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AMBIENTE DE ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL:


SUMÁRIO/CONTENTS

• A Pesquisa Qualitativa em Questão


The qualitative research in question

• Uma Reavaliação do Contexto Social atual e da Instrumentalidade do


Serviço Social
A Reavaluation of the Current Social Context and of the Instrumentality of
the Social Work in Brazil
19

• A Consolidação Espacial e Populacional do Município de Franca no


Período de 1823 a 2000
The spatial and populational consolidation of Franca in the period of 1823-
2000
33

• Um Modelo de Gestão de Desenvolvimento Comunitário


A innings model of communal development
51

• A Formação Profissional na Pós-Graduação e o Estágio de Docência


The professional formation in postgraduation and the teaching internship
71

• Algumas considerações sobre a Política de Saúde no Brasil


Some questions concerning the health politics in Brazil
81

• Ética para a vida: Clamor Geral


Ethics to the life: a general clamor
93

• A Organização Empresarial e o Novo Paradigma: Humanização


The enterprises organization and the new paradigm: humanization

105

• Paternidade Adolescente: Participação Masculina no Processo de


Reprodução Humana

7
Adolescent paternity: masculine participation in the humane reproduction
process
115

• Imagens do Urbano: Trabalho e Festa; Prometeu e Dionísio


Urban images: labor and festivity; Prometeu and Dionisio
129

• A Construção Responsável de uma Disciplina do Curso de Serviço Social:


Inter-Ações Professor/Alunos
The responsible construction of a discipline in the Social Work Course:
inter-actions teacher/students
151

• A Experiência da Medida Sócio-Educativa de Liberdade assistida no


Município de Franca-SP
The experience of socio-educative measure on sustained liberty in Franca-
SP.
157

• Comunidade: Espaço do Exercício do Poder Local e da Democracia


Comunity: space to exercize the local power and the democracy
171

• Diferenciais de Salários: um Estudo Exploratório sobre desigualdades


Regionais e Interindustriais no Estado de São Paulo
Diferencials of Salaries: an exploratory essay about regional and industrial
inequalities in São Paulo State.
179

RESENHA/REVIEW .................................................................................................. 203

ÍNDICE DE ASSUNTOS ............................................................................................ 225

SUBJECT INDEX ...................................................................................................... 227


ÍNDICE DE AUTORES/AUTHORS INDEX ................................................................ 229
NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DO ORIGINAL ................................................. 231
A PESQUISA QUALITATIVA EM QUESTÃO

• RESUMO: A pesquisa qualitativa tem demonstrado dar conta dos dilemas que os
pesquisadores da área das ciências sociais vivenciam ao necessitarem conhecer os
sentimentos, opiniões, relatos da vida cotidiana e experiências diversas, que não
podem ser quantificadas. A afirmação não descaracteriza ou invalida a pesquisa
qualitativa, que também é necessária, quando trabalhos com dados objetivos e que
necessitam ser generalizados e tratados estatisticamente, e ainda mais,
tradicionalmente observa-se a realização de pesquisa quantitativa e qualitativa de
forma associada, com excelentes resultados.

• PALAVRAS CHAVE: Ciências Sociais; Metodologia Científica; Pesquisa Qualitativa.

Introdução

Sobre a importância da dimensão investigativa no trabalho


profissional, tem-se:

(...) a pesquisa das situações concretas é o caminho para a identificação das


mediações históricas e necessárias à superação da defasagem genérica sobre
as realidades e os fenômenos singulares com os quais se defronta o profissional
no mercado de trabalho. Aliás, a principal via para superar a reconhecida
dicotomia entre teoria e prática, requalificando a ação profissional e preservando
a sua legitimidade (ABESS, 1996, p.152)

O trabalho científico caminha sempre em duas direções: de um lado


para elaboração de teorias, de princípios e procedimentos metodológicos,
apresentando seus resultados; de outro lado, cria, inventa, ratifica seu
caminho. Os investigadores, ao fazerem este percurso, levam em
consideração o processo histórico, aceitando o conhecimento como algo a
ser construído, e reconstruído bem como aproximado.
Segundo Demo apud Minayo (1992), destacam-se alguns critérios
que distinguem as Ciências Sociais, sem afastá-las dos princípios de
cientificidade:
Podemos afirmar que alguns princípios distinguem as Ciências
Sociais das demais ciências, sem afastá-las dos critérios e rigor de
cientificidade:
• A historicidade de seu objeto – as relações sociais são
historicamente determinadas e assim a provisoriedade, a
relativização, o dinamismo e a especificidade são características
das expressões da realidade social.
• O objeto de estudo das Ciências Sociais o investigador está
numa relação social com os seres humanos, grupos e sociedade
e estes dão significado e intencionalidade às suas ações.
Baseia-se portanto numa consciência histórica.
• O significado e significância sócio-históricos dos objetos de
estudo das Ciências Sociais.
• Nas Ciências Sociais existe uma identidade entre sujeito e
objeto - a pesquisa lida com seres humanos distintos, mas que
tem um substrato comum e compreensivo entre os
pesquisadores e investigadores e os sujeitos pesquisados.
• As Ciências Sociais são intrínseca e extrinsecamente
ideológicas – a visão de mundo do investigador e seu campo de
estudo se entrelaçam clara e definitivamente. Só pesquiso
aquilo que intencionalmente quero melhor conhecer e
compreender. Há uma valoração ideológica do objeto de estudo
que necessita ser constantemente e rigorosamente objetivada e
controlada.
• O objeto das Ciências Sociais é essencialmente qualitativo – a
realidade social é complexa, dinâmica e repleta de significados
que sobrepõem a qualquer pensamento ou teoria elaborada
sobre ela.
É desse caráter essencialmente qualitativo que vamos prender
nossa análise. Vejamos, a pesquisa qualitativa, segundo Chizzotti (1991,
p.78-9):
É uma designação que abriga correntes de pesquisa muito diferentes.
Em síntese, essas correntes se fundamentam em alguns pressupostos contrários
ao modelo experimental e adotam métodos e técnicas de pesquisa diferentes dos
estudos experimentais.

Pode-se entender que a pesquisa qualitativa destina-se a


investigações sobre objetos que não podem ser conhecidos e
aprofundados somente pela experimentação e quantificação. A tônica é
de que "materiais coletados" estão carregados de subjetividade, de
conteúdos axiológicos, de ideologias e de significados atribuídos pelos
sujeitos, diferentemente de pesquisas de abordagem quantitativa, que
está fundada na objetividade, na demonstração numérica, estatística, na
possibilidade de ser transformada por técnicas de mensuração em
explicações gerais e leis.
O modelo experimental baseia-se no rigor científico no controle
sobre as relações entre variáveis experimentais e resultados que podem
ser medidos pela observação e pelos próprios procedimentos
experimentais com a utilização de grupos de controle.
De acordo com o pensamento de Maria Isaura Pereira de Queiroz1,
podemos dizer que existe uma associação entre a objetividade e a
subjetividade, que durante muito tempo não foi percebida. Inclusive,
entendia-se que eram contraditórias, e ainda, que a utilização de uma,
eliminava a possibilidade de uso da outra, o que determinou durante
algum tempo, a oposição entre ambas, embora pudessem ser utilizadas
na coleta e análise de quaisquer dados relativos às Ciências Sociais,
denominadas como técnicas qualitativas e as técnicas quantitativas.
A polêmica entre pesquisa qualitativa e pesquisa quantitativa,
atualmente encontra-se praticamente ultrapassada, com as ciências
sociais privilegiando a pesquisa qualitativa, evidenciando a subjetividade e
a sensibilidade e desconsiderando a neutralidade e impessoalidade do
pesquisador, sem deixar de relacionar com os aspectos contextuais
quantitativos. Apesar da pesquisa quantitativa continuar a ser utilizada
nas ciências sociais, ela é mais predominante nas ciências exatas ou
naturais.
Martinelli (1994, p.11-2) explica: que a utilização e o
desenvolvimento de pesquisas, de abordagem metodológica qualitativa
não se caracterizam como situação específica e peculiar do Serviço
Social. Muitas décadas abraçamos a pesquisa quantitativa como Norte
para os estudos, mas, a cada momento, o assistente social percebia mais
claramente que a pesquisa quantitativa não conseguia trazer para os
retratos construídos da realidade as concepções dos sujeitos
pesquisados. A indagação que ficava era relacionada a como os sujeitos
da pesquisa pensavam a sua problemática? Que significados atribuiu ao
seu cotidiano e às suas experiências? Para Martinelli (1994, p.12) o
próprio informante é "um sujeito oculto" que deve ser melhor conhecido
em termos de suas reais experiências e vivências. Não basta saber
quanto ganha, quantos são os componentes familiares, se não
conseguirmos chegar a análise e interpretação de suas concepções e
percepções de vida e de possibilidade de mudança, por exemplo. Para
qualquer ação e/ou intervenção social com vistas a mudança,
necessitamos de caminhar um pouco além da instrumentalização dos
dados obtidos através de diferentes entrevistas ou visitas domiciliares.
A pesquisa qualitativa possibilita trazer o que os participantes
pensam a respeito daquilo que está sendo pesquisado, as suas
percepções e representações, valorizando o que os sujeitos têm a dizer.
Ao se evidenciar a percepção dos sujeitos entra em cena o contato direto
com o sujeito da pesquisa, proporcionando uma nova ambiência em que
se privilegiam instrumentos superadores do questionário, que incidem
apropriadamente na oralidade, como o formulário.
Outro aspecto vital da pesquisa qualitativa localiza-se na conexão
do sujeito na estrutura, interpretando suas vivências cotidianas.
Ainda, segundo Martinelli (1994, p.22-3) existem alguns
pressupostos que fundamentam a utilização das metodologias qualitativas
de pesquisa:
- “O reconhecimento da singularidade do sujeito" - entendendo-se
que o sujeito é singular podemos reconhecer o caráter de singularidade
de cada pesquisa, que deve fundamentar-se no favorecimento das
condições para a sua revelação, expressa na oralidade e na
contextualidade de sua existência.
- “O reconhecimento da importância de se conhecer a experiência
social do sujeito” - as pesquisas qualitativas valorizam conhecer como se
processa a experiência social dos sujeitos, superando as reduções pelas
percepções apenas circunstanciais, evidenciando o necessário
conhecimento do modo de vida, concreto, apreendido como o real vivido
pelos sujeitos, apreendido pelas expressões sobre suas crenças, valores,
sentimentos e ainda pela apropriação de suas próprias experiências
vivenciadas cotidianamente.
- “O reconhecimento de que conhecer o modo de vida do sujeito
pressupõe o conhecimento de sua experiência social”, o que segundo
Thompson apud Martinelli (1994, p.24), significa “o viver histórico
cotidiano do sujeito e a sua experiência social expressando a sua cultura”.
Segundo Martinelli (1994, p.23);

É em direção a essa experiência social que as pesquisas qualitativas, que se


valem da fonte oral, se encaminham, é na busca dos significados de vivências
para os sujeitos que se concentram os esforço do pesquisador.
Não se trata, portanto, de uma pesquisa com um grande número de sujeitos, pois
é preciso aprofundar o conhecimento em relação àquele sujeito com o qual
estamos dialogando.

À base de todas essas análises podemos reafirmar que a pesquisa


qualitativa, não é a quantidade de pessoas que irão prestar as
informações que toma importância, mas sim, o significado que os sujeitos
têm, em razão do que se procura com a pesquisa.
Julga-se oportuno relembrar que a pesquisa qualitativa pode
pressupor o uso de alguma forma quantitativo, ou seja, que pode ocorrer
uma pesquisa qualitativa decorrente de uma pesquisa quantitativa inicial,
já a opção metodológica da pesquisa deve ser fruto do posicionamento
consciente e coerente do próprio pesquisador.
Torna-se necessário ressaltar a dimensão política da pesquisa
qualitativa, tornando o pesquisador e os sujeitos, sujeitos políticos que se
exercitam de acordo com suas opções políticas, num mesmo processo
investigativo, o que caracteriza esse tipo de pesquisa como intencional na
busca dos objetivos previamente e explicitamente definidos,
caracterizados pela busca intencional dos sujeitos.
Ainda, o desenho da pesquisa, também deve ser intencionalmente
delineado, construído e compartilhado com os sujeitos, de acordo com o
singular projeto político do pesquisador, articulado aos projetos políticos e
ético-políticos, vinculados com projetos de sociedade ideologicamente
definidos de forma macro-societária.
Outro aspecto a se evidenciar, seria a necessidade de se retornar
aos sujeitos prestando contas e anunciando o que foi feito das
informações prestadas, promovendo e socializando a prestação de
contas, maneira devolutiva de apresentação dos resultados e do
conhecimento produzido sistematicamente.
É preciso reconhecer que a pesquisa qualitativa é ainda proposta
tênue, geralmente muito amadora e com resultados quase sempre
magros. (DEMO, 2001)
Um dos problemas da pesquisa qualitativa é sua imprecisão
conceitual, a começar pelo conceito de “qualidade”. Segundo Demo
(2001), deve-se direcionar o conceito de qualidade para “intensidade”. A
noção de intensidade volta- se, para dimensões do fenômeno marcadas
pela profundidade, pelo envolvimento e pela participação, sem que seja,
no entanto, possível dizer que a idéia de extensão se reduza a coisas
superficiais, distantes ou inertes.
Já pesquisa quantitativa é apropriada para medir tanto opiniões,
atitudes e preferências como comportamentos. Se você quer saber
quantas pessoas usam um produto ou serviço ou têm interesse em um
novo conceito de produto, a pesquisa quantitativa é o que você precisa.
Ela também é usada para medir um mercado, estimar o potencial ou
volume de um negócio e para medir o tamanho e a importância de
segmentos de mercado. Além disso, pode ser usada quando se quer
determinar o perfil de um grupo de pessoas, baseando-se em
características que elas tem em comum (como demográficas, por
exemplo). Através de técnicas estatísticas avançadas, ela pode criar
modelos capazes de predizer se uma pessoa terá uma determinada
opinião ou agirá de determinada forma, com base em características
observáveis. (ETHOS, 2002).
O tipo de pesquisa utilizado irá depender muito da situação a ser
investigada. Para Demo (2001), a pesquisa seria um diálogo inteligente e
crítico com a realidade.
Sendo o pesquisador parte da realidade, não tem condições de
devastar a realidade como um todo. Quando analisamos a sociedade em
sociologia, ou a mente humana em psicologia, ou comunidades indígenas
em antropologia, estamos em sentido bem próprio nos analisando
também. Podemos fazer um esforço de distanciamento – não por
alienação, mas para deixar o objeto mais visível, mas é inútil esconder
que somos, também como analistas parte da análise. O comportamento
ideológico pode estar tanto no sujeito como no objeto. A informação
qualitativa não busca ser neutra ou objetiva, mas permeável à
argumentação consensual crítica. Ela é resultado da comunicação
discutida, na qual o sujeito pode questionar o que se diz, e o sujeito objeto
também.
Finalizando, retoma-se Martinelli (1994, p. 27) sobre a pesquisa
qualitativa:

- ... o caráter inovador, como pesquisa que se insere na busca de significados


atribuídos pelos sujeitos às suas experiências;
- ... quanto à dimensão política desse tipo de pesquisa que, como construção
coletiva, parte da realidade dos sujeitos e a eles retorna de forma crítica e
criativa;
- ... por ser um exercício político, uma construção coletiva, não se coloca como
algo excludente ou hermético, é uma pesquisa que se realiza pela via da
complementaridade, não da exclusão.

Pode ser apontada ainda, a relação existente entre a pesquisa


qualitativa e quantitativa, que está muito longe de ser uma relação de
opostos, mas uma relação caracterizada pela complementaridade e até
de articulação entre ambas.
A pesquisa qualitativa deve remeter necessariamente a uma
contextualização sócio-histórica. Outro dado importante nesta
abordagem é o papel do pesquisador, sua presença é fundamental para
a qualidade da informação. O pesquisador pode questionar uma fala
para obter mais clareza nas informações.
Demo (2002) apresenta dois patamares de análise que estão
interligados:

a) desempenho qualitativo – como instituições, associações, sociedades,


grupos se desempenham no contexto de suas características qualitativas,
b) dinâmicas qualitativas – características de toda a realidade, também natural,
o que implica incluir traços quantitativos dela.

Para concluir, podemos reconhecer que a pesquisa qualitativa


continua sendo um desafio, porque é muito mais complexa arriscada e
difícil em relação à pesquisa quantitativa. Um dos desafios é o problema
da generalização, sempre indagado, principalmente pelos positivistas e
neopositivistas. Toda pesquisa precisa saber mesclar quantidade e
qualidade, forma e intensidade, estrutura e dinâmica.
A pesquisa qualitativa requer, portanto, qualificação do
pesquisador, compromisso e atitude ética frente a realidade pesquisada.
Deve, acima de tudo, saber visualizar as circunstâncias atuais do
desenvolvimento da metodologia científica que tem favorecido a este tipo
de pesquisa.

OLIVEIRA, A. P. B. I de; BATISTA, M. C. RODRIGUES, J. The qualitative research in


question. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 9-18, 2002.

• ABSTRACT: The qualitative research has demonstrated that can cope with the
dilemmas that are experimented by the searchers of the social science area, when
they need to know the feelings, opinions, accounts of the quotidian life and
experiences, in general, that can not be qualified. The qualitative research can also
be utilized in works with objectives data that require generalizations and statistics
applications. And is also utized in the execution of quantitative and qualitative
researchs associated, with excellent results.

• KEYWORDS: Social Sciences; Scientific Methodology; Qualitative Research.

Referências Bibliográficas
ABESS. Proposta Básica para o Projeto de Formação Profissional.
Revista Serviço Social e Sociedade 50. São Paulo: Cortez, 1996.
CHIZZOTTI, A. Pesquisa em ciências humanas e sociais. São Paulo:
Cortez, 1991.
DEMO, Pedro. Pesquisa e Informação Qualitativa: aportes metodológicos.
São Paulo: Papirus, 2001.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 9-18, 2002 16


ETHOS, Instituto Ethos. Responsabilidade Social e Empresarial.
Disponível em http://www.ethos.com.br/perguntas/qualitativa.htm. Acesso
em 23/4/2002.
MARTINELLI, M. L. (ORG.), Pesquisa Qualitativa - um instigante desafio.
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QUEIROZ, M. I. P. de. O pesquisador, o problema da pesquisa, a escolha
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UMA REAVALIAÇÃO DO CONTEXTO SOCIAL ATUAL E DA
INSTRUMENTALIDADE DO SERVIÇO SOCIAL

Rita BRANDÃO*
Mário JOSÉ FILHO**

• RESUMO: Neste artigo realizamos uma análise da conjuntura do Serviço Social


como profissão, suas possibilidades e limites de intervenção bem como sua inserção
no contexto social, econômico e político brasileiro. Nosso interesse aqui é levantar
questionamentos e críticas sobre a atual prática do serviço social e debater este
tema visando o seu redimensionamento, enquanto mecanismo de transformação
social. São diversos os campos de atuação do assistente social, mas todos se
defrontam com a difícil condição sócio-econômica que a população brasileira se
encontra: situação de rua, difícil acesso à saúde e educação, exposição a drogas,
violência doméstica, exclusão ao registro civil, exploração do trabalho infanto-juvenil,
prostituição, privações diversas conseqüentes à situação de miséria absoluta em que
vive grande parte dos cidadãos. Ao assistente social cabe o papel de analisar
criticamente o modelo econômico que tem gerado esta questão social.
Considerando-se que a ação do assistente social envolve o resgate e o
restabelecimento da condição humana em seu trabalho com populações ditas de
risco, a analise da atuação deste profissional tem resultado em campo fértil para
proposição de novas formas de intervenção nessa área social. Tal abordagem ganha
destaque a partir da necessidade da efetivação da intervenção através do fazer
humano. Esta atitude é instrumento poderoso na diferenciação da consciência da
condição em que se encontra o individuo, no despertar de sua ação rumo à
transformação de sua situação e do seu meio.

• PALAVRAS CHAVE: Instrumentalidade; questão social; neoliberalismo; política


social; técnicas de intervenção social.

Introdução

Nunca, em tempo algum, o processo econômico foi tão


determinante na historia dos paises como nos dias de hoje. Para se
entender a situação sócio econômica atual do Brasil é preciso considerar

* Assistente Social da Secretaria Municipal da Cidadania e Desenvolvimento Social do


Município de Ribeirão Preto. Docente do Curso de Serviço Social da Universidade de
Ribeirão Preto – UNAERP.
** Coordenador e Docente do Programa de Pós Graduação em Serviço Social. Docente

do Departamento de Serviço Social UNESP – Franca-SP.

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dois aspectos de fundamental importância: I) a conjuntura atual é o
resultado da combinação de elementos objetivos e subjetivos
determinados pelo modelo político e econômico ditado pelas elites no
poder, II) esta ideologia expressa o pensamento neoliberal onde o risco é
entendido como uma questão de preocupação pessoal e individual não
havendo, portanto o compromisso coletivo da sociedade, com os riscos
sociais da população.
Acontecimentos das últimas décadas tem provocado modificações
no mundo do trabalho nas sociedades atuais e estas podem ser
percebidas nas mudanças no mercado de trabalho, as quais têm
determinado intensas e profundas alterações na sociedade brasileira. Na
perspectiva de analisar e propor mecanismos de intervenção social é
fundamental entender o pensamento nestas transformações que vêm
alterando a economia, a política e a cultura da nossa sociedade.
O mundo atual passa pela crescente precarização do trabalho, a
ocorrência do aumento do desemprego estrutural, o avanço tecnológico, a
necessidade premente de adequação aos novos padrões de produção
que no seu formato atual tem aumentado a legião daqueles que se
encontram privados de vender sua força de trabalho. Vive-se hoje uma
ampla expulsão da população trabalhadora dos seus postos de trabalho.
Deparamo-nos com segmentos cada vez maiores da população que
participam dos contingentes conhecidos como sobrantes, desnecessários,
fazendo nascer uma nova pobreza composta das parcelas da população
cuja força de trabalho não tem preço, porque não tem mais lugar no
mercado de trabalho. Em decorrência disto esse processo não acontece
sem deixar conseqüências nefastas para os trabalhadores assalariados.
Em nome da flexibilidade o sistema expulsa os incapazes de adaptação
às regras do jogo e impõe a subcontratação de parte das tarefas por fora
das organizações. A desestabilização do trabalho assalariado reproduz-se
em profundidade noutras formas do trabalho e ocupação, generalizando a
sua precarização e vulnerabilidade, produzindo então um problema de
difícil solução. Cerqueira Filho, (1982) sustenta que foi o surgimento da
classe operária que impôs ao mundo moderno, no curso da constituição
da sociedade, um conjunto de problemas políticos, sociais e econômicos,
porém foi o livre mercado que determinou o desaparecimento do emprego
ou o estado mínimo, oriundo da não regulação do Estado. Assim, este

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livre mercado, ou simplesmente “mercado”como é conhecido nos dias de
hoje produziu o grande contingente de excluídos sociais, que vem
paulatinamente substituindo o que conhecíamos por classe operária.
O processo de globalização em um primeiro momento foi recebido
com otimismo e vislumbrado uma possibilidade de união e
desenvolvimento entre os povos. No entanto, pouco se passou e já se
pode visualizar o impacto de sua existência nas marcas indeléveis que
começou a deixar; crises financeiras, quebra de empresas, redução de
postos de trabalho entre outras.
A regulação neoliberal, que fundamenta a orientação da
globalização vigente, supõe quebra do Estado, o qual deve ser mínimo,
ser flexível por conta do mercado e da competição privada. Este novo
mercado financeiro mundial opera como um gigantesco cassino onde as
apostas dos operadores das bolsas de valores, a partir de operações de
caráter virtual, alteram para pior ou melhor a vida de milhões de pessoas.
Quebram industrias, empresas, geram desemprego, aumentam juros,
geram inadimplência. Todos estes fatores conforme indica Silva (2001)
apresentam-se de forma marcante nos paises subdesenvolvidos como o
Brasil, como fatores de minoração da cidadania. A situação de exclusão a
qual a maioria dos brasileiros está exposta, violenta a pessoa humana
negando com isso a própria razão da vida em sociedade
É inegável que dentre a série de fatores resultantes das políticas
adotadas no país o mais significativo tem sido o agravamento da questão
social. O contexto social em que esta é produzida, no desemprego e no
subemprego traduz a sua mais límpida expressão. Marcados por tempos
extremamente difíceis para todos aqueles que vivem do trabalho e para a
organização dos trabalhadores, inúmeros estudiosos indicam que as
tendências do mercado de trabalho tem determinado uma classe
trabalhadora polarizada, com uma pequena parcela com emprego estável
e força de trabalho qualificada com acesso a direitos trabalhistas e sociais
e uma larga parcela da população com trabalhos temporários, precários,
sub-contratados etc.
Neste quadro, o fenômeno do desemprego tem sido motivo de
intenso debate levando-o a tornar-se o eixo das discussões no âmbito das
propostas de intervenção do assistente social e sua repercussão no
mundo do trabalho. Observa-se que nos locais de trabalho é facilmente

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constatado o crescimento da demanda por serviços sociais, o aumento da
seletividade das políticas sociais, a diminuição dos recursos, dos salários,
a imposição de critérios cada vez mais restritivos sem que a população
tenha acesso aos direitos sociais, materializados em serviços sociais.
Como um dos fatores determinantes da História, o Serviço Social
identifica o capital como fator determinante da atual condição social em
que vivemos, da alienação do indivíduo social e da origem mesmo tanto
da miséria humana, como das políticas sociais que vêm sendo adotadas.
Como conseqüência natural deste processo amplia-se a demanda pelo
Serviço Social verificando-se então como resultado final a grande busca
por serviços e parcas ofertas produzindo então o agravamento dos
problemas sociais em suas múltiplas expressões.
Paralelamente a este fenômeno, ocorre um movimento o qual
utiliza-se da grande demanda com relação a intervenção profissional e
impulsiona a ação para áreas meramente executoras e finaliza reduzindo
o fazer do assistente social a técnicas imediatistas, fragmentadas e sem
objetivos. Este quadro encontra na atual política neoliberal e na sociedade
acrítica dos tempos atuais um terreno fértil e propício para sua expansão.
Nesse quadro, Netto (1989) verifica que a situação atual que aloca os
Assistentes Sociais como prestadores de serviços, executores de
atividades finalísticas visa descaracterizar a profissão como um trabalho e
a exclui da intermediação direta da relação capital-trabalho. Além disso,
esta prática obscurece a natureza política da profissão, limitando sua
intervenção a ações instrumentais, determinando a própria representação
que os profissionais têm das suas ações.
Neste cenário, nesta relação de força, com estes atores sociais o
campo de ação do assistente social torna-se um campo fértil para ações
comprometidas, que na contemporaneidade deve ser ampliado e
redirecionado para a construção do seu saber e de vivência de sua prática
de forma a atender a demanda de intervenção social, resultando em
modificações substantivas através da atualização e modernização de
procedimentos e competências, sempre na busca de equidade. Requer,
pois, ir alem das rotinas institucionais, do ativismo e buscar apreender o
movimento da realidade. Em outras palavras, significa repensar o Serviço
Social na sua contemporaneidade, ter e manter os olhos abertos para o
mundo moderno com vistas a decifrá-lo e participar de sua recriação. É

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nessa perspectiva que a qualidade dos serviços prestados, na defesa da
universalidade dos serviços públicos, na atualização dos compromissos
éticos e políticos afinados com os interesses coletivos da população
usuária requer a requalificação da ação, com suas particularidades e
alternativas de ação. Reside ai um dos maiores desafios para que o
assistente social a partir do presente, desenvolva sua capacidade de
decifrar a realidade e construir propostas de trabalho criativas e capazes
de preservar e efetivar direitos, a partir de demandas emergentes no
cotidiano. Para tanto, torna-se necessário o reconhecimento da
complexidade do objeto de trabalho numa perspectiva de totalidade, bem
como do espaço conflitante sobre o qual as ações profissionais ocorrem,
e também a delimitação das condições para a implementação de ações
profissionais comprometidas.
De acordo com Netto (1989), é preciso romper com o hiato entre o
passado conservador do Serviço Social e os indicativos práticos de uma
nova racionalidade e instrumentalidade.Assim, Guerra (1999) discute que
a lógica da razão instrumental determinou uma racionalidade,
subordinada e funcional. Subordinou-se ao alcance dos fins particulares,
aos resultados imediatos as estruturas sociais vigentes. Constitui-se,
portanto, num conjunto de atividades e funções, não se importando nem
com a correção dos meios, nem com a legitimidade da ação. Nestas
condições se faz necessário compreender e analisar o resultado que as
ações profissionais imediatas produzem. Para isto, é condição primordial
discutir o papel, o espaço e a dimensão instrumental na constituição da
profissão.

Metodologia da Intervenção Social

Vale iniciar esta seção a partir da observação de Guerra (1999),


que identificou a dicotomia entre teoria e pratica no Serviço Social. Se
esta fragmentação existe ou persiste na profissão, isto se atribui mais a
equívocos na forma de conceber a teoria, a uma aproximação ainda
defeituosa entre Serviço Social e teoria marxiana, do que a insuficiência
desta proposta metodológica, ou seja a insuficiência existe em razão das
condições oferecidas no campo de trabalho, devido ao próprio ativismo
profissional e não a carência ou ausência de metodologias profissionais.

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Iamamoto (1998) indica que o Serviço Social na
contemporaneidade sintetiza o desafio de decifrar os novos tempos para
que nele se possa ser contemporâneo. Exige-se um profissional
qualificado, que reforce e amplie a sua competência critica, não só de
executivo mas que pensa, analisa, pesquisa e decifra a realidade
alimentada por uma atitude investigativa. O exercício cotidiano tem
ampliado as possibilidades de vislumbrar novas alternativas de trabalho
nesse momento de profundas alterações na vida em sociedade. O novo
perfil que se busca construir é de um profissional afinado com a analise
dos processos sociais, tanto em suas dimensões macroscópicas quanto
em suas manifestações quotidianas; um profissional criativo e inventivo,
capaz de entender o tempo presente, o homem atual, a vida atual e nela
influir contribuindo para moldar os rumos da história. Assim, o processo
de mudança de avanço nas ações do profissional faz parte da essência
do assistente social e a prática diretamente ligada à reflexão ética e
competência crítica, ingredientes orgânicos do fazer profissional. Se
visarmos respostas com a reflexão necessária acerca da importância do
papel do profissional do Serviço Social na questão social,
obrigatoriamente deveremos nos reportar às bases metodológicas do
Serviço Social, visto que estas favorecem a leitura da realidade e
imprimem rumos a ação profissional.
Yasbeck (1999) nos diz que a ação do Assistente Social é parte
tanto do processo de reprodução dos interesses de preservação do
capital, quanto das respostas às necessidades de sobrevivência dos que
vivem do trabalho. Não se trata, portanto, de uma dicotomia, mas de um
profissional que não poder excluir esta polarização de sua prática
profissional, à medida que as classes sociais e seus interesses só existem
na própria relação essencialmente contraditória que daí resulta, na qual o
mesmo movimento que permite a reprodução e a continuidade da
sociedade de classes, com seus valores intrínsecos e conhecidos, cria
condições para a sua transformação através de uma nova racionalidade e
instrumentalidade. A instrumentalidade do Serviço Social constitui um elo
de articulação onde as racionalidades se baseiam, expressando as ações
dos sujeitos, permitindo a fluidez das teorias às práticas, campo onde a
profissão consolida a sua natureza e se materializa, permitindo a união
das dimensões instrumental, técnica, política, pedagógica e intelectual da

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 19-32, 2002 24


intervenção profissional. A instrumentalidade, portanto, possibilita que os
processos e práticas sociais sejam traduzidos em ações técnicas e
politicamente coerentes. Compatibilizar o desenvolvimento experimentado
pela profissão e os rumos da realidade atual, consiste no principal desafio
para os assistentes sociais.
As possibilidades estão dadas na realidade, mas não são
automaticamente transformadas em alternativas profissionais. A tarefa do
assistente social não é só decifrar as formas e expressões da questão
social na contemporaneidade, mas atribuir transparência às iniciativas
voltadas à sua reversão e/ou enfrentamento imediato. A premissa básica
de tal projeto está na defesa da equidade e da justiça social, da
universalização do acesso aos bens e serviços relativos aos programas e
políticas sociais. Conseqüentemente a tarefa profissional obrigatoriamente
tem que ser vinculada a um projeto societário que tenha como proposta a
construção de uma nova ordem social, com compromisso baseado na
defesa dos direitos fundamentais que deva ser alvo de prática tanto na
sociedade como no exercício profissional. Tal proposta implica o
compromisso com a competência, que só pode ter como base o
aprimoramento intelectual do assistente social, daí a importância de uma
atuação qualificada, alicerçada em concepções teórico-metodológicas,
críticas e sólidas, capazes de viabilizar uma análise concreta da realidade
social.
Assim o cenário exige uma atuação qualificada, alicerçada em
concepções teórico-metodológicas, crítica e sólida, capaz de viabilizar
uma análise concreta da realidade social. E a inserção profissional
integral no projeto o qual se denomina democrático, visto que sua função
primordial é a democratização, enquanto socialização da participação
política e socialização da riqueza socialmente produzida, passando
definitivamente a funcionalidade do serviço social imbricada a estes
paradigmas.
Segundo Guerra (1999), a passagem da teoria à prática é
possibilitada pelo caráter instrumental das ações profissionais e a
instrumentalidade denota a razão de ser do Serviço Social como campo
de mediação e como referenciais de novos norteadores, a partir dos quais
os padrões de uma nova racionalidade e ações instrumentais devam se
estabelecer. Além disso, salienta-se a capacidade de agir

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 19-32, 2002 25


metodologicamente, com conhecimento do objeto sobre o qual se trabalha
a fim de estabelecer as estratégias da ação profissional com vistas a sua
edificação na continuidade do projeto ético-político atual.

Discussão e Perspectivas

O resultado esperado da implementação desta abordagem


apresentada por este trabalho é a melhoria da qualidade dos serviços
prestados à população. Tendo como paradigma à ampliação e a
consolidação da cidadania, colocados como pontos fundamentais da
garantia dos direitos civis, políticos e sociais da população.
Neste sentido, reside a razão maior de discutir, analisar e
aprofundar a questão da instrumentalidade, com vista a atribuir qualidade
à ação profissional, resgatar para a profissão o patamar de primeira
categoria e possibilitar intervenções técnicas competentes de forma a
excluir o sentimento de não conseguir dar respostas eficazes às
demandas sociais em curso, voltadas para o compromisso de reafirmar a
ação política dirigida à inclusão dos excluídos sociais, da classe
trabalhadora e minorias sociais na sociedade que almejamos.
A nova instrumentalidade no serviço social segundo Guerra (1989)
implica em atuar sobre as limitações, mantendo o foco para além das
definições operacionais, é condição sine qua non compreendermos para
quem fazemos, onde e quando fazer, de forma a analisar as
conseqüências que no nível imediato as nossas ações profissionais
produzem, quando percebemos a essência alem das aparências somos
capazes de utilizar a dimensão mais desenvolvida da profissão, a autora
argumenta ainda em sua abordagem acerca de instrumentalidade que as
demandas e requisições da profissão possibilitam a criação e recriação
das categorias intelectivas que possam tornar compreensíveis as
problemáticas que lhe são postas como de intervenção nos sistemas de
mediações que possibilitem a passagem das teorias às praticas.
Tais valores constituem-se um arsenal de conhecimentos,
informações, técnicas e habilidades que estão subjacentes às ações do
Assistente Social. Através deles, suas ações ganham um modus faciendi
e se materializam como o resultado do que está sendo executado com
base em um plano genérico de atuação, que se definiu e se modela em

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 19-32, 2002 26


um quadro de correlação de forças de diversas naturezas.
Refletir questões como, a concepção, os valores e a
instrumentalidade no bojo da ação do Assistente Social é um modo de
identificar a dimensão que o conjunto do instrumental técnico utilizado
pelo Serviço Social ocupa no contexto geral das práticas assistenciais.
Nesta configuração é mister para o desenvolvimento das ações
profissionais a construção de uma proposta comprometida com as
demandas das classes subalternas, particularmente expressa em sua
mobilização. Isto nos remete a considerar o caráter político da prática e
ação profissional, situando o Serviço Social enquanto profissão
participante da reprodução das classes sociais, diretamente permeada
pelo relacionamento contraditório e antagônico entre elas. Isto confere à
profissão uma dimensão vivida e representada pela consciência de seus
profissionais expressa no discurso teórico-metodológico sobre a prática
profissional, uma dimensão que atribui à atuação profissional uma
determinação histórica. Essa dimensão condiciona e ultrapassa a própria
vontade e consciência de seus agentes individuais, situando a profissão
no processo das relações sociais. (IAMAMOTO, 1984).
No interior da profissão se subestimou a real dimensão dos
determinantes externos e contextuais da formação profissional e da
formação continuada. O movimento de reconceituação do Serviço Social
na prática levou a uma negação da identidade tradicional do Serviço
Social sem propor uma alternativa viável que a substituísse e conferisse à
profissão um novo espaço e uma atuação ancorada na realidade social.
De acordo com Guerra (1999), não se trata de reeditar novas fórmulas
para a intervenção profissional mas de constituir um consenso resultante
do amadurecimento teórico da categoria profissional – de atribuir uma
nova qualidade à intervenção; de recuperar o crédito historicamente
depositado na profissão, tanto pelos usuários dos seus serviços quanto
pelo segmento da classe que a contrata; de reconhecer a natureza das
demandas, os modos de vida dos usuários, suas estratégias de
sobrevivência, enfim, de deter uma competência técnica e intelectual e
manter o compromisso político com a classe trabalhadora.
O que podemos extrair dessas reflexões é que há várias
racionalidades se confrontando na profissão e expressam-se em
diferentes formas no agir e pensar dos profissionais frente a realidade.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 19-32, 2002 27


Estamos de acordo com Guerra (2002) quando afirma que é pela
instrumentalidade da profissão que passam os elementos progressistas e
conduzem os assistentes sociais a reverem seus fundamentos, o que
permite uma ampliação da sua funcionalidade e das bases sobre as quais
sua instrumentalidade se desenvolve. Ao se desprender da condição
histórica em que surge, vinculado ao projeto reformista-integrador e como
profissão apenas de caráter interventivo e manipulatório, visando alterar
as condições, o serviço social pode colocar-se no universo dos direitos
sociais, fortalecendo as estruturas democráticas e os direitos coletivos.
Finalizando a instrumentalidade do Serviço Social não se limita a
ativação de ações instrumentais e ao exercício de atividades imediatas,
ao contrario induz possibilidades de validação vinculadas ao emergente e
ao novo, as ações instrumentais necessitam ser informadas por teorias
que se sustentam nos princípios da construção do ser social. Para isto, o
agente social precisa ter claro os princípios da instrumentalidade forjados
no aprofundamento do seu saber teórico, na sua experiência passada e
na sua determinação de mudar o futuro das classes menos favorecidas.
Em vista do que aqui foi apresentado é premente a necessidade de
incorporar novos elementos e valores ao desenvolvimento da profissão de
forma a aplicar os instrumentos de mudança social mais adequados e que
funcionam como mecanismos de enfrentamento da questão social criando
os parâmetros de uma nova forma de sociedade.

BRANDÃO, R.; JOSÉ FILHO, M. The Reavaluation of the Current Social Context and of
the Instrumentality of the Social Work in Brazil. Serviço Social & Realidade (Franca),
v.11, n.2, p. 19-32, 2002.

• ABSTRACT: In this article we carry out a conjectural analysis of the social work as a
profession, its possibilities and limits of intervention as well as its insertion in the
Brazilian social, economic and political contexts. Our interest is to debate the current
practice of social work aiming at its readequacy as a process of social transformation.
There are many ways that a social worker can proceed, but all of them have to face
the difficult social and economical conditions of the Brazilian population: homeless,
domestic violence, difficult access to health care and education, exposure to drugs,
exploration of infant work, prostitution and several social deprivations as a
consequence of the absolute misery in which low class citizens are living. The social
workers have to perform the task of critically analyzing the economic model that has
been fostering the current social matter. Considering that the objectives of the social
workers include the rescue and the re-establishment of the human condition in their

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 19-32, 2002 28


work with populations at social risk, the analysis of the performance of these
professionals has resulted in fertile field for new propositions for social interventions in
this area. This topic gains relevance when it is clear the need of setting up new forms
of intervention that emphasize the reconquering of the basic values inherent to the
human beings. This attitude is a powerful tool for the awareness of the living
conditions the people is enduring, and for the awakening towards the transformation
its situation and its environment.

• KEYWORDS: instrumentality; social intervention; neoliberalism; social policy; social


intervention thecniques.

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Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 19-32, 2002 31


A CONSOLIDAÇÃO ESPACIAL E POPULACIONAL DO MUNICÍPIO DE
FRANCA NO PERÍODO DE 1823 A 2000

Analúcia Bueno dos Reis GIOMETTI*

• RESUMO: O presente trabalho aborda o município de Franca no desenrolar do


século XX, em seus desmembramentos politico-administrativos. Caracteriza, localiza
e descreve a área de inserção do município de Franca no contexto ambiental. Traça
a trajetória da formação da Região Administrativa e Região de Governo de Franca,
ao longo de sua evolução territorial e populacional. Através do contexto histórico
procura levantar os desmembramentos territoriais, desde 1798 até os dias atuais,
que gestaram a formação do município de Franca.

• PALAVRAS CHAVE: formação espacial evolução do quadro populacional; município


de Franca no século XX.

Caracterizando a Área de Inserção do Município

O município de Franca situa-se a nordeste do Estado de São Paulo.


Sua sede localiza-se nas coordenadas: 200 32’ latitude sul e 470 24’
longitude oeste, entre as bacias hidrográficas dos rios Sapucaí-Mirim e
Grande.
Os limites fronteiriços de Franca, em 2000, são: ao Norte, o
município de Cristais Paulista; ao sul, Batatais; a oeste, São José da Bela
Vista; a leste e sudeste, Patrocínio Paulista; a sudoeste, Restinga; a
noroeste, Ribeirão Corrente e a nordeste, situam-se Ibirací e Claraval
(MG).
Franca, em linha reta, está a 343 km da capital do Estado, rumo
SSE.
A caracterização do território com as Regiões Administrativas,
Regiões de Governo e Municípios, em 1998, estão listados no Quadro 1.
Na Mesorregião de Ribeirão Preto se encontra a Região
Administrativa de Franca, que por sua vez, subdividi-se na Região de
Governo de Franca. Nesta, estão inseridos os municípios de Araminas,
Batatais, Buritizal, Cristais Paulista, Franca, Guará, Igarapava, Itirapuã,

*Docente do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional

UNESP – Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 33


Ituverava, Jeriquara, Miguelópolis, Patrocínio Paulista, Pedregulho,
Restinga, Ribeirão Corrente, Rifaina e São José da Bela Vista.
Na Região de Governo de Franca segundo a divisão do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, em 2000, encontra-se a
Microrregião de Franca composta pelos municípios de Cristais Paulista,
Franca, Jeriquara, Restinga, Ribeirão Corrente, Itirapuã, Patrocínio
Paulista, Pedregulho (com os distritos de Alto Porã e Igaçaba), Rifaina,
São José da Bela Vista (Quadro 2).
Nesta área o traço em comum é dado pela forma do relevo, pois
assenta-se em relevo planáltico. Com esta caracterização morfológica, a
cidade de Franca está situada sobre um relevo colinoso conhecido como
a “terra das três colinas”, denominadas localmente como Colina da
Estação, Colina do Centro e Colina da Santa Rita, localizadas na Serra de
Franca, que integra a região da Província Geomorfológica do Planalto
Ocidental Paulista.
Estas colinas são separadas entre si pela rede hidrográfica,
formada por cursos d’água de hierarquia de primeira ordem, constituída
pelo Córrego dos Bagres, Córrego do Cubatão formadores do Ribeirão do
Coqueiro ou Espraiado, que vão desaguar no Ribeirão dos Bagres, que
por sua vez é afluente do Rio Sapucaí-Mirim, que faz parte da bacia
hidrográfica do Rio Grande.
A representação da planta urbana desta área em 2000 mostra
estes córregos canalizados por grandes avenidas. Assim, por sobre o
Córrego Cubatão passa a Avenida Dr. Ismael Alonso y Alonso; pelo
Córrego dos Bagres a Avenida Antonio Barbosa Filho até o bairro da
Estação, para daí em diante se chamar Avenida Dr. Helio Palermo; no
Espraiado foi construída a Avenida Ismael Alonso em seu trecho de
confluência com o Ribeirão dos Bagres até o bairro Jardim Santana,
para deste ponto até suas nascentes passar a se chamar Avenida
Adhemar Pollo Filho e por fim Avenida Marginal. Esta rede hidrográfica,
na área das três colinas, está situada em área densamente povoada.
Com uma altitude de 1.010 metros (sede municipal), seu clima é
tropical de altitude (máximas de 25,70 C e mínimas de 14,20 C) e a
precipitação anual é da ordem de 1.300 mm, com o período chuvoso se
estendendo de novembro a março.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 34


Esta região era coberta pela mata tropical, que foi sendo
desmatada em decorrência da intensa ocupação do solo para dar lugar as
pastagens e áreas cultivadas, restando pequenas manchas de vegetação
natural, nos dias de hoje.
A constituição do solo de Franca, por apresentar rochas areníticas –
arenito Botucatu e Bauru, facilitou o trabalho pluvio-erosivo o qual
desencadeou um processo erosivo intenso resultando em voçorocamento
nas áreas desmatadas. Associada a estes arenitos são encontradas as
rochas de origem magmáticas que pelo processo de derrame de lavas
vulcânicas originaram os solos basálticos.

Um Breve Histórico da Região de Franca

A primeira rota dos bandeirantes que seguiam para o Brasil Central,


era o trajeto percorrido através do vale do Rio São Francisco. Neste
caminho eram conduzidos os rebanhos que se deslocavam entre o litoral
e a região Central do Brasil.
Mas, no início do século XVIII, os desentendimentos entre paulistas
e emboabas, forçaram os bandeirantes a abrirem uma nova rota - a Estrada
do Sal.
Com a abertura desta nova via de comunicação, o comércio do
gado desloca seu centro econômico para o Estado de São Paulo. A beira
deste caminho, devido ao fluxo do rebanho e o comércio de gado, surge
um Arraial – o Arraial Bonito do Capim Mimoso, que viu seu crescimento
ser incrementado com pessoas vindo de Minas Gerais que se deslocavam
das zonas de garimpo e de criação e ali ficavam instalados, pois
encontravam condições ideais para a criação de gado vacum (Quadro 3).
Uma capela foi erguida e com as condições favoráveis de clima de
serra, boas pastagens e água abundante, este arraial passa a atrair os
habitantes do pequeno aglomerado urbano de Covas, o que impulsionou
seu crescimento e o firmou como entreposto comercial, que cada vez
mais foi se consolidando com o comércio de sal.
Demolida esta capela, em seu lugar foi erguida uma igreja matriz
e elevado, em 1805, à categoria de freguesia, a Freguesia de Franca e
Rio Pardo.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 35


Com uma posição privilegiada entre o sul paulista eminentemente
agrícola e o sertão central essencialmente pecuário, aí foi estabelecido o
comércio do sal que ficou conhecido como entreposto do sal de Franca.
Em 21 de outubro de 1821, a freguesia foi elevada à condição de
vila, a Vila Franca D’El-Rei.
Sua importância cresce, firma-se e em 28 de novembro de 1824,
passou a ser conhecida com o nome de Vila Franca do Imperador. Em
1832 foi instalada a comarca de Franca e elevada à condição de cidade,
em 1856.
Contudo, sua posição estratégica ao longo da Estrada do Sal vem a
sofrer um colapso com a abertura de novos corredores comerciais pelo
sertão paulista, que deslocaram o transporte do sal para outras vias mais
econômicas, trazendo para a região de Franca a decadência econômica.
A evolução populacional de Franca no período de 1874 a 1934,
representada na Tabela 1, expressou um dinamismo crescente, só
interrompido em apenas um período. Este ocorreu em 1886, quando
houve a diminuição do número de habitantes no município, explicado pela
perda de parte de seu território para Igarapava, retirando do total 7.638
habitantes, que passaram a ser computados não mais para Franca, pois
Igarapava foi desmembrado e elevado a condição de município em 1873.
(BACELLAR; BRIOSCHI, 1999, p. 19); Brioschi, (1999, p. 85) e Bacellar,
(1999, p. 142, 153) apud Bacellar e Brioschi (orgs), 1999).
Este quadro de estagnação foi alterado em 1887 com a chegada
dos trilhos da Companhia Mogiana de Estradas de Ferro. Esta propiciou
um novo ciclo econômico, novamente deslocando para esta zona o
comércio entre São Paulo, Goiás, Mato Grosso e Minas Gerais.
Esta expansão ferroviária estacionando-se em Franca a beneficiou
economicamente, pois o comércio da cultura cafeeira desta região
concentrou-se neste terminal até 1920.
O panorama de Franca em 1920 pode ser descrito da seguinte
maneira: sua população total era de 44.308 habitantes, dos quais 22.682
homens e 21.626 mulheres. A superfície territorial atingia 155.500
hectares; destes, 150.214 perfaziam a área dos estabelecimentos rurais,
com área ocupada por matas nestes estabelecimentos de 14.964
hectares. Em se tratando da relação, entre a área dos estabelecimentos
rurais e a superfície do município, 96,6% das terras estavam na zona

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 36


rural; destes, a área de matas dos estabelecimentos recenseados perfazia
10,0% (dados colhidos junto ao IBGE, de Rio Claro, com o Sr. Ivan
Donizetti Marafon).
A crise cafeeira da década de 20, não prejudicou tanto Franca
como outras regiões paulistas, pois aí eram preparados os cafés finos
associados à policultura do algodão, do tungue, da batata com a criação
do gado zebu. Com a criação tomando impulso, Franca passou a ser
conhecida como uma importante criadora deste rebanho.
Na década de 70, o município de Franca ganhou um novo impulso
econômico e populacional com a consolidação do seu parque industrial
calçadista.

Desmembramentos Territoriais de Franca no Período de 1823 a 2000

Por volta do ano de 1655, o território da Vila de Jundiaí estendia-se


até a área atualmente ocupada pela Região Administrativa de Franca.
Nesta grande região houve um primeiro desmembramento, quando foi
formada a jurisdição da Vila de Mojimirim, em 1769. Segundo BACELLAR
e BRIOSCHI (1999, p.18) “essa antiga circunscrição administrativa da Vila
de Mojimirim, por sua vez, sofreu uma primeira fragmentação ao ser
criada a Vila de Franca, em 1823” (Quadro 3).
Em 1813, a Freguesia de Franca contava com 2.497 habitantes, o
que perfazia 23,7% da população da Vila de Mojimirim.
Nos Quadros 4 e 5 estão expressas as evoluções populacionais da
Vila de Mojimirim, do Sertão do Rio Pardo, da Freguesia e Vila de Franca
nos períodos de 1778 a 1824 mostrando, neste universo maior, a
importância da área de estudo desde seus primórdios.
Com índice de 209 intrantes em 1804, Minas Gerais já se posiciona
como emissora de contingente populacional para a Freguesia e Vila
Franca. A evolução dos dados mostra um aumento percentual de ano
para ano, chegando a atingir em 1824, 75% do total da composição da
população.

Em 1828, Franca possuía um território de mais de 12.000 km2, sobre o qual


foram criados seis distritos, cada um tendo o seu juiz de paz eleito e seu fiscal
nomeado pelos vereadores. Estes eram formados pelo distrito da Vila de Franca,
distrito da Capela do Carmo (atual Ituverava), distrito de Batatais, distrito de

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 37


Cajuru, 2º Distrito de Santa Bárbara das Macaúbas e 3º Distrito do Chapadão
(BRIOSCHI, 1999, p. 81 apud BACELLAR; BRIOSCHI (orgs), 1999)

“No ano de 1839 o Termo da Vila de Franca perdeu toda a área


situada entre os rios Pardo e Sapucaí-Mirim, com a criação da Vila de
Batatais” (BRIOSCHI, 1999, p. 76 apud BACELLAR e BRIOSCHI (orgs),
1999).
Nos idos de 1874, as Vilas de Franca e Batatais eram as mais
populosas como expressa a Tabela 2.
O território de Franca, no período de 1889 até 1991, sofreu
constantes modificações com os desmembramentos territoriais
administrativos pelos quais foi passando. Isto refletiu, no município de
Franca, constantes alterações em sua área, passando de 1.745 km2, em
1940, para 607,3 km2, em 2000. Em contrapartida sua população foi
adensando-se, visto que em 1940 eram 55.760 habitantes para em 2000
chegar a 287.400, expressando cifras de 473 hab/km2, nesta última data
(Tabela 3).
Com estes desmembramentos e seguidas alterações em seus
limites, a caracterização de seu território ao longo do século XX espelhou
grande dinamismo populacional e econômico que foi impulsionando esta
região nordeste do Estado de São Paulo, transformando antigos distritos
em municípios, como atesta o Quadro 2.
Para melhor compreender a evolução populacional do município de
Franca, no período que abrange o século XX, foi realizado junto ao
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE e fontes
complementares, um levantamento de dados que remontam ao início
deste século até o ano de 2000. Este estudo possibilitou recriar a
dinâmica populacional deste período abordado.
Tomando como início deste período a análise a partir de 1900
(Tabelas 1 e 4), percebe-se que de 1934 a 1940 houve uma diminuição
nos índices populacionais em Franca, pois de 60.237 habitantes em 1934,
passou para 55.760 em 1940, podendo aventar a explicação de novos
desmembramentos ocorridos no município de Franca, entre estas datas.
De acordo com os Recenseamentos realizados no período de 1940
a 2000, a população do município de Franca mostrou um crescimento

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 38


positivo de década para década só sendo interrompido, em 1950, com
uma pequena diminuição populacional na ordem de 2.275 habitantes.
Neste período estudado de 60 anos, uma característica marcante
do município de Franca é o maior número de mulheres em relação aos
homens.
A população do município de Franca, em 1940, por ocasião do
Recenseamento, era de 55.760 habitantes. Essa mesma população
estava distribuída entre 27.813 homens e 27.947 mulheres, dos quais
localizados no quadro urbano estavam 11.222 homens e 12.816 mulheres
e no quadro rural 16.591 homens e 15.131 mulheres.
Nesta data o município de Franca já tinha passado pelo processo
de inversão populacional, pois o quadro urbano com um total de 20.568
habitantes, dos quais 9.492 homens e 11.076 mulheres, é mais
expressivo que o quadro rural que apresentava um total de 9.070 pessoas
distribuídas entre 4.709 homens e 4.361 mulheres.
Em 1950, o município de Franca passou a pertencer a Zona
Fisiográfica de Franca que apresentava um total de 210.019 pessoas.
Dentro deste contexto maior destaca-se o município de Franca com
53.485.
Somente no município de Franca a população urbana de 28.910
habitantes (13.574 homens e 15.336 mulheres) era maior que a rural com
24.575, destes 12.821 homens e 11.754 mulheres.
A população da Zona Fisiográfica de Franca atingia, em 1960, por
ocasião do Recenseamento 181.804 habitantes. Esta população estava
distribuída entre seus municípios, dos quais, se destaca, bastante
distanciado dos demais, o município de Franca, com 66.702 habitantes.
O município de Franca, em 1960, concentra maior número de
população feminina, ou seja 32.723 homens e 33.979 mulheres.
Na década de 70, a população da Microrregião do Planalto de
Franca atingia 149.268 habitantes, destes 75.682 homens e 73.586
mulheres. Quando a análise recai para os municípios, somente dois
passaram pela inversão populacional, Franca e São José da Bela Vista.
Franca com 86.863 habitantes na zona urbana para 6.775 na zona rural e
São José da Bela Vista com 3.591 na zona urbana para 3.190 na zona
rural, pois os demais mantiveram seus quadros populacionais
concentrados na zona rural.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 39


O quadro populacional de Franca, na década de 80 era o
seguinte: em Franca havia maior concentração da população feminina,
com 75.010 para 73.987 homens e um total de 148.997 de concentração
habitacional.
A população do município de Franca atingia, em 1991, por ocasião
do Recenseamento, 233.098 habitantes. Essa população estava distribuída
entre homens (116.048) e mulheres (117.050). Essa mesma população
estava localizada nos quadros urbano e rural, como se segue: quadro
urbano, 227.854 habitantes e quadro rural, 5.244 habitantes, mostrando
uma forte concentração na cidade.
Dentro do contexto populacional da Mesorregião de Ribeirão Preto,
a Microrregião de Franca contribuiu com 16% deste total, o que eqüivalia
a 288.135 habitantes, num total de 1.806.475; 16% da população urbana,
ou seja, 264.193 habitantes, para 1.644.439 da área maior e 15% da
população rural, que correspondia a 23.942 habitantes, para 162.036 da
Mesorregião.
O panorama populacional de 2000 atestou que todos os municípios
integrantes da Microrregião de Franca, concentraram maiores índices
populacionais na zona urbana. Manteve sua característica de maior
concentração masculina sobre a feminina, excetuando Franca, que ao
longo deste período estudado sempre mostrou posição inversa a este
universo populacional da área onde está inserida.
Traçando uma comparação entre a população da Microrregião de
Franca com a Mesorregião de Ribeirão Preto chegou-se ao índice
populacional de 17%, o que correspondia a 349.917 habitantes num total
de 2.103.957. Em contrapartida a população urbana representava 16,5%
e a rural 18,5% em relação a Mesorregião.
Do Recenseamento realizado em 1991 para o de 2000, não houve
alteração nas divisões e subdivisões regionais, mantendo-se um quadro
estável, não havendo também desmembramentos distritais. Nesta área
somente o município de Pedregulho continuou possuindo distritos.
Neste universo, Franca representa o município de maior
importância populacional e econômica em todo o período estudado,
estimulando e interferindo nos fluxos migratórios e de imigração que se
dirigem para esta região nordeste do Estado de São Paulo.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 40


Anexo das Tabelas e dos Quadros
Tabela 1. População total do município de Franca entre o período de 1874 e 1934.
Ano Total da população
1874 21.419
1886 10.040
1900 15.491
1920 44.308
1934 60.237
Fonte: Bacellar (1999, p. 142 e 153 apud BACELLAR e BRIOSCHI (orgs))

Tabela 2. Nordeste paulista - população dos municípios existentes em 1874.


Municípios População
Franca 21.419
Batatais 13.464
Ribeirão Preto 5.552
Cajuru 5.394
São Simão 3.507
TOTAL 49.336

Fonte: Bacellar (1999, p. 142 e 153 apud BACELLAR e BRIOSCHI (orgs))

Tabela 3. O município de Franca com a evolução de sua área, população e


densidade demográfica no período de 1940 a 2000.
Área (Km²) População Densidade demográfica (hab/Km²)
1940 1.745,0 55.760 32
1950 1.496,0 53.485 36
1960 1.124,0 66.702 59
1970 590,0 93.638 159
1980 590,0 148.997 252
1991 590,0 233.098 395
2000 607,3 287.400 473
Fontes:
BRASIL. Censo Demográfico de 1940 (1950, s/p)
BRASIL. Censo Demográfico de 1940 (1950a, 559p)
FERREIRA, Jurandir Pires (org. (1957, p.324)
BRASIL. Censo Demográfico de 1960 (1962, p.57)
BRASIL. Sinopse preliminar do Censo Demográfico de 1960 (1962, p.57)
BRASIL. Sinopse preliminar do Censo Demográfico de 1970 (1971, p.133)
BRASIL. Sinopse preliminar do Censo Demográfico de 1980 (1981, p.94)
BRASIL. Sinopse preliminar do Censo Demográfico de 1991 (1991, p.84)
BRASIL. Censo Demográfico de 2000 (2001, s/p)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 41


Tabela 4. População de fato e moradores presentes, por sexo, no município de
Franca entre as décadas de 40 a 2000.
Décadas 1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000
Homens 27.813 26.395 32.723 46.253 73.987 116.048 141.851
Mulheres 27.947 27.090 33.979 47.385 75.010 117.050 145.549
TOTAL 55.760 53.485 66.702 93.638 148.997 233.098 287.400
Fontes:
BRASIL. Censo Demográfico de 1940 (1950, 243p.)
BRASIL. Censo Demográfico de 1940 (1950a, p.154, 155)
BRASIL. Censo Demográfico de 1950 (1954, p.66)
BRASIL. Censo Demográfico de 1960 (1962, p.84)
BRASIL. Censo Demográfico de 1970 (1973, p.41 a 45)
BRASIL. Censo Demográfico de 1970 (1973a, 501p.)
BRASIL. Censo Demográfico de 1980 (1982, p.21)
BRASIL. Censo Demográfico de 1980 (1982a, 673p.)
BRASIL. Censo Demográfico de 1991 (1991, p.58)
BRASIL. Censo Demográfico de 1991 (1991a, 178p.)
BRASIL. Censo Demográfico de 2000 (2001, p.94)

Quadro 1. Caracterização do território com as Regiões Administrativas de


Franca, de Governo de Franca e Municípios, em 1998.
Regiões Administrativas, de Sede de Comarca Microrregião Geográfica
Governo e Municípios
(RA) Região Administrativa de Franca
Franca
(RG) Região de Governo de Franca Franca
Municípios
1. Araminas Igarapava Ituverava
2. Batatais Batatais Batatais
3. Buritizal Igarapava Ituverava
4. Cristais Paulista Franca Franca
5. Franca Franca Franca
6. Guará Ituverava Ituverava
7. Igarapava Igarapava Ituverava
8. Itirapuã Patrocínio Paulista Franca
9. Ituverava Ituverava Ituverava
10. Jeriquara Pedregulho Franca
11. Miguelópolis Miguelópolis São Joaquim da Barra
12. Patrocínio Paulista Patrocínio Paulista Franca
13. Pedregulho Pedregulho Franca
14. Restinga Franca Franca
15. Ribeirão Corrente Franca Franca
16. Rifaina Pedregulho Franca
17. São José da Bela Vista Franca Franca
Fonte: SÃO PAULO - ANUÁRIO ESTATÍSTICO DO ESTADO DE SÃO PAULO (SEADE), (1998, p. 27)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 42


Quadro 2. Caracterização da evolução do território de Franca no período de
1940 a 2000.
1940 1950 1960 1970 1980 1991 2000

Zona Fisiográfica Zona Fisiográfica Microrregião Microrregião Homogênea Microrregião,


Municípios Microrregião, (Municípios
(Municípios e (Municípios e (Municípios e do Planalto de Franca (Municípios e
e Distritos e Distritos)
Distritos) Distritos) Distritos) (Municípios e Distritos) Distritos)

Cristais Cristais Paulista Cristais Paulista Cristais Paulista Cristais Paulista

Altinópolis

Batatais

Cajurú
Cássia dos
Coqueiros
Cruz da
Esperança

Franca Franca Franca Franca Franca Franca Franca

Jeriquara Jeriquara Jeriquara Jeriquara Jeriquara Jeriquara Jeriquara

Restinga Restinga Restinga Restinga Restinga Restinga Restinga


Ribeirão Ribeirão Ribeirão
Corrente Corrente Corrente Ribeirão Corrente Ribeirão Corrente Ribeirão Corrente Ribeirão Corrente

Guapuã Guapuã

Guará Guará

Pioneiros Pioneiros

Igarapava Igarapava
Araminas Araminas

Buritizal Buritizal

Ipuã

Itirapuã Itirapuã Itirapuã Itirapuã Itirapuã Itirapuã


Patrocínio Patrocínio Patrocínio Patrocínio
Paulista Paulista Paulista Patrocínio Paulista Patrocínio Paulista Paulista

Pedregulho Pedregulho Pedregulho Pedregulho Pedregulho Pedregulho

Alto Porá Alto Porá Alto Porã Alto Porá Alto Porã Alto Porá

Igaçaba Igaçaba Igaçaba Igaçaba Igaçaba Igaçaba

Rifaina Rifaina Rifaina Rifaina Rifaina Rifaina


Santo Antônio
da Alegria
São Joaquim da
Barra
São José
da Bela São José da São José da São José da Bela São José da Bela São José da Bela São José da Bela
Vista Bela Vista Bela Vista Vista Vista Vista Vista

Ituverava

Capivari da Mata
S. Sebastião da
Cachoeirinha
Legenda: negrito = municípios; itálico = distritos. Fontes: BRASIL. Censo Demográfico de 1940 (1950a, p.549);
BRASIL. Censo Demográfico de 1950 (1954, p.167 e 168); BRASIL. Sinópse do Censo Demográfico de 1960
(1962, p.24 e 25); BRASIL. Censo Demográfico de 1970 (1973, p.142 a 166); BRASIL. Censo Demográfico de
1980 (1983, p.2 a 57); BRASIL. Censo Demográfico de 1991 (1991, p.43 a 228); BRASIL. Censo Demográfico
de 2000 (2001, s/p).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 43


Quadro 3. Relação percentual entre o total da população da Vila de Mojimirim e
do Sertão do Rio Pardo.

Freguesia e Vila Franca (1798 a 1818)*

DATAS LOCALIDADES ÍNDICES PORCENTAGEM

1798 Mojimirim 5.685


Sertão do Rio Pardo 549 9,6

1804 Mojimirim 7.360


Sertão do Rio Pardo 843 11,4

1807 Mojimirim 7.855


Sertão do Rio Pardo 1.578 20,0

1809 Mojimirim 8.406


Sertão do Rio Pardo 1.544 18,3

1813 Mojimirim 10.529


Freguesia de Franca 2.497 23,7

1814 Mojimirim 11.404


Freguesia de Franca e 2.832 24,8
Freguesia de Batatais

1816 Mojimirim 12.626


Freguesia de Franca e 2.673 21,1
Freguesia de Batatais

1818 Mojimirim 14.583


Freguesia de Franca e 4.510 30,9
Freguesia de Batatais

Nota:
* Dados extraídos de José Chiachiri Filho do livro Do Sertão do Rio Pardo à Vila
Franca do Imperador.

Fonte: CHIACHIRI, J. F. (1986, p. 142)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 44


Quadro 4. População do Sertão do Rio Pardo e da Freguesia e Vila Franca
Relação percentual de aumento em cada dois anos (1778 a 1824)*
ANOS POPULAÇÃO AUMENTO (%) ANOS POPULAÇÃO AUMENTO (%) NO
NO PERÍODO PERÍODO
1778 175 1798 549
1782 236 34,8 1799 660 20,2

1782 236 1799 660


1783 156 -33,9 1801 590 -10,6

1783 156 1801 590


1784 238 52,5 1803 690 16,9

1784 238 1803 690


1787 194 -18,5 1804 843 22,1

1787 194 1804 843


1789 196 1,0 1807 1.578 87,1

1789 196 1807 1.578


1790 231 17,8 1809 1.544 -2,1

1790 231 1809 1.544


1791 215 -7.0 1813 2.497 61,7

1791 215 1813 2.497


1793 452 110,2 1814 2.832 13,4

1793 452 1814 2.832


1794 460 1,7 1816 2.673 -5,6

1794 460 1816 2.673


1795 473 2,8 1818 4.510 68,7

1795 473 1818 4.510


1797 519 9,7 1824 5.827 29,2

1797 519
1798 549 5,7

Nota: * Dados extraídos de José Chiachiri Filho do livro Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do
Imperador.
Fonte: CHIACHIRI, J. F. (1986, p. 138)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 45


Quadro 5. População do Sertão do Rio Pardo e da Freguesia e Vila Franca.
Porcentagem dos Intrantes em relação à população de cada ano significativo
(1804 a 1824)*

ANO LOCALIDADE ÍNDICES PORCENTAGEM

Minas Gerais 209 24,7

1804 Outras localidades 39 4,6

Total geral 843

Minas Gerais 1.494 59,7

1813 Outras localidades 192 7,6

Total geral 2.499

Minas Gerais 2.092 73,8

1814 Outras localidades 162 5,7

Total geral 2.832

Minas Gerais 4.372 75,0

1824 Outras localidades 178 3,0

Total geral 5.827

Nota:
* Dados extraídos de José Chiachiri Filho do livro Do Sertão do Rio Pardo à Vila Franca do
Imperador.
Fonte: CHIACHIRI, J. F. (1986, p. 140)

GIOMETTI, A. L. B. dos. The spatial and populational consolidation of Franca in the


period of 1823-2000. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 33-50, 2002.

• ABSTRACT: The present text boards Franca-SP unroll the XX Century, in its politics
and administratives maims. Characterizes, localizes and describes the insertion area

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 46


of Franca in the ambiental context. Show the trajectory of formation of the
Administrative Area and the Government Area of Franca, all along its territorial and
populational evolution. Through the historical context searchs lift the territorial maims,
since 1798 until nowadays, that gestated the formation of Franca.

• KEYWORDS: Spatial Formation; The populational cadre evolution; Franca in XX


Century.

Referências Bibliográficas
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estrada do Anhanguera. Uma visão regional da história paulista. São
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Demográfico – Mão de Obra de São Paulo em 1980. Rio de Janeiro:
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Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 47


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população e dos Domicílios de São Paulo em 1991. Rio de Janeiro: IBGE,
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Resultados da Amostra de São Paulo em 1991. Rio de Janeiro: IBGE,
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Quadro de Distribuição Segundo a Situação do Domicílio em 1940. Rio de
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Demográfico – São Paulo em 1950. Rio de Janeiro: IBGE, 1954, 266p.
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1962, 185p. (VII Recenseamento Geral do Brasil, v. I, t. XIII, Série
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Janeiro: IBGE, 1957, v. 28, p. 322 a 326.
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do Censo Demográfico do Estado de São Paulo em 1960. Rio de Janeiro:
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BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse Preliminar
do Censo Demográfico do Estado de São Paulo em 1980. Rio de Janeiro:
IBGE, 1981. 182p. (IX Recenseamento Geral do Brasil v. 1, t. 1. n. 18).
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse Preliminar
do Censo Demográfico do Estado de São Paulo em 1970. Rio de Janeiro:
IBGE, 1971. 212p. (VII Recenseamento Geral do Brasil - 1970).
BRASIL. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Sinopse Preliminar
do Censo Demográfico do Estado de São Paulo em 1991. Rio de Janeiro:
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SEADE, 1998, 681p.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 49


Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 33-50, 2002 50
UM MODELO DE GESTÃO DE DESENVOLVIMENTO COMUNITÁRIO

Elizabeth Regina Negri BARBOSA*


Neide Aparecida de Souza LEHFELD**

• RESUMO: Um modelo de gestão de desenvolvimento comunitário: No Brasil, a


questão da habitação popular se ressalta através de processos reivindicatórios, de
movimentos populares e de pressões sociais e políticas principalmente de moradores
de favelas, cortiços e de grupos organizados de ocupação de loteamentos
clandestinos. Ao longo de nossa história, o Estado não tem apresentado políticas
sociais que consigam dar respostas satisfatórias a essa questão social, pautando-se
no clientelismo, na exclusão e no autoritarismo e dirigindo a política da habitação
popular à privatização. A política social da habitação pós-64, desde a criação do
BNH – Banco Nacional da Habitação, através da lei n. 4.380, de 21 de agosto de
1964, instituindo concomitantemente o Plano Nacional da Habitação e o Serviço
Federal de Habitação e Urbanismo foi uma tentativa de o Estado autoritário minimizar
alguns problemas sociais oriundos das questões de moradia apresentadas pelas
massas urbanas. Com isso, buscou-se também uma legitimação do governo militar,
que objetivava a manutenção da ordem e da estabilidade social. No decorrer dos
anos, vários programas são criados junto ao Sistema Financeiro de Habitação,
dentre os quais, em 1985, o Prodec – Programa de Apoio ao Desenvolvimento
Comunitário, considerado um dos instrumentos de aplicação dos recursos do Fundo
de Garantia por tempo de serviço, nos programas habitacionais. O objetivo do
programa é promover a participação das populações dos conjuntos habitacionais
desde a discussão de suas necessidades até a consolidação dos projetos gerados
por essas mesmas demandas. Assim, as questões de infra-estrutura básica, de
equipamentos e de organização passam a ser produzidas para a melhoria da
qualidade de vida da comunidade. Participam do programa vários agentes
promotores de programas habitacionais com recursos do FGTS e dentre esses
podemos citar as Companhias de Habitação tais como a COHAB/RP – Companhia
de Habitação de Ribeirão Preto que se responsabilizou pela execução do Prodec em
Ribeirão Preto e Região cuja experiência tentamos apresentar nesse trabalho. A
base de sustentação do Programa é a participação popular que se apresenta como
um dos maiores desafios no desenvolvimento de trabalhos comunitários. É nas áreas
de conjuntos habitacionais, de grupos de moradores e de favelas que há o
desenvolvimento dessa ação, cujo surgimento se dá através de movimentos sociais

* Assistente Social, doutora em Serviço Social, docente na Universidade de Ribeirão


Preto – UNAERP.
** Professora titular e Livre Docente - UNESP – Franca-SP. Diretora de Ensino, Pesquisa

e Extensão da UNAERP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 51


ou da própria implementação da política social. Do ponto de vista da gestão de
política social, pode-se enfatizar que a sua formulação e o incentivo ao trabalho
comunitário dá-se em função da necessidade da existência de mecanismos de
organização dos movimentos populares resultantes dos anseios de acesso e de
consumo, cada vez mais exacerbados em decorrência da industrialização e dos
imperativos contemporâneos de crescimento do mercado. A participação popular na
definição dos seus destinos é vista como o meio primordial para o crescimento e
emancipação social dessas populações.

• PALAVRAS CHAVE: A prática profissional do Assistente Social; Capitalismo; Grupos


Sociais; Pesquisa Social – Serviço Social.

A expectativa dos graduandos e graduados em Serviço Social está


sempre voltada para a resposta da indagação: como agir estrategicamente,
como atuar em determinadas situações e movimentos comunitários?
Esse sentimento não é privilégio ou está circunscrito somente ao
futuro Assistente Social, mas a qualquer processo de formação profissional.
No caso específico do Serviço Social, que envolve no seu cotidiano
profissional o planejamento e a definição de uma prática social, há
sempre uma tendência a buscar estratégias e/ou políticas de ação que
nos conduzam a uma solução mais efetiva da problemática social abrangida.
Nesse sentido, decidimos, neste texto, alinhavar uma série de
propostas de ação estabelecidas em conjunto com os Assistentes Sociais
da Companhia Habitacional de Ribeirão Preto – SP e técnicos da Caixa
Econômica Federal, presidentes das associações de moradores dos
conjuntos habitacionais de Ribeirão Preto e região quando da implantação
e execução do Programa de Desenvolvimento Comunitário – Prodec nos
anos de 2001 e 2002.
Nosso papel profissional, nesse processo, se caracterizou como
sendo o de assessores na etapa inicial do trabalho, supervisores durante
a realização do mesmo e avaliadores ao seu final.
A riqueza da experiência obtida durante a operacionalização do
processo como um todo nos impulsionou à sua divulgação para não só
atender à expectativa mencionada acima, ampliando o conhecimento
sobre um tipo de atuação profissional bem como demonstrar cada vez
mais a legitimação e importância da prática profissional do Assistente
Social no contexto organizacional e comunitário.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 52


Política Habitacional Brasileira

No Brasil, a questão habitacional surge através de processos


reivindicatórios, de movimentos populares e de pressões principalmente
de moradores de favelas, cortiços e de grupos organizados de ocupação
de loteamentos clandestinos.
Ao longo de nossa história, o Estado não tem apresentado
respostas satisfatórias a essa questão social, pautando-se no
clientelismo, na exclusão, no autoritarismo e dirigindo a política da
habitação popular à privatização.
A política social da habitação pós-64, desde a criação do BNH –
Banco Nacional da Habitação, através da lei n. 4.380, de 21 de agosto de
1964, instituindo concomitantemente o Plano Nacional da Habitação e o
Serviço Federal de Habitação e Urbanismo foi uma tentativa de o Estado
autoritário minimizar alguns problemas sociais oriundos das questões de
moradia apresentadas pelas massas urbanas. Com isso, buscou-se
também uma legitimação do governo militar, que objetivava a manutenção
da ordem e da estabilidade social.
Ao Banco Nacional da Habitação – BNH ficava legada a Política
Habitacional Brasileira, administrando-a no lugar das caixas de pecúlio e
órgãos previdenciários.
Conforme Silva, “o BNH contou, inicialmente, com capital de um
milhão de Cruzeiros, o que equivalia a 900 mil dólares no câmbio da
época e uma receita permanente de 1% sobre as folhas de pagamento de
todos os empregados sujeitos ao regime da CLT – Consolidação das Leis
Trabalhista” (1989, p.53).
Com a criação do FGTS2 - Fundo de Garantia por Tempo de
Serviço e a implantação do SBPE3 - Sistema Brasileiro de Poupança e

2 FGTS – “vem representar um mecanismo de arrecadação compulsória para o BNH ao


instruir obrigatoriedade do recolhimento de 8% sobre a folha de pagamento dos
empregados, por parte dos empregadores, liberando estes da indenização obrigatória, no
caso de dispensa de empregados, o que, na prática representou a extinção da
estabilidade no trabalho...” (SILVA, 1989, p. 53).
3 SBPE – “responsável por captação de recursos voluntários, através dos depósitos em

cadernetas de poupança e venda de letras imobiliárias” (idem).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 53


Empréstimo, em 1996, o BNH passa a ser o segundo maior banco do
país.
Os agentes públicos e privados que até então prestavam
atendimentos ao mercado habitacional eram:
− As Cohabs – Companhias Habitacionais; os Inocoops –
Cooperativas Habitacionais; as Caixas Econômicas; Associações de
Poupanças e Empréstimos e Sociedades de Crédito Imobiliário
(LEHFELD, 1988).
Cada um desses agentes, atendendo a diferentes camadas da
população, seguiam o Estado, que ditava as diretrizes para a aquisição da
casa própria.
Com o fechamento do BNH, em 1989, o Banco do Brasil passa
temporariamente a gerenciar a política de habitação popular do país. Em
seguida, essa função é transferida à Caixa Econômica Federal, que
também é uma empresa bancária e como tal possui dificuldades em
definir ações mais subsidiadas à população que vive sem moradia.
Na busca de concretizações de seus propósitos, no decorrer dos
anos, vários programas são criados junto ao Sistema Financeiro de
Habitação, dentre os quais, em 1985, o Prodec – Programa de Apoio ao
Desenvolvimento Comunitário.
Através da Resolução n.38/85 esse Programa foi criado “com a
finalidade de operacionalizar as diretrizes estabelecidas para a política de
desenvolvimento de comunidade do SFH” – (Sistema Financeiro de
Habitação) (LEHFELD, 1988, p.35).

O Programa de Apoio ao desenvolvimento comunitário - PRODEC

O PRODEC – Programa de Apoio ao Desenvolvimento Comunitário


é considerado um dos instrumentos de aplicação dos recursos do Fundo
de Garantia por tempo de serviço nos programas habitacionais. O seu
agente operador é a CEF (Caixa Econômica Federal), a qual toma para si
a responsabilidade de controle social e orçamentário de execução do
programa.
O objetivo do programa é promover a participação das populações
dos conjuntos habitacionais desde a discussão de suas necessidades até
a consolidação dos projetos gerados por essas mesmas discussões.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 54


Assim, as questões de infra-estrutura básica, de equipamentos e de
organização passam a ser produzidas para a melhoria da qualidade de
vida da comunidade.
Os beneficiários do Prodec são as comunidades que possuem
saldo em conta especial na CEF, “decorrentes de contribuições vinculadas
a operações contratadas até a data de 31 de dezembro de 1991,
lastreadas em recursos do FGTS”, conforme resolução n. 132 de 22/02/94
– Conselho Curador do FGTS. Essa conta especial na CEF é denominada
Prodec/Habitação.
Participam do programa vários agentes promotores de programas
habitacionais com recursos do FGTS e, dentre esses, podemos citar as
Companhias de Habitação tais como a COHAB/RP – Companhia de
Habitação de Ribeirão Preto, que se responsabilizou pela execução do
Prodec em Ribeirão Preto e região, cuja experiência tentamos apresentar
no presente trabalho.
Pode-se dizer que a política habitacional em Ribeirão Preto tem na
criação da COHAB4 o seu referencial e, como base principal, o Plano
Nacional de Habitação Popular (Planhab). Esse Plano surgiu com o
objetivo de prestar atendimento às populações de baixa renda nas suas
necessidades de moradia.

A Cohab de Ribeirão Preto, como as demais Cohabs existentes no país, é uma


sociedade de economia mista organizada pela estrutura pública de constituição
lavrada a três de fevereiro de 1970 [...], com um capital inicial de Cr$ 600.000
(seiscentos mil cruzeiros), subscrito por 21 Prefeituras Municipais da Região,
tendo a Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto como acionista majoritária com 52%
das ações e com participação acionária de todos os municípios onde constrói casas
(LEHFELD, 1988 p. 54).

Assim, mediante a apresentação de programas sociais pelo agente


promotor, que é a Cohab/RP no caso de Ribeirão Preto e região, a CEF
desembolsa os recursos de acordo com os procedimentos inscritos nessa
resolução.
A base de sustentação do Programa é a participação popular que
se apresenta como um dos maiores desafios no desenvolvimento de

4 Lei Municipal n.2302 de 24 de Novembro de 1969.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 55


trabalhos comunitários.
Historicamente, as camadas populares são os usuários da prática
de programas sociais dessa natureza, que podem ser identificados como
um processo técnico-metodológico de ação dirigido às populações.
É, justamente, nas áreas de conjuntos habitacionais, de grupos de
moradores e de favelas que há o desenvolvimento dessa ação, cujo
surgimento se dá através de movimentos sociais ou da própria
implementação da política social.
No primeiro caso, vamos deparar com a mobilização popular em
favor da defesa de problemas comuns que suscitam o seu enfrentamento.
Assim, as limitações de infra-estrutura coletiva, o pouco espaço físico, a
falta de condições para a ampliação da cidadania passam a ser
sentimentos comuns, estimulando a geração de movimentos de
enfrentamento dessas condições que obstruem a satisfação de suas
necessidades.
Do ponto de vista da política social, pode-se enfatizar que a sua
formulação e o incentivo ao trabalho comunitário dá-se em função da
necessidade da existência de mecanismos de organização dos
movimentos populares resultantes dos anseios de acesso e de consumo,
cada vez mais exacerbados em decorrência da industrialização e de todos
os imperativos contemporâneos de crescimento do mercado.
Conforme Souza, no Brasil,

é, sobretudo a partir da década de 70 e, mais especificamente, a partir das


formulações e diretrizes do II PND (Segundo Plano Nacional de
Desenvolvimento), que as áreas de moradia passam a ser tratadas com
maior destaque pela política social (1999, p. 15).

Dessa forma, o trabalho voltado ao desenvolvimento de


comunidades toma cada vez mais vulto, pois a participação popular na
definição dos seus destinos é vista como o meio primordial para o
crescimento e emancipação social dessas populações.
Para Demo “é sempre possível dizer que a referência central da
qualidade humana é a participação, pois a sociedade mais desejável, pelo
menos mais suportável, é aquela em que há maior participação por parte
de todos” (DEMO, 2001, p. 19).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 56


No caso específico das associações de moradores dos conjuntos
habitacionais englobados no âmbito do estudo ora relatado nesse artigo,
esses organismos associativistas têm facilitado os diagnósticos sociais da
área bem como a execução de ações sociais mais efetivas, contando-se
com o processo de participação social aí existente.
Percebe-se que há, nessa vivência coletiva, um crescimento e
amadurecimento dos representantes da população do conjunto
habitacional na busca de estratégias de soluções das dificuldades de
consecução do bem-estar social da população, por meio de
implementação de equipamentos tais como: de segurança pública, saúde
publica, escolas, lazer etc.

O “Case” Prodec - COHAB/Ribeirão Preto

Da nossa experiência com o PRODEC implantado em Ribeirão


Preto e região, podemos elencar, desta forma, alguns elementos que se
caracterizaram como dificultadores de implementação desse processo de
intervenção social nos conjuntos habitacionais:
a) O desconhecimento sobre o Programa: a divulgação sobre o
que é o PRODEC pela Caixa Econômica Federal é precária e não atinge
nem a população a ser beneficiada nem as autoridades municipais que
deveriam ser as parceiras para o bom desenvolvimento do programa;
b) A falta de capacitação dos agentes: a capacitação técnica dos
agentes e responsáveis da Caixa Econômica Federal para implementação
dessa tipologia de programas é deficitária. Existe um esforço e disposição
muito grandes dos próprios funcionários da C.E.F. para atuarem bem,
porém, por não possuírem formação profissional nessa área de atuação
mais externa aos serviços rotineiros do banco, isto é, de ação
comunitária, permanecem mais preocupados com as questões normativas
do banco do que propriamente operacionais;
c) A dificuldade de análise do programa: a análise da proposta
de trabalho projetada por profissionais externos à Caixa Econômica
Federal, já que existe a terceirização desses serviços, é morosa e muitas
vezes necessita ser refeita até se alcançar um consenso sobre o que é
possível efetivar na prática ou não, atendendo-se às normas burocráticas
do banco.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 57


d) A composição e preparação da equipe de trabalho: a
preparação e atualização da equipe técnica composta por assistentes
sociais das organizações envolvidas no processo, no sentido de
entrosamento com os procedimentos burocráticos, administrativos e
financeiros normatizados pela Caixa Econômica Federal para o
desenvolvimento do PRODEC, é complexa e também demorada.
e) A manutenção da continuidade do processo: existem “gaps”
ao longo do processo de trabalho instituído em razão das férias, por
exemplo, dos agentes da Caixa Econômica Federal, da mudança de
coordenação do setor, na análise dos relatórios encomendados, etc.
Esses espaços dificultam a manutenção de um ritmo e dinamismo,
contínuos ao trabalho.
Com relação ao processo de implantação do programa
propriamente dito, faz-se necessário aqui relatar como se deu a realização
da sua primeira fase, ou seja, a pesquisa caracterizada como um survey
nos conjuntos habitacionais de Ribeirão Preto e região.
Sabemos que a pesquisa social constitui um procedimento
metodológico fundamental para se iniciar qualquer intervenção social. O
levantamento da realidade social é o primeiro passo para que possamos
conhecer mais profundamente com quem trabalhamos, onde se
estabelecerá a nossa ação, as demandas, os recursos e outros elementos
importantes.
Havia, pois, a necessidade de se delinear quais seriam as
principais demandas que os mutuários desses conjuntos habitacionais
possuíam, além de se conhecer melhor o funcionamento das associações
de moradores já formadas e em formação.
A pesquisa também acabou se tornando estratégia de motivação e
de envolvimento da própria comunidade pesquisada, pois, para cada
morador abordado pelos entrevistadores, inicialmente foi explicado o
objetivo do processo investigativo e quais seriam os possíveis
desdobramentos operacionais, com programas sociais voltados para o
atendimento das demandas diagnosticadas.
A pesquisa de campo foi realizada com o auxílio de docentes e
alunos estagiários do curso de Serviço Social da Universidade Estadual
Paulista, campus de Franca/SP, em parceria com a Caixa Econômica
Federal em 1999, com duração de seis meses. Era composta por

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 58


questões abrangendo itens relacionados às condições de moradia
idealizadas pelo mutuário, levantamento de níveis de dificuldades em
razão da inexistência de equipamentos sociais – escolas, postos de
saúde, segurança, lazer. O nível de associativismo também foi abordado
buscando conhecer quais as ações sociais e movimentos reivindicatórios
já realizados pelos moradores.
Outro fator observado foi a situação de trabalho e de emprego do
mutuário, a renda familiar e a situação atual de débitos com o pagamento
da casa própria.
Foi direcionada pela própria Caixa Econômica Federal a montagem
de amostras de entrevistados, por conjunto, da seguinte forma: 20% do
total de moradias a serem pesquisadas nos conjuntos menores, isto é, até
250 moradias; nos conjuntos maiores, acima de 250 unidades, a amostra
seria de 15% do total. Foram então pesquisados 1.143 moradores assim
distribuídos conforme demostrado no quadro I.
Relativo ainda ao processo de levantamento da realidade estudada,
podemos afirmar que os conjuntos abrangidos pela pesquisa estão
localizados em municípios limítrofes à cidade de Ribeirão Preto, no
interior do Estado de São Paulo, e que possuem como principais
atividades econômicas, no setor primário, o cultivo da cana-de-açúcar, o
café, o milho, etc. com muitos empregos sazonais gerados por essas
culturas.
As indústrias são poucas, de pequeno e médio porte, ressaltando-
se a existência da agro-indústria na região para a produção de açúcar e
álcool.
O setor terciário é bem desenvolvido e diversificado. Contudo,
Ribeirão Preto dentre os municípios elencados, constitui um pólo
econômico aglutinador por ter o comércio mais desenvolvido, com a
presença de quatro shopping centers e outras atividades comercias.
O que se constatou inicialmente, como já abordado, é que não
existia nenhum nível de conhecimento dos mutuários e nem mesmo dos
dirigentes públicos dos municípios limítrofes por nós abordados sobre o
que seria o programa (PRODEC) e mesmo sobre o pagamento efetuado
pelo mutuário para o fundo de recursos para desenvolvimento do mesmo,
no seu conjunto.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 59


Os dados obtidos por meio desse levantamento nos conduziram a
estabelecer três programações básicas, principalmente relacionando-se
com os recursos humanos institucionais e financeiros existentes.
Apesar de o período de realização da pesquisa ser no ano de 1997,
pudemos, nas visitas atualmente feitas aos conjuntos de Ribeirão Preto,
no ano de 2001 e, por meio de contato com as lideranças dos mesmos,
detectar que as prioridades permaneciam as mesmas, acirradas pelas
dificuldades hoje encontradas principalmente com a manutenção dos
empregos do chefe do casal e também com o aumento das condições de
violência nos bairros e falta de segurança na cidade.
O período de finalização dos governos municipais anteriores e o
início dos novos governos nos municípios abrangidos, apresentou
dificuldades orçamentárias para a manutenção de alguns programas de
desenvolvimento comunitário existentes voltados às demandas indicadas,
bem como em iniciar a implantação de novos. Fato este comum nos
períodos de transição e mudanças da administração pública no nosso
país.
Assim, fez-se necessário relacionar as demandas sociais que
permaneceram diagnosticadas e priorizadas no projeto inicial:
1 necessidade de informação esclarecendo aos mutuários sobre
as possibilidades de ação das Associações de Moradores com
vista à melhoria das condições de vida e de moradia nos
conjuntos habitacionais;
2 inexistência de Programas de Desenvolvimento Comunitário e
de Assistência Social que motivem e orientem os moradores
para as atividades associativas educacionais, de promoção e
de emancipação social e política;
3 deficiência e/ou falta de serviços de atendimento à segurança
e saúde pública, bem como de limpeza pública e urbanização
dos conjuntos habitacionais;
4 necessidade de construção de áreas de lazer, de praças
públicas, creches e centros comunitários.
Com base nesses dados, continuaram então definidas as três
linhas gerais de ação que estão sendo operacionalizadas dentro de cada
conjunto, atendendo suas especificidades e expectativas:
I Formação e desenvolvimento de associações de moradores

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 60


II Formação de mutirões para a construção de praças públicas e
áreas de lazer
III Implantação de oficinas de trabalho e desenvolvimento de
cursos

Fase de Implantação/Execução do PRODEC – Procedimentos

Após a realização do estudo, iniciamos então a atuação


propriamente dita, na Companhia Habitacional de Ribeirão Preto, com o
objetivo de implantar o programa de desenvolvimento comunitário nos
conjuntos habitacionais relacionados para essa etapa do Prodec.
Alguns procedimentos foram executados:

a) Apresentação do Projeto Geral à Diretoria da COHAB


Com a mudança de governo municipal no início do ano em que
começamos o trabalho, tivemos um período de recesso da Companhia
Habitacional de Ribeirão Preto, quando foi empossada a sua diretoria e
também a nova Assessoria de Habitação, a qual ficou com a
responsabilidade direta de acompanhamento do desenvolvimento do
trabalho do PRODEC.
O projeto foi em primeiro lugar apresentado aos novos diretores da
COHAB, tendo-se esclarecido o que havia sido iniciado ao final do ano de
2000 e todas as regulamentações do Prodec. Várias reuniões foram então
realizadas na COHAB, no período anterior à assinatura do contrato de
trabalho com a Caixa Econômica Federal e a COHAB/ Ribeirão Preto,
sendo os três primeiros meses fundamentais para discussão de pontos
essenciais para se implementar os projetos de intervenção social.
b) Formação da Equipe Interdisciplinar de trabalho
Para a execução do projeto como um todo, houve a necessidade de
compor uma equipe de trabalho com a participação da Assessora de
Habitação, as assistentes sociais, os engenheiros da COHAB/RP, as
assessoras externas e dois estagiários de arquitetura. Na proposta inicial
havia também a indicação da presença de dois estagiários de Serviço
Social na equipe, contudo a direção da companhia não facilitou essas
contratações, em razão do alto número de estagiários já contratados.
A chefia do setor de Serviço Social ficou responsável pela

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 61


execução do projeto junto à própria COHAB, tendo, como dissemos, a
participação dos assistentes sociais do Setor Social, as quais já possuem
experiências na execução do primeiro PRODEC.
Para a seleção dos estagiários, solicitamos às Universidades e
Centros Universitários de Ribeirão Preto a indicação de alunos dos cursos
de Serviço Social e de Arquitetura, tendo sido avaliado o histórico escolar
e realizada uma entrevista com os candidatos pela Assessora de
Habitação acompanhada pela Assistente Social chefe do setor. Na
entrevista procurou-se avaliar a motivação dos alunos para esse tipo de
atuação bem como maturidade emocional, nível de responsabilidade,
compromisso, facilidade de trabalho em grupo e, ainda, a disponibilidade
para trabalho em tempo integral.
c) Definição de linhas de trabalho com a equipe técnica para a
implantação do programa
Em razão principalmente das dificuldades iniciais de implantação de
qualquer projeto de ação, tivemos que realizar várias reuniões com a
equipe técnica da COHAB/RP procurando redefinir linhas de ação e
divisão de trabalho para os componentes da equipe, tais como:
programar com a direção da COHAB uma reunião geral com os
prefeitos dos municípios abrangidos pelo projeto e assistentes
sociais responsáveis por trabalhos comunitários para ampla
divulgação do trabalho;
contatar os presidentes das Associações de Moradores dos
conjuntos habitacionais Jardim Manoel Penna, Jardim Juliana,
Jardim Palmeiras I e II, Maria C. Lopes, Jardim Alexandre Balbo
II e Jardim Jovino Campos da cidade de Ribeirão Preto;
visitar os conjuntos habitacionais Palmeiras I, II e Juliana A para
reunião com os candidatos à presidência da Associação de
Moradores, a qual congrega ações para os três conjuntos
habitacionais.
reunir as Secretarias da Cidadania e Desenvolvimento Social
e/ou de Bem-Estar Social dos municípios englobados, no
sentido de explanar sobre o PRODEC e estabelecer parcerias
para a execução do trabalho. Ressalta-se que foram realizados
contatos anteriores à montagem do projeto geral com
representantes desses organismos para levantamento de mais

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 62


dados sobre as demandas dos conjuntos e sobre o
funcionamento das associações.
Realizar visitas aos conjuntos habitacionais de Ribeirão Preto,
eleitos para o início da atuação do Prodec, estimulando a
motivação da Associação de Moradores como por exemplo:
Juliana, Palmeiras I e II e Manoel Penna.

Os subprogramas do Prodec – Cohab/Ribeirão Preto/SP: uma breve


descrição

Cada país, cada região, cada área específica encontra-se numa situação própria
de desenvolvimento. É a partir desta situação que o processo precisa avançar.
Compreender a situação própria de desenvolvimento em que se encontra um
determinado contexto supõe compreendê-lo historicamente, dialeticamente e
estruturalmente (SOUZA, 1999, p. 77)5

Essas concepções trazidas a todo momento de forma consensual


entre os parceiros na realização do trabalho social – COHAB/C.E.F. nos
conduziram ainda mais a relacionar as ações a serem operacionalizadas
nesse processo com o processo de participação popular.
O primeiro programa, o relacionado às Associações de Moradores,
foi a base para a consecução dos demais programas.
Assim, o trabalho a ser efetivado com os mutuários, por exemplo,
para a formação de Associações de Moradores e para a otimização das
ações das Associações já existentes limitadas e /ou enfraquecidas, teve
como norte a perspectiva da participação política social e coletiva,
buscando provocar na população em geral dos conjuntos predisposição
para consentimento e aquisição de novas atitudes de aceitação para
novos valores e para a mudança de hábitos e costumes.
Dessa forma, foram definidas duas possibilidades de atuação neste
primeiro subprograma:
a) Assessorar a formação de associações
b) Capacitar as lideranças daquelas já registradas, a fim de
dinamizar suas necessidades.

5SOUZA, Maria Luiza. Desenvolvimento de Comunidade e Participação. 6.ed. São


Paulo: Cortez, 1998, p.77.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 63


O interessante foi constatar que a maioria das associações de
moradores em funcionamento, com a diretoria eleita e com algumas
ações realizadas, tinham problemas relacionados ao registro cartorial das
mesmas e retirada do CNPJ (Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica). Sem
tais procedimentos burocráticos, a Associação de Moradores não tem
possibilidade de receber nenhum tipo de auxílio de órgãos públicos para
dinamizar seus programas de ação.
O segundo subprograma “Formação de mutirões para a construção
de praças públicas e áreas de lazer” teve a parceria das secretarias
Municipais de Planejamento, da Cidadania e Desenvolvimento Social e da
Secretaria de Obras – Departamento de Parques e Jardins.
Todo o trabalho de articulação com as secretarias da Prefeitura
Municipal com a COHAB e com os representantes das Associações de
Moradores dos conjuntos habitacionais foi realizado para conjugar
recursos e disposição política em torno do desenvolvimento do
subprograma.
Os mutirões foram organizados com a mediação das Associações
de Moradores que nos auxiliaram no processo de motivação e
engajamento dos mutuários na construção das praças públicas com a
orientação e acompanhamento do setor de engenharia da
COHAB/Ribeirão Preto.
Numa segunda etapa, houve um redimensionamento do “Projeto
Arquitetônico Modelo de Praça” elaborado pelo Departamento de Parques
e Jardins da Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto, observando-se as
condições físicas, de espaço e de recursos de cada conjunto habitacional.
O 3° subprograma, denominado “Oficinas de Trabalho –
Desenvolvimento de Cursos”, foi elaborado com base na pesquisa
realizada para o planejamento do presente trabalho, sendo identificados
quatro cursos a serem desenvolvidos prioritariamente em dois turnos,
diurno e noturno, em Ribeirão Preto/SP e nos municípios abrangidos pelo
programa. Foram eles:
• Computação e serviços de escritório: noções básicas;
• Modelagem e pequenos reparos;
• Curso para formação de Eletricista;
• Artesanato – confecção de cestas de café da manhã e outras;
confecção de velas decorativas etc.
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 64
O cronograma geral para o desenvolvimento dos cursos foi
projetado a possibilitar um maior aproveitamento de recursos humanos,
institucionais e comunitários, tendo-se ainda a preocupação em
estabelecer períodos para a reapresentação desse subprograma, onde
encontrar maior procura por parte dos moradores e facilidade em se
recrutar monitores.

O PRODEC e o Planejamento Participativo em Ribeirão Preto

O processo de planejamento participativo foi introduzido em


Ribeirão Preto (SP) no primeiro governo do Partido dos Trabalhadores, no
período de 1992 a 1996, com a finalidade de estimular e democratizar a
participação popular na gestão pública do município.
Não temos dados em mãos que possam avaliar o grau de
participação dos representantes das associações de moradores e de
administrações regionais nesse processo no período, pois não se trata de
nosso objeto de estudo. Contudo, há necessidade de aqui relacioná-lo em
razão da interação que se estabeleceu entre os dois processos: do
PRODEC com o planejamento participativo.
O que pretendemos ressaltar com relação ao planejamento
participativo no segundo mandato do governo do Partido dos
Trabalhadores em Ribeirão Preto é a interligação conseguida com o
desenvolvimento do programa de desenvolvimento de comunidade,
cuja execução ora descrevemos.
No planejamento participativo, anualmente, os líderes de
conselhos de bairros e de associações dos conjuntos habitacionais são
chamados para a discussão com as autoridades políticas sobre as
demandas prioritárias dessas populações, objetivando adequar o seu
atendimento às possibilidades dos planos orçamentários aprovados pela
câmara municipal ao município.
A primeira reunião realizada com a presença da maioria dos
conjuntos habitacionais na Companhia Habitacional de Ribeirão Preto
teve como objetivo dar conhecimento sobre o PRODEC e das
possibilidades que cada conjunto teria em termos de implantação de
cursos, reformas dos Centros Comunitários e construção de
equipamentos. Foi interessante observar a satisfação dos líderes

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 65


comunitários ao serem informados sobre os recursos financeiros que cada
conjunto habitacional possuía na Caixa Econômica Federal e, sem
nenhuma interferência nossa, os participantes da reunião demonstraram
um entendimento de que haveria necessidade de separar as ações a
serem desenvolvidas através do orçamento participativo, daquelas
referentes ao PRODEC. O que havia sido solicitado à Prefeitura Municipal
não seria então solicitado ao PRODEC. Eram duas fontes que puderam
ser usadas em favor da melhoria das condições habitacionais de cada
conjunto.
Os agentes das instituições, tanto da própria Caixa Econômica
como os da Cohab, tinham dúvidas sobre os problemas que poderiam
existir quando cada associação tivesse conhecimento do montante de
verba que o conjunto possuía para custear, no caso, programas sociais
aprovados pela própria Caixa Econômica Federal.
Nesse sentido, nossa atuação foi a de esclarecer aos agentes da
C.E.F. que era direito dessas pessoas conhecer os recursos obtidos das
suas próprias mensalidades. No entanto, a preocupação dos técnicos é
justificada pelo fato de que existia, obviamente, uma diferença muito
marcante dos valores desses recursos entre os conjuntos, sendo que os
conjuntos maiores possuem muito mais recursos do que os menores e
não se pretendia criar expectativas que não seriam atendidas. Não há
também possibilidade, pela legislação de se redistribuir recursos. Há
ainda uma normatização contraditória de que as sobras dos programas
realizados devem retornar para a própria Caixa Econômica Federal para
um fundo específico. Assim, a preocupação maior foi a de que
pudéssemos aplicar todo o recurso disponível em benfeitorias e serviços
aos mutuários.
Essas são as contradições e também pontos de tensão nesse
processo que pretende ser democrático e participativo. Em todos os
momentos, os agentes da Caixa Econômica Federal solicitam que a
população, a base do conjunto, seja consultada, pesquisada e ouvida.
Porém, mesmo com a aprovação de programas sociais que atendam a
essas demandas e reivindicações, a Caixa Econômica Federal estabelece
com procedimento quanto à realização das ações: a responsabilidade
inicial orçamentária total da própria Cohab que, posteriormente, com a
apresentação de relatórios e notas fiscais, recebe o repasse de verbas.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 66


Sabemos que os repasses de verbas, sejam públicos ou tenham se
tornado públicos em razão da constituição desse fundo na C.E.F. em nível
de Política Habitacional Popular, sempre foram problemáticos devido à
burocracia que comumente envolve esses processos no nosso país. O
prazo para esse procedimento comumente se alonga e depende de
aprovação de relatório e de visitas técnicas. A apresentação de
comprovantes fiscais de compra e de prestação de serviço, não bastam
para que as verbas sejam repassadas ao grupo empreendedor, mas sim
toda uma documentação estabelecida pela própria Caixa Econômica
Federal.
De todos os modos, há muitas maneiras de se construir um
processo de intervenção social em uma dada realidade.
Contudo, deve-se sempre, ao delinear qualquer prática profissional,
ter um conhecimento mais aprofundado das demandas sociais, políticas e
de outras níveis dessa mesma realidade.
A pesquisa científica a ser empreendida para a obtenção desse
conhecimento necessita de um norteamento claro de objetivos que serão,
na realidade, o fundamento de toda a atuação do Assistente Social. Essa
fase de diagnóstico é necessária para que se estabeleça quais as
possibilidades e estratégias a serem desenvolvidas no intento de se
instituir uma programação social ligada a uma política social pública mais
abrangente.

Considerações Finais

No caso específico da programação por nós abordada, nesse


trabalho, tentamos transmitir quais as condições objetivas de seu
desenvolvimento bem como as mediações necessárias entre o espaço de
tempo de negociações com os órgãos públicos desencadeadores da ação
– a Caixa Econômica Federal e a Companhia Habitacional de Ribeirão
Preto e os representantes organizados das comunidades envolvidas.
Mais do que qualquer outro fator, a participação social dos
mutuários no programa foi fundamental para que pudéssemos construir
articulações entre as propostas idealizadas e projetadas.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 67


A luta contínua nesses processos de intervenção deve ser para
diminuir a distância entre as normatizações dos organismos públicos e a
realidade comunitária.
Assim, a idéia de trazer a conhecimento esse trabalho de
assessoria junto a um programa social (PRODEC) e aos profissionais
interessados em processos sociais participativos de ação foi formada por
componentes motivacionais relativos à demonstração mais concreta das
propostas e procedimentos metodológicos e operacionais que confluíram
para resultados, considerados pelos próprios envolvidos, como revestidos
de uma eficiência e eficácia significativas.
As análises sociológicas preliminares realizadas nesse relato
procuraram evidenciar como as próprias ordens institucionais podem
servir de forma de controle social e, ao mesmo tempo didaticamente, de
operacionalização mais criativa e pró-ativa do profissional do Serviço
Social. Contudo, é claro que olhando-se por outro lado, pode se constatar
que com um pouco de disposição e vontade política em descobrir que
nessas mesmas instituições existem espaços de liberdade para se criar
formas mais democráticas e participativas de ação social.
O desafio de se implementar um programa social dessa dimensão,
isto é, ao abranger conjuntos habitacionais em contexto sociais,
econômicos e políticos diferenciados foi compensador quando se avalia
que existiu crescimento e emancipação social de algumas associações de
moradores e que fomos nós os agentes estimuladores da iniciação desse
processo.
Conforme P. Demo, o desafio da emancipação, visto mais de
perto, ostenta o drama. Primeiro, supõe consciência crítica da opressão,
ao ponto de compreender que a marginalidade é mantida, cultivada,
requisitada. Injusta, pois, imposta e alongada. Segundo, partindo daí,
trata-se de reagir e virar o jogo, ou seja, entrar na área como sujeito
capaz de se impor. (DEMO, 2001, p.224, 223).
A transformação do programa em processo de ação foi se
deparando com os obstáculos indicados sem chegar a ser frustrante.
Houve, contudo, uma constante busca da participação social de seus
envolvidos num caráter mais coletivo, apontando para um sentido político
mais amplo, indo além da simples adesão. Podemos dizer que, em alguns
processos, conseguimos construir espaços de parceria e de co-gestão do

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 68


programa com as associações de moradores mais ativas que não se
preocupam somente em atender as demandas mais imediatas e sim a
perspectiva da emancipação social como norte.

BARBOSA, E. R. N; LEHFELD, N. A. S. A innings model of communal development.


Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 51-70, 2002.

• ABSTRACT: In Brazil, the popular habitation question is emphasized by the


vindications processes, from the social movements, from the social and political
pressures, mainly the dwellers of shantytowns, doss-houses, and from the organized
groups to the occupation of clandestine allots. All along of our History, the State
haven’t presented social politics with satisfactory answers to this question, going
upon the clientelism, the exclusion, the authoritarism, and conducting the popular
habitation politics to the deprivement. All along the years, several programs are
created with the Financial System of Habitation, among these we can cite the
Habitational Companies just as the COHAB/RP – Habitational Company of Ribeirão
Preto, whose experience we essay to present in this work. The support of the
program is the popular participation that is one of the major challenges in hte
development of communitary works. Is in the area of habitational ensembles and
dwellers of shantytowns that exists the development of this practice. The popular
participation in their destenies definition is seen as the primordial way to the growth
and social emancipation of these people.

• KEYWORDS: The professional practice of the Social Worker; Capitalism; Social


groups; Social Research – Social Work.

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2001.
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WANDERLEY, Mariângela Belfiore. Metamorfoses do desenvolvimento de
comunidade. São Paulo: Cortez, 1998.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 51-70, 2002 69


Quadro I – Quantitativo de Entrevistas por Conjunto Habitacional

Conjunto Habitacional Município Unidade Amostra%


Jardim Victorio A. Santi Araraquara 500 75
Jardim Tucanos Brodowski 292 44
Jardim Panorama Franca 367 55
Jardim Hassan e Jardim Mourani Guará 140 28
Jardim Nélio dos Santos Guará 201 40
Jardim Evaristo R. Nunes Igarapava 446 67
Waldir D. Mattar Igarapava 520 78
Jardim Eurico L. Henrique Ituverava 99 20
Jardim Alvorada Luis Antônio 249 50
Pref. Orlando Rossati Luis Antônio 119 24
Jardim Dr. G. Rosseti Mococa 297 45
Jardim Dr. Júlio Bucci Orlândia 298 45
Jardim São Benedito Pitangueiras 227 46
Jardim Alexandre Balbo II Ribeirão Preto 698 105
Jardim Jovino Campos Ribeirão Preto 222 45
Jardim Juliana “A” Ribeirão Preto 458 69
Jardim Manoel Penna Ribeirão Preto 600 90
Maria Casa Grande Lopes Ribeirão Preto 622 94
Jardim Palmeiras II Ribeirão Preto 345 52
Jardim Lúcia F. Sverzuti Sertãozinho 475 71

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A FORMAÇÃO PROFISSIONAL NA PÓS-GRADUAÇÃO E O ESTÁGIO
DE DOCÊNCIA

Luciane Pinho de ALMEIDA*


Maria Ângela Rodrigues Alves de ANDRADE**

• RESUMO: Este artigo busca refletir sobre uma experiência de estágio de docência
na graduação em Serviço Social da UNESP – Universidade Estadual Paulista “Julio
de Mesquita Filho” – campus Franca.

• PALAVRAS CHAVE: Prática educativa; estágio de docência; formação profissional.

Introdução

Este artigo surgiu de uma experiência prática, enquanto estagiária


do Curso de Pós-Graduação, no acompanhamento da disciplina de
Fundamentos Teórico-Metodológicos do Serviço Social I da Faculdade de
História, Direito e Serviço Social – UNESP/ campus Franca. O Estágio de
Docência é obrigatório para os alunos bolsistas CAPES no Programa de
Estudos Pós Graduados em Serviço Social da UNESP.
Acreditamos que esse exercício no desenvolvimento dos cursos de
Pós-Graduação strictu-sensu, devesse se tornar cada vez mais efetiva,
pois se os cursos de pós-graduação tem como de seus objetivos formar
pesquisadores e principalmente docentes para o ensino superior, a
atividade se torna primordial para a preparação do aluno que pretende
assumir esta atividade.
Procuramos neste artigo refletir sobre a importância dessa
experiência buscando uma melhor sistematização de seu
desenvolvimento.

O desafio da Universidade

O compromisso da Universidade firma-se cada vez mais na

*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social - UNESP – Franca-SP.


**Vice-Coordenadora e Docente do Programa de Pós Graduação em Serviço Social.
Docente do Departamento de Serviço Social UNESP – Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 71


produção de conhecimento. A vida acadêmica implica em pesquisa, para
gerar novos conhecimentos e promover a cidadania.
Pedro Demo (1993) coloca como um dos desafios da Educação
Superior, assumir a pesquisa, como

... diálogo crítico e criativo com a realidade, culminando na elaboração própria e


na capacidade de intervenção. Em tese, pesquisa é a atitude do ‘aprender a
aprender’, e, como tal faz parte de todo processo educativo e emancipatório.
(p.128).

A vida acadêmica deve portanto priorizar a pesquisa, tão


necessária a renovação do conhecimento, mas ela também deve estar
vinculada a outros dois pilares importantes na vida universitária, estamos
lembrando aqui da prática da docência, o ensino e o retorno à
comunidade através da extensão. Nesse sentido, Pedro Demo (1993, p.
129) afirma que “universidade que apenas ensina está na ordem da
sucata”.
A LDB – Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no
capítulo XVII, fala no art. 91, que:

A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á, preferencialmente,


em nível de pós-graduação, em cursos e programas de mestrado, doutorado e
pós-doutorado, na forma prevista nos estatutos e regimentos das instituições de
ensino.

Com relação à carreira acadêmica, não é novidade pensar que sob


o aspecto formal da titulação, o pós-graduando está capacitado para
assumir a sala de aula, mas por outro lado, a prática efetiva da pós-
graduação têm sido momento de desenvolvimento de disciplinas com
freqüência e participação nas aulas junto aos professores habilitados e
finalmente a prática da pesquisa no desenvolvimento de uma dissertação
ou tese, todavia por mais que possa se esforçar não consegue garantir a
participação na vida universitária como um todo, salvo os casos nos quais
já se é professor em alguma Instituição.
Por outro lado, o que vemos acontecer com freqüência é:
professores ministrando aulas sem dedicação à pesquisa e muito menos
ainda, sem assumir uma prática extensionista.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 72


Vale lembrar que se muitos dos professores não assumem esta
postura o que dirá dos pós-graduandos, que vivenciam apenas parte
deste processo?
Assim, vamos tentar discutir algumas alternativas para que amplie o
espaço de inteiração e integração universitária do pós-graduando.

O estágio de docência – uma experiência educativa e de


aprimoramento

Entendido o papel da Universidade em produção e reconstrução do


conhecimento, pensamos que o estágio de docência se transforma num
campo aberto para a experiência que deve unir, pesquisa, ensino e
extensão para que o pós-graduando não inicie suas experiências sem a
prática vivencial do cotidiano universitário.
Porém antes de expressarmos nossa argumentação a esse
respeito, cabe esclarecer sobre a importância da prática de estágio, como
instrumento educativo para a formação profissional.
O Estágio é um espaço de aprendizagem do fazer concreto da
profissão, propiciando ao aluno a vivência da realidade com suas nuanças
positivas e negativas, construindo a identidade desse futuro profissional.
Para BURIOLLA (1993) estágio é

um campo de treinamento um espaço de aprendizagem do fazer concreto do


Serviço Social, onde um leque de situações, de atividades de aprendizagem
profissional se manifesta para o estagiário, tudo em vista de sua formação
profissional. (BURIOLLA, 1999, p. 13).

O aluno busca no estágio a sua identidade profissional, que vai se


formando de acordo com a prática vivenciada e também com a
colaboração do Supervisor. O Estágio funciona então como laboratório de
aprendizagem prático-teórico de qualquer profissional, sendo este
supervisionado por autoridade competente ele passa a ser “o espaço
onde a identidade profissional do aluno é gerada, construída e referida,
volta-se para o desenvolvimento de uma ação vivenciada, reflexiva e
crítica e, por isso, de ser planejada, gradativa e sistemática.” (BURIOLLA,
1999, p.13).
O estágio é o espaço que propicia o aprender a fazer, ou o fazer e
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 73
fazer de qualquer profissão, pois se depara com a prática cotidiana desta
e os conhecimentos teóricos e metodológicos vivenciados durante o curso
são confrontados com essa prática diária com a qual o aluno se depara.
Portanto, acreditamos que o papel do estágio é fundamento na formação
profissional do aluno, pois entendemos o estágio como um processo
ensino-aprendizagem, onde supervisor e supervisionado vivenciam a
prática e refletem sobre sua ação.
Se o estágio tem esse papel fundamental na formação profissional
do aluno, pensamos que este não deva ser uma ação por ação, prática
pela prática, mas deve implicar em algo planejado e gradativo, pois só
assim irá contribuir para a real formação desse aluno. Ele deve ser um
processo planejado e por isso o supervisor deve elaborar junto ao
estagiário o plano de estágio, discutindo com seu aluno quais seriam as
atribuições dele, detalhamento do trabalho, o programa, o projeto e
demais atividades. É importante saber dosar atividades como um
processo ou como espaço para reflexão/ação. Além disso, o estágio deve
propiciar o estabelecimento da relação unidade Teoria X Prática. Pois há
que se considerar a possibilidade de distanciamento entre conhecimento
X praticidade da aluna.
De acordo com BURIOLLA (1995, p. 13) “o estágio supervisionado
é o lócus onde a identidade profissional do aluno é gerada, construída e
referida”, no qual o aluno-estagiário treina o seu papel profissional,
caracterizando-se numa dimensão do ensino aprendizagem operacional
dinâmica e criativa, portanto, deve contribuir para o desenvolvimento das
potencialidades do aluno proporcionando-lhe oportunidades de adquirir
aptidões, habilidades e competências para o exercício da profissão que
este ora se propõe, através da integração dos seus conhecimentos
teóricos ao desempenho das atividades da prática profissional, de forma
gradativa, planejada e orientada, através da supervisão.
A Supervisão de estágio é uma atividade que existe em diferentes
profissões. O supervisor deve ser alguém habilitado a acompanhar o
desenvolvimento da prática do aluno, assim sendo sua responsabilidade é
muito grande, pois deve ser um comprometimento com a formação da
natureza da Identidade Profissional.
No Serviço Social, enquanto formação profissional houve várias
formas diferentes de se conceber o processo de supervisão. Assim, no

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 74


período inicial da profissão, o Supervisor era aquele que tinha o poder de
“saber tudo”, e com isso assumia o papel de autoridade.
Entendemos que o papel do supervisor foi sendo modificado,
conforme o contexto histórico social e educativo. BURIOLLA (1993)
destaca hoje cinco funções fundamentais do supervisor: o papel de
autoridade, educador, avaliador, facilitador e o de transmissor de
conhecimentos, informações, vivências. Estes papéis devem estar
sempre se intercambiando, porém o papel de educador é prioritário, pois
cabe aí a orientação, o acompanhamento, a partilha do aluno com o
processo ensino-aprendizagem (co-responsabilidade).
Cabe ao educador conscientizar, organizar, participar, sistematizar,
pesquisar, comprometer-se, perguntar, expor, incentivar, executar,
coordenar, explicar, ilustrar, gerar, proporcionando oportunidades
educativas que levem à reflexão dos modos de ação profissional e de sua
intencionalidade, tornando o estagiário consciente de sua ação.
A supervisão, portanto, deve ser feita de uma forma democrática,
na qual o papel do supervisor é de socialização e educação, com uma
autoridade democrática e de diálogo com o estagiário.
O Supervisor deve propiciar a integração do aluno no campo de
estágio, procurando identificá-lo na Instituição, proporcionar apreensão de
conteúdo, aquisição e exercício de atitude, habilidades e postura
profissional, através do manejo de metodologia científica, de instrumentos
e técnicas, adequados à demanda de ação profissional.
Cabe ao aluno ser capaz de identificar os espaços profissionais
atuais e emergentes, do uso de estratégias de alternativas de ação.
Utilizar os procedimentos metodológicos e os princípios norteadores.
O Professor-supervisor deve ser um profissional preocupado com
sua prática e seu conhecimento, deve ser um profissional na busca de
novas alternativas, procurando sempre o aprofundamento teórico, levando
em conta que cada supervisionado é um indivíduo, ou seja, o aluno é uma
pessoa com uma somatória constituída de psico-física (individualidade) e
coletivo (ambiente, realidade social e histórica).
A Supervisão deve ser um processo pelo qual é construído um
Plano com o conteúdo da disciplina que será ministrada durante o estágio
de docência, a partir de discussões em reuniões de Supervisão, para que
o processo realmente seja de reflexão e crescimento para ambas as

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 75


partes. O conteúdo das reuniões de supervisão deve ser o da prática
diária, com reflexões e a da documentação (relatórios, análises,
apontamentos, ações realizadas, sistematização, etc...).
O professor deve, enfim, impulsionar e colaborar para que o
estagiário realize sempre uma análise institucional, procurando refletir
junto a esse aluno, a configuração total de globalidade em que este está
realizando seu estágio, fazendo com que busque sua própria identidade
profissional.

A análise teórico-prática do Estágio de Docência na Pós-Graduação

Considerando nossas reflexões anteriores podemos concluir que,


todo e qualquer estágio é importante em qualquer processo de formação
profissional. Pensando desta forma, não deixaria de ser diferente com a
docência. Se o papel da Universidade é preparar bons profissionais, é
importante que estes sejam acompanhados por bons professores,
habilitados para tal atividade.
A pós-graduação como processo de formação profissional para a
docência tem preparado bons pesquisadores, mas nem sempre tem
conseguido garantir a formação de professores. A ênfase de nossos
cursos de pós-graduação tem sempre destacado e valorizado a formação
do pesquisador, como ponto chave e exclusivo de formação acadêmica
da vida profissional do pós-graduando. Pensamos que a Universidade tem
como principal papel o desenvolvimento de novos conhecimentos, para
propiciar melhorias de vida à população. Dessa forma, não deveria só
atuar em pesquisa, mas também preparar o aluno para o enfrentamento
da vida acadêmica como um todo, pensando que ele poderá e deverá
atuar em pesquisa, ensino e extensão, além de uma quarta possibilidade
que hoje já se discute que seria a gestão administrativa.
Todos essas partes se encontram interligadas na vida universitária
e para tanto o aluno deveria conhecê-las e ter possibilidade de ver na
prática suas dificuldades de atuação e as facilidades destas no mundo
acadêmico. Pensando assim, a prática de um estágio de docência,
acompanhado por um professor doutor que desenvolve as diversas
atividades (ensino, pesquisa, extensão ou até mesmo gestão) dentro da
Universidade, proporcionaria aos pós-graduandos maiores possibilidades

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 76


de conhecer a realidade do cotidiano universitário, que nem sempre se
constrói com vitórias, mas que se faz também com as derrotas. É na
dialética do concreto, do viver a realidade, que o aluno poderá habilitar-se
melhor para o enfrentamento de nossa realidade universitária.
Á prática da docência é um desafio que se enfrenta no cotidiano
profissional e o estágio de docência tem por objetivo preparar o pós-
graduando para essa prática.
É necessário ter a concepção de prática de ensino muito além de
conhecimento e compreensão de um conteúdo, ela deve atender a um
projeto histórico-social, que impulsionem os sujeitos envolvidos alunos e
professores a uma ótica crítico-social no qual os conhecimentos são
construídos e reconstruídos historicamente, reavaliando o saber
sistematizado.

Se a tarefa do educador é uma tarefa de transformação, é preciso que ele não


ignore que a transformação social e individual tem regras. É preciso que as
conheça. Se a mudança individual e social acontecer por intermédio de um
agente da educação, é porque este consciente ou inconscientemente, seguiu
certos passos, certas leis, certos caminhos e evitou outros que o conduziram ao
oposto. (GADOTTI, 1992, p.76)

Nesse sentido de buscar a transformação no processo de


construção do conhecimento na Universidade, é que propiciar o
desenvolvimento de um estágio de docência que possibilite ao aluno o
compartilhamento do cotidiano universitário em todas as suas dimensões
pode colaborar substancialmente na formação profissional e identidade
docente que o pós-graduando procura para si mesmo.
O processo de desenvolvimento de estágio de docência deve
implicar, portanto, no planejamento, desenvolvimento e avaliação do
ensino, pesquisa e extensão desenvolvidos pelo estagiário e supervisor,
comprometidos na formação crítica e científica do pós-graduando,
implicando “num projeto político que estabeleça finalidades, que
expressem intencionalidades, mas requer a capacidade de captar a
dinâmica da sala de aula em toda sua complexidade. (ANDRADE, 1996,
p.59).
Por essa perspectiva, a prática educativa deve integrar o “saber,
saber fazer e saber ser” (LIBÂNEO, 1994, p.44-5). Devemos ressaltar

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 77


aqui, a importância da sala de aula, do professor e da prática de ensino,
pesquisa e extensão para o aluno pós-graduando que se insere no
estágio de docência.
A sala de aula deve ser para o estagiário um espaço de criação,
inovação e construção/reconstrução de conhecimentos. Deve ser
principalmente um espaço de interação no qual alunos X estagiário X
professor estabeleçam uma relação saudável de troca de conhecimentos
e reflexões. Lugar no qual se confrontam idéias. Assim, o estagiário
poderá contribuir para essa relação, pois é considerado perante os alunos
como um igual, porém num patamar de conhecimento além dos
graduandos, ele portanto, pode ser um intermediador entre as relações
aluno-professor, mas deve antes disso ser um sujeito como os demais o
qual participa do processo educativo.
Segundo ANDRADE (1996, p.64) o professor deve-se tornar “o
coordenador da produção de conhecimento, passando a ser o grande
articulador de projetos pedagógicos que objetivam a criação e a
reconstrução dos conhecimentos”.
Por fim, a prática da docência também envolve uma orientação
metodológica que segundo ANDRADE (1996, p.65-66) abrange um
projeto político, a necessidade do domínio dos conhecimentos e a
possibilidade de produção de novos conhecimentos, a relação educador /
educando e a mediação de suas relações interpessoais, a questão
metodológica, que ocupa um lugar central no projeto de construção de
uma prática transformadora, o planejamento das atividades e que implica
necessariamente num resultado que se quer alcançar com a ação e
norteador das tomadas de decisão e a avaliação de resultados.
Muitos alunos dos Programas de Pós-Graduação hoje, não têm
experiência de docência, principalmente em sala de aula, acumulando
somente a titulação e conhecimento de pesquisa. Depois de concluído o
seu curso e posteriormente no exercício da docência podem surgir
dificuldades no desenvolvimento de seu trabalho profissional, de forma
que seria interessante o desenvolvimento de experiências durante o seu
processo de amadurecimento na pós-graduação, tendo em vista que este
aluno seria acompanhado por um professor habilitado, proporcionando um
processo reflexivo durante sua atuação e acompanhamento da prática da
docência e na construção de sua identidade profissional.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 78


Cremos que abrir esses espaços para que o aluno de strictu-
sensu possa acompanhar o dia-a-dia da Universidade seja de extrema
importância, e a nosso ver o estágio é essa porta aberta para melhor
compreensão do aluno e crescimento do professor-supervisor. Temos
certeza de que o papel educativo dessa prática levará ao crescimento de
nossos pós-graduandos e de nossos professores.

ALMEIDA, L. P. de; ANDRADE, M. Â. R. A. de. The professional formation in


postgraduation and the teaching internship. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11,
n.2, p. 71-80, 2002.

• ABSTRATC: This article intends to do a reflection about a teaching trainnig


experience in the Social Work Graduation of UNESP - campus Franca.

• KEYWORDS: Education Pratice; Theaching Trainning, Professional Formation.

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Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 71-80, 2002 80


ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE A POLÍTICA DE SAÚDE NO
BRASIL
Cláudia Renata FÁVARO*
• RESUMO: O foco central de análise no presente estudo, é a política pública de saúde
no Brasil período que vai da instalação da ditadura militar em 1964 até a conclusão
dos trabalhos da Constituinte de 1988, analisando algumas questões sobre a política
de saúde hoje.

• PALAVRAS CHAVE: Política de Saúde; Reforma Sanitária.

Introdução

Nas últimas duas décadas tem sido mais extenso o debate sobre a
gestão das políticas sociais. Isso vem ocorrendo pelo fato de que a
questão social assume novas configurações na sociedade capitalista
atual.
Este texto demarca algumas considerações sobre a política de
saúde no Brasil, no período da crise da ditadura militar e a transição
democrática. Contexto que possibilita o surgimento do movimento da
Reforma Sanitária, que começa a questionar a política de saúde vigente.
A proposta de reformulação da política de saúde resulta em 1988 em
efetivas conquistas na Constituição, sendo grande parte de suas
reivindicações atendidas.
É relevante compreender que, a Constituição de 1988 trouxe
significativas mudanças no âmbito da saúde, pode se dizer que foi um
avanço importante na historia da Seguridade Social no Brasil.
Outro fator imprescindível de compreensão é a nova ordem mundial
que vem prevalecendo, se estruturando num processo de
aprofundamento da desigualdade social em nível mundial, com a
ampliação da competição e com a redução ou eliminação de
regulamentações e de mudanças no papel do Estado. Assim o que vem
prevalecendo é o capital financeiro internacional, trazendo uma série de
transformações nas economias nacionais e nas políticas sociais.

*Assistente Social, mestranda em Serviço Social e Política Social da Universidade

Estadual de Londrina-PR; bolsista CAPES.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 81


Política Social

É somente com o advento do capitalismo monopolista que a “questão social”


torna-se objeto de respostas institucionais, por meio de políticas sociais como um
mecanismo básico para a reprodução social da força de trabalho e de
legitimidade das elites, alem da reprodução do capital como pressuposto
constitutivo da formação capitalista (SERRA, 2000, p. 90).

A política Social é concebida como uma forma de intervenção e


regulação do Estado devido ao desenvolvimento do capitalismo
monopolista, é determinada por um conjunto de necessidades sociais que
tem sua origem historicamente nas condições de desenvolvimento da
relação capital e trabalho. O estado através das políticas sociais contribui
para o barateamento da força de trabalho por meio da socialização dos
custos da sua reprodução. Essas políticas são financiadas com recursos
públicos, arrecadados de impostos pagos pela população.
Considerando analises históricas sobre a institucionalização das
políticas sociais no Brasil, bem como sua gênese pode-se ressaltar que
estas tem se constituído um instrumento de legitimação dos governos,
que para se manter acabam aceitando as reivindicações e pressões da
sociedade organizada, enfatizando que esse processo ocorre de forma
distinta em cada conjuntura histórica.
Segundo Vieira (1997), a política social percorre dois momentos
distintos. O primeiro corresponde, ao período da ditadura de Getúlio
Vargas e ao populismo nacionalista e o segundo vai da época da
instalação da ditadura militar em 1964 até a conclusão dos trabalhos da
Constituinte de 1988. E ainda o mesmo autor ressalta que a política social
encontra-se no terceiro período denominado por este de “política social
sem direitos Sociais”.
Esse contexto é importante para situar e compreender a política de
saúde no Brasil, especificamente como sinaliza Vieira, no denominado
segundo momento de controle da política. Circunstância que emerge o
movimento da reforma Sanitária, sendo muitas das suas reivindicações
consolidadas na Constituição de 1988. Esse período se caracterizou pelas
conquistas construídas e as dificuldades de efetivação da política de
saúde no Brasil.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 82


Conjuntura Brasileira (1964 a 1988) e a Reforma Sanitária

No período pós-64, o Estado buscando aumentar seu poder de


regulação sobre a sociedade para amenizar as tensões e efetivar a
legitimidade do regime e ainda servir de mecanismo para acumulação do
capital. No que diz respeito a questão social6. Sua intervenção se dá pelo
binômio repressão-assistência, onde a assistência social é ampliada,
burocratizada e modernizada pelo Estado.
Nesse momento era forte a concepção de que a sociedade civil era
incompetente, imatura sendo necessário o controle do Estado sobre a
sociedade.
No pós-64:

...organizou-se um modelo de serviços de saúde que tinha na assistência


médica seu núcleo predominante, e que se baseava no produtor privado, com
fins lucrativos, nas suas varias formas; e na busca incessante do acesso dos
vários grupos sociais aos serviços de saúde, em um movimento que é conhecido
como extensão de cobertura pela Assistência-Médica (CAMPOS, 1986, p. 78).

Quanto ao modelo produtor privado em 1964 em 1974, inicia-se


uma crise, pois os gastos começaram a ultrapassar o fôlego financeiro do
sistema ameaçando a legitimidade do modelo privado tanto no plano
financeiro como no simbólico.
No período da ditadura militar, o governo priorizou os interesses de
grandes empresários em detrimento dos interesses públicos, sendo que a
não foi dado o direito de participar da organização dos serviços à
população. Nessa conjuntura o Sistema de saúde oferecido era centrado
na consulta médica (medicocêntrico) e nas internações hospitalares
(hospitalocêntrico).
Dez anos pós-64, o bloco do poder não conseguindo consolidar sua
hegemonia teve que gradativamente alterar sua relação com a sociedade
civil.

6 Questão Social - é o conjunto de problemas políticos, Sociais e econômicos que o


surgimento da classe operaria provocou na constituição da sociedade capitalista. Logo, a
questão social esta fundamentalmente vinculada ao conflito capital e trabalho. Serra
apud Cerqueira filho, 2000, p.90.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 83


A política social de 1974 á 1979 no trato da questão social, buscou
maior efetividade a fim de canalizar as reivindicações e pressões
populares, devido à distensão política.7
Para Bravo (2000), a insuficiência no âmbito da saúde, se
evidenciava pela falta de planificação, falta de capacidade gerencial e
pouca participação da iniciativa privada.
Os problemas relacionados à saúde e sua resolução eram de
responsabilidade da tecnocracia, mediante privatização dos serviços. O
Ministério da Saúde era responsável pelas doenças da população,
enquanto que o setor previdenciário ficou responsável pelo atendimento
médico individual.
Outro fator a ser considerado, é que tanto na saúde pública como
na previdência social a medicalização8 da vida social foi imposta.
Nesse período não tinha quase relevância as medidas de atenção
coletiva a saúde da população, sendo que a dicotomia entre saúde
pública e saúde curativa, continuou de forma relevante.
Na década de 70, início da década de 80, momento de mobilização
de luta organizada pela redemocratização e de crise da ditadura militar, as
políticas de saúde em vigor começam a ser questionadas. No entanto a
proposta de reformulação do sistema de saúde levou a Reforma Sanitária.
A Reforma Sanitária foi resultado de lutas e mobilização dos
trabalhadores de saúde articulados ao movimento popular visando a
reversão do sistema perverso de saúde.
É um movimento significativo para a política de saúde no Brasil,
grande parte de suas reivindicações foram consolidadas na Constituição
de 1988, constituindo uma nova forma de tratar a questão. É a partir

7 Distensão política. É a estratégia de sobrevivência do autoritarismo burocrático. O


regime precisou fazer concessões e negociar as vias de transição para outras formas de
dominação. O inicio do processo de distensão política brasileira pode ser remontado á
sucessão Presidencial de 1973, quando o general Geisel foi aclamado pelo colégio
eleitoral. Tal processo, o presidente proclamou de distensão lenta, gradual e segura.
CUNHA, Rosani Evangelista da. O financiamento de políticas sociais no Brasil. Brasília:
CEAD, 2000, p.108.
8 Medicalização. Ênfase na pratica clinica, através de ações centradas na assistência

medica curativa, individual, com desvalorização das ações coletivas e preventivas


preconizadas pela saúde pública. Ibid., p.107.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 84


dessa constituição que a saúde passa a ser direito de todos e dever do
estado (caráter de universalidade).
A partir de 1975, a sociedade passou a vivenciar uma mobilização
crescente e organizada de luta pela redemocratização.
Em meados da década de 80, período que ocorreu a crise da
ditadura militar, se inicia o processo de redemocratização do Estado
brasileiro trazendo mudanças na relação entre o Estado e a Sociedade.

... embora os anos 80 sejam um período de aprofundamento das desigualdades


sociais são, simultânea e contraditoriamente, palco de avanços democráticos
sem precedentes na historia política brasileira (DEGENNSZAJH, 2000, p.63).

Esta década é marcada também pelo agravamento da questão social


devido ao aumento da pobreza e da miséria. Os médicos foram a primeira
categoria profissional a desafiar o governo, convocando uma greve geral
por melhores salários e um sistema de saúde mais democrático.
Nesse contexto, quanto ao debates sobre saúde, no trato das
condições de vida da população e as propostas apresentadas para o
governo, novos sujeitos entraram em cena sendo eles: profissionais de
saúde representados pelas suas entidades, o movimento sanitário, os
partidos políticos.
O texto constitucional, mediante acordos políticos e pressão popular,
vem atender grande parte das reivindicações, mas não todas as propostas
do movimento sanitário, tendo uma inflexão nos interesses empresariais do
setor hospitalar e não altera a situação da indústria farmacêutica.
O período que vai da década de 80 a década de 90, momento em
que nos países desenvolvidos começam a surgir os primeiros sinais de
critica ao WELFARE STATE. No entanto no Brasil existe uma busca de
legitimidade por parte do governo, a principio sob o anuncio do regime
militar, e em seguida sob uma direção democrático-popular com a
expansão e ampliação dos sistemas de proteção social.

Constituição Federal de 1988

Na década de 80, em função da pressão organizada dos


trabalhadores, são realizadas mudanças no âmbito da proteção social,
que foram consolidadas na Constituição de 1988.
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 85
A constituição se colocou como liberal-democrática-universalista.
Foi articulado um bloco chamado Centrão pela ala conservado do
congresso, contra ás pressões por direitos sociais visando à defesa dos
interesses dominantes. Houve muita disputa e negociação na discussão
de cada artigo da carta constitucional (entre os blocos de forças).
Nessa constituição inaugura-se um novo sistema de proteção social
pautado no conceito de Seguridade Social que universaliza os direitos
sociais concebendo a Saúde, Previdência e Assistência como questão
pública, de responsabilidade do Estado.
No caso da saúde no art. 196 da Constituição de 1988:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantindo mediante políticas


sociais e econômicas que visem á redução do risco de doença e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitário ás ações e serviços para sua
promoção, proteção e recuperação.

A constituição de 1988, veio estabelecer a cobertura universal na


Saúde, que passa a ser direito de todos e dever do Estado, ganha o
sentido de universalidade e uma política não contributiva.
Quanto à política de Saúde era necessário garantir no texto
constitucional, as propostas e os conteúdos aprovados no debate
realizado na VIII Conferência Nacional de Saúde.
Na Assembléia Constituinte, aqueles que tinham interesse na
saúde se formaram em dois blocos, sendo: os grupos empresariais, sob a
liderança da Federação Brasileira de Hospitais (setor privado), e da
associação das industrias farmacêuticas (multinacionais), e o movimento
da Reforma Sanitária, representado pela Plenária Nacional pela Saúde na
Constituinte.
A eficácia da plenária em atingir os objetivos se deu devido a três
instrumentos de luta utilizados pela plenária sendo:

a capacidade técnica de formular com antecipação um projeto de texto


constitucional claro e consistente; a pressão constante sobre os constituintes; a
mobilização da sociedade em torno do processo constitucional (BRAVO apud
TEIXEIRA, 2001, p.81).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 86


Nas Constituições brasileiras, a saúde é tratada de forma superficial
e arbitraria, considerando que nos textos não são definidos competências
e fontes de financiamento, sendo assegurado o serviço de saúde apenas
aos segurados da previdência social (ibid., p.80).
Segundo Stein (2000) na Constituição de 1988 a descentralização
deve ser norteada basicamente pelos princípios da democratização e da
participação contribuindo para que se tenha mais justiça e equidade,
universalização dos serviços públicos, democratização das informações,
viabilização da participação dos cidadãos nas decisões e ações
governamentais e fortalecimento do controle social.
A descentralização almejada na Constituição de 1988 se difere da
descentralização apregoada pelos governos nacionais de cunho neoliberal.

A famosa ‘descentralização’, presente no discurso governamental ‘colorido’,


resultou na prática, numa ‘recentralização’ caracterizada pelo reforço do poder de
comando sobre os recursos sociais e sua alocação no âmbito federal, criando
mecanismos de controle centralizadores e ampliando a utilização de convênios
para estabelecer um canal direto com as prefeituras, sem a mediação dos
governos estaduais. Todo esse processo representou uma total inversão da
lógica de descentralização presente na Constituição, que se propunha dar maior
clareza às funções e relações dos vários níveis de governo na área social, com
aumento de autonomia e poder dos Estados e Municípios sobre as políticas
sociais (SOARES, 2001, p. 216).

Neste sentido, muitas atividades que antes eram de


responsabilidade entre o poder estadual e federal, vem sendo
incorporadas aos serviços públicos municipais.
É importante ressaltar que a partir da Constituição de 1988, pensar
a Seguridade Social, aqui especificamente a saúde, é necessário
conhecer a constituição e as leis que as regulamentam sendo: Lei
Orgânica da Assistência Social-LOAS, Lei Orgânica da Saúde-LOS, Lei
Orgânica da Previdência Social-LOPS. Estas constituem ferramentas
essenciais para trabalhar com as políticas públicas.

Descentralização das Políticas de Saúde

O movimento da Reforma Sanitária tem como uma de suas


estratégias o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS apesar de garantido
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 87
constitucionalmente não é uma realidade em todos municípios brasileiros,
mas em alguns municípios onde seus governantes encontram-se
comprometidos com a “política pública de fato e de qualidade”.
A partir da Constituição de 1988 foi criado o Sistema Único de
Saúde (SUS). No art. 198 da Constituição Federal:
As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede
regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado
de acordo com as seguintes diretrizes:

I- descentralização, com direção única em cada esfera de governo;


II- atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem
prejuízo dos serviços assistências;
III- participação da comunidade.

Nesta ótica, as ações e serviços devem ser providos por um


sistema de Saúde organizado segundo as diretrizes acima.
O SUS é a integração de ações, atividades e serviços de saúde;
uma rede hierarquizada, regionalizada, descentralizada de atendimento
integral, com a participação da comunidade; prestados por órgão e
instituições públicas, federais estaduais e municipais, e as entidades do
setor privado, são de forma complementar.

A nosso ver, aquilo que vem sendo chamado de SUS, do início do governo Collor
para cá, não apenas se distancia da concepção inscrita na Constituição no
âmbito da Seguridade Social, como significa, em termos concretos, enorme
retrocesso quando comparado ao processo de implantação do SUDS (Sistema
Unificado e Descentralizado de saúde) no período de 1986/88 (SOARES, 2001,
p.248).

Simultaneamente a promulgação da Lei Orgânica da Saúde,


através de medidas, portarias e práticas administrativas vem ocorrendo
uma distorção quanto à proposta original do SUS.
Hoje o maior problema do SUS é a falta de verba, pois com o
princípio da universalidade do SUS, aumentou o número de pessoas a
serem atendidas, precisando aumentar o investimento no sistema público
de Saúde. Mas nos últimos anos o governo federal devido às políticas de
ajuste neoliberal o que se tem é uma redução nos recursos destinados a
saúde.
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 88
A afirmação da hegemonia neoliberal no Brasil tem sido responsável pela
redução dos direitos sociais e trabalhistas, desemprego estrutural,
precarização do trabalho, desmonte da previdência pública, sucateamento da
saúde e da educação (CUNHA, 2000, p. 112).

Nesta ótica, a política de saúde consolidada na Constituição torna-


se inconstitucional. A tendência atual é vincular a saúde ao mercado, ou
seja, a mercantilização dos serviços de saúde, e a busca de parcerias
com a sociedade civil, buscando reduzir custos e substituir as ações
profissionais por agentes profissionais e cuidadores.
Apesar da universalidade dos direitos ser um dos fundamentos
centrais do SUS, a atual política de saúde centrada no mercado e na
refilantropização o que prevalece hoje em dia são as visões
individualistas e fragmentadas do atendimento na saúde em detrimento de
concepções coletivas e universais.
Não podemos deixar de assinalar na política Nacional de Saúde, o
papel fundamental dos trabalhos realizados pelas Conferencias Nacional,
através de Fóruns para discutir as questões concretas e atuais das
políticas de saúde no Brasil.
Para concluir é importante destacar que as Conferências Nacional
de Saúde no decorrer da sua existência através de seus fóruns de debate
contribuem de forma significativa para o desenvolvimento da política de
saúde no Brasil. Tem-se constituído em um espaço, um instrumento
Nacional para tratar os problemas relevantes da política de saúde, que
vem afligindo a sociedade brasileira.

Conclusão

As políticas sociais sofrem alterações no decorrer da história. Sua


origem, sua gênese, e sua permanência esta relacionada com o modo de
produção capitalista, ou seja, a forma como as forças produtivas vão se
desenvolvendo vai se delineando as políticas sociais no Brasil.
As políticas sociais como vimos emergem como uma forma de
enfrentamento da questão social por parte do estado para amenizar os
conflitos sociais, e contribuir para o barateamento da força de trabalho
mediante a socialização dos custos da sua reprodução.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 89


No período ditadura militar, o governo priorizou o interesse dos
grandes empresários em detrimento dos interesses públicos. Até a
constituição de 1988 as ações eram centradas na assistência médica
curativa e individual, sendo desvalorizada as ações coletivas e
preventivas recomendadas pela saúde pública.
Na década de 70, início da década de 80, período de mobilização
de luta organizada pela redemocratização e de crise da ditadura militar, foi
o momento em que as políticas de saúde começam a ser questionadas e
a proposta de reformulação do sistema levou a Reforma Sanitária.
A reforma Sanitária, teve sua origem nas lutas e mobilizações dos
trabalhadores de saúde articulados ao movimento popular visando a
reversão do sistema perverso de saúde. Esse movimento significativo
para a política de saúde no Brasil, pois a maioria de suas reivindicações
foram consolidadas na Constituição de 1988, constituindo uma nova
forma de tratar a questão. É a partir da constituição que a saúde passa a
ser direito de todos e dever do estado (caráter de universalidade).
Apesar de serem direitos conquistados pela sociedade e garantidos
por lei, na década de 90, esses direitos garantidos ainda encontravam-se
engatinhando, começam a sofrer ameaças em função do projeto
neoliberal.
O projeto social atual da sociedade, baseado no projeto neoliberal
coloca em xeque não só as questões relacionadas à saúde, mas a
proteção social, pois busca desresponsabilizar o Estado em relação as
políticas sociais, consolidadas na Constituição de 1988.
Para enfrentar os desafios impostos atualmente à política pública
de saúde, é imprescindível a construção coletiva: profissionais de varias
áreas, usuários, movimentos sociais entre outros, buscando a construção
de um poder público com a efetiva participação da população, sem
desconsiderar o papel Estado como gestor responsável das políticas
públicas.

FÁVARO, C. R. Some questions concerning the health polics in Brazil. Serviço Social &
Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 81-92, 2002.

• ABSTRACT: The central focus of analyzes in the present study, is the public politics of
health in Brazil period that goes from the installation of the military dictatorship in 1964
until the work’s conclusion of the Constituent of 1988, analyzin some questions of the

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 90


health politics today.

• KEYWORDS: Politics of Health; The Sanitary Reformation.

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Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 81-92, 2002 92


ÉTICA PARA A VIDA: CLAMOR GERAL

Nei Oliveira de MENDONÇA*


Ubaldo SILVEIRA**

• RESUMO: Este artigo tem por objetivo chamar a atenção de todos os leitores para
uma questão, a nosso ver, fundamental para a preservação da vida do planeta. A
palavra ÉTICA é pequena, mas encerra um sentido que transcende totalmente essa
visão ocidental capitalista neoliberal, com pessoas muito urbanizadas, “carentes de
raiz, de terra, de mato”. Pessoas pobres, sem identidade, com seus destinos
definidos por um sistema, “dito democrático”, extremamente excludente. O texto foi
inspirado exatamente durante aula sobre ÉTICA, ministrada pelo professor da
disciplina. Enfatizamos que o futuro passa pela educação, mas libertadora, conforme
diz Paulo Freire: “Para alcançar a meta da humanização, que não se consegue sem
o desaparecimento da opressão desumanizante, é imprescindível a superação das
“situações limites” em que os homens se acham quase coisificados”.(FREIRE, 1984,
p. 111).

• PALAVRAS CHAVE: Sujeito; ética; dignidade; identidade; vida.

Concebido unicamente de modo técnico-econômico, o


desenvolvimento chega a um ponto insustentável,
inclusive o chamado desenvolvimento sustentável. Ë
necessária uma noção mais rica e mais complexa do
desenvolvimento, que seja não somente material, mas
também intelectual, afetiva, moral... O século XX não saiu
da idade de ferro planetária, mergulhou nela. (MORIN,
2001, p. 69-70)

Introdução

Assistimos com muito interesse uma aula sobre o tema “Questões


fundamentais no Estudo da Ética contemporânea”, ministrada pelo Prof.
Dr. Ubaldo Silveira na UNESP – FRANCA, e onde ficou bastante nítido o
significado das suas palavras. Dentre tudo que foi comentado, pinçamos
um fragmento do texto de apoio do professor:

*Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.


**Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social UNESP – Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 93


A moral colonialista começa por apresentar como virtudes do colonizado o que
condiz com os interesses do país opressor: a resignação o fatalismo, a
humildade ou a passividade. Mas os opressores não somente costumam insistir
nestas supostas virtudes, como também numa pretensa atitude moral do
colonizado (sua indolência, criminalidade, hipocrisia, apego à tradição, etc.), que
serve para justificar a necessidade de lhe impor uma civilização superior. Este
esquema se reproduz dentro de cada país.

As inquietações, que ora colocamos no papel, em forma de artigo,


têm dois motivos: aliviar um pouco esta pressão dentro do peito e ao
mesmo tempo, tentar, dentro das nossas limitações, levar ao meio
acadêmico e científico esta nossa preocupação, que acreditamos povoar
a mente de todas as pessoas lúcidas, que primam pelo respeito ao
planeta e seus habitantes em geral, e diante desta contemporaneidade,
se sentem aflitos como nós.
Enquanto o professor tecia suas considerações, algo novo brotava.
“O ser humano nasce para viver bem, feliz ...”, “um homem pobre se
converte em um pobre homem”... o som destas palavras ecoam distante,
claro, por falta de exercício de vida. Viver, existir, ser ... é algo mais
profundo. Os homens se distanciaram de certos valores fundamentais da
vida. A tão propalada “globalização”, que é a expansão do capital e de
valores relacionados a ele, provoca uma cegueira sociológica tão grande
que as pessoas não enxergam outros valores a não ser privilegiar o
consumismo desenfreado, especulação e lucro, bem como o
desenvolvimento de uma cultura de competitividade irracional, jogando na
lata do lixo todos os significados de solidariedade e fraternidade e
colocando em evidência expressões como “dumping, truste, cartel,
monopólio, oligopólio, conglomerados” e outras expressões que denotam
um endeusamento do mercado capitalista, esquecendo-se do homem,
que se distancia cada vez mais da sua plenitude enquanto “ser”.
Assistimos passivos, anestesiados, quase que em transe, ao
desenrolar dos acontecimentos, onde chegamos a considerar “normal”
todos os conflitos que ora estão se desenrolando em nosso planeta.
O uso da natureza
O uso da natureza para a produção em alta escala de produtos
considerados “essenciais” em nossa vida, por exemplo, é um fato que

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 94


demonstra a nossa cegueira. Existe uma lavagem cerebral pela grande
mídia e pelo grande capital, que nos são constantemente injetados, nos
fazendo crer que somos superiores e que podemos nos sobrepor aos
biomas existentes no planeta.
A forma predatória com que o homem vai ocupando os espaços,
quase que em desespero, se “apossando” de algo que não nos pertence,
que é o ar, o solo, a água, a micro e a macro fauna e flora, colocando em
risco toda uma condição de vida que foi preparada durante milhões de
anos para que todos os seres pudessem existir de forma harmônica e
feliz.
O ser humano conseguiu, em poucos séculos, com a adoção do
capitalismo, sair de um “determinismo ambiental”, onde o homem vivia
“com a natureza”, para uma outra forma de relação, de dominação, de
subjugação do homem pelo homem e do homem pela natureza. O
resultado da evolução desse modo de vida é que nos levou ao estado de
decadência que nos encontramos hoje. Realmente, não vejo outra palavra
para designar a paisagem sócio-econômica atual, decadência, em todos
os setores, desde o primário, passando pelo secundário e terciário,
órgãos do Estado, políticos despreparados, inescrupulosos, que se julgam
deuses, decidindo o destino da humanidade.

Jovens dirigentes do planeta

Sabemos que foi gestado no útero do capitalismo, jovens herdeiros,


que hoje administram os maiores conglomerados do mundo. Eles foram
doutrinados para gerar lucros e mais-valia, e há uma resistência forte
deste setor em provocar mudanças efetivas. Não percebemos a
existência da ética verdadeira, ao respeito às pessoas, enfim, são
pessoas capazes de tudo quando visam um objetivo, geralmente,
exploratório, predatório, especulativo. Não estão preocupados com a
situação dos países pobres. Também não estão preocupados com outras
questões como mortalidade infantil, degradação da natureza, aliás, esta é
vista única e exclusivamente como fonte de exploração de matérias
primas.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 95


Privatizações

Em particular, no Brasil, a presença do capital internacional já se


tornou uma constante. Vejamos a situação do Projeto Carajás (Pará),
Quadrilátero Ferrífero de Minas Gerais, Oriximiná (Amapá) e outros locais
de exploração. Não podemos esquecer que a Companhia Vale do Rio
Doce - CVRD -, criada pelo governo nacionalista de Getúlio Vargas,
encontra-se hoje privatizada e já remetendo lucros para o exterior.
Os setores industriais e de transporte, mais expressivos estão
também nas mãos do capital internacional, ou pelo sistema de concessão,
ou venda, inclusive as hidrelétricas, como a CPFL e a CESP. A primeira já
foi totalmente privatizada, e de forma agressiva, não oferecendo qualquer
contrapartida em sua “perestroika (reestruturação econômica) à
brasileira”. Sugerimos a leitura do livro “O impacto da privatização na vida
do eletricitário”, da autora Elizabeth Regina Negri Barbosa”, onde é
exposto com extraordinária lucidez todo o processo de “transferência” do
bem e de recursos financeiros públicos via órgãos governamentais
(BNDES) para os grupos privados, no caso, os consórcios “compradores”,
e as conseqüências advindas dessa “nova onda” capitalista neoliberal. A
Segunda (CESP), já se transformou em várias empresas, foi fragmentada
e vendida em partes, restando ainda algumas áreas da empresa geridas
pelo Estado. Há que se comentar também sobre a “demissão voluntária”,
verdadeiro terrorismo psicológico, demitindo funcionários prestes a
aposentar, com idade avançada para competir no mercado já saturado,
com uma vida inteira dedicada à empresa, e que de repente não tinham
mais o perfil desejado. Por conta disso dezenas de famílias foram
penalizadas com um aumento nos casos de depressão, alcoolismo e até
suicídios.

...Crer que os grupos privados ao adquirirem as empresas estatais têm a


intenção de realizar investimentos novos para expandi-las, em uma época em
que o jogo financeiro e o setor produtivo apresentam-se incertos, é senão um
otimismo cego, uma visão míope da realidade. O que se tem como efetivo é que
há um interesse muito grande por parte dos grupos financeiros nas privatizações,
pois esta é a forma de muito se ganhar, principalmente dos países em
dificuldades. (BARBOSA, p. 99).

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Então, perguntamos: onde está a ética e a solidariedade? Que
sistema é esse que racionaliza tanto os custos visando sempre lucros
maiores em detrimento do desajuste social, do sofrimento das pessoas?!
O “cidadão” nada mais é que um “soldado raso” do grande exército de
reserva de mão-de-obra manipulado pelo capital. Não somos sujeitos de
nossas vidas, somos meros coadjuvantes nesta paisagem caótica que se
apresenta com o nome de globalização neoliberalizante, eticamente nada
edificante, e totalmente petrificante (de corações e almas).

Retrospecto histórico

Fazendo um breve retrospecto e relembrando a aula do Professor


sobre “Ética Contemporânea”, exercitamos nosso lado crítico em relação
ao atual modelo de desenvolvimento capitalista ocidental.
Até 1950 a sociedade brasileira era basicamente rural, a taxa de
natalidade, após a 2ª Guerra Mundial, explode e então o consumo torna-
se cada vez maior. Com o governo de Juscelino Kubistchek (1956-1960),
o Brasil se insere de vez na internacionalização da economia, constrói 14
mil quilômetros de rodovias, já de comum acordo com as montadoras
automobilísticas internacionais. Constrói Brasília, integra o nosso país. Até
então o custo de formação do indivíduo era barato, pois nossa sociedade
era basicamente rural, na qual muitos filhos eram um fato positivo, pois
significava mão-de-obra para a lavoura. Atualmente, a situação encontra-
se invertida, a sociedade brasileira é essencialmente urbana e o custo de
formação dos filhos é muito cara, com escolas, lazer, roupas, assistência
médica e outros. São duas épocas distintas: a primeira, quando o capital
internacional (inteligente) percebe um mercado em potencial, por motivos
óbvios, ou seja, dimensão territorial, mão-de-obra barata, riquezas
minerais, hidrográfica e até pelo consumo que já existia na época, apesar
da sociedade ainda ser rural.
Acreditavam os investidores que os recursos da natureza eram
inesgotáveis, como a água e outros. A população local era carente de uma
educação formal.
Apesar da falta de conhecimento teórico e técnico sobre a fisiologia
animal e vegetal e estrutura geológica, a sociedade tinha uma relação
mais afetiva com a terra. Esta afetividade era demonstrada pela

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 97


simplicidade das pessoas, que ainda não viviam suas vidas de forma
globalizante, ou seja, eram felizes com o pouco que tinham, sem
necessidade da ostentação, da auto afirmação de hoje, no “Ter” ou
“Parecer Ter”, conforme disse o professor em sua aula.

Poder da mídia

A televisão é o meio de comunicação de massa da Segunda


metade do século XX no Brasil, como o rádio o foi na primeira. É o elo de
ligação com o mundo para a maioria da população brasileira, que está
ausente do mercado de consumo e foi abandonada por um Estado que
não oferece educação, cultura ou lazer. A televisão está presente em mais
de 98,3 dos municípios, sendo mais acessível que o telefone e o correio,
e só perde para o rádio em área de cobertura (IBGE, 2001)
Atualmente, o ser humano está totalmente susceptível à grande
mídia, escrita, falada e televisiva, e ao grande capital, com valores
inerentes a esse sistema.
Considerando todo o lado negativo dessa globalização, ou seja, a
universalização do mercado, a desnacionalização, a descaracterização
das culturas, a corrupção, a dívida externa e interna, ainda assim, o Brasil
cresce, devagar, se moderniza (dolorosamente) em várias áreas,
aumentando a expectativa de vida do brasileiro, diminuindo a mortalidade
infantil e com isso dando início a um estreitamento da base e um
alargamento do topo da nossa pirâmide etária. Muito bem, parabéns, mas
tudo isso acontece à revelia da consciência crítica de nossa população,
que ainda não se tornou dona de seu destino... um destino sempre pré
direcionado, sem identidade, orquestrado e manipulado pelo capital
internacional, por esse sistema que sufoca e reprime aquilo que existe de
mais importante do ser humano, a “liberdade” e a “lucidez” real. O planeta
clama por ética, respeito pela vida, pelos ecossistemas que compõem a
nossa biosfera.

Recursos naturais

A cadeia alimentar é composta de seres vivos produtores,


primários, secundários, terciários e decompositores, que agem (ou agiam)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 98


em total consonância, onde os produtores, os vegetais, são os únicos a
transformar algo inorgânico (minerais) em algo orgânico, e assim repassar
para os outros a energia necessária à sobrevivência. Essa primeira fase
da cadeia alimentar está sendo destruída pelo homem.
Outro elemento fundamental para o planeta é a água. Até onde
sabemos uma pequena parte (0,6 %), está disponível para o homem e
mesmo assim não se encontra exatamente onde os homens estão.
Os mananciais, os rios, lençóis subterrâneos, mares, enfim toda a
hidrosfera está contaminada, enferma, devido a irresponsabilidade do
homem. O ciclo hidrológico já foi quebrado.

calcula-se que a água potável disponível na terra seja equivalente a mais ou


menos 12,5 mil km3, menos da metade do que havia há 50 anos. Descontando
os usos industriais, agrícolas e domésticos, as reservas mundiais chegavam a 16
800 m3 por pessoa, ao ano. No final do século XX, essas reservas se reduziram
a 7 300 m3, e as previsões para 2025 não são nada animadoras, podendo
chegar a 4 800 m3. Entretanto, algumas partes do mundo sofrerão mais do que
outras. A disponibilidade de água per cápita na Europa e Estados Unidos será a
metade do que dispunham em 1950. Ásia e América Latina terão apenas um
quarto dessa disponibilidade. As regiões mais atingidas serão o Oriente Médio e
a África, que terão apenas a oitava parte do que tinham em 1950. Atualmente
existe a metade da água que existia há 50 anos atrás. (MARINA e TÉRCIO,
2002, p. 102).

O que é que tudo isso tem a ver com a Ética? Eis uma pergunta
que nos leva novamente ao seio da Universidade, na sala de aula,
disciplina “Ética Profissional”. A importância dessa disciplina para a
conscientização das pessoas. Entendemos que, dentre tantos valores, o
ponto de equilíbrio do homem é a clara consciência do conceito de ética,
que não se resume simplesmente nas leituras superficiais dos enunciados
éticos e ecológicos da grande mídia e dos grandes conglomerados. Se
apropriam desse discurso para manipular e concentrar mais a renda.
Falam do desenvolvimento sustentável como se fosse futebol, política
partidária ou algo semelhante. O planeta continua sendo lesado em sua
dignidade. Segundo Leonardo Boff

existem dois modos de ser-no-mundo: o trabalho, pelo qual modelamos e


intervimos no mundo, e o cuidado, pelo qual nos sentimos responsáveis por ele.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 99


O cuidado exige ternura, carinho, afeto, compaixão e renúncia ao seu domínio e
serve de crítica à nossa civilização agonizante e também de princípio inspirador
de um novo paradigma de convivialidade. (BOFF, 1999, p. 13).

Moral – de quem? Para quem?

Voltando à sala de aula, ouvimos o professor explanar sobre o


caráter histórico da moral, colocando didaticamente as épocas da moral
da antiguidade, moral feudal e a moral burguesa, acentuando o caráter
histórico da moral em conseqüência do próprio caráter histórico do
homem, porque é o homem, enquanto ser real, social e histórico que cria
a moral. Discorre sobre as mudanças histórico-sociais e mudanças da
moral, a sociedade escravocrata, a sociedade feudal, as origens do
feudalismo, a moral da sociedade feudal, as relações da igreja com seus
feudos, com poder não apenas religioso, mas também temporal, gerando
constantes conflitos com reis e imperadores. Uma época em que a moral
estava impregnada de conteúdo religioso, constituindo uma unidade moral
da sociedade e ao mesmo tempo uma estratificação moral dos códigos
morais, como a dos cavaleiros da aristocracia, as corporações, ordens
religiosas e outros. A sociedade capitalista e sua moral foi gestada no
interior da velha sociedade feudal, com novas formas de regular as
relações entre os indivíduos e entre estes e a comunidade, nascendo a
burguesia, com suas manufaturas e fábricas e os proletários que vendiam
sua força de trabalho gerando já nessa época a mais-valia (valor não
remunerado). Então, nesse sistema econômico social, a boa ou má
vontade individual, as considerações morais não podem alterar a
necessidade objetiva, imposta pelo sistema de que o capitalista alugue
por um salário a força de trabalho do operário e o explore com o fim de
obter mais-valia. A economia é sempre regida pela lei do máximo lucro, e
essa lei gera uma moral própria, florescendo com isso o egoísmo, a
hipocrisia, o cinismo e o individualismo exacerbado. Finalmente, para o
nosso encantamento ele faz uma belíssima reflexão sobre a ética atual,
falando do valor da pessoa humana, a partir de suas potencialidades
originárias do SER e não TER, dos direitos inalienáveis, liberdade e
autodeterminação. Atualmente a ética olha a situação concreta do ser
humano, o seu lugar social, sua condição de vida, se é condigna ou não,

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 100


se ele vive a dignidade da pessoa nos seus direitos mais elementares,
como casa, saúde, alimentação, vestuário, educação e lazer. Assim, não
basta defender a vida humana, temos que defender a dignidade desta
mesma vida, pois uma vida digna começa por uma boa alimentação, uma
habitação adequada, uma educação de acordo com a realidade de cada
época e uma segurança social.
Este longo parágrafo, foi o ponto culminante da aula, onde o
professor com muita sensibilidade e emoção transmitiu tudo aquilo que
esperávamos ouvir. Por isso acreditamos que a universidade tem um
papel fundamental na formação dos jovens. Acreditamos na virada, que
estamos passando por um longo período de transição e que, infelizmente,
algumas gerações, principalmente, dos países subdesenvolvidos, estão
pagando o ônus dessa lenta evolução. Esse processo poderia ser mais
rápido, não fosse a aceitação passiva de uma sociedade desorganizada,
e sob um olhar complacente e cúmplice dos governantes. Veja algumas
frases do nosso Ministro do Meio Ambiente, José Carlos Carvalho, à
“Revista ISTO É”, de 21/08/2002:

• O desenvolvimento sustentável precisa deixar de ser um slogan para virar


estratégia nacional que promova crescimento econômico com respeito ao
meio ambiente e maior inclusão social. Havia um conjunto de políticas
governamentais, crédito e incentivo fiscal que estimulavam o desmatamento.
Podemos inverter essas políticas com a criação de linhas de crédito voltadas
à agricultura familiar.
• A economia mundial, principalmente dos países desenvolvidos, hoje segue
padrões de produção e consumo insustentáveis. O WWF (fundo Mundial para
a Natureza) revelou que o uso dos recursos naturais é maior que a
capacidade de regeneração do planeta, o que indica, a longo prazo, uma
exaustão. Como a humanidade sempre teve capacidade de reação,
esperamos que isso se altere. Uma forma seria a diminuição do ritmo de
consumo. É o caso da água. Com a crise da energia os brasileiros entraram
no racionamento. A população aderiu de maneira extraordinária. Poucas
vezes tivemos um exemplo de cidadania como esse.
• Em Londres, cada metro cúbico de mogno custa US$ 1.600, e apenas US$
20 são pagos aos índios, num processo ilegal e predatório.
• A natureza nos deu uma vantagem única. O que falta é transformar isso em
vantagem competitiva.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 101


A semelhança que percebemos em todas essas afirmações é
justamente a falta de garra, de uma vontade maior em mudar o que está
estabelecido. São palavras soltas, esperando que a sociedade tome uma
posição, para que aí, então, o Estado tome medidas de acordo e
proporcional às pressões exercidas.
Palavras óbvias... é o que sempre ouvimos, e a cada dia que
passa, não a longo prazo, mas sim imediatamente, milhares de pessoas
morrem em função da presente incapacidade do planeta digerir este caos.
Em entrevista recente à “Revista Caros Amigos”, de 10/2002, o
Maestro brasileiro Júlio Medaglia, respondendo a uma entrevista, disse o
seguinte:

... A indústria cultural é inescrupulosa, o critério inicial é o lucro. Antigamente, as


pessoas que iam fazer rádio e televisão estavam muito preocupadas em oferecer
o melhor, embora quisessem também ganhar. Hoje se gasta 20 por cento para
fazer uma produção e 80 por cento para a divulgação. Ora, com 80 por cento se
entulha qualquer coisa no mercado.

Aparentemente estamos misturando as coisas, mas não, em


qualquer área, ou seja, ecológica, artística, cultural e outras estão
presentes valores imediatistas e de mais valia. Somente a ruptura desses
valores através da educação em todos os níveis - e a universidade não
pode também ser instrumento do capital, instrumento de perpetuação
dessa condição - poderão resgatar o ser humano desse labirinto em que
se meteu. “Para o rato encontrar o queijo”, terá que tentar outros
caminhos. Lamentavelmente, “o rato” está condicionado dentro desse
imenso laboratório, dirigido por cientistas do capital, ofuscados pelo brilho
da posse e poder terreno, que os impedem de visualizar o verdadeiro
brilho da essência do homem, que é o ser ético, voltado para uma moral
solidária, fraterna e amorosa para com os seus semelhantes e todos os
seres animados e inanimados desse planeta.
Concluindo que as aulas sobre ética exerceram tanta influência
sobre várias pessoas - que já têm nível universitário, graduandos e
mestrandos, na área de Serviço Social, e que em tese já deveriam estar
com esses conceitos sedimentados – poderiam com certeza iluminar
também a vida de dezenas, centenas, milhares de pessoas, se houvesse
mais seriedade na determinação de políticas públicas. Políticas efetivas

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 102


de valorização da educação em todos os níveis, para realmente, elevar o
cidadão à sua condição de sujeito, livre de manipulações, e não excluí-lo,
como acontece nesse modelo atual, onde estamos presenciando um
modelo perverso, em que o Estado com freqüência não está com o povo,
mas contra o povo.

MENDONÇA, N. O. de; SILVEIRA, U. Ethics to the life: a general clamor. Serviço Social
& Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 93-104, 2002.

• ABSTRACT: This article wants to leap out the readers to a question, in our opinion,
fundamental to the preservation of the planet’s life. The word ETHICS is small, but
contains a meaning that transcend this neoliberal capitalist occidental vision, with
people greatly urbanized, “needies of roots, of lands, of brushwood”. Poor people,
without identity, with their destinies definites by a system, “said democratic”,
preposterously excludent. The text had been exacly inspired during the teaching of
ETHICS, applied by the teacher of the discipline. We make emphasis that the future
passes by the education, but the liberartor one, as the one that show us Paulo Freire :
“To reach the humanization goal, that doesn’t happen without the disappearance of
the inhumanization oppression, is essential to the overcoming of the “limit
situation”where the men are find almost like things”.(FREIRE, 1984, p.11).

• KEYWORDS: person; ethics; dignity; identity; life.

Referências Bibliográficas
ALMEIDA, Lúcia Marina Alves; RIGOTIN, Tércio Barbosa. Geografia Geral
e do Brasil. São Paulo: Ática, p. 102, 2002.
BOFF, Leonardo. Saber cuidar: Ética do Humano, compaixão pela Terra.
Petrópolis: Vozes, p. 13, 1999.
CARVALHO, José Carlos Carvalho. ISTO É. São Paulo: TRÊS LTDA, n.
1716, p. 9, 2002.
BARBOSA, Elizabeth Regina Negri. O impacto da privatização na vida do
eletricitário: Um estudo de caso. Franca: UNESP, 2001.
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de janeiro: Paz e Terra, p.
111, 1984.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 103


Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa dos
municípios Brasileiros, 2001.
MEDAGLIA, Júlio. Caros Amigos. São Paulo: Casa Amarela, ano VI, n. 67,
p. 36, 2002.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 93-104, 2002 104


A ORGANIZAÇÃO EMPRESARIAL E O NOVO PARADIGMA:
HUMANIZAÇÃO

Lilia Christina de Oliveira MARTINS*


Andréa das Graças de SOUZA**
Glauber Camacho Gimenez GARCIA***

• RESUMO: Organização empresarial, mudanças organizacionais necessárias e o


papel do homem dentro do ambiente de trabalho.

• PALAVRAS CHAVE: Empresa; homem; mudança.

Na atualidade, muito se fala em globalização, tecnologia,


desenvolvimento, finanças, sendo que tais assuntos passaram a ocupar
lugar de destaque no cotidiano, por isso, é imprescindível que reflitamos
acerca do que realmente significam essas questões, pois muitas vezes
são pensadas de forma limitada, o que é o caso da empresa. Quando se
pensa em organização empresarial, a primeira associação que se faz é de
cunho financeiro, ou seja, remete-se à lucratividade, como se esse
aspecto fosse fundamental e exclusivo para o desenvolvimento de
qualquer empresa. E o ser humano, onde fica?
O que deve existir, sobretudo, é uma preocupação em relação à
qualidade organizacional, o que subentende eficiência e eficácia, além
de uma visão voltada para o desenvolvimento do comportamento
humano, resultando em pessoas mais produtivas e felizes no ambiente
de trabalho. Acredita-se, de acordo com vários autores9, que isso é
uma tendência notada na atualidade, tendo em vista o aumento dos
estudos realizados em torno da administração, com ênfase à
humanização da empresa, onde o empregado, que passa a ser
denominado colaborador, deve ter oportunidade de ascendência
profissional.
Assim, abordaremos alguns aspectos relevantes da organização

* Docente do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.


** Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.
*** Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.
9 Vergara & Branco (2001); Motta (1997); Wood (2000).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 105


empresarial, tais como o administrador e o próprio ser humano enquanto
colaborador do desenvolvimento empresarial.

Alguns Aspectos do Comportamento Organizacional

Atualmente, o comportamento organizacional se apresenta muito


mesclado, à medida que se observa, nesse campo, uma heterogeneidade
em termos teóricos, abrangendo dimensões simbólicas, cognitivas,
lingüísticas e outras.
Por outro lado, ao mesmo tempo em que o comportamento
organizacional abre um leque de diversidade teórica, também é
caracterizado por ter se desenvolvido de forma isolada, negligenciando
conhecimentos das ciências humanas básicas. Os esforços dos
pesquisadores foram reduzidos à simples técnicas de controle, com
supervalorização no que diz respeito a rendimento e produtividade.
Nesse sentido, há a percepção de que as estruturas
organizacionais tentam uma transformação radical, mas muitas vezes
acabam maquiando uma situação que existe: aquela que é sustentada por
uma postura que ainda considera o homem uma extensão da máquina.
Diante disso, pergunta-se: o que mudou desde a época de Taylor?

A formação do Administrador

Essa questão sempre constituiu um ponto contestado, tendo em


vista o elevado grau de especialização, a rigidez, a ausência de cultura, o
quantitativismo, o economismo, a ignorância histórica e mesmo a
dificuldade de interação e comunicação desses profissionais.
Além disso, há também as organizações que funcionam de forma
rígida e radical, sem qualquer consideração ao ser humano que dela faz
parte, o que se deve logicamente à qualidade de seus administradores.
Essa situação leva trabalhadores a se sentirem desestimulados quanto ao
trabalho tradicional, cujo ambiente deveria oportunizar qualidade de vida
profissional e pessoal.
Importante notar que o individualismo exacerbado é uma
característica da sociedade, que sempre esteve ocupada com o acúmulo
de riquezas. Hoje as questões do consumismo, competição e

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 106


individualismo vêm sendo transferidas para as relações entre as pessoas
e isso pode ser comprovado quando observamos indivíduos que não
querem compromisso com nada e ninguém, bem como ambientes de
trabalho onde a competição entre os empregados gera desconfiança,
traições e trapaças.

A Unidade Fundamental do Ser Humano

Há uma forte tendência quanto à fragmentação do homem na


sociedade e no ambiente organizacional, sustentando visões de homem
simplistas, elitistas e utilitaristas, com a presença de organizações
fechadas e auto-suficientes. Ora, sabemos, através de estudos e
reflexões que vêm ocorrendo ao longo da história, que o ser humano é
complexo e global, o que pode ser afirmado também segundo Piaget
(1980, p. 211) para quem o desenvolvimento está em considerar o ser
humano capaz de criar e reinventar a sua própria história. Nesse sentido,
como o ser humano é constituído por aspectos biológicos, intelectuais,
afetivos, espirituais e profissionais, a organização empresarial não pode
ser considerada auto-suficiente, posto que está inserida em determinado
meio e lida com pessoas, enfim, depende de uma estrutura muito maior
do que apenas o “chão da fábrica”.
O homem precisa do outro para sobreviver e até mesmo para
construir sua identidade, o que é feito a partir da dialética de semelhanças
e diferenças entre as pessoas, como já bem afirmou Erich Erickson
(1976). Embora o ser humano ainda não lide bem com o ato de aceitar o
olhar do outro, isso é muito importante para que ele conquiste um
desenvolvimento e aperfeiçoamento estruturados, o que vale também
para as relações que ocorrem no interior das organizações empresariais.

Homem: Ativo e Reflexivo, Ser de Pulsão, Desejo e Relação

Desde crianças aprendemos que o homem se diferencia dos outros


animais pela capacidade de reflexão e ação. Essas particularidades foram
também abordadas por Jean Piaget (1980,) em seus estudos sobre o
desenvolvimento humano. Segundo esse pesquisador, o homem é um ser
construtivista, reflexivo e atuante em seu meio, o que lhe dá oportunidade

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 107


de transformar a realidade da qual faz parte.
Infelizmente, essa visão dinâmica a respeito do homem não é tida
enquanto filosofia educacional ou empresarial pela maioria das
instituições escolares e empresas do nosso país, pois se assim fosse, já
teríamos formado muitos cidadãos emancipados, logicamente através de
uma educação também emancipatória, que fornece meios para que o
indivíduo saia de sua pobreza política e aprenda a pensar com mais
prioridade sobre os problemas que permeiam a sociedade. Isso pode ser
trabalhado em escolas, empresas, enfim, em qualquer organização
freqüentada por pessoas. Do contrário, apenas estaremos reproduzindo o
quadro já conhecido.
Através da linguagem é que o indivíduo torna-se capaz de construir
a realidade e agir sobre o meio e, por isso, esse elemento constitui um
objeto de estudo fundamental na compreensão da humanidade. Em uma
empresa, estudar a linguagem significa desvendar condutas, ações e
decisões que impulsionam o desenvolvimento da organização ou
provocam sua estagnação. Nesse aspecto, a comunicação das empresas
não pode ser reduzida à simples transmissão de informação, pois isso
implica a perda do significado e sentido das palavras, as quais se inserem
no agir, fazer, pensar e sentir do ser humano.
Devemos considerar que a diferenciação entre comunicação e
informação é fundamental para o bom funcionamento de uma empresa,
destacando a importância de que a comunicação aconteça de maneira
horizontal, ou seja, entre tosos os elementos do ambiente empresarial,
independentemente de cargos ou funções.
O ser humano, além das potencialidades já mencionadas, também
apresenta desejo, pulsão e de relação, sendo que sua constituição
enquanto indivíduo passa, necessariamente, pela relação poliforme com o
outro, o qual lhe proporciona prazer, sentimentos, satisfações, frustrações
e pulsões.
O mundo interior tem tanta ou maior importância que o exterior na
vida do homem, no sentido de que a vida psíquica exerce um papel
essencial na vida das pessoas, refletindo-se individual e coletivamente, aí
se encontrando as relações de trabalho.
Assim, é imprescindível que as empresas passem a olhar para seus
colaboradores, mas de forma a levar em conta a natureza humana, o que

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 108


não significa apenas o princípio do “homus economicus”, até porque as
necessidades humanas não podem ser supridas somente através de
dinheiro.
Ao viver em sociedade, o homem produz uma representação
daquilo que lhe é significativo, quer seja através de imagens, metáforas,
emblemas, símbolos, mitos ou alegorias e essa representação ocorre
também no meio organizacional, local propício à emergência do simbólico.
Há conflitos consideráveis em relação ao simbolismo
organizacional, pois esse simbólico é tenso, influenciado pela razão
econômica que reduz a importância da significação conferida ao trabalho
e pelo próprio homem, que busca incansavelmente essa significação.
Por outro lado, deve-se considerar também o trabalhador enquanto
ser possuidor de um tempo próprio, referente aos ritmos biológicos,
psicológicos ou sociais que marcam sua vida individual e coletiva, bem
como um ser inserido em determinado espaço, nesse aspecto se
encontrando as organizações empresariais enquanto local importante no
dinamismo espaço-temporal.
Um aspecto imprescindível é o nível de qualidade dessas
organizações, uma vez que dele depende a valorização do homem
enquanto ser capaz de agir no tempo-espaço, transformando sua
realidade.
Dessa forma, quanto mais houver interdisciplinaridade, mais haverá
uma abordagem mais completa do indivíduo na organização, porque
somente promovendo a relação entre diversos níveis é que se poderá
interpretar adequadamente a realidade observada, buscando a
reconstrução da mesma.
Tendo em vista a complexidade do comportamento humano,
também quando se analisa a organização, deve-se manter uma postura
interdisciplinar, com o intuito de não fragmentar o ser humano ou seu
próprio ambiente de trabalho.
O comportamento humano é dialético, o que quer dizer que
qualquer pesquisa sobre a realidade também necessita adotar a
abordagem dialética, havendo uma relação dialética entre o pesquisador,
o objeto de pesquisa e realidade social.
Desde Galileu, passando por Marx e Weber, havia uma sólida
participação de pesquisadores em novos questionamentos e

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 109


transformações sociais, o que nos leva a pensar que tal dialética existe
em todos os níveis. Se existe em todos os níveis, há uma ausência dessa
relação nas ciências da administração, que não levam muito em
consideração a realidade enquanto história.
Percebemos que essa pobreza dialética faz parte do
posicionamento de muitos administradores brasileiros, os quais, como já
foi anteriormente registrado, mantêm ausência de cultura suficiente para
agir sobre a realidade e transformá-la, embora atualmente ainda haja
vários empresários começando a descobrir que podem transformar a
história independentemente de auxílio governamental.
Entretanto, o estudo dos indivíduos nas organizações está se
tornando cada vez mais difundido, tendo e vista a consideração do fato de
que o indivíduo pode influenciar decisivamente na construção,
reconstrução ou somente reprodução da realidade.
Nesse sentido, torna-se importante também o nível da interação e o
modo de comunicação (aquela que não privilegia apenas informações),
uma vez que toda interação, para existir, requer uma forma de
comunicação. Além disso, toda interação implica processos psíquicos,
que abrangem o lado cognitivo e afetivo do ser humano, processo esse
que acompanha tudo o que o indivíduo faz, desde sua linguagem até as
mais complexas ações.
A organização empresarial é influenciada não apenas pelos
indivíduos que dela fazem parte, mas também pela própria rede de
relações econômicas, sociais, políticas e culturais em nível de mundo,
uma vez que a situação pode mudar em função do sistema internacional
ao qual pertence determinada sociedade, configuração essa que depende
de cada época.
Isso tudo leva ao caminho da humanização empresarial, assunto
abordado por vários autores de relevância10. A verdade é que atualmente
vivemos carentes de valores direcionados a um trabalho e educação
transformadores, que permitam a realização global do indivíduo, tanto
social quanto profissionalmente, propondo a superação dessa situação,
esclarecendo que o importante não é culpar pessoas e entidades pelo
quadro de defasagem social, econômica e política, ou apenas refletir

10 Bohn (1992), Esteves (2000) e Botelho (1998).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 110


sobre o assunto; o essencial é propor soluções e concretizá-las, aí
surgindo o papel dos complexos empresariais.
Vergara & Branco (2001) apontam com propriedade que a
empresa, enquanto organismo também social, deve voltar seu
funcionamento para o ambiente e trabalhadores, promovendo a melhoria
da qualidade de vida, a partir da prática da justiça e democracia,
abominando quaisquer módulos de preconceito, contribuindo para o
desenvolvimento global do ser humano, o que inclui aspectos físicos,
emocionais, intelectuais e espirituais, objetivando o equilíbrio da vida.
Outra contribuição decisiva desses autores foi demonstrar a
relevância do desenvolvimento total do indivíduo, o que traz à mente os
ensinamentos de Goleman (1995), para quem não basta apenas
formação intelectual e/ou profissional, pois o ser humano é complexo,
abrangendo cognição e emoção, cada qual com uma real importância.
Nesse sentido, há uma fragilidade e inadequação em práticas
empresariais voltadas tão somente para a lucratividade, resultando em um
ambiente que não oportuniza conquistas pessoais e profissionais.
Diante dessa visão, não podemos nos esquecer de que é
importante a presença de trabalhadores felizes em uma determinada
empresa, pois, como afirma Whiteley (1999, p. 82), “líderes empresariais
bem sucedidos fornecem os recursos que o seu pessoal necessita”,
elementos que devem auxiliar o desenvolvimento dos trabalhadores e o
equilíbrio do meio.
Há determinados conflitos que ocorrem na sociedade, tais como o
equilíbrio da distribuição de riquezas, considerável progresso tecnológico
e pouco desenvolvimento social e pessoal, representando esse último
elemento um fator que consagra a incapacidade de lidar com diferenças
individuais. Nesse ambiente diverso, Vergara & Branco (2001) afirmam
que a empresa de sucesso, certamente já integra o rol das atividades
dinamizadas, pois do contrário estariam praticamente extintas.
Assim, a contribuição dos autores é fundamental para a
solidificação de uma posição empresarial humanizada, partindo da
reflexão de todas as dificuldades que estamos vivendo na sociedade e,
especialmente, no Brasil, onde há crise de ordem política, econômica e
social, tornando essencial que as empresas assumam um papel
transformador, amenizando as diferenças sociais, preservando o meio

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ambiente e trabalhando honestamente, visando um equilíbrio humano e
ambiental.

Competitividade e Humanização

É evidente a necessidade empresarial de conciliar competição e


cooperação, fornecendo uma visão inovadora do que significa integrar o
mercado competitivo, tanto que apontam o fato de que há um crescimento
de empresas que estão atuando nesse sentido, assim reduzindo
diferenças sociais e impactos ambientais.
Dessa forma, como afirmam Vergara & Branco (2001, p.26), “essas
ações não só acenam com a conciliação entre competitividade e
humanização das empresas como parecem revelar indícios de que um
novo paradigma esteja emergindo no mundo dos negócios”.
Essas informações são importantes para que tenhamos consciência
de que as visões e concepções empresarias têm que conquistar outros
rumos que não apenas em direção ao lucro, mesmo porque grandes
empresas já estão nesse caminho, evidenciando a sabedoria de suas
escolhas.
Vergara & Branco (2001) fundamentam a viabilização do caráter
humanista, para a sustentação de desafios do mercado e equilíbrio
social e ambiental, exemplificando através de empresas que aderiram
atuações dessa natureza, tais como Bradesco, BankBoston e Coca-
Cola, trabalhando respectivamente em prol da educação de crianças e
jovens; criação do Projeto Travessia, que leva crianças e adolescentes
de rua de volta aos lares, garantindo-lhes educação; Programa Coca-
Cola de Valorização do Jovem, auxiliando no combate à evasão escolar.
Esses grandes complexos empresariais somente vêm contribuindo para
difundir o paradigma da humanização das empresas, primordial nos
tempos atuais, quando a globalização somente ocorre no âmbito
financeiro, deixando de lado a globalização do próprio homem, enquanto
ser colaborador e capaz de construir sua própria história, para isso
tendo que ter oportunidade, não apenas na vida escolar ou pessoal, mas
sobretudo profissional.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 105-114, 2002 112


MARTINS, L. C. O.; SOUZA, A. G. de; GARCIA, G. C. G. The enterprises organization
and the new paradigm: humanization. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p.
105-114, 2002.

• ABSTRACT: Enterprise organization, necessary organizational changes and the


paper of man inside the work environment.

• KEYWORDS: enterprise; man; change.

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PATERNIDADE ADOLESCENTE: PARTICIPAÇÃO MASCULINA NO
PROCESSO DE REPRODUÇÃO HUMANA

Dulcinéia L. SAKAMOTO*
Mário JOSÉ FILHO**

• RESUMO: O presente artigo objetiva tecer uma reflexão sobre a participação


masculina no processo de reprodução humana, partindo de três princípios como
análise: 1) Da idéia de que a exclusão da participação do homem no processo de
reprodução pode ser explicada à partir de estudos de gênero, pois este é em geral
definido em torno de idéias sobre traços de personalidade culturais ligadas a papéis
e situações sociais particulares; 2) reflexões sobre hierarquia de idade, pois o
adolescente encontra-se neste momento na posição de filho, e é reconhecido em
nossa sociedade, ocupando este papel: sendo atribuído-lhe uma idéia de submissão,
incapacidade e irresponsabilidade familiar e social; 3) Analisar se existe realmente
uma Política de Saúde Reprodutiva que vá de encontro às necessidades dos pais
adolescentes, superando as diferentes barreiras culturais e ideológicas individuais,
que façam aumentar a responsabilidade masculina, relativas à formação da família e
reprodução humana.

• PALAVRAS CHAVE: Adolescência; Gravidez; Maternidade/Paternidade; Políticas


Públicas; Serviço Social.

Maternidade X Genero

A maternidade adolescente, mesmo sendo considerada


“indesejável” nas sociedades atuais, ainda assim é socialmente
reconhecida, haja vista sua sistematização acadêmica nos últimos anos
(BARROSO et al, 1986; REIS, 1993) e a criação de serviços
especializados procurando oferecer apoio às jovens mães (TAKIUTE et al,
1995).
Ao rever parte desta produção científica sobre o tema, constata-se
de que os atos de conceber e criar filhos constituem experiências
humanas atribuídas culturalmente às mulheres, incluindo muito

* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.


Docente do Centro Universitário Barão de Mauá – Ribeirão Preto-SP.
** Coordenador e Docente do Programa de Pós Graduação em Serviço Social. Docente

do Departamento de Serviço Social UNESP – Franca-SP.

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discretamente o pai. A paternidade, quando tratada, é concebida na
maioria das vezes sob a óptica feminina, reforçando a idéia de que são as
mulheres que carregam a gravidez. Quase nunca se pergunta ao homem
sobre sua participação, responsabilidade e desejo no processo de
reprodução. (LYRA, 1996).
Essa idéia de que são as mulheres que carregam a gravidez,
excluindo a participação do homem no processo de reprodução pode ser
explicada quando se estuda gênero, pois este é em geral definido em
torno de idéias sobre traços de personalidade culturais ligadas a papéis e
situações sociais particulares, pois nas sociedades ocidentais, homens
que se comportam e se apresentam de formas culturalmente masculinas
são vistos em conformidade com seu papel de gênero.
Embora gênero seja uma palavra que tem uma longa história de
usos diferentes, seu significado sociológico refere-se a idéias culturais
que constroem imagens e expectativas a respeito de machos e fêmeas.
Esse fato distingue gênero de sexo, cujo escopo se limita a diferenças
biológicas, como a função reprodutiva, e a características secundárias,
como pêlos no corpo e desenvolvimento de seios. De certa maneira, trata-
se de uma distinção que induz ao erro, porquanto ignora que o sexo é
também um conjunto socialmente construído de idéias moldadas pela
cultura.
As culturas ocidentais, por exemplo, definem-se tipicamente em
termos de dois sexos, homem e mulher, embora haja culturas que
identificam mais de duas categorias. Nesse sentido, a importância social
do sexo como um conjunto de categorias reside não em alguma realidade
objetiva à qual a linguagem apenas dá nomes, mas aquilo que pensamos
como sexo é definido por idéias culturais.
O gênero é em geral definido em torno de idéias sobre traços de
personalidade, masculina e feminina, e por tendências de comportamento
que assumem formas opostas. Tomadas como conjuntos de traços e
tendências, elas constituem a feminilidade e a masculinidade. A
masculinidade costumeiramente inclui agressividade, lógica, frieza
emocional e dominação, ao passo que a feminilidade é associada à paz,
intuição, expressividade emocional e submissão.
Embora seja clara a prova de que essas idéias sobre os sexos são
culturais, sua importância sociológica é menos clara. Numerosos autores

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observam que traços habitualmente atribuídos a homens e mulheres, não
descrevem exatamente a maioria das pessoas. Esposas podem ser
relativamente submissas em relação aos maridos, mas, como mães, não
tanto em relação aos filhos. Nesse sentido, descrever mulheres como
“submissas”, confunde personalidade com expectativas culturais ligadas a
papéis e situações sociais particulares.
Outros afirmam que a ênfase comum sobre masculinidade e
feminilidade como fatores decisivos, pode ser colocada como a
androginia, ou seja: comum ao homem e a mulher, como exemplo de o
conceito que descreve uma mistura de traços de personalidade masculino
e feminino e tem sido proposta por algumas feministas como parte da
solução da desigualdade dos gêneros. Críticos, porém; argumentam que
a opressão das mulheres não se baseia em diferenças de personalidade,
mas na organização social da patriarquia e suas instituições, variando da
divisão do trabalho na família à natureza competitiva e exploradora do
capitalismo.
Dessa perspectiva, os conceitos de masculinidade e feminilidade
servem a funções de controle místicos e sociais que reforçam a
dominação masculina. Esse fato é revelado na maneira seletiva como
elas são aplicadas. Quando homens são ternos e fisicamente afetuosos
com os filhos, por exemplo, eles quase nunca são criticados como não
masculinos; mas quando se comportam dessa maneira com outros
homens, a ideologia masculina é invocada para coloca-los de acordo com
os requisitos da dominação.
Analogamente, é provável que mulheres sejam criticadas se
aplicarem poder ou dominação em relação aos maridos e outros homens,
mas não no caso de se comportarem dessa maneira em relação aos
filhos.
No estudo do gênero, a importância da feminilidade e da
masculinidade reside em sua relação com os papéis de gênero (às vezes
denominados papéis sexuais). Há conjuntos de expectativas e outras
idéias sobre como homens e mulheres devem pensar, sentir, parecer e se
comportar em relação a outras pessoas. Nas sociedades ocidentais, por
exemplo, os homens que se comportam e se apresentam de formas
culturalmente masculinas são vistos como em conformidade com seu
papel de gênero.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 115-128, 2002 117


Há algumas discordâncias tanto sobre a existência de papéis de
gênero como quanto a sua importância para entender a desigualdade
entre gêneros. Espera-se que mulheres “feministas”, por exemplo,
submetam-se à vontade do marido, mas não às de irmãos ou filhos,
mesmo que em ambos os casos seja inerentemente feminino. Esse fato
sugere que não há um papel masculino ou feminino distinto (da mesma
maneira que não há papéis de classe ou raciais distintos), mas apenas
conjuntos frouxamente ligados de idéias sobre homens e mulheres, que
podem ser invocados para várias finalidades, incluindo controle social e
manutenção da patriarquia como sistema dominado pelo homem.
(KAUFMAN, 1987).

Paternidade negada?

As teorias sobre relações de gênero e as reflexões sobre


hierarquias de idade forneceram suporte teórico para problematizar o
tema da participação masculina na sexualidade, gestação e cuidado
infantil (ROSENBERG, 1992; SCOTT, 1995; KAUFMAN, 1995; SPOSITO,
1997). Conforme citação dos autores, o silêncio sobre a paternidade
adolescente decorre de: 1) o filho ser percebido, em nossa sociedade,
como “sendo da mãe”, e o 2) o adolescente ser, principalmente,
reconhecido no papel de filho. Numerosos autores observam que traços
habitualmente atribuídos a homens e mulheres não descrevem
exatamente a maioria das pessoas. As mães geralmente são submissas
aos esposos mas não tanto em relação aos filhos. E estes continuam
sendo dirigidos pelas mães, não conseguindo nessa fase da adolescência
se libertar dessa submissão de “irresponsáveis” e “incapazes”.
Por outro lado, se pensarmos nos movimentos sociais que
sacudiram o mundo a partir dos anos 60, movimento de mulheres ou
feminista tem sido considerado relevante em decorrência do impacto no
interior das instituições, incluindo aí a produção de conhecimentos
(GOLDENBERG, 1989). Tanto no plano internacional como no plano
brasileiro, a movimentação das mulheres em prol de uma sociedade mais
igualitária tem levado a propostas de mudanças nas condições de vida de
homens e mulheres.
Refletindo sobre as hierarquias de idade se percebe que existe uma

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relação perversa da sociedade adulta com o adolescente, ou seja; ao
anular socialmente a paternidade adolescente, sempre e por princípio,
acaba por legitimar a ausência paterna, pois dificulta ao adolescente
pensar, prevenir ou assumir sua condição de pai real ou virtual.
Tanto nos países do hemisfério Norte quanto nos do Sul, inclusive
no Brasil, a produção teórica e política do feminismo tem sido múltipla,
albergando diferentes tendências (BARBIERI, 1991; GOLDENBERG,
1989; IZQUIERDO, 1992; SCOTT, 1995) e evidenciando transformações.
No Brasil, dentre as transformações dos enfoques teóricos ou
acadêmicos, destacamos a passagem dos estudos da ou sobre a mulher
para os estudos sobre as relações de gênero (ROSENBERG, 1993).
Assumiu-se, assim, também no Brasil, a perspectiva internacional,
aparentemente hegemônica na atualidade, de os estudos feministas não
mais tematizarem apenas a mulher, mas as relações de gênero. Abriu-se,
então, uma perspectiva complexa, a de conceituar gênero como categoria
relacional, que permitiria compreender ou interpretar uma dinâmica social
que hierarquiza as relações entre o masculino e o feminino.
Portanto, poderemos considerar o processo de gravidez como uma
questão de gênero, pois este é em geral definido em torno de idéias sobre
traços de personalidade, masculino e feminino, e pelas tendências de
comportamentos que assumem formas opostas. A masculinidade
costumeiramente inclui agressividade, frieza e dominação, enquanto a
feminilidade é associada à paz, intuição,e expressividade emocional e
submissão.
Então sugere-se que, mesmo quando um rapaz quer assumir um
papel ativo como pai de seu filho, as instituições sociais parecem recusar-
lhe esta assunção. Talvez essa inquietação como a recusa social em se
reconhecer como pai esteja presente nas idéias culturais da sociedade.
Percebe-se um “silêncio” por parte da concreticidade da responsabilidade
masculina.
Michael Kaufman (1995) é um dos raros autores que, adotando as
bases da conceituação feminista de gênero – construção social que
legitima e constrói o poder masculino, vai investigar o sofrimento que a
experiência de poder suscita em alguns homens.
Seu ponto de partida é que não existe uma única masculinidade,
apesar de existirem formas hegemônicas e subordinadas a ela. Tais

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formas baseiam-se no poder social dos homens, mas são assumidas de
modo complexo por homens individuais, que também desenvolvem
relações harmoniosas com outras masculinidades.
Aceitando, como Joan Scott (1995), que o poder coletivo dos
homens não é construído apenas nas instituições, mas também nas
formas como os homens interiorizam, individualizam e reforçam esse
poder, Kaufman traz à tona o processo através do qual os homens
chegam a suprimir toda uma gama de emoções, necessidades e
possibilidades, tais como o prazer de cuidar dos outros, a receptividade, a
empatia e a compaixão, experimentados como inconscientes com o poder
masculino. Isso caracterizaria a alienação do homem: alienação de
sentimentos, afetos, do potencial para relacionamentos humanos de
cuidado.
Nesse sentido, o papel do homem, particularmente do pai na
família, interiormente negligenciado, tem emergido, nas agendas das
instituições internacionais e nacionais que propõem e implementam
políticas públicas, como uma forma de promover a igualdade de gênero.
No plano dos valores, o princípio de igualdade de oportunidade entre
homens e mulheres vem sendo discutido no que diz respeito não apenas
à “cidadania pública” mas também à “cidadania privada”. À maior
participação das mulheres na vida pública (participação feminina no
mercado de trabalho, nas organizações políticas e sindicais, usufruto das
mulheres de benefícios e recursos econômicos) deveria corresponder
maior participação do homem na vida privada (compromisso pela vida
sexual e reprodutiva do casal pela criação dos filhos, pela partilha das
atividades domésticas).
Rever a própria política ou linha de intervenção, abrindo canais
para pensar a masculinidade, a paternidade e maneiras de encorajar os
homens para que sejam responsáveis por seus comportamentos sexuais,
papéis sociais e familiares são recomendações algumas vezes
encontradas nos últimos anos (MUNDIGO, 1995).
Pesquisas, reflexões e intervenções, principalmente as que vêm
ocorrendo fora do Brasil, indicam o que é óbvio para alguns, mas
novidade para muitos: a importância do homem na vida reprodutiva e o
desejo de certos homens de dela participarem. Hoje, constata-se que o
conhecimento sobre representações e práticas masculinas poderia

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contribuir para melhorar os resultados de programas voltados à saúde das
crianças, à prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, ao
planejamento familiar (MUNDIGO, 1995) e para melhorar o sofrimento de
homens que sintam desejo de envolver-se em um universo socialmente
reservado às mulheres (KAUFMAN, 1995).

Políticas de Saúde Reprodutiva

Na tentativa de minimizar as lacunas desse campo, o principal


objetivo de algumas políticas de saúde sexual e reprodutiva tem sido o de
“aumentar a responsabilidade masculina em todas as áreas relativas à
formação da família e à reprodução humana”, como destacou a
Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, de 1994,
realizada no Cairo, Egito (ICDP, 1994). Com efeito observa-se, nos
´últimos anos, uma preocupação crescente com o tema “homens” e
“masculinidade”.
Apesar de tais esforços a empreitada não será tão simples, pois
para se conseguir uma maior participação dos homens, sejam
adolescentes ou adultos, será preciso superar diferentes barreiras
culturais e ideológicas individuais, de homens e de mulheres (DANTAS,
1997; MUNDIGO, 1995).
Entretanto, há algumas indicações de que intervenções intensivas e
específicas junto a adolescentes de sexo masculino e feminino podem
auxiliá-los a assumir as responsabilidades pela paternidade e
maternidade.(LOOMIS, 1988). A questão de gênero traz o problema da
dupla moralidade, em que; a iniciação sexual dos rapazes é estimulada
quanto ao seu papel na sociedade, enquanto para as moças interpõem-se
restrições.
Portanto, é cabível afirmar que a ausência de interesse pela própria
temática constitui um problema psicossocial, na medida em que dispomos
de evidências de que ações de apoio ao pai adolescente podem provocar
um impacto positivo na vida dos sujeitos e de seus filhos, e abrem
possibilidades para reflexões mais amplas no tocante à responsabilidade
nas esferas da vida sexual e reprodutiva e do cuidado para com a criança.
Estamos diante de um processo interativo: as dificuldades para
assumir responsabilidades adultas, observadas entre adolescentes, são

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por vezes reforçadas ou mesmo criadas pelas instituições sociais, que
dificultam ou impossibilitam que pais adolescentes assumam funções
esperadas ou desejáveis junto a seus filhos e parceiras. Daí o interesse
científico e a importância social de se discutir esse tema, propondo novas
alternativas para reflexão e ação neste campo.
Essas responsabilidades são papéis de classe distintos, ligados de
idéias sobre homem que podem ser invocados por várias finalidades,
controle social, manutenção da patriarquia, como sistema dominado pelo
homem. Do qual o jovem adolescente ainda não tem condições de responder
pelos seus atos legalmente ou pelos de outrem, por estarem ainda
alienados ao papel de filho da mãe sob a proteção do patriarca, seu pai.
No caso da paternidade-maternidade/gravidez adolescente, a
problematização nos campos da pesquisa e da intervenção podem
seguir caminhos diversos em função do quadro de valores que orienta a
tomada de decisões: considera-la sempre indesejável e patologizá-la,
prevendo processos de intervenção repressivos, ou considerá-la como
uma experiência que pode ser positiva para certos adolescentes, sendo
necessário apóia-los. Ou seja, a forma de problematizar e intervir
dependerá da opção de valores assumida. Esses valores deverão ser de
origem familiar, do grupo social ao qual pertençam ou seja o apoio
familiar e social.
Investigar a temática e intervir na área da sexualidade e reprodução
na adolescência significa discutir preconceitos e estereótipos arraigados e
repensar valores, considerando a possibilidade da adoção de novos valores.
Dentre as propostas de intervenção, podemos citar o PAPAI –
Programa de Apoio ao Pai Jovem e Adolescente, que vem sendo
desenvolvido na Universidade Federal de Pernambuco, em Recife. O
programa tenta sair da trilha da repressão, ou seja; de julgamentos pré-
concebidos pela sociedade com relação as condutas adolescentes, para
realmente estar apoiando o adolescente na construção de sua auto
estima (LYRA, 1997). Pois a sociedade normatiza atitudes e julga os
atos de uma maneira uniforme e pré-conceituosa. O adolescente se
sente por vezes reprimido em seu papel de jovem pai adolescente.
Apoiar esse adolescente na construção de sua auto estima, seria ser
partidário da igualdade de oportunidades entre os sexos, não só as
atividades de mercado de trabalho devem ser compartilhadas por

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 115-128, 2002 122


homens e mulheres, mas também responsabilidade frente a própria vida
reprodutiva.
A política pública intervém na realidade social e envolve diferentes
sujeitos, direcionados por interesses e expectativas em torno de
recursos. Portanto, formam um conjunto de ações ou omissões do
Estado decorrente de decisões e não-decisões, limitando-se e regulando
os processos econômicos, políticos e sociais. Seu progresso se
expressa por momentos articulados, concomitantemente e
interdependentes, comportando seqüências de ações em forma de
respostas, mais ou menos institucionalizadas, às situações
consideradas problemáticas, materializadas, mediante programas,
projetos e serviços. Contrapõe-se, aqui, o fato da política pública ser
mero recurso de legitimação política ou intervenção estatal subordinada
à lógica da acumulação capitalista.
Portanto, entende-se que uma política pública envolve mobilização
e alocação de recursos; divisão de trabalho (tempo), uso de controles
(poder); interação entre sujeitos; interesses diversos; adaptações; riscos e
incertezas sobre processos e resultados; noção de sucesso e fracasso.
(SILVA, 2000, p. 68).
Torna-se relevante enfatizar que as mudanças no mundo do
trabalho atinge os trabalhadores em escala geral; tanto os mais
qualificados quanto aqueles que tem menor qualificação. Neste sentido
ANTUNES cita que “O mais brutal resultado dessas transformações é a
expansão sem precedentes na era moderna, do desemprego estrutural,
que atinge o mundo global (1995, p.41)”.
A ideologia da classe dominante individualiza o desemprego, sendo
o trabalhador responsabilizado por sua colocação no mercado de trabalho
e quando não consegue é considerado incapaz ou sem vontade para
produzir. Essas idéias tornam-se possíveis porque são veiculadas como
se fossem verdades absolutas, portanto não são questionadas, desta
forma camufla-se a realidade.
Analisando o trabalhador adolescente que geralmente vive de
trabalho informal, houve na década de 90 um aumento considerável de
desemprego e as formas de subproletarização do trabalho, agravando a
situação familiar e do novo pai de família.

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Considerações Finais

Torna-se evidente a necessidade de políticas sociais específicas


que atendam às novas necessidades que estão surgindo na sociedade
contemporânea, que considerem suas dificuldades tanto em exercer uma
atividade remunerada quanto em assumir uma responsabilidade
produtiva, ou seja uma nova família. A Família, nos novos tempos, dos
tempos modernos, os pais são geralmente adolescentes, não exercem
atividades lucrativas e também não estão estudando, normalmente sendo
acolhidos pelos pais maternos, paternos ou outros familiares.
Outro aspecto relevante a ser destacado é a inserção desses pais
adolescentes e seus familiares em movimentos que busquem a defesa
dos direitos.
Seria importante a criação de um Programa de Apoio ao Pai Jovem
e Adolescente com propostas que viessem de encontro às suas
necessidades.
Igualdade de oportunidades entre homens e mulheres em todos os
âmbitos, inclusive na vida familiar e comunitária, ressaltando a
importância do homem no planejamento familiar, uma vez que, entre
outras coisas, ele convive constantemente com a possibilidade de
engravidar mulheres com as quais mantém relacionamento sexual, dado
que sua fertilidade é constante e não periódica como a das mulheres.
É sob esta perspectiva, que podemos visualizar; um dos maiores
problemas enfrentados pelas políticas de direitos reprodutivos,
atualmente. A necessidade de aumentar o conhecimento, o acesso e a
prática da anticoncepção entre adolescentes, em outras palavras,
descobrir maneiras de incentivar o aumento da responsabilidade
masculina durante a adolescência – principalmente nas conseqüências
de seu comportamento sexual. (MUNDIGO, 1995).
Respeito pelas jovens gerações, que se expressa, frente a essa
problemática em duas facetas: de um lado, respeito aos adolescentes que
se tornaram pais, amparando-os na construção de sua autonomia,
proporcionando-lhes participação; de outro, respeito à criança, no sentido
de assumir que ela possa ter uma vida mais saudável e melhor condição
para o desenvolvimento de suas potencialidades quando dispõe de pai e
mãe implicados em seus cuidados, independentemente da relação

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conjugal deles.
Todavia, desta proposição não decorre, obrigatoriamente, que a
família nuclear seja a única a garantir a presença e o envolvimento
materno e paterno no cuidado para com o filho. A aceitação da
diversidade de modos de organização da família pode redundar em
melhor acolhida à criança pequena.
Consideramos que existem dois momentos e formas de trabalhar
com esses adolescentes: 1) a reflexão/discussão sobre a gravidez antes
que ela aconteça e 2) o apoio quando o fato já está consumado, ou seja,
o que nós adultos/profissionais)podemos fazer quando eles
(adolescentes) já são pais e mães, ou estão grávidos.
Enfim, uma abordagem com um caráter menos coercitivo
possibilitaria, a nosso ver, formular programas mais adequados às
necessidades enfrentadas pelos adolescentes, sem “pré-conceituar” a
paternidade e a maternidade nessa fase como pura e simplesmente
negativa, provocada, sempre e inexoravelmente, por irresponsabilidade
dos jovens (PEARCE, 1993).
SAKAMOTO, D. L.; JOSÉ FILHO, M. Adolescent paternity: masculine participation in the
humane reproduction process. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 115-
128, 2002.

• ABSTRACT: The present work objectives weave a reflection about the masculine
participation in the human reproduction process, with effect from three principles of
analyses: 1) The idea that the men exclusion of the participation in the reproduction
process can be explicated with a snapping from the studies of gender, seeing that this
is in general difinite around the cultural personality features ideas tied to particular
papers and situations; 2) reflections about age hierarchies, seeing that the adolescent
is in this moment on the position of “son”, and is recognized in our society occuping
this paper: with ideas of submission, incapacity, and familiar and social irresponsibility;
3) Analyse if there really exist a Reprodutive Health Politics that can complement the
needies of the adolescent’s parents, overcoming the diferent cultural and doctrinaire
gates, that could do the masculine responsability grows, affecting the family formation
and the humane reproduction.

• KEYWORDS: adolescence; pregnancy; maternity/paternity; Public Politics; Social


Work.

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IMAGENS DO URBANO: TRABALHO E FESTA, PROMETEU E
DIONÍSIO

Eliana Amábile DANCINI*


“... se a semente não apodrece e não fica negra, não germina...”

• RESUMO: O fantasioso, o fantástico reage contra a objetividade, contra o nada,


contra a morte, na medida em que infunde o sagrado, o mágico em todo o existente.
Por isso constitui pura liberdade do espírito. Cumpre a função fantástica uma tarefa
eufemizadora sempre, melhora o mundo, burla a morte. Quando os moradores
constroem histórias fabulosas de si, dos outros, do bairro, do mundo, do trabalho, da
festa, eles empreendem esse ato de resistência. Obra de arte coletiva, através
dessas histórias eles promovem a melhoria, o embelezamento do mundo, da Vida.

• PALAVRAS CHAVE: Imaginário; trabalho; urbanidade; cana-de-açúcar; usina; festa.

Terra pagã à espera da eucaristia, terra de sonhos, lama que


apodrece corpos, enlaça e aprisiona alma a outras almas, o João de Barro
está na certidão de batismo primeiro. Ele é novelo de olhos negros, de
caminhos, de motivos e acasos, de linguagens, de sonhos e descrenças,
sentimentos, paixões, amores e ódios. O João de Barro é um mito, vários
sentimentos, paixões e ódios, várias versões. Deuses e o “Coisa Ruim”, a
morte, são os fiéis escudeiros no rastro dos vivos. Tudo enfim se aninha
na pia batismal. Um novelo de imagens se aloja no abismo dos olhos de
quem diz, revive, atualiza, possui e é possuído pelo mito. O mega-espírito,
coletivo de raiz, almas a perder de vista, espaço e tempo libertinos,
materializa-se no fundo dos olhos de todos, um por um dos contadores. O
bairro é todo imagético. Transpira comunicabilidade, traz as prerrogativas
do vivo, é um só enredo. Tece os fios, se aloja, cola e pulsa na intimidade
das paredes interiores do corpo. É o sangue que corre nesse lençol
subterrâneo. Autofágico, corre e vive das imagens que produz / reproduz,
como grande obra de arte. Inflado, ocupa todo e cada sopro desse
universo virtual. Virtualidade, desconhece as fronteiras da matéria, dos

* Docente do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Políticas Internacionais

UNESP-Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 129


corpos que habita. Comunga a simultaneidade / interioridade /
exterioridade. Corre e alimenta tudo o que os olhos dos sentidos olham e
tocam. Conjuga o ancião e o ainda não nascido, o encanto do lendário e a
deambulação do bairro à beira dos anos 2000 da era cristã. O destinal,
uma morte marcabra; o eterno em oferenda, dádiva do mito, uma astúcia
dos homens contra o fim, vem marcados nas linhas da mão desse
Grande-espírito que é o Bairro.
O Grande-espírito está no útero de cada corpo vivo, nas dobras da
carne, no germe transformista do corpo putrefado, nas redobras e
desdobramentas da matéria e da alma. Ocupa, transpassa, é o bairro.
Torna-se o existente, um acontecimento. Vive do bairro, é este que o
torna entidade eterna. Hologramático, aloja-se em cada fragmento que o
compõe, fecunda cada partícula fecundante do todo. Na exterioridade da
caverna apresenta-se mascarado. Possui e é possuído por tudo que
contamina. Infunde a vida, semeia a morte no mesmo gesto.
A vida, construção, permanência e sentimento de pertença ao
Bairro, ativam acordes plurais. Quando as interrogações rondam as
causas da escolha da Vila de morar, o plural aloja-se nas falas. Assim,
aos poucos são costurados os retalhos da construção. Uma mistura de
imagens, de anseios e expectativas, de desejos, de motivos, trazem as
pessoas para o João de Barro. Um elenco de traços alinhavam o perfil do
lugar. Estão entre as falas que transmutam a Vila em domus: castigos,
provações, bênção, maldição e dívidas em dias de cobrança, somam-se
ao acaso de um espírito andarilho e à busca de uma cidadania por todos
os cantos da terra. A fome e o sonho, a sobrevivência e o fel dos rastros
deixados na terra-berço de origem, matizam os homens do João de Barro.
O Bairro converte-se, também em porta de entrada perene, quando a
trajetória indica o mundo dos mortos. Transforma-se em objeto de desejo,
sal de fantasia, ingrediente amargo de um destino que afugenta e faz
estrangeiro cada um em sua terra nativa. Para alguns, o bairro é puro ato
de voluntarismo do acaso ou do destino. Para a maioria a Vila é marcada
pelo sangue da amizade e a parentada, odor que atrai e vicia. Para muitos
ele é verde cana que seduz, assolados por inventos que desassossegam
o sono. É bênção de Deus, trilha do Diabo e escolha enredada no
engodo. A beleza do lugar, o aconchego das pessoas e da natureza fértil,
amores e paixões, a moda que leva a vida dia após o outro sem que a

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 130


cabeça pare para pensar, a miséria das opções, a acomodação das
vontades, a ausência de coragem e de possibilidades, o aconchego dos
laços familiares também são ingredientes da mistura.
A chegada ao Bairro passa por vários caminhos, explicações,
causas real/ imaginárias. Tem uma visão poliocular. A existência física e
fantástica do João de Barro se deve a cruzeiros de encruzilhadas,
variadas linhas que rasgam a vida e infundem a morte, dobram,
desdobram, sulcam as mãos do destino e do acaso. Da mesma forma,
sustem o bairro a vida que flui ao sabor de uma complexa rede de
socialidades que trança relações de trabalho, uma importante rede
objetiva de sobrevivência e toda a vida que o moderno discurso excretou.
Constituem o João de Barro, a trama, os amores, os paladares, as
amizades, o costumeiro e a segurança da família, o ambiente que permite
o conhecimento de tudo o que se passa no bairro, feito a palma da mão, o
que possibilita adivinhar, vislumbrar, prever. Sonhos, fantasias, imagens
partilhadas, divina arte tecida a muitas mãos, a simplicidade do simples
gostar, alimentam o sopro da vida na Vila. Sua solidez e sobrevida não
estão na rigidez e segurança dos ângulos retos da sua arquitetura. Os
enraizamentos e as intimidades da Grande Domus batem as vigas numa
espiral de gerações, numa obra de arte coletiva, no sacramento encenado
em comunhão intranqüila entre vivos, mortos e anjos de guarda. O mito
de um bairro místico faz a amarração, garante a objetividade /
materialidade do aglomerado de casa, ruas, objetos, fauna e flora, de uma
multidão de pessoas, as quais conferem-lhe materialidade e possibilidade
de existência e atualização.
Sentimentos, sensibilidades, imagens passam pela corrente
sangüínea de quem olha o olhar que olha o bairro. Impossível dizer das
imagens com a miopia dos olhos da razão instrumental. Ler imagens
evoca imagens, é um cerimonial de invocação do imaginário. O espectro
do bairro só se permite ver aos olhos que não tem medo de imaginar. Só
é possível de se ver quando a o território de viagem é do fantasioso.
Morar não é um ato simplesmente objetivo, visível à olho nu. Morar é
também, um ato imaginário, num espaço imaginário, do tempo mítico.
Pertencer ao bairro é mais que cumprimento de um designo destinal que
tem o progresso como horizonte sempre posto e o trabalho por carta de
alforria. Pertencer é um sentimento, torna-se um acontecimento,

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eucaristia, prática mágica, o desenrolar de um ritual coletivo. Ou seja,
dizer do ato de fecundação do bairro, da sua existência, do significado
embutido no pertencer, exige colocar em estado de alerta um misto de
sentidos, de vozes. É incitar o imaginário do observador e do bairro que
se olha. É ser tocado pelos dedos do invisível, que a modernidade se
esforçou por tornar inexistente. Significa despertar e espírito para ver /
ouvir a fluidez da imagem. Olhar o imaginário fantástico de um grupo faz
impossível atravessar virgem, sem que as veias fiquem impregnadas do
que olha.
Mais que um lugar, a Vila é uma centralidade. Para além da
dimensão física, compõe um espaço euclidiano. Tem o imaginário por
matéria prima da construção / constituição. Enquanto objeto do olhar,
torna-se sentimento, paixão, ódio, lócus do prazer, do medo, da fantasia,
do desejo. Sua idade é um condensado que se acomoda num dedal, no
vazio de um segundo, único instante que atesta a vida. A duração é da
recordação, um relâmpago de imagens no espírito do vidente / contador /
inventor de mitos. É eterno presente, é eterno no presente. Antes de tudo
faz-se imagem.
Museu de ícones e imagens, esse é o bairro que se mostra e se faz
mostrado por Zé Moreira, Seu Afonso, Dona Maria, Dona Zélia, Adolfo e
outros. Sua pele é um condensado de tempos, e espaços. Apresenta-se
labirinto, óvulo fecundado e ovário, corpo constituído, maturado e
sementeira. Sua construção não está reduzida a arquitetura pobre de
alvenaria e pau-a-pique. Ela se faz e refaz na fração de um segundo,
comporta um tempo mágico responsável por atualizar a vida numa
partícula de tempo. A memória e o imaginário são os ingredientes da
mistura. Assim o bairro dá a luz todos os dias, nas mãos de todos e em
cada partícula de existência. É parido como natureza parideira.
A dúvida recai sobre os olhos, acerca-se da definição que procura
delimitar os domínios do bairro do João de Barro. Tudo fica à meio
caminho, entre o real e o imaginário, entre a suspeita, o que parece e o
que se apresenta. Denso nevoeiro envolve os olhos, todas as silhuetas,
faz uma estranha armação levitar. Aos primeiros raios do dia, quando a
noite ainda não se fora, à certa distância, o perfil que brota da terra ora
amontoam túmulos, ora o que se acocoram parede-meia são as fachadas
das moradas dos homens. Tudo se alinha indeciso, fantasioso, surreal. As

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 132


certezas da matéria que se vê perdem os sentidos. Sobre o real pairam
incertezas. A fantasia ganha uma substancialidade impossível de colocar
sob suspeita. O João de Barro aparece assim uma mistura, uma mescla,
fica entre o que se pode tocar e o que só o imaginário alcança, um espaço
fantástico onde só a ingenuidade descrê. Razão e imaginário misturados
formam as partículas do nevoeiro e o bairro fica assim rica indecisão,
complexa indefinição. Aqui, a quimera não exclui a objetividade, os
contornos da alvenaria sustentam fissuras e o imaginal voa longe, libertino
e gordo de duplicidade.
Dos pés, envoltos por uma névoa fina, transparente, até a mais alta
torre que se deixa ver, uma variedade de mitos cumprem sua órbita. As
várias leituras que provocam, entram em comunhão, chocam e
entrechocam de narrativa para narrativa, tramam trocas, estabelecem um
comércio intenso entre si, expõem pluralidades, simultaneidades,
ambivalências, contradições nas falas. Difícil dizer qual a leitura soberana.
Certas narrativas, no entanto, já balançam, ameaçam de descrenças as
certezas. O trabalho, enquanto visgo que aglutina e aprisiona as pessoas,
enquanto marca solitária de identificação do grupo, afrouxa os laços. Por
vezes, o trabalho visto como mônoda que reduz tudo o que é a Vila,
parece assistir um reinado deposto no nascedouro. Ao que parece, esse
traço nunca reina só, mesmo na idade de ouro dos canaviais de corte
manual. A fantasia, o mito sempre impregnaram as entranhas do bairro e
o próprio universo do trabalho. Quando as justificativas respondem a
interrogação sobre a existência e permanência no bairro, quando é o
sentimento de pertença o objeto do inquérito, morre à míngua o trabalho e
o perfil do trabalhador como únicos protagonistas. É possível dizer de um
imaginário do trabalho, de uma construção subjetiva que impregna e
perfura, mas não exclui, sua fronte objetiva. Circunda o corpo do morador
da Vila, um elenco de imagens sobre o trabalho: o trabalho sacrificado,
sacrificial, enquanto pecado original; enquanto castigo inscrito já nos
prolegômenos, nas conjecturas divinais, engramado na estrutura genética
do hominídeo. Pureza que identifica o corpo do cristão, esse trabalho é o
que sinala uma existência garantida, imersa no suor, como condição de
redenção dos pecados do mundo. O trabalhador vem marcado pela
simplicidade, a pobreza, o franciscanismo do estilo de vida. Todo o

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universo de imagens cerca e destitui da categoria trabalho a soberania
míope da objetividade excludente.
Ser trabalhador vem cercado de leitura mítica, por isso ambígua e
plural. O trabalhador é filho do excremento, carne impura arrancada do
impuro. Seu destino está inscrito / prescrito antes mesmo que os tempos
dêem a luz. A má hora do seu nascimento ronda e se inscreve contra o
desejo. Está condenado à privação do desejo, do prazer, sucumbido à
uma vida parida na dor, julgado à morte como ato definitivo, incontornável.
Viver é prática de aceitação do puro sofrimento, do suor do corpo como
parte do enredo sacrificial. A vida conseguida com o suor do corpo repete
dia a dia a ação de benevolência do Ser Divino; encena o simulacro da
dívida contraída no princípio dos dias humanos. A vida do trabalhador é
sentença a ser cumprida até o final dos tempos. A lenda dos séculos,
marca o corpo com o sinal do calvário, a apropriação moderna faz do suor
do rosto a imagem do progresso. Na aventura cristã, o corpo do homem
continua prisioneiro do pecado. O gene do castigo flagela sua pele de sol
a sol, sentencia sua casa a expiação, lembra cada dia o crime hediondo
que violou o Paraíso. Diz, então, do pérfido da natureza engramada nos
genes faber da espécie. Esse trabalho parece ser fruto do voluntarismo,
do surreal, do monstruoso das invenções do Criador, vem ao mundo
encarnando quase um ato de perseguição, de cobrança, de vingança das
divindades ofendidas.
Quando se percebe o João de Barro simplesmente como espaço de
morada do trabalho, quando se faz dele prisioneiro do mito do progresso,
guarda uma linguagem nesse mito. O personagem que encarna, veste por
mortalha o ser trabalhador. Ver o João de Barro como um bairro de
cortadores de cana, como espaço de morada do trabalho, é empreender
uma linguagem redutora. Essa leitura míope aprisiona as pessoas da Vila
aos mitos da civilização ocidental moderna. Nesses mitos, o personagem
que sobra para encarnar, reduzem essas pessoas a só trabalhadores.
Seus corpos são perfurados, prisioneiros do mito do progresso. O
trabalhador realiza todos os dias o mito da criação no instante do pecado
original. É o que sustenta a cruz por toda a humanidade pecadora.
Desempenha o papel lendário de depuração de todos os crimes contra os
reinos de Deus. Seu papel é, portanto, extremamente importante. Aos pés
da Divindade, lambuzado de terra instante a instante, é o pária que

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 134


recolhe o lixo, que limpa, que dá de comer e beber a humanidade. É o
que come e bebe do seu suor. Sua vida e a possibilidade de redenção
são expressões da extrema benevolência do Criador. Protótipo do
pecador, porque carrega os frutos da desobediência primeira dos
desígnios divinos, só chega aos céus pelo sofrimento, quando da limpeza
da sua alma. Assim o João de Barro é a imagem exemplar do feio da
criação, das tentações. Sua sobrevivência como bairro depende da
bondade divina e do cumprimento da condição pela qual pode e está no
mundo, a de ser um bairro de trabalhadores. O bairro do João de Barro
pode ser entendido como uma atualização, apropriação do mito do
progresso dos tempos modernos. Nesse mito o bairro encarna uma
mortalha, viés que parece estar para a sobre-determinação de um traço
que o acorrenta e sucumbe à uma identidade. Alma malhada, o bairro
recusa a simplificação de uma só narrativa. Superpõe à condição de só
trabalhador camadas de imagens, ambíguas, contraditórias, ricas de
variedades, de intrincadas, obscuras leituras. Imaginário fértil, no final do
século XX, ele se esmera em multiplicidades das artes de fazer/conceder/
imaginar / criar para viver a vida nos passos das mortes de todos os dias.
Quando os territórios são da pessoa, se avizinha a comunhão, a
simultaneidade, a multiplicidade, a dobra que redobra e desdobra, as
astúcias, as fantasias como artimanhas. A quimera surge no semblante do
homem como suporte, carta de alforria da vida. Uma legião de seres
espectrais sustem o vivo complexo, arranca-o da morte. Uma alma
malhada de substâncias e de virtualidades, de si e dos outros, torna-se a
garantia astuta da sobrevida. Uma policausalidade de ser é que mantêm o
ser vivo. A unicidade do diverso é a marca da pessoa, único jeito de olhá-
la, se o trato é com a vivência, com a vida saída do útero do moribundo.
No espaço / tempo da atualidade, a objetividade carrega a dúvida
sobre as certezas, a veracidade, a concreticidade que o tátil permite.
Hoje, privilegiadamente, a quimera, o imaginário, o sonho, a legião de
espectros tem substâncias. É preciso, pois, olhar o João de Barro no
avesso do sol da meia noite, para além do que o sólido apresenta. É
preciso montar vigilância sobre a sedução da objetividade, sobre a sua
astúcia que viesa. Toda a racionalidade do moderno ocidental traz no seu
seio não-racionalidades outras. Homem humano, homem produtor de

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 135


mitos imanta de espíritos também o trabalho, a vida e a morte como um
todo.
O trabalho, esse novo no Paraíso, obriga cada poro a evadir-se em
lágrimas, a verter óleo que beatifica, batiza e marca com o sinal da cruz o
destino do fazer e do fazedor. Obriga uma legião a cumprir pena eterna,
beber do negror da terra, enquanto carta de alforria que permite o
nascimento e a permanência em tempo e espaço históricos. O trabalho é
visto como condição de vida, enquanto alquimia, bússola destinal,
orientando sucessivos retornos, renascimentos, reencarnações e
escaladas em direção à luz e/ou às trevas. Ao mesmo tempo, é redentor
dos pecados do mundo e arquétipo da pureza oferecida em sacrifício que
redime o cruento. Faz-se esperma, resíduo do diabólico na humanidade,
gesta o imaculado através da mácula. O trabalho, enquanto sentença
cumprida pelo pecador, traz ao homem a certeza resignada da morte, da
perda da imortalidade, misto de conquista e castigo; através da vida
mortal chega-se à imortalidade, objeto de desejo. Toda essa aura orbita o
trabalho a despeito das leituras racionalistas que o estilo moderno
constrói à sua volta, apesar do peso de chumbo que a ocidentalização
tenta impor ao mundo.
A Dignidade é maldição, o faber da superioridade hominídea, a
teatralização das gêneses, o suor que testemunha a altiva natureza da
espécie e que atesta o dever cumprido, o castigo e a anamnese da
desobediência original, a presença da sombra lilitiana por tentação e gene
da rebeldia, o sinal da linhagem pecadora engramado no útero de todos
os filhos, toda essa leitura variada e mítica ronda, implode e vasa o fazer
produtivo e a máquina produtora do seu semblante objetivo.
A pessoa vasa a pele do trabalhador, faz dessa condição apenas
uma faceta do caleidoscópio. Aos primeiros passos da dança, de uma
coreografia que aos poucos se mostra, descortina-se ato por ato toda a
complexidade da teatralização do cotidiano. Aqui o racional moderno
revela sua fragilidade no desenho do humano. Impotente, em vão, pratica
o exorcismo dos encantos, da mística que envolve e impregna atores/
autores e suas obras. Infância no olhar, o simples do corpo do só
trabalhador se abre e deixa ver outros dos seus corpos superpostos,
mostra-se verdadeiro viveiro. Corpos aparentemente solitários,
desgarrados, tristes, apenas justapostos compondo amontoados

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 136


disformes, fazem do verbo ser revelação. Assim, todo corpo realiza a
imagem do encaixe que contém e é contido, possui e é possuído. Todo o
João de Barro constrói uma península, um raizeiro, cujas raízes diversas
são errantes, varam as cercas. Cada pessoa enraíza, rescende, é parte
de uma comunidade de destino. Cada dobra do labirinto, que o raizeiro
forma, cada vestimenta que cobre e colore os corpos, todas as rugas de
cada corpo e do bairro como um inteiro são superposições de uma figura,
formam uma alma malhada, de faces variadas, misturadas, plurais;
constituem um eu que contém e é contido por vários, um ego que se faz
como um cercado e abre pontes para o mundo, que aleita o familiar, faz o
estrangeiro doméstico e vive o estranho dentro de si, conflitando,
desassossegando e enricando o seu seio. Química mágica, arte
alquímica, o singular torna-se abrigo, nicho onde todo o enredo de que faz
parte, é encerrado.
Assim ronda o trabalho, possui o corpo do trabalhador o corpo
mole, a astúcia que viaja todos os dias nos ombros do trampo e
engana/dobra de feitor a patrão, corre o olho vivo, enfeita-se, os
simulacros prontos para a cena. Ajeita-se a bajulação que “esconde o
leite”. Viaja ainda no corpo do trabalhador, o lilitiano de cada um que
gargalha nas sombras enquanto o sério que parece; o jogo que a
aparente inocência joga; o perverso e o pervertido. Os olhos do crente
fervoroso que vê no trabalho o único, o suficiente, o definidor dos
moradores da Vila assistem a terra tremer sob seus pés. O sério e justo
de Deus na face da sua criação, aqui é galhofeiro, divertido, mordaz,
sacana, irreverente, rebelde dos desígnios do Senhor.
Assim, ronda o morador da Vila. Viaja no seu corpo o mago, o
feiticeiro / curador, o pastor e o fiel, o ruim e o santo, o alegre, a festa, o
sonho, a fantasia, o erótico, a vida e a morte. No corpo do morador se
instala o monstro e a beleza das suas feições incompletas, abertas;
espraia-se a derrota e a glória, a vergonha e o orgulho, tudo o que repulsa
e o que atrai, a paixão, o desejo, os amores e toda uma senha de
sensibilidades e sentimentos. Nesse corpo brilha o claro como o sol e o
que se aconchega e castiga a luz da noite; freme a carne do desejo, do
pecado e do promíscuo, do orgiástico – alegre gozo da gula, dos apetites
dos corpos, dos objetos, dos comeres, da droga e da cachaça. No corpo
das pessoas do João de Barro mora o reduto e o não-lugar onde tudo

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 137


passa, tudo está em andança, em movimento, sem parada definitiva.
Mora a sanidade e a loucura, o destro e o avesso, o comum e o coxo, a
virgem e a outra. Na mesma pele dormita o sem glória e a
excepcionalidade, o homem, a mulher e o andrógino de cada um. A carne
que sustem a lama é morada de fantasmas. Em cada um habita o herói e
o ídolo, o Deus e o Demônio, atualiza-se o mito, vive a arte de viver a vida
nos braços da morte.
A criança nos olhos do Criador se encarrega de encomendar o
alargamento do estreito da visão. Fantasia, lenda, mito, imaginário
fantástico e a objetividade dura vêm acasalados, misturados para dar
conta da riqueza das pessoas do João Barro. Na banalidade do bairro,
respira difícil o monótono, o solitário, a mesmice de uma face única, o
viver do trabalhador dos canaviais, do cidadão urbano de periferia. Não é
só a insubordinação de uma visão presa as relações de trabalho que as
pessoas do João de Barro obrigam a fazer. Na face de Prometeu
irrompem grandes verrugas e as categorias da objetividade que amarram
e amordaçam as pessoas a só trabalhadores e os trabalhadores a simples
força de trabalho, não são suficientes para dizer da realidade que os olhos
vêem.
Quando a preocupação gira em torno das imagens das pessoas
que vivem e morrem na Vila, o olhar tende a percorrer um espaço além do
geográfico, um tempo em que o histórico dos dias traz incompletudes. O
olho vagueia pelo presente em busca dos rastros da gestação e da
expansão do bairro, do semblante variado do espaço da banalidade e do
extraordinário, sai em busca do que marca as almas que vagueiam por lá.
A um estímulo secundário e a partir de fragmentos de vida, com os pés
alçados no presente, o que os olhos vêem, veste fleuma escarlate. A
memória oferece muito da matéria-prima. Os gênios da criação/
atualização assumem sua infidelidade com a corporeidade física dos
reagentes que manipula: espaço, objetos, elementos da natureza, corpos.
Comprometem-se com tudo que transborda, vida e morte, com tudo que
vai além da substancialidade palpável. Aqui, o tempo abre possuído de
um tempo outro e o fantástico ergue sua obra contra a podridão da morte
e do trágico do destino. Nesses territórios tudo é inquieto, turbilhonar, tudo
se mexe, atrita-se e convulsiona-se. Ora marca encontro o acaso. Ora os
caminhos obedecem a trajetórias, cruzam-se ao sabor do voluntarismo

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 138


destinal. As vidas cumprem movimentos dispares, afastam-se ao mesmo
tempo em que sofrem força de atração, agregam-se, colam uma nas
outras, feito visgo traçando destino comum, compondo espaços,
ambientes familiares.
No João de Barro o território pontilha-se móvel, formigueiro só. Por
vezes, nada parece disposto a fincar raízes, tudo viaja inquieto num
espaço fantástico. Nesse espaço fantástico as imagens conjugam
libertinagens, desobedecem distâncias, recusam esperas, desconhecem o
tempo histórico. Os corpos trafegam, vivem tempo especial, além do
determinado, espaço que vai além das dimensões físicas. Uma espécie
de duplicidade do tempo e do espaço é o que se assiste aqui. Nos
territórios do fantástico as leis da física clássica morrem à míngua e
corpos penetram corpos, espectros contém espectros, vidas ocupam,
sobrevivem no mesmo seio de outros vivos.
A cana de açúcar e a usina estão nos olhos do bairro em qualquer
porta de entrada e saída. Constituem, na verdade, portas e pontes para
um bairro imaginário, para um fantasma. Simbolizam a entrada para um
bairro mítico, uma comunidade de destino. Encarnam, tornam-se
entidades. Carregam vários corpos, sustentam um corpo misto, uma
materialidade e um território possuídos de espíritos, aurificados,
sacralizados. Emblemáticos, carregam um elenco de significados. Suas
imagens revelam o inquieto, o conturbado da sua natureza: encantam,
constitui um corpo de adoradores e fiéis, geram sentimentos, emoções
que vão do êxtase do riso, a derrota e à vergonha.
Canavial e usina são cenários e personagens integrantes de um
cerimonial de iniciação, de entrada para o bairro do João de Barro.
Simbolizam o necessário para uma nova vida, um outro nascimento, o
ingresso para um mundo onde se vive com mais folga na cidade. Essa
dádiva da natureza é obtida através da fartura de serviço, é traduzida por
uma vida mais folgada, com mais conforto. Mesmo para Zé Moreira,
mineiro instalado no bairro há muito, envergonhado do que o canavial e a
usina têm proporcionado hoje, mesmo para ele, essas entidades surgem
empencados de bênçãos, continuam sendo consideradas um passaporte
para o renascimento redentor. Tanto para pessoas que vem só para o
corte e usinagem da cana, como para os moradores de longas safras na
Vila, o canavial e a usina são de natureza generosa, esbanjam riquezas.

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Zé Moreira marcado de desencantamentos de longas histórias de lutas
por direitos, atribui o indigesto da vida das pessoas que vivem da lavoura,
não à usina ou ao canavial e à terra. A responsabilidade está com certos
homens que tem olhos diferentes, condenáveis para olhar a vida.

Então pra nois a osina é um futuro. Agora si ele é mal administrada, us home que
ta lá dentro administro mal, qué dize qui a osina não tem curpa... O próprio homi
qui tá trabaiano lá dentro, ele olha tudo de otos olhos. U home porque ele pensa
qui tem o cargo a mais, ele num oia mais o Oto. (ZÉ MOREIRA, 1997)

Substituí-los seria devolver o resplendor, a aura que naturalmente


banha o canavial e a usina, restaurando assim a possibilidade de volta a
ordem inicial. O futuro, a fartura de serviço e de riquezas sem olhar a
quem, a fonte inesgotável de vida, de amparo, de acolhimento, a
fidelidade no cumprimento dos papéis de promover o reino de Deus, todo
esse universo se perde deteriora, tem suas fontes de bem-aventurança
secas, quando certos homens são guiados pela avareza. Eles, gerentes
de usina na maioria, transformam o espaço do verde em morada da
incerteza, das aflições, das humilhações, do desespero, do caos que a
tudo pode triturar. A morte cobiça a lama dos homens, espalham
inquietudes, desavenças transgressões, cobra os favores prestados. A
usina, a terra, o canavial, seres sagrados, a bondade nos olho, “...dá de
um tudo...não pode joga fora, dize qui num presta, que é curpada da
desgraça do trabaiadô”. Hoje, por culpa dos homens, do demoníaco da
sua cabeça, da cobiça que ronda seus pés, o bairro ameaça a se
transformar em grande deserto, as suas casas em espaços do abandono,
os homens em armários de lembranças de um tempo bom de serviço
farto, de cozinhas abarrotadas.

Agora já num vem muito pessoal de fora pá osina, vem muito poço. As osina tá
pono maquina, fazenda tamém. Num tem condições...muita famia tá indo embora.
Hoje im dia ocê incontra muita casa vazia...nego qué vendê e i imbora. É a farta
di imprego. (ZÉ MOREIRA, 1997)

Realidades extra-humanas, surgem no imaginal de Zé Moreira.


Sacramentos, a cana, a terra e a usina, são recitados em versos. Leitura
encharcada de emoções, vai exibindo na sua narrativa a reencarnação

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 140


das batalhas sempre heróicas, sobre-humanas contra os gigantes, os
monstros. Árduo, cheio de privações, de perigos, seduções e
encantamentos, o bairro persegue a rota, encena dia a dia o ritual de
passagem do profano ao sagrado, do efêmero para a realidade eterna,
divina. Insiste no ato de revivicação do divino de cada um, de comunhão
em Cristo, de nascimento/criação de um novo cosmo.
Mas, a cana de açúcar, a terra, a usina, que realizam a imagem
símbolo da generosidade, da proteção do afago, do acolhimento, da
fertilidade, da vida, erguem no mesmo chão as sepulturas. À sombra dos
monumentos germina a putrefação, a morte, o caos. Administradores de
usina de hoje, governantes, máquinas e herbicidas, o desemprego
rondam feito espíritos malignos, infestam os ares do bairro. Atormentam,
baralham os caminhos, atraem para o centro do turbilhão, oferecem
campo aberto às heresias. Crimes, roubos, violências e perigos, a
cachaça e os protestos banais, as brigas convulsionam o ambiente,
estranham o rotineiro, colocam a domesticidade em estado de alerta. As
drogas chegam parede e meia com a miséria, o presentismo juvenil, o
modernismo, a estética dos ídolos contemporâneos e a ética que os
envolve. Somam, a adrenalina que a volúpia e a pressa em viver no limite
exigem, o diabo preso no interior da garrafa reconquistando o centro do
santuário. O destrutivo do caos ameaça engolir a Vila. A bandeira
hasteada no centro do bairro traz as cores da ameaça e do convite à
reordenação desse mundo. Todo o universo material simbólico do grupo
vive dias de aflição. A deserção surge no cenário das pessoas, o
desencanto abate os heróis das tribos, os santos e anjos de guarda
ouvem injúrias e perjúrios. O calvário parece alargar os domínios, a
redenção ganha distância. Tocar a vida, viver o que dá, os instantes que
são disponíveis, acentuam-se como recursos, como saídas.

Porque ocê sabi, ocê podi trabaiá u tanto qui fô. Mais si num tive amo, alegria,
ocê trabaia sem razão. Eu convivo dentro da felicidade... O que sustenta um
home é a felicidade. Eu sô feliz memo. Quando eu to com os meus pobrema eu
começo a cantá. Tem dia que eu to trabaiano e to cantano. O feitor para pra mim
vê cantano. (ZÉ MOREIRA, 1998)

No olho do furacão, os sonhos minúsculos, as fantasias ralas,


pequenos delírios, adornam as cabeças. Cumprem a tarefa, realizam a

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 141


magia de fazer bela e suportável a vida. Realizam a melhoria do mundo
como obra de arte do corpo banal. No cenho do João de Barro reascende
a alegria de viver a vida, sem causalidade que a objetividade dos olhos
possam vislumbrar.

O bairro é um bairro alegre. O pessoal é sofrido mas a alegria não acaba. Ele
não troca sofrimento. Num compara. Ele sofre mais continua alegre. (SEU
AFONSO, 1997).

Viver por viver, alegria por estar vivo, por exercitar/jogar com o
divino da sua providência/procedência. Prazer da vida, de se descobrir
vivo, instante a instante, vitorioso ante a morte. As astúcias, as
artimanhas permitem ao bairro o ato heróico de reviver, fazer o retorno
mítico ao momento primordial, cumprir o cerimonial de inicialização,
renascer, batizar e sofrer o batismo dia após dia.
Simultaneamente, se o cotidiano de luta árdua pela sobrevivência
real e simbólica tende a quebrar os encantos da maioria dos moradores,
deixa na boca um amargo de féu, também faz brotar das catacumbas
sonhos milenares. A esperança cintila nos olhos trágicos de Zé Moreira.
As asas se abrem nos pés de Seu Afonso. “Cidadão do Mundo”, seu
imaginário alça vôo à cata do paraíso secular a que tem direito.

Morar aqui no João de Barro é igual morar em qualquer lugar. Pra mim é melhor
morar aqui porque o custo de vida é menor que na cidade grande. Tem os
relacionamento, amizade pra gente é uma coisa importante. É mais fácil uma
relação de amizade com o povo mais simples... Eu sô apegado, mais
dependendo das circunstâncias eu sô cidadão do mundo. (SEU AFONSO, 1997).

Aos poucos, caminhando e ouvindo as alegrias e lamentos do


bairro, no rastro das suas sombras, o observador depara com a
ambigüidade das portas. Fecham e abrem para as exterioridades.
Guardam, encobrem os segredos e mistérios da Vila. Alimentam nos
olhos dos moradores a desconfiança e a repulsão a tudo o que circula
fora dos limites do reduto. Estendem as pontes, abrem a franquia às
imagens que o mundo oferece. Mandala, giram os corpos sob
encantamentos, fascinados do que vem. Emerge a península do bairro.
Sem abandonar seus heréticos, os chefes das linhagens constroem

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 142


explicações, expiações e o retorno a ordem primordial, o afrontamento do
caos por vias que se embrenham fora do ambiente domiciliar. O bairro,
sob essa luz, é todo fronteira, ponto nodal, espaços de confluência e de
sinergia entre exterior e intimidades. Joga o jogo perigoso com o
emblemático de certas figuras: a polícia, o governo, as autoridades, os
usineiros, as imagens televisivas, os mitos modernos, as novas seitas e
algumas milenares que chegam com os aromas do ar do tempo, novas
máscaras para o fundo dos mesmos rituais, os cuidados que contornam e
cobrem o corpo, com tudo o que se põe à mostra e se oferece para ser
visto, os excessos de cada instante vivido, o sensível mais à flor da pele,
os “curandeiros de fora”.
Zeloso dos filhos seus, dos que vem das terras de origem, dos
amigos e parentes, o João de Barro que se fecha, constrói pontes, enreda
de si, da vida e da morte que leva. Esmera-se nas esculturas, expõe,
oferece aos olhos alheios de imagens. O divino social do seu ser, toca,
confere vida ao mundo imaginal que transpira. Na mistura do colorido
surgem a ambigüidade, a simultaneidade, a contradição, o conflito, a
pluralidade das máscaras. Paixões, alegrias, tragédias, mitos, um estilo
de vida, também integram o composto. A astúcia compõe obras de arte,
apresenta em espetáculo o belo monstruoso.
O pecaminoso, o perigoso, o interdito, frutos do preconceito e das
rejeições da cidade em relação à Vila, transmutam-se nas mãos dos
moradores do João de Barro. Se por um lado, o bairro se identifica, se
reconhece e admite as raízes da sua interdição, assume a meã-culpa, ao
mesmo tempo, empunha a interdição, o perigoso do seu solo como
escudo. Reforça assim as muralhas do reduto.

Não gosto qui fala mal do bairro. Si ocê vem aqui nu bairro e fô lá surgi um
pobrema é purque ocê mexeu com argúem lá. Porque se ocê não mexeu num vai
te pobrema. Si ocê num tem respeito uai... Do contrário quarqué qui chega é bem
recebido. (ZÉ MOREIRA, 1997).

Com o ambiente, se o ambiente é calmo, os costumes são uns. Se o ambiente


torna-se agressivo, no caso, as pessoas também acompanha. O povo aqui é
brabo mesmo. (SEU AFONSO, 1997).

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 143


Os moradores da Vila se reconhecem bravos, trazem o veneno com
antídoto. O negro dos adjetivos que carregam, gestado nas brigas por
direitos, é transmutado em orgulho e glória. O medo que o seu rosto
dissemina vem da recusa, da intolerância aos desrespeitos, às falsidades
dos outros em relação à Vila.
Porto de entrada e saída, universo vivo, o povo da Vila fustiga a
lengalenga do modo de vida da cidade. Empencado de diversidades,
toma conta do lugar, agita, estranha o costumeiro no largo da matriz.
Objeto de desdém, o João de Barro fala com desdém dos moradores de
Guariba. Visto como antro, enquanto estrangeiro que infunde nódoa ao
lugar, tratado como cria intrusa e indigesta que banha de negro o solo da
região e corre o mundo enredando os agravos, os moradores da Vila
devolvem os insultos e dizem do perigoso, do desregramento que habitam
as ruas do centro de Guariba.

Pessoal da cidade vem. Eles vem aqui di Domingo. Então tem coisa, negócio
di droga, tem muito di fora. Aí a veiz vem di fora. Então tem muito
desrespeito da genti di fora. Vem as pessoa du centro da cidade. Lá a droga
é mais sorta. (ZÉ MOREIRA, 1997).

Vários são os jogos encenados pela Vila quando a sua imagem


está no centro do palco que se olha. Os próprios moradores ajudam a
construir a imagem de espaço interdito. É nesse sentido que o interdito
transmuta-se em reduto. O imaginário enquanto redenção do mundo,
lócus da esperança, da generosidade, cumpre a tarefa de enfatizar as
deformidades do bairro. Ora joga para os de fora, gente ignorante do seu
cotidiano, o que a ele se atribui. Outra afeita, aponta para as próprias
estrangeiridades do seu eu. Dentre as duplicidades, dentre as alteridades
que se aninham na alma do João de Barro, colorindo de escuros véus as
imagens que sua exuberância traça, estão a pobreza, o desemprego, a
desgovernância que corre por suas ruas, os filhos jovens do seu ventre e
os novos de chegada, os visitantes do alegre que os fins de semana
exalam, os amantes do êxtase que as paixões, a maconha e o crack
alimentam.
Outra feita, um discurso lendário vem à tona do presente e,
fragmentos dos mitos de origem, surgem nas falas. Perfeito e puro nas
origens, habitantes de uma terra sem males, os grandes matriarcas da
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 144
espécie caem em desgraça por designos de Deus, que a tudo sabe e
quer. Sucumbidos ao pecado original, inscrevem nos genes da
humanidade as marcas da progenitura. Parte constitutiva de toda a
natureza humana, uma potência habitante das suas entranhas, a lama, o
mal brotam pelas feridas do mundo e de cada pessoa. Os mais frágeis,
descuidados, inocentes e heréticos são os escolhidos para o ato de
possessão. Por isso, em todos os lugares e tempos “... sempre há os
bons e os ruins”. Tudo faz parte.
Os próprios moradores ajudam a construir a imagem de espaço
interdito. Nesse sentido o interdito vira reduto. O imaginário, enquanto
redenção do mundo, lócus da esperança, da generosidade, cumpre a
tarefa de eufemizar as deformidades do bairro, joga para o outro o mal
que é atribuído as suas entranhas (a pobreza, o mal governo,
desemprego, certos jovens, os ignorantes da vida do bairro, os recéns
chegados, os moradores do centro da cidade). Perfeitos e puros, os pais
da espécie entram em desgraça com o pecado original e inscrevem no
genes de todos os seus filhos as marcas da progenitura. Parte da
natureza humana, o mal brota das fendas e escolhe alguns corpos para
possuir. Por isso, em todo o lugar e tempo “... sempre há os bons e os
ruins...”. Faz parte da obra de Deus. A meretriz, as heréticas, os fracos
que sucumbem às tentações, os monstros, os que preferem não seguir os
difíceis e sacrificiais caminhos de Deus, a alma pagã, atormentada,
selvagem ao longo dos milênios, cumprem os atos primordiais. A
desordem, Sodoma e Gomorra continuam sendo levadas ao palco,
fazendo parte da ordem natural das coisas, da obra, dos desígnios de
Deus. A meretriz, o herético, os fracos que são possuídos de tentações,
os monstros e os que deliberadamente desconhecem os preceitos
divinos, os que são avessos as dificuldades, aos sacrifícios e abstinências
impostos pelo Criador, a alma pagã, atormentada, selvagem varando os
tempos, todos repetem os atos originais. O presente continua a repetir a
órbita que viaja até os primórdios, atualizando o traçado feito no início dos
tempos por intervenção do dedo do Criador. O demônio e seu rebanho, as
sombras do Genitor, cumprem papéis escritos por Deus, fazem parte da
primeira seqüência de acontecimentos que implicam o pecado, os
sacrifícios, as condenações, um elenco de penalidades e expiações e a
redenção, o juízo final. A vida tem, pois que ser vista e vivida como ela é.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 145


Só a fé redime e remove montanhas.O que se assiste é o retorno do
recalcado, um cinismo que deixa de olhar de frente, o que cega, o tempo
que passa, a morte e o peso que esse desdobrando definitivo impõe. As
representações, imagens, contra-imagens trazem sedimentado,
cimentado, os traços do perigoso e do não perigoso, do bom e do
maligno.
À um giro do caleidoscópio, o olho depara-se com a face
promíscua, com o diferente e o torto do estilo de vida vivido na Vila. O
público e o doméstico, naturezas distintas, apartados no natural da
urbanidade moderna, sai das tribos no João de Barro. Crianças aos
montes, homens, mulheres e animais domésticos, libertinos, enchem as
ruas e bares todos os dias. Não há desertos. O vivo se esforça e esmera
em povoar as brechas. Ruas e bares conjugam a pluralidade dos papéis.
Vestem o pregão da bolsa de empregos, o ponto de encontros,
incorporam e transpiram sentimentos, atam laços afetivos, cheiram as
novidades dos acontecimentos de dentro e de fora da Vila. O alegre abre
o sorriso nas feições do bairro. No baile de máscaras, os sons estridentes,
as cores rodopiam sem descanso.

Nu Domingo ocê vai incontrá os amigo, ocê encontra todo mundo. Vai bate papo.
Ocê vê todo mundo... Domingo pa essas pessoa é di festa. Todo mundo na rua.
(ZÉ MOREIRA, 1997).

Sábados, domingos e feriados estão sempre em estado de graça.


Para quem olha à meia distância, o reboliço faz parte da armação do
bairro, é atemporal, integra a sua imagem mitificada, está alojado no
mundo imaginal, é um dos traços do desein.
Diante do sombrio das imagens produzidas pelo imaginário do largo
da matriz, o bairro oferece ou mostra a outra face, o não revelado pelo
perverso do artista. Considerando e agindo como se o bairro fosse órfão,
insistindo em plantar a invisibilidade nas pessoas que ali moram, os
velhos moradores da cidade praticam o desrespeito, usam a selvageria
numa terra que consideram selvagem. Olho por olho, dente por dente, o
bairro realiza o que o avesso ensinou à humanidade, arma-se e não
oferece a outra face.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 129-150, 2002 146


DANCINI, E. A. Urban images: labor and festivity, Prometeu and Dionisio. Serviço Social
& Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 129-150, 2002.

• ABSTRACT: The fantasy, the fantastic reacts against the objectivity, against nothing,
against the dead, in order with the infusion of the sached, the magic in all existent.This
is why is built the fantastic. Executes the fantastic function always an euphemist task,
improves the earth, cheats the dead. When people built fabulous stories about
themself, about other people, the district, the world, the job, the parties, they
undertake this act of resistence. Work of collective art, by means of this stories they
promote the betterment, the embellishment of earth, of life.

• KEYWORDS: Imaginary, labor, urbanity, sugar-cane, factory, festivity

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A CONSTRUÇÃO RESPONSÁVEL DE UMA DISCIPLINA DO CURSO
DE SERVIÇO SOCIAL: INTER-AÇÕES PROFESSOR/ALUNOS11

Ana Cristina Nassif SOARES*

• RESUMO: Este artigo trata de reflexões acerca do processo de construção da forma


de condução da disciplina Psicologia II, do curso de Serviço Social da Unesp-Franca.
A partir da avaliação realizada pelos alunos, sobre aspectos da disciplina anterior,
propusemos aos mesmos que pensássemos conjuntamente sobre instrumentos e
atividades que nos auxiliassem a cumprirmos o programa da disciplina em questão. O
envolvimento real dos alunos com esta “tarefa” trouxe processos e resultados
altamente satisfatórios, durante o desenvolvimento da referida disciplina, com intensa
participação da díade professor-aluno.

• PALAVRAS CHAVES: Construção; inter-relação; identidade; mudança; educação;


vivência; diálogo.

Ao longo de onze anos de prática docente, nossa função enquanto


educadora tem sido, por nós, bastante revisitada. As experiências que
acumulamos como aluna, nos permitem ter como base modelos de alguns
professores que tivemos na vida escolar para que pudéssemos adquirir
um estilo próprio de docência, ou seja, nossa própria identidade. No
entanto, a identidade não se encontra descolada de um contexto, o que
faz com que esteja em constante modificação:

... o indivíduo se configura ao mesmo tempo como personagem e autor –


personagem de uma história que ele mesmo constrói e que, por sua vez, o vai
constituindo como autor. (JACQUES, 1999, p. 163)

Assim, através da interação com professores, alunos, instituições,


disciplinas, pudemos realizar mudanças em nossa prática educacional.

11Relato de uma experiência vivida na disciplina Psicologia II do curso de Serviço Social


da Unesp-Franca, durante o ano de 1999, com os alunos do então 2o ano da graduação,
períodos diurno e noturno. Como nos seria impossível listar os nomes de todos os alunos
envolvidos, estes se tornam co-autores deste artigo.
* Docente do Departamento de Educação, Ciências Sociais e Política Internacional
UNESP - Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 151-156, 2002 151


Algumas experiências vividas, como professora e como aluna, nos
faziam pensar nas relações autoritárias que se estabelecem entre estes
sujeitos. Professores que se colocavam numa hierarquia tão rígida,
cristalizada e distante dos alunos, que estes nem sequer “ousavam”
perguntar a respeito de conteúdos ininteligíveis; alunos que, ao lerem uma
simples nota de rodapé de um livro, se arvoravam a tecer críticas ao autor
ou mesmo, ao professor.
Estas questões, entre tantas outras, sempre nos acompanham.
Como seria possível iniciar um processo de mudança destas relações? O
quê poderia contribuir para uma maior aproximação professor-aluno, sem
perder a hierarquia socialmente “exigida”?
Ao lermos um texto de Bateson (1991) que trata basicamente de
três sistemas, o indivíduo humano, o social e o ecossistema, um trecho,
em especial, nos chamou a atenção para estas questões:

... ahí está la humildad, y la propongo no como un principio moral, desagradable


para gran cantidad de personas, sino simplemente como un elemento de filosofía
científica. Durante el período de la Revolución Industrial, el desastre más serio
fue quizás el incremento enorme de la arrogancia científica. (...) y el hombre
occidental se vio a sí mismo como un autócrata com poder absoluto sobre un
universo que estaba hecho de física y de química. (...) Pero esa arrogante
filosofía científica está ahora obsoleta, y en su lugar alboreó el descubrimiento de
que el hombre es sólo una parte de sistemas más amplios, y que la parte nunca
puede controlar el todo. (BATESON, 1991, p. 468)

Desta forma, pudemos passar a pensar em relações que se


estabelecem entre sistemas, por exemplo, o dos alunos e o do professor;
o da instituição, no qual os sistemas anteriores se encontram, e o do
Estado, entre outras tantas relações possíveis. Estas reflexões nos
levaram a outros lugares, além daquele ocupado por uma forma
tradicional e fechada de “exercer” a docência.
No início do ano de 1999 nos preparamos, mais uma vez, para
recomeçarmos o trabalho didático com a segunda série, na disciplina
anual Psicologia II, do curso de Serviço Social; estes alunos haviam
cursado conosco, em 1998, a disciplina Psicologia I, no primeiro ano.
A partir de avaliações realizadas pelos alunos sobre a disciplina
anterior, percebemos que eram necessárias modificações para 1999. O

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roteiro sugerido por nós para esta avaliação constava dos seguintes itens:
conteúdo programático; metodologia; didática; relação professor-aluno e
formas de avaliação (provas e seminários).
Uma das reclamações dos alunos era de que a prova proposta por
nós em Psicologia I havia contemplado um conteúdo muito extenso,
dificultando a aprendizagem por parte dos alunos; isto disparou em nós
um grande desejo de fazer algo diferente. Parecia que estávamos em um
momento único, trabalhando com duas turmas (dos períodos diurno e
noturno) com características um tanto distintas das turmas anteriores:
responsáveis e envolvidas com a disciplina e com o curso, de modo geral.
Começamos, então, a pensar sobre que propostas poderíamos
fazer aos alunos, mas com a certeza de que não queríamos fazê-las
sozinha, ou seja, não iríamos impô-las e sim, construí-las.
A questão da prova do ano anterior, apontada pelos alunos como
extensa em seus conteúdos, nos fez refletir sobre a função da avaliação
dos alunos. Quais são os objetivos de se avaliar um aluno? A avaliação
somente verifica o nível de conhecimento do aluno? Quais capacidades
do aluno estão em jogo em uma prova? Qual o papel do professor na
avaliação?
Com estes questionamentos em mente, elaboramos, assim,
diretrizes para o programa a ser desenvolvido em Psicologia II, sem
alteração de conteúdo, mas com uma forma metodológica totalmente
diferente do que já havíamos realizado. Propusemos provas mais
freqüentes, ao final de cada assunto proposto e desenvolvido nas aulas
para que o conteúdo não ficasse acumulado.
Nas primeiras aulas, começamos, então, a discutir este formato
com os alunos dos dois turnos; ao longo de duas aulas, pensando sobre
as avaliações da disciplina do ano anterior e das propostas dos alunos e
nossas, chegávamos a um formato conjunto para a disciplina Psicologia II.
Os alunos também manifestaram o desejo de terem um contato prévio
com o conteúdo de cada tópico a ser trabalhado; depois de algumas
conversações, estabelecemos juntos que os alunos fariam uma breve
pesquisa de campo ou bibliográfica sobre o assunto em questão. Assim,
de posse deste material e de um texto anteriormente indicado e lido,
poderíamos refletir sobre as semelhanças e diferenças entre o material

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 151-156, 2002 153


produzido nas pesquisas e as propostas dos autores discutidos em sala
de aula.
Desta forma, tivemos o seguinte formato para o primeiro semestre
da disciplina Psicologia II:

Discussão em Avaliação do
Pesquisa aulas sobre a tópico em
bibliográfica ou pesquisa e o questão com
de campo texto indicado base nas aulas
anteriores

As avaliações foram elaboradas com base na pesquisa realizada


pelos alunos, nos textos lidos e nas discussões em sala de aula, bem
como na vivência12 dos mesmos. Acreditamos que o aluno, ao ingressar
na universidade, não deve ter seus conhecimentos anteriores
desprezados, mas sim ampliados e aprofundados. Vale ressaltar que, um
dos aspectos avaliados positivamente por estes alunos na disciplina do
ano anterior, foi a possibilidade de haver um diálogo aberto entre
professor e alunos; assim, mantivemos esta postura para que,
acompanhando o raciocínio do aluno, tivéssemos a oportunidade de
permanecermos ampliando e questionando seu processo de construção
do pensamento.
Os resultados foram surpreendentes e motivadores. A grande
maioria dos alunos dos dois turnos, diurno e noturno, realizou todas as
pesquisa, leu os textos previamente e respondeu, de forma bastante
profunda e reflexiva a avaliação de cada módulo do conteúdo
programático.
As aulas se tornaram muito “concorridas”, havendo sempre uma
presença maciça dos alunos, bem como discussões acaloradas sobre os
assuntos propostos. De nossa parte, também houve uma sensação
prazerosa e envolvente ao participarmos deste processo, sem que
deixássemos de ser “a professora”, mas também concebendo o aluno

12 Definimos este termo de acordo com o Dicionário Contemporâneo da Língua


Portuguesa Caldas Aulete (1970): “Processo psicológico consciente no qual o indivíduo
adota uma posição valorizante sintética, que não é unicamente passiva e emocional mas
também supõe uma intervenção intelectual ativa.” Acrescentamos, ainda, a posição
analítica como postura deste processo.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 151-156, 2002 154


como ser social, que pensa, age e pode modificar sua ação com os
recursos que vai aprendendo a utilizar.
Dauster (1996), ao discutir a relação da antropologia com a
educação nos empresta suas idéias ao comentar que:

Em conseqüência do ‘olhar’ relativizador, o professor, burilando seus


sentimentos, perceberá, por exemplo, o aluno não mais pela ‘ótica da privação
cultural’, buscando entendê-lo na positividade de seu universo cultural e não
restrito a indicadores de sua privação, face à lógica social do seu próprio grupo.”
(grifos originais) (DAUSTER, 1996, p.82)

Pensamos ter sido esta nossa intuição, quando realizamos o


trabalho conjunto professor-aluno; como conseqüência, acreditamos
estarmos em conformidade com nossa visão de mundo e de ser humano,
propiciando a nós, professor e aos alunos, oportunidades reais de
construir um conhecimento compartilhado.
Ainda nos utilizando de Dauster (1996):

Os efeitos epistemológicos deste olhar conduzem ainda a uma visão


contextualizada do fenômeno educativo, a uma valorização da diversidade e da
heterogeneidade culturais e a questionamentos sobre posturas etnocêntricas que
contrariam a pedagogia ‘bancária’. (grifo original) (DAUSTER, 1996, p.82)

Enfim, a todo momento, travamos discussões acadêmicas contra a


educação tradicional, sem nos aventurarmos na diferença; diferença esta
que se refere também a nós, professores, ao modo como ministramos as
aulas, às formas como conduzimos um debate em sala de aula.
Precisamos sair deste debate infértil e foi o que tentamos fazer.
Nós, enquanto professora, observamos nas expressões dos alunos,
o “pensamento” acontecendo...; os questionamentos, as dúvidas e a
emoção na aventura do conhecimento, se tornaram a “prova” concreta do
ser humano transformador da realidade... aquele que busca,
incessantemente, respostas para sua vida cotidiana. Não houve, até o
presente momento, experiência mais enriquecedora e gratificante para
nós, pois esta nos modificou profundamente e nos fez acreditar no aluno
que nos modifica e nos faz crescer a todo momento.
Estas questões permeiam nossa prática enquanto educadora; estar
sempre refletindo sobre as relações complexas que se estabelecem na
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 151-156, 2002 155
universidade, pode, dentro dos limites possíveis, modificar aspectos
fragmentados concebendo-os não só como intelectuais, mas como parte
da vida cotidiana dos alunos, bem como do professor. Talvez assim, a
experiência universitária se torne menos reificada para ambos.

“Recordemos: o real excede sempre o racional.” (MORIN, 1996, p.169)

SOARES, A. C. N. The responsible construction of a discipline in the Social Work Course:


inter-actions teacher/students. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 151-
156, 2002.

• ABSTRACT: This article make reflections about the construction of the conveyance
form of the discipline Psychology II, from the Social Work course of UNESP/Franca.
With effect from the valuation done by the students, upon aspects of the anterior
discipline, we propose them to think jointly about intruments and activities that could
help us to execute the program of the discipline in question. The real involvement of
the students with this “task” brought processes and results highly satisfactory, durin
the development of the referred discipline, with an intense relation teacher-students.

• KEYWORDS: Construction, inter-actions; identity, change; education; experience;


dialogue.

Referências Bibliográficas
BATESON, G. Pasos hacia una ecología de la mente. Una aproximación
revolucionaria a la autocomprensión del hombre. Argentina, Buenos Aires:
Planeta, Carlos Lohlé, 1991.
DAUSTER, T. Navegando contra a corrente? O educador, o antropólogo e
o relativismo. in BRANDÃO, Z. (org.) A crise dos paradigmas e a
educação. 3.ed., São Paulo: Cortez, 1996. (Coleção Questões da Nossa
Época)
GARCIA, H.; NASCENTES, A. Dicionário contemporâneo da língua
portuguesa Caldas Aulete. 5.ed. Rio de Janeiro: Delta, 1970.
JACQUES, M. G. Identidade. in STREY, M. N. et al. Psicologia social
contemporânea: livro-texto. 3.ed., Petrópolis: Vozes, 1999.
MORIN, E. Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,
1996.

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A EXPERIÊNCIA DA MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE LIBERDADE
ASSISTIDA NO MUNICÍPIO DE FRANCA/SP

Maria Inês Alves Moura COIMBRA*


Raquel Santos SANT’ANA**

• RESUMO: Este artigo descreve a experiência do Serviço Social com adolescentes


que praticaram ato infracional que cumprem medida sócio–educativa de liberdade
assistida no Município de Franca/SP. Aborda os trâmites legais da medida e o
atendimento feito pela equipe municipal junto ao adolescente que cometem ato
infracional.

• PALAVRAS CHAVE: Adolescente; ato infracional; estatuto da criança e do


adolescente; orientador social; atendimento social.

A violência é um tema polêmico e tem estado freqüentemente em


pauta nos meios de comunicação. Com o acirramento de atos violentos,
ganham destaque na mídia análises simplistas e estereotipadas que
deturpam as causas do fenômeno.
É neste contexto que muitos questionamentos surgem em relação à
adolescência, porém, quando se trata de adolescentes que cometeram
ato infracional, a inquietação é ainda maior; nota-se que o discurso
dominante culpabiliza o jovem pelo aumento da violência e criminalidade
encontrada na sociedade; com isto desvia-se o foco das lentes e deturpa-
se o real: a violência é resultado de inúmeros fatores e a miséria, o
desemprego e a ausência de expectativas de vida digna muito contribuem
para o agravamento da questão. Por outro lado, diversos estudos
apontam que, dentre os crimes praticados, menos de 10% são de autoria
de menores de 18 anos. (ABONG, 2001)
O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n.8069, de 13 de julho
de 1990), embora represente uma conquista para a sociedade brasileira,
ainda não foi totalmente efetivado. Esta lei estabelece a doutrina da
proteção integral e caracteriza a criança e o adolescente como pessoa em

*Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.


**Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação em
Serviço Social UNESP – Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 157


condição peculiar de desenvolvimento, sujeitos de direito e prioridade
absoluta.
Com a implantação do ECA, o conceito de criança e adolescente foi
mudado, havendo rompimento com a “Doutrina da Situação Irregular”,
mantida até então pelo Código de Menores (Lei n.6.697, de 10 de outubro
de 1979), que, por sua vez, destinava-se especialmente à crianças e
adolescentes de classes baixas. Este código criminalizava a pobreza e
dividia a categoria infância em duas vertentes: uma com necessidades
básicas satisfeitas (crianças e adolescentes) e outra com necessidades
básicas insatisfeitas (menores).
Muito embora levada a efeito a mudança no plano legal, os
adolescentes que cometeram ato infracional sofrem críticas de diversos
setores da sociedade. A grande maioria das medidas sócio-educativas
(art. 112) previstas pelo ECA não funcionam porque não é cumprido o
estabelecido pela lei. Por exemplo, o jovem que praticou ato infracional
dificilmente terá acesso à condição de cidadão através das disposições e
acompanhamentos previstos pelas diversas medidas; continuará sem
oportunidade de trabalho de estudo, de lazer etc.
Na verdade, mais complexa que a discussão emocional que vem
sendo feita com certo sensacionalismo pelos meios de comunicação
social, esta temática exige um olhar para além dos muros que separam os
meninos e meninas que cometeram ato infracional.
A discussão nacional sobre estes adolescentes deveria estar
voltada para o atendimento adequado das medidas sócio-educativas,
porém, está desviada para aspectos punitivos. O discurso permanece
apoiado no paradigma autoritário e repressor do antigo Código de
Menores, não considerando a garantia de direitos assegurados pelo ECA
e, com isto, excluindo cada vez mais o jovem autor de ato infracional.
As medidas sócio-educativas previstas no ECA dependem da ação
integrada dos três Poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), além do
Ministério Público, Conselho Tutelar e sociedade civil. O objetivo de todos
deve ser único: a resolução das questões relacionadas ao adolescente
que praticou ato infracional.
É necessário tratar o adolescente primordialmente como sujeito de
direitos e por este motivo, as medidas sócio-educativas não podem estar
desvinculadas do sistema de proteção integral.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 158


Neste artigo será apresentado o trabalho desenvolvido pelos
orientadores sociais, previstos pelo ECA, no acompanhamento da medida
de Liberdade assistida no Município de Franca-SP.

1. Os procedimentos das medidas sócio-educativas

De acordo com o ECA, para que seja aplicada uma medida sócio
educativa, o adolescente que cometeu ato infracional tem garantido um
processo de avaliação no qual são envolvidos os seguintes órgãos:
- Secretaria Estadual de Segurança Pública (através das
Delegacias de Polícia): É responsável pela apreensão do adolescente e
elaboração do Boletim de Ocorrência.
Os pais ou responsáveis devem ser comunicados quando o
adolescente é apreendido, porém, isto raramente acontece de fato.
- Ministério Público (através do Promotor da Infância e Juventude):
procede à audiência, podendo promover o arquivamento, conceder a
remissão além de representar a autoridade judiciária na aplicação da
medida sócio-educativa, dentre outros.
- Juiz da Infância e Juventude: é responsável pela nomeação de
defensor público, determina estudos de caso, profere sentença e aplica
medida sócio-educativa.
- Secretaria de Estado na Área de Assistência Social (através da
FEBEM): este órgão é o responsável pelo acolhimento do adolescente
para execução das medidas sócio-educativas de: internação provisória,
internação, semiliberdade, liberdade assistida e prestação de serviços à
comunidade. Coordena também os programas sócio-educativos em nível
municipal através de convênios.
- Prefeitura Municipal ou Instituições Sociais: Nas cidades onde
houve a municipalização, o atendimento é feito por equipe local
coordenada pelos técnicos de Febem. Onde não houve o repasse do
atendimento para o município, via de regra, quem faz o atendimento é a
Febem. Em Franca, embora ainda não tenha acontecido a
regulamentação do processo de municipalização, a prefeitura é
responsável pelo acompanhamento dos adolescentes que cumprem a
medida sócio-educativa de Liberdade Assistida.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 159


O Estatuto da Criança e do adolescente prevê seis medidas sócio-
educativas para os adolescentes que cometeram ato infracional. É
importante salientar que estas medidas vão das mais brandas
(advertência) para as mais graves (privação de liberdade) e que se
baseiam no comportamento do adolescente podendo progredir ou
regredir.
As medidas sócio-educativas são as seguintes:
- Advertência (art. 115) – Segundo o ECA, consiste em
admoestação verbal realizada pelo juiz ou promotor para o
adolescente, pais ou responsáveis por descuidarem de seus
deveres, entidades governamentais ou particulares que
descumprirem suas obrigações. Deve ser aplicada na hipótese
de atos infracionais leves praticados por primários.
- Obrigação de reparar o dano: conforme o art. 116 do ECA, “em se
tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a
autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente
restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano ou, por outra
forma, compense o prejuízo da vítima.” Quando o adolescente
for menor de dezesseis anos, a reparação dos danos caberá
aos responsáveis.
- Prestação de Serviços à Comunidade (art.117 do ECA) –
Consiste na obrigação do adolescente de executar tarefas
gratuitas junto a entidades assistenciais, hospitais, orfanatos e
outros estabelecimentos congêneres, em programas
comunitários ou estatais. As tarefas deverão ainda ser atribuídas
conforme a aptidão do jovem. Esta medida é pouco aplicada;
para que tivesse maior eficácia, seria necessária a colaboração
da comunidade, além de um acompanhamento sistemático
realizado por um técnico junto ao adolescente e às entidades.
- Liberdade Assistida: de acordo com o art. 118 do ECA, a
liberdade Assistida será adotada “sempre que se afigurar a
medida mais adequada para fim de acompanhar, auxiliar e
orientar o adolescente. A autoridade designará pessoa
capacitada para acompanhar o caso.” Será fixada pelo prazo
mínimo de seis meses, podendo ser prorrogada, revogada ou

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 160


substituída por outra medida. A liberdade assistida deve ser
aplicada aos adolescentes reincidentes.
- Inserção em regime de semiliberdade: esta medida sócio-
educativa deve ser aplicada com forma de transição do regime
fechado para o aberto. Conforme a denominação, o adolescente
terá sua liberdade parcialmente privada, devendo permanecer
em casas abrigos; deverá trabalhar e estudar externamente
podendo recolher-se à noite ou vive-versa, de acordo com o
regimento interno de cada estabelecimento.
- Internação em estabelecimento educacional (FEBEM): segundo o
art. 121 do ECA, consiste em total privação de liberdade, não
comporta prazo determinado, devendo ser reavaliada a cada
seis meses, não excedendo o período máximo de três anos.
Deve ser cumprida em entidade exclusiva para adolescentes,
obedecendo a rigorosa separação por critérios de idade,
compleição física e gravidade da infração.Esta medida só deve
ser imposta em casos de extrema necessidade, como por
exemplo, ato infracional cometido mediante ameaça ou violência
à pessoa, por cometimento de outras infrações graves ou por
descumprimento de medida imposta anteriormente.
Embora descumprido e não efetivado, o ECA aponta vários direitos
para o adolescente. Por exemplo: aquele que cumpre a medida sócio-
educativa de internação deve ter acesso aos meios de comunicação,
realizar atividades esportivas, culturais e de lazer, habitar em condições
adequadas de higiene, permanecer internado na mesma cidade onde
reside ou naquela mais próxima, ter acesso a seus objetos pessoais.
Estes direitos, no entanto, têm sido constantemente negligenciados pelas
unidades de internação que continuam sem condições efetivas de realizar
o atendimento previsto pelo Estatuto.
No que se refere às outras medidas a situação se repete
principalmente quando são necessários equipamentos sociais de proteção
e apoio. A fragmentação e a orientação neoliberal das políticas sociais
vão trazer um rebatimento direto no atendimento dado aos jovens que
praticaram ato infracional e isto se evidencia na quase ausência de
oportunidades tanto a nível de trabalho quanto de proteção social.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 161


O acompanhamento das medidas sócio-educativas de Liberdade
Assistida no município de Franca

Em Franca, contamos atualmente com a aplicação de três medidas


sócio-educativas: a advertência, a obrigação de reparar o dano, a
prestação de serviços à comunidade e a liberdade assistida, sendo esta
última a mais aplicada pelo Juiz da Vara de Infância e Juventude.
Trataremos em particular da medida de liberdade assistida. Esta
passou a ser desenvolvida a partir de 1994, através da FEBEM –
Fundação Estadual do Bem Estar do Menor, sendo anteriormente
aplicada pelo Serviço Social judiciário.
Em junho de 1999, com o encerramento do atendimento prestado
no CASA (Centro de Apoio Semi-aberto) foi interrompido o cumprimento
da medida de semiliberdade em Franca. Os jovens, por determinação
judicial, continuaram a ser atendidos pela mesma equipe – uma assistente
social e duas estagiárias de Serviço Social, porém, em regime de
liberdade assistida.
No ano 2000, a execução da medida sócio-educativa de liberdade
assistida e o Projeto Educação de Rua (que atende adolescentes com
vivência de rua) passaram a ocupar o mesmo espaço físico, apesar das
especificidades de cada atendimento. Surge então, o Centro de
Orientação do Adolescente e Família – Mosaico.
O Mosaico é uma iniciativa da Prefeitura Municipal de Franca e
conta atualmente com parceria da Fundação Telefônica do Estado de São
Paulo, que investiu recursos financeiros durante um ano para implementar
o trabalho com os adolescentes, parceria esta em fase de encerramento.
É importante salientar que a medida sócio-educativa ainda não foi
municipalizada devido a entraves burocráticos.
No Mosaico, conforme citado anteriormente, existem dois projetos
em execução, que embora tenham características comuns, possuem suas
especificidades.No projeto Educação de Rua, os adolescentes não
cometeram ato infracional e, portanto, não possuem a obrigatoriedade de
comparecer às atividades.
Os adolescentes que cumprem a medida sócio-educativa de
liberdade assistida são obrigados a comparecer aos atendimentos - o que
nem sempre ocorre -, além de apresentarem comportamento condizente

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 162


com a medida, pois este será informado ao juiz através de relatórios
periódicos apresentados pelo orientador responsável.
A maioria dos adolescentes possui, em comum, dificuldades de
relacionamento familiar, são usuários de drogas, possuem baixa
escolaridade, falta de acesso a atividades culturais e esportivas, além de
possuírem os desejos e necessidades comuns à adolescência.
Segundo o projeto aprovado pela Prefeitura Municipal e pela
Fundação Telefônica de São Paulo, o objetivo geral da medida sócio-
educativa de liberdade assistida no município de Franca “é a construção
de um projeto de vida em consenso com a adequação social.” Apesar
desta concepção ajustadora, os profissionais procuram desenvolver uma
ação reflexiva e crítica. Nos atendimentos trabalha-se com os
adolescentes e famílias enquanto sujeitos únicos, porém inseridos numa
sociedade adversa. Trata-se, portanto, de proporcionar condições
diferenciadas, tanto em nível concreto, quanto de reflexão, para que eles
possam entender melhor a realidade e seus mecanismos de opressão,
bem como usufruir de seus direitos.

O trabalho com adolescentes que cumprem medida sócio-educativa


de liberdade assistida e seus familiares

A medida sócio-educativa de liberdade assistida (art. 118 do ECA),


deve ser aplicada combinada com as medidas de proteção, pois somente
assim, poderá oferecer alternativas variadas para promover a educação
do jovem, como inserção em escola, trabalho, saúde e lazer. Não
podemos esquecer que antes e mesmo depois de cometer um ato
infracional, o adolescente é um sujeito de direitos.
Conforme o ECA, o orientador de liberdade assistida deve garantir,
no cumprimento da medida, os aspectos de: proteção, inserção
comunitária, cotidiano, manutenção de vínculos familiares, freqüência e
aproveitamento escolar, inserção no mercado de trabalho e/ou cursos
profissionalizantes.
O acompanhamento da medida sócio-educativa pode ser realizado
por profissionais de qualquer área (orientadores), desde que, conforme
prevê o ECA, tenham formação adequada para tanto.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 163


Em Franca, os orientadores são assistentes sociais, porém o
atendimento aos adolescentes é feito por uma equipe composta pelos três
assistentes sociais, por três estagiários de Serviço Social e seis
educadores. Estes últimos ministram atividades diárias, como tear,
capoeira, alfabetização, bijuteria, esportes e culinária, sendo esta última
para as mães. Atualmente são atendidos cerca de 50 adolescentes,
sendo tal número rotativo, já que ora inicia a medida de um jovem, ora
encerra-se a de outro.
Faz parte do acompanhamento a visita domiciliar periódica, o
atendimento individual e reuniões com os jovens e familiares, além das
oficinas realizadas internamente.
No início do cumprimento da medida, o adolescente acompanhado
pelos pais, passa pela primeira entrevista com o orientador que explica a
importância da medida e o objetivo do atendimento. É traçado, em
conjunto com o adolescente, um Plano de Atendimento Personalizado, de
acordo com o interesse manifestado por ele. Neste contato também é,
caso necessário, realizado encaminhamento para providenciar
documentação pessoal do jovem ou de algum membro de sua família,
bem como o encaminhamento para o atendimento na área de saúde
(médico ou dentista) ou inserção da família em programas sociais, quando
possível.
A maioria dos adolescentes atendidos, quando maiores de 16 anos
solicitam trabalho; quando são mais jovens pedem cursos
profissionalizantes. Todavia os maiores não conseguem trabalho e há
pouquíssimos cursos profissionalizantes na cidade e na maioria das vezes
estes exigem escolaridade compatível com a idade ou mensalidades
onerosas, o que exclui o jovem que está em L.A.
Quando o recurso existe os adolescentes são acompanhados pelo
orientador, estagiário ou educador para garantir a efetivação de seus
direitos, como por exemplo, a vaga escolar ou engajamento em algum
curso da comunidade.
Os adolescentes retornam para o atendimento de acordo com a
avaliação técnica, podendo fazê-lo semanalmente, quinzenalmente e
alguns, diariamente.
Estes últimos, em menor número (aproximadamente 10), são
jovens cujas oportunidades são escassas na comunidade, pois são

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 164


analfabetos. Neste caso, freqüentam atividades internas diárias, inclusive
a oficina de alfabetização. Os encontros com os orientadores para a
discussão de temas educativos são semanais.
Para os adolescentes que freqüentam o atendimento
quinzenalmente ou mensalmente, existem reuniões mensais, sendo
também abordados temas educativos como: direitos e deveres, drogas,
tráfico, sexo, escolhas e o papel da polícia civil e militar. Os temas
levantados são sugestões dos próprios jovens.
A equipe realiza encontros mensais com as famílias e discutem
temas de interesse comum, como: educação, relacionamento familiar,
ECA, entre outros. Deste grupo de familiares surgiu o interesse para a
realização da oficina de pães, estando, atualmente, em fase de
implantação uma padaria, onde serão, além de oferecidos cursos para
as mães, comercializado quitandas para alguns setores da
comunidade.
Ressaltamos que nas reuniões com famílias e adolescentes
procura-se respeitar o interesse do grupo e acima de tudo promover a
reflexão sobre o papel destes como sujeitos históricos, portanto, sujeitos,
que através da mobilização e participação podem promover mudanças
significativas em suas vidas e nos locais onde residem.
Um outro grupo coordenado pelos assistentes sociais, que se reúne
mensalmente, é o de pais de adolescentes que cumprem medida sócio-
educativa de internação (aproximadamente 17). Este grupo surgiu em
virtude da mobilização dos próprios familiares que se viam sem
alternativas para visitarem seus filhos internados nas unidades da
FEBEM em Ribeirão Preto ou São Paulo. A partir das reuniões foi
possível que os pais garantissem visitas mensais aos filhos nas
unidades de internação.
É importante mencionar que os grupos familiares, tanto dos pais
dos adolescentes em liberdade assistida quanto dos pais de internos da
FEBEM possuem grande confiança nos orientadores, o que garante o
vínculo, fator essencial para a efetivação do trabalho.
A confiança e o vínculo são possíveis quando o profissional realiza
intervenções despidas de preconceito, com abertura para o diálogo e
reflexões, procurando, principalmente, não culpar a família pela situação

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 165


em que seus filhos se encontram, pois esta reproduz para os filhos as
dificuldades e desigualdades que vivencia.13
Faz parte do acompanhamento da medida de liberdade assistida,
realizado pelo assistente social como orientador, a elaboração de
relatórios periódicos que podem ser mensais, bimestrais ou trimestrais, de
acordo com determinação judicial. Estes relatórios devem conter os
procedimentos adotados pelo orientador em relação ao jovem e a família,
bem como análise técnica do caso, sugerindo a prorrogação,
encerramento, arquivamento, progressão ou regressão da medida sócio-
educativa.
No Plano de Monitoramento e Avaliação os orientadores realizam,
trimestralmente, controle de reincidência, freqüência e rendimento escolar
e nível de relacionamento familiar e social dos adolescentes, com o
objetivo de verificar a eficácia do atendimento.
Periodicamente, os orientadores entram em contato com a
Promotoria da Infância e Juventude para verificar o grau de reincidência
do adolescente e com as escolas para averiguar o índice de
aproveitamento e freqüência dos adolescentes em LA.
Quanto ao relacionamento familiar e social, é difícil para os
orientadores avaliarem, pois é um item subjetivo. Para tal avaliação foi
elaborado um questionário que serve de referência para os orientadores.
De acordo com a dinâmica familiar observada durante os atendimentos e
as visitas domiciliares, o orientador preenche o questionário em questão.

Considerações Finais

As dificuldades encontradas pela equipe de Franca são resultado


de todo um contexto social mais amplo embora, tenha as suas
especificidades; no geral a sociedade local reproduz os preconceitos e
nega ao jovem oportunidades de trabalho, de estudo, enfim, de vida; as
políticas sociais são escassas para este segmento e não garantem
condições de cidadania.

13Mioto coloca que as situações dramáticas vivenciadas pelas famílias no atual contexto
devem ser enfrentadas como desafios, como pedidos de socorro. (Cf: MIOTO, 1997,
p.115-30)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 166


A estereotipia e o preconceito fazem com que pouquíssimas
oportunidades de trabalho ou mesmo de capacitação profissional, sejam
dadas a estes jovens. Um exemplo evidente disto é a dificuldade de
engajamento escolar, pois muitos diretores de escolas, descumprindo o
previsto pelo ECA, recusam-se a receber adolescentes que cometeram
ato infracional alegando que os outros alunos receberão más
influências. Nestes casos é necessário solicitar a vaga por determinação
judicial.
O profissional que faz a orientação de L.A., frente aos limites
conjunturais e institucionais, tem muitas dificuldades de atender o que
está disposto no ECA, afinal, não existe uma rede de apoio e atendimento
aos jovens e suas famílias.
É importante, no entanto, destacar uma questão que depende do
profissional e que é de extrema relevância para o atendimento: o vínculo e
a confiança que deve existir entre o profissional e o adolescente e sua
família. Caso o orientador tenha um olhar simplista e culpabilize o jovem
sem apreender o contexto social mais amplo, a relação torna-se
meramente formal.
No município de Franca, é possível afirmar que a equipe que
atende L. A. luta contra os limites citados e procura cumprir seu papel de
inserção do jovem autor de ato infracional, porém esbarra
quotidianamente nos limites de uma sociedade desigual, preconceituosa e
que não garante a população condições mínimas de seguridade social,
aspecto básico da tão propalada cidadania social que cada dia mais se
faz “cidadania de papel”.

COIMBRA, M. I. A. M.; SANT’ANA, R. S. The experience of socio-educative measure on


sustained liberty in Franca-SP. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 157-
170, 2002.

• ABSTRACT: This article descibes an experience of Social Work with adolescents that
practice infractor act that accomplish socio-educative measure of sustained liberty in
Franca/SP. Boards the legal procedures of the measure and the service done by the
municipal body with the adolescent that commits infrational act.

• KEYWORDS: Adolescence; infractional act; Children and Adolescents Statute; Social


guide; Social Service.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 167


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Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 157-170, 2002 169


COMUNIDADE: ESPAÇO DO EXERCÍCIO DO PODER LOCAL E DA
DEMOCRACIA14

Rita de Cássia Lopes de Oliveira MENDES*


José Walter CANÔAS**

• RESUMO: As organizações populares, hoje, vem sendo consideradas uma resposta


às desigualdades sociais. A luta pela garantia dos direitos sociais adquiridos, as
reivindicações populares para a conquista de novos direitos e a sua persistência, é
uma característica destas organizações. Diante do contexto sócio-econômico do
Brasil, o Serviço Social, vêm adquirindo atividades diversificadas e voltadas
principalmente para o coletivo. Busca-se por meio da organização comunitária uma
melhor qualidade de vida, levando a comunidade a refletir sobre sua condição de
vida, fazendo valer os seus direitos. O Serviço Social, pelo seu caráter educativo,
contribui diretamente, para estimulação da comunidade na elaboração e implantação
de projetos sociais que possam atender as necessidades básicas da comunidade
local e manter uma diálogo reflexivo com as pessoas, que com clareza do seu papel
de sujeito histórico, possa planejar e vislumbrar meios para reivindicar novos direitos
e ter acesso aos direitos já garantidos. Trabalhar o coletivo, pensar em projetos
sociais que possam melhorar a condição de vida das comunidades, estamos
pensando também, num serviço social com referência teórico-metodológico, capaz de
trabalhar com as bases populares, que possam de forma articulada buscar respostas
concretas às questões sociais.

• PALAVRAS CHAVE: organização popular; comunidade; Serviço Social; cidadania;


democracia.

O homem ao transformar a natureza através de suas


ações, às vezes não percebe, que estas ações também
transformam a sua vida, e conseqüentemente, a
humanidade. Rita de Cássia L. O. Mendes

14 Este texto é resultado das discussões e reflexões oferecidas na disciplina Poder Local,

Comunidade e participação democrática pela Profa. Dr. Ana Maria Ramos Estevão, do
programa de Pós-Graduação da UNESP – Campus de Franca, em nível de mestrado.
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca/SP, e

Docente do Curso de Serviço Social da FUNEC – Faculdades Integradas de Santa Fé do


Sul-SP.
** Docente do Departamento de Serviço Social e do Programa de Pós-Graduação

UNESP – Franca-SP.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 171


O Serviço Social no mundo globalizado exerce importante papel na
percepção das mudanças mundiais, as quais interferem nas relações
sociais e conseqüentemente nas metodologias de trabalho da profissão. A
busca constante de entender estas novas mudanças refletidas
diretamente nas práticas profissionais, leva o assistente social à outras
perspectivas de trabalho: o desenvolvimento de projetos articulados à
novas formas de pensar o mundo e de enfrentar as questões sociais,
visualizando o homem como sujeito e transformador de sua história.
Neste contexto, o Serviço Social de comunidade, vêm adquirindo
atividades diversificadas, voltadas principalmente para o coletivo.
Entendemos por Comunidade, um espaço de união consciente de
pessoas, com interesses e necessidades comuns e diversificadas, onde
cada uma contribui com sua individualidade para uma construção coletiva,
buscando a transformação da realidade cotidiana por meio da
representatividade coletiva, valorizando a liberdade e a democracia.
Ao falar em comunidade lembra-se, quase sempre, de um espaço
limitado geograficamente, onde situam-se o local de moradia das
pessoas, espaço este que também pode ser escolhido. A opção por
determinada comunidade muda o cotidiano, pois os interesse particulares
ficam subordinados aos valores e interesses da comunidade. Ressalta-se
a importância do indivíduo como o responsável pela mudança da
realidade em que vive, superando a sua particularidade.
Souza (1999, p. 66), comenta que “a substância da comunidade
não está no aspecto físico da área de moradia, mas no conjunto de
relações e inter-relações, de poderes e contra-poderes que se estruturam,
tomando como referência a infra-estrutura física e social que, por sua vez,
tem suas determinações nas estruturas fundamentais da sociedade”.
Assim sendo, é uma realidade que apresenta elementos da sociedade
que pertence. Ao falar de comunidade, significa diferenciá-la da sociedade
como um todo, pois esta é uma das expressões da sociedade, com
características específicas.
Os movimentos sociais, as organizações comunitárias, representam
o poder das pessoas diante das situações de conflito e resistência às
desigualdades sociais causadas pelo sistema capitalista. Desigualdades
que levam as pessoas, em determinados momentos, não possuírem
condições de escolha. Por exemplo, se têm boas condições financeiras,

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 172


podem morar onde quiserem, caso contrário, financiam uma casa popular
ou submetem-se as condições lastimáveis de moradia. A indignação
diante destas contradições que faz as pessoas se articularem e buscarem
os seus direitos. Souza (1999, p. 17) comenta que “... em suas
contradições, os espaços de moradia podem se tornar espaços de
transformação social”. A diversidade de cultura, de valores, de história de
vida, de tradição e a vivência comum de necessidades num determinado
espaço, constroem identidades e faz com que os locais de moradia sejam
espaço de convivência e também de transformação. A privacidade precisa
ser mantida, mas a vida social necessita ser valorizada. As pessoas se
unem pelos traços comuns, mas deixam transparecer e manifestam suas
diferenças por vários meios, um deles são as modificações nas casas, ou
seja, no seu meio particular.
Ainda que a dimensão da impessoalidade prevaleça como um traço
marcante da sociedade moderna, Castells (1999, p. 79), considera que as
pessoas resistem ao processo de individualização e atomização,
tendendo a agrupar-se em organizações comunitárias que, ao longo do
tempo geram uma identidade cultural comunal. Não aceitando a
individualização, as pessoas buscam nos espaços de moradia, formas de
organização para o exercício dos seus direitos de cidadão. Em meio a
este contexto que surgem os movimentos sociais, as organizações
comunitárias, os grupos e associações, que se fortalecem por terem um
objetivo comum e, a partir de sua organização, adquirem força para o
enfrentamento das questões sociais na sociedade, expressando-se de
formas variadas as questões sociais em que vivem.
Para Castells (1999, p. 23), “os movimentos sociais tendem a ser
fragmentados, locais, com objetivo único e efêmeros, encolhidos em seus
mundos inferiores ou brilhando por apenas um instante em um símbolo da
mídia”. Para o autor, num mundo de mudanças confusas e incontroladas,
as pessoas tendem a reagrupar-se em torno de identidades primárias:
religiosas, étnicas, territoriais, nacionais. Um fato muito comum no
contexto da sociedade de massas, é que, desde princípios do século XX,
“a cidade e sua urbanização passa por um processo de distanciamento,
indiferença e estranhamento de seus moradores”. (SEVCECENKO, 1992,
p. 31). A competitividade eleita pelo mercado, a comunicação fácil pela
Internet, telefones celulares, criam um individualismo que somente é

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 173


corrompido quando o indivíduo necessita do coletivo para se fortalecer,
visando interesses comuns e necessidades urbanas, nesse aspecto,
temos os Centros Comunitários, Associações, grupos de jovens,
mulheres, idosos, instituições religiosas, entre outras organizações.
Entretanto, o número de participantes de alguns destes grupos,
aparentemente, não é expressivo, conseguem uma certa união enquanto
buscam algo próximo e comum, depois, apesar de insistirem, geralmente,
vão se acabando aos poucos, ou retomam o grupo quando sentirem
necessidade. Aquele que sobrevive, torna-se ponto de referência e passa
a fazer parte da identidade do bairro, estes são chamados de movimentos
sociais.
Ao buscar a qualidade de vida social através dos direitos, a
comunidade entra em conflito com os interesses em sociedade. O que é
direito para mim é dever do outro. Não obstante, a intensa politização da
sociedade, a partir dos anos 1980, não conseguiu gerar, de certa forma,
uma cultura democrática consistente, pois no Brasil, a via democrática se
configura “sem que se tivesse como contrapartida uma noção de deveres,
de obrigação política com o coletivo, de obrigação com a comunidade, no
sentido de que os nossos problemas são coletivamente nossos”
(LAHUERTA, 2001, p. 42).
O trabalho de organização popular, hoje, vem sendo considerado
uma resposta às questões sociais. A luta pela garantia dos direitos sociais
adquiridos, as reivindicações populares para a conquista de novos direitos
e a sua persistência, são características destas organizações. Diante do
contexto sócio-econômico do Brasil, o Serviço Social ao trabalhar com o
coletivo, busca uma melhor qualidade de vida, levando a comunidade
refletir sobre sua condição de vida, fazendo valer os seus direitos. O
Serviço Social, pelo seu caráter educativo, tem importante papel e
contribui diretamente na articulação da comunidade, por ser capaz de
desenvolver um diálogo reflexivo e democrático com a comunidade,
despertando ou incentivando-a para o exercício da cidadania.
O Serviço Social passou por vários momentos de reflexão,
principalmente no movimento de reconceituação, em que a sua prática foi
questionada e reformulada, buscando compreender o papel do Serviço
Social no processo de desenvolvimento comunitário. Ammann, descreve
que o movimento de reconceituação do Serviço Social mostrou novas

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 174


formas de trabalho, apontando para o trabalho com movimentos
populares, e desvelou a sua ideologia enquanto reiterativo e manipular
nas instituições:

... de um lado a crítica sobre o desenvolvimento de comunidade desvendara seu


caráter ideológico, reiterativo e manipulador. De outro, a reconceituação do
Serviço Social apontara para os limites da ação profissional no interior das
instituições. (...) apontou a possibilidade de ação do Serviço Social junto aos
movimentos populares, como alternativa de criação de um vínculo orgânico com
a classe dominada. (AMMANN, 1991, p. 182-3 In WANDERLEY, 1998, p. 44)

Ou seja, o trabalho com os movimentos populares passou a ser


visto de forma diferente, realmente como uma nova possibilidade.
Foi nos anos 1980 que se observou, “a volta à cena do
desenvolvimento de comunidade enquanto programa governamental de
nível nacional, revelando-se, este fato, como parte do processo
contraditório de democratização vivido pelo país (AMMANN, 1991, p 166
In WANDERLEY, 1998, p.55). O que parecia ser uma forma de
desenvolvimento local, significou a inibição do surgimento de movimentos
populares e também o controle dos já existentes. A formalização da
organização comunitária em Centros Comunitários, com regimento,
estatuto, tarefas pré-determinadas, foi um exemplo de adequação a
ordem estabelecida. Segundo Wanderley (1998, p.34), na década de
1960, o trabalho de desenvolvimento de comunidade era visto como um
instrumento de aplicação dos recursos do governo, utilizando
gratuitamente a força de trabalho da comunidade.
O trabalho comunitário permite ao Serviço Social estar diretamente
ligado às pessoas e ao processo de educação popular. Neste sentido o
desenvolvimento da comunidade significa o desenvolvimento humano,
social e político de grupo, associações, organizações e principalmente de
movimentos populares, que surgem quando a população, consciente do
seu papel de sujeito histórico, planeja e consegue descobrir meios e formas
de reivindicar seus direitos já garantidos e propor a criação de outros,
visando atender as necessidades coletivas. Acreditar na possibilidade de
emancipação do indivíduo, é visualizar possibilidade de mudanças sociais. O
Serviço Social é muito importante neste processo, a medida em que
contribui com a mobilização da população quando questiona a realidade

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 175


vivida por eles, levando-os a refletir sobre a sua qualidade de vida. Qualidade
de vida precisa ser entendida além do suprimento de necessidades
prioritárias (habitação, saúde, educação, emprego e renda), abrangendo
também, as relações como de lazer e da participação social e política.

Considerações Finais

A comunidade é uma realidade a ser estudada, pois cada uma


possui a sua especificidade, o seu valor a sua história, enfim, a sua
cultura e responde diferentemente às questões sociais. É parte integrante
da sociedade, nas quais as contradições capitalistas se fazem presentes
a todo momento.
A comunidade é passível de escolha pelo indivíduo, é um espaço
em que a sua participação será cobrada. Segundo Souza, “a participação
é processo social que existe independente da interferência provocado por
um ou outro agente externo”, ou seja, ela é inerente ao homem, que
passa a ser considerada questão social a partir do momento em que o
homem questiona a sua realidade.
Trabalhar o coletivo, vislumbrar projetos sociais que possam melhor
a condição de vida em comunidade, objetivar a educação visando uma
população consciente de seus direitos é construir um Serviço Social capaz
de trabalhar de forma articulada com as bases populares, que possam,
juntos, buscar respostas concretas às desigualdades sociais, seja
cobrando a efetivação das políticas sociais, seja criando formas
alternativas de sobrevivência. A participação, segundo Souza (1999,
p.82), precisa ser vista pelo profissional como um fenômeno também da
sua prática e não somente do usuário. Cabe aos profissionais a leitura e
interpretação desta realidade, acreditando sempre na emancipação do ser
humano.

MENDES, R. C. L. O.; CANÔAS, J. W. Community: space to exercize the local power


and the democracy. Serviço Social & Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 171-178, 2002.

• ABSTRACT: The popular organizations, today, have been considered as an answer to


the social inequalities. The struggle by the acquired social rights guaranty, the popular
vindications to conquest new rights and their persistence, are characteristics of these
organizations. In front of the social and economical contexts of Brazil the Social Work

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 176


is acquiring diversified activities and they are turned, mainly, to the collective. By
means of the communal organization is searched a better quality of life, conducing the
community to reflect about life condition, and to be worth their rights. The Social Work,
by his educative character, contributes directly, to the stimulation of the community int
the elaboration and implantation of social projects that can attend the basic
necessities of the local community and maintain a reflexive dialogue with people, that
having clear your papers of historical subject, can brood and glimpse means to claim
new rights and have access to the rights already guaranties. Collective work, think in
social projects that can be better the community contition of life, we are thinking too, in
a Social Work with a theoretical-methodological reference able to work with the
popular bases, that can in a articulated form search for concrete answers to the social
questions.

• KEYWORDS: Popular Organization, community; Social Work; citizenship; democracy.

Referências Bibliográficas
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Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 171-178, 2002 177


DIFERENCIAIS DE SALÁRIOS: UM ESTUDO EXPLORATÓRIO
SOBRE DESIGUALDADES REGIONAIS E INTERINDUSTRIAIS NO
ESTADO DE SÃO PAULO

Hélio BRAGA FILHO∗


Fabiano GUASTI LIMA∗∗
Márcio Benevides LESSA∗∗∗

• RESUMO: Procuramos nesse artigo tratar o tema Diferenciais de Salários a partir de


um recorte regional do Estado de São Paulo, objetivando estabelecer uma
associação entre atividades econômicas no segmento da indústria, valor adicionado
e, postos de trabalho segundo o grau de instrução e sua respectiva remuneração.

• PALAVRAS CHAVE: desigualdades regionais; valor adicionado; indústria;


especialização.

Na economia como geralmente na teoria social os velhos conceitos raramente


são excluídos e não há idéias de todo novas e originais. Gunnar Myrdal (1972).

Premissas ao estudo

Optamos por tratar do tema “Diferenciais de Salário no Brasil” a


partir da abordagem situada na área que envolve os diferenciais
geográficos e diferenciais salariais. Todavia não pudemos evitar os
desvios que nos conduziram aos diferenciais de salários interindustriais,
uma vez que, nosso propósito foi verificar as diferenças salariais num
limitado e selecionado espaço econômico do Estado de São Paulo.
Partindo do suposto que existem e persistem diferenças –
econômicas, sociais, políticas, culturais, tecnológicas, etc. – entre os
países industrializados e aqueles denominados subdesenvolvidos, do
mesmo modo, devem existir e provavelmente persistir diferenças nos
próprios países, bem como, nas diferentes regiões de um mesmo país.
Assim, questionamos por que numa mesma região há a existência


Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social UNESP – Franca-SP.
Mestre em Gestão Administrativa pela FACEF e Economista.
∗∗
Doutorando pela FEA/RP/USP, Mestre em Ciências pela FFCLRP/USP e Matemático.
∗∗∗
Mestre em Gestão Administrativa pela FACEF e Economista.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 179


do fenômeno inerente ao problema das diferenças salariais? O que
contribui para que isso ocorra?
Responder tais questionamentos não é tarefa tão simples, uma
vez que, o tratamento para essas indagações não depende apenas de
uma variável que possa explicá-la, mas, de um conjunto de variáveis
inter-relacionadas. Porém, não é nosso propósito explicar o problema
abrangendo a sua totalidade, sendo assim, procuramos recortar a
realidade procurando interpretá-la a partir dos elementos (por nós
julgado relevante) que a constitui.

A decisão de localizar uma indústria em determinada comunidade, por exemplo,


impulsiona seu desenvolvimento geral. Proporcionam-se possibilidades de
emprego e rendas elevadas aqueles que se encontravam desempregado ou com
empregos de baixos salários. Os negócios locais podem florescer à medida que
aumenta a demanda para seus produtos e serviços.15

Independente dos fatores que contribuem para que numa


determinada localidade se instale uma indústria, os efeitos
multiplicadores são em si mesmo representativos, pois, o simples fato
de surgir na hipotética comunidade uma indústria a mesma gera postos
de trabalho e salários, proporciona o aumento do consumo de bens e
serviços, contribui para a ampliação da arrecadação de impostos, além
de proporcionar e criar condições favoráveis para o desenvolvimento de
outras diferentes atividades econômicas, bem como, de melhorar a infra-
estrutura da própria localidade.
Considerando que o consumo é função linear da renda, quanto
maior for a renda e dada propensão a consumir, maior e mais
diversificada será, provavelmente, a cesta de produtos consumidos pela
comunidade, alavancando possibilidades de diversificação das
atividades econômicas, novos postos de trabalho, aumento da massa de
salários, arrecadação de impostos e, assim por diante.
Além disso, da parcela não consumida resulta a base para a
determinação da acumulação, que em um ciclo posterior gera o capital
necessário a evolução da localidade pelo incremento nos investimentos.

15MYRDAL, Gunnar. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas. Tradução de N.


Palhano. 3.ed. Rio de Janeiro: GB, Saga, 1972, p. 50.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 180


Persistindo esse modelo, temos nos ciclos subseqüentes o embrião para
o crescimento sustentável, premissa ao desenvolvimento de uma
localidade.
No entanto, em se tratando de uma economia regida pelo livre
jogo das forças de mercado, nem sempre os fatos acontecem como o
que foi anteriormente descrito, o que muitas vezes, acaba por gerar os
inconvenientes econômicos e sociais.

A principal idéia e desejo veicular, é que o jogo das forças de mercado tende, em
geral, a aumentar e não a diminuir as desigualdades regionais.
Se as forças do mercado não fossem controladas por uma política
intervencionista, a produção industrial, o comércio, os bancos, os seguros, a
navegação e, de fato, quase todas as atividades econômicas que, na economia
em desenvolvimento, tendem a proporcionar remuneração bem maior do que a
média, e, além disso, outras atividades como a ciência, a arte, a literatura, a
educação e a cultura superior se concentrariam em determinadas localidades e
regiões, deixando o resto do país de certo modo estagnado16

Entretanto, considerando a idéia de que “indústria atrai indústria”


e, que os fatores de atratividade do investimento estão mais
subordinados à lógica do cálculo econômico – bem como, de outros
condicionantes e determinantes do investimento – do que da ação
intervencionista do Estado, a tendência natural é a de agravamento e
não de atenuação dos desequilíbrios regionais.

É fácil ver como a expansão em uma localidade produz ‘efeitos regressivos’


(back-wash effects) em outras, isto é, os movimentos de mão-de-obra, capital
bens e serviços não impedem por si mesmos, a tendência natural a desigualdade
regional.17

Na década de 90, a economia brasileira experimentou de modo


mais acentuado intenso processo de reestruturação produtiva, cujo
sintomas foram entre outros traduzidos pela relocalização industrial, que
motivada pela “Guerra Fiscal” provocou a desconcentração industrial
favorecendo outras regiões da federação em detrimento dos Estados de

16 MYRDAL. Op. Cit. p. 52.


17 MYRDAL. Op. Cit. p. 53.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 181


São Paulo e do Rio de Janeiro.
A migração industrial resultou de um modelo econômico global,
que valoriza o diferencial competitivo das empresas. Para a obtenção do
diferencial competitivo, as indústrias buscavam pela diferenciação do
produto ou do seu preço de venda. Assim, na busca pela
competitividade, a Guerra Fiscal, associada aos salários menores e
diferidos de outros Estados impulsionaram as transformações nas
localidades industriais.
No município de São Paulo a participação relativa das pessoas
ocupadas, segundo o setor de Atividade Econômica do Trabalho
Principal na indústria de transformação, caiu de 29,8% em 1985, para
20,3% no ano de 1996. Nos demais municípios da Grande São Paulo, a
queda foi ainda mais acentuada, passando de 39,1% em 1985, para
26,2% no ano de 1996.
Segundo os dados da Fundação SEADE (Sistema Estadual de
Análise de Dados) – Pesquisa de Emprego e Desemprego na Grande
São Paulo, em 1985, a PEA (População Economicamente Ativa) era de
6.476.000 pessoas (números absolutos) e o número de desempregados
635.000 pessoas. As taxas de ocupação eram de 90,2% e de
desemprego total de 9,8%. No entanto, no ano de 1996, a PEA
totalizou 8.510.000 pessoas, os desempregados atingiram em números
absolutos a casa de 1.208.000 pessoas. A taxa de ocupação, por sua
vez, despencou para 85,8% e o desemprego total passou para 14,2%.18

Na verdade, a desconcentração da produção corrente é conseqüência do fato de


a indústria paulista e, também, a do Rio de Janeiro crescerem a um ritmo inferior
à média nacional, durante os anos de recuperação, e declinarem as taxas
maiores nos anos de recessão. Esse comportamento distinto da indústria de São
Paulo é determinado por sua própria estrutura e pelo maior grau de
encadeamento intersetorial que apresenta, o que a torna mais suscetível aos
efeitos negativos da queda do investimento privado.19

Outro aspecto significativo das mudanças que ocorreram no


Brasil, especialmente na economia paulista nos anos 90, relaciona-se ao

18 Nota da fonte: Estes dados referem-se ao mês de dezembro.


19 PACHECO, Carlos Américo. Fragmentação da nação. Campinas: UNICAMP; IE, 1998,
p. 133.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 182


processo de intensificação da desconcentração da indústria e dos
investimentos movendo-se da Capital e da Grande São Paulo, para o
interior do Estado.

De fato, em paralelo à redução do peso da indústria do Rio de Janeiro e de São


Paulo a favor da indústria do restante do país, ocorreu no espaço paulista um
acentuado processo de desconcentração da indústria metropolitana. O resultado
foi a ampliação da participação do interior no VTI nacional, agora o segundo
maior aglomerado industrial do país, atrás apenas da Grande São Paulo. É o que
se batizou de ‘interiorização da indústria paulista’, com fortes desdobramentos
nas regiões de Campinas, São José dos Campos, Ribeirão Preto, Sorocaba e
Santos, e que foi determinado por um conjunto relativamente amplo de fatores.
(...).20

Entre os fatores citados por Pacheco, destacamos:

A política de incentivo e subsídios às exportações dinamizou a agro-indústria


do Estado, abrindo mercado para a exportação de produtos do complexo soja,
café, laranja, carne, algodão e cana de açúcar;
O Pró-Álcool também implicou um forte estímulo à produção agrícola e
industrial de São Paulo, uma vez que o Estado responde por dois terços da
produção nacional de álcool e ainda concentra a maior parte da indústria
produtora de equipamentos; e
A concentração de vários centros de pesquisa no interior de São Paulo, como
a UNICAMP, o CPgD da Telebrás ou o CTI, favoreceu a instalação de empresas
do setor eletro-eletrônico e de informática em Campinas. 21

Importante mencionar também que entre outros fatores


contemplados por Pacheco, inclui os investimentos em infra-estrutura
notadamente aqueles direcionados a malha de transportes.
O valor das intenções de investimento na indústria no Estado de
São Paulo entre 1997 e 2000, concentrou-se em setores mais dinâmicos
e nas áreas privilegiadas próximas à Região Metropolitana de São
Paulo.

20 PACHECO, Op. Cit. p. 128.


21 PACHECO. Op. Cit. p. 129.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 183


Tabela 1: Estado de São Paulo: Valor das intenções de investimento na indústria
(Setores selecionados) – 1997-2000.

Atividade Principal Valores Absolutos Participação Relativa


(milhões US$) (%)
Autopeças 1.325,30 6,14

Informática 1.280,00 5,93

Material eletrônico e comum 1.294,00 5,99

Metalúrgica 2.180,00 10,10

Minerais não metálicos 1.106,00 5,12

Papel e celulose 1.286,80 5,96

Produtos alimentícios 1.226,00 5,68

Produtos químicos 5.672,40 26,30

Veículos automotores 4.259,00 19,74

Total do Estado de São Paulo 21.570,40 90,96

Fonte: Elaborada pelos autores apud Aurélio Sérgio Costa Caiado, 1998 / Ministério da
Indústria, Comércio e do Turismo / Secretaria de Política Industrial, Brasil:
Oportunidades, intenções e decisões de investimentos.

Enquanto nove dos 26 segmentados elencados – quanto às


intenções de investimento na indústria – representaram 90,9% do total
do valor do Estado, apenas quatro regiões, a RMSP (Região
Metropolitana de São Paulo), e as RAs (Regiões Administrativas) de São
José dos Campos, Campinas e Sorocaba, concentraram 96,4% do valor
das intenções de investimento na indústria, entre os 95 e julho de 2000.

A falsa idéia de que, com a abertura, as empresas se tornariam mais


competitivas e eficientes nos obriga a refletir sobre os seguintes fatos
trazidos da realidade econômica nas transações comerciais internacionais
contemporâneas. (...) Os subdesenvolvidos têm pautas distintas: os
pequenos são ‘especializados’ nas convencionais commodities primárias,
além da pequena presença de manufaturados tradicionais; os grandes,
embora tenham maior presença de manufaturados em suas pautas
exportadoras – além dos produtos primários –, esses produtos são de menor

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 184


complexidade tecnológica, de produção geralmente poluidora e altamente
consumidora de energia.22

Há de se considerar que as vantagens comparativas tradicionais


foram substituídas pelas denominadas vantagens competitivas, entre as
quais, a incorporação do componente tecnologia e da inovação
tecnológica representam relevante papel no que tange a questão
relacionada à competitividade.
Faz-se mister também considerar a necessidade imperiosa de
retomada ao crescimento e de recuperação da saúde fiscal suscetível de
promover a retomada do investimento público, que entre outras
premissas, sejam capazes de dotar o país de condições mais favoráveis
no enfrentamento das questões sociais.

Somente em uma alternativa como esta é que se pode pensar seriamente no


trinômio estabilidade / retomada do crescimento / resgate da dívida social.
Somente com uma estratégia deste tipo é que se pode repensar a questão
regional em termos produtivos e sociais.
Contudo, nem mesmo nos marcos desta segunda trajetória, combateremos os
desequilíbrios regionais sociais – a pobreza e a miséria regional – apenas com
políticas regionalizadas de gastos de infra-estrutura e de indução / persuasão do
investimento privado.23

Diante desses argumentos, ainda que insuficientes, procuraremos


doravante desenvolver a temática concernente ao problema dos
diferenciais de salário com ênfase no município de Franca
comparativamente a municípios selecionados do Estado de São Paulo
notadamente no âmbito da indústria de transformação.

Atividade Econômica Industrial e a Indústria de Calçados do Brasil: Breve


Retrospectiva

Do conjunto de atividades econômicas no setor da indústria de


transformação no município de Franca, sobressai pelo número de

22 CANO, Wilson. Desequilíbrios regionais e concentração industrial no Brasil, 1930-


1995. 2.ed. rev. aum. Campinas: UNICAMP; IE, 1998, p. 350.
23 CANO. Op. Cit. p. 352.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 185


empresas, pela mão-de-obra empregada pela produção e pelo valor
adicionado gerado, bem como, pela participação desse segmento nas
exportações do próprio setor, a indústria de calçados.
Esse subsetor da indústria de transformação é importante para a
economia local assim como, é relevante a sua contribuição para a
produção de saldo da balança comercial brasileira.

Tabela 2: Balança Comercial Brasileira por gêneros industriais – em US$


milhões FOB – 1996 a 2001

Balança Comercial – Saldo (em US$ milhões FOB)

Gêneros
1996 1997 1998 1999 2000 2001 Acumulado

Metalúrgica 4.293 3.517 2.843 3.160 3.730 2.790 20.333

Química (3.574) (3.878) 4.139) (3.959) (4.053) (4.524) (24.127)

Farmacêutica (699) (860) (1.018) (822) (1.202) (1.279) (5.880)

Perfumaria * (57) (144) (174) (157) (136) (113) (781)

Têxtil (1.144) (1.113) (868) (642) (749) (284) (4.800)

Vestuário 91 (03) 31 195 350 342 1.006

Calçados ** 1.440 1.388 1.270 1.287 1.568 1.626 8.579


Produtos
4.880 4.402 5.065 4.784 4.162 5.539 28.832
alimentares
Bebidas (301) (233) (58) (26) (44) (38) (700)

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados do Ministério do Desenvolvimento da Indústria e
do Comércio – MDIC e Secretaria de Comércio Exterior – SECEX.
* inclui sabões e velas
** inclui componentes.

De 1996 até 2001, enquanto os segmentos vestuários e calçados


juntos acumularam um saldo comercial de US$ 9.585 milhões (FOB), os
setores farmacêuticos, de perfumaria e têxtil produziram um déficit
acumulado de US$ 11.461 milhões (FOB).
O saldo comercial produzido pela indústria de calçados só não foi

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 186


maior em razão da sua sensibilidade às variações cambiais, o que, entre
1994 a 1998, dado o regime cambial adotado pelo Governo afetou
diretamente o setor, além da redução das alíquotas de importação que
acabaram exercendo forte pressão sobre essa indústria. Um dos
impactos sentidos pelo setor face a essas medidas e da elevada taxa de
juro, foi a drástica redução do pessoal ocupado.

Tabela 3: Brasil, Pessoal Ocupado segundo as Atividades na Indústria (atividades


selecionadas) – 1992, 1995 e 1999

Pessoal Ocupado
Atividades
1992 1995
1999

Indústria Têxtil 360.000 308.000 217.230

Fabricação de Calçados e de Artigos de


406.300 360.500 281.477
Couro e Peles

Outras Indústrias Alimentares e Bebidas 669.100 670.200 632.004

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados do Ministério do Desenvolvimento da Indústria e
Comércio – MDIC e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, Departamento de Contas
Nacionais.

Apesar de controvertido24, sob a ótica do PIB (Produto Interno


Bruto) a custo de fatores, segundo os setores e subsetores da atividade
econômica no Estado de São Paulo, é visível a queda dos subsetores do
vestuário, calçados e artefatos de tecidos notadamente os valores
absolutos (em Reais de 1995) em relação a outros subsetores da
atividade econômica paulista.

24Nota Explicativa: acreditamos que a queda observada relaciona-se com a explicação


dada por Wilson Cano (CANO, 1998, p. 332) na qual, segundo esse autor “os fenômenos
de terceirização, informalização e sonegação tributária devem ‘explicar’ essa inaceitável
queda de sua produção”.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 187


Tabela 4: Produto Interno Bruto a custo de fatores segundo os setores e subsetores de
atividade econômica – Estado de São Paulo (em Reais de 1995) 1985, 1990 e 1997
Subsetores de Atividade Econômica 1985 1990 1997

Produtos Alimentares e Bebidas * 4.519.060 5.338.913 6.409.801

Química, Produtos Farmacêuticos


10.037.488 9.777.459 11.792.048
Veterinários, Perfumaria **

Metalúrgica 5.676.651 5.187.980 5.931.964

Têxtil 2.905.224 2.524.172 2.208.015

Vestuário, Calçados e Artefatos de Tecidos 1.858.644 1.234.144 787.376

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de
Dados – SEADE.
* os valores correspondem à soma dos dois subsetores.
** inclui os subsetores sabões e velas.

Como se não bastasse, outro fator que contribuiu de maneira


negativa para o setor foi a queda verificada entre os anos de 1996 a
2001 do índice de preço de exportação, cuja compensação deu-se em
razão do aumento verificado do Índice de quantum.

Tabela 5: Índices de Preço e Quantum de Exportação por setores selecionados da


indústria de transformação – 1996 a 2001.
1996 1997 1998 1999 2000 2001
Gêneros
Preço Quantum Preço Quantum Preço Quantum Preço Quantum Preço Quantum Preço Quantum

Têxtil 100,0 100,0 100,7 99,2 94,4 93,4 81,5 102,5 77,3 129,1 72,9 147,3

Calçados 100,0 100,0 97,4 103,5 91,6 97,4 80,4 105,1 86,4 119,2 87,4 127,6

Outros 100,0 100,0 91,5 107,9 90,0 95,6 86,1 122,3 86,5 178,7 77,2 213,1
Prod.
Alimentares

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados do Ministério do Desenvolvimento da Indústria e
Comércio / FUNCEX.

Transpondo as informações para os próximos dois gráficos,

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 188


conseguimos identificar o que foi exposto de forma mais clara.

Gráfico1: Índice de preço de exportação - 1996 a 2001


Fonte: Elaborado pelo autor a partir dos dados do Ministério do Desenvolvimento da Indústria e do
Comércio – MDIC / FUNCEX.
Os calçadistas francanos continuam a enfrentar o problema de
queda dos preços do calçado exportado, pois, segundo o Sindifranca
(Sindicato da Indústria de Calçados de Franca), em 2000 o preço médio
por par de US$ 18, caiu em 2001 para US$ 17,28, e, em 2002, reduziu-
se ainda mais atingindo o valor de US$ 15,91.

Gráfico 2: Índice de Quantum de exportação - 1996 a 2001


Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos dados do Ministério do Desenvolvimento da Indústria e do
Comércio – MDIC / FUNCEX.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 189


Atividade econômica industrial no Estado de São Paulo e o
município de Franca
Os municípios paulistas selecionados nesse estudo totalizaram
uma população de 19.446.834 habitantes (base Censo Demográfico de
2000 do IBGE), o que em percentual representou aproximadamente
52,61% da população total do Estado de São Paulo.
Os subsetores da atividade econômica foram identificados como
aqueles que no ano de 2000 no ramo industrial, apresentaram em
valores absolutos segundo dados obtidos da RAIS/MTE (Relatório Anual
de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e do Emprego) em se
tratando de quantidade de empresas, um número representativo.
Nos municípios paulistas e nos subsetores da atividade econômica
industrial selecionada, a variação absoluta da quantidade de empresas
nos anos de 1985 e 2000 foi sem dúvida significativa, uma vez que em
relação ao total de empresas, o aumento foi de 2,2 vezes ou 123,72%,
todavia, o total de empresas atuantes na fabricação de calçados no
município de Franca foi, de 4,1 vezes ou 317,81%, revelando-nos a forte
vocação do mesmo para essa atividade econômica, assim como, da sua
própria especialização. Variação maior do que a indústria de calçados
só ocorreu no setor de produtos alimentícios, com 332,85%, conforme
tabela 6.
Tabela 6: Municípios paulistas, relação de empresas segundo subsetores da atividade econômica
industrial: 1985 e 2000.

Municípios Paulistas Subsetores da Atividade Relação de Empresas (quantidade) Variação %


Econômica Industrial 1985 2000
Americana, São Paulo, São José Ind. Têxtil, do Vestuário e Artefatos 7.962 15.814 98,62
do Rio Preto de Tecidos
Diadema Ind. Química de Produtos 243 483 98,77
Farmacêuticos, Veterinária e
Perfumaria
Jundiaí, Ribeirão Preto, São José Ind. De Produtos Alimentícios, 277 1.199 332,85
dos Campos, Santos, Bauru Bebidas e Álcool Etílico
Guarulho, Itaquaquecetuba, Ind. Metalúrgica 1.129 3.385 199,82
Limeira, Osasco, Piracicaba,
Santo Ande, São Bernardo do
Campo, São Caetano do Sul, São
Carlos, Sorocaba e Campinas.
Franca Ind. De Calçados 320 1.337 317,81
TOTAIS 9.931 22.218 123,72

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados da RAIS/MET – Relatório Anual de Informações Sociais do
Ministério do Trabalho e Emprego.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 190


Em se tratando de especialização, a fabricação de calçados de
couro no município de Franca atinge um índice bem elevado.
 NLi , A 
 n 
 ∑ NLi , A 
Ii =  i =1 
 NLi , SP 
 n 



i =1
NLi , SP 

Índice de Especialização25,onde:
NLi,A = n. de empregados no setor i na microregião A

∑ NLi, A = n. de empregados no setor i na microregião A


i =1

NLi,SP = n. de empregados no setor i no Estado de São Paulo

∑ NLi, Sp = n. de empregados em todos os setores do Estado de São Paulo


i =1

Trata-se de um índice bastante simples, como é evidente, mas que tem um propósito
muito simples. Indica a especialização relativa de uma dada MR em determinada
indústria, comparativamente ao grau de concentração da mesma no Estado como um
todo. Assim, quanto maior for o índice, maior a especialização local.
Tabela 7: Município de Franca, Índice de Especialização segundo CNAE
Município Índice de Especialização Setor CNAE (5 dígitos)
Franca 53,99 19313 Calçados de Couro
21,18 19100 Curtimento e Prep. em Couros
13,18 19321 Tênis de qualquer Material
9,24 19399 Calçados de Outros Materiais
30,93 29645 Máquinas Equip. p/ Vest. Couro e Calçados
5,94 24910 Fabr. Adesivos e Selante
5,41 25194 Fabr. Artef. Diversos de Borracha
5,16 18210 Fabr. de Acessórios do Vestuário
Fonte: apud Suzigan, Furtado & Garcia. Aglomerações industriais no Estado de São Paulo.

25http://www.cedeplar.ufmg.br/download/wilson%20suzigan.pdf (06.08.2002) - Wilson


Suzigan IE/UNICAMP, João Furtado. Depto. de Economia / UNESP Araraquara, Renato
Garcia, Pesquisador, NEIT / IE / UNICAMP, Sérgio E. K. Sampaio, Auxiliar de Pesquisa,
NEIT / IE / UNICAMP. Aglomerações industriais no Estado de São Paulo. p. 7

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 191


De acordo com esse índice, a fabricação de calçados de couro no
município de Franca destaca-se das demais atividades econômicas
industriais, assim como, assume posição dominante no conjunto das
atividades que integram a cadeia produtiva do calçado.
Contudo, há que considerarmos outro importante aspecto
conforme observara MARSHALL:
Uma região que possua exclusivamente uma única indústria, caso diminua a
procura dos produtos dessa indústria, ou caso haja uma interrupção no
fornecimento da matéria-prima, fica exposta a uma grave crise. Esse mal pode
ser remediado, em grande parte, nas grandes cidades ou nas grandes regiões
manufatureiras em que se desenvolvem vários tipos de indústria.26
Diante dessas observações, de 1994 a 1998, o regime de apreciação
cambial associado à redução das tarifas de importação, produziram efeitos de
sinal negativo para a indústria de calçados local, uma vez que, ao mesmo
tempo que as exportações de calçados caíram de 11,7 milhões de pares em
1994 para 4,3 milhões de pares em 2000, as importações brasileiras
aumentaram de US$ 18,9 milhões em 1992 para US$ 207,1 milhões em 1997.
Além das medidas de política econômica mencionadas, o
acirramento da concorrência entre os produtores nacionais vis a vis aos
principais produtores mundiais de calçados obrigaram a indústria
calçadista de Franca (entre outras), a praticar um profundo ajuste de
caráter estrutural, cujo efeito mais danoso foi traduzido pela redução
acentuada da mão-de-obra direta ocupada nessa indústria.
Tabela 8: Município de Franca, Postos de trabalho na indústria de calçados: 1985 a 2000.
Ano Postos de Trabalho
1985 32.169
1986 36.609
1987 26.704
1988 29.408
1989 29.572
1990 27.088
1991 24.939
1992 26.901
1993 27.364
1994 24.676
1995 18.761
1996 18791
1997 17.174
1998 15.360
1999 16.927
2000 18.975
Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados da RAIS/MTE – Relatório Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego.

26MARSHALL, Alfred. Princípios de economia. Tratado introdutório. São Paulo: Nova


Cultural, 1996. v.1. p. 322.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 192


Em decorrência da vertiginosa redução dos postos de trabalho
diretos na indústria calçadista de Franca, segue-se o crescimento das
pessoas ocupadas no setor informal ligadas a essa mesma indústria.

Gráfico 3: Postos de Trabalho na Indústria de Calçados 1985-2000 - Município


de Franca
Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados da RAIS/MTE – Relatório
Anual de Informações Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego.

Antes de examinarmos a questão dos salários nos municípios (e


seus respectivos subsetores da atividades econômica industrial)
paulistas selecionados, julgamos importante verificar o valor bruto da
produção, do consumo intermediário e do valor adicionado (médias) das
empresas da indústria paulista, segundo segmento de atividade.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 193


Tabela 9: Médias de valor bruto da produção, de consumo intermediário e de valor adicionado das
empresas da indústria paulista, segundo segmento de atividade (selecionados) Estado de São
Paulo – 1996.

Segmento de Atividade Valor Bruto da Produção Consumo Intermediário Valor Adicionado


(em R$) (em R$) (R$)

Fabr. Prod. Aliment. e Bebidas 7.331.665 4.394.578 2.937.087

Fabr. Prod. Têxteis 3.474.130 1.874.823 1.599.289

Confec. Artigos Vest. e Acessórios 705.841 373.558 332.283

Metal. Básica 5.063.793 2.526.487 2.537.306

Fabr. de Produtos Químicos 14.302.853 7.543.932 6.758.921

Prep. de Couros e Fabr. Artefatos de Couro 1.465.680 888.903 576.777

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados da Fundação SEADE – Sistema Estadual de
Análise de Dados / PAEP – Pesquisa da Atividade Econômica Paulista.
Nota de Fonte: refere-se às empresas com sede no Estado de São Paulo.

Independente das observações anteriores feitas por Cano, a


respeito dos problemas relacionados à informalização, terceirização e
sonegação tributária – nos segmentos do vestuário, calçados e artefatos
de tecido, é notório o baixo valor adicionado auferido pelo segmento de
preparação de couro e fabricação de artefatos de couro.
Devemos lembrar que não procuramos estabelecer comparações
entre os segmentos de atividade observados, pois, os mesmos
configuram diferentes estágios tecnológicos, diferentes produtividades,
formas diferenciadas de organização da produção, de gestão, etc.
Contudo, em se tratando de remuneração dos postos de trabalho (em
salários mínimos) por faixas de salários, em porcentagem, nos anos de
1985 e 2000, os resultados obtidos permitem-nos visualizar a situação
da remuneração dos postos de trabalho da indústria de calçados
comparativamente aos demais subsetores da atividade econômica.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 194


Tabela 10: Postos de Trabalho segundo a remuneração (em salários mínimos)
em porcentagem (%)
Postos de Trabalho segundo a remuneração (em salários mínimos) (em %)
1985 2000

Subsetor da Atividade

de 10,01 até 20,00

de 10,01 até 20,00


de 5,01 até 10,00

de 5,01 até 10,00


de 0,00 até 1,00

de 1,01 até 3,00

de 3,01 até 5,00

de 0,00 até 1,00

de 1,01 até 3,00

de 3,01 até 5,00


mais de 20,00

mais de 20,00
Econômica - Ramo
Industrial (Agrupados)

TOTAL 2,48 62,82 16,86 12,00 3,67 1,07 0,26 47,65 26,41 17,16 6,07 1,90

Ind. Têxtil do Vestuário e


3,13 71,39 14,10 7,26 2,18 0,82 0,17 54,03 27,81 12,71 3,48 1,32
Artef. De Tecidos
Ind. Química de Produtos
60,1 17,9 13,5 26,0 32,4 24,6 12,1
Farmac. Veterin. 0,80 4,59 2,05 0,04 4,22
9 5 8 5 0 0 1
Perfumaria
Ind. Prod. Aliment. Bebidas 56,0 24,6 12,8 33,6 29,6 23,7
1,87 3,06 0,82 0,37 8,82 2,97
e Álcool Etílico 5 0 7 7 9 3

79,6 11,1 78,3 13,4


Ind. Calçados 3,33 4,32 0,92 0,20 0,66 5,56 1,12 0,34
0 9 9 1

35,5 24,9 27,2 28,4 27,3 28,5 11,7


Ind. Metalúrgica 0,77 8,72 2,00 0,26 3,01
2 0 1 2 3 7 9

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados RAIS/MTE: Relatório Anual de
Informações Sociais – Ministério do Trabalho e Emprego.

Quanto a remuneração dos postos de trabalho nos subsetores da


atividade econômica industrial (agrupados) no ano de 1985, sobressai
na faixa de 0,00 até 1,00 (Salário Mínimo) a indústria têxtil do vestuário
e artefatos de tecido e a indústria de calçados, com 3,13 e 3,33
respectivamente. Na faixa subsequente de 1,01 até 3,00 (Salários
Mínimos), despontam os mesmos segmentos da faixa anterior, mais a
indústria química de produtos farmacêuticos, veterinária e perfumaria
com 71,39%, 79,60% e 60,19% respectivamente.
No mesmo ano, a indústria metalúrgica configura uma melhor
distribuição face a dispersão observada, contrariamente, a indústria têxtil
do vestuário e artefatos de tecido juntamente com a indústria de
calçados revelam acentuada concentração dos postos de trabalho na
faixa compreendida de 1,01 até 3,00 salários mínimos.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 195


Gráfico 4: Postos de Trabalho Segundo a Remuneração - 1985
Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados RAIS/MTE: Relatório Anual de Informações Sociais – Ministério do Trabalho
e Emprego.

Gráfico 5: Postos de Trabalho Segundo a Remuneração - 2000


Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados RAIS/MTE: Relatório Anual de Informações Sociais – Ministério do Trabalho
e Emprego.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 196


Em 2000, verifica-se uma modificação significativa na indústria
têxtil do vestuário e artefatos de tecidos. A indústria química de produtos
farmacêuticos e perfumaria configura uma distribuição dos postos de
trabalho, por faixa de remuneração, muito próxima da indústria
metalúrgica e da a indústria de produtos alimentícios, bebidas e álcool
etílico.
Entretanto, irrelevante foi a distribuição dos postos de trabalho
segundo suas respectivas faixas de remuneração na indústria de
calçados, posto que, persiste a concentração dos postos de trabalho no
intervalo de 1,01 até 3,00 salários mínimos.
Conforme observara Furtado:

Um dos paradoxos da economia subdesenvolvida está em que seu sistema


produtivo apresenta segmentos que operam com níveis tecnológicos diferentes,
como se nela coexistissem épocas distintas. Os grupos sociais de alta renda
requerem uma oferta baseada em tecnologia sofisticada, enquanto grandes
massas de população lutam para ter acesso a bens considerados obsoletos e
mesmo produzidos com tecnologia rudimentar. Por outro lado, para penetrar nos
mercados internacionais, o caminho mais eficaz consiste em utilizar um misto de
tecnologia: tirar partido da abundância de certos fatores primários e, ao mesmo
tempo, apoiar-se em tecnologias de vanguarda.27

Observando o comportamento das empresas exportadoras do


município de Franca, se considerarmos por estimativa28 que o número
de empresas totalize provavelmente 1.546 empresas, apenas 11,5%
exportam, revelando-nos uma grande possibilidade de aumento do
número de empresas que podem integrar-se a esse grupo29.

27 FURTADO, Celso. Brasil: a construção interrompida. 2.ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,

1992. p. 56.
28 Nota dos autores: em razão da ausência de informações mais precisas sobre o

universo de indústrias que congregam a cadeia produtiva do calçado em Franca,


baseamo-nos nos números apurados segundo o Cadastro Físico de Contribuintes Ativos
(IPTU) da Prefeitura Municipal local.
29 Nota dos autores: considerando apenas parte dos elos que compõem a cadeia

produtiva do calçado.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 197


Tabela 11: Município de Franca, Empresas exportadoras por faixa de valor (US$) – 2001.

Faixa Quantidade de Empresas* Percentual (%)


Até US$ 1 milhão 151 85
Entre US$ 1 e 10 milhões 25 14
Entre US$ 1 e 50 milhões 02 01
TOTAIS 178 100

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados do MTIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria e
Comércio Exterior) – SECEX (Secretaria de Comércio Exterior
* Nota de Fonte: empresas – calçados, máquinas e equipamentos, borracha, couros, componentes
e outros

Ao abordarmos a temática dos diferenciais de salários,


consideramos a questão inerente ao grau de instrução dos postos de
trabalho nos segmentos industriais submetidos à nossa apreciação,
pois, sabemos da sua relevância.

La transformación econômica debiera aprovechar los mayores niveles educativos


creando más puestos de trabajo de maior productividad, para lo cual hay que
elevar los actuales coeficientes de inversión y la captación e difusión del
progreso técnico. Una mejor combinación de trabajo, capital y progreso técnico
sentará las bases de sociedades más inclusivas e igualitárias.30

Dessa forma, postos de trabalho de maior produtividade


demandaram pessoas mais qualificadas, que por sua vez, reforçariam o
binômio qualificação – remuneração, ou seja, quanto maior a
qualificação, maior deveria ser a remuneração, em sentido oposto,
quanto menor a qualificação, menor deverá ser a remuneração.
De forma ilustrativa, uma simples avaliação em quatro setores da
atividade industrial, sendo eles: indústria de calçados, indústria têxtil do
vestuários e artefatos de tecido, indústria metalúrgica e a indústria
mecânica - nos mostra a evolução da qualificação da mão-de-obra, no
que diz respeito ao grau de instrução.

30FRANCO, Rolando e SAINZ, Pedro. La agenda social latinoamericana del año 2000.
Revista de La Cepal, n. 73, Abril, 2001. p. 55.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 198


Tabela 12: Postos de Trabalho Segundo o Grau de Instrução
Calçados* Têxtil, Vest. Artef.Tecidos*
Escolaridade 1985 2000 ↓↑% 1985 2000 ↓↑%
Analfabeto até a 4ª Série Completa 35,11 7,86 (346,7) 53,8 18,19 (195,8)
8ª Série Incompleta até 8ª Série Completa 52,02 64,35 19,2 33,69 50,74 33,6
2º Grau Incompleto até 2º Grau Completo 10,17 25,44 60,0 8,93 26,72 66,6
Superior Incompleto até Superior Completo 2,7 2,35 (14,9) 3,58 4,35 17,7
Metalúrgica Mecânica
Escolaridade 1985 2000 ↓↑% 1985 2000 ↓↑%
Analfabeto até a 4ª Série Completa 52,77 20,06 (163,1) 39,68 14,99 (164,7)
8ª Série Incompleta até 8ª Série Completa 29,12 41,71 30,2 32,57 32,71 0,4
2º Grau Incompleto até 2º Grau Completo 11,74 29,91 60,7 17,21 36,09 52,3
Superior Incompleto até Superior Completo 6,37 8,32 23,4 10,54 16,21 35,0

Fonte: Elaborada pelos autores a partir dos dados da RAIS/MTE – Relatório Anual de Informações
Sociais do Ministério do Trabalho e Emprego.
*O município base para a determinação do cálculo para a indústria do calçado foi Franca.
Para a indústria têxtil do vestuário e artefatos de tecidos foi considerado os municípios de
Americana e São Paulo. A indústria metalúrgica foi determinada pelos municípios de
Guarulhos, São Bernardo do Campo, Santo André, São Caetano, Diadema e Jundiaí.
Finalmente, para a determinação dos postos de trabalho da indústria mecânica foram
utilizados os municípios de Diadema, Guarulhos, São Bernardo do Campo e São Paulo.

Observamos que houve uma evolução significativa no grau de


instrução, dos trabalhadores, dos setores em questão. Porém, não se
pode estabelecer uma relação, do tipo causa efeito, entre o nível de
instrução e a remuneração. O correto estaria em verificarmos o que
acontece com uma dada população, quando a mesma sofre um grau de
evolução educacional. No período em questão, muitos postos de
trabalho foram fechados e outros passaram a existir. Além do mais, os
indivíduos que ocupavam os postos de trabalho em 1985 já podem estar
fora do mercado de trabalho, compondo a população pós-produtiva.
Assim, teríamos uma renovação na composição da mão-de-obra,
empregada nestes setores, que trariam na sua formação um grau mais
elevado de instrução, para ocupar postos de trabalho com a mesma
remuneração que havia nas décadas passada.
Além do exposto, mantida a condição coeteris paribus, para as
variáveis determinantes do crescimento econômico, a melhoria salarial
se daria com a modificação da estrutura produtiva, onde os ganhos de
escala resultariam em ganhos de capital e, este por sua vez, resultariam
em uma melhor repartição da renda, mas tudo atrelado a melhoria da
produtividade e a manutenção da expansão do mercado.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 199


Conclusão

Com base nas informações utilizadas, foi possível identificarmos


algumas relações e, de forma resumida, concluir que:
dos municípios paulistas selecionados para o presente estudo
sobressaem aqueles cujo valor adicionado situou-se em
patamar alto ou intermediário;
esses mesmos municípios localizam-se próximos à RMSP
(Região Metropolitana de São Paulo), ou então próximos a eixos
rodoviários, assim como menos distante de aglomerações
urbanas estratégicas;
os segmentos industriais contemplados no presente estudo
enquadram-se nos denominados setores dinâmicos (de alto
valor adicionado), ou, no setor tradicional (valor adicionado
intermediário) exceto o segmento de preparação de couros e
fabricação de artefatos de couro (baixo valor adicionado); e
os segmentos de alto e médio valor adicionado configuraram
melhor distribuição dos postos de trabalho segundo a
remuneração, em sentido contrário, o segmento que apresentou
a pior distribuição foi o de baixo valor adicionado, ou seja,
preparação de couros e fabricação de artefatos de couro.

Quadro Esquemático

Segmento da Atividade Valor Adicionado Remuneração dos Postos de


Econômica Industrial Trabalho
Dinâmico Alto mais homogênea / alta
Tradicional Inovador Médio menos concentrada / média
Tradicional Baixo concentrada / baixa

Fonte: Elaborada pelo autores.

Ainda que de forma provisória, de acordo com as informações


utilizadas pudemos verificar que as diferenças salariais entre os
municípios e, os subsetores da atividade econômica industrial paulista
examinados, refletem condições e situações adversas, como diferentes
formas de organização da produção, diferentes níveis de qualificação da
mão-de-obra, estágios tecnológicos desiguais, organização e ação sindical,
localização geográfica, inserção nos mercados (interno e externo), cultura
Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 200
empresarial, estratégias de desenvolvimento industrial, entre outras.
A indústria de calçados de Franca, setor considerado tradicional
da economia, mergulhou num quadro de grandes dificuldades a partir da
década de 90.
As medidas adotadas pela esfera governamental entre 1994-
1998, sobressaindo-se a sobrevalorização cambial, o aumento das
importações de calçados motivado pela redução da alíquota de
importação do referido produto, elevadas taxas internas de juros, entre
outras, provocaram queda substancial das exportações, que combinada
com a dificuldade de crescimento do setor voltada para dentro (mercado
interno), forçaram as indústrias locais a promoverem intenso ajuste de
índole estrutural, cujo traço marcante foi a adoção de uma estratégia
perversa baseada na informalização e na terceirização.
Como se não bastasse, devemos lembrar também que houve um
crescimento desordenado e nocivo do número de empresas, cuja
atividade é a fabricação de calçados de couro (tabela 6), aumentando
sobremaneira a concorrência entre elas, o que ao nosso ver elevou a
capacidade instalada e a oferta, reduzindo por conseqüência preços,
margem de lucro e sobretudo os salários.

BRAGA FILHO, H.; LIMA, F. G.; LESSA, M. B. Diferentials of Salaries: an exploratory


essay about regional and industrial inequalities in São Paulo State. Serviço Social &
Realidade (Franca), v.11, n.2, p. 179-202, 2002.

• ABSTRACT: We look, in this article, for the subject Differentials of Remuneration,


starting from a regional clipping in São Paulo State, being objectified to establish an
association between economic activities in the industry segment, added value and,
ranks of work according to the instruction degree and its respective remuneration.

• KEYWORDS: regional inaqualities, added value, industry, specialization.

Referências Bibliográficas
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emprego e as perspectivas locacionais do Estado de São Paulo.
Cadernos da FACECA/PUCCAMP, Campinas, v. 7, n. 2, Jul/Dez, 1998.
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nacional no desenvolvimento dependente brasileiro. 2.ed. Rio de Janeiro:
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FRANCO, Rolando e SAINZ, Pedro. La agenda social latinoamericana del
año 2000. Revista de La Cepal, n. 73, Abril, 2001.
FURTADO, Celso. Brasil: a construção interrompida. 2.ed. Rio de Janeiro:
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– Wilson Suzigan IE/UNICAMP, João Furtado. Depto. de Economia /
UNESP Araraquara, Renato Garcia, Pesquisador, NEIT / IE / UNICAMP,
Sérgio E. K. Sampaio, Auxiliar de Pesquisa, NEIT / IE / UNICAMP.
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KON, Anita. Economia Industrial. São Paulo: Nobel, 1994.
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MYRDAL, Gunnar. Teoria econômica e regiões subdesenvolvidas.
Tradução de N. Palhano. 3.ed. Rio de Janeiro: GB, Saga, 1972.
PACHECO, Carlos Américo. Fragmentação da nação. Campinas:
UNICAMP/IE, 1998.
PAEP: Pesquisa da Atividade Econômica Paulista – SEADE.
RAIS/MTE: Relatório Anual das Informações Sociais – Ministério do
Trabalho e Emprego.
SEADE: Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados.
SECEX – Secretaria de Comércio Exterior.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 179-202, 2002 202


RESENHA CRÍTICA

LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação. Uma


perspectiva pós-estruturalista. 4.ed. Petrópolis: Vozes, 1997. 179 p.

Cléria Bittar BUENO*

Credenciais da autoria

A professora Guacira Lopes Louro é doutora em Educação,


professora titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul e pesquisadora do CNPq.
Coordena o GEERGE- Grupo de Estudos de Educação e Relações
de Gênero- desde 1990 e tem diversos artigos nessa perspectiva. É
autora de centenas de artigos publicados no Brasil e no exterior. É
presença constante em congressos, simpósios e eventos que envolvam o
tema educação e gênero, sendo uma das figuras mais respeitadas deste
campo de conhecimento.
Dentre seus livros destacam-se Gênero, sexualidade e educação
uma perspectiva pós-estruturalista, que é a obra escolhida para ser
resenhada. Ela já se encontra em sua quarta edição (1997) publicada pela
editora Vozes, em Petrópolis, Rio de Janeiro. Outras obras:

LOURO, G. L. Currículo, gênero e educação. Porto, Portugal: Porto


Editora, 2001, v.1, 110 p.
______. Prendas e Antiprendas. Uma escola de Mulheres. Porto Alegre:
Editora da Universidade, 1987, v.1. 103 p.
______. História, Educação e Sociedade no Rio Grande do Sul, 1986, v.1.
48 p.
______. Epistemologia feminista e teorização social - desafios,
subversões e alianças In: Gênero Plural. Curitiba: UFPR, 2002.

* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social – UNESP – Franca-SP.

Bolsista CAPES.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 203


______. Gênero e sexualidade: histórias de exclusão In: À margem dos
500 anos: reflexões irreverentes. São Paulo: EDUSP, 2002.
______. Gênero: questões para a Educação In: Gênero, democracia e
sociedade brasileira. 34.ed. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, 2002.
______. Sexualidade e gênero na escola In: A Educação em tempos de
globalização. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.

Conclusões da autoria

Após o histórico do conceito de gênero e da construção escolar


das diferenças, a autora aponta-nos a necessidade da criação de práticas
educativas não-sexistas, não-racistas, que incluam a experiência e a
participação, dos ‘diferentes’ – mulheres, gays, lésbicas, minorias étnicas
e religiosas – na história oficial. Esta foi escrita pela convenção
dominante: o padrão masculino/heterossexual/branco, e tomado como ‘a
norma’.
O novo modelo pedagógico deve prever em seu planejamento, no
currículo, no sistema de avaliação e na própria atitude docente, as
experiências e as transformações sociais e familiares que estes grupos
trouxeram para a escola, quando partiram para reivindicação de seus
direitos.

Resumo da obra

O livro de Guacira Lopes Louro se divide em 7 capítulos, assim


apresentados:

1. A emergência do ‘gênero’
2. Gênero,sexualidade e poder
3. A construção escolar das diferenças
4. O gênero da docência.
5. Práticas educativas feministas
6. Uma epistemologia feminista
7. Para saber mais (indicações de sites, livros, revisas e filmes
sobre o tema.)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 204


Louro apresenta-nos o início dos estudos de gênero, e suas
relações com a sexualidade e o poder, apresentando-nos a idéia de que
não há ciência, tão pouco alguma instituição que seja desprovida do olhar
e das representações de gênero. Em sua análise fica claro que, as
relações de gênero, culturalmente determinadas e construídas, repousam
sobre a forma como se distribui hierarquicamente o poder entre homens e
mulheres ao longo da história. A relação de gêneros – assimétrica e
desigual em termos de poder -, busca inicialmente, justificar, a partir das
diferenças biológicas entre homens e mulheres, que os primeiros, por
serem mais fortes fisicamente, também teriam o privilégio da inteligência,
da moralidade, do poder, sendo a mulher o seu oposto, o seu
contraponto. Da constatação da diferença anatômica entre homens e
mulheres, construiu-se duas categorias de sujeitos –os que são a norma,
e a partir dela as artes, as ciências, as leis e o conhecimento têm seu
significado; e os diferentes – ou seja, todos os demais que escapam do
padrão convencional hegemônico. Conclui a autora que, também as
instituições, não escapam às representações de gênero, sendo por eles
determinadas e também os determinando. Analisa sobretudo a instituição
escolar e, após o histórico do magistério no Brasil, inicialmente exercido
pelos homens, sendo por eles representada e também ajudando a
construir a representação do professor. Posteriormente mostra-nos como
se deu o processo da feminização da profissão, apontando as diferentes
representações sociais que o exercício profissional do professor/a sofreu,
em diferentes momentos históricos. Aponta a necessidade de se
transformar as práticas educativas, para que a escola não continue a ser
um lugar de reprodução da ideologia dominante. Para isto, não somente o
currículo, as formas de avaliação, o planejamento, o uso dos materiais e
recursos didáticos devem ser cuidadosamente analisados, como também
– comenta a autora –, há a necessidade de melhor preparar quem educa,
para que ensinar não seja o ato da expressão da discriminação entre os
gêneros. Para que isso ocorra, entretanto, não está o novo modelo
pedagógico livre de tensões, visto o caráter transgressor e subversivo que
tem, ao anunciar a necessidade de se incorporar e dar voz àqueles/as
excluídos da história oficial: mulheres, gays e lésbicas, minorias étnicos,
sujeitos de outras nacionalidades, crenças e costumes diferentes do meio
social em que vivem. Além disto, existem desafios que se impõe; por

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 205


exemplo, o próprio fato de não se ter um único modelo teórico-
metodológico, mas sim uma pluralidade de fatos, categorias e inclusive
utilizando-se procedimentos metodológicos (diários, cartas, relatos orais,
fotos, etc) nunca antes utilizados.

Capítulo 1. A emergência do ‘gênero’

Neste capítulo, é desenvolvido o histórico do movimento feminista


no ocidente, que se iniciou com movimento sufragista, movimento este,
que, clamava pelo direito de estender às mulheres, o direito ao voto. Mas
este movimento ainda estava restrito à participação das mulheres brancas
da classe média, ou seja àquelas que eram alfabetizadas e detinham
maior poder econômico. É somente no final da década de 60, que o
feminismo irá problematizar política e socialmente falando, a situação da
mulher, ampliando então o conceito de gênero. É neste caldo cultura de
transformação e efervescência que surge o movimento feminista, e com
ele a visibilização da figura feminina, oculta e opacizada em séculos de
dominação masculina. Neste sentido surgem denúncias contra a
exploração das condições do trabalho exercido por mulheres; surgem
teorias sobre o controle sobre o corpo e a sexualidade feminina; sobre
violência cometida contra as mulheres; sobre as condições de vida, de
estudo e profissionalização das mulheres; sobre a participação destas na
política, entre outros assuntos. Mas também as feministas denunciam a
ausência feminina nas ciências, nas letras e nas artes. “Assim, os estudos
iniciais se constituem, muitas vezes em descrições das condições de vida
e de trabalho das mulheres em diferentes instâncias e espaços” (p.17-18).
Atualmente os estudos de gênero têm a preocupação de
compreender e discutir as desigualdades dos sujeitos no âmbito das
interações de poder que se perpetuam e atravessam as construções da
feminilidade e da masculinidade através do discurso, das instituições, dos
códigos, das práticas e dos símbolos e das hierarquias entre os gêneros.
É lícito afirmar que, hoje, fala-se de identidades e de como estas são
representadas em sua multiplicidade de fatores que a compõe (classe,
etnia, raça, nacionalidade...); desta forma, transcende-se o mero
desempenho de papéis, pois o gênero faz parte do sujeito, e não apenas

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 206


se apresenta como regra, padrões ou formas arbitrárias que os sujeitos
têm de assumir socialmente, como papéis.

Mulheres e homens que vivem feminilidades e masculinidades de forma diversas


das hegemônicas e que, portanto, muitas vezes não são representados/as ou
reconhecidos/as como ‘verdadeiras/verdadeiros’ mulheres e homens, fazem
críticas a estas estrita e estreita concepção binária (p.34).

A autora finaliza o capítulo citando outra estudiosa, Teresa de


Lauretis31, (1994, p.209) que trabalha o conceito de desconstrução,
dizendo que, paradoxalmente ‘a construção do gênero se faz por meio de
sua desconstrução’ (apud LOURO, p.35); o que nos indica que as
identidades de gênero estão sempre se transformando, mostrando-nos o
caráter dinâmico desta.

Capítulo 2. Gênero, sexualidade e poder

Neste capítulo, a autora traz a concepção de Michel Foucault32, que


propõe a resistência ao poder vigente, uma forma de exercício do poder
pois, ‘o exercício do poder sempre se dá entre sujeitos que são capazes
de resistir’ (p.39), pois do contrário teríamos uma relação de violência.
Com isso não se afirma que, sendo as mulheres, quem sofreram
opressão e submissão, ficaram apenas na função do outro submetido e
subordinado. Pelo contrário, reconhece-se esta situação, mas também a
de que elas, apesar desta, não foram anuladas enquanto sujeitos. ‘Lá
onde pa poder, há resistência e, no entanto (...) esta nunca se encontra
em posição de exterioridade ao poder’ (FOUCAULT, 1988, p.81 apud
LOURO, p.40) – a resistência seria, então, inerente ao exercício do poder.
No meio deste jogo de poder é que se constroem discursos que
instituem e justificam as desigualdades de classe, raça, credo, etnia,
sexualidade, aparência física, nacionalidade e gênero. Sobre este último,
a explicação para a desigualdade sempre recai sobre a diferença inegável

31 LAURETIS, T. A tecnologia do gênero. In: Hollanda, H. (org.) Tendências e impasses.


O feminismo como crítica da modernidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
32 FOUCAULT, M. História da sexualidade. v. 1: A vontade de saber. 11.ed. Rio de

Janeiro: Graal, 1988.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 207


das diferenças sexuais, portanto a base para a explicação é sempre de
cunho biológico, como se fosse possível separa-lo do aspecto social. O
que a autora nos chama a atenção é para o fato de que, sempre se refere
à mulher como sendo ela a diferente dos homens, como sendo o ‘oposto’
destes. Ou seja, são eles que devem ser tomados como norma. Isto é
bastante importante para os Estudos Feministas, pois a expressão
‘diferença’ pode adquirir diversos contextos e significados sociais,
políticos ou culturais, mas também carrega a afirmação da diferença entre
as mulheres, reclamada inicialmente pelas mulheres de cor e
posteriormente pelas reivindicações das lésbicas. Estes dois grupos,
provocaram uma ruptura dentro do próprio movimento, ao considerar
diferentes estes dois segmentos, dentro do próprio movimento feminista.
Se as mulheres são ‘as diferentes’, tomando os sujeitos homens como a
norma, negra e lésbicas também o são, tomando a heterossexualidade
branca feminina, como regra.
Na verdade o que está em jogo, em ambos os casos, é a questão
de quem é o ser diferente, implicando aí, de fato o jogo das
desigualdades. Paradoxalmente tentar esconder o par igualdade –
diferença implícito no discurso feminista que busca a superação das
desigualdades. Isto é, para Scott33 (1988 apud LOURO, 1997, p.46), uma
armadilha, pois não se pode reivindicar igualdade para sujeitos que não
são idênticos. O conceito de igualdade em si, já supõe a diferença. O que
se busca, na verdade, e fazer com que ‘os sujeitos diferentes sejam
considerados não como idênticos, mas como equivalentes’ (p. 46). A
situação masculina, heterossexual, branca, cristã e de classe média tem
sido nomeada como ‘normal’, e todas as demais denominações opostas,
válidas tanto para homens de outros credos, raças e poder aquisitivo,
tanto quanto para as mulheres, seriam os diferentes, quase até que em
termos de anormalidade, por fugirem a norma dominante. Estes
‘marcadores sociais’ nos mostram que não dá para se encerrar num único
‘marcador’ a vida do sujeito. São vários e diferentes marcadores que o
posicionam e o representam socialmente. Mas fundamentalmente a
categoria classe social é o indicador central, a base onde se assentam as

33 SCOTT, J. Desconstructing equality-versus-difference: or, the uses of poststructuralist

theory for feminism. Feminist studies. 14(1), Primavera, 1988.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 208


demais categorias que representam-no, e a partir dela, compreende-se a
questão da hierarquia e do poder. As relações de gênero se entrelaçam,
então numa série de condições e categorias, que representam os sujeitos
e suas identidades, no meio social, numa combinação diversa e em
constante transformação.

Para tanto, é preciso considerar gênero tanto como uma categoria de análise
quanto como uma das formas que relações de opressão assumem numa
sociedade capitalista, racista e colonialista (AZEREDO34, 1994, p. 206 apud
LOURO, 1997, p.55).

Capítulo 3. A construção escolar das diferenças

Neste capítulo, Louro analisa a escola, como uma instituição


‘generificada’, onde se produz as diferenças e desigualdades entre os
gêneros, como também entre classes. A escola foi concebida,
inicialmente, para acolher alguns – não todos, e aos poucos ela foi sendo
requisitada para aqueles aos quais havia sido negada. Estes grupos
foram trazendo mudanças à instituições;

Ela precisou ser diversa: organização, currículos, prédios, docentes,


regulamentos, avaliações iriam, explícita ou implicitamente, ‘garantir’ – e também
produzir ‘as diferenças entre os sujeitos (p.57).

Delimitando espaços, dizendo o que cada um pode ou não fazer, a


escola separa e institui, ‘informa o ‘lugar’ dos pequenos e dos grandes,
dos meninos e das meninas’ (p.58) em relação aos gêneros, a começar
pela linguagem empregada no tratamento de ambos, na forma de
conduzir uma sala de aula, na atribuição de tarefas, nos elogios e
incentivos dados diferentemente à meninos e meninas no desempenho de
tarefas, na separação de disciplinas ‘para meninos e para as meninas’. Na
escola os corpos são domesticados; aprende-se a olhar, a falar, a calar,
se aprende a preferir de maneira diversa para meninos e meninas.
Enquanto os primeiros são incentivados a serem curiosos, pois isto é

34AZEREDO, S. Teorizando sobre gênero e relações raciais. Estudos Feministas.


Número especial, outubro 1994.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 209


‘natural’ para um menino, à meninas são exigidos cadernos e livros
impecavelmente organizados e limpos, além de terem inibidas suas
participações espontâneas. Afinal existem habilidades que os diferem. Em
antigos manuais docentes figuravam como mestres deveriam ter cuidados
com corpos e almas de seus alunos. As escolas femininas dedicavam
horas ao treino de habilidades manuais, produzindo jovens ‘prendadas’
para o casamento; os colégios militares exigiam uma postura ereta de
seus alunos, que mesmo de longe, ao observador era possível distinguir
um jovem cadete.

(...) permitindo, a partir de mínimos traços, de pequenos indícios, de um jeito de


andar ou falar – dizer, quase com segurança, que determinada jovem foi
normalista, que um rapaz cursou o colégio militar ou que um outro estudou num
seminário (p.62).

Não somente a linguagem adotada pelos professores, mas aquela


que é utilizada nos livros didáticos. Nestes os papéis femininos e
masculinos ‘reinam’ num mundo de estereótipos que atribuem sempre a
posição de liderança, intelectualidade e discernimento aos meninos e aos
homens. Cabe às mulheres e às meninas nos livros, o espaço doméstico,
o cuidado com as necessidades dos outros, a dedicação – abnegação
pela família e filhos, a invisibilidade quanto ao que faz, pensa ou sente. A
autora demonstra a necessidade de se ocupar desta análise, pois a
construção das diferenças se inscreve num plano político e nas relações
de poder:

A linguagem, as táticas de organização e de classificação, os distintos


procedimentos das disciplinas escolares são, todos, campos de um exercício
(desigual) de poder. Currículos, regulamentos, instrumentos de avaliação e
ordenamento dividem, hierarquizam, subordinam, legitimam ou desqualificam
sujeitos. (...) A prática escolar é historicamente contingente e é uma prática
política. (p.85).

Cabendo a nós interferir na continuidade dessas desigualdades,


sem contudo alimentar uma postura reducionista que pensa ser capaz
de modificar toda a sociedade a partir da escola, mas na adoção de
uma atitude vigilante e de capacidade para interferir nos jogos de
poder.
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Capítulo 4. O gênero da docência

Louro começa este capítulo com uma instigante pergunta sobre o


gênero da escola. Comenta que, se as instituições e práticas sociais são
atravessadas e constituídas pelos gêneros, elas não somente ‘fabricam’
como são ‘fabricadas’ por estes. ‘De certo modo poderíamos dizer que
essas instituições têm gênero, classe, raça. Sendo assim qual seria o
gênero da escola?’ (p.88) – pergunta a autora. Neste momento posiciona
duas correntes que se opõem entre si, pois enquanto a primeira defende
ser a escola um lugar de atuação de mulheres: o magistério, a ocupação,
a concepção da prática escolar que deve se parecer com as relações
familiares e com a ação das mulheres no lar, tudo é feito e modo a serem
os espaços ocupados pelas mulheres; o segundo grupo pensa diferente.
Este pensa ser a escola um lugar masculino, pois ali se lida com o
conhecimento, que foi historicamente produzido por homens. Ao
selecionarem alguns aspectos da cultura, para serem estudados de forma
institucionalizada, ao construírem um currículo sob a ótica masculina,
mesmo tendo as mulheres como os agentes do ensino, ainda assim a
escola preserva o gênero masculino:

não apenas porque as diferentes disciplinas escolares se construíram pela ótica


dos homens, mas porque a seleção, a produção e a transmissão dos
conhecimentos (os programas, os livros, as estatísticas, os mapas; as questões,
as hipóteses e os métodos de investigação ‘científicos’ e ‘válidos’, a linguagem e
a forma de apresentação dos saberes) são masculinos. (p.89)

No Brasil foram os jesuítas quem se ocuparam da educação de


meninos brancos do setor dominante, mas também da catequização dos
índios, tudo para a ‘formação de um católico exemplar’ (p.94). Como se
observa, uma educação feita e recebida por homens. Este modelo
masculino, tendo os jesuítas no exercício do ‘magistério –sacerdócio’, se
estende até o final do século XVIII. Após este período, precisamente em
meados do século XIX, irão acontecer mudanças sociais que permitirão a
participação de mulheres em sala de aula – uma vez como alunas e
posteriormente exercendo o magistério. O crescente acesso às salas de
aula pelas meninas/mulheres, defendiam a sua posição de educadora de

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 211


meninos e meninos, portanto seu papel social. Era preciso investir nessa
‘educadora inata’para que pudesse educar a sociedade.
Educá-la era pois, preciso, para que a sociedade não corresse
riscos na (de) formação de seus jovens e crianças. Com a chegada dos
imigrantes europeus, e com as transformações sociais ocorridas ao longo
do século XIX, novas concepções começaram a surgir na sociedade
brasileira, inclusive quanto à profissionalização das mulheres.
Naturalmente que esta profissão deveria ter os atributos conferidos
naturalmente às mulheres, tais como: a docilidade, a sensibilidade, o
cuidado, o amor, a abnegação, etc – para que pudesse ‘ser reconhecido
como uma profissão admissível ou conveniente’ (p.97).
É assim que o magistério começa o seu processo de feminização, e
com este, há a mudança em sua representação. As marcas religiosas da
profissão são mantidas, reiteradas por novos símbolos e discursos –de
entrega, amor, doação, devendo cada aluno ou aluna ser percebido/a
como seu próprio filho/a.

As escolas de formação docente enchem-se de moças, e esses cursos passam a


constituir seus currículos, normas e prática de acordo com as concepções
hegemônicas do feminino. Disciplinas como Psicologia, Puericultura e Higiene
constituem-se nos novos e prestigiados campos de conhecimento daquelas que
são agora as novas especialistas da educação e da infância (p.97).

Entender o que é representação, é compreender, de fato, que os


sujeito ou grupos sociais a que pertencem, produzem e constituem
discursos. Na verdade os sujeitos não apenas são espelhos que ‘refletem’
sua posição social, mas são constituintes desta. Mesmo não sendo uma
representação a realidade em si, importa mais o ‘sentido’que ela produz
em seu meio. Fica claro então que as representações se modificam em
função do tempo histórico e das relações de poder que se estabeleceram
no momento analisado. Por isso, as professoras foram concebidas, em
diversos momentos, como as ‘tias’ solteironas, a ‘professorinha’ –amável
e gentil, como as simpáticas normalistas; e os professores homens foram
apresentados como bondosos, sábios mestres, exemplos de cidadãos...
Em todas estas representações estão presentes formas específicas de
relações de poder que estavam em jogo no momento. Estas ‘relações de
poder’ nos apontam ‘quem utiliza o poder para representar o outro e quem

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 212


apenas é representado’ (p.102). É aqui que a autora retoma, o que
afirmara em seu primeiro momento (capítulo 1) ‘– das identidades de
gênero e aos modos como os sujeitos vão se construindo como
masculinos e femininos’ (p.103).
Apesar da representação da ‘tia’ nos remeter aos aspectos
familiares, à sensibilidade, carinho e dedicação, este afeto era ‘vigiado’ e
controlado pelas instituições e pela legislação nacional.

Todo um conjunto de normas vai inscrevendo as divisões escolares (e sociais)


entre os sujeitos: por idade, por posição na hierarquia escolar, por nível de
escolaridade, por gênero... A vigilância é constantemente exercida. Ela pode ser
renovada e transformada, mas ninguém dela escapa (p. 106).

Era em nome desta vigilância e dos ‘bons costumes’, e ainda da


constatação de uma sexualidade infantil precoce, que se apagam as
‘marcas’ distintivas da sexualidade feminina, na figura da professora.
Suas roupas e seus modos de ser deveriam se assexuados, assim como
sua vida pessoal discreta e reservada. ‘O casamento e, especialmente a
gravidez, sofriam uma espécie de censura’ (p.107), pois em nada deveria
ser revelado a presença de uma sexualidade ativa. Paradoxalmente esta
representação não pode evitar seu oposto: a fantasia de que, por detrás
da figura da ‘tia’ mal amada que consolava seu infortúnio –não ter se
casados e tidos filhos – no exercício do magistério; existiria uma ‘mulher
que vivia, às escondidas, uma intensa e proibida sexualidade (p.107). Não
sendo incomuns histórias e relatos de professoras em trocas amorosas
com seus alunos/alunas e outros adultos.
Louro finaliza este capítulo fazendo, contudo uma ressalva: de que
estas representações entram em competição com outras e que se
transformam historicamente falando.

Assim, dóceis professorinhas podem se tornar trabalhadoras da educação


sindicalizadas, aguerridas e de melhores salários, podem ir para praças públicas,
fazer greves, levantar bandeiras e gritar palavras de ordem (LOURO, 1997).
Construindo formas organizativas novas, professoras e professores passam a se
constituir diversamente, afastando-se, em parte, do caráter sacerdotal da
atividade e buscando dar a essa atividade uma marca mais política e
profissional.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 213


O que pretende dizer que, não há um único modelo estável e
coerente de identidade, porque não há ma única representação desse
sujeito, posto que este não seja apenas um professor/professora, mas um
homem/uma mulher cujas identidades pessoais aparecem, subjacentes à
suas representações profissionais.

Capítulo 5. Práticas educativas feministas

As agendas políticas e acadêmicas vêm se ocupando dos


processos escolares como formadores e reprodutores das desigualdades
sociais, e a atuação das feministas também se dá neste campo. Certas
feministas radicais, inclusive, defendem a volta do ensino separado por
gênero, por acreditarem ser as meninas ‘importunadas’ pela presença dos
meninos, responsáveis pela baixa auto-estima das meninas e por suas
medíocres performances. Estas feministas acreditam que as escolas
mistas reproduzem as relações patriarcais de dominação; mas também
não indicam como educar esses meninos /homens para ‘a transformação
atuais relações de gênero ou como mudar atitudes masculinas
preconceituosas em relação às mulheres’ (p.111). Estas formulações
pedagógicas, enfocadas ‘na ótica feminista apóiam-se no reconhecimento
das desigualdades vividas entre mulheres e meninas, em relação aos
meninos e homens, no interior das instituições escolares’ (p.112), e vêm
propor um conjunto de estratégias, procedimentos que rompam com esta
situação em sala de aula. A este conjunto de ações e concepção teórica,
denominou-se Pedagogia Feminista, que visa legitimar tanto o saber
acadêmico, quanto o saber pessoal daquelas que tradicionalmente
tiveram suas falas ‘condenadas ao silêncio’ (p.114). Espera-se que a
figura hierárquica e tradicional do professor/a seja substituída pela a de
alguém que também tem muito a aprender, e não somente ensinar. O
foco é a substituição do modelo tradicional de ensino-aprendizagem que
estimula a competição, pelo o modelo cooperativo de construção de um
saber coletivo apoiado na experiência de todos. Reconhece-se em tais
procedimentos a necessidade de se fortalecer a mulher e suas
experiências, para que tenham também direito ao poder, que está
polarizado em torno da figura masculina. Como é de costume, portanto,

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 214


Pedagogia Feminista encontra algumas críticas, centradas na perspectiva
pós-estruturalista, as quais é preciso responder.
A primeira delas é que este modelo pedagógico nega as relações e
poder que estão subjacentes ao próprio modelo, uma vez que, se
pretendem interferir na prática cotidiana em salas de aula, transformando-
as, o poder se institucionaliza, assegurando assim o seu exercício. A
própria figura da autoridade do professor/a, sendo este partidário ou não
deste modelo pedagógico, está imbuído de poder, ‘corporificando’ o
conhecimento e sendo, portanto, autorizado a ensinar. Não dá portanto,
para negar essa atribuição institucional, sob o risco de se despolitizar a
atuação docente em sala de aula.
‘A sala de aula feminista não pode ter conseguido banir as relações
de poder, simplesmente porque não há espaços sociais livres do exercício
do poder!’ (p.116), salienta em tom exclamativo, a autora.
A segunda crítica ao modelo, é conseqüência deste ‘faz de conta
que todos são iguais’, negando-se as diferenças e pretendendo-se que
todos os sujeitos, igualmente exercem o poder com a mesma intensidade,
dominando saberes que são igualmente legitimados e reconhecidos
socialmente.
Em terceiro lugar, se a idéia neste modelo de ‘dar poder’ a quem
não o tem, instala-se uma incoerência, pois se parte do pressuposto de
que uma professora – que não tem o poder por ser mulher – dará, às
meninas, poder. ‘Como, então, será possível ‘dar poder’ ou ‘fortalecer’ as
estudantes, se o sujeito que pretende articular essas ações é um sujeito
sem poder? (p.117) critica Louro.
Para a prática de uma educação não sexista, teóricos e educadores
–feministas ou não, devem levar em consideração que estamos todos
inseridos dentro desses jogos de poder.
As inúmeras transformações sociais, a presença maciça de
mulheres em sala de aula, a maior visibilidade dos homossexuais e
bissexuais, a imposição de discussões sobre sexo e sexualidade
sobretudo a partir do fenômeno da AIDS, trouxe transformações à
instituição escolar, e com ela aconteceram rupturas na continuidade de
determinados modelos. Os grupos de Estudos Culturais, de Estudos
Negros, Estudos Gays e Lésbicos também são responsáveis por estas

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 215


transformações, visando sobremaneira, a subversão da situação de
desigualdade em que vivem esses sujeitos.

As desigualdades só poderão ser percebidas – e desestabilizadas e subvertidas -


na medida em que estivermos atentas/os para suas formas de produção e
reprodução. Isso implica operar com base nas próprias experiências pessoais e
coletivas, mas também, necessariamente, operar com apoio nas análises e
construções teóricas que estão sendo realizadas (p.121).

Mesmo nas escolas, tanto gênero como sexualidade são sempre


abordados como temas –restritos a disciplinas, quase sempre de vistos
pela ótica do biológico. Pouco ou nada se fala do caráter social e cultural
das construções de gêneros. A disciplina Educação Sexual é ainda
polêmica, pois divide a opinião daqueles que acham que tratar de alguns
temas acaba por ferir e interferir na dinâmica e autonomia da família, que
é quem deve(ria) julgar adequado o momento para abordar determinados
assuntos; - como se a sexualidade não estivesse presente nas falas, nos
comentários entre os alunos e entre estes e os professores – e com
aqueles que pensam ser de fundamental importância a orientação sexual
‘adequada’ no âmbito escolar. Mesmo nesta última posição, a educação
acaba por se restringir aos aspectos biológicos da sexualidade humana,
que vê no sexo um perigo e uma ameaça, devendo este ser controlado e
postos sob restrições.
No Brasil, os intelectuais e militante gays e lésbicas, por sua vez
trazem transformações e mudanças na escola, problematizando a postura
tradicional que considera normal, por sua vez tida como condição natural,
a heterossexualidade. A questão de gênero e sexualidade nas escolas
trata um terreno muito ‘escorregadio’, por vezes condenada à fala baixa
nos corredores e ao tratamento ‘científico’ que é dada ao assunto, não
discutindo, por exemplo o papel do prazer na sexualidade humana, e as
outras formas não heterossexuais de conceber a sexualidade.
Esses formam o padrão de ‘normalidade’ que estão implícita ou
explicitamente nos manuais, nos discursos, nas políticas curriculares, nos
livros e materiais utilizados na escola, nas propostas e projetos de ensino
que, ao silenciarem para as outras possibilidades de relações afetivas e
sexuais - que não o modelo hegemônico heterossexual -, negam aos
sujeitos a sua condição de existência, silenciando-os e fazendo

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 216


supostamente de conta, que na escola ‘isso não existe’. ‘No entanto, a
ignorância sobre a homossexualidade é, seguramente, uma ignorância
sobre (...) a heterossexualidade’ (p.139).

Ao conceber a identidade heterossexual como normal e natural, nega-se que


toda e qualquer identidade (sexual, étnica, de classe ou e gênero) seja uma
construção social, que toda identidade esteja sempre em processo, portanto
nunca acabada (...) e que todos os sujeitos são constituídos socialmente, que a
diferença (seja ela qual for) é uma construção feita –sempre – a partir de um
dado lugar (que se toma norma ou como cento) (p. 140-141).

Louro salienta a necessidade que temos, de questionar sempre,


‘não apenas o que ensinamos, mas o modo como ensinamos e os
sentidos que os/as nossos/a alunos/as dão ao que aprendem’ (p.137),
dizendo que a norma deve ser sempre discutida, que devemos duvidar do
que se impõe como ‘natural’. Reconhece que tal posicionamento é
mobilizador, e que requer disponibilidade interna para a busca de
informações, para a troca de idéias e sobretudo disposição para ‘ouvir
aqueles e aquelas que, historicamente e socialmente, foram instituídos
como ‘outros’ (p.141).

Capítulo 6. Uma epistemologia feminista

A autora inicia este capítulo, que na verdade é o último a discutir


suas idéias, com uma pergunta –afinal o que significa ser, hoje, feminista?
(p.142). Discute então o papel androcêntrico das ciências, da história, das
artes, que sempre foi pensada, conduzida e instituída a partir da visão dos
homens, cujas vozes deveriam representar toda a humanidade. Isso nos
mostra que, ‘nenhuma ciência é desinteressada ou neutra’ (p. 143). Ser
feminista, hoje, é dar voz às que foram silenciadas, resgatando a
presença feminina na ciências, nas artes, na história. ‘A pesquisa
feminista é, então assumidamente, uma pesquisa interessada e
comprometida, ela fala a partir de um dado lugar’ (p.143), ela possui ‘um
caráter de desafio à ciência ‘normal’, uma disposição intrínseca para o
questionamento e a instabilidade’ (p.144). Definitivamente assumir uma
postura feminista, é lidar com as instabilidades teórico- metodológicas
propostas por muitas/os estudiosos/as. Não há uma única categoria de

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 217


análise, tão pouco um único método –‘é movimentar-se em meio a uma
campo teórico que está em contínua construção, que acolhe a crítica
como parte de sua construção’ (p.145), estando e jogo, a busca por um
novo modelo epistemológico de ser pesquisador/a.
Inicialmente os Estudos Feministas tinham o interesse de tomar a
mulher como sujeito/objeto de estudos, ‘uma vez que seus relatos
estavam freqüentemente ocultados e marginalizados na produção
científica tradicional e racional, que excluía o desejo, a empatia,
afetividade, sentimentos (...) compreendidos como manifestações
irracionais e, portanto inferiores’ (SORJ 35, 1992, p.19 apud LOURO,
1997, p.148). Esses atributos ‘inferiores’ se associavam às mulheres. Os
Estudos Feministas vêm propor pesquisas originais, utilizando fontes
antes desprezadas, pensando a cultura, a arte, a linguagem, redefinindo o
político, sugerindo mudanças na ‘natureza’, compreendendo as relações
entre ‘a subjetividade e a sociedade entre os sujeitos e as instituições
sociais’ (p.148).
É o caminho inverso que propõe os Estudos Feministas; que tanto
os propósitos da pesquisa, como a análise desta dependem de quem a
problematiza, estando o investigador/a da pesquisa no mesmo plano de
análise do investigado, não sendo mais um ‘anônimo’, mas tendo sua voz
reconhecida, sendo uma figura real, com história, desejos e interesses.
Por esta forma de lidar com este novo paradigma científico, os
comportamentos, as crenças e as atitudes e as representações do
pesquisador/a feminista interferem nos resultados das pesquisas.

Abandona-se uma pretensão de objetividade, que apenas esconderia ou


invisibilizaria a parcialidade sempre insinuada nas análises. Ao invés disso, as
características da investigadora (ou do investigador) passam a ser tomadas
como ‘parte da evidência empírica, elas fazem parte da análise, são
consideradas relevantes e põem ajudar a ampliar a compreensão do problema
(p. 154).

Diminuindo o ‘objetivismo’ na pesquisa, ao introduzir o subjetivo,


ganhando-se portanto, paradoxalmente em objetividade. Estes são os

35SORJ, B. O feminismo na encruzilhada da modernidade e pós-modernidade. In: Costa,


A. e Bruschini, C. (orgs.) Uma questão de gênero. Rio de janeiro e São Paulo: Rosa dos
Ventos e Fundação Carlos Chagas, 1992.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 218


desafios epistemológicos que enfrentam os Estudos Feministas – ao
preconizarem que o fenômeno a ser investigado tem seus resultados
afetados por que investiga. Os Estudos Feministas têm introduzido novas
fontes de pesquisa como diários, cartas, fotos, depoimentos orais;
utilizando-se de novos procedimentos de investigação, tais como
entrevistas coletivas, dramatizações, diários de grupo, etc. Por isto tudo,
muitas tensões e alianças têm sido feito em torno dos Estudos
Feministas. Os questionamentos colocados pelas mulheres negras e as
lésbicas, provocaram rupturas, auto-críticas e revisões dentro do próprio
movimento, que se dividiu em outros agrupamentos dedicados aos
estudos e análise das ‘histórias e interesses daquelas que se viam
esquecidas pela teorização dominante’ (p.156). Não é possível, pois, um
único olhar sobre as relações de gênero, que não cruze com as
categorias classe social, sexualidade, etnia, raça, credo, momento
histórico, nacionalidade, etc, como também os estudos passam a
‘incorporar explicitamente em suas análises os homens e a produção
social das masculinidades’ (p.157), na compreensão de como estas
diferenças são construídas e socialmente valorizadas ou negadas.
Finalizando o capítulo, alerta aos homens e mulheres feministas
que se atentem para as relações de poder que estão presentes em várias
dinâmicas sociais, e conclama-os para que não fujam dos debates ou das
possíveis tensões teóricas que possam surgir, pois estes podem significar
em diferentes modos de análise e intervenção social ‘talvez capazes de
alterar, de forma mais efetiva, as complexas relações sociais de poder’
(p.159).

Capítulo 7. Para saber mais: revistas, filmes, sites, livros...

Na verdade, neste último capítulo a autora indica alguns nomes de


revistas, sites, e outros tipos de publicações que tratam do tema gênero,
tanto no Brasil, como no exterior. Não pretende ser uma coletânea, tão
pouco um guia, apenas indicações de alguns recursos utilizados pela
autora.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 219


Metodologia da autoria

A obra apresenta como procedimento metodológico, importantes


contribuições históricas a respeito do tema gênero e educação, valendo-
se da perspectiva pós-estruturalista para conceber uma prática de ensino
que seja capaz de superar o dualismo presente nas representações de
gênero, sendo que o novo modelo pedagógico deve ser capaz de incluir
todas as categorias que representam ou onde se inserem os sujeitos.

Quadro de referência

A obra baseia-se na perspectiva do pós-estruturalismo, que


defende que, os saberes que se instituem enquanto verdadeiros, estão
relacionados a relações de poder particulares, a práticas cotidianas, a
instituições, que representam a instrumentalização do poder associado
aos saberes que legitimam aquelas práticas. Esses saberes fazem parte
da tradição e da norma, que se relaciona indubitavelmente ao
conhecimento gerado e registrado, na história oficial, pelos sujeitos
masculinos, brancos, das classes dominantes e heterossexuais.

Comentários sobre a obra

A obra apresenta-se de maneira envolvente e coerente, iniciando o


tema – gênero e educação – a partir do aparecimento do conceito de
gênero. Isso situa o leitor historicamente, inclusive o leigo, que passa a ter
uma visão de quando e de que maneira surgiram os primeiros estudos e
terias que tratavam a questão das diferenças entre o mundo masculino e
o mundo feminino.
A autora adverte sobre as dificuldades de lidar com as questões
metodológicas e teóricas que não se ‘fecharam’ sobre o assunto,
lembrando-nos da necessidade de se manter um diálogo constante com
as vozes não dominantes existentes dentro do próprio movimento
feminista. Os Estudos Feministas devem encarar tais proposições e
desafios, acolhendo e ouvindo o relato e as experiências destas mulheres
e destes homens, sob o risco de também reproduzirem internamente o
modelo dominante patriarcal e masculino, lugar da dominação.

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 220


O mérito da obra é apontar a educação como o único caminho,
talvez, possível de lidar com tantas diferenças dentro de um mesmo
grupo. Educar para as diferenças. Compreender que somos todos
diferentes, que temos experiências compartilhadas, mas somos
portadores de uma subjetividade que nos torna únicos. Partir de uma
educação não-sexista, não-racista, é oferecer a meninos e meninas, a
homens e mulheres a oportunidade de se (re)verem, refletidos como
sujeitos portadores de uma identidade – de gênero, raça, credo,
nacionalidade, costumes – e não reduzidos a meros contrapontos
daqueles que sempre ‘fizeram a história’ oficial. Esta visão perniciosa das
diferenças, ao longo de séculos e séculos de dominação patriarcal, tratou
de esconder a magnitude, a amplitude das diferenças existentes entre os
sujeitos, transformando-as em desigualdades. É então que a diferença,
vista como a desigualdade, é justificada. É apelando-se para o fato das
relações de poder que subsistem nas relações de gênero, que os Estudos
Feministas apelam e orientam, no sentido de não apenas denunciar
pequenos gestos cotidianos impregnados dessa visão sexista e
preconceituosa, como buscando orientar e educar, meninos e meninas
para uma educação não-sexista, não-racista, para que sejam capazes de
incluir e aceitar todos aqueles/as que não sejam feitos ‘à imagem e
semelhança’ do padrão masculino dominante.
É na família que se encenam a primeira representação do
masculino/feminino, e com esta todos os estereótipos, que são
construídos socialmente falando. Mas sabemos também, que a família
não é formada apenas de seus membros atuais – reflete a educação, o
olhar e o superego de seus ancestrais formadores – o que torna algumas
atitudes, no sentido de reverter o quadro dos estereótipos e das
representações que aprisionam meninas/os e homens/mulheres, uma
‘missão arriscada’ e árdua. Simplesmente porque o fator socialização –
que é o modo como somos educados em família, no social, com todas as
representações – frutos da construção humana – não ‘anda’ para trás, ou
seja, as representações e imagens assumidas e vivenciadas ao longo de
um processo existencial, não podem ser desconstruídas de uma hora
para outra. O que é possível de se fazer, neste caso, seja talvez, mostrar-
lhes que existem outras formas de ser e estar no mundo. Portanto, apesar
da família ser palco para mudanças sociais, ela se encontra presa aos

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 221


seus próprios modelos, construídos ao longo de sua existência, o que
torna a ‘missão’ de uma educação não-sexista, em parte, limitada. Mas
não é por isto que educadores, intelectuais e estudiosos do assunto
devem cruzar os braços e se darem como vencidos.
Neste âmbito, acredito que a obra contribui para a prática de outros
profissionais que lidam com o social, com famílias, por exemplo, não
sendo necessariamente professores, mas educadores, pois de vários
lugares – e não somente da escola, se educa, se orienta. Ao apontar a
necessidade de se dialogar com essas famílias e com as diversas
representações que nela se encerram, vislumbra-se a possibilidade de um
trabalho de orientação familiar, e até mesmo preventivo, para que os
familiares possam vir a compreender e aceitar, por exemplo, a orientação
sexual de um de seus membros que possa ser diferente dos demais.
Creio que todos que lidamos com/em instituições, quer sejam ou não o
espaço escolar, temos a educação como premissa para a construção de
um novo modelo social, que tangencia o novo modelo pedagógico. A
educação está também, desta forma presentificada no gesto, na
transmissão de saberes, na partilha, na orientação, na escuta. Para isto, o
educador – que pode ser qualquer um de nós – transcende a figura do/a
professor/a.
Reconheço que lugar privilegiado de transformações, quando o
assunto é educar para a inclusão, educar para e na diferença, é na
escola. É na escola que se pretende que esses alunos sendo os
legisladores, os formadores de opinião, os educadores do futuro, possam
prever, em suas pautas de ação, e modelos de atuação, abertura
suficiente para que levem em consideração as atitudes e reivindicações
desses ‘outros’, que esperamos não mais assim sejam vistos, se a
educação não-sexista, não-racista e não-segregacionista for abolida. A
escola, como uma representante micro-social do que se passa no macro-
social, deverá passar por ‘reformas’, que não dizem respeito aos recursos
físicos, mas sim a reformas em seu método, currículo, planejamento e
principalmente em seus recursos humanos. Educar os docentes para que
sejam capazes de educar os alunos. Docentes impregnados da ideologia
tradicional. Não dá mais para ‘deixar de fora’ a experiência, a vivência, a
concepção de mundo, dos diversos grupos sociais que formam a
sociedade como um todo. Ela não é somente composta pelo padrão

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 222


masculino, branco e heterossexual, mas por diversas combinações que
incluem outras tantas, inclusive o próprio arranjo familiar, que não é
necessariamente mais a família nuclear, composta de pai, mãe e filhos. A
família se expandiu, cresceu, modificou e transformou seus horizontes, e
não dá para adotar um único modelo, sob o risco de relegar boa parte do
alunado, à falta de um referencial familiar onde caiba o modelo da sua
família. A educação almejada deve incluir as experiências e o modus
vivendi de uma maior possível, gama de sujeitos. Em sala de aula estes
sujeitos devem ter voz, subvertendo essa condição de discriminação e
preconceito.
O nosso trabalho é de estarmos atentos, às novas e sutis formas de
dominação que se inscrevem nas relações entre as pessoas, mantendo-
se a antiga disposição dominante em seu lugar pretendido. Para isto,
devemos nos atentar sobretudo para as ‘manobras’ que a mídia, as leis,
as religiões e outras instituições fazem, no intuito de manterem a tradição,
o convencional, no topo da hierarquia do poder. Estas correntes
tradicionalistas e fundamentalistas, preconizam em atitudes dogmáticas,
tanto de cunho doutrinário, como moralista, uma volta às origens – onde o
homem (padrão dominante) tome a frente dos negócios, seja ‘o cabeça’
da família, o senhor absoluto, e onde tudo e todos gravitem ao seu redor.
Apontam em seus discursos, institucionalizados ou não, a derrocada dos
bons-costumes, da família (naturalmente a nuclear, visto ser a única
aceita por eles), e da moral. Não obstante culpam as mulheres, os gays e
todos os demais que simpatizaram com suas causas, por todos os
infortúnios existentes – de guerras, à instabilidade econômica, à crescente
violência, ao clima de desconfiança e competitividade de hoje, etc. Esses
‘fundamentalistas e ortodoxos’ quer sejam estes personificados nos
discursos legais, religiosos, ou de grupos isolados, têm um poder que não
se pode subestimado.
É portanto a educação a única ferramenta disponível e possível
para formar cidadãos críticos, conscientes, e sãos, e que respondam
sobre si e suas escolhas, não mais se permitindo ser massa de manobra
ou ‘marionetes’, servindo aos interesses de alguns, a despeito do
interesse da maioria. A possibilidade de resistir ao padrão dominante,
hegemônico é, segundo Foucault (1988), uma forma de exercer o poder –
a quem o poder não lhes foi legitimado. O exercício da resistência, que é

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em si um ato transgressor e subversivo, é a possibilidade desses grupos
fora do ‘convencional’, não se anularem. Isto requer uma enorme dose de
paciência, ousadia, coragem e determinação para enfrentar àqueles que
não podem admitir um mundo de outra forma, que não as suas próprias.
Somente a educação não-sexista, não-racista e não-segregacionista é
capaz de trazer as mudanças sociais que tanto queremos e apreciamos.
Através da educação se vislumbram possibilidades, inclusive a de que,
parafraseando Martin Luther King – um dia possamos ser avaliados e
julgados, não pela cor de nossas peles, nem pelas nossas diferenças,
nem pelo exercício de nossa sexualidade – mas pelo caráter, coragem e
ousadia de sonhar e lutar por uma sociedade, onde a mulher e o homem
sejam a medida de todas as coisas.

Indicações da obra

A obra é dirigida a estudantes em geral, especialistas e


profissionais que se interessam pelo tema relações de gênero e
educação, e sobre as implicações deste no âmbito social e da
subjetividade. Ela fornece subsídios para todas disciplinas ligadas a
Educação, ao estudo do comportamento dos indivíduos (individual e
social), e aos aspectos históricos e culturais da construção das
representações sociais de gênero. (História, Psicologia, Pedagogia,
Serviço Social, Ciências Humanas e Ciências Sociais)

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 203-224, 2002 224


ÍNDICE DE ASSUNTOS

Adolescente, p.115
Clamor Geral, p.93
Comunidade, p.171
Consolidação Espacial, p.33
Contexto Social, p.19
Democracia, p.171
Desenvolvimento Comunitário, p.51
Desigualdades Regionais, p.179
Estágio de Docência, p.71
Estudo Exploratório, p.179
Ética, p.93
Festa, p.129
Formação Profissional, p.71
Gestão, p.51
Humanização, p.105
Imagens do Urbano, p.129
Instrumentalidade, p.19
Inter-Ações, p.151
Interindustriais, p.179
Liberdade, p.157
Organização Empresarial, p.105
Paradigma, p.105
Paternidade, p.115
Pesquisa Qualitativa, p.9
Poder Local, p.171
Política de Saúde, p.81
Populacional, p.33
Reprodução Humana, p.115
Salários, p.179
Serviço Social, p.19, 151
Sócio-Educativa, p.157
Trabalho, p.129

Serviço Social & Realidade, Franca, 11(2): 225-226, 2002 225

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