias entre si é o seu p ro c e sso de troca. (II.5/51)

Essa subdivisão de m odo algum é casual. Quando M arx lança contra a


economia burguesa a crítica de que esta deixou de derivar a forma-dinheiro da
estrutura do trabalho privado, ele quer dizer concretamente que ela se encontra
impotente diante da forma-preço, da form a do meio de circulação, do dinhei­
ro na. form a do meio de pagamento etc. e é forçada a assumi-la exteriormente.
De acordo com isso, derivação da forma-dinheiro só pode significar que essas
determinidades formais específicas ou o dinheiro em suas diferentes funções
deverão ser explicitadas como formas mediadoras do metabolismo social. A
prim eira dessas formas é a form a-preço, ou seja, o fato de que um produto
de modo geral tem um preço. A expressão: “o quarter de trigo custa £2” é a
forma-preço de um produto, mais precisamente na figura desenvolvida da de­
nominação monetária. É nessa denominação monetária que as mercadorias
aparecem pela prim eira vez dentro da esfera de circulação como expressão
material da mesma substância social, exibindo uma diferença apenas quanti­
tativa perante outras mercadorias; na denominação monetária, as mercadorias
aparecem umas para as outras como valores de troca. Somente depois que as
mercadorias assumiram a forma-preço pode efetuar-se o metabolismo social.
A mediação desse m etabolism o é feita pelo dinheiro na função bem deter­
minada de meio de circulação, quando a mercadoria é trocada por uma forma
de valor exterior a ela própria com a qual é posta em relação por sua forma-
-preço — entretanto, apenas é trocada para voltar a despir-se de imediato des­

157
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E IT O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

sa forma. A substância do dinheiro nessa função consiste em que ele continua­


mente aparece como algo que está desaparecendo. Ao desenvolvimento dessa
primeira e dessa segunda determinações do dinheiro segue a terceira determi­
nação como unidade das duas primeiras determinações: dinheiro na função de
não meio de circulação, moeda suspensa e entesouramento, dinheiro como
meio de pagamento e, por fim, na sua função de dinheiro mundial. Do desdobra­
mento da terceira determinação resulta a passagem para o capital. A estrutura
do primeiro capítulo de Para a crítica ou então dos primeiros dois de O capi­
tal corresponde à inter-relação entre as duas primeiras funções do dinheiro e
suas posições dentro do metabolismo social. O exame analítico da mercadoria
corresponde ao desenvolvimento da forma-preço, que, em seguida, no capítu­
lo do dinheiro, é descrita como “uma espécie de processo teórico preparatório
da circulação real”, como desenvolvimento da forma em que as mercadorias,
antes de poderem efetivamente circular, “aparecem idealmente umas às outras
como valores de troca, como quantidades determinadas de tempo de trabalho
geral objetivado” (13/49 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,
p. 94 modif.]). A exposição da m ercadoria como unidade de valor de uso e
valor de troca corresponde à segunda função do dinheiro, à efetiva duplicação
da mercadoria em mercadoria e dinheiro em contraposição à primeira função
do dinheiro, à duplicação apenas ideal. A nossa tarefa é, num primeiro m o­
mento, reconstituir essas duas linhas de pensamento, a exposição da duplicação
ideal e da duplicação efetiva da mercadoria.

1. D up li c a ç ã o ideal

Se a teoria m arxiana do valor for discutida no horizonte dos problemas


delineados na última seção, tomam-se compreensíveis muitas das formulações
aparentemente paradoxais em O capital. Marx critica Benjamín Franklin por
não fazer jus à natureza do procedimento de abstração que é realmente efetua­
do durante o processo de troca.

Franklin não tem consciência de que, ao estim ar o valor de todas as coisas “em
trabalho”, ele abstrai da natureza diferente dos trabalhos trocados — e os reduz, assim,
a trabalho humano igual. No entanto, o que ele não sabe, ele diz. Ele fala, primeiramen­
te, de “um trabalho”, então, “do outro trabalho” e, por fim, do “trabalho” sem ulterior
caracterização como substância do valor de todas as coisas. (23/65 [ed. bras. O capital,
vol. I, p. 128, n. 17a modif.])

158
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Com indicações veladas a motivos da fenomenología hegeliana Marx quer


mostrar também nesse ponto como se repete, na autorreflexão insuficiente da
teoria burguesa, o momento natural-espontâneo desse processo que se torna
efetivo na realidade burguesa.

Eles relacionam seus diferentes trabalhos entre si como trabalho humano, ao rela­
cionarem os seus produtos entre si como valores. A relação pessoal é encoberta pela
forma material. Pois não está escrito na testa do valor o que ele é*. Para relacionarem
os seus produtos entre si como mercadorias, as pessoas são obrigadas a equiparar seus
diversos trabalhos ao trabalho abstratamente humano. Elas não sabem disso, mas o fazem,
ao reduzirem a coisa material à abstração “valor". Trata-se de uma operação natural-es-
pontânea e, por isso, inconscientemente instintiva do seu cérebro, que brota necessaria­
mente do modo específico de sua produção material e das relações nas quais essa pro­
dução os coloca. (II.5/46)

Em distinção a Benjamín Franklin, Marx quer mostrar que, em seus próprios


empreendimentos científicos, trata-se de uma reconstituição do processo real
de redução e que as suas determinações devem coincidir com o que, no pro­
cesso de troca, aparece na forma do valor de troca:

Essa redução se apresenta como abstração; mas é uma abstração que ocorre todos
os dias no processo de produção social. A dissolução de todas as mercadorias em tempo
de trabalho não supõe uma abstração maior, como tampouco é menos real que a disso­
lução de todos os corpos orgânicos em ar. (13/18 [ed. bras. Contribuição à crítica da
economia política, pp. 55-6])

Por conseguinte, ao tentar apreender aquilo que aparece, e ademais dissociado


da forma em que aparece, Marx precisa refugiar-se em formulações peculiares.
Marx soluciona o problema de uma apreensão por assim dizer positiva dessa
coisa-em-si com o auxílio de uma linguagem metafórica estranhada. Ainda que
os conceitos do mundo procedam de uma objetalidade sensível e sólida, seria
um erro querer representar algo com base nesses fatos. Eles podem ser pura e
simplesmente pensados, mas não mais representados. Na condição de merca­
dorias, todos os produtos têm a mesma

* Cf. Apocalipse de João 14,1 e 9. (N. do T.)

159
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E IT O D E CA P IT A L E M K A R L M A R X

[...] objetividade fantasmagórica, uma simples geleia [Gallerte] de trabalho humano


indiferenciado, ¡.e., de dispêndio de força de trabalho humana, sem consideração pela
forma de seu dispêndio. Essas coisas representam apenas o fato de que em sua produção
foi despendida força de trabalho humana, foi acumulado trabalho humano. Como cristais
dessa substância social que lhes é comum, elas são valores — valores de mercadorias.
(23/52 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 116])

“Como materialização de trabalho social, todas as mercadorias são crista­


lizações da mesma unidade” (13/16 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco­
nomia política, p. 53]). As duas determinações essenciais estão contidas aí.
Trabalho humano sem consideração da forma do seu dispêndio, indiferente à
m atéria específica do valor de uso, só pode ser “trabalho homogêneo, não di­
ferenciado”, “isto é, trabalho no qual desaparece a individualidade dos traba­
lhadores. O trabalho que cria valor de troca é, pois, trabalho geral-abstrato”
(13/17 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 54]). E no
tocante ao tempo de trabalho como medida da grandeza de valor:

Posto que são valores de troca de distinta magnitude, representam um mais ou um


menos, quantidades maiores ou menores daquele trabalho simples, uniforme, geral-abs­
trato que constitui a substância do valor de troca. A questão é saber como se podem
medir essas quantidades. Ou melhor, trata-se de saber qual o modo de existência quan­
titativa desse mesmo trabalho, visto que as diferenças de magnitude das mercadorias
como valores de troca não são mais que as diferenças de magnitude do trabalho nelas
objetivado. Da mesma maneira que o tempo é a existência quantitativa do movimento,
o tempo de trabalho é a existência quantitativa do trabalho. Conhecida sua qualidade, a
única diferença de que o trabalho se torna suscetível é a diferença de sua própria duração.
Como tempo de trabalho, tem seu padrão nas medidas naturais de tempo: hora, dia,
semana etc. O tempo de trabalho é a existência vital do trabalho, indiferente a sua forma,
seu conteúdo, sua individualidade; é sua existência viva quantitativa, ao mesmo tempo
em que é sua medida imanente. O tempo de trabalho objetivado nos valores de uso das
mercadorias é não somente a substância que faz delas valores de troca e, por conseguin­
te, mercadorias, mas é também a magnitude do seu valor determinado. As quantidades
correlativas dos diferentes valores de uso, nos quais se objetiva idêntico tempo de tra­
balho, são equivalentes, ou, dito de outro modo: todos os valores de uso são equivalen­
tes nas proporções em que contêm o mesmo tempo de trabalho já trabalhado, objetivado.
Consideradas como valores de troca, todas as mercadorias não são mais que medidas
determinadas de tempo de trabalho cristalizado. (13/17-8 [ed. bras. Contribuição à
crítica da economia política, pp. 54-5 modif.])

160
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Interessante nesse contexto é a reação de Marx à crítica da forma de intro­


dução do conceito de valor. Na carta a Kugelmann anteriormente citada, ele
elogia o resenhador de O capital por ter apontado para o fato de que a partir
dessas determinações centrais é possível desenvolver o sistema inteiro de Marx.
Portanto, ao aceitar esse conceito de valor, é preciso reconhecer também todas
as demais exposições. Marx escreve: “No que se refere ao Zentralblatt [Jornal
“Folha Central”], o homem faz a maior concessão possível ao admitir que, se
concebermos alguma coisa por valor, será preciso aceitar as minhas conclusões”
(32/552). Ao mesmo tempo, o modo como ele descarta as objeções quanto à
forma da introdução do conceito de valor faz com que não pareça injustificada
a pergunta se Marx não teria se sentido como que “flagrado”. Em nossa tenta­
tiva de reconstituição da exposição categorial, não há como decidir se as ob­
jeções quanto à forma de dar início a ela são justificadas, se reside aí um mo­
mento de violência ou se a formulação do sistema se tornou autônoma diante
dos problemas materiais. Não há como deixar de perceber o caráter ilustrativo
e a forma da asseveração no primeiro capítulo. No entanto, nesse contexto,
seria preciso examinar se um método que se caracteriza pela relação essencial
entre exposição e assunto exposto pode ser “inaugurado” de algum a outra
maneira; se esse momento do pôr abstrato não corresponde à decisão hegeliana
de desde sempre já filosofar sob premissas da filosofia da identidade. O con­
ceito marxiano de valor, em todo caso, constitui o pressuposto de uma forma
de exposição das categorias da economia política que pela primeira vez tenta
superar um procedim ento que assume exteriorm ente [suas categorias] e —
analogamente ao projeto de Hegel, que este formula em controvérsia com a
filosofia transcendental — informar sobre a determinidade das categorias umas
em relação às outras e sobre sua inter-relação.
Depois de introduzir esse conceito de valor, Marx passa para a forma de
manifestação do valor. O program a implicado nesse passo é formulado por
Marx na prim eira edição de O capital: “Porém, é de importância decisiva [...]
descobrir a conexão intrínseca entre form a do valor, substância do valor e
grandeza do valor, isto é, expresso em termos ideais, demonstrar que a form a
do valor se origina do conceito de valor” (II.5/43). Com outras palavras: como
coisas de uso concretas os produtos sempre são só objetos relacionados com
necessidades humanas, não im porta se com as do produtor ou se com as de
outras pessoas. Contudo, nessa forma, eles jam ais são tidos como expressões
da mesma unidade que constituem enquanto valores. Por conseguinte, para que
apareçam como valores, eles precisam assumir uma forma, na qual “são tidos
como expressões [...] de sua substância social, expressões apenas quantitati-

161
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

vãmente diferentes entre si, mas qualitativamente iguais e, por isso, substituí­
veis e permutáveis entre si” (II.5/38). Por isso, acompanhemos como Marx
chega a essa forma; que resposta ele dá à pergunta: como os valores podem
aparecer enquanto valores?
Nesse contexto, torna-se relevante um a formulação mais precisa de um
motivo central dos escritos iniciais de Marx. Quando ele diz ali que, de ambos
os lados, a propriedade privada aparece como representante de uma proprie­
dade privada de outra natureza, como o idêntico de outro produto da natureza,
e que a existência da propriedade privada se converteu em reposição, em equi­
valente, ele antecipa a forma em que isso acontece ainda antes de ter determi­
nado o trabalho humano abstrato como substância do valor, ainda antes de ter
reconhecido que os produtos têm de aparecer como expressões permutáveis da
mesma unidade. O produto sensível converte-se em forma de manifestação do
outro objeto, na medida em que este igualmente é apenas “substituto” de si
mesmo e do outro objeto, ou seja, de um terceiro objeto comum — estranho à
sua natureza im ediatam ente sensível. Por isso, se os participantes da troca
acreditam que a sua operação constitui a troca de coisas naturais em determi­
nadas proporções, trata-se de pura aparência. Quando os produtores “trocam”
uns pelos outros seus produtos, confeccionados para outros por meio de tra­
balho privado, eles não podem fazer isso sem relacionar os seus produtos
entre si como valores, como expressões equivalentes da mesma substância.
Quando eles “trocam” os seus valores de uso,

[...] reside nisso [...] que seus diferentes trabalhos valem apenas como trabalho humano
de natureza igual num invólucro reificado. [...] Para relacionarem os seus produtos entre
si como mercadorias, as pessoas são obrigadas a equiparar seus diversos trabalhos ao
trabalho abstratamente humano. Elas não sabem disso, mas o fazem, ao reduzirem a
coisa material à abstração “valor”. (II.5/46)

Para Marx, esse ato de redução ou ato de equiparação objetiva não significa
senão que, no confronto de duas mercadorias, o valor de uso de uma das mer­
cadorias é tido como “igual em essência” ao da outra mercadoria. Atenhamo-
-nos ao exemplo que Marx elucida em O capital.

A base da expressão “20 braças de linho = casaco” é, de fato: linho = casaco, o que
em palavras significa apenas isto: o tipo de mercadoria “casaco” possui a mesma na­
tureza, a mesma substância que o tipo de mercadoria “linho ”, diferente dele. Geral­
mente não se percebe isso porque a atenção é atraída pela relação quantitativa, isto é,

162
A EXPOSIÇÃO CATEOORIAL

pela proporção determinada com que um dos tipos de mercadoria é equiparado ao outro.
O que se esquece é que as grandezas das coisas diferentes só se tornam quantitativa­
mente comparáveis depois de sua redução à mesma unidade. Somente como expressões
da mesma unidade elas são grandezas de denominação igual e, por isso, comensuráveis.
(II.5/629)

No interior desse ato de equiparação objetiva, que é empreendido sem a


consciência adequada dos agentes da troca, um dos valores de uso se converte,
em consequência disso, em materialidade imediata do trabalho abstratamente
humano, tornando-se valor em forma natural, forma de manifestação do valor
da outra mercadoria. Em O capital, Marx expressa isso assim :

Enquanto valor, o linho consiste somente em trabalho, formando uma geleia de


trabalho cristalizada transparente. Na realidade, porém, esse cristal é bastante opaco.
Na medida em que se descobre nele o trabalho, e não é todo corpo da mercadoria que
mostra a marca do trabalho, não se trata de trabalho humano indiferenciado, mas de
tecelagem, fiação etc., que, por sua vez, tampouco constituem uma só substância, mas,
muito antes, estão am algamadas com substâncias naturais. Para fixar “linho” como
expressão meramente reificada do trabalho humano é preciso abstrair de tudo que efe­
tivamente faz dele uma coisa. A objetalidade do trabalho humano que, por sua vez,
também é abstrata, sem outra qualidade ou conteúdo, necessariamente é objetalidade
abstrata, uma coisa da ideia. Assim o tecido de linho se torna uma quimera. Mas mer­
cadorias são coisas. Elas precisam ser materialmente o que são ou mostrar o que são
em suas próprias relações materiais. Na produção do linho, foi despendida uma certa
quantidade de trabalho humano. Seu valor é o reflexo meramente objetai do trabalho
despendido dessa maneira, mas ele não se reflete no seu corpo. Ele se revela, adquire
expressão sensível, mediante a sua relação de valor com o casaco. Ao equipará-lo a si
mesmo como valor, ao mesmo tempo que se diferencia dele como objeto de uso, o ca­
saco se converte na form a de m anifestação do valor do linho em contraposição ao
corpo do linho, na sua forma de valor em distinção à sua forma natural. (II.5/30)

Desse modo, o problema já está resolvido em princípio. A mercadoria ad­


quire mediante o ato de equiparação uma forma de valor distinta de sua forma
natural; uma outra m ercadoria é tida, em sua forma natural imediata, como
forma de manifestação de “geleia de trabalho humano indiferenciado”. O pro­
blema foi reduzido agora à mera pergunta se a forma de valor corresponde à
universalidade do conceito de valor, isto é, se é uma forma em que todas as mer­
cadorias se apresentam umas às outras como expressões reificadas da mesma
substância. Aqui isso ainda não é o caso. No confronto de duas mercadorias —

163
S O B R E A E S T R U T U R A LÓ G I C A DO C O N C E IT O D E CA P IT A L E M K A R L M A R X

na expressão simples do valor, como diz Marx — , a forma de valor ainda é


limitada; a mercadoria que se encontra na forma equivalente é forma equiva­
lente individual de outra m ercadoria que pode ter ao seu lado tantas outras
formas equivalentes quantas houver de mercadorias específicas. Nesse caso,
qualquer outra mercadoria se tornaria “espelho do valor do linho” — atendo-
-nos ao exemplo marxiano — e esse mesmo valor apareceria então verdadei­
ramente como “geleia de trabalho humano indiferenciado”.

Porque o trabalho que forma o valor do linho foi agora exposto expressamente como
trabalho que equivale a qualquer outro trabalho humano, não importando qual a forma
natural que este possui. Mediante a sua forma de valor [total ou desdobrada, H. R.], o
linho já se encontra, por conseguinte, na relação social não apenas com um só outro tipo
de mercadoria, mas com o mundo das mercadorias. (II.5/641)

Porém, como as diferentes formas naturais de cada uma dessas mercadorias


são apenas formas equivalentes específicas ao lado de outras, os muitos traba­
lhos sensíveis concretos são tidos como outras tantas formas de manifestação
específicas do trabalho humano. Só existem, portanto, formas equivalentes
específicas, cada uma das quais exclui a outra, cada uma sendo forma equiva­
lente limitada. Assim sendo, o valor de uma mercadoria possui forma total de
manifestação na totalidade de todas as formas de manifestação específica, mas
essa forma de manifestação não é uma forma unitária. Contudo, ao expressar
o seu valor na totalidade de todas as demais mercadorias, a própria mercadoria
se converte em forma de m anifestação do valor de todas essas mercadorias.
Desse modo, o problema está simultaneamente resolvido. Visto que todas as
mercadorias expressam o seu valor de modo simples (num só corpo da merca­
doria) e de modo unitário (no mesmo outro corpo da mercadoria), elas também
se apresentam umas para as outras como expressões específicas da mesma
substância. M ediante a sua igualdade com a form a natural de determ inada
m ercadoria, cada m ercadoria individual expressa o seu valor não só num a
forma unitária, diferente do seu valor de uso, mas simultaneamente também
como aquilo que ela possui em comum com todas as mercadorias. Somente
agora o valor adquire uma forma diferente de sua forma natural, cuja univer­
salidade corresponde à do conceito de valor. As mercadorias são todas quali­
tativamente equiparadas, todas são expressas como materialidade do mesmo
trabalho e também podem agora ser comparadas quantitativamente. Portanto,
para que o tempo de trabalho em geral se torne efetivo como lei reguladora da
produção, o próprio trabalho abstratamente humano tem de existir em forma

164
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

natural ao lado e independentemente de todas as mercadorias individuais; uma


forma natural específica, como, por exemplo, o ouro, tem de assumir a função
de “encarnação visível” de todo trabalho humano. Uma mercadoria específica
se converte no “conceito do valor de todas as coisas”, como diz Marx nos es­
critos iniciais; o próprio universal dos produtos específicos do trabalho ainda
existe numa forma específica. Na primeira edição de O capital, lê-se:

É como se, ao lado e independentemente de leões, tigres, lebres e todos os demais


animais reais, que agrupados formam os diferentes gêneros, espécies, subespécies, fa­
mílias etc. do reino animal, ainda existisse também o animal, a encarnação individual
do reino animal inteiro. Esse indivíduo, que abrange em si mesmo todas as espécies
realmente existentes da mesma coisa, é um universal, como animal, deus etc. (II.5/37)

2. D up li c a çã o real

Até aqui a mercadoria adquiriu, “primeiro na cabeça, uma dupla existência.


Essa duplicação ideal acontece (e tem de acontecer) de modo que a mercadoria
aparece duplicada na troca efetiva: de um lado, como produto natural, de outro,
como valor de troca. Em outras palavras, seu valor de troca adquire uma existên­
cia material dela separada” (42/79-80 [ed. bras. Grundrisse, p. 94]). Ao passo
que, no exame analítico da mercadoria, a contradição que levou à exposição
autônom a do trabalho abstratam ente humano era entre a universalidade do
valor e a forma insuficiente da sua manifestação, o que nos ocupará agora será
a contradição entre valor de uso e valor de troca. Como vimos anteriormente,
Marx conclui assim o primeiro capítulo da primeira edição de O capital·.

A mercadoria é unidade imediata de valor de uso e valor de troca, portanto, de dois


opostos. Por conseguinte, ela é uma contradição imediata. Essa contradição necessa­
riamente ficará explícita no momento em que ela não for considerada, como até agora,
analiticamente ora do ponto de vista do valor de uso, ora do ponto de vista do valor de
troca, mas quando, na condição de totalidade, realm ente for posta em relação com
outras mercadorias. A relação real das mercadorias entre si é o seu processo de troca.

Sabemos que os valores de uso só são mercadorias porque são os produtos


de trabalhos privados independentes uns dos outros, “trabalhos privados que,
contudo, dependem substancialmente uns dos outros enquanto membros espe­
cíficos, ainda que autonomizados, do sistema natural-espontâneo da divisão
do trabalho. Assim sendo, eles estão socialmente ligados justam ente pela sua

165
S O B R E /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

dissimilaridade, por sua utilidade específica. Justamente por isso eles produ­
zem valores de uso qualitativamente diferentes” (II.5/41). Assim a mercadoria
é valor de uso. Porém, simultaneamente ela, do mesmo modo, não é valor de
uso. Se ela fosse só valor de uso, ela não seria mercadoria. Para o produtor
imediato que a produz privadamente, ela é essencialmente não valor de uso.
Por isso, ela ainda tem de tornar-se valor de uso, e isso em dois sentidos: ela
se torna valor de uso só quando é aceita por outros produtores em sua pecu­
liaridade. Nesse caso, ela precisa se tornar valor de uso tam bém para o seu
próprio produtor, pois os seus meios de vida, os meios específicos, os valores
de uso relacionados com as suas próprias necessidades, existem nos valores de
uso das outras mercadorias.

Os valores de uso das mercadorias chegam a ser, portanto, tais porque mudam uni­
versalmente de posição, passando das mãos em que constituem meio de troca àquelas
em que são objeto de uso. Graças unicamente a essa alienação universal das mercadorias,
o trabalho que contêm converte-se em trabalho útil. (13/29 [ed. bras. Contribuição à
crítica da economia política, p. 69 modif.])

Quando se examina o valor de uso no processo de troca, evidencia-se que


nesse contexto só se fala de uma única determinidade formal: do produto em
sua existência formal como não valor de uso. De acordo com isso, o processo
de troca só pode ser interpretado como abolição dessa existência formal. Para
essa distinção, que de modo algum é isenta de problemas2, é preciso chamar a
atenção especialmente em nossos dias, em que se tende a derivar a teoria eco­
nôm ica da natureza do valor de uso e de seu proveito para o ser humano.
Embora tais teoremas já tivessem sido propostos antes e não tenham passado
despercebidos de Marx, ele apenas tratou marginalmente deles. De acordo com
a sua própria teoria, essas tentativas só podem ser interpretadas como expres­
são da impotência com que o sujeito burguês se defronta com o seu mundo. As
formas mesmas tampouco são derivadas, mas assumidas exteriormente. Dian­
te disso, Marx insiste em que o valor de uso só é tratado de fato na ciência da
economia política quando ele adquire determinidade formal de cunho econô­
mico em sua forma natural mesma. Quando isso ocorrerá se evidenciará no
desenvolvimento ulterior das categorias. Nesse ponto, em todo caso, fala-se da
mercadoria na medida em que, como mercadoria, ela é valor de uso e, portan­
to, simultaneamente é não valor de uso, devendo ingressar, por isso, no “pro­
cesso universal de alienação”, pelo qual ela primeiro se torna valor de uso.

166
A EXPOSIÇÃO CATEG0R1AL

Em contrapartida, sabemos que esse “processo universal de alienação” é o


processo de troca das mercadorias, no qual elas só são relacionadas entre si
como valores, como “cristalizações da mesma unidade”.

Nâo são permutáveis senão quando são equivalentes e não são equivalentes senão
quando representam quantidades iguais de tempo de trabalho objetivado, de tal manei­
ra que fica eliminada qualquer consideração das qualidades naturais que possuem os
valores de uso e, por conseguinte, da relação entre as mercadorias e as necessidades
específicas. (13/30 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 71 modif.])

Trocar significa, portanto, sim ultaneam ente realizar a m ercadoria como


valor, substituindo “uma quantidade qualquer de qualquer outra mercadoria,
sem que importe que seja ou não seja um valor de uso para o possuidor da
outra m ercadoria” (13/30 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia p olí­
tica, p. 71]). Porém, visto que a mercadoria é valor e valor de uso, ela só pode
se realizar como valor tornando-se valor de uso; em contrapartida, porém, ela
só pode se tornar valor de uso quando se realiza como valor. Uma coisa pres­
supõe a outra e a exclui na mesma medida.

A mesma relação deve ser, pois, a das mercadorias que constituem magnitudes de
igual essência e não diferem mais que quantitativamente; devem pôr-se em equação
como matéria de tempo de trabalho geral ao mesmo tempo em sua relação como objetos
qualitativamente distintos, como valores de uso específicos para necessidades também
específicas; em síntese: uma relação que os distinga como valores reais de uso. Porém,
esse modo de pô-las em equação e essa diferenciação se excluem reciprocam ente e
chega-se, assim, não somente a um círculo vicioso de problemas, no qual a solução de
um pressupõe a de outro, mas também a todo um conjunto de postulados contraditórios,
já que a realização de uma condição está diretamente ligada à realização de sua oposta.
(13/30 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 71 modif.])

Em O capital, essa última ideia é exposta de outra forma:

Cada possuidor de mercadorias só quer alienar sua mercadoria em troca de outra


mercadoria cujo valor de uso satisfaça à sua necessidade. Nessa medida, a troca é para
ele apenas um processo individual. Por outro lado, ele quer realizar sua mercadoria como
valor, portanto em qualquer outra mercadoria do mesmo valor que seja de seu agrado,
não importando se sua mercadoria tem ou não valor de uso para o possuidor da outra
mercadoria. Nessa medida, a troca é para ele um processo social geral. Mas não é pos-

167
S O B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

sível que, simultaneamente para todos os possuidores de mercadorias, o mesmo proces­


so seja exclusivamente individual e, ao mesmo tempo, exclusivamente social geral.
(23/101 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 160-1])

O processo de troca, prossegue Marx, deve ser tanto o desdobramento quan­


to a resolução dessas contradições. Na parte correspondente do capítulo do
dinheiro, ele formula essa ideia da seguinte maneira: “Vimos que o processo
de troca das mercadorias inclui relações contraditórias e mutuamente exclu-
dentes. O desenvolvimento da mercadoria não elimina essas contradições, po­
rém cria a forma em que elas podem se mover” (23/118 [ed. bras. O capital,
vol. I, p. 178]). A derivação anteriormente delineada da forma equivalente uni­
versal mostrou que, no confronto de duas mercadorias, a forma natural de uma
das mercadorias se torna a forma de manifestação do trabalho abstratamente
universal, mas que essa forma equivalente é limitada. A limitação da forma de
manifestação do valor das mercadorias não é superada em princípio nem quan­
do as mercadorias específicas em sua totalidade são vistas como formas equi­
valentes, embora só então “o trabalho que forma o valor do linho” tenha sido
“exposto expressamente como trabalho que equivale a qualquer outro trabalho
humano, não importando qual a forma natural que este possui”. A mercadoria
específica, cujo valor ganha expressão na totalidade das outras mercadorias,
seria, no entanto, forma equivalente universal tão somente para o possuidor
dessa mercadoria. Porém, visto que todo possuidor de mercadorias só é pos­
suidor de uma mercadoria específica, isso vale para cada um deles, e, em con­
sequência disso, as mercadorias não aparecem como mercadorias. É desse modo
que Marx descreve a situação da troca:

Observando a questão mais de perto, vemos que todo possuidor de mercadorias


considera toda m ercadoria alheia como equivalente particular de sua m ercadoria e,
por conseguinte, sua mercadoria como equivalente universal de todas as outras merca­
dorias. Mas como todos os possuidores de mercadorias fazem o mesmo, nenhuma mer­
cadoria é equivalente universal e, por isso, tampouco as mercadorias possuem qualquer
forma de valor relativa geral na qual possam se equiparar como valores e se comparar
umas com as outras como grandezas de valor. Elas não se confrontam, portanto, como
mercadorias, mas apenas como produtos ou valores de uso. (23/101 [ed. bras. O capital,
vol. I, p. 161])

Conhecemos o próxim o passo. Na m edida em que todas as mercadorias


expressam o tempo de trabalho nelas contido em uma mercadoria específica,

168
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

o valor dessa mercadoria específica se desdobra em todas as outras mercadorias


como equivalentes dela, o tempo de trabalho objetivado nela mesma se torna
de imediato o tempo de trabalho universal, que se apresenta uniformemente
em diferentes volumes das outras mercadorias. Por conseguinte, na mesma
proporção em que as diferentes mercadorias são iguais à mercadoria universal,
elas também são iguais entre si.

Em sua perplexidade, nossos possuidores de mercadorias pensam como Fausto. Era


no início a ação. Por isso, eles já agiram antes mesmo de terem pensado. As leis da
natureza das mercadorias atuam no instinto natural de seus possuidores, os quais só
podem relacionar suas mercadorias umas com as outras como valores e, desse modo,
como mercadorias na medida em que as relacionam antagonicamente com outra merca­
doria qualquer como equivalente universal. Esse é o resultado da análise da mercadoria.
Mas somente a ação social pode fazer de uma mercadoria determinada um equivalente
universal. A ação social de todas as outras mercadorias exclui uma mercadoria determi­
nada, na qual todas elas expressam universalmente seu valor. Assim, a forma natural
dessa mercadoria se converte em forma de equivalente socialmente válida. Ser equiva­
lente universal torna-se, por meio do processo social, a função especificamente social
da mercadoria excluída. E assim ela se torna — dinheiro. (23/101 [ed. bras. O capital,
vol. I, p. 161])

Ora, como se resolve a contradição anteriormente delineada: a mercadoria


só se realiza como valor de uso quando se realiza como valor de troca — ela só
se realiza como valor de troca quando se afirma como valor de uso? Como se
resolve a contradição entre o mesmo processo como relação entre as mercado­
rias enquanto iguais que se diferenciam apenas em termos quantitativos e si­
multaneamente como relação entre as mercadorias enquanto coisas qualitati­
vam ente diferentes, enquanto valores de uso específicos para necessidades
específicas? Quando se examina mais de perto esse processo de exclusão ob­
jetiva, evidencia-se que, com a existência da forma equivalente universal, sur­
giu uma forma na qual essa contradição pode ser como que decomposta e, por
essa via, levada a uma resolução. Dizer que todas as mercadorias, mediante o
ato da equiparação, expressam o seu valor na forma natural de uma mercadoria
específica e, por essa via, aparecem umas para as outras como valores é dizer,
ao mesmo tempo, que essa mercadoria excluída se encontra na forma da per­
mutabilidade imediata por todas as outras mercadorias, podendo, portanto, ser
trocada por todas as outras mercadorias.

169
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E IT O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

Enquanto agora todas as demais mercadorias representam seu valor de troca primei­
ramente como equação ideal, que fica por estabelecer, com a mercadoria exclusiva, o
valor de uso dessa mercadoria exclusiva, ainda que real, aparece no próprio processo
como puramente formal, não se realizando senão por sua transformação em valor de uso
real. (13/34 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, pp. 76-7])

O possuidor da forma natural específica que foi apartada para ser mercado­
ria universal troca a sua mercadoria por valores de uso reais que, nesse ato,
afirmam-se como valores de uso, tornam-se valores de uso ao passarem da mão
na qual são não valores de uso para a mão na qual são valores de uso. Porém,
a mercadoria ainda não se tornou valor de uso para o seu próprio possuidor. Os
seus meios de vida existem nos valores de uso das outras m ercadorias. Por
enquanto, a sua mercadoria ainda se encontra na forma universal, mediante a
qual ela se tornou permutável por todas as outras mercadorias. Só na troca por
um valor de uso real a sua mercadoria se realiza também como valor de troca.
Assim sendo, ocorre uma duplicação dupla:

Se as mercadorias duplicam assim sua existência para serem valores de troca umas
para as outras, a mercadoria excluída na qualidade de equivalente universal duplica o
seu valor de uso. Além do seu valor de uso específico como mercadoria específica que
é, adquire um valor de uso geral. Seu próprio valor de uso é uma determinidade formal,
isto é, nasce do papel específico que representa no processo de troca, em consequência
da ação universal que as demais mercadorias exercem sobre aquela. O valor de uso de
cada mercadoria, já que é objeto de uma necessidade específica, tem um valor distinto
nas diferentes mãos; é um valor distinto na mão de quem o aliena como na de quem o
adquire. A mercadoria, a título de equivalente geral, é agora objeto de uma necessidade
geral ocasionada pelo próprio processo de troca, e possui para cada um o mesmo valor
de uso, que é o de ser portador do valor de troca, meio de troca universal. Assim fica
resolvida numa só mercadoria a contradição encerrada na mercadoria como tal: ser, sob
a forma de valor de uso específico, ao mesmo tempo, equivalente geral e, em consequên­
cia, valor de uso para cada um, valor de uso geral. (13/33-4 [ed. bras. Contribuição à
crítica da economia política, p. 76 modif.])

Esses dois passos, a derivação da forma equivalente universal enquanto


análise da “conexão necessária intrínseca entre forma de valor, substância de
valor e grandeza de valor” e a derivação do dinheiro a partir da estrutura do
processo de troca, constituem o pressuposto para a explicitação da teoria do
dinheiro, ou então, para que se compreenda a teoria do dinheiro apenas como

170
A EXPOSIÇÃO CATEG O RIAL

concreção ulterior dessa derivação do dinheiro levada a efeito em sua forma


mais abstrata possível. Contudo, antes de passarmos a tratar das determinações
seguintes, queremos apontar algumas implicações. Anteriormente já demos a
entender que Marx desenvolve as categorias na mesma sequência em que ocor­
rem na sociedade burguesa, por assim dizer, como uma espécie de corte trans­
versal da estrutura do capitalismo desdobrado. Ele pressupõe que a produção
total assume a forma-mercadoria, o que ocorre somente no caso do capitalismo
desenvolvido. Pois, de acordo com a concepção de Marx, só agora é que a lei
do valor passa a vigorar plenamente, possibilitando, desse modo, também um
olhar para dentro da estrutura do capital e de todas as formações sociais prece­
dentes. Por esse pressuposto, contudo, a troca de mercadorias de modo algum
constitui um processo de troca simples, mas um momento da circulação do
capital. Desse ponto de vista, a exposição dialética das categorias é a descons-
trução impulsionada paulatinamente da concepção burguesa do encontro de
indivíduos livres e iguais na esfera da circulação: no final da exposição ficará
evidente que é o próprio capital que vem ao nosso encontro em diferentes
formas, todas elas identificando-se como momentos dele próprio.

O capital, como o sujeito predominante sobre as diferentes fases desse movimento,


valor que nele se conserva e se multiplica, como o sujeito dessas transformações que
evoluem em um curso circular — como espiral, um círculo que se expande — , é capital
circulante. Por isso, o capital circulante não é, de início, uma forma particular do capi­
tal, mas é o capital em uma determinação mais desenvolvida, como sujeito do movi­
mento descrito, que é ele mesmo como seu próprio processo de valorização. Em conse­
quência, por esse aspecto, todo capital é também capital circulante. Na circulação
simples, a própria circulação aparece como o sujeito. Uma mercadoria é lançada para
fora dela; outra entra. [...]. O próprio dinheiro, na medida em que deixa de ser meio de
circulação e se põe como valor autônomo, se retira da circulação. Mas o capital é posto
como sujeito da circulação; a circulação é posta como seu próprio curriculum vitae.
Todavia, embora o capital, como totalidade da circulação, seja capital circulante, seja
passagem de uma fase à outra, em cada fase ele também é posto em uma determina-
bilidade, confinado em uma figura particular que é a negação de si mesmo como o su­
jeito do movimento como um todo. Por conseguinte, em cada fase particular o capital é
a negação de si mesmo como o sujeito das distintas transformações. (42/521-2 [ed. bras.
Grundrisse, pp. 518-9])

No Rascunho, Marx enfatiza que se trata de uma abstração quando, no iní­


cio da exposição categorial, lança as mercadorias, por assim dizer, de fora como

171
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L EM K A R L M A R X

“combustível no fogo” da circulação [ed. bras. Grundrisse, p. 196]. Porque de


qualquer modo já é o capital que tem de ser exposto como circulante. Mas para
que as categorias não venham a ser inseridas inopinadamente, como num tiro
de pistola (como diria Hegel*), a exposição tem de ocorrer nessa forma. A
forma-m ercadoria e a forma-dinheiro antecedem à forma-capital em termos
lógicos — mas também em termos históricos: e, na explicitação das categorias,
na medida em que queremos acompanhá-la aqui, esse fato se sedimenta na
form a de um entrelaçam ento singular do m étodo histórico-descritivo e ge-
nético-imanente.
Enquanto a teoria burguesa clássica sucumbe, de acordo com Marx, à apa­
rência da superfície do processo capitalista global e distorce, de um modo
inconsciente a ela própria, essa aparência em história prévia da sociedade bur­
guesa, absolutizando, portanto, em última análise, a estrutura burguesa, o Marx
maduro diferencia rigorosamente entre duas formas da reprodução: por um
lado, formações sociais, nas quais o produto em sua forma natural é fim da
produção, por outro lado, a moderna estrutura da distorção, na qual a produção
se tornou fim em si. Esse processo de distorção é introduzido pela transforma­
ção da produção excedente em mercadorias nas fronteiras do sistema comuni­
tário natural-espontáneo. A troca de produtos surge

[...] nos pontos em que diferentes famílias, tribos e comunidades entram mutuamente
em contato, pois, nos primórdios da civilização, são famílias, tribos, etc. que se defron­
tam de forma autônoma, e não pessoas privadas. Comunidades diferentes encontram em
seu ambiente natural meios diferentes de produção e de subsistência. Por isso, também
são diferentes seu modo de produção, seu modo de vida e seus produtos, e é essa diferen­
ciação natural-espontánea que, no contato entre as comunidades, provoca a troca dos
produtos recíprocos e, por conseguinte, a transformação progressiva desses produtos em
mercadorias. A troca não cria a diferença entre as esferas de produção, mas coloca
em relação esferas de produção diferentes e as transform a, assim, em ramos mais
ou menos interdependentes de uma produção social total. (23/372 [ed. bras. O capital,
vol. I, pp. 425-6])

No início, a relação quantitativa de troca é casual, e os produtos são per­


mutáveis por um ato da vontade dos possuidores de vendê-los reciprocamente.

* Cf. p. ex. G. W. F. Hegel, Fenomenología do espirito. Trad. Paulo Meneses. Petrópolis, Vozes;
Bragança Paulista, USF, 2002, p. 41. (N. do T.)

172
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Ao mesmo tempo, a necessidade de objetos de uso estrangeiros se consolida paula­


tinamente. A constante repetição da troca transforma-a num processo social regular,
razão pela qual, no decorrer do tempo, ao menos uma parcela dos produtos do trabalho
tem de ser intencionalmente produzida para a troca. Desse momento em diante, con-
firma-se, por um lado, a separação entre a utilidade das coisas para a necessidade im e­
diata e sua utilidade para a troca. Seu valor de uso se aparta de seu valor de troca. Por
outro lado, a relação quantitativa, na qual elas são trocadas, torna-se dependente de sua
própria produção. O costume as fixa como grandezas de valor. (23/103 [ed. bras. O ca­
pital, vol. I, pp. 162-3])

No começo, esse processo social possui a forma da troca imediata de pro­


dutos e cada m ercadoria é, portanto, diretam ente meio de troca para o seu
possuidor, sendo um equivalente para o seu não possuidor só na medida em
que possui valor de uso para este e, em consequência disso, o valor de troca da
mercadoria ainda não adquire uma forma de exposição autônoma, separada de
sua forma natural; isso muda com a ampliação desse processo. A passagem da
forma de valor desdobrada para a forma de valor universal, central para a for­
mulação rigorosa, reaparece também nesse ponto:

A necessidade dessa forma se desenvolve com o número e a variedade crescentes


das mercadorias que entram no processo de troca. O problema surge simultaneamente
aos meios de sua solução. U m a circulação em que os proprietários de m ercadorias
comparam mutuamente seus artigos e os trocam por outros artigos diferentes jam ais
ocorre sem que, em sua circulação, diferentes mercadorias de diferentes possuidores de
mercadorias sejam trocadas e comparadas como valores com uma única terceira merca­
doria. Essa terceira mercadoria, por servir de equivalente de diversas outras mercadorias,
torna-se imediatamente, mesmo que em estreitos limites, a forma de equivalente univer­
sal ou social. (23/103 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 163])

Em Para a crítica, Marx indica expressamente que essa gênese da forma-


-dinheiro, mesmo que só seja possível encontrá-la após certa ampliação do
comércio de troca, o que se pode provar historicamente, justam ente não deve
ser derivada das dificuldades exteriores “com que se depara o comércio de
troca am pliado”. Ele critica isso como um procedimento que coloca os fatos
reais de cabeça para baixo. As mercadorias enquanto valores de uso não podem
ser divididas a bei prazer, como deveriam ser enquanto valores de troca; certa
m ercadoria de um produtor X pode ter valor de uso para o produtor Y, mas
a m ercadoria deste pode não ter valor de uso para o produtor X; ou os pos­

173
SO B R E A E ST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

suidores das mercadorias indivisíveis a serem reciprocam ente trocadas ne­


cessitam delas em proporções de valor desiguais: todas estas são dificuldades
que de fato estão associadas à troca, mas são, por assim dizer, dificuldades es­
senciais que

[...] nascem do desenvolvimento do valor de troca, surgem do trabalho social conside­


rado como trabalho geral. [...]. Em outros termos: com o pretexto de estudar a troca
simples, os economistas consideram certos aspectos da contradição que a mercadoria
encerra como unidade imediata de valor de uso e valor de troca. Doutro lado, atêm-se
logicamente à troca como forma adequada do processo de troca das mercadorias, e que
apenas apresentaria certos inconvenientes técnicos; para evitá-los, o dinheiro seria um
expediente habilmente idealizado. (13/36 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia
política, p. 80])

O que vale para a form a do Estado político ao lado e fora da sociedade


burguesa, o qual tem de ser derivado da contradição entre os interesses particu­
lares e os interesses coletivos de cada cidadão, mas que, no desenvolvimento
histórico, surge apenas gradativamente com a disseminação da sociedade bur­
guesa — unicamente “a realização plena do idealismo do Estado representou
concom itantem ente a realização plena do m aterialism o da sociedade bur­
guesa”, consta em Sobre a questão judaica* — , isso vale também para a forma-
-dinheiro.

O cristal monetário [Geldkristall] é um produto necessário do processo de troca, no


qual diferentes produtos do trabalho são efetivamente equiparados entre si e, desse modo,
transformados em mercadorias. A expansão e o aprofundamento históricos da troca
desenvolvem a oposição entre valor de uso e valor que jaz latente na natureza das mer­
cadorias. A necessidade de expressar externamente essa oposição para o intercâmbio
impele a uma forma independente do valor da mercadoria e não descansa enquanto não
chega a seu objetivo final por meio da duplicação da mercadoria em mercadoria e di­
nheiro. Portanto, na mesma medida em que se opera a metamorfose dos produtos do
trabalho em mercadorias, opera-se também a metamorfose da mercadoria em dinheiro.
(23/101-2 [ed. bras. O capital, vol. I. pp. 161-2])

Que mercadoria assume essa forma social específica depende do nível de


desenvolvimento histórico, que, por sua vez, é caracterizado pela natureza do

* Cf. 1/369 [ed. bras. p. 52], (N. do T.)

174
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

valor de uso que se presta como mercadoria universal. Originalmente servirá


como dinheiro a mercadoria que mais é trocada na forma de objeto de neces­
sidade, ou seja, aquela que oferece mais segurança de poder ser novamente
trocada por outras mercadorias específicas. No período inicial da produção de
mercadorias, terão sido sal, peles, gado e escravos, já que eles, em sua forma
específica de mercadoria, correspondem-se entre si como valor de troca bem
mais do que as outras mercadorias. “A utilidade particular da mercadoria, seja
como objeto particular de consumo (peles), seja como instrumento imediato
de produção (escravo), qualifica-a aqui como dinheiro” (42/99 [ed. bras. Grun-
drisse, p. 113]). No curso do desenvolvimento, a relação se inverterá e se con­
verterão em dinheiro as mercadorias cujo valor de uso mais corresponde às
necessidades suscitadas pelo processo de troca como tal; em correspondência
com isso, cada vez mais os metais preciosos se convertem em dinheiro. “D u­
rabilidade, inalterabilidade, divisibilidade e reconvertibilidade, transporte re­
lativamente fácil por conter elevado valor de troca em pequeno espaço, tudo
isso torna os metais preciosos particularmente apropriados para o último está­
gio” (42/99 [ed. bras. Grundrisse, p. 113]).

3. A p r im e ir a de te r m in aç ã o do dinheiro

Antes de levantar a questão da grandeza do preço de certas mercadorias e


ir em busca das causas da variação de preços, Marx precisa derivar a própria
forma-preço. Ou seja, o fato mesmo de as mercadorias terem um preço, que
sempre será um preço bem determinado, está no centro das reflexões marxianas
e todo o desenvolvimento precedente deve ser entendido como pressuposto
imprescindível para a explicitação dessa determinidade formal. Marx retoma,
nesse ponto, a linha de pensamento da prim eira parte do capítulo inicial de
Para a crítica ou então do primeiro capítulo de O capital. Neles a pergunta era
esta: como as mercadorias podem apresentar-se umas às outras como aquilo
que são? Em si, elas são momentos do trabalho social global, “materialidade
do mesmo trabalho ou a mesma materialidade do trabalho [...] (e) como mate­
rialidade uniforme do mesmo trabalho não apresentam senão uma diferença,
a quantitativa” (13/50 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,
p. 94 modif.]). No plano imediato, contudo, elas são coisas de uso concretas,
postadas lado a lado como existências indiferentes e relacionadas com neces­
sidades específicas apenas por sua peculiaridade. Mas elas precisam aparecer
como momentos do trabalho social, e fazem isso, apartando uma mercadoria
específica para ser a mercadoria universal.

175
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L MAR.X

Como mercadorias isoladas, relacionam -se umas às outras como objetivação do


tempo de trabalho geral, relacionando-se com este como com uma mercadoria excluída:
o ouro. A mesma relação em processo, mediante a qual representam, umas às outras,
valores de troca, significa também o tempo de trabalho contido no ouro como tempo de
trabalho geral, do qual uma quantidade determinada se expressa em quantidades distin­
tas de ferro, trigo, café etc.; em resumo: expressa-se nos valores de uso de todas as
mercadorias ou desenvolve-se imediatamente na interminável série dos equivalentes das
mercadorias. Como as mercadorias expressam universalmente os seus valores de troca
em ouro, este expressa imediatamente o seu valor de troca em todas as mercadorias.
Dando-se a si próprias e umas relativamente às outras a forma de valor de troca, as
mercadorias dão ao ouro a forma de equivalente geral ou de dinheiro. (13/50 [ed. bras.
Contribuição à crítica da economia política, p. 95 modif.])

Porém, em que consiste a diferença específica entre essa parte do dinheiro-


-capital e a parte correspondente da teoria do valor? Marx aponta para ela em
Para a crítica:

O valor de troca das mercadorias, expresso desse modo ao mesmo tempo como
equivalência geral e como grau dessa equivalência numa mercadoria específica ou numa
só equação das m ercadorias com outra específica, é o seu preço. O preço é a forma
metamorfoseada, sob a qual aparece o valor de troca das mercadorias dentro do proces­
so de circulação. (13/51 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, pp. 95-6])

Significativa é, nesse ponto, a formulação: dentro do processo de circulação.


Pois, enquanto na derivação da forma equivalente universal se fala explicita­
mente da relação entre o trabalho individual com o trabalho social global, aqui
isso não ocorre mais. No Rascunho, quando se trata da primeira determinação
do dinheiro, consta o seguinte: “Em geral, a mercadoria na qual é expresso o
valor de troca de uma outra jamais é expressa como valor de troca, jamais como
relação, mas como quantum determinado em sua constituição natural” (42/135
[ed. bras. Grundrisse, p. 152]). A finalização lógica dessa ideia é o desenvol­
vimento da denominação monetária, e até esse ponto acompanharemos aqui a
argumentação marxiana.
Marx pressupõe, para simplificar, como ele diz, o ouro como mercadoria-
-dinheiro. Nisso se reflete, ao mesmo tempo, que Marx descreve o capitalismo
desenvolvido, pois, como vimos escrito no Rascunho, “durabilidade, inalterabi­
lidade, divisibilidade e reconvertibilidade, transporte relativamente fácil por
conter elevado valor de troca em pequeno espaço, tudo isso torna os metais

176
A E X P O S I Ç Ã O CA T E G O R I A L

preciosos particularmente apropriados para o último estágio” (42/99 [ed. bras.


Grundrisse, p. 113]). A prim eira função pela qual o ouro se torna dinheiro é
denominada por Marx de “medida dos valores”. O ouro serve para “fornecer
ao mundo das mercadorias o material de sua expressão de valor ou de repre­
sentar os valores das mercadorias como grandezas de mesmo denominador,
qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis” (23/109 [ed. bras. O
capital, vol. I, p. 169]). Como sabemos, o próprio valor de uso da mercadoria-
-dinheiro torna-se, nesse processo, existência formal, sendo que o tempo de
trabalho nela contido se apresenta de modo imediato como tempo de trabalho
universal, mas precisamente na forma de uma quantidade de ouro, de modo
que as mercadorias individuais, expressas como coisas da mesma substância,
só aparecem ainda como um mais ou um menos de urna determinada quanti­
dade de ouro, “servindo as quantidades determinadas de ouro apenas como
denominações para as quantidades dadas de tempo de trabalho” (13/53 [ed.
bras. Contribuição à crítica da economía política, p. 98]). Como mercadoria
que possui um preço, ela passa a ser uma determinada quantidade da mesma
coisa, a saber, de ouro. Porém, para que as mercadorias sejam trocadas como
equivalentes, é preciso que possam ser comparadas entre si e assim “desenvol-
ve-se [...] a necessidade de relacioná-las com uma quantidade determinada de
ouro, considerada como unidade de medida. Essa unidade de medida se con­
verte em padrão porque se divide em partes alíquotas e estas, por sua vez, em
outras novas partes alíquotas” (13/54 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco­
nomia política, p. 100 modif.]).
Porém, dado que as quantidades de ouro são medidas por seu peso, pode-se
assumir a forma acabada do padrão já existente ñas medidas universais de peso
dos metais. Marx aponta para o fato de que, em toda a circulação metálica, essa
escala de pesos original também serviu originalmente como padrão dos preços.
Assim sendo, o ouro “transforma-se de medida de valores em padrão de preços.
A mútua comparação dos preços das mercadorias como quantidades distintas
de ouro cristaliza-se assim ñas figuras assinaladas em uma quantidade de ouro
imaginada e que o representa como padrão de partes alíquotas” (13/54 [ed. bras.
Contribuição à crítica da economia política, p. 101]). Marx enfatiza que o ouro
passa a ostentar duas determinidades formais, e a confusão das duas “provocou
as mais estapafúrdias teorias”. O ouro é medida dos valores enquanto tempo
de trabalho objetivado, ou seja, valor de uso que possui, ele próprio, valor, e,
em consequência disso, também pode modificar o seu valor. Em contraposição,
o ouro é padrão dos preços enquanto peso metálico determinado e “uma quan­
tidade de ouro determinada serve de unidade a outras quantidades de ouro. O

177
SO B R E A E ST RU T U RA L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

ouro é medida do valor porque o seu valor é variável; é padrão de preços por­
que é fixado como unidade invariável de peso” (13/55 [ed. bras. Contribuição
à crítica da economia política, p. 101]). Independentemente de quanto varia o
valor do ouro, diferentes quantidades de ouro sempre representam a mesma
relação de valor entre si.
O que se pretende é que esse padrão passe a ter, no interior da circulação,
o caráter da universalidade e da necessidade, sendo, ao mesmo tempo, puramen­
te convencional a estipulação da unidade de medida, das partes alíquotas e de
seus nomes. Assim sendo, ele necessariamente acaba sendo regulado por lei.

Uma porção determinada de peso de um metal precioso, por exemplo, 1 onça de


ouro, é oficialmente dividida em partes alíquotas, que a lei batiza com nomes tais como
libra, táler etc. Essa parte alíquota, que então passa a valer como a verdadeira unidade
de medida do dinheiro, é subdividida em outras partes alíquotas que a lei batiza com
outros nomes, como xelim, penny etc. Tal como antes, determinados pesos metálicos
continuam a ser padrão do dinheiro metálico. O que mudou foi a divisão das partes
alíquotas e os nomes adotados. Os preços, ou as quantidades de ouro em que os valores
das mercadorias foram idealmente convertidos, são, agora, expressos nas denominações
monetárias ou nas denominações contábeis legalmente válidas do padrão de medida do
ouro. Na Inglaterra, em vez de se dizer que 1 quarter de trigo é igual a 1 onça de ouro,
dir-se-ia que ele é igual a £3, 17 xelins e IOV2 pence. Assim, as mercadorias declaram,
em suas denominações monetárias, o quanto elas valem, e o dinheiro serve como uni­
dade de conta na medida em que vale para fixar uma coisa como valor e, com isso, ex­
pressá-la na forma-dinheiro. (23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 174-5])

A exposição marxiana da primeira determinação do dinheiro termina com


o desenvolvimento da denominação monetária, da qual desapareceu “todo
sinal da relação de valor”. “O nome de algo é totalmente exterior à sua natu­
reza. Não sei nada de um homem quando sei apenas que ele se chama Jacó”
(23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 175]). Não obstante, a denominação não
é só exterior a ele, mas a própria exterioridade da denominação ainda é, por
assim dizer, essencial a ele. Isso já se evidencia pelo fato de a exposição mar­
xiana avançar até essa determinação, na qual se reflete a finalização lógica do
desenvolvimento real: “Por outro lado, é necessário que o valor, em contraste
com os variados corpos do mundo das mercadorias, desenvolva-se nessa forma
material, desprovida de conceito, mas também simplesmente social” (23/116
[ed. bras. O capital, vol. I, p. 175] ).

178
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Todavia, pelo fa to de a denom inação ser exterior à natureza da coisa, a


denom inação m onetária do peso m etálico não só pode separar-se da deno­
minação original do peso, como realmente se separa. A exterioridade, nesse
caso, tam bém aparece como tal. A razão mais im portante (M arx m enciona
ainda outras) dessa separação real reside na contradição que o metal físico
representa em sua função de meio de circulação. Essa contradição será tema-
tizada mais adiante.

4. Excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente


nece ssá ri o

Seria um procedimento extremamente contrário à concepção marxiana se


antepuséssemos à exposição global das categorias uma definição conclusiva
ou uma fórmula sucinta da lei do valor e de seu modo de ação. Tal procedimen­
to necessariamente anda de mãos dadas com a negligência da natureza especí­
fica das determinidades formais de cunho econômico. Marx aponta explicita­
mente para isso ao escrever, na carta de 11 de julho de 1868 a Kugelmann:

A ciência consiste justamente em desenvolver como a lei do valor se impõe. Caso


se quisesse, portanto, “explicar” de antemão todos os fenômenos que contradizem a lei,
seria preciso fornecer a ciência anterior à ciência. O erro cometido por Ricardo foi
justam ente o de, no seu primeiro capítulo sobre o valor, pressupor como dadas todas as
possíveis categorias que ainda tinham de ser desenvolvidas para demonstrar a sua ade­
quação à lei do valor. (32/553)

Como sabemos, essa constatação de Marx se refere à aparência distorcida


da concorrência, que está automaticamente dada com as categorias do cotidia­
no capitalista. Segundo Marx, a teoria econômica deve destruir essa aparência
de que o valor do produto tem outra fonte além do trabalho, e, de acordo com
a sua autocompreensão, a exposição dialética das categorias é a única forma
possível pela qual pode ser executada essa decifração. De modo semelhante a
Hegel, Marx se nega peremptoriamente a discutir problemas em pontos nos
quais isso só é possível mediante antecipações ilegítimas de determinações a
serem explicitadas som ente no curso da explicação de todas as categorias.
Segundo M arx, isso sem pre levaria a que a aparência fosse absolutizada e
confrontada com a “teoria esotérica” . “E então o [economista] vulgar acredita
que está fazendo uma grande descoberta quando, confrontado com a revelação
da conexão intrínseca, teima que as coisas parecem diferentes na aparição. Ele

179
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R .Y

de fato teima em aferrar-se à aparência e tomá-la como a coisa última. Mas


para que serve, então, uma ciência?” (Marx 1954, pp. 185-6)*. Por conseguinte,
a definição da lei do valor e a exposição de seu modo de agir nada mais podem
ser, para Marx, que o desenvolvimento das categorias mesmas, que, por sua
vez, franqueará o acesso à análise do “movimento real da concorrência”, cuja
exposição, contudo, situava-se fora do “plano” de Marx, como já mencionamos
anteriormente.
Possivelmente graças a esse modo de proceder, um aspecto essencial da
teoria do valor foi tratado de forma ambígua. Na nossa breve caracterização
introdutória do conceito de valor, mostramos com o auxílio de exemplos que
o próprio Marx cita em O capital que, na concepção marxiana, o valor assume,
por assim dizer, a função de uma unidade consciente de si, faltante num siste­
ma de produção, o qual aponta, por sua estrutura material, para essa unidade
consciente de si, mas que não a possui. Naquele contexto pudemos nos conten­
tar com essa alusão, enfatizando, ao mesmo tempo, que essa constatação não
esgota todos os aspectos desses exemplos. Agora, após o desenvolvimento da
form a-preço, temos de retornar a esse problema e examiná-lo mais de perto.
Rememoremos esses fatos com o auxílio de uma passagem extraída do Rascu­
nho, na qual Marx — em discussão com os proudhonistas — aclara as tarefas
que o banco propagado pelos “teóricos do bilhete de horas” teria de cumprir:

O banco seria, portanto, o comprador e vendedor universal. Em lugar das notas, o


banco poderia emitir cheques e, em lugar destes últimos, poderia manter simples cader­
netas de débito e crédito. Conforme a soma dos valores-mercadorias que depositasse no
banco, X teria a seu crédito no banco a mesma soma de valor em outras mercadorias.
Um segundo atributo do banco seria necessariamente o de fixar de maneira autêntica o
valor de troca de todas as mercadorias, i.e., o tempo de trabalho nelas materializado.
Mas suas funções não poderiam terminar aqui. Teria de determinar o tempo de trabalho
no qual as m ercadorias podem ser produzidas nas condições médias da indústria, o
tempo em que têm de ser produzidas. Mas isso também não seria suficiente. Teria não
só de determinar o tempo em que um certo quantum de produtos tem de ser produzido
e pôr os produtores em condições tais que seu trabalho seja igualmente produtivo (logo,
teria também de harmonizar e ordenar a distribuição dos meios de trabalho), mas teria
de determinar as quantidades de tempo de trabalho que deveriam ser utilizadas nos dife­
rentes ramos de produção. Este último seria necessário porque, para realizar o valor de
troca, para fazer seu dinheiro efetivamente convertível, a produção geral teria de estar

* Cf. 32/553, carta a Kugelmann. (N. do T.)

180
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

assegurada, e em proporções tais que as necessidades dos trocadores fossem satisfeitas.


(42/89 [ed. bras. Grundrisse, pp. 103-4])

Ao passo que nos exemplos anteriormente mencionados nos pareceu sig­


nificativo que o trabalho abstratamente humano enquanto substância do valor
tem seu contraponto na consciência de que, nos diferentes trabalhos concretos,
trata-se apenas de diferentes formas de atividade do mesmo sujeito consciente
de si, seja ele Robinson ou a associação de pessoas livres que “conscientes de
si despendem suas muitas forças de trabalho individuais como uma só força de
trabalho social”, temos de abordar agora o tempo de trabalho como medida da
grandeza do valor. Da passagem do Rascunho recém-citada se depreende cla­
ramente que o tempo de trabalho socialmente necessário deve ser analisado
por dois aspectos. Por um lado, é ressaltado que o banco deve determinar em
quanto tempo de trabalho os respectivos tipos de valores de uso precisam ser
produzidos. Isso implica a repartição dos meios de trabalho de cada ramo es­
pecífico da produção de maneira tal que cada trabalhador individual (ou, mui­
to antes, cada grupo de trabalhadores, já que se trataria de meios de trabalho
em forma de maquinaria e, em consequência, o próprio processo imediato de
produção seria comunitário) seja mais ou menos igualmente produtivo e, por
isso, cada valor de uso com razão só possa ser tratado como um exemplar do
seu tipo, porque cada um deles contém a mesma quantidade de trabalho. Por
outro lado, acentua-se que esse banco terá de repartir o tempo de trabalho
social global de acordo com as diferentes “massas de necessidades” (como
Marx diz na carta a Kugelmann anteriormente citada) pelos diferentes ramos
de produção. Só quando esses dois pressupostos tivessem sido criados, os
trabalhadores poderiam satisfazer as suas necessidades nesse sistem a e, ao
mesmo tempo, realizar seus produtos como valores de troca; só então eles
poderiam participar da produção total, em conformidade com a medida de sua
própria contribuição para ela. Isso é algo óbvio no exemplo de Robinson. Em
contrapartida, o outro exemplo precisa ser dado como complemento para acla­
rar todos os aspectos do conceito de valor. “Apenas como paralelo à produção
de m ercadorias” Marx pressupõe que a parte que cabe a cada produtor nos
meios de vida seria determinada pela dimensão do tempo de trabalho com que
ele contribuiu para a produção total. Esse tempo de trabalho, porém, em seu
dispêndio concreto, desde sempre já está determinado como socialmente ne­
cessário em duplo sentido, na m edida em que as muitas forças de trabalho
individuais só poderão ser despendidas nos diferentes ramos da produção se­
gundo a medida das necessidades a serem satisfeitas de todos os membros da

181
SO B R E A EST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

associação quando já tiver sido fixado o tempo de trabalho médio necessário


para a produção dos diferentes valores de uso.
Na diferenciação entre essas duas dimensões do conceito do tempo de tra­
balho socialmente necessário reflete-se uma unidade, peculiar do capitalismo,
de dois processos essencialmente relacionados um com o outro e, na mesma
proporção, autônomos um em relação ao outro. No interior da autonomização
basilar da produção perante o consumo, da autonomização do valor de troca
perante o valor de uso, de um lado o tempo médio de trabalho necessário para
produzir um valor de uso é constantemente diminuído pela modificação dos
métodos de produção, do outro lado o trabalho social global não é repartido
conscientemente (correspondendo às necessidades do consumo e da produção)
pelos diferentes ramos da produção; essa repartição tem de impor-se de modo
natural-espontâneo. Sob esses pressupostos, faz como que parte do sistema que
sejam lançadas no mercado as mercadorias para cuja confecção foi despendi­
do apenas tempo de trabalho socialmente necessário e, ao mesmo tempo, uma
quantidade demasiada de tempo do trabalho social global. Isso é constatado
expressamente por Marx:

Para as mercadorias se venderem por seu valor, a condição é conterem apenas o


tempo de trabalho socialmente necessário, e, do mesmo modo, para um ramo inteiro de
produção do capital, a condição é aplicar-se nesse ramo particular apenas a parte neces­
sária da totalidade do trabalho da sociedade, apenas o tempo de trabalho exigido para
satisfazer à necessidade social (demand [procura]). Se se aplicar mais, mesmo que cada
mercadoria isolada encerre apenas o tempo de trabalho socialmente necessário, o con­
junto conterá mais que o tempo de trabalho socialmente necessário; da mesma maneira,
a m ercadoria isolada tem valor de uso, mas o conjunto das mercadorias, segundo os
pressupostos estabelecidos, perde parte do seu valor de uso. (26.2/521 [ed. bras. Teorias
cla mais-valia, vol. II, p. 956])

Essas desproporcionalidades que constantemente vão se formando são com­


pensadas na práxis capitalista cotidiana por meio de processos que comumen-
te são designados como mecanismos de preço, como mecanismos de oferta e
procura, como migração do capital etc. A proporcionalidade existe apenas no
processo das desproporcionalidades que constantemente vão sendo compen­
sadas, ou, nas palavras de Marx: a lei do valor se realiza som ente em seu
próprio contrário.
A exemplo dos clássicos, Marx também parte do fenômeno de que o preço
oscila em torno de uma grandeza média, a qual é determinada como o objeto

182
A E XPOSIÇÃO CATEGORIAL

a ser propriamente analisado. Oferta e procura coincidem nesse ponto e, em


consequência disso, não podem mais ser citadas como explicação, visto que
essa grandeza média deve ser explicada de outra maneira do que pelas diver­
gências em relação a si mesma que são constantemente compensadas. Esse
“preço natural”, como o chamam os clássicos, é determinado, muito antes, pelo
tempo de trabalho. A despeito das diferenças centrais entre a teoria marxiana
e a teoria clássica no que se refere a toda a problemática da forma, essa ideia
é acolhida por Marx.

O valor das mercadorias determinado pelo tempo de trabalho é somente seu valor
médio. [...] O valor de mercado da mercadoria é sempre diferente desse seu valor médio,
e se encontra sempre abaixo ou acima dele. O valor de mercado iguala-se ao valor real
por suas incessantes oscilações, jamais por meio de uma equação com o valor real como
terceiro termo, mas por sua contínua inequação consigo mesmo (não, como diria Hegel,
por meio de identidade abstrata, mas pela constante negação da negação, i.e., de si
mesmo como negação do valor real). [...]. O preço diferencia-se também do valor, não
apenas como o nominal se diferencia do real; não apenas pela denominação em ouro e
prata, mas pelo fato de que o último aparece como lei dos movimentos por que passa o
primeiro. Mas são constantemente diferentes e jamais coincidem, ou o fazem apenas de
maneira acidental ou excepcional. O preço das mercadorias situa-se continuamente aci­
ma ou abaixo do valor das mercadorias, e o próprio valor das mercadorias existe somen­
te na flutuação dos preços das mercadorias. (42/72-3 [ed. bras. Grundrisse, pp. 87-8])

Se entendermos a derivação marxiana das categorias como “definição” da


lei do valor e da forma de sua imposição, essa forma de exposição da lei do
valor deverá ser rigorosamente diferenciada da exposição da realização da lei
do valor na própria concorrência. Este último ponto, como já foi ressaltado
várias vezes, não foi explicitado por Marx, “porque o movimento real da con­
corrência está fora do nosso plano e só queremos apresentar a organização
intrínseca do modo de produção capitalista em sua média ideal, por assim dizer”
(25/839 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 280]). Essa problem ática é
abordada por Marx também no final do primeiro capítulo de Para a crítica, em
que ele refuta possíveis objeções à sua teoria do valor:

O preço de mercado das m ercadorias baixa ou sobe de acordo com seu valor de
troca, conforme a relação variável da oferta e da procura. É precisamente por isso que
o valor de troca das mercadorias [assim argumentam seus adversários, H. R.] é deter­
minado pela relação entre a oferta e a procura e não pelo tempo de trabalho nelas con-

183
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

tido. Essa conclusão singular, de fato, não faz mais que renovar a pergunta: como é que
sobre a base do valor de troca se desenvolve um preço de mercado distinto de dito valor?
Ou, mais exatamente: como é que a lei do valor de troca nâo se realiza senão no oposto
de si mesma? Esse problem a é resolvido na teoria da concorrência. (13/47 [ed. bras.
Contribuição à crítica da economia política, p. 92 modif.])

A exposição marxiana das categorias contém, portanto, somente a derivação


daquelas formas pelas quais a lei do valor se realiza pela prim eira vez; elas
são, por assim dizer, o a priori, o pressuposto de todo movimento real. Por essa
razão, a teoria marxiana da forma-preço não pode ser caracterizada como teo­
ria do preço, mas se entende apenas como exposição daquela categoria que
pela primeiríssima vez possibilita a constante oscilação.

O preço é a denom inação m onetária do trabalho objetivado na m ercadoria. Por


isso, a equivalência entre a mercadoria e a quantidade de dinheiro — cujo nome é seu
preço — é uma tautologia, assim como a expressão relativa de valor de uma mercadoria
é sempre a expressão da equivalência entre duas mercadorias. Mas se o preço, como
exponente da grandeza de valor da mercadoria, é exponente de sua relação de troca com
o dinheiro, disso não se conclui a relação inversa, isto é, que o exponente de sua relação
de troca com o dinheiro seja necessariam ente o exponente de sua grandeza de valor.
Consideremos que uma mesma grandeza de trabalho socialmente necessário esteja ex­
pressa em 1 quarter de trigo e em £2 [...]. As £2 são, assim, a expressão monetária da
grandeza de valor do quarter de trigo, ou seu preço. Ora, se as circunstâncias permitirem
que essa expressão monetária seja remarcada para £3 ou exija que ela seja reduzida para
£1, conclui-se que £1 ou £3, como expressões da grandeza de valor do trigo, são peque­
nas ou grandes demais, porém constituem, de qualquer forma, os preços do trigo, pois,
em primeiro lugar, elas são sua forma de valor, dinheiro, e, em segundo lugar, são ex­
ponentes de sua relação de troca com o dinheiro. Em condições constantes de produção
ou de produtividade constante do trabalho, é necessário, tal como antes, que a mesma
quantidade de tempo de trabalho social seja despendida para a reprodução do quarter
de trigo. Essa circunstância independe da vontade tanto do produtor do trigo quanto dos
outros possuidores de mercadorias. A grandeza de valor da mercadoria expressa, por­
tanto, um a relação necessária — e imanente ao seu processo constitutivo — com o
tempo de trabalho social. Com a transformação da grandeza de valor em preço, essa
relação necessária aparece como relação de troca entre uma mercadoria e a mercadoria-
-dinheiro existente fora dela. Nessa relação, porém, é igualmente possível que se ex­
presse a grandeza de valor da mercadoria, como o mais ou o menos pelo qual ela é
vendável sob dadas circunstâncias. A possibilidade de uma incongruência quantitativa
entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à grandeza de valor,

184
A E X P O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

reside, portanto, na própria forma-preço. Isso não é nenhum defeito dessa forma, mas,
ao contrário, aquilo que faz dela a forma adequada a um modo de produção em que a
regra só se pode impor como a lei média do desregramento que se aplica cegamente.
(23/116-7 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 176-7])

Em correspondência ao conjunto da formulação, Marx pode se contentar


aqui com essa indicação. Visto que, em O capital, ele só está tratando da deri­
vação das formas mesmas, ou seja, visto que, nesse caso, ele tem de explicitar
como as mercadorias se apresentam umas às outras, no interior da esfera de
circulação, como expressões reificadas, apenas quantitativamente diferentes,
da mesma substância, ele pressupõe que os diferentes valores de uso contêm
tempo de trabalho socialmente necessário e são trocados como equivalentes.
M as o que Marx entende exatamente por tempo de trabalho socialmente
necessário no âmbito da exposição das categorias? Marx constatou explicita­
mente que esse conceito deve ser analisado por dois aspectos e retorna repeti­
damente a isso, ainda que o faça de uma forma da qual não se consegue de­
preender sem sombra de dúvida como se deve conceber a mediação dos dois
aspectos. Isso pode ser posto na conta da própria forma de exposição das ca­
tegorias, que — como exposição do m odo de produção capitalista em sua
“m édia ideal” — de qualquer modo já pressupõe a mediação dos dois aspectos
e, ao mesmo tempo, não pode pressupô-la. Quando a exposição parte da cir­
culação simples e, em seguida, quer decifrá-la como esfera abstrata do proces­
so burguês de produção total — o seu ser imediato como pura aparência — ,
ela sempre só pode apreender o valor de uso naquelas determinidades formais
de cunho econômico, nas quais ele aparece no respectivo estágio da análise.
Marx aborda essa problemática no Rascunho'.

Dessa vez, entretanto, essa contradição não é mais posta como era na circulação,
como uma simples diferença form al, mas ser medido pelo valor de uso é aqui solida­
mente determinado como ser medido pela necessidade total dos trocadores por esse
produto — isto é, pelo quantum do consumo total. Esse consumo aparece aqui como
medida para o produto como valor de uso e, por isso, também como valor de troca. Na
circulação simples, tratava-se simplesmente de converter o produto da forma do valor
de uso específico para a forma do valor de troca. O obstáculo do produto aparecia so­
mente porque, em sua primeira forma, o produto existia por sua propriedade natural em
uma forma específica, em lugar de existir na forma de valor, forma na qual era direta­
mente permutável por todas as outras mercadorias. Agora, no entanto, está posto que a
medida de sua existência está dada em sua própria propriedade natural. Para ser con­

185
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E I T O D E C A P IT A L EM K A R L M A R X

vertido à forma universal, o valor de uso deve apenas existir em um a quantidade deter­
minada; uma quantidade cuja medida não está no trabalho nele objetivado, mas que
resulta de sua natureza como valor de uso e, na verdade, valor de uso para outros. (42/320
[ed. bras. Grundrisse, p. 331])

E, algumas linhas mais adiante, segue-se uma observação significativa: “A


indiferença do valor enquanto tal diante do valor de uso é posta assim em uma
posição tão falsa quanto a da substância e da medida do valor como trabalho
objetivado em geral” (42/320 [ed. bras. Grundrisse, p. 331]). É difícil decidir
se essa última observação deve ser concebida como objeção contra a teoria do
valor do trabalho como tal ou apenas como sinalização de que o aspecto da
repartição do trabalho social global em conformidade com a medida das ne­
cessidades sociais igualmente deve ser levado em conta já no início da expo­
sição das categorias. Uma nota de rodapé subsequente confere maior plausibi­
lidade à última interpretação: “Ainda não se pode passar à relação de demanda,
oferta, preços, que, em seu verdadeiro desenvolvimento, pressupõem o capital.
A demanda e a oferta, na medida em que são categorias abstratas e ainda não
expressam relações econômicas determinadas, não devem talvez ser conside­
radas já na circulação ou na produção simples?” (42/320 [ed. bras. Grundrisse,
p. 331]). No Rascunho, Marx deixa esse problema expressamente em suspenso,
como se depreende de uma anotação posterior:

Vimos há pouco, no processo de valorização do capital, como ele supõe o desen­


volvimento prévio do processo de produção simples. O mesmo se dá com a demanda e
a oferta, uma vez que, na troca simples, a necessidade do produto é pressuposta. A
própria necessidade do produtor (imediato) como necessidade da demanda de outros.
Desse próprio desenvolvimento tem de resultar o que lhe tem de ser pressuposto, e tudo
isso, então, tem de ser lançado nos primeiros capítulos. (42/320-1 [ed. bras. Grundrisse,
PP· 331-2])

Em lugar nenhum Marx explicitou em que medida essas objeções incidiram


na exposição posterior. Em todo caso, o problema em si tampouco é resolvido
de m odo concludente em O capital·, ao contrário, à m edida que avança no
desenvolvimento de sua teoria, Marx vincula a expressão “tempo de trabalho
necessário” exclusivamente com um aspecto.

De fato, é a lei do valor tal como ela se impõe não às mercadorias ou aos artigos
individuais, mas aos produtos globais originados em cada uma das esferas específicas

186
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

da produção social, autonomizadas pela divisão do trabalho; de modo que não só se


emprega sobre cada mercadoria individual apenas o tempo de trabalho necessário, mas
tam bém tão somente o quantum proporcional necessário da totalidade do tempo de
trabalho social nos diferentes grupos. Pois a condição continua a ser o valor de uso. Mas
se o valor de uso de uma mercadoria isolada depende de ela em si e por si satisfazer a
uma necessidade, então, na m assa do produto social, depende de ela satisfazer, de m a­
neira adequada, a uma necessidade social quantitativamente determinada para cada es­
pécie particular de produto, e de o trabalho, por conseguinte, estar proporcionalmente
dividido em relação a essas necessidades nas diferentes esferas da produção, quantita­
tivamente circunscritas. [...]. A necessidade social, ou seja, o valor de uso elevado à
potência social, aparece aqui como fator determinante da cota do tempo global de tra­
balho social que recai para as diversas esferas específicas da produção. É, porém, apenas
a mesma lei que já se m ostra na m ercadoria isolada, ou seja: que seu valor de uso é
pressuposto do seu valor de troca e, portanto, do seu valor. [...]. Essa limitação quanti­
tativa das cotas do tempo de trabalho social utilizáveis nas diferentes esferas da produ­
ção específicas é apenas expressão mais desenvolvida da lei do valor em geral; embora
o tempo de trabalho necessário assuma aqui outro sentido [grifo meu, H. R.]. Apenas
tanto dele é necessário para satisfazer às necessidades sociais. A limitação que ocorre
aqui deve-se ao valor de uso. (25/648-9 [ed. bras. O capital, vol. III, tomo 2, p. 138])

Não há dúvida de que grande parte da crítica à teoria m arxiana tem em


vista esse fato, mas ao mesmo tempo o articula de forma a servir-se das cate­
gorias que Marx está procurando derivar. Por isso, vamos interromper neste
ponto a discussão desse problema e tentar primeiro dar conta do decurso sub­
sequente da exposição.

5. A segunda de te r m in a ç ã o do dinheiro

A “segunda determinação do dinheiro” segue necessariamente a primeira:


“Essa duplicação ideal acontece (e tem de acontecer) de modo que a mercado­
ria aparece duplicada na troca efetiva: de um lado, como produto natural, de
outro, como valor de troca. Em outras palavras, seu valor de troca adquire uma
existência material dela separada” (42/79-80 [ed. bras. Grundrisse, p. 94]). A
forma-preço, cuja formação “é uma espécie de processo teórico preparatório
da circulação real” (13/49 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia políti­
ca, p. 94]), inclui a venalidade das mercadorias por dinheiro e a necessidade
dessa venda. Depois de ter repetido, ao fazer a derivação da forma-preço, num
plano mais concreto, a estrutura da argumentação da primeira parte do primeiro

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S O B R E A E ST RU T U RA L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

capítulo de Para a crítica ou então do primeiro capítulo de O capital, a saber,


examinar a mercadoria analiticamente e não como ela se apresenta no proces­
so de troca real, Marx retoma, nesse ponto, a argumentação da segunda parte
do primeiro capítulo de Para a crítica ou então do segundo capítulo de O capi­
tal — igualm ente num plano mais concreto. A análise da m ercadoria como
unidade de valor de uso e valor de troca resultou em que ela deve tornar-se
ambos os valores, sendo que a realização de um está reciprocamente vinculada
à realização do outro, mas a realização de um ao mesmo tempo exclui a rea­
lização do outro. A única solução possível para esse círculo vicioso de proble­
mas está em fazer com que o metabolismo social seja mediado por uma mu­
dança de forma da mercadoria, efetuando-se, por assim dizer, em dois passos:
a mercadoria se realiza como valor de uso ao assumir uma forma de existência
social diferente de sua forma natural imediata, ao adquirir uma forma na qual
ela é tida pelas outras m ercadorias como encarnação im ediata do trabalho
abstratamente universal, e então substitui, enquanto equivalente, uma quanti­
dade arbitrariamente determinada de qualquer outra mercadoria. Na forma-pre-
ço está implicado este processo: na medida em que têm um preço, as merca­
dorias não só aparecem umas para as outras como expressões permutáveis
apenas quantitativam ente diferentes da m esma substância, mas tam bém se
apresentam como antecipação ideal do modo de existência imediato do valor
de troca. O ato de sua venda, isto é, ao passarem da mão em que são não valor de
uso para a mão em que são valor de uso, ou seja, o seu devir como valor de
uso, é idêntico à realização do preço. De uma quantidade representada de ouro
a mercadoria se torna ouro real.

Em virtude de venda M-D, não somente se transformou efetivamente em ouro a


mercadoria que já o fora idealmente em seu preço, mas também, pelo mesmo processo,
o ouro, que, como medida dos valores, não era outra coisa senão moeda ideal e que, na
realidade, não figurava senão como denominação monetária das próprias mercadorias,
se transform ou em dinheiro real. O ouro, que se havia feito idealm ente equivalente
geral porque todas as mercadorias mediam por ele seus valores, agora, como produto
de alienação universal das mercadorias em troca dele, sendo a venda M-D o processo
dessa alienação universal, transforma-se em mercadoria absolutamente alienável, em
dinheiro real. Todavia, se o ouro se converte em dinheiro real na venda é porque os
valores de troca das mercadorias já eram idealmente ouro nos preços. (13/71 [ed. bras.
Contribuição à crítica da economia política, pp. 121-2 modif.])

188
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

Quando a mercadoria é vendida por ouro e realiza o seu preço, o ouro se


torna dinheiro real, torna-se a “crisálida de ouro” [ed. bras. O capital, vol. I,
pp. 185 e 204] da mercadoria, o seu valor em forma natural, que passa a ser
representável de modo imediato nos valores de uso de todas as outras merca-
dorias, que, por sua vez, mediante o seu preço, “ambiciona” o ouro como seu
“além”. Enquanto a primeira venda da mercadoria realizou o seu valor de uso
para outros, no ato da exteriorização do ouro por outro valor de uso a merca-
doria se realiza como valor de uso para o seu proprietário. Ao mesmo tempo,
realiza-se o seu valor de troca, mas ele se realiza só como valor evanescente:
“Enquanto, pela realização do seu preço, a m ercadoria converte o ouro em
dinheiro real, por sua nova transform ação converte o ouro em sua própria
existência meramente evanescente de dinheiro” (13/74 [ed. bras. Contribuição
à crítica da economía política, p. 125 modif.]).

6. Ex cu rso sobre a teoria da crise

Para Marx, essa exposição da mudança de forma da mercadoria é idéntica


à introdução de determinações que, se não forem compreendidas, a elaboração
teórica adequada de um fenômeno central do modo de produção capitalista, a
saber, o da crise, parece-lhe impossível de antemão: as determinações do ato
de comprar e do ato de vender. De uma nota de rodapé em que Marx critica
certo teórico, segundo o qual o dinheiro só é tratado de modo abusivo na eco­
nomia política, depreende-se que, também no caso dessas determinações, Marx
exige uma forma rigorosa de introdução e, no fundo, considera também nesse
ponto a sua própria exposição como a única forma possível. Hodgskin diz o
seguinte: “Dinheiro não é, na realidade, senão o instrum ento para efetuar a
compra e a venda [...], e o seu estudo não constitui parte da ciência da econo­
mia política, assim como não faz parte dele o estudo de navios e máquinas
a vapor” (13/37 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 80,
n. 41 modif.]), ao que Marx retruca imediatamente: “Mas o que o senhor en­
tende por compra e venda?” (13/37 [ed. bras. idem]). Contudo, onde não se
pode derivar a forma-dinheiro da estrutura da mercadoria e onde a necessidade
da forma autônoma de exposição do valor de troca não pode ser compreendida,
sendo o dinheiro considerado meramente como “expediente habilmente idea­
lizado” para a superação de dificuldades (aparentemente) exteriores do comér­
cio de troca, tampouco se pode exigir algum enunciado claro sobre a essência
dessas duas determinações. Por mais inofensivo que à prim eira vista pareça

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também esse mal-entendido, as consequências tiradas dele por Marx em todo


caso são significativas.
A duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro implica que aí se
passa um a transubstanciação. Mas ela im plica ao mesmo tem po tam bém
que o êxito dessa transubstanciação é casual. Com o surgimento da forma-
-dinheiro o ato da troca se decompõe em dois atos independentes um do outro,
precisamente compra e venda, de modo que a identidade imediata entre a en­
trega do produto próprio em troca do produto alheio dá lugar a um processo
que é constituído essencialmente da unidade das duas fases, assim como ele
é ao mesmo tempo, de modo igualmente essencial, a separação e a autonomi­
zação das duas entre si.

Podem se corresponder ou não se corresponder; podem coincidir ou não; podem


entrar em relações recíprocas discrepantes. É verdade que procurarão constantemente
se equiparar; porém, no lugar da igualdade imediata anterior, tem lugar agora o cons­
tante movimento de equiparação, que pressupõe justamente a constante não equiparação.
Possivelmente, a consonância só pode agora ser plenamente atingida percorrendo as
mais extremas dissonâncias. (42/82-3 [ed. bras. Grundrisse, p. 97])

A descrição das implicações dessas duas determinações é simultaneamen­


te a primeira forma de exposição da crise ou a exposição da crise em sua forma
mais abstrata possível. Contudo, antes de nos voltarmos para essa forma, é
preciso chamar a atenção para alguns aspectos do problema da crise em seu
todo no que diz respeito à exposição. Quando a forma dialética de exposição
envolve a pretensão de ser a única forma adequada da elaboração conceituai
do processo capitalista global, essa forma de exposição deve ser caracterizada,
ao mesmo tempo, como a tentativa de resolver uma tarefa que se equipara à
quadratura do círculo no plano da economia política. O que se exige é nada
menos que a exposição sistem ática daqueles momentos que, no interior da
produção capitalista, condicionam o desmoronamento periódico desse modo
de produção. O sistema de exposição na forma do “ir-além-de-si-mesmo im a­
nente”, de cujo conceito não há como afastar reflexivamente a concepção de
uma estrutura harmônica em si mesma, deve, portanto, apreender, igualmente
ainda de modo sistemático, uma ruptura imanente ao sistema, a sua própria
força explosiva imanente. A concepção global, de modo peculiar, faz jus a esse
entrelaçamento de estatismo e dinamismo no sistema capitalista que aparece
na crise. A abordagem esporádica, aparentemente assistemática, da crise ainda
é o procedimento mais adequado para elaborar em estágios de concreção dife-

190
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

rentes em cada caso um conjunto de fatos que, por toda a sua estrutura, parece
resistir a um acesso sistemático.

E isso é o im portante quando observam os a econom ia burguesa. As crises do


mercado mundial têm de ser concebidas como a convergência real e o ajuste à força de
todas as contradições da economia burguesa. Os diversos fatores que convergem nessas
crises têm, portanto, de ser destacados e descritos em toda a esfera da economia bur­
guesa, e, quanto mais nesta nos aprofundarmos, têm de ser destacadas novas caracte­
rísticas desse conflito e ainda é mister dem onstrar que as formas mais abstratas dele
são iterativas e se contêm nas mais concretas. (26.2/510 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, p. 945])

O prim eiro passo na abordagem dessa problem ática deve ocorrer nesse
ponto, a saber, na explicitação das determinações “compra” e “venda”, e con­
siste meramente na análise precisa da form a abstrata da crise.
A economia burguesa não estava em condições de adotar tal modo de aná­
lise em virtude do mal-entendido mencionado anteriormente. Nesse contexto,
torna-se interessante, contudo, uma diferenciação que Marx efetua por ocasião
da controvérsia com a teoria burguesa da crise e que não coincide com a dife­
renciação essencial entre teoria clássica e teoria vulgar. Como já se ressaltou
diversas vezes, a teoria clássica se caracteriza exatamente por tentar romper
a aparência objetiva em que incorre sem ressalvas a teoria vulgar, mesmo que
o faça com meios em parte inadequados. Porém, isso não evita, como bem
vimos na crítica marxiana a Adam Smith e David Ricardo, que a teoria clássi­
ca esteja impregnada de elementos da economia vulgar; ao contrário: sem as
sobreposições parciais com teoremas da economia vulgar, a teoria clássica não
seria clássica no sentido marxiano, pois coincidiria de modo imediato com a
sua própria teoria. Contudo, na teoria da crise não há essa sobreposição parcial;
nesse ponto, a própria teoria clássica se converte plena e inteiramente em eco­
nomia vulgar. “Palavrório pueril que fica bem para Say, mas não para Ricardo”
(26.2/503 [ed. bras. Teorias da m ais-valia, vol. II, p. 938]) consta em certa
passagem de Teorias do mais-valor. De um outro ponto de vista, contudo, é
possível introduzir uma diferenciação: em meio à falta de clareza generalizada
sobre esse problema, é possível discernir se a observação prática da crise é
“negada” ou “aceita” pela teoria. Cum grano salis [com ressalvas] esses dois
aspectos da teoria burguesa podem ser associados a dois períodos do modo de
produção capitalista, que podem ser caracterizados, eles próprios, mediante
duas formas específicas de crise.

191
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

O próprio Ricardo, a bem dizer, nada sabia de crises, de crises gerais do mercado
mundial oriundas do próprio processo de produção. Podia explicar as crises de 1800 até
1815, alegando encarecimento do trigo em virtude das más colheitas, a depreciação dos
bilhetes de banco, a depreciação das mercadorias coloniais etc., pois, em consequência
do bloqueio continental, o mercado se contraíra à força, por motivos políticos e não
econômicos. Para explicar as crises posteriores a 1815, tinha também argumentos: um
ano ruim de escassez de cereais; queda dos preços dos grãos, por terem cessado de atuar
as causas que, segundo sua própria teoria, tinham de empurrar para cima os preços dos
cereais, no período da guerra e do isolamento em que a Inglaterra ficou do continente;
a transição da guerra para a paz e as “súbitas mudanças” daí oriundas “nos canais de
com ércio”. [...]. Os fenômenos históricos posteriores, em particular a quase regular
periodicidade das crises do mercado mundial, não permitiram aos sucessores de Ricar­
do a negação dos facts [fatos] ou a interpretação deles como casuais. (26.2/498 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 933 modif.])

O ponto de mutação entre esses dois períodos designa, ao mesmo tempo,


um ponto de culminação histórico, pois dali por diante não poderia mais haver
um desenvolvimento da teoria burguesa enquanto teoria clássica. A partir daí
a pergunta se no sistema de Ricardo foi dito sobre “a fisiologia interior” do
sistema capitalista tudo o que podia ser dito dentro do horizonte burguês é uma
pergunta abstrata. Com o retorno regular das crises, a natureza histórica do
processo de reprodução burguês inevitavelmente tinha de assomar à consciên­
cia, e a forma histórica do processo de reprodução se tornou visível na própria
forma desse processo. Desse modo, porém, também foi preciso reconhecer o
horizonte burguês como burguês; para Marx, um desenvolvimento ulterior da
ciência só era concebível ainda sob a clave socialista, como crítica dessa ciên­
cia, e a ciência burguesa só ainda como apologética consciente.
Como se apresenta para M arx a prim eira variante da teoria burguesa da
crise? M arx constata um a discrepância grotesca entre observação em pírica
e teoria abstrata. Não há como negar que ocorrem crises, mas tam pouco é
possível deixar de perceber a incapacidade dos teóricos para conceitualizar
esse fenômeno.

No tocante às crises, todos os que expõem o movimento real dos preços, ou todos
os experientes que escrevem em dados m om entos da crise, com razão ignoraram a
charlatanice fantasiada de teoria e acharam satisfatória a ideia de que o verdadeiro na
teoria — a saber, a impossibilidade de gluts o fm a rket [superabundância no mercado]
etc. — era errado na prática. Na realidade, a repetição regular das crises rebaixou a

192
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

conversa fiada de Say etc. a uma fraseologia. (26.2/500 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, pp. 935-6 modif.])

Ora, em vez de, como seria de esperar, passar a investigar em que consistem
os elementos que estouram nas catástrofes, a teoria se contenta com negar essa
catástrofe e, diante da recorrência em pírica desse fenômeno, ela insiste em
opinar que a “produção, se acatasse as lições dos compêndios, nunca chegaria
à crise” (26.2/501 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 936]). Portanto, as
crises de modo algum teriam o caráter da necessidade; ao contrário, sua ocor­
rência seria puro acaso.
Marx, por sua vez, não se contenta com constatar essa discrepância, mas
m ostra que a teoria burguesa se nutre de mal-entendidos elementares acerca
das implicações das determinidades formais de cunho econômico. Quando,
como já foi ressaltado anteriormente, a forma-dinheiro não é derivada da es­
trutura do processo de troca, mas vista como meio técnico para facilitar a
troca de produtos, borra-se também a diferença essencial entre a troca imedia­
ta de produtos e a circulação de mercadorias. Nesse caso, compra e venda não
são compreendidas como decurso de um processo constituído de duas fases
contrapostas, que formam de fato uma unidade, só que dali por diante uma
unidade na forma do ser-em-si: visto que ninguém pode vender sem que alguém
diferente compre, mas ninguém precisa comprar imediatamente por ter vendi­
do algo, a circulação rom pe as barreiras tem porais, locais e individuais da
troca de produtos, e as fases podem se tornar independentes uma da outra. E
elas então também aparecem como independentes, assim que a unidade intrín­
seca passar a vigorar; a separação das duas aparece... na crise.

A independência recíproca assumida pelas duas fases conjugadas e complementares


destrói-se à força. A crise, portanto, revela a unidade dos elementos que passaram a ficar
independentes uns dos outros. Não ocorreria crise se não existisse essa unidade interna
de elementos que parecem comportar-se com recíproca indiferença. (26.2/501 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 936])

Esses fatos escapam à percepção da economia burguesa. Visto que, para


ela, o dinheiro é meram ente “o meio pelo qual a troca é efetuada”, ela não
consegue fixar a compra e a venda em sua determinidade formal específica,
mas tem de analisá-las do ponto de vista da troca. Por essa via, porém, ela
falha de antemão em perceber a crise como forma de manifestação da unidade,
já que, para ela, a unidade só está acessível sob a forma da identidade imedia-

193
S O B R E /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L MA R. X

ta. É por isso que não pode haver crises para a economia burguesa. “Mas não,
diz o econom ista apologético. Por haver a unidade, não pode haver crise”
(26.2/501 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 936]).
Com isso, segundo Marx, já foi criticada, em seu cerne, toda a teoria bur­
guesa da crise. Se em relação ao seu próprio modo de proceder vale que a
problemática da crise sempre precisa ser retomada de maneira nova, se é pre­
ciso provar que as formas mais abstratas são recorrentes nas formas mais con­
cretas, inversamente também vale que a falha em perceber a mais abstrata das
formas da crise condiciona a impossibilidade de uma solução para o complexo
global. Marx enfatiza isso na discussão com Ricardo.

O ponto de vista (na verdade, de James Mill) que Ricardo tomou de empréstimo do
insípido Say (e a que voltaremos ao tratar dessa figura lastimável) de ser impossível
superprodução ou pelo menos no general glut o fth e market [pletora geral do mercado]
baseia-se na proposição de se trocarem produtos p o r produtos ou, como diz Mill, no
“equilíbrio metafísico entre vendedores e compradores”. (26.2/493 [ed. bras. Teorias da
mais-valia, vol. II, p. 929 modif.])

Compra e venda são apreendidas sob a determinação da troca e esse pri­


meiro desempenho falho se propaga. Demanda e oferta, que Marx só desen­
volve na análise da concorrência dos capitais, também são analisadas por esse
ponto de vista. “Ademais, está sem dúvida subjacente ao raciocínio de Ricardo
e a raciocínios semelhantes não só a relação entre compra e venda, mas também
a relação entre procura e oferta. [...] Como diz Mill, se compra é venda etc.,
então procura é oferta e oferta, procura” (26.2/505 [ed. bras. Teorias da mais-
-valia, vol. II, p. 940]). Isso implica uma interpretação completamente equivo­
cada do processo capitalista global. Visto que, como enfatiza Marx, uma abor­
dagem m ais concreta da relação entre dem anda e oferta não pode ser
dissociada da exposição exata da relação entre produção e consumo, mas esta,
sob as condições capitalistas, enquanto contradição entre o desenvolvimento
incessante das forças produtivas e a limitação do consumo — que é a base real
da superprodução — , constitui fundamento de todas as crises, esse segundo
passo da economia burguesa significa ignorar completamente a differentia spe-
cifica [diferença específica] do modo de produção capitalista. Sendo assim,
Marx consegue resumir em poucas frases o modo de proceder insuficiente por
ocasião da análise das crises:

194
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Para se demonstrar que a produção capitalista não pode conduzir a crises gerais,
negam-se todas as condições e determinações formais, todos os princípios e dijferentiae
specificae [diferenças específicas], em suma, a própria produção capitalista, e na reali­
dade se demonstra que, se o modo capitalista de produção, em vez de ser uma forma
especificamente desenvolvida, peculiar, da produção social, fosse um modo de produção
anterior a suas manifestações iniciais mais rudimentares, não existiriam os conflitos e
as contradições que o caracterizam nem, portanto, sua eclosão nas crises. [...] Recua-se
à era anterior à produção capitalista e mesmo à anterior à produção simples de mer­
cadorias, e nega-se o fenômeno mais intrincado da produção capitalista — a crise do
mercado mundial — , escam oteando-se a prim eira condição da produção capitalista,
a saber, que o produto tem de ser mercadoria, de se representar, por isso, em dinheiro
e passar pelo processo de metamorfose. (26.2/501-2 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, pp. 936-7])

A outra variante da teoria burguesa, da qual se falou anteriormente, é como


que o reverso da que acabamos de discutir. Pois, mesmo que a autonomização
das duas fases apareça na crise, a crise não pode ser explicada a partir da sim­
ples forma da separação entre compra e venda. A razão da realidade da crise
é, muito antes, a contradição entre produção e consumo sob condições capita­
listas, ou seja, entre o desenvolvimento das forças produtivas e o caráter limi­
tado do consumo. Essa separação essencial, característica do sistema capita­
lista, entre os dois m om entos, o da produção e o do consum o, que estão
inter-relacionados de modo igualmente essencial, tem de aparecer, e ela apa­
rece como aquilo que ela é, a saber, como autonomização da produção peran­
te o consumo, como superprodução. Nesse caso, a superprodução como con­
teúdo da crise, como conteúdo dessa forma, é conteúdo com fundamento.
Contudo, enquanto for tematizada apenas a separação entre compra e venda e
a crise for analisada nessa fase da exposição categorial, ainda não há conteúdo
com fundamento; nessa fase da exposição das categorias como exposição da
crise, o conteúdo é idêntico à forma, a forma é todo o conteúdo, ou trata-se da
forma mais abstrata possível da realidade da crise. A impossibilidade da venda
está dada com a separação entre compra e venda e, portanto, a possibilidade
da crise reside na própria separação; sem a separação não poderia haver crises
reais, assim como a crise real aparece precisamente também como consolida­
ção da venda perante a compra. Porém, nessa fase do desdobramento do siste­
ma global, ainda não podemos mostrar por que a crise possível se transforma
em crise real.

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Possibilidade geral e abstrata da crise significa apenas a.forma mais abstrata da


crise, sem conteúdo, sem o impulso pertinente a esse conteúdo. Compra e venda podem
separar-se. Constituem, portanto, crise em estado potencial e sua coincidência continua
sempre a ser, para a mercadoria, elemento crítico. Mas uma pode converter-se na outra
com fluidez. Assim, a forma mais abstrata da crise (e, por isso, a possibilidade formal
da crise) é a metamorfose da própria mercadoria, a qual, como movimento desenvolvido,
contém a contradição, encerrada na unidade da mercadoria, entre valor de troca e valor
de uso e ainda entre dinheiro e mercadoria. Mas o meio por que essa possibilidade de
crise se torna a crise não se contém nessa própria forma; esta implica apenas que existe
a forma para uma crise. (26.2/510 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 945])

Se — em contraposição ao aspecto da teoria burguesa anteriormente dis­


cutido — também for aceito na teoria o que é evidenciado pela observação
empírica, ou seja, se for aceito que, com a separação entre compra e venda,
existe também a possibilidade de haver crises, mas o teórico então não se põe
a buscar as razões que levam uma crise possível a se converter numa crise real,
a explicação permanece tautológica:

Aliás, não são mais felizes os economistas, como, por exemplo, John Stuart Mill,
que procuram explicar as crises com essas meras possibilidades da crise, encerradas na
metamorfose das mercadorias, como a dissociação entre compra e venda. Esses elemen­
tos que explicam a possibilidade da crise nem de longe elucidam sua realidade; deixam
de elucidar por que as fases do processo entram em conflito tal que sua unidade interna
só pode impor-se por meio de uma crise, de um processo violento. Aquela dissociação
aparece na crise; é a sua forma elementar. Explicar a crise por essa forma elementar
significa explicar a existência da crise, expressando-a na mais abstrata forma de sua
existência, isto é, explicar a crise pela crise. (26.2/502 [ed. bras. Teorias da mais-valia,
vol. II, p. 937])

Quanto ao resultado, essas teorias não se diferenciam das anteriormente


mencionadas. Quem se limita à possibilidade formal da crise e considera a sua
ocorrência como possível determina-a como realidade possível. Na tradição
filosófica, ser realidade possível é a determinação do... acaso:

Vê-se por aí a enorme fadaise [sandice] dos economistas que, depois de não terem
conseguido escamotear o fenômeno da superprodução e da crise, se contentam em dizer
que se encerra naquelas formas a possibilidade de sobrevirem crises; que, por conse­
guinte, é casual não ocorrerem elas, e assim sua própria ocorrência se evidencia mera
casualidade. (26.2/513 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 948])

196
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

7. A segunda de te r m in a ç ã o do dinheiro (continua çã o)

Retournons à nos moutons [retornemos à vaca fría], como diz Marx após
uma digressão no Rascunho*, e continuemos acompanhando a exposição das
categorias. Como vimos, o metabolismo social é mediado pela mudança de
forma da mercadoria. O valor de uso da m ercadoria só consegue se realizar
quando a “duplicação ideal se converte em duplicação real”, ou seja, quando
o seu preço é realizado, na medida em que a mercadoria se converte de uma
quantidade representada de ouro em ouro real. Nesse ato de mudança de forma,
o ouro se torna dinheiro, ele funciona como dinheiro. O valor da mercadoria
existe de modo imediato em forma natural e como tal ele pode ser exibido de
modo imediato nos valores de uso de todas as demais mercadorias que, por sua
vez, já estão relacionadas mediante a sua forma-preço com o modo de existen­
cia imediato do valor de troca. Na segunda parte da mudança de forma, realiza-
-se o valor de troca, sendo que só nesse momento a mercadoria se torna pro­
p riam en te v alor de uso para o seu p ro p rietário . Em co n seq u ên cia, a
forma-dinheiro da mercadoria é apenas uma forma evanescente; a função do
ouro consiste na mediação constantemente evanescente do metabolismo social;
nessa função, ele é meio de circulação. Essa é a form ulação mais abstrata
possível da “segunda determinação do dinheiro”, como consta no Rascunho.
Em si, ela contém toda a teoria do dinheiro como meio de circulação e a forma
monetária do dinheiro originária dessa função. Consideremos, primeiramente,
a explicitação dessa determinação no Rascunho.
A mudança de forma das mercadorias enquanto mediação do metabolismo
social consiste em duas fases, a saber, em vender e em comprar. Porém, a aná­
lise mais detida dessa mudança de forma mostra que ela se entrelaça com a
mudança de forma de duas outras mercadorias: na medida em que a mercado­
ria realiza o seu preço, realiza-se o valor de troca de outra mercadoria; na
medida em que ela realiza o seu próprio valor de troca, despindo a sua “crisá­
lida de ouro”, realiza-se, por sua vez, o preço de outra mercadoria. A sua pri­
meira mudança de forma coincide com a segunda mudança de forma de outra
mercadoria, a sua segunda mudança de forma coincide com a primeira mudança
de forma de uma terceira mercadoria. Enquanto durante a sua primeira mudan­
ça de forma ela se defronta com a forma-ouro de outra mercadoria (que comple­
tou a sua primeira mudança de forma), os papéis se invertem durante a segunda

* Cf. ed. bras. Grundrisse, p. 517. (N. do T.)

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SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

mudança de forma: agora ela se defronta com a terceira mercadoria, que inicia
a sua primeira mudança de forma, em sua forma-ouro — a ser suprimida.
Em contraposição à função anteriormente discutida, passa-se a usar ouro
real. Na primeira determinação do dinheiro, ouro em sua função de medida, o
ouro serve de “dinheiro representado ou ideal”. Para executar esse “processo
preparatório para a circulação real”, ou seja, proporcionar às mercadorias a
forma em que elas se apresentam umas para as outras, no processo de circu­
lação, como expressões qualitativamente iguais e só quantitativamente dife­
rentes da mesma substância (na medida em que estão expressas como quanti­
dade determinada de uma m atéria natural), não se utiliza nenhum grama de
ouro real. A estipulação de preços das m ercadorias ocorre sem a presença
imediata de ouro; “milhões de valores de mercadorias” podem ser “estimados
em ouro”, sem que se necessite do ouro, embora ele só se preste a essa função
por ser, ele próprio, produto “valioso” do trabalho; pois ele só é forma equiva­
lente universal nessa relação em processo, na qual todas as mercadorias ex­
pressam seu valor em ouro e este, por conseguinte, expressa, por sua vez, o seu
próprio valor em todas as outras mercadorias, que só a partir daí conseguem
aparecer como aquilo que são na condição de mercadorias. A própria mer-
cadoria-dinheiro, nesse caso, o ouro, precisa, portanto, possuir valor, ainda que
ela, na prim eira função, não precise estar fisicamente presente. Na segunda
determinação do dinheiro é diferente: nela, o ouro precisa estar presente —
como realizador dos preços — numa determinada quantidade que, por sua vez,
é condicionada pela grandeza do preço a ser realizado. “O próprio preço da
m ercadoria expressa nela, idealmente, que ela é a quantidade de uma certa
unidade natural (de peso) de ouro ou de prata, que é a matéria em que o dinheiro
está corporificado. No dinheiro, ou em seu preço realizado, confronta-se ago­
ra com a mercadoria uma quantidade efetiva dessa unidade” (42/140 [ed. bras.
Grundrisse, p. 156]).
Aspecto característico da estrutura do Rascunho de O capital é que Marx
se limita a essa indicação, da qual, contudo, é possível derivar sem qualquer
esforço tanto as leis da rotação do dinheiro como a crítica à teoria burguesa da
quantidade. As implicações só seriam desdobradas em Para a crítica e em O
capital. Renunciaremos aqui a uma reprodução detalhada das conclusões. E
óbvio que a teoria marxiana do valor só pode chegar ao resultado de que a
massa do dinheiro que funciona como meio de circulação é condicionada pela
soma de preços das mercadorias, por um lado, e, por outro, pela quantidade
média de rotações da mesma peça de dinheiro. Apontaremos apenas para dois
aspectos.

198
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

O primeiro é essencial para o curso do desenvolvimento posterior. Pois se


a quantidade circulante de ouro depende da soma dos preços das mercadorias
e da velocidade da circulação, propõe-se o seguinte problema: a massa do meio
de circulação metálico tem de ser passível de contração e expansão; em suma,
“que, para responder à necessidade do processo de circulação, o ouro, na qua­
lidade de meio de circulação, ora deve entrar no processo ora ser excluído dele”
(13/87 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 141 modif.]).
O modo como o processo de circulação realiza essa condição será mostrado
na exposição da terceira determinação do dinheiro.
O segundo aspecto diz respeito à crítica da teoria burguesa. A indicação de
que o ouro, enquanto realizador dos preços, deverá estar disponível numa quan­
tidade determinada pela grandeza dos preços a serem realizados implica uma
crítica enérgica da teoria da quantidade, a qual, como Marx explicita em Para
a crítica, foi mais ou menos insinuada primeiramente por economistas italianos
do século XVII e desenvolvida de modo mais nítido por Montesquieu e Hume.
Contudo, a crítica m arxiana não se entende como contraposição abstrata a
esses teoremas (o próprio Marx constata, muito antes, uma contraposição des­
se tipo entre representantes dessa teoria e defensores do sistema monetário),
mas o seu método consiste em descrever a rotação do dinheiro como form a de
manifestação do processo de circulação das mercadorias, mostrando, portanto,
como se constitui a aparência empírica, em meio à qual se move a teoria bur­
guesa. Trata-se, nesse caso, de um a forma mais desenvolvida da crítica que
acusa a teoria burguesa de acolher as categorias exteriormente a partir da em-
piria. Queremos delinear em poucas frases essa linha de pensamento. Como
sabemos, a dupla mudança de forma da mercadoria faz a mediação do metabo­
lismo social, durante o qual a mudança de forma de uma mercadoria se entre­
laça com a mudança de forma de duas outras mercadorias. Porém, não é assim
que isso se apresenta ao observador. Visto que a primeira mudança de forma
de uma m ercadoria A coincide com a segunda m udança de form a de uma
mercadoria B, o “primeiro passo [...] que a mercadoria dá na circulação é [...],
ao mesmo tempo, o seu último passo”. Assim que efetuou a sua primeira m u­
dança de forma, ela cai da circulação para o consumo. A mercadoria inicia a
segunda parte de sua metamorfose com sua crisalidação em ouro, na forma de
ouro, de modo que a sua m etam orfose total se apresenta como movimento
exterior de uma peça de ouro que troca duas vezes de lugar com duas merca­
dorias diferentes.

199
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E IT O D E CA P IT A L E M K A R L M A R X

Que essa forma unilateral do movimento do dinheiro nasce do movimento formal


bilateral da mercadoria é algo que permanece oculto. A natureza da própria circulação
das mercadorias gera a aparência contrária. A primeira metamorfose da mercadoria é
visível não somente como movimento do dinheiro, mas como seu próprio movimento;
sua segunda metamorfose, no entanto, só é visível como movimento do dinheiro. (23/129
[ed. bras. O capital, vol. I, p. 188])

A mesma peça de dinheiro vai se deslocando, sempre na direção contrária


à das mercadorias movidas. Ela roda, passa de uma mão para a outra, percor­
rendo uma circulação maior ou menor; a continuidade do movimento da cir­
culação situa-se totalmente do lado do dinheiro, e o movimento inteiro parece
partir do dinheiro.

O resultado da circulação de mercadorias, a substituição de um a m ercadoria por


outra, não parece ser mediado por sua própria mudança de forma, mas pela função do
dinheiro como meio de circulação, que faz circular mercadorias que, por si mesmas, são
imóveis, transferindo-as das mãos em que elas são não valores de uso para as mãos em
que elas são valores de uso e, nesse processo, movendo-se sempre em sentido contrário
ao seu próprio curso. O dinheiro remove constantemente as mercadorias da esfera da
circulação, assumindo seus lugares e, assim, distanciando-se de seu próprio ponto de
partida. Por essa razão, embora o movimento do dinheiro seja apenas a expressão da
circulação de mercadorias, é esta última que, ao contrário, aparece simplesmente como
resultado do movimento do dinheiro. (23/130 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 189])

E dessa função do dinheiro que deve ser derivada a sua figura monetária.
No Rascunho de O capital, isso é feito em poucas frases. Ali Marx enfatiza
que a finalidade desse ato é o metabolismo social, e que o preço da mercadoria
só é realizado no dinheiro para, com o dinheiro, realizar o preço da segunda
mercadoria e assim adquiri-la em troca da primeira. “Depois que o preço da
prim eira m ercadoria é realizado, o objetivo daquele que obteve agora o seu
preço em dinheiro não é obter o preço da segunda mercadoria, mas ele paga o
seu preço para obter a mercadoria. No fundo, o dinheiro serviu-lhe, portanto,
para trocar a primeira mercadoria pela segunda” (42/138 [ed. bras. Grundrisse,
p. 154]). Porque a efetiva realização do preço de uma mercadoria é outra merca­
doria, visto que só após a segunda mudança de forma a mercadoria realmente
se tom a valor de uso para o seu proprietário, porque o valor de uso só existe
para ele no valor de uso da outra mercadoria. O ouro é realização do preço
somente quando se considera a prim eira parte da mudança global de forma,

200
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

mas na totalidade dos seus momentos a realização é apenas evanescente. Por­


tanto, visto que a própria realização do preço evanesce, ele é evanescente en­
quanto realização, ou “sua substância consiste unicamente no fato de que o
dinheiro aparece continuamente como tal fugacidade, como esse portador des­
sa mediação” (42/138 [ed. bras. Grundrisse, p. 155]). No interior da metamor­
fose global, ele serve, portanto, meramente como meio para que as mercado­
rias sejam trocadas por preços iguais, ele é representante do preço perante
todas as mercadorias, ele apresenta o preço, é “representante objetivamente
presente do preço, logo, de si mesmo” (42/141 [ed. bras. Grundrisse, p. 157]).
Como representante de si mesmo, ele é, por conseguinte, sinal de si mesmo em
sua materialidade imediata, e

[...] segue-se daí que o dinheiro, como ouro e prata, na condição exclusiva de meio de
circulação, meio de troca, pode ser substituído por qualquer outro signo que expresse
um quantum determinado de sua unidade e, dessa maneira, o dinheiro simbólico pode
substituir o dinheiro real, porque o próprio dinheiro material, como simples meio de
troca, é simbólico. (42/141-2 [ed. bras. Grundrisse, p. 158])

Em Para a crítica, esse processo pelo qual a existência material do dinhei­


ro é absorvida pela sua existência funcional é explicitado com mais detalhes.
Vimos, por ocasião da análise da estipulação de preços, que o ouro serve não
só como medida dos valores, mas também como padrão dos preços. O preço
é a forma com que as mercadorias se apresentam uma para outra no interior
do processo de circulação enquanto valores de troca, e elas fazem isso na
medida em que são inter-relacionadas como grandezas de mesma denomina­
ção medidas em ouro. Enquanto preços, elas são quantidades de ouro de um
determinado peso, cujo padrão se encontra dado nas medidas universais de
peso dos m etais. Ao ser fixado como unidade de peso, o ouro serve como
padrão dos preços. Porém, visto que a determ inação m esma do padrão de
medida é

[...] puramente convencional, mas [...] necessita de validade universal, ele é, por fim,
regulado por lei. Uma porção determinada de peso de um metal precioso, por exemplo,
1 onça de ouro, é oficialmente dividida em partes alíquotas, que a lei batiza com nomes
tais como libra, táler etc. Essa parte alíquota, que então passa a valer como a verdadeira
unidade de medida do dinheiro, é subdividida em outras partes alíquotas que a lei batiza
com outros nomes, como xelim, penny etc. (23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 174-5])

201
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C EITO DE C APITAL EM K A R L M A R X

Os preços passam, portanto, a ser expressos em denominações monetárias.


“Assim, as mercadorias declaram, em suas denominações monetárias, o quan­
to elas valem, e o dinheiro serve como unidade de conta na medida em que vale
para fixar uma coisa como valor e, com isso, expressá-la na forma-dinheiro”
(23/115 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 175]). Porém, assim como essa duplicação
ideal é apenas antecipação da duplicação real, assim como o processo da esti­
pulação de preços é apenas processo preparatório para a circulação real, essa
prim eira operação do governo, a saber, a determ inação legal do padrão de
medida e estipulação das denominações, por meio da qual elas são simultanea­
mente determinadas como específicas de uma nação, é apenas um processo
seguido imediatamente de um segundo: o ouro é transformado em moeda.

Em sua função de meio de circulação, o ouro adquire forma própria, converte-se em


moeda. Para que a sua rotação não se detenha por dificuldades técnicas, o ouro é cunha­
do conforme o padrão de moeda de conta. As peças de ouro, cuja inscrição e efígie dizem
que contêm as partes de peso de ouro representadas pelas denominações contábeis da
moeda libra esterlina, xelim etc., são moedas. Do mesmo modo que a determinação do
preço monetário, também a atividade técnica de cunhagem das moedas cabe ao Estado.
A exemplo do que ocorre com o dinheiro enquanto moeda de conta, também o dinheiro
enquanto moeda adquire um caráter local e político, fala diferentes idiomas e veste
distintos uniformes nacionais. A esfera na qual o dinheiro circula como moeda é uma
esfera interior da circulação das mercadorias circunscrita pelas fronteiras de uma comu­
nidade, e que se separa da circulação geral do mundo das mercadorias. (13/87 [ed. bras.
Contribuição à crítica da economia política, pp. 141-2 modif.] )

O ouro em barras e o ouro em forma de moedas se diferenciam, num primei­


ro momento, apenas por sua figura exterior, justam ente por pesarem a mesma
coisa. Contudo, quando o ouro é lançado na circulação e funciona como meio
de circulação, ele é tomado por um processo que Marx descreve como ideali­
zação. Em primeiro lugar, Marx menciona a substituição da massa pela velo­
cidade, ou seja, apenas outra formulação para a conexão entre a soma de preços
a ser realizada e a massa de meios de circulação que se necessita para isso.
Quanto mais rapidamente uma peça de ouro circular, tanto menor se torna a
quantidade de dinheiro circulante requerido. “A rapidez da rotação do ouro
pode, assim, suprir a sua quantidade, ou seja, a existência do dinheiro no pro­
cesso de circulação não é somente determinada por sua existência como equi­
valente ao lado da mercadoria, mas também por sua existência no movimento
da metamorfose das mercadorias" (13/85-6 [ed. bras. Contribuição à crítica da

202
A E X PO SI ÇÃ O CATEGORIAL

economia política, pp. 138-9 modif.]). Assim sendo, a existência do ouro como
meio de circulação não é imediatamente idêntica à sua existência real como pe­
ça de ouro de determinado peso; porém, da sua função como meio de circula­
ção origina-se ainda uma existência ideal. “Pode-se falar dele como do general
que, graças à sua oportuna presença em dez pontos distintos em um dia de
batalha, substitui dez generais, sem deixar de ser, em cada um desses dez pon­
tos distintos, sempre o mesmo general” (13/88 [ed. bras. Contribuição à crítica
da economia política, p. 143 modif.]). Contudo, enquanto o processo recém-
-mencionado de idealização diz respeito tão somente à existência funcional da
moeda de ouro no interior do processo de circulação, queremos passar agora
para uma forma de idealização que se apossa da própria peça de dinheiro in­
dividual, tratando-se aqui, por assim dizer, da exposição genética daquilo que
Marx, no Rascunho, descreve sucintamente como substituição do dinheiro real
por dinheiro simbólico. “O atrito de todas as maneiras, pelas mãos, nas bolsas,
bolsos, porta-níqueis, cinturões, caixas e arcas, desgasta a moeda, um átomo
de ouro aqui, outro ali, e por causa desse desgaste perde, em sua carreira pelo
mundo, cada vez mais do seu conteúdo. Porque a usamos, a moeda se desgas­
ta” (13/88 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 143]). Com
o tempo a moeda representa mais conteúdo metálico do que ela possui, mas,
não obstante, vale em cada compra ou venda pela quantidade de ouro original.
A sua existência como moeda se dissocia da sua existência como ouro, a peça
de ouro, enquanto pseudo-ouro, continua a preencher a função da peça de ouro
legítima. “Enquanto outros seres perdem seu idealismo em seu atrito com o
mundo exterior, a moeda idealiza-se pela prática, sendo o seu corpo de prata
ou de ouro transform ado em simples existência aparente” (13/89 [ed. bras.
Contribuição à crítica da economia política, p. 144 modif.]). Assim, o ouro
cunhado em m oeda se apresenta como algo contraditório em si mesmo, que
tende, por assim dizer, para a sua própria abolição. Porque esse processo de
idealização, essa dissociação entre conteúdo nominal e conteúdo real, não
poderia continuar interminavelmente sem que a existência aparente do ouro
em sua função de meio de circulação entrasse em conflito com a sua existência
real. Pois, se o processo de em agrecim ento das moedas chegasse a ponto
de provocar um aumento do preço de mercado do ouro acima do seu preço
monetário,

[...] as denom inações m onetárias das moedas, em bora se conservassem as mesmas,


designariam dali por diante uma quantidade de ouro menor. Em outras palavras: o padrão
de moeda mudaria e o ouro, daqui em diante, seria cunhado de acordo com esse padrão.

203
SO B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO DE C APITAL E M K A R L M A R X

Por sua idealização como meio de circulação, o ouro teria mudado, em consequência,
as relações legalmente estabelecidas nas quais figurava como padrão de preços. Ao re­
petir-se a mesma revolução ao cabo de certo tempo, o ouro em sua função de padrão de
preços e como meio de circulação ficaria submetido a uma mudança contínua, de tal
modo que a mudança em uma das formas traria como consequência a da outra e vice­
versa. (13/90 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 145 modif.])

Como expõe Marx, é fácil mostrar que esse processo, acelerado pela práti­
ca da desvalorização fraudulenta da moeda adotada por governos e aventurei­
ros privados, de fato transcorreu nesses termos. No entanto, isso não faz parte
do desenvolvimento rigorosam ente categorial, mas diz respeito às relações
empíricas. Em nosso contexto, é essencial que o ouro cunhado em moeda de
fato está submetido, na circulação, a esse processo de separação entre existên­
cia aparente e existência real em virtude de sua constituição natural e que esse
processo avança até a dissociação absoluta. Pois, na medida em que a moeda
de ouro desgastada na circulação vale como quantidade original de ouro, na
medida em que ela, enquanto pseudo-ouro, preenche a função da peça de ouro
legítima, ela própria já foi

[...] mais ou menos transformada em um simples sinal ou símbolo de sua substância.


Mas nenhuma coisa pode ser o seu próprio símbolo. Uvas pintadas não são símbolos de
uvas reais, mas de simulacros de uvas. E menos ainda pode ser um sovereign [soberano]
de peso incompleto símbolo de um soberano de peso cabal, do mesmo modo que um
cavalo magro não pode ser o símbolo de um cavalo gordo. Já que o ouro se converte em
símbolo de si mesmo, mas não pode servir como tal, ele veste, nos setores da circulação
onde se gasta mais depressa, isto é, naqueles em que as compras e vendas se renovam
constantemente nas mínimas proporções, uma existência simbólica de prata ou de cobre,
separada de sua existência como ouro. (13/91 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco­
nomia política, pp. 146-7 modif.])

Aquela parte da massa total do dinheiro-ouro circulante que funciona como


meio de circulação no âmbito do desgaste rápido é substituída por fichas de
prata ou de cobre, meios de circulação subsidiários que representam determi­
nadas frações da moeda de ouro no interior da circulação. Como representan­
tes do ouro em sua função de meio de circulação, o seu próprio conteúdo
metálico não é determinado pela sua relação de valor com o ouro, mas é fixado
arbitrariamente por lei. Desse modo, porém, o processo da separação ainda não
foi concluído. Como representantes de determinado peso metálico, eles próprios

204
/1 E X P O S I Ç Ã O CATEO O RIAL

ainda estão submetidos ao processo de idealização ao qual devem seu surgi­


mento como meios de circulação subsidiários. A consequência seria que tam ­
bém eles teriam de ser novamente substituídos por outro dinheiro simbólico,
como, por exemplo, ferro, e essa representação de dinheiro simbólico por ou­
tro dinheiro simbólico continuaria interminavelmente.

Por isso, em todos os países em que a circulação é intensa, a própria rotação do di­
nheiro exige que o caráter monetário das fichas de prata e de cobre se torne independen­
te do grau de sua perda metálica. Vem à tona, desse modo, o que residia na natureza do
processo, a saber, que elas são símbolos da moeda de ouro, não por serem símbolos
feitos de prata ou cobre, não por terem um valor, mas precisamente porque não o têm.
(13/93 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 149 modif.])

Esse processo de dissociação entre a existência monetária do ouro e a subs­


tância do ouro só estará realmente concluído quando coisas relativamente sem
valor, como papel, passarem a funcionar como símbolos do dinheiro-ouro. Do
mesmo modo como a parte da m assa de dinheiro-ouro que teve de circular
como moeda simbólica [Scheidemünze] pode ser substituída por fichas de pra­
ta e cobre, a porção de ouro que é absorvida como moeda pela esfera da circu­
lação interna pode ser substituída por marcos sem valor até o nível abaixo do
qual a massa das moedas circulantes por experiência não desce.

A diferença, insignificante em sua origem, entre o conteúdo nominal e o metálico


da moeda metálica pode, pois, evoluir até chegar a uma cisão absoluta. A denominação
monetária do dinheiro desprende-se da substância e existe fora daquela em bilhetes de
papel sem valor. Da mesma maneira que o valor de troca das mercadorias se cristaliza
em moeda de ouro pelo processo de sua troca, a moeda de ouro sublima-se em sua ro­
tação até chegar a ser o seu próprio símbolo, primeiramente na forma de moedas de ouro
desgastadas, depois na forma de moedas metálicas subsidiárias e, enfim, na forma de
fichas sem valor, de papel, de simples sinal cle valor. (13/93-4 [ed. bras. Contribuição à
crítica da economia política, pp. 149-50 modif.])

No final desse desenvolvimento, evidencia-se, portanto, o que desde sempre


já estava implantado na questão: o papel substitui o ouro, mas substitui o ouro
somente na medida em que o ouro material é apenas símbolo de seu próprio
valor no processo de circulação. O ouro é a realidade do preço; porém, visto
que o metabolismo social é finalidade e só é mediado pela dupla mudança de
forma das mercadorias que aparece na forma da rotação do dinheiro, a reali­

205
S O B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

dade do preço, a forma-dinheiro da mercadoria, constitui apenas uma existên­


cia evanescente. Embora o próprio ouro seja a realidade do preço, ele apenas
o representa na medida em que serve para que as mercadorias sejam trocadas
por preços iguais. Como meio de circulação ele desde sempre já é símbolo de
si próprio. Deve-se atentar para isso por ocasião do exame mais detido do
símbolo de valor e das regularidades econômicas vinculadas com a sua exis­
tência. Assim como o ouro, enquanto meio de circulação, é apenas o símbolo
objetivamente existente de si próprio enquanto realidade do preço, assim a
existência monetária deste dissociada do ouro material, o papel que funciona
como moeda, é símbolo do ouro. Portanto, o papel que traz impressa a deno­
minação monetária de modo algum é símbolo de valor no sentido de que re­
presenta imediatamente o valor da mercadoria, ainda que pareça assim. Essa
aparência — falsa — deve-se à circunstância de que o valor de troca da mer­
cadoria aparece apenas como pensado ou reificadamente representado, mas
não possui qualquer realidade autônoma independentemente das próprias mer­
cadorias. Por essa razão, o papel só é símbolo do valor na medida em que as
mercadorias são pressupostas com um preço determinado, ou seja, o seu valor
de antemão já foi manifestado na forma do preço. O ouro, de qualquer modo,
já cumpriu sua função como medida. Assim sendo, o símbolo de valor repre­
senta, muito antes, perante as mercadorias, a realidade do seu preço.

O sinal de valor não é, diretamente, mais que sinal de preço, ou seja, sinal de ouro,
e só indiretamente é sinal do valor das mercadorias. O ouro não vendeu a sua sombra,
como Peter Schlemihl*, mas compra com a sua sombra. Desse modo, o sinal de valor
tem ação efetiva enquanto representa, no interior do processo, o preço de uma merca­
doria em relação à outra, ou seja, porque representa ouro em relação a cada possuidor
de mercadorias. Um objeto determinado, relativamente sem valor, um pedaço de couro,
de papel etc., converte-se primeiro, por rotina, em sinal do material monetário, mas não
se sustém como tal senão porque sua existência simbólica está garantida pelo consenti­
mento geral dos possuidores de mercadorias, isto é, porque adquire uma existência legal
por convenção e, portanto, curso forçado. O papel-moeda do Estado de curso forçado é
a forma acabada do sinal de valor e a única forma de papel-moeda que procede imedia­
tamente da circulação metálica ou da circulação simples das mercadorias. (13/95 [ed.
bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 151 modif.])

* Cf. Adelbert von Chamisso, A história maravilhosa de Peter Schlemihl. Trad. M arcus Vinícius
Mazzari. 2. ed. São Paulo, Estação Liberdade, 2003. (N. do T.)

206
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Se o símbolo de valor é derivado desse modo da estrutura do ouro cunhado


em moeda, as leis econômicas decorrem como que automaticamente. Assim
como da teoria do valor e da natureza da mudança de forma necessariamente
dupla da mercadoria enquanto mediação do metabolismo social decorre que a
quantidade do ouro circulante depende da soma de preços das mercadorias e
da velocidade de rotação do dinheiro, ou, formulado de outro modo: assim
como, dados os valores de troca das mercadorias e a velocidade média de suas
metamorfoses, a quantidade do ouro circulante depende do seu próprio valor,
assim também do desenvolvimento do símbolo de valor enquanto símbolo do
preço ou símbolo-ouro, ou seja, do fato de o papel impresso representar o ouro
no interior do processo de circulação na medida em que ele igualmente só fun­
ciona como símbolo de si mesmo, resulta que o valor do dinheiro-papel circu­
lante depende exclusivamente de sua própria quantidade.

8. A terceira det er m in a ç ã o do dinheiro

O desenvolvimento da terceira determ inação do dinheiro nos leva a um


ponto de transição decisivo na exposição das categorias. Especialm ente no
Rascunho, Marx aponta explicitamente para isso e confere, na exposição ca-
tegorial, um relevo consideravelmente maior do que em O capital ao fato de
que essa terceira determinação do dinheiro — a unidade das duas anterior­
mente explicitadas — deve ser compreendida como urna forma em que “já está
contida de maneira latente sua determinação como capital” (42/145 [ed. bras.
Grundrisse, p. 162]). Na exposição rigorosa das categorias, essa determinação
caracteriza, por isso, o ponto de transição entre a esfera da circulação simples
e o “processo que está por trás déla [...] do capital industrial” [U/68], E o pon­
to de transição para a decifração sistemática de seu ser imediato como aparên­
cia. Ao mesmo tempo, esse ponto de transição também se apresenta como
ponto de mutação decisivo no desenvolvimento histórico. As duas primeiras
determinações do dinheiro designam diferentes fases do desenvolvimento da
troca de mercadorias entre sistemas comunitários natural-espontáneos — “o
dinheiro aparecendo como medida (por isso, por exemplo, os bois em Homero)
mais cedo do que como meio de troca” (42/105 [ed. bras. Grundrisse, p. 120]),
consta no Rascunho', essa afirmação se aplica também para a terceira determi­
nação; correspondendo ao valor dessa determ inação dentro do sistem a das
categorias, ela sinaliza, no palco histórico, a incipiente decadência desse sis­
tema comunitário natural-espontáneo.

207
SO B R E A E ST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

Entre os romanos, gregos etc., o dinheiro se manifesta, de início, de modo ingênuo


em suas duas primeiras determinações, medida e meio de circulação, mas pouco desen­
volvido em ambas [...] de maneira repentina, em uma certa etapa de seu desenvolvimen­
to econômico, o dinheiro manifesta-se necessariamente em sua terceira determinação,
e quanto mais se desenvolve naquela determinação, maior o declínio de sua comunida­
de. (42/150 [ed. bras. Grundrisse, p. 166])

O que significa a terceira determ inação do dinheiro enquanto unidade


das duas primeiras determinações? Marx cita Sismondi com aprovação, que
repetidamente chega perto das concepções marxianas mediante formulações
de cunho especulativo: “O comércio separou a sombra do corpo e introduziu
a possibilidade de possuí-los separadamente” (42/146 [ed. bras. Grundrisse,
p. 163]). O valor de troca adquire existência autônoma ao lado da circulação
da mercadoria, mas essa autonomia é apenas, como diz Marx, o seu próprio
processo. Se não houvesse relação com a circulação, o valor de troca autono­
mizado não seria dinheiro na terceira determ inação, mas simples objeto da
natureza; ouro e prata. “A sua própria autonomia não é a supressão de sua re­
lação com a circulação, mas relação negativa com ela” (42/146 [ed. bras. Grun­
drisse, p. 162]). Por essa razão, deve-se atentar também no exame histórico
para o fato de que as duas primeiras determinações estão plenamente desen­
volvidas. Marx dá a entender que o dinheiro pode muito bem aparecer histori­
camente também em sua terceira determinação antes de existir nas duas ante­
riores, do mesmo modo que, em sua segunda determinação, ele pode entrar
historicamente em cena antes da primeira. Porém, assim como no último caso
ele existiria somente como “mercadoria privilegiada”, sem o desenvolvimento
das duas primeiras determinações ele justam ente não seria a existência autô­
noma do valor de troca, mas “acumulação de ouro e prata, não de dinheiro”
(42/145 [ed. bras. Grundrisse, p. 162]). Porém, o fa to de ouro e prata em sua
forma natural imediata poderem ser confundidos com dinheiro enquanto di­
nheiro não só indica a problemática peculiar associada a essa terceira determi­
nação, mas constitui ao mesmo tempo o motor do desenvolvimento subsequen­
te que se efetua — enquanto processo de constituição similar ao natural do
sujeito burguês moderno — através das mentes e pelas costas das pessoas:

No entanto, é inerente à determinação aqui desenvolvida que a ilusão sobre a sua


natureza, i.e., a fixação de uma de suas determinações em sua abstração e com a cegueira
diante das contradições nela própria contidas, confere-lhe esse significado efetivamente
mágico à revelia dos indivíduos. Na verdade, em virtude dessa determ inação em si

208
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

mesma contraditória e, por isso, ilusória, o dinheiro devém um instrumento tão extraor­
dinário no desenvolvimento efetivo das forças produtivas sociais. (42/152 [ed. bras.
Grundrisse, p. 168])

Passemos a analisar ambas as coisas, a terceira determinação do dinheiro


e o desenvolvimento subsequente que decorre da natureza peculiar do valor de
troca autonomizado.
A primeira função é cumprida pelo ouro, como sabemos, apenas como ouro
representado ou ideal. Ele serve meram ente para fornecer às mercadorias o
material da sua expressão de valor, para representá-las umas diante das outras
como qualitativamente iguais e só quantitativamente diferentes. Esse processo
implica uma distorção cujo embrião Marx descreve em O capital como segun­
da peculiaridade da form a equivalente: a distorção do concreto-sensível em
forma de manifestação do universal-abstrato: “No interior da relação de valor
e da expressão de valor nela contida, o abstratamente universal não é tido como
qualidade do concreto, real-sensível, mas inversamente o concreto-sensível é
tido como simples forma de manifestação e forma de realização do universal-
-abstrato” (II.5/634). Essa distorção, que ele decifra como origem de toda dis­
torção já nos Manuscritos económico-filosóficos, está contida de modo mais
concreto na forma-preço: “Mas, de fato, na determinação dos preços já existe
aquilo que é posto na troca por dinheiro: que não é mais o dinheiro que repre­
senta a mercadoria, mas a mercadoria, o dinheiro” (42/129 [ed. bras. Grundrisse,
p. 146]). Cada mercadoria específica é, por isso, enquanto mercadoria especí­
fica, na medida em que tem um preço, apenas a representação incompleta do
dinheiro; “expressa ela mesma tão somente um determinado quantum de di­
nheiro em uma forma incompleta” (42/147 [ed. bras. Grundrisse, p. 164]), in­
completa porque ela tem de ser primeiro lançada na circulação para ser rea­
lizada, e precisamente por causa de sua peculiaridade permanece casual se ela
poderá ser realizada ou não. Pois justam ente na sua forma natural específica
ela não é imediatamente a forma universal da riqueza. Porém, mediante a sua
forma-preço ela aponta, ao mesmo tempo, para a forma completa da quantidade
determinada que ela, enquanto mercadoria que tem um preço, representa só de
forma incompleta: para o preço realizado. Quando se analisa a mudança global
de forma da mercadoria, essa realização do preço só existe como realização
evanescente, a m ercadoria só assume a forma-dinheiro para logo em seguida
voltar a despir-se dela. Mas se nos detivermos na forma do preço realizado, se
analisarmos mais detidamente o resultado da primeira metamorfose, evidencia-
-se o seguinte: visto que todas as m ercadorias, na m edida em que têm um

209
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

preço, são apenas ouro representado, apenas representantes do ouro (do ouro
que, dentro da esfera de circulação, é a encarnação imediata do universal-abs-
trato), e, por essa razão, “não fazem mais que representar a existência indepen­
dente do valor de troca, do trabalho social geral, da riqueza abstrata, o ouro é
a existência material da riqueza abstrata” (13/102 [ed. bras. Contribuição à
crítica da economia política, p. 160 modif.]). Enquanto preço realizado, a mer­
cadoria é a forma universal da riqueza em sua existência imediata.
Se, em contraposição, analisarmos a m ercadoria individual do ponto de
vista da riqueza material (não como mercadoria que tem um preço, pois isso
é a prim eira determinação, mas como valor de uso, que só se torna propria­
mente valor de uso m ediante a m udança de forma da m ercadoria, ou seja,
tendo em vista a segunda determinação), ela constitui, por sua relação com
uma necessidade específica, apenas um momento da riqueza social, apenas um
aspecto isolado da riqueza. Como dinheiro, em contraposição, a m ercadoria
satisfaz a qualquer necessidade,

[...] uma vez que pode ser trocado pelo objeto de qualquer necessidade, pode ser troca­
do de modo totalmente indiferente por qualquer particularidade. A mercadoria possui
essa propriedade unicamente mediada pelo dinheiro. O dinheiro a possui diretamente
frente a todas as mercadorias e, por isso, frente ao inteiro mundo da riqueza, é riqueza
enquanto tal. (42/147 [ed. bras. Grundrisse, p. 164])

O ouro representa em seu valor de uso os valores de uso de todas as mer­


cadorias; ele é “o representante corporal da riqueza material [...] o compên­
dio da riqueza social” (13/103 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia
política, p. 161]).
Se reunirmos os dois aspectos, o ouro se apresenta em sua corporalidade
imediata como identidade de forma e conteúdo da riqueza social, sendo por
sua forma a encarnação imediata do trabalho universal e, por seu conteúdo, o
suprassumo de todos os trabalhos reais: “No dinheiro, a riqueza universal é
não apenas uma forma, mas simultaneamente o próprio conteúdo. O conceito
de riqueza está, por assim dizer, realizado, individualizado, em um objeto
particular” (42/147 [ed. bras. Grundrisse, p. 164]).
Nesse contexto, é preciso lembrar o modo admirável com que o jovem Marx
não só antecipou o essencial dessa terceira determinação, mas igualmente mos­
trou como esta se desenvolve necessariamente a partir da distorção primária e
como então o desenvolvimento subsequente resulta da estrutura dessa terceira
determinação. Quando ele fala do dinheiro como conceito existente e atuante

210
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

do valor de todas as coisas, ele tem em mente a riqueza universal que existe
como objeto individual e palpável, que, nessa figura, deve ser derivado da es­
trutura da própria mercadoria. Ele diz a mesma coisa, só que em outras palavras.

Por que a propriedade privada tem de avançar para o sistema do dinheirol Porque o
ser humano, enquanto ser sociável, tem de avançar para a troca e porque a troca — sob
o pressuposto da propriedade privada — tem de avançar para o valor. Pois o movimen­
to mediador do ser humano trocador não é um movimento social, não é um movimento
humano, não é uma relação humana, ele é a relação abstrata entre propriedade privada
e propriedade privada, e essa relação abstrata é o valor, cuja existência real enquanto
valor é primeiramente o dinheiro. Pelo fato de os seres humano trocadores não se com­
portarem uns com os outros como seres humanos, a coisa perde o sentido da proprieda­
de humana, da propriedade pessoal, A relação social entre propriedade privada e pro­
priedade privada já é um a relação em que a propriedade privada foi estranhada de si
mesma. A existência existente para si dessa relação, o dinheiro, é, por conseguinte, a
exteriorização da propriedade privada, a abstração de sua natureza pessoal, específica.
(40/446-7 [excertos de James Mili])

Essa linha de pensamento resume a estrutura básica da argumentação mar-


xiana: a duplicação repousa sobre o fundamento mundano autocontraditório;
só porque o conflito do ser humano com a natureza acontece de forma distor­
cida; só porque a vida humana genérica se torna no meio da vida individual, a
comunidade humana pode e deve aparecer na forma do estranhamento. Con­
tudo, essencial nesse contexto é a análise do dinheiro na terceira determinação
e o desenvolvimento subsequente que daí se deriva. Pois Marx não só expõe
que a “existência metálica do dinheiro é apenas a expressão sensível oficial
da alma do dinheiro, engastada em todos os elos das produções e dos movi­
mentos da sociedade burguesa” (40/447 [excertos de James Mili]), mas tenta,
ao mesmo tempo, na reprodução — todavia apenas indicada — da transição
da primeira e da segunda determinações para a terceira, desenvolver a viravol-
ta decisiva na estrutura de representação associada a essa transição:

E muito bom e define bem a essência da coisa quando Mill caracteriza o dinheiro
como o mediador da troca. A essência do dinheiro não é primeiramente o fato de nele
ser alienada a propriedade, mas de nele ser estranhada a atividade mediadora ou
o movimento mediador, o ato social, humano, pelo qual se complementam reciproca­
mente os produtos do ser humano, e tornar-se a qualidade de uma coisa material fora
do ser humano, a saber, do dinheiro. Ao alienar essa atividade mediadora mesma, o ser

211
S O B R E /1 E S T R U T U R A LÓ G I C A D O C O N C E IT O D E C A P IT A L E M K A R L M A R X

humano atua aqui apenas como ser humano que perdeu a si próprio, como ser humano
desumanizado; a relação até mesmo das coisas, a operação humana com elas, torna-se
a operação de uma entidade fora do ser humano e acima do ser humano. Por meio des­
se mediador estranho — em vez de o próprio ser humano ser o mediador para o ser
humano — , o ser humano encara a sua vontade, a sua atividade, a sua relação com outros
como um poder independente de si próprio e dos demais. A sua escravidão atinge o auge.
Está claro que esse mediador passa a ser o Deus real, pois o mediador é o poder real
sobre aquilo com que ele me intermedeia. O seu culto se transforma em fim em si. Se­
parados desse mediador, os objetos perderam o seu valor. Portanto, eles só têm valor na
m edida em que o representam, ao passo que originalm ente parecia que ele só tinha
valor na medida em que ele os representasse. Essa inversão da relação original é neces­
sária. Por conseguinte, esse mediador é a essência estranhada, que perdeu a si própria,
da propriedade privada, a propriedade privada alienada, que se tornou alheia a si pró­
pria, assim como constitui a mediação alienada da produção humana pela produção
humana, a atividade genérica alienada do ser humano. Todas as qualidades que compe­
tem ao gênero na produção dessa atividade são transferidas, por conseguinte, para esse
mediador. Portanto, o ser humano vai empobrecendo como ser humano, isto é, como ser
separado desse mediador, na mesma proporção em que esse mediador se torna mais rico.
(40/445-6 [excertos de James Mill])

O puro metal enquanto “conceito existente do valor” de todas as coisas,


enquanto abstração existente, enquanto algo similar a um conceito que não se
deixa reduzir à conceitualidade do sujeito pensante converteu-se como que
num idealismo real. Nessa terceira determinação, o dinheiro é a “confusão e a
troca universal de todas as coisas, portanto o mundo distorcido, a confusão e
a troca de todas as qualidades naturais e humanas” (40/566 [ed. bras. M anus­
critos económico-filosóficos, p. 160 modif.]). Nos Manuscritos econômico-filo-
sóficos, Marx descreve porm enorizadam ente como se com porta esse “valor
existente e atuante de todas as coisas” : como “divindade visível”, como “força
divina”.

O que existe para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro
pode comprar, isso sou eu, o próprio possuidor do dinheiro. Tão grande quanto a força
do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são as minhas — as de seu pos­
suidor — qualidades e forças essenciais. O que eu sou e consigo não é determinado de
modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para
mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força
repelente, é anulado pelo dinheiro. [...]. Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo
o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu

212
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário?


(40/564 [ed. bras. M anuscritos económico-filosóficos, p. 159 modif.])

Assim que o dinheiro aparece na terceira determinação, ele aparece como


abstração detentora de poder, como objetivação reificada de todas as forças
hum anas genéricas que — pelo fato de, no m etabolism o do ser hum ano
com a natureza, a vida hum ana genérica ser meram ente meio da vida indivi­
dual — igualmente têm de aparecer de uma forma distorcida, estranhada dos
seres humanos. Na mão do indivíduo, a capacidade genérica condensada num
objeto desprovido de individualidade se converte no poder do possuidor, o
poder concentrado da sociedade aparece numa forma adiáfana para os próprios
seres humanos como poder aparentemente transcendental do dinheiro.
Na análise da conexão entre trabalho estranhado e propriedade privada nos
escritos iniciais de Marx, vimos que ele ainda tateia em grande medida no
escuro, na tentativa de derivar a cisão de classes da terceira determinação do
dinheiro. Não obstante, depreende-se dos textos iniciais que essa transição não
se completa da maneira como é obrigada a formulá-la a teoria que argumenta
no horizonte burguês, mas como movimento necessário que brota da logicida-
de imanente da coisa: assim que a riqueza universal existe como objeto, a ri­
queza nessa forma se torna fim im ediato da produção, a produção se torna
autônoma perante o consumo: “A produção se tornou fonte de renda, trabalho
rentável. Portanto, ao passo que na primeira relação a necessidade constitui a
medida da produção, na segunda relação a produção ou, melhor, a posse do
produto constitui a medida com que as necessidades podem ser satisfeitas”
(40/459 [excertos de James Mill]).
No Rascunho, encontramos — como que mixada no desenvolvimento ca-
tegorial — uma argumentação correspondente. Também ali, depois de ter ex­
plicitado o dinheiro na forma do preço realizado em si mesmo, a riqueza uni­
versal como existente, Marx aborda a distorção associada a essa transição para
a terceira determinação enquanto unidade das duas primeiras determinações:
“De sua figura de servo, na qual se manifesta como simples meio de circulação,
converte-se repentinamente em senhor e deus no mundo das mercadorias. Re­
presenta a existência celeste das mercadorias, enquanto as mercadorias repre­
sentam sua existência mundana” (42/148 [ed. bras. Grundrisse, p. 165]). Aqui
também ainda estão explícitas a conexão entre crítica da religião e teoria do
dinheiro, a estrutura da duplicação e a distorção, a ela associada, de um origi­
nado em um primeiro; não obstante, na descrição da tipologia do sujeito burguês
praticam ente não há mais rem iniscências da term inologia inicial, tom ada

213
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A DO C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

de empréstimo da obra de Feuerbach. O conjunto de fatos a serem apreendidos,


no entanto, é o mesmo: o processo de constituição do indivíduo contingente,
através do qual o indivíduo pessoal não só se torna visível como pessoal, mas
também pela prim eira vez consegue se desenvolver como tal. Assim que o
dinheiro aparece na terceira determinação, começa esse distanciamento entre
indivíduo pessoal e indivíduo contingente, como se diz em /1 ideologia alemã,
ou seja, o processo que só chegará ao seu término no capitalismo industrial —
na separação completa entre o produtor e seus meios de produção e em sua
personificação na figura do capitalista — e só então descortina a visão para a
logicidade imanente de sua estrutura. Pois existindo a riqueza universal como
objeto sensível, como ouro e prata, não há só a relação essencial entre existên­
cia subjetiva e sua continuação objetiva, na qual os seres humanos processam
e modificam a natureza e, no ato da modificação, modificam a si mesmos, pela
qual aparece a forma específica de processamento da natureza e aparecem os
próprios objetos processados como indivíduos específicos, mas há também
uma forma de relação radicalmente diferente dessa, a saber, a relação entre o
indivíduo e algo pura e simplesmente desprovido de individualidade, algo uni-
versal-abstrato, que imprime a essa relação de antemão o caráter do contingen­
te. A posse do desprovido de individualidade faz com que o próprio possuidor
apareça como indivíduo contingente, personificação desprovida de individua­
lidade do poder estranhado da sociedade.

O dinheiro, como objeto tangível singularizado, pode ser acidentalmente buscado,


achado, roubado, descoberto, e a riqueza universal pode ser tangivelmente incorporada
às posses de um indivíduo singular. [...]. Logo, sua relação ao indivíduo manifesta-se
como puramente contingente; ao passo que, ao mesmo tempo, essa relação a uma coisa
sem absolutamente nenhuma relação com sua individualidade lhe confere, pelo caráter
dessa coisa, o poder universal sobre a sociedade, sobre o inteiro mundo dos prazeres,
dos trabalhos etc. Seria, p. ex., como se o achar de uma pedra me proporcionasse, indepen­
dentemente de minha individualidade, a possessão de todas as ciências. A possessão do
dinheiro me coloca em relação com a riqueza (social) exatamente na mesma relação que
a pedra filosofal me colocaria com as ciências. (42/148-9 [ed. bras. Grundrisse, p. 165])

Quando o dinheiro aparece na terceira determinação, essa relação com o


objeto desprovido de individualidade obtém a supremacia sobre a relação na­
tural, de qualquer modo cambiante, entre sujeito e objeto no interior da totali­
dade da natureza, que é rebaixada ao nível de mero meio para satisfação de
necessidades verdadeiramente abstratas. Com a individualização da riqueza

214
A EXPOSIÇÃO CATEG O RIAL

un iv ersal surgem a m a n ia de en riq u e cim en to , a avidez p o r d in h eiro e a avareza,


qu e, p elas co stas dos in d iv id u o s, e v id en c iam -se co m o o m o to r do d esen v o lv i­
m e n to su b se q u en te .

O possuidor do dinheiro, no sentido antigo, é dissolvido pelo processo industrial ao


qual serve a despeito de seu saber e querer. A dissolução afeta apenas sua pessoa. Como
representante material da riqueza universal, como o valor de troca individualizado, o
dinheiro deve ser m ediatam ente objeto, fim e produto do trabalho universal, do trabalho
de todos os singulares. O trabalho tem de produzir imediatamente o valor de troca, i.e.,
dinheiro. Por essa razão, tem de ser trabalho assalariado. A mania de enriquecimento,
como pulsão de todos, porquanto cada um quer produzir dinheiro, cria a riqueza univer­
sal. Só desse modo a mania de enriquecimento universal pode devir a fonte da riqueza
universal que se reproduz de maneira contínua. Quando o trabalho é trabalho assalaria­
do, e sua finalidade é imediatamente dinheiro, a riqueza universal é posta como sua fi­
nalidade e seu objeto. [...]. O dinheiro como finalidade devém aqui meio da laboriosi-
dade universal. A riqueza universal é produzida para se apoderar de seu representante.
Assim são abertas as fontes efetivas da riqueza. Como a finalidade do trabalho não é um
produto particular que está em uma relação particular com as necessidades particulares
do indivíduo, mas dinheiro, a riqueza em sua forma universal, então, em primeiro lugar,
a laboriosidade do indivíduo não tem nenhum limite; é indiferente em relação à sua
particularidade e assume qualquer forma que serve à finalidade; é engenhosa no criar
novos objetos para a necessidade social etc. (42/150-1 [ed. bras. Grundrisse, p. 167])

C om o se d á essa tra n siç ã o , c o m o se d e riv a o tra b a lh o a s sa la ria d o d a te r­


c e ira d eterm in a çã o do d in h e iro será m o stra d o p e la an á lise d a fo rm a de e x p o ­
sição das categ o rias.
A n te rio rm e n te d escrev e m o s a te rc e ira d eterm in a çã o do d in h e iro co m o que
a b stra ta m e n te , d iss o c ia d a d a an á lise do p ro c e sso d e c irc u la ç ã o . N o en tan to ,
n ã o é d e s sa m a n e ira q u e e la d ev e ser in tro d u z id a . D e v e m o s d e s e n v o lv ê -la ,
m u ito antes, co m o m o m e n to fu n c io n a l da circ u laç ão de m e rc ad o ria s. A p a rtir
d a an á lise da m u d a n ç a de fo rm a sab em o s que c o m p ra e v en d a são u m p ro c e s­
so, cu ja u n id a d e ex iste e sim u lta n e a m e n te n ão ex iste. E ssa fo rm a d a u n id a d e
p ro c e ssu a l se reflete n a u n id a d e p ro c e ssu a l da se g u n d a e d a te rc e ira d e te rm i­
n a ç õ e s d o d in h e iro . “A a u to n o m iz a ç ã o do o u ro so b a fo rm a d e d in h e iro é,
p o rtan to , so b retu d o a ex p re ssão sen sív el da cisão do p ro ce sso de circ u laç ão ou
d a m e ta m o rfo se em dois atos se p arad o s, q u e ex iste m in d ife re n te m e n te lad o a
la d o ” (13/104-5 [ed. bras. C o n trib u iç ã o à crític a da ec o n o m ia p o lític a , p. 162
m o d if.]). A p a rtir de su a figura co m o re a liz a ç ã o co n sta n te m e n te ev an escen te

215
SO B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A D O C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

do preço, ou seja, como moeda, ele se condensa em dinheiro como dinheiro.


Assim que o curso da moeda é interrompido, ela se converte em dinheiro, sen­
do que, no caso dessa transformação do meio de circulação em dinheiro, trata-se
meramente de um momento técnico da rotação do dinheiro. São precisamente
as dificuldades para cuja superação, segundo a opinião dos economistas bur­
gueses, o dinheiro foi introduzido como “expediente habilmente idealizado”
que condicionam essa unidade processual da segunda e da terceira determina­
ções do dinheiro: cada qual é vendedor da mercadoria unilateral que ele produz,
mas comprador de todas as outras mercadorias de que ele necessita para m an­
ter a sua existência. A sua atuação como vendedor depende do tempo de pro­
dução, mas a sua atuação como comprador depende da renovação constante de
suas necessidades vitais. Portanto, a crisálida de ouro da sua própria m ercado­
ria é despendida como que a prestações e volta a ser transformada em valores
de uso. O dinheiro nessa função é moeda suspensa.

Para que o dinheiro flua constantemente sob a forma de moeda, é preciso que a
moeda se coagule constantemente em dinheiro. A rotação contínua da moeda está con­
dicionada por sua contínua acumulação em porções maiores ou menores, nos fundos
de reserva que de todas as partes tanto provêm da circulação como a condicionam; fun­
dos de reserva de moeda cuja constituição, distribuição, dissolução e reconstituição
variam constantemente, cuja existência desaparece sempre e cuja desaparição subsiste
(13/104-5 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 162 modif.])

Neste ponto, devemos deter-nos e apontar um problema relacionado com a


técnica expositiva. O entesouramento, do qual Marx trata após a explicitação
da moeda suspensa, assume uma posição singular dentro da exposição global.
Por um lado, a sua posição é claramente fixada por sua própria forma, devendo
ocorrer após o desenvolvimento da forma da moeda suspensa e antes da expo­
sição do valor de troca autonomizado como meio de pagamento e dinheiro
mundial, como veremos mais adiante. Nesses termos, ele constitui um momen­
to na exposição da terceira determinação do dinheiro, que, enquanto valor de
troca autonom izado, já é capital de modo latente. A form a mais adequada
desse valor de troca autonomizado, que ainda é condicionada pela forma an­
teriormente exposta, é o dinheiro mundial, que constitui a finalização dessa
série de desenvolvimentos. Não há desenvolvimento ulterior da determinidade
formal econômica no interior da exposição do valor de troca autonomizado
(antes da passagem para o capital). Ao mesmo tempo, contudo, o entesoura­
mento é o ponto de partida de outra linha de pensamento, na medida em que o

216
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

capital não é só valor de troca autonomizado que se mantém como autonomi­


zado. Essa linha de pensamento está contida quase exclusivamente no Rascu­
nho, e a ele queremos dedicar nossa atenção antes de prosseguirmos com a
exposição da terceira determinação.
Aquela passagem epistolar sobre o método, já citada anteriormente, pode
ser esclarecida nesse contexto, assim como ela, por sua vez, facilita o acesso
à formulação. No dia 14 de janeiro de 1858, portanto na época da redação do
Rascunho, Marx escreve a Engels: “Aliás, encontro belas explicitações. Por
exemplo, joguei no lixo a teoria inteira do lucro como estava até agora. No
método de processamento, prestou-me um grande serviço o fato de eu by mere
accident [acidentalmente] [...] ter folheado novamente a Lógica de Hegel”
(29/260). Embora não saibamos como se parecia “a teoria inteira do lucro como
estava até agora” e que Marx “jogou no lixo”, não nos parece ser casual que,
justam ente nessa oportunidade, Marx tenha se lembrado de sua leitura de He­
gel. Não há dúvida de que Marx só se conscientizou da importância da lógica
hegeliana para a sua formulação global ao ocupar-se com essa problemática.
O Rascunho redigido com uma rapidez fora do comum ainda deixa transpare­
cer isso. É verdade que cada categoria é introduzida numa forma que não mais
consegue negar o seu modelo, mas especialm ente nessa transição se torna
evidente o quanto se condicionam reciprocamente a forma de exposição do “ir
além de si im anente” e o transcender do horizonte burguês. M encionamos
anteriormente que a terceira determinação do dinheiro deve ser compreendida
como um a forma, na qual “já está contida de m aneira latente sua determ ina­
ção como capital” [ed. bras. Grundrisse, p. 162]. Na página 182 do Rascunho,
encontra-se outra indicação: “Tudo o que é dito aqui do dinheiro vale ainda
mais para o capital, em que o dinheiro realmente se desenvolve pela primeira
vez em sua determinação consumada” (42/197 [ed. bras. Grundrisse, p. 211]).
Enquanto a primeira observação se refere preponderantemente à forma da au­
tonomização, da qual decorrem, como estágio imediatamente superior, a forma
do valor em processo, seu ingresso na circulação como momento de seu estar-
-consigo-mesmo, a outra observação se refere a um conjunto de fatos que a
economia burguesa nunca foi capaz de explicitar de modo exato, mas que, caso
se queira expô-lo corretamente, deve ser derivado da terceira determinação do
dinheiro. Assim, M arx aponta para o fato de que economistas perspicazes,
como, por exemplo, Sismondi, que fala do capital “como uma qualidade me­
tafísica, insubstancial, que ficou sempre de posse do mesmo lavrador [...] para
o qual se revestiu de diferentes formas” (42/185 [ed. bras. Grundrisse, p. 202]),
percebem perfeitamente o movimento específico de circulação do capital, mas

217
SO B R E A E ST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

que para “os senhores econom istas é terrivelm ente difícil avançar teorica­
mente da autoconservação do valor no capital à sua multiplicação: isto é, à sua
m ultiplicação em sua determ inação fundamental, não só como acidente ou
como resultado” (42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 210]). O aumento do capital
tem de ser explicitado como momento essencial do conceito de capital, não
podendo aparecer como momento casual, nem — o que é central para a forma
da introdução — ser obtido ardilosamente mediante tautologías dissimuladas.
Porque definir capital como aquilo “que traz lucro” é caracterizado por Marx
diretamente como “forma brutal” de introdução, visto que “o próprio aumento
do capital já está posto no lucro como form a econômica particular” (42/196
[ed. bras. Grundrisse, p. 211]). Essa outra explicação não lhe parece ser muito
melhor: “A verborragia de que ninguém aplicaria seu capital sem disso extrair
algum ganho reduz-se seja à tolice de que os bravos capitalistas permaneceriam
capitalistas mesmo sem aplicar seu capital; seja [à ideia de] que, dito de forma
muito comezinha, a aplicação com ganho é inerente à definição de capital”
(42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 211]). Ironicamente Marx ainda acrescenta:
“Bem. Então isso teria de ser demonstrado”.
Justamente nessa problemática se evidencia de modo incisivo o quanto faz
parte da essência do sujeito burguês só poder analisar o seu próprio mundo e,
portanto, a si próprio sob a forma do objeto. Compreender o seu próprio mun­
do só sob a forma do objeto significa ser obrigado a assumir as categorias a
partir da empiria, sem poder apresentá-las em seu nexo interno. Porém, assim
que a palavra “capital” é usada, já está incluída nela a ideia do movimento da
multiplicação, o sujeito burguês de qualquer modo já se visualiza como sujei­
to constituído. As categorias mostram-se também nesse ponto, uma vez mais,
incapazes de apreender o movimento que constitui o sujeito burguês, já que
elas próprias são mera expressão desse movimento. Querer captar o começo
da gênese do sujeito burguês com o auxílio dessas categorias só pode ser com ­
parado com a tentativa do barão de M ünchhausen de puxar-se para fora do
pântano pelos seus próprios cabelos.
Esse movimento de multiplicação, sem o qual os outros movimentos per­
cebidos por economistas como Sismondi seriam sem sentido e mesmo impen­
sáveis, deve ser primeiro explicitado. Porém, como se deve proceder para que,
na explicação, não esteja pressuposto desde o início aquilo que deve ser ex­
plicado? Por isso, tratemos de exam inar mais de perto a riqueza universal
que — enquanto identidade de forma e conteúdo — ganhou existência autô­
noma, assumindo uma forma na qual toda mediação foi como que abolida, a
determinidade formal de cunho econômico parece ter desaparecido, mas de

218
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

fato coincide, muito antes, de modo imediato com o ser metálico da riqueza
universal. Isso ainda não ocorre totalmente na primeira transformação do meio
de circulação em dinheiro. Nessa forma, que é compreendida por Marx como
um momento técnico da rotação do dinheiro, já que a imobilização é condição
da mobilidade, ele é, por assim dizer, um híbrido: ele próprio enquanto sua
própria negação como meio de circulação, que, porém, não sendo meio de
circulação, ainda não assum iu a sua form a adequada. Ele ainda existe em
seu uniforme nacional, pois a atividade de cunhagem de moedas é da alçada
do Estado, assim como a fixação do padrão de preços. Em contraposição, quan­
do volta a ser fundido, quando volta a ser transformado em barras de ouro, ele
é metal e, em seu ser m etálico im ediato, é determ inidade formal de cunho
econômico.

As mercadorias podem ser conservadas tanto sob a forma de ouro e de prata, isto é,
na m atéria do dinheiro, quanto também o ouro e a prata são riquezas sob forma preser­
vada. Todo valor de uso, como tal, serve na medida em que é consumido, isto é, destruí­
do. Todavia, o valor de uso do ouro na forma de dinheiro é ser suporte do valor de troca,
é ser, como m atéria-prim a amorfa, a m aterialidade do tempo de trabalho geral. No
metal amorfo, o valor de troca possui uma forma imperecível. O ouro e a prata, imobi­
lizados assim sob a forma de dinheiro, constituem o tesouro. (13/105 [ed. bras. Contri­
buição à crítica da economia política, pp. 163-4 modif.])3

Num patamar mais elevado (e como este deve ser compreendido será mos­
trado por ocasião da explicitação do tesouro enquanto elo necessário entre
as determinações “reserva m onetária” e “meio de pagam ento”), repete-se a
unidade processual de mobilidade e imobilidade, visto que ouro e prata só se
fixam como dinheiro na medida em que não são meio de circulação. “Conver­
tem-se em dinheiro como não meio de circulação. Assim, portanto, o único
m eio de m anter a m ercadoria na esfera da circulação é retirá-la desta na
forma de ouro” (13/105 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política,
pp. 164-5 modif.]).
Assim que a existência m etálica im ediata coincide com a determinidade
formal de cunho econômico, ela é unidade de primeira e segunda determinações
que, como tais, são suprassumidas e simultaneamente negadas nessa unidade.
Enquanto preço realizado em si mesmo, o dinheiro é a negação de si mesmo
na determinação como medida dos valores. Por ser, ele próprio, em sua existên­
cia metálica, a realidade adequada do valor de troca, ele deixa de ser a medida
de outra coisa, de valores de troca. Enquanto preço realizado em si mesmo, ele

219
SO B R E A ESTRU TU RA LÓ G ICA DO C O N CEITO D E CAPITAL E M K A R L M A R X

também é a negação de si mesmo na determinação como realização dos preços,


na qual a sua função consiste apenas no constante desaparecimento do preço
realizado, apenas em seu ser como representante materialmente existente do
preço perante todas as mercadorias, já que se pretende trocar as mercadorias
somente pelos seus preços. Com outras palavras: enquanto o ouro servir para
representar os valores das mercadorias enquanto grandezas de mesma deno­
minação, qualitativamente iguais e quantitativamente comparáveis, ele funcio­
na como unidade representada, “sua presença efetiva é supérflua e mais ainda,
por consequência, a quantidade [...]; como indicador (indicador do valor), é
indiferente a sua quantidade, quantidade em que existe em um país; necessário
somente como unidade de conta” (42/137 [ed. bras. Grundrisse, p. 154]). Con­
tudo, assim que o ouro passa a existir como “deus em meio às mercadorias”,
assim que as mercadorias se limitam a ser representantes incompletas do ouro,
mas ele próprio passa a constituir a existência material da riqueza abstrata, a
quantidade que ele representa de si próprio é a medida de si mesmo enquanto
riqueza. “A determinação de medida deve ser posta aqui nele mesmo” (42/156
[ed. bras. Grundrisse, p. 172]). Em contraposição, enquanto realização conti­
nuamente evanescente do preço, o ouro funciona como símbolo de si próprio,
na circulação das mercadorias a sua matéria, o ouro, é indiferente: “Sob seu
aspecto de mediador da circulação, sofreu toda classe de ultrajes, foi corroído,
esmagado até o extremo de chegar a ser um pedaço de papel simbólico” (13/103
[ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 161]). Agora, porém,
quando em sua “sólida m etalicidade” contém em si mesmo “toda a riqueza
material inacessível”, funcionando como representante material da riqueza m a­
terial, ele se torna essencial em sua forma de existência imediatamente metá­
lica. “Como medida, sua quantidade era indiferente; como meio de circulação,
era indiferente a sua materialidade, a matéria da unidade; como dinheiro, nes­
sa terceira determinação, a quantidade de si mesmo como um quantum material
determinado é essencial” (42/156 [ed. bras. Grundrisse, pp. 172-3]).
Nesse ponto, ocorre a reviravolta decisiva, que é percebida por alguns teó­
ricos. Durante a exposição da primeira transformação do meio de circulação
em dinheiro, Marx comenta uma esquizofrenia curiosa do economista Bois-
guillebert:

Boisguillebert pressente de imediato, na primeira imobilização do perpetuum mo­


bile [movimento perpétuo], isto é, na negação de sua existência funcional como meio
de circulação, a sua autonomização em relação às mercadorias. O dinheiro, diz, deve
estar "em contínuo movimento, o que somente pode ocorrer sendo móvel, pois, assim

220
A E XPO SIÇÃ O CATEG O RIAL

que deixa de ser, tudo está perdido”. [...] Não percebe que essa parada é a condição do
seu movimento. O que quer em realidade é que a forma "valor de troca das mercadorias"
apareça como forma puramente fugaz de seu metabolismo, sem nunca se fixar como fim
em si. (13/104-5 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 163, n. 115
modif.])

Contudo, nele apenas se repete, por assim dizer, como impulso crítico-cul­
tural extemporáneo o que certa vez marcou como protesto substancial a inter­
seção de duas estruturas sociais:

Em sua República, Platão quer fixar à força o dinheiro como simples meio de circu­
lação e medida, mas não deixar que ele se tom e dinheiro como tal. Por conseguinte,
Aristóteles considera a forma da circulação M-D-M, na qual o dinheiro funciona apenas
como medida e moeda, um movimento que ele chama de econômico, como a forma
natural e razoável, ao passo que estigm atiza a forma D-M -D, a crematística, como a
forma não natural, inapropriada. O que aqui se combate é tão somente o valor de troca,
que ele se tome conteúdo e fim em si da circulação, a autonomização do valor de troca com
tal; que o valor como tal se torna fim da troca e adquira forma autônoma, primeiramen­
te ainda na forma simples e tangível do dinheiro. (U/928-9)

No entanto, não há como deter esse novo movimento. Quando o dinheiro


aparece na terceira determinação, quando a riqueza universal existe numa for­
ma que, em sua imediatidade tangível, constitui a própria determinidade formal,
então “não há mais diferença nele a não ser a quantitativa”. Por essa via, porém,
o metal sólido, que só representa ainda uma porção maior ou menor da riqueza
universal, converte-se numa contradição existente: enquanto riqueza universal
ele é o suprassumo de todos os valores de uso; enquanto “universalidade in­
trínseca” o dinheiro possui, nessa forma, a capacidade “de comprar todos os
prazeres, todas as mercadorias, a totalidade das substâncias materiais da ri­
queza” (42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 210]); ao mesmo tempo, ele é, nessa
forma, apenas um a determ inada quantidade de dinheiro, ou seja, sim ulta­
neamente também apenas representante limitado da riqueza universal “ou re­
presentante de uma riqueza limitada, que não vai além do seu valor de troca;
é exatamente medido nele” (42/196 [ed. bras. Grundrisse, p. 210]). Assim sen­
do, ele simultaneamente é e não é a riqueza universal, numa só e mesma forma,
ele se contradiz; ele “não tem de forma alguma a capacidade, que deveria ter
em conformidade com seu conceito universal, de comprar todos os prazeres,
todas as mercadorias, a totalidade das substâncias materiais da riqueza” (42/196

221
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

[ed. bras. Grundrisse, p. 210]). Por existir como uma soma determinada, o di­
nheiro é limitado; simultaneamente ele é, por sua qualidade, a própria ilimita-
ção, e essa contradição impele para um movimento de mau infinito, no qual a
quantidade determinada de dinheiro como que procura se livrar de si mesma
enquanto quantidade determinada de dinheiro, visando tornar-se o que ele é
por sua forma. A expressão dessa contradição entre ilim itação qualitativa e
limitação quantitativa, que essa forma representa em si mesma, é o progresso
quantitativamente infinito, no qual o dinheiro procura se aproximar da riqueza
pura e simples mediante a permanente expansão de sua grandeza. Quando o
dinheiro aparece na terceira determ inação e é retido nessa forma, ele passa
imediatamente para esse movimento; reter e multiplicar são uma coisa só. “Por
isso, para o valor que retém a si mesmo enquanto valor, multiplicar-se coinci­
de com autoconservar-se e ele só se conserva buscando constantemente ir além
da limitação quantitativa que contradiz a sua universalidade interior” (U/936).
Esse progresso infinito aparece primeiramente como entesouramento; para
o entesourador a mudança de forma da mercadoria se torna fim em si; ele retém
a crisálida de ouro da mercadoria e faz com que ela, na condição de não meio
de circulação, se torne dinheiro.

O movimento automático do valor de troca como valor de troca não pode ser senão,
em geral, o de ultrapassar os seus limites quantitativos. Porém, na medida em que um
limite quantitativo do tesouro é ultrapassado, cria-se uma nova barreira que, por sua vez,
deve ser suprimida. O que aparece como barreira não é um limite determinado do tesou­
ro, mas todo e qualquer limite dele. O entesouramento não tem, pois, um limite imanen­
te, nenhuma medida em si mesmo; é, antes, um processo sem fim, que sempre encontra
um motivo para começar de novo diante do resultado obtido. Se o tesouro só aumenta
porque se conserva, também só se conserva porque aumenta. (13/109-10 [ed. bras. Con­
tribuição à crítica da economia política, p. 169 modif.])

Se analisarmos o entesouramento da perspectiva da circulação de merca­


dorias (e até o momento não conhecemos outro modo de análise, visto que o
outro modo só resultará da efetuação da dialética imanente ao próprio entesou­
ramento), a sua condição é a venda constante sem compra subsequente, um
procedimento inexequível nessa forma, mas exequível num formato atenuado:
vender o máximo possível e comprar o mínimo possível. Com outras palavras:
trabalhar o máximo possível e poupar o máximo possível. Pois o entesoura­
mento é, por seu próprio conceito, a apropriação da riqueza em sua forma

222
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

universal, sendo esta condicionada pela renuncia à riqueza em sua realidade


material.
Portanto, é no entesourador que pela primeira vez germinam aquelas virtu­
des que comumente são denominadas burguesas. Quando a mudança de forma
da mercadoria se distorce em fim em si, todas as relações do indivíduo também
se distorcem em condições objetivas de sua existência subjetiva. Anteriormen­
te se mencionou que foi mediante essa distorção central que, pela primeira vez,
manaram as fontes da riqueza; quando a riqueza em sua forma universal se
tornou im ediatamente fim da produção, a produção da riqueza específica se
limitou a ser meio para a busca desse fim. Por essa razão, a acumulação do
dinheiro por causa do dinheiro é também a primeira forma da “produção pela
produção, isto é, o desenvolvimento das forças produtivas do trabalho humano
além dos limites das necessidades habituais” (13/111 [ed. bras. Contribuição
à crítica da economia política, p. 171 modif.]). Essa distorção anda de mãos
dadas com um prolongamento ideal, na medida em que o mundo distorcido na
esfera da produção cria o seu contraponto na forma de valores reificados. “Para
se apoderar do supérfluo sob sua forma geral é preciso considerar as necessi­
dades específicas como luxo e supérfluo” (13/106-7 [ed. bras. Contribuição à
crítica da economia política, p. 165 modif.]). Laboriosidade, economia, des­
prezo dos prazeres mundanos, temporais e efêmeros são as virtudes cardeais
que o embrião do sujeito burguês se propõe na forma de um fim em si, como
valor em si mesmo.
O entesouramento, contudo, pressiona para além de si mesmo. A análise
mais detida mostra que ele é contraditório em si mesmo, uma contradição que
inaugura o desenvolvimento subsequente, cujo decurso passaremos a acompa­
nhar. Em contraposição ao que ocorre em Para a crítica e O capital, essa
transição do entesouramento para a forma seguinte do movimento do valor foi
explicitamente detalhada nos Grundrisse, de modo que devemos nos orientar
exclusivamente por esse texto no que se refere a essa transição.
Essa transição deve ser efetuada por dois aspectos. O primeiro diz respeito
ao dinheiro na terceira determinação, ao ouro em sua m etalicidade imediata
enquanto determinidade formal de cunho econômico. No ouro encarnou-se a
riqueza universal; esta existe dissociada das formas específicas da riqueza so­
cial, constituindo, porém, ao mesmo tempo, a forma universal somente me­
diante referência às formas específicas com as quais se defronta como o mun­
do das riquezas reais. O ouro em sua corporalidade m etálica é a “abstração
pura” daquelas e, por essa razão, distorce-se, quando a riqueza é retida nessa
forma, em “pura ilusão. Ali onde a riqueza parece existir enquanto tal em for­

223
SO B R E A E ST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

ma absolutamente material, tangível, o dinheiro tem sua existência apenas em


minha cabeça, é uma pura quimera” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). A
sua realidade reside fora dele mesmo, na totalidade das particularidades que
compõem a sua substância. Por isso, só é possível que o dinheiro se afirme e
realize como representante material da riqueza universal se ele desaparecer
como forma universal. Ele tem de ser lançado na circulação, ele tem de desa­
parecer “ante os distintos modos particulares da riqueza”, e “essa desaparição
é o único modo possível de afirmá-lo como riqueza. A dissolução do acumu­
lado em prazeres singulares é a sua realização. [...] Eu só posso pôr efetiva­
mente o seu ser para mim à medida que o abandono como mero ser para outro”
(42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]).
O outro aspecto diz respeito à “essência desm edida” do dinheiro nessa
determinação. O fato de a riqueza individualizada retida como ouro distorcer-
-se furtivamente em simples quimera da riqueza real atinge também o movi­
mento da multiplicação da riqueza universal encarnada. Visto que a sua reali­
dade reside fora dela mesma na totalidade das riquezas específicas, a sua pró­
pria multiplicação depende da multiplicação dessas riquezas reais. Se as duas
coisas não andarem de mãos dadas, o próprio dinheiro “perde o seu valor à
medida mesmo que seja acumulado. O que se manifesta como sua m ultipli­
cação é, de fato, sua diminuição. A sua autonomia é pura aparência; sua inde­
pendência da circulação só existe referida a ela, como dependência dela”
(42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). A mercadoria universal, que só pode
existir como universal ao lado da específica numa forma natural específica,
evidencia-se como mercadoria específica que, como todas as mercadorias es­
pecíficas, está sujeita às leis universais. O seu valor depende, por um lado, dos
custos específicos de produção que mudam constantemente e, por outro lado,
da demanda e da oferta, como detalha Marx, ou seja, da quantidade de trabalho
socialmente necessário no sentido ampliado que anteriormente foi abordado
sucintamente. Assim, revela-se falso que “sua própria quantidade é a medida
de seu valor” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). O dinheiro na terceira
determinação se contradiz não só porque como riqueza individualizada retida
se distorce em pura quimera, mas também “porque deve representar a riqueza
enquanto tal; mas, de fato, representa somente um quantum idêntico de valor
variável” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). Concluindo, Marx formula
assim: "O dinheiro, em sua determinação última, acabada, manifesta-se pois,
sob todos os aspectos, como uma contradição que se resolve a si mesma; que
tende à sua própria resolução” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, pp. 176-7]). Mais
adiante examinaremos de que modo se dá o desenvolvimento seguinte.

224
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Retornem os agora à exposição do entesouram ento como elo necessário


entre o dinheiro enquanto moeda suspensa e sua função como meio de paga­
mento. Como vimos (cf. pp. 215-6), a primeira transformação do meio de cir­
culação em dinheiro, ou seja, o surgimento do dinheiro em sua terceira deter­
minação, é apresentada por M arx como um momento técnico da rotação do
dinheiro, que não funcionaria sem essa forma de condensação. A parte do di­
nheiro circulante que se solidifica em reserva monetária ainda é, ela própria,
momento necessário da quantidade total que se encontra constantemente em
circulação. Igualmente já foi indicado (ver p. 216) que essa unidade processual
de mobilidade e imobilidade se repete num patamar mais elevado, quando ouro
e prata despem sua forma monetária e se convertem em dinheiro em sua cor-
poralidade metálica como não meio de circulação. É preciso mostrar aqui ago­
ra que função o entesouramento tem para a circulação, e, em vista disso, temos
de voltar-nos para a quantidade total do dinheiro circulante. No que se refere
à moeda suspensa, mantivemos em mira apenas a quantidade total de dinheiro
que se encontra constantemente em circulação, a qual foi pressuposta como
dada. Contudo, na página 199 deste livro, indicamos que essa grandeza mesma
tem de ser variável quando a soma dos preços a ser realizada e a velocidade da
mudança de forma forem determinantes para a quantidade do metal circulante.
Nesse caso, porém, o meio de circulação que se transform a em dinheiro na
forma do não meio de circulação não pode ser moeda suspensa. Dependendo
da modificação da soma de preços e da velocidade da circulação, a quantidade
total do ouro circulante deve continuamente se expandir e contrair-se, “o que
é possível somente sob a condição de que a quantidade total de dinheiro em
um país esteja em relação sempre variável com a quantidade de dinheiro cir­
culante. O entesouramento preenche essa condição” (13/113 [ed. bras. Contri­
buição à crítica da economia política, p. 174]). Por exemplo, se os preços
baixarem ou se a velocidade da circulação aumentar, o dinheiro escoa para fora
da circulação e é absorvido pela reserva do tesouro; no caso de preços ascen­
dentes e velocidade da circulação decrescente, os tesouros se abrem.

O enrijecimento do dinheiro circulante em tesouro e a fluidificação dos tesouros na


circulação constituem um movimento oscilatório em contínua variação, no qual o pre­
domínio de uma ou outra tendência é exclusivamente determinado pelas flutuações da
circulação de mercadorias. Desse modo, os tesouros aparecem como canais de forneci­
mento e retirada do dinheiro circulante, de tal forma que jam ais circula como moeda
senão a quantidade de dinheiro determinada pelas necessidades imediatas da circulação.
(13/114 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 174 modif.])

225
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Assim sendo, tomamos conhecimento até agora de duas formas do valor de


troca autonomizado, da riqueza universal que se tornou indivíduo. M oeda sus­
pensa e tesouro são dinheiro como não meio de circulação. Devemos examinar
agora a forma em que o valor de troca aparece enquanto autonomizado, não,
porém, fora da circulação como os dois acima m encionados, mas dentro da
própria circulação. Nesse caso, ele naturalmente já não pode mais ser meio de
circulação, visto que a substância deste consiste no contínuo desaparecimento
e o valor de troca autonomizado, que se tornou coisa, de qualquer modo já é
símbolo de si mesmo. Ele deve cumprir outra função.
Essa função pressupõe a precedente. Igualmente já apontamos para isso
antes, na abordagem do entesouramento. Em Para a crítica da economia polí­
tica consta o seguinte: “No momento em que, pelo entesouramento, o dinheiro
se desenvolveu como existência da riqueza social abstrata e como representan­
te tangível da riqueza material, adquire, com essa sua determinidade de dinhei­
ro, uma função peculiar no processo de circulação” (13/115 [ed. bras. Con­
tribuição à crítica da economia política, p. 176 modif.]). Pois quando o valor
de troca autonomizado está explicitado como tal, há a possibilidade de uma
nova determinidade formal de cunho econômico, sob a qual os seres humanos
podem efetuar o seu metabolismo social. Enquanto o dinheiro existir na segun­
da determinação, na função de meio de circulação, como realização continua­
mente evanescente do preço dentro da própria circulação, ou retornar de sua
função de não meio de circulação para dentro da circulação, ele sempre atuará
como meio de compra dentro de uma constelação polarizada que supõe a troca
sim ultânea de posição dos equivalentes e sua exteriorização recíproca. É a
primeira mudança de forma de uma mercadoria A que coincide imediatamen­
te com a segunda mudança de forma de uma mercadoria B. O preço da merca­
doria A, mediante o qual ela está idealmente relacionada com a sua crisálida
de ouro, é realizado de modo imediato. Agora esse processo pode cindir-se:

O vendedor aliena realmente a mercadoria e, em princípio, só realiza o seu preço


uma vez mais idealmente. Ele a vendeu por seu preço, que, entretanto, só será realizado
num tempo ulterior determinado. O comprador que compra é representante de dinheiro
futuro, enquanto o vendedor que vende possui uma mercadoria presente. No que con­
cerne ao vendedor, a mercadoria como valor de uso é alienada realmente, sem que tenha
sido realizada realmente como preço; no que diz respeito ao comprador, o dinheiro é
realizado realmente no valor de uso da mercadoria, sem que tenha sido alienado real­
mente como valor de troca. (13/116-7 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia
política, pp. 177-8 modif.])

226
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

A mercadoria A circula, visto que ela executa a troca de posição, mas a sua
prim eira metamorfose foi adiada. Assim, a segunda metamorfose de uma mer­
cadoria B não se efetua simultaneamente com a prim eira mudança de forma
da mercadoria A, mas aparece temporalmente antes dela: “E por isso o dinhei­
ro, que é o aspecto da mercadoria em sua primeira metamorfose, adquire uma
nova determinidade formal. O dinheiro ou a evolução independente do valor
de troca não é mais a forma mediadora da circulação das mercadorias, mas o
seu resultado final” (13/119 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia p o ­
lítica, p. 180 modif.]).
Pois, na medida em que o preço é realizado apenas idealmente, o dinheiro
funciona não só como medida dos valores, mas também como meio de compra,
sem existir m aterialm ente. Ele apenas projeta “a som bra de sua existência
futura. Transfere a mercadoria da mão do vendedor à do comprador” (13/118
[ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 179]). Porém, quan­
do o dinheiro então ingressa na circulação, ele não pode mais funcionar como
meio de compra, pois tem essa função

[...] antes de estar presente e aparece depois de ter cessado de funcionar como tal. Ele
entra na circulação, antes, como o único equivalente adequado da mercadoria, como
existência absoluta do valor de troca, como a última palavra do processo de troca, em
suma, como dinheiro, mais precisamente, como dinheiro na função determinada de meio
de pagamento geral. Nessa função de meio de pagamento, o dinheiro aparece como mer­
cadoria absoluta; mas faz isso no interior da própria circulação e não fora dela, como o
tesouro. (13/118 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia política, p. 179 modif.])

Vamos interromper aqui a exposição dessa nova forma e mencionar apenas


que, nesse ponto — em correspondência com o modo de proceder discutido
anteriormente — , a teoria da crise teria de ser retom ada num novo plano de
concreção. O dinheiro na forma de meio de pagamento acrescenta à possibili­
dade geral anteriormente indicada, à mais abstrata das formas da crise, uma
nova possibilidade formal. O fato de a autonomização das duas fases da mu­
dança de forma aparecer como tal, a saber, como invendabilidade da merca­
doria, passa a ser seu pressuposto e um dos seus momentos; a peculiaridade da
nova forma consiste, muito antes, em que se torna manifesta a autonomização,
possibilitada pelo desenvolvimento do meio de pagamento, da realização ideal
ante a realização real do preço como tal — e isso como incapacidade de paga­
mento e crise de dinheiro. Com o desenvolvimento do meio de pagamento
desenvolve-se a possibilidade de um encadeamento de obrigações e, desse

227
S O B R E A E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L MAR .X

modo, ao mesmo tempo, também a possibilidade de que tal cadeia processa­


dora de pagamentos não seja cumprida.

Se não se puder vender a mercadoria ao menos num determinado período, embora


seu valor não tenha variado, o dinheiro não poderá funcionar como meio de pagamento,
uma vez que tem de servir como tal num prazo determinado, pressuposto. Uma vez que
aí a mesma soma de dinheiro funciona para uma série de transações e operações recí­
procas, há insolvência não só num ponto, mas em muitos. Daí a crise. (26.2/514 [ed. bras.
Teorias da mais-valia, vol. II, p. 949])

Porém, também aqui é preciso lembrar que estamos tratando apenas da pos­
sibilidade formal e a pergunta por que a crise tem de se instaurar realmente só
poderá ser respondida mais adiante.

Por isso, na pesquisa da razão por que a possibilidade geral da crise se torna reali­
dade, na pesquisa das condições da crise é mera superfluidade tratar da form a das crises
oriundas do desenvolvimento do dinheiro como meio de pagamento. Justamente por
esse motivo gostam os economistas de apresentar essa forma evidente como causa das
crises. (26.2/51 [ed. bras. Teorias da mais-valia, vol. II, p. 950])

Seja apenas mencionado aqui que nesse ponto começam as primeiras abor­
dagens da teoria do crédito, assim como a lei referente à quantidade do dinhei­
ro circulante, discutida por ocasião da análise da rotação simples do dinheiro,
volta a aparecer na exposição global, já que ela é consideravelmente modifi­
cada pela rotação dos meios de pagamento. Queremos voltar nossa atenção,
contudo, para a forma que Marx trata no final.
A primeira forma do valor de troca autonomizado de que tomamos conhe­
cimento foi a do meio de circulação que se torna dinheiro na forma do não meio
de circulação. O meio circulante se imobiliza como condição de sua própria
mobilidade, seja como moeda suspensa ou como tesouro. No primeiro caso,
Marx ainda inclui o próprio meio de circulação que vai se solidificando na
massa global do dinheiro em constante rotação na esfera da circulação, de modo
que a forma exterior do dinheiro que funciona como não meio de circulação
deve ser concebida, por assim dizer, como um híbrido: o valor de troca autono­
mizado existe necessariamente numa forma que decorre da função do dinheiro
como meio de circulação, e justamente não pode assumir um modo de existên­
cia que corresponde ao dinheiro em sua função de não meio de circulação. Isso
se dá pela primeira vez no entesouramento: como puro metal o ouro é dinhei-

228
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

ro, em sua metalicidade imediata ele é determinidade formal de cunho econô­


mico. Quando o ouro em forma de moeda é acumulado como tesouro, a forma
do dinheiro nessa função que resulta do processo de circulação é essencial­
mente exterior, nessa função ele vale apenas como portador de valor, na sua
forma exterior ele é apenas metal amorfo. O quanto é exterior a forma mone­
tária do dinheiro nessa função pode ser mostrado no fato de que, na Inglaterra
medieval, as mercadorias de ouro e prata “eram consideradas legalmente como
simples formas de tesouro, porque seu valor só aumentava ligeiramente pelo
trabalho grosseiro que se lhes tinha agregado. Eram destinadas a ser lançadas
de novo na circulação, e seu refinamento estava, portanto, prescrito, como o
da própria m oeda” (13/112 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia polí­
tica, p. 172 modif.]). Somente o ouro em forma de barras constitui um modo
de existência do valor de troca autonom izado que realm ente faz jus a essa
função do dinheiro de ser riqueza abstrata numa forma perdurável. Simulta­
neamente vimos que o ouro na metalicidade pura é e não é a forma econôm ica
determinada. Ele é a abstração existente — mas só fora da circulação. Lançado
na circulação, ele é a forma universal da riqueza só no momento em que desa­
parece, recaindo para a função de meio de circulação. Contudo, se for retido
nessa forma, o ouro evidencia-se como mercadoria específica, ou seja, precisa­
mente não como aquilo que se pretende que ele seja, a saber, a forma universal
da riqueza. A forma im ediatam ente mais elevada é o dinheiro na função de
meio de pagamento. Nessa função, ele é valor de troca autonomizado dentro
da circulação. Ele ingressa na circulação como a “existência em repouso do
equivalente universal” (13/122 [ed. bras. Contribuição à crítica da economia
política, p. 185 modif.]), mas o seu modo de existência é condicionado pela
forma exterior do dinheiro que se desenvolveu na circulação interna. Em de­
corrência disso, temos uma constelação que, por assim dizer, deixa aberta uma
possibilidade: por um lado, ouro em forma de barras é o modo mais adequado
de existência do valor de troca autonom izado, mas, nessa forma, o ouro é
apenas dinheiro, porque não circula. Por outro lado, temos uma forma, na qual
o valor de troca autonomizado existe dentro da circulação, mas num modo que
volta a ficar aquém daquele de que tomamos ciência — na forma do entesou-
ramento — como o modo mais adequado de existência da riqueza universal
que existe como coisa. A próxima forma mais elevada só pode ser o valor de
troca autonomizado existente como coisa no interior da circulação, cujo modo
material de existência é adequado ao seu conceito — o dinheiro mundial. É o
dinheiro “numa universalidade de manifestação que corresponde à universali­
dade do seu conceito; é seu modo mais adequado de existência” (U/885).

229
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A D O C O N C E ITO D E C APITAL E M K A R L M A R X

A teoria m arxiana do dinheiro termina com a explicitação de uma forma


que, na teoria do valor, foi desdobrada na exposição da duplicação ideal e real,
por assim dizer, no médium do puro conceito. Assim que passamos para a
concretização e identificamos a teoria da forma-preço como contraponto da
duplicação ideal explicitada anteriormente, fomos confrontados, por meio des­
sa forma que finaliza com o desenvolvimento da denominação monetária, com
a sociedade burguesa existente. Porém, simultaneamente vimos que Marx apre­
senta a sociedade burguesa existente tão somente nessa determinidade, a saber,
meramente como existente, isto é, como circulação interna. A história das re­
lações reais de produção não é escrita. Isso vale também para a exposição do
dinheiro na função como meio de circulação e da forma monetária daí decor­
rente que se sublima até a condição de símbolo de valor. A antecipação dessa
função foi o desdobramento abstrato da duplicação real no processo de troca,
com a qual nos deparamos agora, assim como com a função de medida, enquan­
to forma específica no dinheiro mundial. Mas isso explica, ao mesmo tempo,
por que Marx não explicita o dinheiro mundial como forma específica. De fato,
o puro metal assume funções de dinheiro que já conhecemos. No mercado
mundial, ele funciona como meio de troca (e, por essa razão, Marx também
denomina o dinheiro mundial de moeda mundial) e como meio de pagamento,
cuja “relação sofre, entretanto, uma inversão no mercado mundial” (13/126 [ed.
bras. Contribuição à crítica da economia política, pp. 190-1]). Enquanto na
circulação interna o dinheiro, na medida em que é moeda, atua apenas como
meio de compra na mediação da troca universal de posição das mercadorias,
o metal aparece no mercado mundial como meio de compra quando o metabo­
lismo é unilateral e, em consequência, compra e venda divergem. Marx men­
ciona o exemplo de uma quebra de colheita que pode obrigar uma nação a
comprar de outra em escala extraordinária. Como meio de pagamento, o ouro
funciona, no mercado mundial, no equilíbrio dos balanços internacionais.

Portanto, a forma do dinheiro como meio de troca e meio de pagamento internacio­


nal de fato não é uma forma específica desse dinheiro, mas apenas uma aplicação do
mesmo como dinheiro; são as suas funções nas quais ele funciona do modo mais cha-
mativo possível em sua forma simples e ao mesmo tempo concreta como dinheiro, como
unidade de medida e meio de circulação e como nem um nem outro. É sua forma mais
original. Essa forma só aparece como específica ao lado da particularização que pode
assumir na assim chamada circulação interna, como medida e moeda. (U/883)
Da mesma maneira que as medidas gerais de pesos dos metais preciosos serviam de
medidas de valor primitivas, as denominações de conta do dinheiro são, no interior do

230
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

mercado mundial, transformadas de novo nas denominações de pesos correspondentes.


Do mesmo modo que o metal bruto amorfo (aes rudé) era a forma original do meio de
circulação e assim como a forma cunhada era ela própria originalmente simples sinal
oficial do peso contido nas peças de metal, assim também o metal precioso, convertido
em dinheiro universal, se despoja de sua efígie e seu cunho e retom a a form a indife­
rente de barra ou quando as moedas nacionais, como os imperiais russos, os escudos
mexicanos e os soberanos ingleses, circulam no estrangeiro, seu título se tom a indife­
rente, passando a valer apenas o seu conteúdo. (13/125 [ed. bras. Contribuição à crítica
da economia política, pp. 188-9 modif.])

B. A p a s s a g e m p a r a o ca p ita l

1. Sobre a relação entre ci rculação sim ple s e capital

Antes de prosseguirmos com a reconstituição da exposição categorial, aborda­


remos mais um a vez alguns aspectos centrais da formulação global. Como
várias vezes já foi ressaltado, M arx de modo algum identifica a sequência
histórica das categorias com aquela que elas “têm na sociedade burguesa m o­
derna umas em relação às outras”. Desta última se trata, contudo, na compe­
netração conceituai do capitalismo, que só se torna acessível a uma elaboração
teórica na forma da exposição dialética das categorias depois de ter chegado
ao seu desenvolvimento pleno, quando a lei do valor pode realmente entrar em
vigor; essa lei, como vimos, nada mais é que a síntese social global, a compen­
sação para a unidade autoconsciente faltante, que regula a repartição do traba­
lho social global pelos diferentes ramos da produção. Porém, só se fala de tra­
balho social global nesse sentido específico quando a reprodução total da
sociedade está integrada nesse “sistema específico de dependência universal”,
ou seja, só quando, mediante a ação do próprio capital, a propriedade fundiária
feudal tiver sido convertida em propriedade fundiária burguesa (ou criada dire­
tamente como propriedade fundiária burguesa) e, desse modo, tiver sido con­
sumada a separação entre a existência subjetiva e a sua continuação objetiva:

Um tal estado de coisas encontra-se no mais alto grau de desenvolvimento na mais


moderna forma de existência da sociedade burguesa — os Estados Unidos. Logo, só nos
Estados Unidos a abstração da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”, trabalho puro
e simples, o ponto de partida da Economia moderna, devém verdadeira na prática. (42/29
[ed. bras. Grundrisse, p. 58])

231
SO B R E A EST R U T U R A LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E CAPITAL EM K ARL M A R X

É uma “forma de sociedade em que os indivíduos passam com facilidade de


um trabalho a outro, e em que o tipo determinado do trabalho é para eles con­
tingente e, por conseguinte, indiferente” [ed. bras. Grundrisse, pp. 57-8]. Con­
tudo, “passar com facilidade de um trabalho a outro” nada mais significa que
a nova repartição, executada de modo natural-espontâneo, do trabalho social
global pelos diferentes ramos da produção; trata-se de um conjunto de fatos
que, justam ente pela circunstância de o modo determinado do trabalho ter se
tornado contingente para os indivíduos, ao mesmo tempo representa a condição
histórica da possibilidade de formulação da lei do valor na forma da explicita­
ção dialética das categorias. Vemos aqui que nada se modificou na posição
básica de Marx, elaborada pela primeira vez nos Manuscritos econômico-filo-
sóficos·. o capitalismo enquanto a configuração mais extrema da forma distor­
cida de apropriação da natureza foi visto já ali como o ponto de culminação
histórico que, em virtude dessa form a conclusiva de distorção da conexão
entre ser humano e natureza, descortina a visão para a estrutura real não só do
capitalismo, mas de toda a sociedade.
O capitalismo como configuração insuperável da separação entre o ser hu­
mano e a sua natureza inorgânica, como conflito do ser humano com a nature­
za sob a forma social da distorção absoluta, na qual as condições de produção
estranhadas do ser humano são personificadas e ganham existência subjetiva
como capitalista e proprietário de terras, constitui um a constelação que
não é imediatamente perceptível como tal. Muito antes, os seres humanos —
livres e iguais por natureza — parecem relacionar-se na esfera da circulação
meramente como trocadores. Porém, só é possível decifrar esse último fato
como aparência quando se toma ciência dessa esfera da circulação como m o­
mento do capitalismo, como uma esfera na qual todos os membros da socie­
dade só passam a atuar como trocadores quando todos eles estiverem integra­
dos nesse sistema específico do trabalho privado, ou seja, quando a divisão de
classes tiver sido consumada. Assim sendo, as pessoas se encontram na esfera
da circulação desde o começo como membros de determinadas classes, mas
simultaneamente também como possuidores de equivalentes. Várias vezes já
foi acentuado que essa dualidade singular constitui, por assim dizer, o centro
nervoso não só da teoria econômica, mas de toda a teoria social burguesa em
seu sentido mais amplo, teoria essa criticada por Marx. As debilidades decisi­
vas das formulações teóricas de Adam Smith e David Ricardo devem-se, em
última análise, ao fato de ambos nunca terem conseguido obter plena clareza
sobre essa articulação do sistema global. Segundo Marx, a exposição incom­
pleta da lei do valor assim como a estruturação de suas obras são determinadas

232
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

de modo decisivo pelo fato de terem simplesmente assumido exteriormente da


empiria as categorias “valor do trabalho”, “lucro”, “renda”, “juros”, um pro­
cedim ento que reflete ao mesmo tempo a falta de elaboração teórica dessa
articulação. O fato de eles, apesar disso, terem ido além dessas formas de
manifestação e avançado até momentos essenciais do capitalismo é razão su­
ficiente para que Marx os eleve à condição de clássicos dessa ciência; ao con­
trário dos autores econômicos que, assim como todos os teóricos burgueses,
procederam do mesmo modo, assumindo exteriormente as categorias, mas ti­
raram em seguida outras consequências. Eles não só sucumbem à aparência da
circulação simples, mas distorcem a aparência em verdade inteira:

A relação entre capital e juro, por exemplo, é reduzida à troca de valores de troca.
Assim, depois que é aceito da empiria que o valor de troca não existe apenas nessa de-
terminabilidade simples, mas existe também na determinabilidade essencialmente dife­
rente do capital, o capital é novamente reduzido ao conceito simples do valor de troca,
e o juro, que expressa uma relação determinada do capital enquanto tal, também arran­
cado da determinabilidade, é posto igual ao valor de troca; [é] abstraído da relação como
um todo em sua determinabilidade específica e restituído à relação não desenvolvida da
troca de mercadoria por mercadoria. Se abstraio de um concreto aquilo que o distingue
de seu abstrato, ele é naturalmente o abstrato e de modo algum se distingue dele. De
acordo com isso, todas as categorias econômicas são apenas outros e outros nomes para
a mesma relação de sempre, e essa tosca incapacidade de capturar as diferenças reais
pretende então representar o puro senso comum enquanto tal. A s “harmonias econômi­
ca s” do senhor Bastiat significam no fundo que existe uma única relação econômica
que recebe diversos nomes, ou que tem lugar uma diversidade exclusivamente nominal.
(42/174-5 [ed. bras. Grundrisse, p. 192])

Mediante um processo muito vulgar de abstração, que omite a bel-prazer ora este
ora aquele aspecto da relação específica, esta é reduzida às determinações abstratas da
circulação simples e assim se dá como provado que as relações econômicas em que os
indivíduos se encontram nas esferas mais desenvolvidas do processo de produção são
apenas as relações da circulação simples. (U/917)

Quais são as relações da circulação simples, as relações que aparecem como


universais só quando o capitalismo está plenamente desenvolvido? Quando nos
ocupamos com a obra inicial de Marx, vimos que a concepção materialista de
história se entende como teoria — a ser abolida — , cujo tema é “a diferença
entre o indivíduo pessoal e o indivíduo contingente”, uma diferença que não é

233
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

uma “distinção conceituai, mas um fato histórico” e, por essa razão, pode ser
em princípio abolida. Enquanto os seres humanos — como momento essencial
de toda a sua pré-história — interagem de modo restrito com a natureza, as
suas relações entre si também são pré-formadas de certa maneira e condicio­
nadas em sua respectiva peculiaridade pelo estado da apropriação da natureza.
A forma bem determinada da contingência, a forma bem determinada da m ás­
cara do personagem que representam é, portanto, meramente expressão das
condições restritas de existência, e só é parte essencial de sua personalidade
enquanto ela puder desdobrar a sua personalidade, a sua individualidade, uni­
camente sob essa forma das relações. M arca distintiva da nova história será
que, sobre o fundamento das condições de vida e de existência conscientemen­
te organizadas, os indivíduos se emancipam da máscara como tal e passam a
relacionar-se uns com os outros como indivíduos. Desse modo, porém, desa­
parece também o objeto da teoria, que, como vimos, ocupa-se tão somente com
o “mais universal”, com a propriedade privada, com a máscara, com os per­
sonagens sociais, que nada têm a ver com a individualidade real.
Se examinarm os a exposição das categorias econôm icas até aqui sob o
aspecto da máscara, ela se evidencia como concreção dessas ideias formuladas
nos escritos iniciais:

Os possuidores de mercadorias entraram no processo de circulação simplesmente


como guardadores de mercadorias. Dentro do processo, eles se confrontam na forma
antitética de comprador e vendedor: um, o pão de açúcar personificado; o outro, o ouro
personificado. Quando o pão de açúcar se transforma em ouro, o vendedor se converte
em comprador. Esses caracteres sociais determinados não têm sua origem na individua­
lidade humana em geral, mas nas relações de troca entre pessoas que produzem seus
produtos na forma determinada de mercadorias. O que se expressa na relação do com­
prador com o vendedor não são relações puramente individuais, até porque um e outro
entram nessa relação precisamente porque o seu trabalho individual é negado, isto é, por
ser dinheiro na condição de trabalho de nenhum indivíduo. Portanto, conceber caracteres
econômicos burgueses de compradores e vendedores como formas sociais eternas da
individualidade humana é tão simplório quanto é errôneo deplorá-los como supressão
da individualidade. Eles são manifestação necessária da individualidade em certo está­
gio do processo social de produção. (13/76-7 [ed. bras. Contribuição à crítica da eco­
nomia política, p. 128 modif.])

Desse modo, porém, foi caracterizada apenas a máscara que corresponde


ao dinheiro em sua função de meio de circulação. Porém, conhecemos também

234
A E X P O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

o dinheiro como dinheiro, ouro que se torna dinheiro, na medida em que não
circula ou então se mantém como valor de troca autonomizado no interior do
processo de circulação, a saber, em sua função de meio de pagamento:

Entretanto, o processo da metamorfose das mercadorias, que cria as diferentes de-


terminidades formais do dinheiro, metamorfoseia também os possuidores de mercado­
rias ou modifica os caracteres sociais sob os quais se apresentam uns aos outros. No
processo da metamorfose da mercadoria o guardião das mercadorias muda de pele cada
vez que a mercadoria se move ou o dinheiro assume novas formas. Assim sendo, origi­
nalmente os possuidores de mercadoria se confrontavam apenas como possuidores de
mercadorias; em seguida, um convertia-se em vendedor, o outro, em comprador; depois,
alternadamente, cada um em comprador e vendedor; logo em entesouradores e, por fim,
em pessoas ricas. De modo que os possuidores de mercadorias não saem do processo de
circulação tal como entraram nele. Na realidade, as diferentes determinidades formais
que o dinheiro adquire no processo de circulação constituem apenas as metamorfoses
cristalizadas das próprias mercadorias, as quais, por seu lado, são apenas a expressão
objetivada das instáveis relações sociais por meio das quais os possuidores de merca­
dorias efetuam o seu metabolismo. No processo de circulação, criam-se novas relações
de intercâmbio, e os portadores dessas relações modificadas, os possuidores de merca­
dorias, adquirem novos caracteres econômicos. Assim como na circulação interna, o
dinheiro se idealiza e o simples papel, como representante do ouro, desempenha a fun­
ção de dinheiro, também esse mesmo processo dá ao comprador ou ao vendedor que
entra nele como simples representante de dinheiro ou de mercadoria, isto é, represen­
tando o dinheiro futuro ou a mercadoria futura, a eficácia do vendedor ou do comprador
real. (13/115-6 [ed. bras. Contribuição à critica da economia política, pp. 176-7 modif.])

V en d ed o r e c o m p ra d o r p a s sa m a se r c re d o r e devedor. O d esd o b ra m e n to
su b se q u e n te das c a te g o ria s se m p re n o s a p re s e n ta rá m á sc a ra s n o v as e m ais
c o m p le x a s, q u e tê m c o m a m a is sim p le s d as fo rm a s, a d e tro c a d o re s , a de
v e n d e d o r e co m p rad o r, isto em com um : a de se re m u n iv e rsa l-ab stra tas, g raças
a u m a n eg a çã o a b stra ta do esp ecífico q u e ex iste n o s in d iv íd u o s reais.
No interior do sistema global dessas máscaras, as que foram explicitadas
até agora têm uma importância especial. Elas fazem parte da circulação simples
das mercadorias, cuja especificidade consiste na mediação de extremos que
não são produzidos por ela própria, mas pressupostos. “Examinando a form a
da própria circulação, o que nela devém, surge, é produzido, é o próprio di­
nheiro e nada mais. As mercadorias são trocadas na circulação, mas não surgem
nela” (U/926). Se abstrairmos da posição intermediária peculiar do entesoura-

235
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

dor, o metabolismo social permanece, em todos os casos, como finalidade do


ato. Defrontam-se produtos do trabalho que para o produtor têm valor de uso
apenas como meio para apropriar-se de outro valor de uso, constituindo, por
isso, mercadorias como unidade imediata de valor de uso e valor de troca. Para
que se tornem valores de uso, para que se afirmem como produtos do trabalho
social global, as mercadorias devem se apresentar umas às outras como valores
de troca, ou seja, assumir forma-preço e executar o processo de mudança de
forma que examinamos na explicitação das categorias.

Mercadoria é trocada por mercadoria ou, muito antes, visto que a determinação da
mercadoria se extinguiu, valores de uso de qualidades diferentes são trocados entre si e a
própria circulação só serviu para, por um lado, fazer com que valores de uso troquem de
mãos em correspondência às necessidades e, por outro lado, fazer com que troquem
de mãos na medida em que neles está contido tempo de trabalho, fazer com que se re­
ponham na medida em que constituem momentos com peso igual do tempo de trabalho
social universal. Mas então as mercadorias lançadas na circulação alcançaram a sua fi­
nalidade. Cada mercadoria na mão do seu novo possuidor cessa de ser mercadoria; cada
uma se tom a objeto da necessidade e como tal, em conformidade com a sua natureza, é
consumida. Com isso, a circulação chegou ao térm ino. N ada resta além do meio de
circulação como resíduo simples. Porém, como tal resíduo, ele perde a sua determinação
formal. Ele desaba em sua matéria, a qual sobra como cinza inorgânica de todo o pro­
cesso. (U/925)

Já enfatizamos reiteradamente, e temos de fazê-lo uma vez mais neste pon­


to, que a argumentação no tocante à circulação simples das mercadorias sem­
pre corre em dois trilhos. Enquanto mediação entre extremos pressupostos, ela
não é só uma “esfera abstrata do processo burguês de produção total”, mas
encontra-se igualmente nas fronteiras dos sistemas comunitários natural-es-
pontâneos, que jogam a sua produção excedente a partir de fora como “com­
bustível no fogo” dessa mediação evanescente, sendo que, em correspondência
com o modo de proceder delineado anteriormente, a passagem categorial da
esfera da circulação simples para o processo total capitalista deve ser com ­
preendida ao mesmo tempo como a exposição mais abstrata possível do m o­
vimento histórico que leva ao capitalismo industrial. Marx deixa isso muito
claro nos Grundrisse:

A circulação simples, que é meramente a troca de mercadoria e dinheiro, assim como


troca de mercadorias de forma mediada, inclusive prosseguindo até o entesouramento,

236
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

pode subsistir no plano histórico justam ente porque é apenas movimento mediador
entre dois pontos de partida pressupostos, sem que o valor de troca tenha se apossado
da produção de um povo, seja em toda a sua superfície, seja na sua profundidade. Ao
mesmo tempo, porém, evidencia-se historicamente o modo como a própria circulação
leva à produção burguesa, isto é, à produção que põe valor de troca e cria para si mesma
uma base diferente daquela da qual ela partiu de modo imediato. (U/921)

Contudo, quer o aspecto categorial quer o aspecto histórico seja deslocado


para o primeiro plano, em ambos os casos está implicado que as máscaras de­
correntes da circulação simples sempre são sustentadas também por outras re­
lações econômicas, nas quais os indivíduos estão “assentados”, e por meio das
quais eles igualmente ainda se inter-relacionam sob a forma de determinados
personagens sociais. Marx as denomina, por um lado, de modo geral, “con­
dições tanto patriarcais como antigas (igualmente feudais)”, nas quais a máscara
aparece, em todo caso, como uma “qualidade inseparável da individualidade”
(e que, por essa razão, como devemos acrescentar, não pode ser reconhecida
como tal); e, por outro lado, chama-as de relações capitalistas, ou seja, aquela
forma social anteriormente mencionada do estranhamento entre a existência
subjetiva e as condições objetivas de sua realização. Nos dois casos, a estrutura
de produção sustentadora é como que sobreposta e im pregnada por outros
personagens sociais que decorrem da circulação simples das mercadorias, cuja
peculiaridade consiste em que, neles próprios, não aparece a forma determi­
nada da reprodução social. Os seres humanos se defrontam como possuidores
de equivalentes, trocadores, vendedores e compradores, credores e devedores,
e somente como tais eles são captados por Marx nessa passagem decisiva.
Esse processo de troca é, como Marx elucida mais extensamente no Ras­
cunho ou então no Texto original [Urtext] de Para a crítica, a “base real” da
“trindade” burguesa “de propriedade, liberdade e igualdade”. A decifração da
ideologia burguesa precisa ter início nessa estrutura da circulação simples:
“Essas ideias, enquanto ideias puras, são expressões idealizadas dos seus di­
ferentes momentos; ao serem explicitadas em relações jurídicas, políticas e
sociais, elas apenas são reproduzidas em outras potências” (U/915). Contudo,
Marx não aborda mais detalhadamente essa reprodução, limitando-se a tratar
as determinações essenciais do modo como resultam da análise acurada da
situação de troca alçada acima do processo real de produção e das estruturas
que lhe dão sustentação.
Quando nos ocupamos com os Manuscritos económico-filosóficos, aponta­
mos que o jovem Marx, sem se deixar impressionar pela definição burguesa de

237
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

propriedade, visualizou imediatamente as relações essenciais do processo ca­


pitalista global. No Rascunho, ele recupera o que deixou de fazer nos escritos
iniciais: a reconstituição da gênese da formulação burguesa, que em igual me­
dida está na base da agitação socialista-burguesa que apregoa que o trabalhador
possui direito exclusivo ao valor resultante do seu trabalho.

Na própria circulação, no processo de troca, ao modo como ele aflora na superfície


da sociedade burguesa, cada qual só dá na medida em que toma e só toma na medida em
que dá. Para fazer uma ou outra coisa, ele precisa ter. O procedimento mediante o qual
ele se colocou na condição de ter não constitui nenhum dos momentos da própria cir­
culação. (U/903).

A mercadoria é pressuposto da circulação; ela precisa

[...] existir antes do início da troca, concomitantemente, como no caso da com pra e
venda, ou pelo menos assim que a transação é consumada, como na forma da circulação
em que o dinheiro vale como meio de pagamento. Concomitantemente ou não, elas só
ingressam na circulação como existentes. O processo de surgimento das mercadorias,
e, portanto, também o seu processo original de apropriação, situa-se, p o r conseguinte,
além da circulação. (U/903)

É por isso que tampouco é possível deduzir da forma da circulação das


m ercadorias o seu processo de surgimento, e não obstante isso é feito pela
teoria burguesa. Ao não captar essa relação peculiar entre processo de circu­
lação e processo de produção nessa determ inidade, ela form ula o processo
situado além da circulação segundo o parâmetro das representações que decor­
rem do ato de circulação. A mercadoria

[...] é pressuposto da circulação. E, visto que a partir do ponto de vista da circulação as


mercadorias alheias, ou seja, o trabalho alheio, só podem ser apropriadas mediante a
exteriorização do trabalho próprio, a partir do mesmo ponto de vista o processo de apro­
priação da m ercadoria que antecede a circulação aparece necessariam ente como
apropriação pelo trabalho. A mercadoria, enquanto valor de troca, é apenas trabalho
objetivado, e, do ponto de vista da circulação, a qual é, ela própria, apenas o movimen­
to do valor de troca, o trabalho objetivado estranho não pode ser apropriado a não ser
mediante a troca de um equivalente; sendo assim, a mercadoria de fa to nada pode ser
além da objetivação do trabalho próprio, e como esta última de fato constitui o proces­
so fático de apropriação de produtos da natureza, ela aparece igualmente como título
jurídico de propriedade. [...]. Por conseguinte, todos os economistas modernos enuncia-

238
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

ram o trabalho próprio como o título original de propriedade, seja em termos mais
econômicos seja em termos mais jurídicos, e a propriedade consistindo no resultado do
trabalho próprio como o pressuposto fundam ental da sociedade burguesa. (U/903)

Escapa à percepção do teórico burguês que todos os membros da sociedade


só se encontram como compradores e vendedores depois de consumada a di­
visão de classes e depois que os meios de produção assumiram a form a do
capital, ou seja, depois que também a sua própria formulação se baseia em
pressupostos que se tornaram históricos. As aporias da exposição da lei do
valor devem ser derivadas, em última análise, desse conjunto de fatos.

Por outro lado, visto que da análise de relações econômicas mais concretas do que
as representadas pela circulação simples parecem resultar leis contraditórias, todos os
economistas clássicos, incluindo Ricardo, gostam de deixar que vigore como lei univer­
sal aquela visão que decorre da própria sociedade burguesa, mas banem a sua realida­
de estrita para a idade de ouro, na qual ainda não existia nenhuma propriedade. Por
assim dizer, para a época anterior à queda no pecado econômico, como faz, por exemplo,
Boisguillebert. De modo que se obteria o curioso resultado de que a verdade da lei de
apropriação da sociedade burguesa devesse ser deslocada para uma época em que essa
mesma sociedade ainda não existia, e a lei fundamental da propriedade para a época da
ausência de propriedade. Essa ilusão é translúcida. (U/904)

As ideias da igualdade e da liberdade também devem ser explicitadas a


partir dessa articulação central do sistema global. Esta também deve ser tomada
como ponto de partida para a decifração da aparência distorcedora da concor­
rência, a qual a teoria burguesa não reconhece como tal e, por isso, consegue
se estabelecer no horizonte burguês como ciência clássica ou vulgar. “Pressu­
posta a lei cia apropriação pelo trabalho próprio, e não se trata aí de um pres­
suposto arbitrário, mas decorrente da análise da própria circulação, franqueia-
-se automaticamente na circulação um reino da liberdade e igualdade burgue­
sas, fundado sobre essa lei” (U/904). A nossa análise da forma-preço mostrou
que as mercadorias têm de apresentar-se como qualitativamente idênticas no
interior do processo de circulação, e, para que, na existência ideal da merca­
doria como preço, possam expressar-se como artigos quantitativamente dife­
rentes da mesma substância social, deve-se abstrair de sua existência material,
de sua particularidade individual. A forma-preço é essa negação da diversida­
de natural das m ercadorias — consumada sem a consciência adequada dos
envolvidos. No preço, as mercadorias são expressas como algo idêntico, e o

239
SO B R E A E ST RU T U RA L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

dinheiro em sua função como meio de circulação meramente serve como re­
presentante do preço perante todas as outras mercadorias, servindo como meio
para trocar as mercadorias por preços iguais. Assim sendo, os sujeitos da cir­
culação simples também “de fato só se encontram como valores de troca subje­
tivados, isto é, como equivalentes vivos, de igual validade” (U/912).

A diversidade natural particular que existia na mercadoria está apagada e é cons­


tantemente apagada pela circulação. Um trabalhador que compra uma mercadoria por
3 shillings aparece ao vendedor na mesma função, na mesma igualdade — na forma
de 3 shillings — , em que apareceria o rei que fizesse o mesmo. Toda diferença entre eles
é apagada. (42/172 [ed. bras. Grundrisse, p. 189])

Os sujeitos da circulação se defrontam como agentes do mesmo trabalho social


universal indiferente; “cada um tem a mesma relação social com o outro que
o outro tem com ele. A sua relação como trocadores é, por isso, a relação da
igualdade. É impossível detectar qualquer diferença ou mesmo antagonismo
entre eles, nem sequer uma dissim ilaridade” (42/167 [ed. bras. Grundrisse,
p. 185]). Essa igualdade social tampouco é tangida, na medida em que o di­
nheiro atua como unidade das duas primeiras determinações, embora a princí­
pio pareça assim. Enquanto os indivíduos se defrontam como simples guarda­
dores de mercadorias, eles são simplesmente trocadores; na medida em que o
dinheiro funciona como meio de circulação, eles se defrontam como compra­
dor e vendedor, mudando, porém, de m áscara na metam orfose seguinte da
mercadoria, em que o vendedor se torna comprador e se defronta com um novo
possuidor de equivalentes que aparece como vendedor. "Ora, na circulação, os
trocadores também se defrontam qualitativamente como comprador e vendedor,
como mercadoria e dinheiro, mas eles trocam de posição uma vez, e o processo
consiste tanto em pôr o desigual quanto em anular o ato de pôr o igual, de modo
que este último aparece apenas formalmente” (U/914). Quando o dinheiro apa­
rece como valor de troca autonomizado no interior da circulação, como meio
de pagamento universal, e os indivíduos se encontram na forma de credor e
devedor, também nesse caso eles são iguais, na medida em que o dinheiro, na
forma do meio de pagamento universal, “anula toda a diferença específica em
termos de desempenho, igualando-os. Ele iguala a todos ante o dinheiro, mas
o dinheiro é só o seu contexto social objetivado bem próprio” (U/914-5). A isso
se restringe o tratamento marxiano dessa configuração específica do valor de
troca autonomizado. Contudo, ele trata mais extensamente o dinheiro como
matéria da acumulação e do entesouramento, porque justam ente aí a igualdade

240
/1 E X P O S I Ç Ã O CATEG O RIAL

parece ser anulada, na medida em que ocorre a possibilidade de que “um indi­
víduo se enriqueça mais, adquira mais títulos da produção universal do que
outros”. Contudo, a nossa análise do entesouramento resultou em que a acu­
mulação da riqueza em sua forma universal só é possível quando o entesoura-
dor vende mais do que compra, ou seja, trabalha e renuncia à fruição. Nenhum
indivíduo consegue “extrair dinheiro à custa do outro. Ele só pode tomar em
forma de dinheiro o que dá em forma de mercadoria. Uma coisa frui do con­
teúdo da riqueza, a outra toma posse de sua forma universal” (U/915). Embora
na atividade do entesourador o capitalismo comece a se mover, a produção em
sua “forma bárbara” passe a ser um fim em si e o entesourador se torne um
homem rico, este, enquanto sujeito da circulação, é igual a todos os demais.
“Nem mesmo a herança e relações jurídicas afins, que podem até prolongar
desigualdades assim surgidas, prejudicam a igualdade social. Se a relação ori­
ginal do indivíduo A não estiver em contradição com ditas relações, essa con­
tradição certamente não poderá ser provocada pelo fato de o indivíduo B ocu­
par o lugar do indivíduo A, perenizando-o” (U/915). Contudo, ao ocupar o
lugar do indivíduo A e perenizá-lo, o indivíduo B apenas confirma que nem ele
próprio nem o outro indivíduo existem no sentido enfático, mas que, na figura
do guardador do tesouro, ele cumpre uma função preestabelecida, assume uma
máscara que se situa além de toda individualidade: na medida em que o “indi­
víduo, nessa relação, é apenas a individuação do dinheiro, ele é como tal tão
imortal quanto o próprio dinheiro” (U/915). Se o herdeiro quiser fruir a rique­
za, ele só poderá fazê-lo ao preço do empobrecimento progressivo; “visto que
só equivalentes são trocados, o herdeiro tem de lançar o dinheiro novamente
na circulação para realizá-lo como fruição” . No momento em que ele ingressa
na esfera da circulação, ele é possuidor de um equivalente, ainda que o seja
numa forma imediatamente universal. Ele é comprador, funcionário idôneo do
processo social.
Em todas as funções do dinheiro e seus personagens sociais corresponden­
tes, que resultam da análise da circulação simples, abstrai-se, como foi men­
cionado, de toda a particularidade natural. O conteúdo do processo de troca, o
valor de uso, compreendido no seu sentido mais amplo como metabolismo do
ser humano com a natureza, permanece além da análise da circulação simples.
O que se pressupõe aqui é meramente que, nessa esfera da mediação, são in­
troduzidos valores de uso que só têm valor de uso para o possuidor enquanto
meios de troca e, em consequência, em sua diversidade natural, representam a
base da igualdade social dos indivíduos.

241
SO B R E A E ST RU T U RA L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K ARL M A R X

Se o indivíduo A tivesse a mesma necessidade que o indivíduo B e tivesse realizado


seu trabalho no mesmo objeto que o indivíduo B, não existiria nenhuma relação entre
eles; considerados do ponto de vista de sua produção, não seriam indivíduos diferentes.
Ambos têm a necessidade de respirar; para ambos o ar existe como atmosfera; isso não
os coloca em nenhum a relação social; como indivíduos que respiram, relacionam-se
entre si apenas como corpos naturais, não como pessoas. A diversidade de sua necessi­
dade e de sua produção fornece unicam ente a oportunidade para a troca e para sua
igualação social nessa troca; por conseguinte, essa diversidade natural é o pressuposto
de sua igualdade social no ato da troca e dessa conexão em que se relacionam como
agentes produtivos. (42/168 [ed. bras. Grundrisse, p. 186])

Só da explicitação subsequente das categorias resultará que essa forma da


igualdade social é condicionada por uma desigualdade que, ela própria, ainda
é determinada socialmente (e não naturalmente), a saber, quando se mostra que
o conteúdo da troca igualmente é abrangido pelo processo econômico, de modo
que a troca só aparece mais como momento do processo global. Porém, ainda
não chegamos a esse ponto. O “conteúdo fora dessa forma está de fato ain­
da com pletam ente fora do âmbito da economia, ou é posto como conteúdo
natural diferente do econômico” (42/167 [ed. bras. Grundrisse, p. 185]). Nessa
fase da exposição, o valor de uso só possui significado na medida em que é não
valor de uso para o possuidor e, em consequência, representa o momento que
impele para a troca.
Por esse aspecto, Marx descreve a circulação simples como “base real” da
liberdade burguesa. “Na medida em que agora essa diversidade natural dos
indivíduos e das próprias mercadorias [...] constitui o motivo para a integração
desses indivíduos, para a sua relação social como trocadores, relação em que
são pressupostos e se afirmam como iguais, à determinação da igualdade soma-
-se a da liberdade” (42/169 [ed. bras. Grundrisse, pp. 186-7]). Marx distingue
claramente dois aspectos. Um deles refere-se ao “momento jurídico da pessoa
e da liberdade, na medida em que esta está contida nele” (42/169 [ed. bras.
Grundrisse, p. 187 modif.]). Como nenhum dos indivíduos se apodera da mer­
cadoria do outro pela força, só podendo adquiri-la na medida em que o outro
se desfaz voluntariamente do objeto, eles “reconhecem-se mutuamente como
proprietários, como pessoas cuja vontade impregna suas mercadorias” (42/169
[ed. bras. Grundrisse, p. 187]). Marx se limita a essa breve alusão ao primeiro
aspecto. O segundo aspecto diz respeito à base do conceito enfático burguês
do sujeito:

242
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

Mas isso não é tudo: o indivíduo A serve à necessidade do indivíduo B por meio da
mercadoria a somente na medida em que, e porque, o indivíduo B serve à necessidade
do indivíduo A por meio da mercadoria b, e vice-versa. Cada um serve ao outro para
servir a si mesmo; cada um se serve reciprocamente do outro como seu meio. (42/169
[ed. bras. Grundrisse, p. 187])

Essa constelação se apresenta à consciência dos sujeitos participantes da


troca da seguinte maneira:

1) que cada um só alcança seu objetivo na medida em que serve como meio para o
outro; 2) que cada um só devém meio para o outro (ser para outro) como fim em si
mesmo (ser para si); 3) que a reciprocidade, segundo a qual cada um é ao mesmo tempo
meio e fim, e de fato só alcança seu fim na medida em que devém meio, e só devém meio
na medida em que se põe como fim em si mesmo; que, portanto, cada um se põe como
ser para outro na medida em que é ser para si, e que o outro se põe como ser para ele
quando é ser para si mesmo — que essa reciprocidade é um fato necessário, pressupos­
to como condição natural da troca, mas que é, enquanto tal, indiferente para cada um
dos dois trocadores, e essa reciprocidade tem interesse para o indivíduo apenas na me­
dida em que satisfaz ao seu interesse, como interesse que exclui o interesse do outro,
sem ligação com ele. (42/169 [ed. bras. Grundrisse, p. 187])

Portanto, embora o interesse comum dos trocadores seja conhecido e reconhe­


cido como tal, ele não constitui o motivo imediato, mas “atua, por assim dizer,
por detrás dos interesses particulares refletidos em si mesmos, do interesse
singular contraposto ao do outro (42/170 [ed. bras. Grundrisse, p. 187]).
Desse modo, como formula Marx em resumo,

[...] está posta a completa liberdade do indivíduo: transação voluntária; nenhuma vio­
lência de parte a parte; posição de si como meio, ou a serviço, unicamente como meio
de se pôr como fim em si, como o dominante e o prevalecente; enfim, o interesse egoís­
ta, que não realiza nenhum interesse superior; o outro também é reconhecido e conhe­
cido como sujeito que realiza seu interesse egoísta exatamente da mesma maneira, de
modo que ambos sabem que o interesse comum consiste precisamente na troca do inte­
resse egoísta em sua bilateralidade, multilateralidade e autonomização. O interesse uni­
versal é justamente a universalidade dos interesses egoístas. Se, portanto, a forma eco­
nômica, a troca, põe a igualdade dos sujeitos em todos os sentidos, o conteúdo, a
matéria, tanto individual como objetiva, que impele à troca, põe a liberdade. Igualdade
e liberdade, por conseguinte, não apenas são respeitadas na troca baseada em valores de

243
SO B R E A E ST RU T U RA L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

troca, mas a troca de valores de troca é a base produtiva, real, de toda igualdade e liber­
dade. (42/170 [ed. bras. Grundrisse, pp. 187-8])

Nesse ponto, vamos nos dar por satisfeitos com o relato das ideias de Marx
e apenas lembrar que ele tinha intenção de dedicar-se novamente a essas ques­
tões assim que tivesse concluído a exposição da anatomia da sociedade bur­
guesa. Em nosso contexto, é essencial que ele tenha exibido o lugar sistemático,
no qual deve ter início a decifração da autocompreensão burguesa. Caracteri­
zamos até agora esse lugar como a articulação entre a esfera da circulação
simples e o “processo mais profundo que está por trás dela, que resulta dela
tanto quanto a produz — o processo do capital industrial'’, que, no entanto, só
poderá ser apreendido por ela quando essa diferença entre aparência e essência
for reconhecida e a sua unidade na diferença for apreendida como especifici­
dade do processo global.

A circulação, considerada em si mesma, é a mediação de extremos pressupostos.


Mas não é ela que põe esses extremos. Sendo ela mesma a totalidade da mediação,
sendo ela mesma um processo total, ela consequentemente precisa ser mediada. Por
conseguinte, o seu ser imediato é pura aparência. Ela é o fenômeno de um processo que
se desenrola por trás dela. (U/920)

Com outras palavras: quando o teórico deixa de perceber que todos os


membros da sociedade só podem encontrar-se nessa esfera da mediação depois
que o capitalismo industrial se estabeleceu e os meios de produção assumiram
a forma do capital, ele não só deixa de ter acesso a conexões essenciais, como
Marx também ainda consegue extrapolar o modo como o processo global se
apresenta para esse teórico. O malogro da reconstituição teórica do modo de
agir da lei do valor anda de mãos dadas com a distorção da determ inidade
formal social em forma natural; ser capital se torna para ele uma qualidade das
coisas da natureza, e o ser humano é, para ele, por natureza trabalhador. Por
outro lado, ele precisa distorcer as noções que decorrem da circulação simples
em verdade inteira e, desse modo, entra imediatamente em contradição com o
mundo concreto dos antagonismos de classe e da espoliação, que refuta bru­
talmente essas noções da sociedade burguesa como um reino de liberdade e da
igualdade. O modo como a teoria burguesa resolve essas contradições é expli­
citado por Marx na análise da lei da apropriação, cuja “validade estrita” é
deslocada para uma época em que ainda não existia propriedade. A superfície

244
A EXPOSIÇÃO CATEG0R1AL

da sociedade burguesa é distorcida em sua própria pré-história. Marx vê no


proudhonismo apenas uma variante dessa forma de solução:

Por outro lado, evidencia-se igualmente a tolice dos socialistas (notadamente dos
franceses, que querem provar que o socialismo é a realização das ideias da sociedade
burguesa expressas pela Revolução Francesa), que demonstram que a troca, o valor de
troca etc. são originalmente (no tempo) ou de acordo com o seu conceito (em sua forma
adequada) um sistema da liberdade e igualdade de todos, mas que têm sido deturpados
pelo dinheiro, pelo capital etc. Ou, ainda, que a história só fez até o momento tentativas
malsucedidas de realizá-las de um modo correspondente à sua verdade, e agora os so­
cialistas, como Proudhon, por exemplo, descobriram o cerne da questão, com o que deve
ser providenciada a genuína história dessas relações, em lugar de sua falsa história. Cabe
responder-lhes: o valor de troca ou, mais precisamente, o sistema monetário é de fato o
sistema da igualdade e da liberdade, e as perturbações que enfrenta no desenvolvimen­
to ulterior do sistema são perturbações a ele imanentes, justamente a efetivação da li­
berdade e da igualdade, que se patenteiam como desigualdade e ausência de liberdade.
(42/174 [ed. bras. Grundrisse, p. 191 modif.])

Todas as tentativas de estabelecer um sistema da troca justa baseado no


dinheiro-trabalho (todas fracassaram depois de curto tempo) são atribuídas por
Marx sem exceção à falta de noção da relação entre circulação simples e pro­
cesso capitalista global. Proudhon apenas repetiu o que outros haviam tentado
antes dele:

O senhor Bray nem desconfia que essa relação igualitária, esse ideal de melhora­
mento que ele quer introduzir no mundo, não passa do reflexo do mundo atual e que,
por conseguinte, é totalmente impossível reconstruir a sociedade sobre uma base que
não passa de uma sombra embelezada dessa sociedade. A medida que a sombra toma
corpo, vê-se que esse corpo, longe de ser a transfiguração sonhada, é o exato corpo atual
da sociedade. (4/105 [ed. bras. A miséria da filosofia, p. 73 modif.])

Portanto, o utopismo real de modo algum deve ser procurado em Marx, mas
ele passa essa acusação adiante, para o socialismo burguês, repetindo, por
assim dizer, a crítica hegeliana do conceito kantiano do dever-ser e mostrando
o que constitui a essência da utopia: a má iníinitude de uma práxis que, na
tentativa de realizar as suas representações, desde sempre já estabelece junto
com ela a irrealizabilidade destas. A utopia é parte do mundo que ela procura
modificar:

245
S O B R E A ESTRU TU RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E CAPITAL EM K ARL M A R X

O que distingue esses senhores dos apologistas burgueses é, de um lado, a sensibi­


lidade para as contradições que o sistema encerra; de outro, o utopismo, não compreen­
der a diferença necessária entre a figura real e a ideal da sociedade burguesa e, conse­
quentemente, pretender assumir o inútil empreendimento de querer realizar novamente
a própria expressão ideal, expressão que de fato nada mais é do que a fotografia dessa
realidade. (42/174 [ed. bras. Grundrisse, p. 191])

Aqui também é possível demonstrar de novo como a concepção marxiana


da práxis futura vem acompanhada da resolução positiva de problemas essen­
ciais da economia burguesa, ou então, inversamente, como as noções socia­
listas burguesas estão acopladas com representações subalternas da teoria do
dinheiro:

O que em Gray não aparece e constitui um segredo principalmente para ele mesmo,
ou seja, que a moeda de trabalho é uma fraseologia de matiz econômico para o desejo
piedoso de desembaraçar-se do dinheiro e, com o dinheiro, do valor de troca e, com o
valor de troca, da mercadoria e, com a mercadoria, da forma burguesa de produção, é
dito francamente por alguns socialistas ingleses que escreveram antes e depois de Gray.
Todavia, estava reservado ao senhor Proudhon e a seus discípulos pregar seriamente que
a degradação do dinheiro e a exaltação da mercadoria são o núcleo do socialismo, e,
desse modo, dissolver o socialismo num mal-entendido elementar quanto à conexão
necessária entre mercadoria e dinheiro. (13/68-9 [ed. bras. Contribuição à crítica da
economia política, p. 118 modif.])

2. A mais abstrata das f o r m a s do capital

Voltemos nossa atenção novamente à exposição das categorias, que a partir


de agora deve ser entendida como destruição sistemática da forma em que o
capitalismo se apresenta em sua superfície. A “base real” da “trindade” bur­
guesa “de propriedade, liberdade e igualdade”, ou seja, a circulação simples
como mediação do m etabolism o social, como processo formal, no qual as
mercadorias são jogadas de fora como combustível no fogo, será evidenciada
como momento, como simples forma de manifestação, como forma de distor­
ção total, sob a qual se apresenta o processo global.

Como vimos, na circulação simples enquanto tal (no valor de troca em seu movi­
mento), a ação recíproca dos indivíduos é, quanto ao conteúdo, somente satisfação
m útua e interessada de suas necessidades e, quanto à forma, trocar, pôr como igual
(equivalentes), de modo que a propriedade também é posta aqui somente como apro-

246
A EXPOSIÇÃO CATEG O RIAL

priação do produto do trabalho m ediante o trabalho e o produto do trabalho alheio


mediante o trabalho próprio, na medida em que o produto do próprio trabalho é com­
prado mediante o trabalho alheio. A propriedade do trabalho alheio é m ediada pelo
equivalente do trabalho próprio. Essa forma da propriedade — assim como a igualdade
e a liberdade — está posta nessa relação simples. Isso se modificará no ulterior desen­
volvimento do valor de troca e revelará, enfim, que a propriedade privada do produto do
próprio trabalho é idêntica à separação entre trabalho e propriedade; de modo que tra­
balho = criará propriedade alheia e a propriedade = comandará trabalho alheio. (42/163-
4 [ed. bras. Grundrisse, pp. 180-1])

Visto que, como já foi mencionado, a passagem para o capital é feita de


modo mais suave no Rascunho do que em O capital, iremos orientar-nos pre­
ponderantem ente nesse texto. Como vimos, essa passagem deve iniciar na
explicitação da terceira determinação do dinheiro, no valor de troca autonomi­
zado: “Nessa determinabilidade já está contida de maneira latente sua deter­
minação como capital" [ed. bras. Grundrisse, p. 162]. Igualmente já foi indi­
cado o movimento decisivo da multiplicação, o qual, como expõe Marx, jamais
pôde ser apresentado pela teoria burguesa como momento substancial do pró­
prio capital. Identificamos a razão propriamente dita para esse fracasso no fato
de o sujeito burguês se defrontar im potente com o seu próprio mundo, um
mundo que aparece a ele tão somente na forma de objeto. A expressão desse
fato é a aceitação exterior das categorias; porém, basta que a categoria “capital"
seja mencionada, e o movimento da multiplicação já estará contido na ideia.
Portanto, ser “capital” já é esse movimento da multiplicação e, em consequên­
cia, é ele que deve ser explicitado antes que se fale de capital. A análise exata
do entesouramento nos mostrou, ao mesmo tempo, que a exposição das catego­
rias, por assim dizer, cinde-se em duas linhas de pensamento; uma delas trata
do entesouramento enquanto elo necessário na explicitação das figuras espe­
cíficas da terceira determinação do dinheiro; a outra tem por objeto a gênese
do capital. Queremos retomar agora esta última linha de pensamento, que ti­
vemos de interromper, e continuar a desfiá-la.
No Texto original [Urtext] de Para a crítica da economia política, Marx
resume a análise da circulação simples tendo em vista a explicitação seguinte
das categorias:

Mas então as mercadorias lançadas na circulação alcançaram a sua finalidade. Cada


mercadoria na mão do seu novo possuidor cessa de ser mercadoria; cada uma se torna
objeto da necessidade e como tal, em conformidade com a sua natureza, é consumida.

247
SO B R E A ESTRU TU RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E CAPITAL E M K A R L M A R X

Com isso, a circulação chegou ao término. Nada resta além do meio de circulação como
resíduo simples. Porém, como tal resíduo, ele perde a sua determinação formal. Ele
desaba em sua matéria, a qual sobra como cinza inorgânica de todo o processo. No
momento em que a mercadoria se tomou valor de uso como tal, ela foi jogada para fora
da circulação, ela deixou de ser mercadoria. Por conseguinte, não é nessa direção do
conteúdo (cla matéria) que devemos procurar as determinações form ais que nos levarão
adiante [grifos meus, H. R.], O valor de uso se torna na circulação aquilo que era seu
pressuposto independentemente dela, a saber, objeto de uma necessidade bem determi­
nada. Como tal, ele foi e permanece motivo material da circulação; mas ele não é toca­
do por esta enquanto forma social. No movimento M-D-M, o material aparece como o
conteúdo propriamente dito do movimento; o movimento social aparece só como m e­
diação evanescente para satisfazer às necessidades individuais. O metabolismo do tra­
balho social. Nesse movimento, a abolição da determinação formal, isto é, das determi­
nações decorrentes do processo social, aparece não só como resultado, mas também
como finalidade; é o mesmo que mover um processo significa para o agricultor, embora
não para o advogado. Portanto, para investigar a determinação form al subsequente que
brota do movimento da circulação, temos de manter-nos na direção em que o aspecto
formal, o valor de troca como tal, continua a desenvolver-se; em que recebe determi­
nações mais aprofundadas através do próprio processo da circulação. Portanto, na
direção do desenvolvimento do dinheiro, da form a D-M-D [grifos meus, H. R.]. (U/925)

Expusemos esse processo que inicia de maneira nova, “essa duplicação da


troca — a troca para o consumo e a troca pela troca” (42/83 [ed. bras. Grun-
drisse, p. 97]) — , na análise do entesouramento, que, contudo, como vimos,
evidencia-se como contradição existente, e isso em duplo sentido. Visto que a
autonomização do valor de troca, a retenção da riqueza na sua forma universal,
passa imediatamente para a multiplicação desta, essa contradição se apresenta
de dois modos. Por um lado, dado que, em sua metalicidade, o ouro constitui
uma abstração imediatamente existente de toda a riqueza real, reter a riqueza
nessa forma é, de modo geral, “pura ilusão. Ali onde a riqueza parece existir
enquanto tal em forma absolutamente material, tangível, o dinheiro tem sua
existência apenas em minha cabeça, é uma pura quim era” (42/160 [ed. bras.
Grundrisse, p. 177]). A realidade da riqueza universal existente como coisa
situa-se fora dela, na totalidade das particularidades que constituem a sua subs­
tância. Porém, a tínica possibilidade para que o dinheiro se afirme e realize
como representante material da riqueza universal é ele desaparecer como for­
ma universal. Ele precisa ser lançado na circulação, e tem de desaparecer “ante
os distintos modos particulares da riqueza”, e “essa desaparição é o único modo
possível de afirmá-lo como riqueza. A dissolução do acumulado em prazeres

248
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

singulares é a sua realização” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). Por outro
lado, visto que essa retenção anda de mãos dadas com a sua multiplicação, ele
se evidencia também nesse sentido como contradição. Se esse movimento da
multiplicação não andar de mãos dadas com a multiplicação da riqueza real, o
dinheiro perde o “seu valor à medida mesmo que é acumulado. O que se ma­
nifesta como sua multiplicação é, de fato, sua diminuição. A sua autonomia é
pura aparência; sua independência da circulação só existe referida a ela, como
dependência dela” (42/160 [ed. bras. Grundrisse, p. 177]). Em consequência
disso, revela-se falso que “sua própria quantidade é a medida de seu valor” .
Portanto, o dinheiro em sua terceira determinação se contradiz não só por se
distorcer, enquanto riqueza individualizada retida, em pura quimera da rique­
za real, mas também “porque deve representar a riqueza enquanto tal; mas, de
fato, representa somente um quantum idêntico de valor variável” (42/160 [ed.
bras. Grundrisse, p. 177]). O dinheiro em sua terceira determinação “m ani­
festa-se pois, sob todos os aspectos, como uma contradição que se resolve a si
mesma; que tende à sua própria resolução” (42/160 [ed. bras. Grundrisse,
pp. 176-7]). Essa foi, numa recapitulação sucinta, a linha de pensamento que
abandonamos na página 224 deste livro.
De que modo se dá, então, o desenvolvimento seguinte? Vimos até agora
que o valor de troca se autonomiza, torna-se dinheiro, mais exatamente como
“produto da circulação, que, fora do combinado, por assim dizer, cresceu para
além dela” (U/928). No ouro, a riqueza existe como tal, individualizada, obje­
tivada. Porém, quando o dinheiro é fixado nessa forma, ele perde a sua deter­
minação formal e justam ente não é o que deveria ser, a saber, valor de troca
autonomamente existente. A forma da autonomia é apenas uma “forma nega­
tiva, evanescente ou ilusória”. O ouro é dinheiro só em relação à circulação,
enquanto possibilidade de ingressar nela. “Mas ele perde essa determinação
no momento em que se realiza. Ele recai em suas duas funções de medida e
meio de circulação. Como simples dinheiro, ele não vai além dessas determi­
nações” (U/933). Portanto, o valor de troca não consegue se autonomizar fora
da circulação; fora dela, ele obtém apenas uma autonomia aparente; retornan­
do, porém, à circulação, ele desaparece em face de uma forma específica da
riqueza. Mas manter-se como valor de troca autonomizado só lhe é possível
dentro da circulação e, ao mesmo tempo, ele não pode desaparecer em face de
uma forma específica da riqueza.

Para que o dinheiro se conserve como dinheiro, ele tem de ser capaz de, assim como
é sedimento e resultado do processo de circulação, voltar a ingressar nele, isto é, tornar-

249
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

-se na circulação não só um simples meio de circulação que, na forma da mercadoria,


desaparece em face do simples valor de uso. Ao ingressar numa das determinações, o
dinheiro não precisa se perder na outra e, portanto, ainda em sua existência como mer­
cadoria não precisa permanecer dinheiro e em sua existência como dinheiro não precisa
existir apenas como forma passageira da mercadoria, em sua existência como mercado­
ria não precisa perder o valor de troca, em sua existência como dinheiro não precisa
deixar de considerar o valor de uso. O seu ingresso mesmo na circulação deve ser um
momento de seu permanecer consigo mesmo e o seu permanecer consigo mesmo deve
ser o seu ingresso na circulação. (U/931)

Se analisarmos com mais exatidão a circulação simples, evidencia-se que


esse novo movimento já está implantado nela. Dado que cada mercadoria, para
tornar-se valor de uso, precisa executar uma dupla mudança de forma, o valor
de troca já existe duplamente: ora como mercadoria específica, ora como di­
nheiro. Ora ele existe nesta determinação, ora naquela, e só pode existir nesta
quando não existe naquela e naquela só quando não existe nesta. Em contra­
partida, é o mesmo valor de troca que existe ora na forma da mercadoria, ora
na forma do dinheiro, “e [há] precisamente o movimento de pôr-se nessa deter­
minação dupla e conservar-se em cada uma delas como seu oposto, na merca­
doria como dinheiro e no dinheiro como mercadoria. Isto que existe em si na
circulação simples não está, porém, posto nela” (U/934). Porém, no momento
em que esse movimento aparece como tal, no momento em que o valor de tro­
ca assume essas duas formas, mercadoria e dinheiro, apenas de modo evanes­
cente, trocando-se pela mercadoria particular, esta que, porém, em sua particu­
laridade expressa somente a universalidade do valor de troca, despindo essa
forma e assumindo a do dinheiro, este que agora, porém, igualmente é apenas
expressão abstrata unilateral do valor de troca enquanto universalidade, é nesse
momento que presenciamos o processo de surgimento do capital. Esse movi­
mento é a primeira forma de manifestação do capital, o capital como “unidade
de mercadoria e dinheiro, só que a unidade processual de ambos, não sendo
nem uma nem o outro, e sendo tanto uma quanto o outro” (U/934). Ao mesmo
tempo, ela é a mais abstrata das formas do capital: “Quando falamos aqui de
capital, ainda se trata apenas de um nome. A única determinabilidade em que
o capital é posto, à diferença do valor de troca imediato e do dinheiro, é a de­
terminabilidade do valor de troca que se conserva e se perpetua na circulação
e pela circulação” (42/186 [ed. bras. Grundrisse, p. 203]). Contudo, na medida
em que o valor de troca autonomizado se conserva como tal, ou seja, na medi­
da em que existe na forma da objetalidade, “mas não se importando se essa

250
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

objetalidade é a do dinheiro ou a da mercadoria” (U/939), porque cada urna das


duas só expressa ainda a universalidade do valor de troca, ele constitui em cada
uma das formas a riqueza universal, e esta, como vimos na análise do dinheiro
como unidade da primeira e da segunda determinações, não é capaz de outro
movimento além do quantitativo.

Por conseguinte, para o valor que conserva a si mesmo, multiplicar-se é o mesmo


que conservar-se e ele só se conserva na medida em que constantemente procura ir além
de sua limitação quantitativa que contradiz a sua universalidade intrínseca. [...]. Enquan­
to riqueza, forma universal da riqueza, enquanto valor que vigora como valor, ele é,
portanto, o impulso constante que procura ir além de sua limitação quantitativa; proces­
so sem fim. A sua própria vitalidade consiste exclusivamente nisso; ele só se conserva
como valor que vigora para si, diferenciado do valor de uso, na m edida em que se
multiplica constantemente mediante o próprio processo de troca. O valor ativo é apenas
valor que põe mais-valor. (U/936)

Como sustentador consciente desse movimento, o possuidor do dinheiro se


torna capitalista, o seu propósito subjetivo, a caça permanente da riqueza abs­
trata, é idêntico ao conteúdo objetivo desse novo movimento da circulação, a
valorização do valor. Só agora, depois que o dinheiro enquanto capital perdeu
a sua rigidez material e se tornou processo, é possível e significativa a compa­
ração com o conceito hegeliano do espírito. Em O capital, Marx aponta expli­
citamente, ainda que em forma de paródia, para a identidade estrutural, fazen­
do referência ao “mais sublime exemplo” que Hegel pôde citar para aclarar a
natureza do espírito, a respeito do qual ele, no entanto, diz simultaneamente
não se tratar propriamente de um exemplo, mas do “universal, do próprio ver­
dadeiro, do qual tudo o mais é exemplo” : é o Deus do cristianismo, que, en­
quanto outro de si mesmo, enquanto Filho, é seu objeto, mas esse outro de si
mesmo igualm ente é ele mesmo de modo im ediato; “ele se sabe nele e se
contempla nele — e justamente esse saber-se e contemplar-se é, em terceiro
lugar, o próprio espírito. Isso quer dizer que o espírito é o todo, nem um nem
o outro por si sós”4. Em O capital consta que:

Se na circulação simples o valor das mercadorias atinge no máximo uma forma in­
dependente em relação a seus valores de uso, aqui ele se apresenta, de repente, como
uma substância em processo, que move a si mesma e para a qual mercadorias e dinhei­
ro não são mais do que meras formas. E mais ainda. Em vez de representar relações de
mercadorias, ele agora entra, por assim dizer, numa relação privada consigo mesmo.

251
S O B R E A E ST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

Como valor original, ele se diferencia de si mesmo como mais-valor, tal como Deus Pai
se diferencia de si mesmo como Deus Filho, sendo ambos da mesma idade e constituin­
do, na verdade, uma única pessoa, pois é apenas por meio do mais-valor de £10 que as
£100 adiantadas se tomam capital, e, assim que isso ocorre, assim que é gerado o filho
e, por meio do filho, o pai, desaparece novamente a sua diferença e eles são apenas um,
£110. (23/169-70 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 230])

A exposição seguinte das categorias resulta do desdobramento das contra­


dições da “fórmula geral-’, que é como Marx chama em O capital* esse movi­
mento do valor enquanto sujeito abrangente, que se conserva e se expande na
circulação, e do qual ele diz, no Rascunho, que “ainda se trata apenas de um
nome”**, por ser apenas uma única determinidade que diferencia esse movi­
mento do valor de troca imediato. Atenhamo-nos primeiramente ao Rascunho.
O que se detalha ali é isto: para que esse processo não seja apenas formal, quer
dizer, para que ele não ocorra de tal modo que apenas seja alterada a forma
do valor de troca, o valor de troca precisa ser trocado pelo valor de uso e esse
valor de uso precisa ser consumido. Porém — e nesse complemento está con­
tido como que todo o desenvolvimento seguinte — , no consumo da mercado­
ria, o valor de troca precisa se conservar como valor de troca, o

[...] processo do seu desaparecimento tem de aparecer, por conseguinte, simultaneamente


como processo do desaparecimento do seu desaparecimento, isto é, como processo re­
produtivo. Portanto, o consumo da m ercadoria não está direcionado para a fruição im e­
diata, mas é, ele próprio, um momento da reprodução do seu valor de troca. O valor de
troca resulta, assim, não só na forma da mercadoria, mas também aparece como o fogo
em que se desfaz a sua própria substância. Essa determinação decorre do conceito mes­
mo do valor de uso. (U/938)

Algumas páginas antes disso, essa ideia é formulada de outra maneira: a


mercadoria tem de ser consumida como valor de uso ou

[...] o seu desaparecimento tem de desaparecer e, ele próprio, ser meio do surgimento
de um valor de troca maior, da reprodução e da produção do valor de troca — consumo
produtivo, isto é, consumo pelo trabalho, visando objetivar o trabalho, pôr valor de
troca. A produção de valor de troca é, de modo geral, apenas produção de valor de troca

* Cf. O capital, pp. 223 e ss. (N. do T.)


** Ver Grundrisse, p. 203. (N. do T.)

252
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

maior, multiplicação da mesma coisa. A sua reprodução simples modifica o valor de uso
em que ele existe, a exemplo do que faz a circulação simples, mas não o cria. (U/932-3)

Acompanhemos agora o detalhamento mais concreto dos primeiros passos


que levam nessa direção. O movimento de que tomamos conhecimento como
a mais abstrata das formas de manifestação do capital é o do valor de troca
autonomizado, do valor de troca como unidade processual de m ercadoria e
dinheiro: “Ele existe na forma da objetalidade, mas não se importando se essa
objetalidade é a do dinheiro ou a da m ercadoria” (U/939). Em cada uma dessas
formas ele permanece “valor de troca que se atém a si mesmo” (U/941). Por­
tanto, ele é dinheiro não só quando assume a forma de dinheiro, mas na mesma
medida quando assume a forma de mercadoria. Agora a forma universal está
postada diante dele até mesmo enquanto forma específica ao lado das formas
específicas da riqueza; ambas são apenas formas específicas dele mesmo, em
cada uma delas ele se encontra em si mesmo. Enquanto tal movimento ele é
capital. Porém, de outra parte, ele só pode ser capital como valor de troca que
se autonomiza em face de um outro. Esse outro, porém, já não podem mais ser
as mercadorias específicas ou a forma universal destas, dado que ele só é como
autonomizado (pois o seu ser é o movimento da unidade processual) na medi­
da em que, estando nelas, está em si mesmo.

Em vez de ser excluído, todo o entorno das mercadorias, o conjunto de todas as


mercadorias aparece como igual conjunto de encarnações do dinheiro. No que se refere
à diversidade material natural das mercadorias, nenhuma delas impede o dinheiro de
tom ar o seu lugar, fazer dela o seu próprio corpo, na medida em que nenhuma delas
exclui a determinação do dinheiro na mercadoria. (U/941-2)

Mas o que é esse outro? Como valor de troca autonomizado ele é, do co­
meço ao fim, valor de troca e, por essa razão, só pode se autonomizar em rela­
ção ao valor de uso: “Enquanto valor de troca, o valor de troca só pode mesmo
se autonomizar em relação ao valor de uso com o qual ele se defronta como
tal. É só nessa relação que o valor de troca pode se autonomizar como tal; só
assim ele pode ser posto e funcionar como tal” (U/942). O que é o valor de uso
quando todo o mundo do trabalho objetivado, não importando se em forma
específica ou universal, é dinheiro, valor de troca no seu movimento como ca­
pital? Ele só pode ser o trabalho subjetivo não objetivado, existente como
“capacidade, possibilidade, faculdade, como capacidade de trabalho do su­
jeito vivo” (U/942) em oposição ao trabalho objetivado:

253
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

Para o dinheiro como capital não existe outro valor de uso. E é justamente esse o
seu comportamento enquanto valor de troca para com o valor de uso. O único valor de
uso capaz de constituir uma oposição e um complemento ao dinheiro como capital é o
trabalho e este existe na capacidade de trabalho que existe como sujeito. O dinheiro só
é como capital em relação ao não capital, à negação do capital, exclusivamente em re­
lação ao qual ele é capital. O não capital é o próprio trabalho. O primeiro passo para
converter o dinheiro em capital é a sua troca pela capacidade de trabalho, para, por meio
desta última, transformar o consumo das mercadorias, isto é, o seu pôr e negar efetivos
como valores de uso, simultaneamente em sua operação com o valor de troca. (U/943-4)

Condição dessa transformação de dinheiro em capital é que o proprietário


do dinheiro na esfera da circulação encontre à disposição o trabalhador livre
que, enquanto proprietário livre, dispõe de sua capacidade de trabalho e não
pode mais trocar o seu trabalho em forma de uma mercadoria, como trabalho
objetivado. Como sabemos, essa constelação é o produto de um longo desen­
volvimento histórico. O ser humano se torna primeiro um trabalhador livre,
para quem a sua própria capacidade de trabalho se objetiva e se torna permu­
tável em forma de mercadoria quando ele está separado das condições objeti­
vas de sua realização, dos meios de produção, que passam igualmente a estar
disponíveis no mercado como mercadorias. No capitalismo desenvolvido, o
possuidor de dinheiro, que quer valorizar o seu dinheiro como capital, parte
desse conjunto de fatos como algo dado; do mesmo modo, o processamento
teórico do capitalismo em forma de exposição dialética das categorias, que,
por assim dizer, acompanha esse possuidor de dinheiro, só é possível tendo o
referido conjunto de fatos como pressuposto:

Historicamente, o capital, em seu confronto com a propriedade fundiária, assume


invariavelmente a forma do dinheiro, da riqueza monetária, dos capitais comercial e
usurário. Mas não é preciso recapitular toda a gênese do capital para reconhecer o di­
nheiro como sua primeira forma de manifestação, pois a mesma história se desenrola
diariamente diante de nossos olhos. Todo novo capital entra em cena — isto é, no mer­
cado, seja ele de mercadorias, de trabalho ou de dinheiro — como dinheiro, que deve
ser transformado em capital mediante um processo determinado. (23/161 [ed. bras. O
capital, vol. I, p. 223])

E, nos Grundrisse, consta o seguinte:

Nesse ponto, evidencia-se nitidamente como a forma dialética da exposição só é


correta quando conhece os seus limites. Da análise da circulação simples resulta para

254
A EXPOSIÇÃO CATEG0R1AL

nós o conceito geral do capital porque, no interior do modo de produção burguês, a


própria circulação simples só existe como pressuposto do capital e pressupondo o capi­
tal. O resultar desse conceito não faz do capital a encarnação de uma ideia eterna, mas
o mostra só no modo em que ele, na realidade, tem de desembocar, apenas enquanto
form a necessária, no trabalho que põe valor de troca, na produção baseada no valor de
troca. (U/945-6)

Acompanhemos a m esma linha de pensamento em O capital. Como foi


mencionado, a exposição das categorias tem prosseguimento no desdobramen­
to do que ele chama, nesse ponto, de “contradições da fórmula geral”. A ver­
são breve dessa fórmula geral tem o seguinte teor: comprar para vender mais
caro, ou seja, o movimento do valor de troca em processo, o qual se conserva
e se expande na mudança das formas, a mais abstrata das formas de m anifes­
tação do capital. Como a mais abstrata das formas do capital, ele, porém, é
simultaneamente a forma na qual cada capital deve aparecer; não é somente o
capital comercial que temos diante de nós nessa fórmula geral, como parece
à prim eira vista,

[...] também o capital industrial é dinheiro que se transforma em mercadoria e, por meio
da venda da mercadoria, retransforma-se em mais dinheiro. Eventos que ocorram entre
a compra e a venda, fora da esfera da circulação, não alteram em nada essa forma de
movimento. Por fim, no capital a juros, a circulação D-M-D’ aparece abreviada, de modo
que seu resultado se apresenta sem a mediação ou, dito em estilo lapidar, como D-D’,
dinheiro que é igual a mais dinheiro, ou valor que é maior do que ele mesmo. Na verda­
de, portanto, D-M-D’ é a fórmula geral do capital tal como ele aparece imediatamente
na esfera da circulação. (23/170 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 231])

M as como essa fórm ula geral é possível sob as condições da circulação


simples? Esse é o teor da pergunta decisiva que se coloca agora e que é apenas
outra formulação para a pergunta levantada nesse mesmo ponto no Rascunho:
qual é o valor de uso perante o qual se autonomiza o valor de troca existente
como unidade processual de mercadoria e dinheiro? Ou são trocados equiva­
lentes e, nesse caso, não pode haver mais-valor ou então há o capitalismo e não
existe troca de equivalentes. Como sabemos, foi essa a pergunta que deu o que
pensar a Adam Smith em contraposição a Ricardo, que, como detalha Marx,
conseguiu chegar a uma concepção coesa justam ente por não ter visto nenhum
problema nesse ponto. Marx mostra, então, detalhadamente que, posta dessa
maneira, a pergunta implica a impossibilidade de uma resposta; que ela — como

255
S O B R E /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

única formulação possível desse problema no horizonte burguês — assume


apenas um lugar determinado no sistema das categorias e, dessa maneira, faz
avançar a exposição. Queremos omitir aqui a repetição da totalidade dos argu­
mentos que Marx apresenta nesse contexto. É óbvio que só pode tratar-se de
ilustrações ou da refutação de linhas de pensamento propostas pela economia
vulgar burguesa como soluções para esse problem a insolúvel. Marx acaba
chegando ao resultado a que tinha de chegar:

Portanto, o capital não pode ter origem na circulação, tampouco pode não ter origem
na circulação. Ele tem de ter origem nela e, ao mesmo tempo, não ter origem nela. Temos,
assim, um duplo resultado. A transformação do dinheiro em capital tem de ser explica­
da com base nas leis imanentes da troca de mercadorias, de modo que a troca de equi­
valentes seja o ponto de partida. Nosso possuidor de dinheiro, que ainda é apenas um
capitalista em estado larval, tem de comprar as mercadorias pelo seu valor, vendê-las
pelo seu valor e, no entanto, no final do processo, retirar da circulação mais valor do que
ele nela lançara inicialmente. Sua crisalidação [Schmetterlingsentfaltung] tem de se dar
na esfera da circulação e não pode se dar na esfera da circulação. Essas são as condições
do problema. Hic Rhodus, hic salta! (23/180-1 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 240-1])

Conhecemos o próximo passo. O possuidor do dinheiro tem de encontrar à


disposição o trabalhador livre.

Por que razão esse trabalhador livre se confronta com ele na esfera da circulação é
algo que não interessa ao possuidor de dinheiro, para o qual o mercado é uma seção
particular do mercado de mercadorias. No momento, essa questão tampouco tem inte­
resse para nós. Ocupamo-nos da questão teoricamente, assim como o possuidor de di­
nheiro ocupa-se dela praticamente. (23/183 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 244])

Na nossa tentativa de reconstituir o curso da explicitação das categorias,


chegamos à constelação que o jovem Marx tinha em vista, mas cuja gênese ele
naquele tempo não conseguiu explicar exatamente. Embora nos Cadernos de
excertos já seja possível reconhecer a tentativa de derivar sistematicamente da
circulação simples das mercadorias a figura mais sólida do estranhamento, o
capitalismo como forma insuperável da apropriação distorcida da natureza,
passagens decisivas permanecem obscuras. A ideologia alemã tampouco vai
muito além disso. Como vimos, ele parte ali da forma conclusiva da separação
entre o ser humano e as condições objetivas de sua atividade e tenta compreen­
der os estágios anteriores como formas menos evoluídas dessa estrutura básica,

256
A E X P O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

que estão preferencialm ente condicionadas pela respectiva forma do instru­


mento de produção. Uma formulação mais exata do decurso histórico só se
encontra na obra tardia, mais exatamente, como já ressaltamos, numa espécie
de forma codificada na exposição dialética das categorias. A essa formulação
queremos dedicar-nos agora.
Na introdução à crítica da economia política, Marx indica que

[...] seria impraticável e falso [...] deixar as categorias econômicas sucederem-se umas
às outras na sequência em que foram determinantes historicamente. A sua ordem é de­
terminada, ao contrário, pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa,
e que é exatamente o inverso do que aparece como a sua ordem natural ou da ordem que
corresponde ao desenvolvimento histórico. (42/41 [ed. bras. Grundrisse, p. 60])

Antes de surgir o capitalismo industrial houve capital mercantil, capital


usurário e capital a juros e até mesmo capital por ações. Porém, o tratamento
dessas formas só acontece no segundo e no terceiro volumes de O capital, em
que são apresentadas como modos funcionais específicos do processo capita­
lista global, que só chega a ser processo capitalista global e só pode ser expos­
to como tal quando toda a produção estiver subsumida no capital. “Na história,
ocorrem outros sistemas que constituem o fundamento material do desenvol­
vimento incompleto do valor. Como o valor de troca desempenha aqui apenas
um papel acessório ao lado do valor de uso, aparece como sua base real não o
capital, mas a relação da propriedade fundiária” (42/177 [ed. bras. Grundrisse,
p. 194]). Contudo, no momento em que todos os produtos assumem a forma-
-mercadoria, o capital aparece como "base real” do valor de troca, pressupon­
do a separação entre o produtor imediato e os meios de produção e, portanto,
também a forma burguesa da propriedade fundiária. Isso implica, ao mesmo
tempo, que a produção em sua totalidade se distorceu em fim em si; com outras
palavras: que a forma universal da riqueza se tornou fim imediato de toda a
produção. O processo capitalista global, por conseguinte, de qualquer modo já
tem de ser compreendido como valor em processo, como o movimento contínuo
do sujeito abrangente, que assume diferentes formas, mas em todas essas for­
mas está em si mesmo e é exatamente isto: estar em si mesmo no ser-outro e
simultaneamente multiplicar-se nesse movimento:

O capital, como o sujeito que atravessa todas as fases, como a unidade movente,
unidade processual de circulação e produção, é capital circulante·, o capital, como capi­
tal confinado em cada uma dessas fases, como capital posto em suas diferenças, é ca­

257
SO B R E A E ST RU T U RA LÓ G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL E M K ARL M A R X

pitai fixado, capital engajado. Como capital circulante, ele próprio se fixa, e como
capital fixo, circula. (42/521 [ed. bras. Grundrisse, p. 519])

Por essa razão, constitui uma abstração inaugurar a exposição das categorias
com a explicitação da circulação simples das mercadorias, porque de qualquer
modo já é o próprio capital que se apresenta dessa forma; no entanto, outra
forma de exposição não é possível, porque o capital pressupõe o valor em
termos lógicos e também históricos.

Se na teoria o conceito de valor precede o de capital, mas, por outro lado, subenten­
de um modo de produção fundado no capital para seu desenvolvimento puro, o mesmo
sucede na prática. D aí porque os economistas consideram necessariamente o capital ora
como criador, fonte dos valores, ora, por outro lado, pressupõem valores para a forma­
ção do capital. (42/177 [ed. bras. Grundrisse. p. 194])

O último passo da exposição, reconstituído anteriormente, é, por isso m es­


mo, simultaneamente o primeiro passo para a decifração da forma da circula­
ção simples enquanto circulação simples, enquanto

[...] esfera abstrata do inteiro processo de produção burguês, que, por suas próprias de­
terminações, identifica-se como momento, simples forma de manifestação de um pro­
cesso mais profundo que está por trás dela, que resulta dela tanto quanto a produz —
o processo do capital industrial. (U/922-3)

No âmbito do decurso seguinte da exposição, que agora, com a reconstituição


do automatismo imanente do valor processual em seu movimento como capi­
tal, diferencia-se essencialm ente da exposição precedente, encontramos no
final do primeiro volume de O capital uma passagem, na qual Marx resume o
curso da explicitação das categorias do ponto de vista dessa decifração:

Na medida em que o mais-valor de que se compõe o capital adicional n. 1 resultou


da compra da força de trabalho por uma parte do capital original, compra que obedeceu
às leis da troca de mercadorias e que, do ponto de vista jurídico, pressupõe apenas, da
parte do trabalhador, a livre disposição sobre suas próprias capacidades e, da parte do
possuidor de dinheiro ou de mercadorias, a livre disposição sobre os valores que lhe
pertencem; na medida em que o capital adicional n. 2 etc. não é mais do que o resultado
do capital adicional n. 1 e, portanto, a consequência daquela primeira relação; na m edi­
da em que cada transação isolada obedece continuamente à lei da troca de mercadorias.

258
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

segundo a qual o capitalista sempre compra a força de trabalho e o trabalhador sempre


a vende — e, supomos aqui, por seu valor real — , é evidente que a lei da apropriação
ou lei da propriedade privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias,
transforma-se, obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto
oposto. A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se a
ponto de que agora a troca se efetiva apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a pró­
pria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do que um a parte do
produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor,
o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. A
relação de troca entre o capitalista e o trabalhador se converte, assim, em mera aparência
pertencente ao processo de circulação, numa mera forma, estranha ao próprio conteúdo
e que apenas o mistifica. A contínua compra e venda da força de trabalho é a forma. O
conteúdo está no fato de que o capitalista troca continuamente uma parte do trabalho
alheio já objetivado, do qual ele não cessa de se apropriar sem equivalente, por uma
quantidade maior de trabalho vivo alheio. Originalmente, o direito de propriedade apa­
receu diante de nós como fundado no próprio trabalho. No mínimo esse suposto tinha
de ser admitido, porquanto apenas possuidores de mercadorias com iguais direitos se
confrontavam uns com os outros, mas o meio de apropriação da mercadoria alheia era
apenas a alienação [Veräußerung] de sua mercadoria própria, e esta só se podia produzir
mediante o trabalho. Agora, ao contrário, a propriedade aparece do lado do capitalista,
como direito a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do
trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre
propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente,
tinha origem na identidade de ambos. (23/609-10 [ed. bras. O capital, vol. I, pp. 658-9])

Essa passagem textual é de interesse não só porque designa o ponto dentro


do sistema de categorias em que “a análise histórica deve ser introduzida”,
como diz Marx no Rascunho, mas também porque ela tem uma importância
sumamente questionável na crítica que Engels faz a Eugen Díihring e porque,
desse m odo, é possível dem onstrar que a form ulação da gênese histórica
do capitalismo industrial não pode acontecer se quisermos fazer jus à teoria
marxiana.
Queremos omitir aqui uma abordagem mais detalhada da temática da con­
trovérsia. A objeção essencial contra a “teoria do poder” de Eugen Dühring
consiste em que a análise do “papel do poder” só pode ocorrer em conexão
com uma análise precisa da respectiva fase do desenvolvimento do domínio da
natureza. Abstraindo-se disso, a discussão não só fica abstrata no mau sentido,
porque a forma que o poder assume de qualquer modo já é degradada a algo
secundário, mas também é iminente o risco de deixar de perceber a conexão

259
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

real entre economia e política e de explicar as “relações econômicas como


resultado das ações políticas”. Esse foi o caso de Eugen Dühring e, em face
disso, Engels teve de insistir na “prim azia da economia”. Nos trabalhos pre­
paratórios para o Anti-Dühring, Engels anota que, em O capital, Marx teria
provado “como as leis da produção de mercadorias, numa certa fase do desen­
volvimento, necessariamente dão origem ã produção capitalista com todas as
suas sacanagens, e que, para isso, nenhum poder se fa z necessário” (20/591).
No próprio Anti-Dühring, consta então isto:

Porém, para explicar a “subjugação do ser humano visando ao trabalho servil” em


sua forma mais moderna, no trabalho assalariado, tampouco podemos nos valer do uso
da força, nem da propriedade obtida pela força. Já mencionamos que papel desempenhou
na dissolução do antigo sistema comunitário, ou seja, na generalização direta ou indi­
reta da propriedade privada, a metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias,
a sua confecção não para consumo próprio, mas para troca. Ocorre, porém, que Marx
demonstrou de modo cristalino, em O capital — e o senhor Dühring tem o cuidado de
não mencionar isso nem com uma sílaba — , que, num certo grau de desenvolvimento,
a produção de m ercadorias se transform a em produção capitalista e que, nessa fase
[Engels passa a citar Marx, H. R.], “a lei da apropriação ou lei da propriedade privada,
fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se, obedecendo a sua
dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto. A troca de equivalentes, que
aparecia como a operação original, torceu-se a ponto de que agora a troca se efetiva
apenas na aparência, pois, em primeiro lugar, a própria parte do capital trocada por
força de trabalho não é mais do que uma parte do produto do trabalho alheio, apropria­
do sem equivalente; em segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-
-la, como tem de fazê-lo com um novo excedente. [As frases seguintes de Marx, refe­
rentes à relação de troca entre capital e trabalho como uma aparência pertencente ao
processo de circulação, não são citadas por Engels, que prossegue a citação assim:]
Originalmente, a propriedade [em vez de o direito de propriedade, H. R.] apareceu
diante de nós como fundada no próprio trabalho. [Nas próximas frases, que voltam a
referir-se à relação da circulação simples das mercadorias, Engels procede do mesmo
modo:] Agora [...] a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito a apropriar-
-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do trabalhador, como impos­
sibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A cisão entre propriedade e trabalho
torna-se consequência necessária de uma lei que, aparentemente, tinha origem na iden­
tidade de ambos”*. [Engels continua, H. R.] Com outras palavras: mesmo que excluamos

* Ver Karl Marx, Das Kapital, vol. I, em: Karl Marx e Friedrich Engels, Werke, vol. 23,
pp. 609-10. Ed. bras. O capital, vol. I, p. 659. (N. do T.)

260
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

a possibilidade de qualquer rapina, ato de violência e trapaça, mesmo supondo que toda a
propriedade privada se baseia originalmente no trabalho próprio do possuidor e que, em
todo o longo transcurso ulterior, foram trocados sempre valores equivalentes, ainda
assim, no desenvolvimento progressivo da produção e da troca, chegamos necessaria­
mente ao presente modo de produção capitalista [...]. Todo esse processo se explica a
partir de causas puramente económicas, sem que urna única vez tivesse sido necessário
o roubo, o uso da força, o Estado ou a interferência política de qualquer natureza. (20/51-
-2 [ed. bras.]*)

Com certeza, teria sido difícil para Eugen Díihring acompanhar essa “prova
cristalina”, dado que essa passagem extraída da obra de Marx só diz o que
Engels gostaria de provar mediante uma desfiguração grotesca, uma “prova”
que só é propriamente compreensível diante do paño de fundo da controvérsia
política que estava na ordem do dia naquela época. Mas não é disso que se
trata aqui. O essencial é, muito antes, que Engels constata uma conexão neces­
sária entre circulação simples de mercadorias e capitalismo desenvolvido, mas,
ao mesmo tempo, só consegue interpretar nesse sentido a exposição marxiana
das categorias ã custa de uma falsificação forçada.
Essa contraposição abstrata de violência e autodinamismo econômico não
existem em Marx. Se a própria exposição categorial ainda deve ser compreen­
dida como forma codificada de exposição do movimento que historicamente
leva ao capitalismo, se, portanto, se demonstra que o capitalismo industrial
está implantado no próprio dinheiro e que só o desdobramento dialético das
categorias na forma adequada, a saber, na forma da necessidade, reflete expli­
citamente o que desde sempre já era imanente ao processo histórico, então isso
implica, ao mesmo tempo, que, em cada categoria, os atos de poder da história
do mundo estão como que “suprassumidos”. O sujeito burguês livre e o movi­
mento conscientem ente executado do valor processual, que se evidencia no
ser-outro como um universal que se mantém idêntico e se engrandece nesse
movimento, não têm como existir sem o seu complemento, a capacidade viva
de trabalho que produz mais-valor. E esse mesmo sujeito livre produz essa
capacidade, se necessário, com a força bruta, ao transformar a possibilidade
de mais-trabalho na realidade de um mais-produto.

* Referência completa da ed. bras.: Friedrich Engels. A revolução da ciência segundo o senhor
Eugen Dühring (Anti-Dühring). Trad. Nélio Schneider. São Paulo. Boitempo. no prelo. (N. do T.)

261
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

[...] é evidente que, se a existência de trabalho excedente supõe certo desenvolvimento


da produtividade do trabalho, a mera possibilidade desse trabalho excedente (isto é, a
existência daquele mínimo de produtividade do trabalho) ainda não gera a sua efetivi­
dade. Para isso, é mister que o trabalhador seja antes coagido a trabalhar além do tem­
po necessário, e essa coação exerce-a o capital. (26.2/408-9 [ed. bras. Teorias da mais-
-valia, vol. II, p. 838])

Como essa ocorrência se apresenta sob a forma da explicitação categorial?


No Rascunho, imediatamente após a formulação da recém-mencionada “con­
versão dialética”, Marx passa para a exposição da “acumulação primitiva”. Ali
consta o seguinte:

Por outro lado, o que é muito mais importante para nós, o nosso método indica os
pontos onde a análise histórica tem de ser introduzida, ou onde a economia burguesa,
como simples figura histórica do processo de produção, aponta para além de si mesma,
para modos históricos de produção anteriores. Por essa razão, para desenvolver as leis
da economia burguesa não é necessário escrever a história efetiva das relações de pro­
dução. Mas a sua correta observação e dedução, como relações que devieram elas pró­
prias históricas, levam sempre a primeiras equações [...] que apontam para um passado
situado detrás desse sistema, (42/373 [ed. bras. Grundrisse, p. 378])

Em O capital, ele aborda esse tema somente após a exposição da “trans­


formação de mais-valor em capital” e da explicitação das “leis gerais da acu­
mulação capitalista”. Ele inicia o capítulo 24 com a formulação dessa “pri­
meira equação” :

Vimos como o dinheiro é transform ado em capital, como por meio do capital é
produzido mais-valor e do mais-valor se obtém mais capital. Porém, a acumulação do
capital pressupõe o mais-valor, o mais-valor, a produção capitalista, e esta, por sua vez,
a existência de massas relativamente grandes de capital e de força de trabalho nas mãos
de produtores de mercadorias. Todo esse movimento parece, portanto, girar num círcu­
lo vicioso, do qual só podem os escapar supondo um a acumulação “prim itiva” [...],
prévia à acumulação capitalista, uma acumulação que não é resultado do modo de pro­
dução capitalista, mas seu ponto de partida. (23/741 [ed. bras. O capital, vol. I, p. 785])

Esse ponto de partida do modo de produção capitalista, a separação entre


o produtor e os meios de produção, é igualmente descrito por Marx ainda como
resultado do movimento do capital, como vimos ao tratar da crítica marxiana

262
A EXPOSIÇÃO CATEGORIAL

da teoria ricardiana da renda fundiária. Por conseguinte, até para conseguir


escrever a “historia real das relações de produção” ainda é pressuposta a expo­
sição categorial e, desse ponto de vista, a “fórmula geral do capital” apresen­
tada como contraditória adquire ainda outro significado. Ao nos mostrar, no
âmbito do desdobramento das categorias, como o capital “na realidade tem de
desembocar, apenas enquanto form a necessária, no trabalho que põe valor de
troca, na produção baseada no valor de troca” (U/946), isso também vale para
o processo histórico: “Esse movimento apresenta-se sob diversas configurações,
tanto como m ovimento que historicam ente conduz ao trabalho produtor de
valor, como igualmente no interior do próprio sistema da produção burguesa,
i.e., da produção que põe valor de troca” (42/181 [ed. bras. Grundrisse, p. 197]).
Assim sendo, a “fórmula geral” do capital se posiciona, por um lado, como elo
necessário na “sequência” das categorias, do modo como ela “é determinada
[...] pela relação que têm entre si na moderna sociedade burguesa” [ed. bras.
Grundrisse, p. 60], Ela faz avançar a exposição categorial e se mostra simul­
taneamente como forma derivada que só pode ser explicitada quando, no de­
correr do desdobramento do “conceito geral”, o capital chegar a ser exposto
como capital circulante ou então como crédito. É nesse sentido que Marx diz,
na explicitação dessa passagem:

Compreende-se, assim, por que, em nossa análise da forma básica do capital, forma
na qual ele determina a organização econômica da sociedade moderna, deixamos intei­
ramente de considerar suas formas populares e, por assim dizer, antediluvianas: o capi­
tal comercial e o capital usurário. É no genuíno capital comercial que a forma D-M -D’,
comprar para vender mais caro, aparece de modo mais puro. Por outro lado, seu movi­
mento inteiro ocorre no interior da esfera da circulação. Mas como é impossível explicar
a transformação de dinheiro em capital — isto é, a criação do mais-valor — a partir da
própria circulação, o capital comercial aparenta ser impossível, uma vez que se baseia
na troca de equivalentes, de modo que ele só pode ter sua origem na dupla vantagem
obtida, tanto sobre o produtor que compra quanto sobre o produtor que vende, pelo
mercador que se interpõe como um parasita entre um e outro. Nesse sentido, diz Franklin:
“Guerra é roubo, comércio é trapaça” . Se é evidente que a valorização do capital co­
mercial não pode ser explicada pela mera trapaça entre os produtores de mercadorias,
um tratamento devido dessa questão exigiria uma longa série de elos intermediários, de
que carecemos no presente estágio de nossa exposição, ainda dedicado inteiramente
à circulação de mercadorias e seus momentos simples. (23/178-9 [ed. bras. O capital,
vol. I, pp. 238-9])

263
SOBRE A ESTRUTURA LÓGICA DO CONCEITO DE CAPITAL EM KARL MARX

Por outro lado, nessa contraditoriedade imanente à “fórm ula geral” está
implicado ao mesmo tempo que o capital, nessa forma abstrata em que apare­
ce historicam ente pela prim eira vez, aponta para além de si mesmo, para a
esfera da produção, passa a tomar conta desta e por fim se apropria dela. Con­
tudo, não se deve pensar que esse processo tenha transcorrido linearmente; “a
simples existência da fortuna em dinheiro, e até mesmo a obtenção de uma
espécie de supremacia de sua parte, de modo algum é suficiente para que ocor­
ra aquela dissolução em capital. Caso contrário, Roma antiga, Bizâncio etc.
teriam encerrado a sua história com trabalho livre e capital ou, antes, inaugu­
rado uma nova história” (42/413 [ed. bras. Grundrisse, p. 416]). Em bora o
conceito geral de capital, na medida em que o explicitamos aqui (e tratou-se
apenas de uma fração da exposição total), nos mostre que a logicidade im a­
nente ao movimento do valor dá origem ao capitalismo, que na própria mer­
cadoria está implantado todo o capitalismo, de modo algum se pode derivar
do conceito geral do capital por que o capitalismo conseguiu se estabelecer
primeiro na Europa, só aqui podendo chegar a uma existência que corresponde
em maior ou menor grau ao seu conceito (como sabemos, O capital de Marx
só contém a exposição das relações reais, na medida em que são adequadas
ao seu conceito). É nesse ponto que terá de começar a investigação histórica,
à qual Marx aponta o seu lugar bem determinado dentro de seu modo de ex­
posição de matiz especulativo, condicionado pela natureza peculiar do objeto:
“Porém, a extensão em que esse processo supera o modo antigo de produção,
como ocorreu na Europa moderna, e se coloca em seu lugar o modo de pro­
dução capitalista, depende integralmente do nível de desenvolvimento histó­
rico e das circunstâncias dadas com este” (25/608 [ed. bras. O capital, vol. III,
tomo 2, p. 108]). E nos Grundrisse consta assim:

É isso que se denomina efeito civilizador do comércio exterior. Nesse caso, a exten­
são com que o movimento que põe valor de troca afeta a totalidade da produção depen­
de em parte da intensidade desse efeito desde o exterior, em parte do grau já alcançado
pelo desenvolvimento dos elementos da produção interna — divisão do trabalho etc. Na
Inglaterra, p. ex., no século XVI e início do século XVII, a importação de mercadorias
holandesas tornou basicamente decisivo o excedente de lã que o país tinha de dar em
troca. Para produzir mais lã, a terra cultivável foi transformada em pastagem para ove­
lhas, o sistema de pequenos arrendamentos foi desmantelado etc., teve lugar o clearing
o f estates [limpeza das propriedades] etc. Por conseguinte, a agricultura perdeu o cará­
ter de trabalho visando à produção de valor de uso, e a troca de seu excedente perdeu o
caráter indiferente em relação à sua estrutura interna. Em certos pontos, a própria agri-

264
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

cultura é inteiramente determinada pela circulação, é convertida em produção que põe


o valor de troca. Com isso, não só o modo de produção foi modificado, mas foram
dissolvidas todas as antigas relações de população e de produção e as relações econó­
micas a ele correspondentes. Assim, nesse caso estava pressuposta à circulação uma
produção que criava valores de troca só como excedente; mas ela deu vez a uma produ­
ção que só tinha lugar relacionada à circulação, uma produção pondo valores de troca
como seu conteúdo exclusivo. (42/181-2 [ed. bras. Grundrisse, p. 198])

Se compararmos essa formulação com as famosas formulações no ‘‘Pre­


fácio” a Para a crítica da economia política, não há como ignorar que a sub­
divisão da pré-história humana ali proposta em “diferentes épocas progressivas
da formação econômica da sociedade” permanece exterior ao assunto propria­
mente dito e deve ser concebida muito mais no sentido de uma tipologia. A
análise mais acurada do Rascunho mostra que, por trás da exposição dialética
das categorias, oculta-se um conceito enfático de história que só conhece duas
estruturas: relações nas quais a riqueza assume uma forma diferente dela m es­
ma e relações em que isso não ocorre. Por essa razão, por mais que as diferen­
tes formações sociais se diferenciem umas da outras, elas não têm história na
medida em que estiverem baseadas na apropriação da riqueza em sua forma
específica. Só o mundo distorcido é histórico, o mundo em que o próprio me­
tabolism o se degrada à condição de veículo da caça permanente à riqueza
abstrata, em que ele é apanhado pela logicidade imanente desse processo e, ele
próprio, ainda é estruturado por ele. Assim, parece legítimo pensar o processo
histórico como um processo que repetidamente se inicia, que tem como ponto
de partida o fundamento das estruturas a-históricas, retroage sobre elas, pene­
tra nelas e as reconfigura, desagregando-as: “Por isso, as condições patriarcais,
bem como as antigas (justamente como as feudais), declinam com o desenvol­
vimento do comércio, do luxo, do dinheiro, do valor de troca na mesma me­
dida em que com eles emerge a sociedade m oderna” (42/91 [ed. bras. Grun­
drisse, p. 106]). De modo algum trata-se aqui de uma interpretação orientada
em Hegel, mas, ao inverso, a filosofia da história de Hegel é vista por Marx
como uma formulação dos fatos reais opaca para si mesma. Isso pode ser de­
m onstrado em sua apreciação das relações indianas. Do mesmo modo que
Hegel diz que a índia, apesar de toda a cultura, “acaba não tendo nenhuma
história”5, para Marx, a repetição do sempre igual não é razão suficiente para
falar de história: “A sociedade indiana não tem nenhuma história, pelo menos
não uma história conhecida. O que caracterizamos como sua história nada mais
é que a história dos invasores sucessivos que erigiram seus reinos sobre a base

265
SO B R E A E ST R U T U R A L Ó G IC A DO C O N C E ITO D E C APITAL EM K A R L M A R X

d e ssa so c ie d a d e q u e n ão o fe re c e re sis tê n c ia , q u e n ã o se m o d ific a ” (9/220)*.


S ob esses p ressu p o sto s a In g la te rra p o d e a ssu m ir o p a p e l rese rv a d o , n a filo so ­
fia de H egel, p a ra o e n c arreg ad o dos n eg ó cio s do esp írito u n iv ersal:

Certamente o mais vil interesse próprio foi a única m ola propulsora que levou a
Inglaterra a provocar uma revolução social na índia e o modo como ela impôs os seus
interesses foi stupid [estúpido]. Porém, não é esta a questão aqui. A questão é se a hu­
manidade pode cumprir a sua destinação sem uma revolução radical das relações sociais
na Ásia. Se não puder, então a Inglaterra, não importando que crimes possa ter cometi­
do, foi mesmo o instrumento inconsciente da história ao encaminhar essa revolução.
(9/133)**

Queremos interromper neste ponto a tentativa de reconstituir a exposição


dialética das categorias e ressaltar só mais alguns aspectos. Embora a nossa
interpretação, cuja provisoriedade queremos apontar mais uma vez enfatica­
mente, tenha se ocupado apenas com uma fração das categorias, evidencia-se,
por um lado, que há diferenças qualitativas no interior da exposição global,
dependendo se se trata da exposição das determinidades formais da circulação
simples ou então da compreensão da autodinâmica do valor processual que tem
início com o entesouramento; por outro lado, é possível reconhecer na mesma
m edida que praticam ente nada se pode dizer sobre o método m arxiano de
maneira dissociada da reconstituição da temática por ele exposta. A dialética
materialista — assim o fixamos, embora em nenhum lugar Marx o tenha enun­
ciado desse modo — é método a ser reconsiderado, que é tão bom ou tão ruim
quanto o próprio mundo ao qual pertence. Nela se reflete que os próprios seres
humanos são os que se negam abstratamente ao deixarem a natureza mediante
o trabalho sob a forma da objetividade social, uma forma que se caracteriza
por ser inteiramente constituída pela subjetividade, mas ao mesmo tempo pelo
fato de a subjetividade que a constitui desaparecer por trás dela. Desse ponto
de vista a passagem da esfera da circulação simples para o capital se evidenciou
como ponto de articulação da formulação, na medida em que nesse ponto é
demonstrado como o dinheiro na terceira determinação — enquanto produzido
por todos os indivíduos e simultaneamente existindo independentemente de

* Do texto intitulado: Die künftigen Ergebnisse der britischen Herrschaft in Indien [Os resul­
tados futuros do domínio inglês na Índia], MEW, vol. 9, pp. 220-6. (N. do T.)
** Do texto intitulado: Die britische H errschaft in Indien [O domínio inglês na índia], MEW.
vol. 9, pp. 127-33. (N. do T.)

266
A EXP O SIÇ Ã O CATEG O RIAL

todos os indivíduos — representa o pressuposto para que os seres humanos


possam perseguir fins subjetivos, cujo conteúdo, junto com a forma e os meios
de realização, é totalmente condicionado pela atuação dos próprios seres hu­
manos. O movimento que tem início com a existência do valor de troca auto­
nomizado é, por isso mesmo, sim ultaneam ente subjetivo e objetivo, e, não
obstante, um não é imediatamente o outro. Essa formulação do ponto de inter­
secção de subjetividade e objetividade, que, na obra tardia, tem a mesma im ­
portância do conceito da propriedade privada na obra inicial, é a que, pela
primeira vez, pode justificar a pretensão metodológica de elaborar conceitual-
mente a sociedade capitalista de um modo em face do qual as formulações da
questão por parte da discussão metodológica das ciências sociais atuais não só
se mostram insuficientes, mas até mesmo ainda aparecem como expressão de
uma — nas palavras de Hegel — posição da ideia em relação à objetividade,
que Marx de qualquer modo já ultrapassou na exposição categorial.
O fato de Marx deixar de refletir sobre o método dissociado do objeto a ser
exposto implica que discussões metodológicas de qualquer modo já se encon­
tram numa relação de exterioridade essencial com o objeto propriamente dito
e, portanto, esse objeto de antemão já foi posto numa determinada forma que
opõe dificuldades insuperáveis ao método. Nesse tocante, Marx não é menos
rigoroso que Hegel e isso explica também por que ele avalia as primeiras ini­
ciativas desse procedimento como sinais de declínio da teoria econômica.

Mill foi o primeiro que apresentou a teoria de Ricardo em forma sistemática, embo­
ra em esboço bastante abstrato. Esforça-se por conseguir coerência lógica, formal. “Por
isso” também começa com ele a desintegração da escola ricardiana. No mestre, o que
é novo e importante desenvolve-se em meio ao “estrum e” das contradições impulsio­
nadas com vigor pelos fenômenos que se opõem. As próprias contradições subjacentes
testemunham a riqueza do fundamento vivo donde emerge a teoria. O discípulo tem
conduta diferente. Sua matéria-prima não é mais a realidade, mas a nova forma teórica
na qual o mestre a sublimou. Ora a oposição teórica dos adversários da nova teoria,
ora o relacionamento muitas vezes paradoxal dessa teoria com a realidade incitam-no
a procurar com bater a prim eira e criar explicações para o segundo. Nessa tentativa
envolve-se ele mesmo em contradições e representa, com a sua tentativa de resolvê-las,
o início da desintegração da teoria, que ele personifica de maneira dogmática. (26.3/80
[ed. bras. Teorias cla mais-valia, vol. III. p. 1.139 modif.])

Marx não mais chegou a perceber que poderia estar se anunciando aí um


novo fenômeno. De acordo com a sua autocompreensão, a economia política

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S O B R E /1 E S T R U T U R A L Ó G I C A D O C O N C E I T O D E C A P I T A L E M K A R L M A R X

só pode ser uma ciência que procura compenetrar teoricamente a objetividade


produzida pelos próprios seres humanos e que acaba culminando em sua pró­
pria crítica da economia política que se entende como ciência a ser suprassu-
mida e somente como tal está em condições de obter uma compreensão real­
m ente adequada do capitalism o. Considerado em termos m etodológicos, o
capitalismo é para a teoria m arxiana uma época mundial concluída, mesmo
que ela perdure na realidade. Nesse caso, a teoria é a teoria de um processo
que vai proliferando de modo similar ao natural, no qual os seres humanos,
como sempre foi, estão subsumidos na objetividade de suas próprias relações.
Contudo, enquanto existir essa forma de subsunção, haverá também o ponto
de vista do sujeito burguês, para o qual o seu próprio mundo se apresenta sob
uma única forma, a do objeto. Não obstante, ele pode transformar esse aperto
teórico num a virtude prática, perceber o objeto do começo ao fim sob essa
forma e, ao fazer isso, desenvolver uma ciência na qual esse objeto acabe apa­
recendo na única forma como o sujeito sempre se apreendeu — na de objeto.

N o ta s
1 Apenas mencionem os aqui que isso ainda não esgota todos os aspectos dos dois exemplos.
Cf. o excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialmente necessário, nas pp. 179 e ss.
deste livro.
2 Cf. o excurso sobre o conceito do tempo de trabalho socialm ente necessário [pp. 179 e ss.].
3 É evidente que o metal em forma de moeda cunhada também pode ficar petrificado como te­
souro, só que, nesse caso, ele é tido, em sua form a cunhada, como m etal am orfo, que só
possui uma form a exterior à sua função de não meio de circulação.
4 G. W. F. Hegel, Die Vernunft in der Geschichte (ed. Hoffm eister). Hamburg, Felix-M einer-
Verlag, pp. 58-9.
5 G. W. F. Hegel, D ie Vernunft in der Geschichte, p. 152.

268
Título Sobre a estrutura lógica do conceito de capital
Karl Marx

Autor Helmut Reichelt

Tradução Nélio Schneider

Assistente técnico de direção José Emílio Maiorino


Coordenador editorial Ricardo Lima
Secretário gráfico Ednilson Tristão
Preparação dos originais Juliana Bôa
Revisão Lúcia Helena Lahoz Morelli
Editoração eletrônica Silvia Helena P. C. Gonçalves
Design de capa Ana Basaglia
Formato 16 x 23 cm
Papel Offset 75 g/m2- miolo
Cartão supremo 250 g/m2- capa
Tipologia Times
Número de páginas 272

ESTA OBRA FOI IMPRESSA NA GRÁFICA RETTEC


PARA A EDITORA DA UNICAMP EM NOVEMBRO DE 2013.

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