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OS

DIÁRIOS DE
LADY CHARLOTTE

Os Mistérios das Irmãs Morgan


Livro I

VANESSA R. R. HART
Copyright © 2018 by Vanessa Hart

Tradução: Hugo Teixeira

Revisão: L&F Edições

Edição: L&F Edições

Arte de Capa: Gisely Fernandes

Reservados todos os direitos desta produção


Prólogo
Julho, 1816

Palavras podem salvar ou matar. Fazer alguém sorrir ou chorar.


No caso de Charlotte, as palavras que ela leu naquela manhã quase fizeram
seu jovem coração parar de funcionar; o choque foi tamanho que ela quebrou
uma das xícaras de porcelana favoritas de sua mãe, e escondeu a prova de sua
grave falha sob a poltrona da sala íntima.

Deixou a casa principal de Gregory House às pressas, ignorando os


chamados de sua irmã Alice. Precisava encontrar o quanto antes o proprietário
daquelas terras, Sir Frederick Morgan, seu irmão mais velho. Apenas ele poderia
ajudá-la.

Correu até a cabana que ficava do outro lado do bosque, nos limites da
propriedade, ignorando o calor do verão de Kent. Entrou sem se preocupar em
anunciar-se antes. Decerto, a gravidade de sua carta exigia medidas extremas,
como desconsiderar por completo as boas maneiras.

Em geral, Charlotte classificava os eventos da sua vida de três formas:


entediantes, urgentes ou casos de vida ou morte. Nove em cada dez eventos
faziam parte das últimas duas categorias, de acordo com o seu julgamento; via
de regra, eram entediantes as ocasiões em que cavalheiros tentavam cortejá-la.
Aquela carta era definitivamente caso de vida ou morte.

— Frederick! Frederick, preciso de ajuda! — ela gritou, procurando-o.

A cabana não era grande; era dividida em apenas três espaços. A parte da
frente era um cômodo que acomodava a sala de estar, a minúscula cozinha e uma
pequena mesa para as refeições, onde mal cabiam quatro pessoas. Na parte de
trás da construção, havia uma sala de banho do lado esquerdo e, do lado direito,
um quarto simples com uma cama de casal.

Charlotte não precisava de muito esforço para adivinhar em que cômodo seu
irmão estaria com sua nova esposa, Tessa. Ela apenas não entendia por que eles
insistiam em fugir para a cabana quando queriam compartilhar intimidades de
marido e mulher. Ninguém os incomodava na casa principal; no máximo, os
ouviam do outro lado da porta.

Encontrou-os precisamente onde esperava, na cama velha que rangia, apenas


um fino lençol branco de linho cobrindo-os. Ela fingiu não notar, mas o tecido
era quase transparente, e bastante revelador.

— O que diabos está fazendo aqui? — seu irmão questionou, olhando-a


como se fosse uma louca.

Como Charlotte detestava precisar explicar o óbvio!

— Vim ver vocês, claro — ela fez questão de revirar os olhos depois de
anunciar, irritadíssima com a questão estúpida do irmão.

— Como sabia que estávamos aqui?

Oh, céus! Cá estava ela, prestes a desmaiar por conta da péssima notícia que
recebera, e seu irmão estava preocupado com os detalhes mais tolos e as
informações mais óbvias!

Ela inspirou fundo, lembrando que viera para pedir um favor ao irmão e,
portanto, não poderia simplesmente jogar uma cadeira contra sua cabeça, ou ele
ficaria de mau humor. E Frederick não cooperava muito quando estava com um
de seus humores.

— Todos sabem que vocês vêm para a cabana quando precisam de distância
de mamãe — ela revirou os olhos novamente.

Tessa, que ficara com uma expressão de choque que espelhava a do marido
quando a cunhada adentrou o cômodo, agora juntava todas as suas forças para
não gargalhar. Charlotte não entendeu o que ela poderia achar de tão engraçado,
porém, a moça sempre foi um pouco excêntrica.

— Não é só de mamãe que quero distância — o irmão respondeu,


entredentes.

Céus, como ele poderia ser tão grosseiro, quando ela estava sendo o mais
delicada possível a respeito da situação? Ela simplesmente não entendia o que
uma mulher tão adorável como Tessa poderia ver num grosseirão que vivia de
mau-humor. Ele sempre parecia irritado quando estava perto de Charlotte.

— Fred, preciso de ajuda! — ela implorou desesperadamente. — Ele me


enviou uma carta!

— Ele quem? — uma linha formou-se entre as sobrancelhas negras do


irmão.

Finalmente! Frederick não perdera a carranca, porém, ao menos, estava


agora preocupado com ela.

— Sabe muito bem quem! — ela bateu o pé no chão uma vez, como fazia
quando era criança e não lhe davam o brinquedo que ela queria. — Ele me
ameaçou, Fred!

Frederick passou os dedos pelos cabelos desarrumados, e fechou os olhos.

— O que ele quer que você faça? — ele apertou a ponte do nariz, tentando
espantar uma dor de cabeça que começava a assentar-se.

— Precisamos ir vê-lo! O quanto antes! Ou ele me destruirá!

— Quem é ele? — Tessa questionou, sem segurar a curiosidade.

Já era ruim o bastante que Frederick soubesse de seu segredo; nenhuma outra
pessoa poderia descobri-lo. Infelizmente, desde que se casaram no ano anterior,
Frederick e Tessa eram praticamente inseparáveis. Ainda assim, Charlotte
evitaria ao máximo que a nova cunhada soubesse da verdade.

Ela confiava em Tessa, e aprendera a amá-la com uma irmã. Entretanto, não
queria que ela também carregasse aquele fardo, já que era uma atividade
bastante complexa a de enganar Lady Morgan.

— Ninguém! — Charlotte respondeu, fazendo a cunhada sorrir.


— E onde exatamente ninguém vive? — uma das sobrancelhas de Tessa
arqueou-se, e Charlotte notou a ironia em seu tom.

— Bem próximo a Crawford Hall, na realidade. Eu até o vi quando visitamos


a Escócia da última vez.

Claro que ela não explicou em que circunstâncias havia conhecido


pessoalmente o homem com a capacidade de destruí-la. Se Frederick já estava
irritado sem qualquer motivo razoável, imagine se soubesse como ela se
comportara naquela ocasião!

— Podemos levá-la conosco a Crawford Hall — Tessa sugeriu ao marido.

Crawford Hall era a propriedade escocesa de Lorde Henry Hamilton, pai de


Tessa. Como condição para aceitar a proposta de casamento de Frederick, Tessa
exigira que se hospedassem durante pelo menos um mês por ano com os pais.
Eles deixariam Gregory House naquela mesma semana.

— De jeito nenhum — Frederick balançou a cabeça enfaticamente. — Da


última vez que ela foi comigo, mamãe passou uns bons três meses reclamando
que eu não havia trazido um noivo para Lotty.

E ele preferia lidar com as reclamações da irmã por não poder se juntar a eles
do que com as bengaladas de Lady Morgan se Charlotte retornasse à Inglaterra
solteira outra vez.

— Pois ela passou seis meses queixando-se no meu ouvido, Fred —


Charlotte rebateu, aproximando-se da cama. — Por favor, preciso ir.

— Precisa é de uma boa justificativa para mamãe deixá-la ir à Escócia de


novo, Lotty.

Seu irmão era muito inteligente (para um homem), mas fazia os comentários
mais estúpidos às vezes.

— Para isso que eu preciso de vocês, Fred! Vocês me auxiliarão com a


justificativa.

— Imagino que já tenha um plano — a irmã acenou animadamente em


concordância. — Tudo bem, então. Poderia por favor nos deixar a sós para que
nos vistamos? Conversamos depois.

Aquilo fez Charlotte irritar-se de novo.

— Ai, quanta frescura... — ela colocou os punhos fechados na cintura. — Eu


tenho tudo o que Tessa tem. E já o vi sem roupa várias vezes.

— Quando?

Frederick cometeu o erro de perguntar, ao invés de expulsá-la de vez da


cabana, como deveria ter feito desde o início. Por outro lado, ele sabia que
Charlotte podia ser bastante persuasiva para conseguir o que desejava,
especialmente quando ele estava em uma posição de vulnerabilidade. Todas as
Morgan eram assim; nada ficava no caminho entre elas e seu objetivo.

— Vejo você sem roupa desde que seu negocinho era desse tamaninho.

Ela demonstrou o tamanho com o indicador e o polegar, praticamente


juntando os dois, o que era uma ofensa direta à masculinidade de Frederick, e
logo na frente de sua jovem esposa!

Se Charlotte fosse um homem, mesmo que seu irmão, ele a chamaria para
um duelo. Seu rosto adquiriu um tom avermelhado, um misto de raiva e
humilhação.

— Não chame as minhas partes íntimas de negocinho, Charlotte — ele


agarrou o lençol, fingindo ser o pescoço delicado da irmã.

Charlotte riu do próprio comentário, ignorando-o por completo, dirigindo-se


à sua esposa:

— Ele tinha a mania de correr pelado pelo jardim para fugir do banho.

— Danadinho! — Tessa riu sem pudores, aumentando a cólera de Frederick.

— Charlotte... — ele avisou.

— Sacudindo a coisinha dele de um lado para o outro — ela continuou a


ignorá-lo solenemente, demonstrando o movimento com o dedo mindinho.
— Já pedi que não chamasse minhas partes íntimas assim! — ele berrou,
colocando o punho para cima.

— Pediu que não as chamasse de negocinho — ela teve a ousadia de corrigi-


lo.

— Poderia parar de usar termos no diminutivo para se referir às minhas


partes íntimas? Maldição do inferno!

Charlotte ficou séria de repente, colocando a mão sobre o peito, parecendo


verdadeiramente ofendida.

— Nossa, você está tão estressado, Fred... Acho que precisa de mais tempo
na cabana com a sua esposa. Boa sorte, Tessa — ela disse, e retirou-se.

***
UM ANO E MEIO ANTES
Janeiro, 1815
Capítulo 1
CHARLOTTE

Minha estadia na propriedade escocesa dos Hamilton estava chegando ao fim.


Ainda havia algumas pontas soltas, alguns problemas a resolver, o principal
deles a vida romântica de meu irmão. Ele viera noivo de uma filha de Lorde
Henry Hamilton, o melhor amigo do nosso pai, mas havia se apaixonado pela
outra.

E eu estava fazendo de tudo para que ele se casasse com a certa.

Eu sabia que não ficaríamos ali muito mais tempo, talvez em uma semana ou
duas deixaríamos Crawford Hall para retornarmos à Inglaterra. Até lá, era
melhor que ele tivesse resolvido as coisas. Senão eu as resolveria para ele. Às
vezes, um empurrãozinho não bastava para as pessoas fazerem a coisa certa.
Nesses casos, elas precisavam ser atropeladas mesmo.

Estranho que agora, quando a viagem estava terminando, começava a sentir


falta de algumas coisas dali. Por isso, naquela tarde, decidi passear pelos
bosques, uma vez que o gelo já havia derretido e, apesar da chuva de dias antes,
os caminhos não estavam escorregadios.

Quem sabe, conseguiria ir até a propriedade vizinha, Rosebery Hill, onde


Lorde Richard Devon vivia? Eu não conhecia o homem pessoalmente, e ele
sequer sabia da minha identidade, apesar dele ser uma das pessoas mais
importantes da minha vida.

Tudo começou quando eu tinha dezessete anos. Estava caminhando pela


praia de Bath com minha mãe e minhas irmãs, em uma manhã quente de verão,
quando senti algo sob meu sapato. Inicialmente, achei que se tratasse de uma
concha; ao me agachar para pegar o objeto, notei que brilhava.
Era um broche muito elegante, incrustrado com diamantes e rubis, no
formato de um ramalhete. Assim que minha pele o tocou, uma história
magicamente apareceu em minha mente. Era como se eu conseguisse ver a dona
do broche, como ela havia se apaixonado pelo cavalheiro que o dera de presente
para ela, como eles haviam sofrido para conseguirem ficar juntos, e como
haviam, finalmente, conseguido construir uma vida como marido e mulher.

Emocionada e ansiosa com aquela onda de criatividade, retornei correndo à


casa que havíamos alugado, ignorando a bronca de mamãe, não atendendo aos
chamados das minhas irmãs. Eu precisava escrever aquela história. Ao adentrar a
casa, dei-me conta de que não sabia onde poderia arranjar papel.

Meus diários, lembrei-me. Sempre viajava com pelo menos dois ou três
deles, pois adorava registrar diariamente todos os passeios que fazia. Ao invés de
escrever sobre minhas aventuras em Bath, contudo, eu preenchi as páginas com a
bela história que havia imaginado para o broche.

Foi assim que, em menos de uma semana, eu escrevi meu primeiro romance.
Quando eu o finalizei, veio a dúvida: o que fazer agora? Mamãe jamais
permitiria que eu publicasse um livro, e eu sabia que, mesmo que conseguisse
publicá-lo, não poderia usar o meu nome. Para piorar, não conhecia ninguém do
ramo literário.

De repente, veio a ideia: Frederick. Meu irmão mais velho comentara


comigo a respeito de um jovem escocês que conhecera naquela primavera. O
rapaz era vizinho dos Hamilton. Segundo ele, o cavalheiro era apaixonado por
livros, e havia usado parte de sua herança para fundar uma editora, que crescia a
um ritmo impressionante.

Isso, porém, teria um alto custo; eu dependeria da confiança e boa vontade


do meu irmão, duas coisas que não me agradavam nem um pouco. Por sorte,
Frederick ficou tão impressionado com a minha escrita, e com a rapidez com a
qual eu terminara o romance, que imediatamente se propôs a enviá-lo a Lorde
Richard Devon, o tal cavalheiro que ele conhecera na Escócia.

— Por favor, não me identifique! — eu havia dito na ocasião.

— Que nome quer usar? — ele havia perguntado, já adivinhando minhas


razões para não querer usar o nome dos Morgan.
A primeira delas era que eu queria continuar viva, estado em que não me
manteria por muito tempo se mamãe descobrisse o que eu estava prestes a fazer.

— Lady M. — enfim respondi.

— Fará muito sucesso, Lady M. — ele replicou, sorrindo.

No fim das contas, Frederick tinha razão. Meu livro não vendera muito de
início, porém, ao longo dos anos, meus romances foram ficando mais
conhecidos, a ponto de eu juntar um montante considerável com suas vendas.

A fim de evitar a curiosidade de Alice ou a desconfiança de mamãe, eu


simplesmente continuei a usar meus diários para escrever romances, muitos com
tantos mistérios quanto Lady M.

Na realidade, ser uma autora anônima era emocionante; nada me dava mais
prazer do que ouvir damas falando do meu livro nos salões de baile ou nas salas
íntimas, sem imaginarem que a criadora daqueles títulos estava ali mesmo, ao
seu lado.

Porém, assim como a minha identidade era um mistério para as minhas


leitoras, o meu editor também o era para mim. Eu sabia qual era o seu nome, seu
título, sua propriedade. Entretanto, jamais vira o homem em Londres ou em
Crawford Hall, pois, segundo Frederick, ele preservava sua privacidade, e eram
poucas as ocasiões em que deixava Rosebery Hill.

Enquanto eu cavalgava lentamente pelos bosques de Crawford Hall, tomei a


decisão; tinha que ver a propriedade de Lorde Devon com meus próprios olhos
enquanto estava na Escócia. Se tivesse sorte, também daria uma espiada em seu
proprietário.

Mal sabia eu que conhecer Lorde Devon não seria exatamente uma situação
de sorte...

***

Usei a estrada que Frederick havia me indicado uma vez como aquela que
daria acesso a Rosebery Hill. Segundo meu irmão, o trajeto até a casa principal
levava por volta de meia hora. Imaginei que eu precisaria de pelo menos um
quarto de hora a mais que o normal, pois cavalgava bem devagar, evitando
trechos lamacentos ou com poças.

Estava em uma ladeira que, apesar de ter um abismo de um lado, era tão
larga que não me deixava nem um pouco temerosa em subi-la sozinha. Na
metade do declive, notei algo brilhando no solo. Desci do cavalo, a fim de
verificar o que era, quando identifiquei um velho medalhão de ouro.

O amarelo da joia estava gasto, escurecido, como se estivesse ali havia muito
tempo. Considerei a hipótese da chuva ter tirado a terra que se acumulara sobre a
joia. Estava bem na beira da estrada, perto do abismo. Juntei minha coragem e a
peguei.

Queria passar algum tempo explorando-a, porém, fui interrompida pelo som
de cascos de cavalo se aproximando, e a guardei no bolso do vestido.

Quem quer que estivesse cavalgando em minha direção, vinha de Rosebery


Hill, e saberia que eu estava trespassando propriedade privada.

Montei o cavalo o mais rápido que pude; ainda assim, não consegui fugir
antes de ser notada.

— O que faz aqui? — Uma voz disse atrás de mim. Uma voz profunda e
bastante fria. — A senhorita está em Rosebery Hill.

Pensei em um ensinamento de mamãe; quando uma dama é pega fazendo


algo que não deveria, deve agir como se não houvesse nada de errado. Afinal de
contas, damas deviam ser ingênuas. Então, se elas falhavam, era por simples
desconhecimento.

— Ah, sim? Não sabia... Estou um pouco perdida — disse no meu melhor
tom de inocência.

Virei o cavalo para poder encará-lo, mas o rosto do homem estava escondido
pela sombra de seu chapéu. Eu usava a capa vermelha de Tessa, porém, havia
retirado o capuz, e meu rosto estava exposto. Se não tivesse sido tão estúpida,
talvez o estranho sequer me questionasse, acreditando que se tratava de sua
vizinha.

— Há uma placa avisando, senhorita — o tom dele indicava que, ao


contrário da maior parte dos cavalheiros com os quais eu havia cruzado ao longo
da vida, ele não acreditava que eu era uma dama tola.

— Não vi. Deve ter caído na nevasca.

Já que não podia ver seu rosto, analisei o que me restava; seu corpo. O
homem, apesar de grosseiro, tinha roupas bastante elegantes, que vestiam muito
bem seus ombros largos e longas pernas. Estranhei o fato de seus calcanhares
estarem presos à sela; contudo, foram suas grandes mãos que mais prenderam a
minha atenção.

O homem limpou a garganta, exigindo que meus olhos retornassem ao seu


rosto, que eu ainda não conseguia ver.

— Há também dois portões, um deles de ferro, antes de chegar aqui — ele


anunciou. Por que não podia ser um bom cavalheiro e simplesmente fingir que
acreditava em minha mentira? Oh, céus, ele estava dando um enorme trabalho.
— Eles também foram derrubados pelas tempestades?

— Está dizendo que uma dama seria capaz de invadir propriedade privada de
má-fé, senhor? — usei uma tática que o deixaria embaraçado.

Agora ele teria mais uma chance de simplesmente deixar o assunto para lá
para que eu pudesse retornar a Crawford Hall em paz.

Claro que não foi o que ele fez.

— Se sua estratégia é me deixar constrangido, a senhorita falhou


miseravelmente. Sequer sei se é uma dama. Não se comporta como uma.

— Quem é o senhor para se dirigir assim à minha pessoa? — praticamente


berrei, jogando para o alto os últimos resquício das boas maneiras que mamãe
havia me ensinado.

Se bem que ela sempre afirmava que uma dama deveria defender sua honra.
E era isso que eu estava fazendo.

Ele tirou o chapéu, e finalmente pude ver seu rosto. Ele era bem...
Masculino. Não sei que outra palavra poderia usar. Apesar de usar roupas de
cavalheiro, seu rosto era de um homem grosseirão, daqueles que passam o dia
caçando, atirando, e gritando com seus criados.
Olhos castanhos me encaravam sem qualquer pingo de gentileza. Seu queixo
quadrado estava erguido, seus lábios, formando uma linha, com as pontas
levemente inclinadas para baixo. Havia também uma cicatriz na sua bochecha
direita, uma linha que a cortava no canto, da altura do olho até a jugular.

Apesar disso, ele era um homem bem atraente. Atraente até demais para o
meu bom senso. Senti uma vontade inexplicável e bastante irritante de passar os
dedos por seus cabelos louros desarrumados.

— Sou o proprietário das terras.

— Lorde Richard Devon? — questionei automaticamente.

Sempre que o imaginava, Lorde Devon aparecia para mim como um homem
rechonchudo e ranzinza cercado de livros, que passava o dia reclamando de seus
serventes e jamais deixava o conforto da poltrona em sua biblioteca.

O homem que me encarava com desconfiança não era rechonchudo. Bastante


ranzinza, mas aquela característica apenas o deixava mais sensual. Céus, estava
mesmo usando a palavra sensual para descrever o meu editor?

A linha nos lábios dele foi substituída por um meio sorriso irônico ao notar
minha surpresa.

— Ah, vejo que viu meu nome e meu título na placa de entrada, no fim das
contas.

— Vejo também que títulos e propriedades não lhe compraram boas


maneiras, Lorde Devon — rebati com acidez na voz.

O sorriso dele alargou-se. Meus olhos foram para seus lábios. Os dele foram
para o meu colo. Fechei melhor a capa para esconder o decote do vestido.

Ele era um péssimo cavalheiro. Talvez, ficara tempo demais isolado em sua
propriedade, porque claramente não sabia como lidar com damas de bom
nascimento e ótima etiqueta.

— E quem é a senhorita para falar de boas maneiras, invadindo a terra dos


outros sem permissão?
Grosseirão!

— Sou filha de Lady Morgan, que virá à Escócia apenas para lhe dar
bengaladas se souber como está se dirigindo a mim!

Aquilo pareceu atingi-lo. Ele ficou sério de novo, uma linha formando-se
entre seus olhos castanhos.

— É filha de Lady Morgan, de Kent?

— Ah, vejo que conhece a fama das bengaladas de mamãe. — Mesmo o


grandalhão rude temia Lady Morgan.

Senti-me orgulhosa dela.

— Tenho o prazer de conhecer o filho dela, Sir Frederick Morgan. É um


verdadeiro cavalheiro. Pena que a irmã não herdou a mesma educação.

O quê?

— Seu... Seu... — Desgraçado, maldito, devasso, tolo, cretino!

Adorava pensar xingamentos. Era relaxante, quase tão prazeroso quanto um


bom livro. Gostava de fazê-lo especialmente nas ocasiões em que tinha que me
comportar como uma perfeita dama.

Quando um xingamento acabava escapando dos meus lábios, mamãe sempre


culpava meus irmãos, alegando que eles haviam me ensinado a falar como um
pirata. A verdade era que a maior parte dos absurdos que eu sabia havia
aprendido com ela.

Ninguém, entretanto, ousaria dizer a Lady Morgan qualquer coisa que


pudesse ofender sua reputação.

Tinha tantas palavras para chamá-lo, pena que não podia usá-las. Eu sabia
que, se o fizesse, ele venceria aquela batalha. E eu preferia perder uma perna do
que perder uma discussão.

— Vamos lá; prove-me que é uma verdadeira dama — ele esfregou na minha
cara.
Com um sorriso doce, aproximei meu cavalo do dele, deixando-os lado a
lado, virados em direções opostas. Nossos joelhos quase se tocaram, e vi
curiosidade nos olhos dele. Levantei o chicote e o bati contra sua coxa. Apesar
de não ter refreado minha força, Lorde Devon sequer se moveu.

Apenas levantou uma sobrancelha arrogante.

— Como isso é possível? Não sentiu nada? — questionei, horrorizada com a


minha fraqueza.

Ele enfiou a mão dentro da capa e agarrou meu braço, forçando-me ainda
para mais perto dele, quase me arrancando da minha montaria. Senti seu bafo
contra a minha face; ele estava no limite de sua paciência. Seus olhos
escureceram, e sua voz ficou ainda mais profunda.

— Eu senti — a voz dele era quase um sussurro. Não o teria escutado se


minha face não estivesse praticamente grudada na dele. — Apenas sei segurar
meus sentimentos, ao contrário de certas pessoas.

— Está me acusando de ser descontrolada, Lorde Devon? — tentei soltar o


braço, sem sucesso.

Aquela proximidade estava me deixando zonza. Conseguia sentir o cheiro


dele, uma mistura de colônia e couro. Também havia um aroma que parecia
pertencer apenas a ele, e era bastante masculino.

O maldito estava me distraindo, e eu precisava ficar focada naquela


discussão.

— Eu a acuso apenas de invadir minhas terras — ele finalmente soltou meu


braço. — Retire-se. Imediatamente.

— Com prazer, senhor — respondi, entredentes. — E tenho certeza de que é


apenas assim que damas têm prazer em sua companhia; quando estão deixando-
a.

Ele colocou a mão sobre o peito e disse, com fingida tristeza.

— Oh, atingiu meu coração, senhorita.


— O senhor é insuportável — virei o cavalo na direção de Crawford Hall,
fazendo questão de dar as costas para ele.

— E a senhorita é tão mal educada quanto é bela — havia uma sensualidade


em seu tom que fez minhas coxas espremerem o pobre cavalo.

Consegui recuperar-me, e disse por cima do ombro, conduzindo o animal


bem lentamente.

— Ah, então admite que me acha bonita?

— Então admite que é mal educada?

Maldito! Virei novamente o rosto para frente, evitando que ele notasse a cor
subindo às minhas bochechas. Vesti o capuz e acelerei o passo. Ele me seguiu.

— Ficou sem palavras? — Ele diminuiu o ritmo do trote quando me


alcançou, cavalgando ao meu lado. — Deve ser um milagre natalino atrasado.

Joguei o chicote na cara dele. Ele o pegou com a mão antes que pudesse
machucá-lo. Imaginei aquela mão gigante segurando a minha cintura com a
firmeza com a qual segurava o chicote.

Puxei-o de volta.

— Espero nunca mais vê-lo, senhor!

— Mal posso esperar para vê-la novamente, senhorita. — A sensualidade


não deixara sua voz.

Depois de toda aquela discussão, ele estava tentando me seduzir? Tinha de


admitir que eu também gostara mais de nossa briga do que era apropriado. No
entanto, não poderia deixar que ele notasse como a voz dele estava deixando
meu coração acelerado.

— Nunca mais pisarei aqui! — Jurei.

— Sem autorização, espero que não mesmo — ele tomou as rédeas do meu
cavalo, forçando-nos a parar. — No entanto, se me disser seu primeiro nome e
onde está hospedada, posso convidá-la para uma visita oficial. Aí não precisará
cometer um crime para conhecer a minha propriedade.

Respirei profundamente. Ele estava querendo me deixar desconcertada; mal


me conhecia, mas já percebera a minha fraqueza, já descobrira como me tirar do
sério. Abri um sorriso, que era um misto de doçura e ameaça.

— É casado?

A pergunta o pegou desprevenido. Ele soltou as minhas rédeas, e eu as tomei


de volta.

— Ainda não — ele fez questão de enfatizar o ainda, de encarar os meus


lábios enquanto respondia.

— Que bom — consegui deixar a voz firme, apesar de estar tremendo de


desejo por dentro. — Senão eu precisaria rezar pela pobre alma da sua esposa
todas as noites por ter de aguentá-lo. E rezar não é minha atividade favorita.

— Claro que não. Não é crime rezar.

— Insuportável! — apertei os calcanhares para o cavalo voltar a correr.

— Transgressora! — ele gritou atrás de mim, mas, daquela vez, não me


seguiu.

— Arrogante! — acusei de volta.

— Matraca! — ele revidou.

— Grosso!

— Linda.

Maldito devasso! Senti as coxas apertando-se novamente e saí de lá sem


olhar para trás.

***
Capítulo 2
RICHARD

Quase explodi de raiva ao vê-la. Ela estava no lugar onde a maior tragédia da
minha vida ocorrera, maldição! Um local sagrado para mim, onde eu vinha todo
mês para me lembrar do que havia perdido. Em uma mesma noite de inverno, eu
perdera meus pais, minha irmã mais velha e o movimento das minhas pernas.

Apenas não perdera a vida porque Patrick, meu grande amigo e primo de
consideração, me encontrou antes que eu congelasse sob a neve.

A beleza dela apenas me deixou mais irritado; aqueles olhos verdes me


distraíam, e, ao invés de querê-la longe, eu senti uma atração imediata por ela.
Quando ela abriu a boca, tudo piorou.

Ao contrário das pessoas ao meu redor, Lady Morgan (seja qual for seu
primeiro nome) não aceitava ordens, e muito menos admitia que alguém dissesse
que ela agira errado. Ela praticamente cuspira fogo quando eu a acusara de ser
uma criminosa, e me atacou com um chicote!

Céus, ela tinha mais espírito que toda uma igreja em missa de domingo. Ela
era irônica, independente e mais inteligente que os cavalheiros considerariam
apropriado. Certamente, não devia ser casada. Afinal de contas, que homem
seria macho o bastante para aceitar uma mulher que não se submeteria a seus
desejos?

Eu.

Sacudi a cabeça, tentando expulsar o pensamento libidinoso com o


movimento. Não me casaria, aquilo era certo. Estava preso a uma cadeira, a uma
casa, a uma propriedade. Tinha meus demônios, em forma de segredos familiares
que jamais desvendei, na forma dos entes queridos que perdi ainda muito jovem.
Não prenderia outra pessoa à minha situação. Já era ruim o suficiente que
Patrick e minha tia de consideração morassem comigo para me fazer companhia.
Ainda assim, não consegui tirar seus olhos verdes da cabeça enquanto retornava
à casa. Imaginei-a sob mim, gritando meu nome enquanto eu lhe dava prazer
como outro homem jamais o faria.

Ela também havia me desejado; vi o ardor em seus olhos, a cor subindo ao


seu rosto. Ela não sabia, entretanto, da minha condição. Notara que meus
calcanhares estavam presos à sela, porém, não reparara no encosto que apoiava
as minhas costas. Ela me desejaria se soubesse?

Claro que não, uma voz irritante respondeu em minha mente. Ela era linda,
com a pele de porcelana contrastando com os cabelos negros e os olhos verdes,
os cachos voando com a brisa, os seios redondos e volumosos subindo e
descendo rapidamente, como se sua respiração estivesse acelerada.

O que diabos ela estava fazendo sozinha ali?

Seu irmão havia me visitado três vezes nesse inverno, depois de muitos anos
sem vir à Escócia. No entanto, ele não tinha mencionado que trouxera a irmã
consigo. Talvez, o segredo fosse para a minha própria segurança. A dama
certamente não era o tipo de mulher que alguém conhecia de forma sutil. Nada
nela era sutil.

Cheguei aos estábulos mais rápido do que presumira, ou poderia ser o fato de
que estava distraído, divagando sobre um par de olhos verdes sobre lábios
perfeitos.

John, meu criado particular, estava à minha espera quando cheguei,


empurrando a cadeira de rodas à sua frente. Detestava precisar de ajuda para
fazer praticamente tudo, mas não podia ser egoísta.

John e Patrick haviam levado meses construindo uma cadeira com rodas
laterais que me oferecessem mais conforto que a famosa cadeira de Bath, que
tinha três rodas menores. Alguns novos modelos de cadeiras de rodas
começavam a aparecer na Inglaterra, então eles usaram os protótipos mais
modernos para construir a minha.

Eles haviam desenvolvido duas: uma mais resistente e menos confortável,


que eu usava para passear pelos jardins, e outra cujo assento era uma poltrona
macia, onde eu passava praticamente o dia inteiro.

Depois de me ajudar a descer do cavalo e sentar na cadeira, John retirou-se


para ir preparar meu banho. Não precisava de ajuda para me locomover do
estábulo até a casa principal, já que um passeio fora feito com o propósito de ser
usado por mim.

Usei a rampa lateral de madeira para entrar na sala de inverno, onde Patrick
lia o jornal confortavelmente. Ele me deu boa tarde e, quando eu o respondi,
algo o fez olhar para cima.

Maldição! Ele havia notado algo de diferente no meu tom de voz?

— O que aconteceu? Está... Sorrindo.

Ah. Não havia como disfarçar agora. Eu raramente sorria, tanto que meu
rosto já começava a doer.

— Encontrei alguém no caminho de Crawford Hall — admiti, torcendo para


que ele não insistisse no assunto.

— Oh, céus. Quer que eu resolva o problema?

Nas poucas ocasiões em que pessoas invadiam minha propriedade, Patrick


costumava cuidar do assunto. Em geral, era algum bêbado do vilarejo perdido,
ou uma criança de propriedades próximas brincando pelos bosques. Apesar de
fazermos manutenção na cerca em volta das nossas terras, era comum, durante
os temporais, algumas estacas caírem.

— De forma alguma — respondi. — Esse problema em particular é todo


meu.

Mesmo contra a minha vontade, senti o sorriso alargando-se. Patrick passou


a me encarar como se eu fosse um lunático.

— Diz como se fosse uma coisa boa.

— Ela é insuportável — inspirei profundamente. — Adoravelmente


insuportável.
A gargalhada dele ressoou pelo cômodo, e o som era tão incomum em
Rosebery Hill que a minha governanta, a Sra. Jones, veio verificar se estávamos
nos sentindo bem. Pedi que trouxesse alguns sanduíches. O passeio e suas
emoções inesperadas me deixaram faminto. Não estava com fome apenas de
comida, mas teria de ser suficiente.

— Imagino que, além de insuportável, ela também seja bonita.

Perfeita, quis dizer, e não era exagero. Tampouco estava exacerbando suas
qualidades por não ter muito contato com damas. Ao longo dos anos, recebi
muitas visitas femininas belíssimas em minha casa, tanto filhas de amigos
quanto acompanhantes que me ofereciam algum alivio em noites solitárias.

Lady Caroline Hamilton, por exemplo, filha dos meus vizinhos, tinha uma
beleza clássica, elegante. Sua irmã, Tessa, era como uma pequena fada, que
encantava todos aqueles que conhecia com seu jeito inocente e seus modos
simples e sinceros.

A beleza da irmã de Sir Frederick, todavia, era bem diferente. Ela era como a
erupção de um vulcão; forte, bruta, e podia derrubar o mais poderoso dos
homens antes mesmo que ele se desse conta do que havia acontecido, com um
comentário azedo e um olhar tão cálido que era capaz de criar fogo no meio de
uma nevasca escocesa.

Percebi que Patrick me encarava, aguardando uma resposta.

— Ela é bonita até demais. Coitado do cavalheiro que tentar se aproximar.

— Parece que você quer ser o coitado cavalheiro, Rick.

Gargalhamos juntos, no mesmo instante em que a Sra. Jones retornou com


uma bandeja repleta de sanduiches, biscoitos e um bule de chá, dirigindo-nos um
olhar desconfiado.

— Qual é o nome da dama que o fez sorrir, Rick?

— Sei apenas seu sobrenome. É irmã de Sir Frederick Morgan.

Um dos pratos com biscoitos despedaçou-se no chão. A Sra. Jones me


encarava, boquiaberta, com o rosto pálido e a mão trêmula.
— Oh, céus. Ela está de volta?

Ela tirou o terço do bolso de sua veste e passou a rezar com sussurros,
ignorando completamente a bagunça que fizera. Duas camareiras, atraídas pela
comoção, adentraram no cômodo e começaram a limpar em volta da Sra. Jones,
sem ousar interromper suas preces.

Eu tampouco gostava de atrapalhá-la enquanto rezava, mas lembrei que a


irmã da Sra. Jones, Mary, era a cozinheira de Crawford Hall.

— Conhece a dama, Sra. Jones?

— Queria não conhecê-la — ela comentou, fazendo o sinal da cruz. Pelo


canto do olho, vi que Patrick estava segurando o riso. — Lidar com Lady
Charlotte Morgan é... Um desafio.

— De fato, a dama é bastante... Energética — o maldito sorriso retornou.


Sem precisar me esforçar, descobri o nome que ela se recusara a oferecer:
Charlotte.

Aparentemente, a mesma mulher que representava o Anticristo para a Sra.


Jones era aquela que conseguira me tirar, nem que por alguns minutos, da minha
costumeira sensação de estar entorpecido.

— Estou curioso, Rick. Jamais conheci uma dama tão desafiadora.

— Não precisa enfiar a mão em ninho de vespa para saber que é uma
péssima ideia.

Mensagem recebida; a Sra. Jones detestava a dama e não fazia qualquer


questão de disfarçar suas impressões. Talvez fosse isso, ou talvez fosse a
curiosidade estampada no rosto de Patrick, ou podia ser por causa do calor que
eu sentia nas entranhas só de pensar nos olhos verdes dela, mas eu soube,
naquele instante, que precisava vê-la outra vez.

— Estou pensando em convidá-la para jantar. Juntamente com os Hamilton,


é claro — anunciei vagamente.

— Quando pretende realizar o jantar, milorde?


— Ainda esta semana. — Informei. — Não sei quando ela vai embora. Por
que pergunta?

— Gostaria de tirar a folga sobre a qual falamos esta semana.

Será que a Sra. Jones realmente achava que a dama era o Anticristo?

— Tudo isso para evitá-la? Só porque a dama é... Espirituosa?

— Ela é possuída, isso sim.

***

Três dias. Três malditos dias haviam se passado, e eu continuava pensando


naqueles olhos verdes cálidos do momento em que me levantava de manhã ao
instante em que me deitava à noite. Eu havia até mesmo sonhado com eles.

Perseguiam-me o tempo todo, durante minhas leituras matinais, quando


cavalgava, até mesmo enquanto escrevia cartas de negócios e analisava os
números de minhas propriedades e investimentos.

Charlotte. O nome dela dançava pelos meus pensamentos, como se ela


tivesse me enfeitiçado. Talvez a Sra. Jones estivesse certa; tinha que haver algo
de errado com aquela mulher, não era natural que eu estivesse tão interessado em
uma dama que conhecera apenas uma vez.

Queria descobrir mais sobre ela. Precisava descobrir mais sobre ela. Seu
irmão sempre falava com enorme carinho de todas as irmãs, mas eu tinha a
sensação de que a mais velha era a sua favorita. Eu não tinha dúvida de que ele
se referia a Charlotte. Jamais me dissera seu nome, contudo, falara do seu
espírito.

Frederick era um pouco mais velho que eu; ele tinha dezoito quando nos
conhecemos pela primeira vez. Estava bêbado e perdido nas minhas terras (no
caso dele, sua desorientação era verdadeira, não uma desculpa esfarrapada de
uma dama mais curiosa que racional).

Àquela altura, apesar de jovem, eu já tinha sobre meus ombros a


responsabilidade de ser o herdeiro de Lorde Devon há bastante tempo. Ele, por
sua vez, era um rapaz arrogante e um herdeiro sem qualquer responsabilidade.
A morte de seu pai o mudou, contudo. Ele não havia retornado à Escócia
durante anos, porém, sempre nos correspondíamos, seja para falarmos de algum
novo manuscrito da famosa Lady M, que ele representava, ou para trocarmos
ideias e sugestões a respeito de alguma questão de nossas propriedades.

Não sabia o que o levara a se transformar tanto, porém, Frederick havia se


tornado um amigo, mesmo que à distância. Ele era racional e honesto, leal e
discreto. Por isso, surpreendi-me tanto ao descobrir que a dama destemida e sem
filtros que conheci fosse sua irmã.

Sempre quis saber qual era a identidade de uma de minhas autoras mais bem-
sucedidas. Decerto, ela não vendia tão bem quanto Jane Austen, mas seus
números, ainda assim, eram surpreendentes. Eu suspeitava que Lady M fosse a
mãe de Frederick, Lady Morgan, havia alguns anos. Poderia ser alguma amante
de Frederick também.

Olhei para o papel que estava à minha frente. Era uma carta para um
advogado do vilarejo. Durante os invernos escoceses, era o máximo de
comunicação que tínhamos. Esperava que, ainda naquele mês, as estradas
fossem liberadas para que eu pudesse enviar correspondências a Londres e
Edimburgo. Tinha muitos assuntos a tratar.

Abandonei a carta que tentava escrever havia um quarto de hora e chamei


John. Pedi que preparasse meu cavalo. Não conseguiria me concentrar em nada
se não fosse logo a Crawford Hall convidar os Hamilton para o jantar. Quem
sabe, conseguiria ver Charlotte novamente. Quase estremeci de ansiedade ao
imaginar como ela ficaria toda irritada quando soubesse que eu havia descoberto
seu nome.

Em menos de uma hora, eu já estava em Crawford Hall. John era rápido para
preparar minhas cavalgadas, e eu conhecia tão bem as estradas entre as
propriedades quanto os corredores de Rosebery Hill.

O caminho que eu usava acessava Crawford Hall pelos fundos, bem na


direção da cozinha. Mary devia ter me avistado pela janela, pois saiu da casa
quando eu me aproximei.

— Bom dia, Lorde Devon — ela desejou, com um largo sorriso nos lábios.
May não poderia ser mais diferente de sua irmã. — Está tudo bem com o
senhor?
Eu geralmente não me arriscava a vir até Crawford Hall no inverno. Havia
muitas ravinas, muita neve, muita lama e partes escorregadias. No entanto, eu
estava bastante motivado.

— Bom dia, Mary. Estou muito bem, apenas decidi convidar seu patrão para
um jantar.

— Hum... Há algo a celebrar? — ela inclinou a cabeça, apertando os olhos,


como se estivesse me vendo pela primeira vez.

— Por que pergunta? — fiquei curioso com sua reação.

— Está... Não sei... Diferente... Alegre...

Oh, céus. Aquilo estava ficando ridículo. Eu realmente havia mudado a


minha aparência por causa de uma mulher com quem eu conversara – na
realidade, brigara – por meia hora?

— Soube que receberam convidados neste inverno — mudei de assunto.

— Sim. O noivo de Tessa e sua irmã.

— Tessa? Estranho... Eu havia entendido que Sir Frederick estava noivo de


Lady Caroline Hamilton.

Assim que chegou à Escócia, ele veio me fazer uma visita em Rosebery Hill.
E eu estava certo de que ele comentara que estava noivo da filha mais velha de
Lorde Henry Hamilton.

— Ah... Sim, ele estava...

— E agora está noivo da irmã da ex-noiva?

Aquilo não soava nada como o novo Frederick, o herdeiro de Sir James e o
irmão mais velho dos Morgan. Por algum motivo, senti que havia a participação
de Charlotte naquela história. Ela me parecia o tipo de dama que gostava de
entreter-se com a vida romântica alheia.

— Não exatamente — ela limpou a garganta diversas vezes, repentinamente


desconfortável com o teor da conversa. — Digo, Sir Frederick ficará noivo de
Tessa se o plano de Charlotte der certo.

Eu bem sabia.

— A irmã de Sir Frederick? — perguntei apenas para confirmar. Mary


confirmou com um menear de cabeça. — Qual é o plano dela, exatamente?

— Acho melhor que não saiba, Lorde Devon.

Era pior do que eu imaginava.

— Tão ruim assim?

— Diabólico, Lorde Devon.

De repente, o sorriso retornou aos lábios de Mary, e as maçãs de seu rosto


adquiriram uma coloração rosada. O que diabos ela havia aprontado?

— Sua irmã de fato comentou que a dama era possuída.

— Violet é uma tola, às vezes — Mary colocou as mãos na cintura. —


Charlotte é apenas decidida. Sabe o que quer e ninguém que seja louco de tentar
impedi-la.

— Entendo — e eu, de fato, entendia.

Tinha sido vítima de sua teimosia dias antes.

— Mas ela tem um bom coração, Lorde Devon.

— Tenho certeza que sim — e uma cabeça tão dura quanto pedra, mas aquela
parte eu mantive para mim. — Bem, Lorde Hamilton está em casa? Gostaria de
convidar a família e seus convidados para um jantar o quanto antes.

— O patrão não está muito bem, Lorde Devon. Com a história do noivado
e... Outras coisas. De qualquer modo, Sir Frederick e a irmã deixaram Crawford
Hall ontem. Tessa foi com eles para a Inglaterra.

Maldição! Eu os havia perdido por causa de um dia!

Quis vir ontem, e no dia anterior, e no dia antes dele. Entretanto, achei
melhor esperar, para que Charlotte não ficasse arrogante, acreditando que eu
estava desesperado para revê-la.

Subitamente, notei algo estranho na informação que Mary me passara.

— Achei que Sir Frederick e Tessa ainda não estivessem noivos — mais uma
vez, ela confirmou com um aceno. — Ainda assim, Tessa aceitou ir à Inglaterra?

— Eu não disse isso. Disse apenas que Tessa foi com eles.

— Mas...

— Não pergunte mais, Lorde Devon — ela avisou novamente. — O senhor


não quer saber.

Então não era apenas um plano diabólico. Decerto, para Mary se comportar
de tal maneira, era um crime. Pelo menos, eu tinha certeza de que Mary não faria
nada que pudesse machucar Tessa. Porém, eu era prova viva de que Charlotte era
capaz de violar a lei, se o precisasse para conseguir o que desejava.

— Sabe se eles retornarão em breve?

— Não sei. Já estou sentindo falta de Tessa.

Ela inspirou profundamente, e seus olhos ficaram marejados. Era a dica para
eu ir embora. Não sabia lidar com mulheres chorando. Creio que nenhum
homem saiba.

— Imagino que sim. Tenha um bom dia.

— Não vai falar com o patrão? — sua voz saiu trêmula.

Maldição. Uma lágrima rolou por seu rosto rosado e ela a secou com um
dedo. O que diabos eu deveria fazer? Nossos pais nos educavam para sabermos
lidar com nossos títulos, nossas propriedades, nossos investimentos. Mas sobre o
maior mistério de nossas vidas – mulheres –, eles não ensinavam nada de útil.

Decidi fingir que não havia notado. Seria a coisa certa para um cavalheiro
fazer.
— Vou deixar que ele fique de bom humor.

— Vivo nesta casa há quinze anos e jamais vi meu patrão de bom humor,
Lorde Devon. Se bem que... Conheço o senhor há muito tempo, e tampouco o
havia visto tão animado antes.

— É um milagre natalino atrasado — repeti o que dissera a Charlotte, e me


despedi de Mary.

E era isso o que Charlotte tinha sido para mim, considerei, enquanto
retornava a Rosebery Hill: um presente de Natal maravilhoso. Inesperado,
surpreendente, arrebatador. Algo de que eu precisava, mas não sabia.

Ela me ofereceu algo que ninguém conseguira em longos anos; fez com que
eu me sentisse vivo de novo.

***
Capítulo 3
CHARLOTTE

Coloquei meu plano em ação assim que fizemos uma parada pré-acordada com
o cocheiro que nos levaria à Inglaterra, em uma agradável estalagem próxima à
fronteira com a Escócia.

Deixei Tessa com Frederick no aposento mais confortável e fui para o quarto
que alugara ao lado, de onde o proprietário da pousada me havia garantido que
eu escutaria tudo que eles dissessem. Felizmente, eu não tinha sido enganada.
Ouvi meu irmão, enfim, fazer a proposta de casamento (apesar de não ter sido
das melhores) e Tessa, depois de algum tempo discutindo com ele, o aceitou.

Fiquei imensamente feliz! Até me dar conta de que eu não escutaria apenas à
romântica proposta de casamento, como também ao que viria depois dela.
Acabei ouvindo infinitamente mais do que eu desejava.

Procurei algo para fazer, a fim de me distrair dos sons libidinosos que
vinham do outro quarto. Fui rearrumar minhas roupas no baú, quando ouvi um
barulho de algo metálico caindo no chão ao mexer em meu vestido de
cavalgadas.

O medalhão, eu o reconheci ao ver o dourado fosco. A joia que eu encontrara


na estrada para Rosebery Hill, na propriedade de Lorde Devon.

Sei que não deveria tê-lo escondido, poderia ser uma herança de família, algo
importante para ele, porém, algo me atraiu ao objeto. Eu tinha uma relação
especial com alguns objetos, como tivera com o broche que encontrara em Bath.

Ao pegar o medalhão da primeira vez, eu usava luvas. Agora, no entanto, o


metal tocou minha pele, e tive a sensação familiar da minha imaginação ficando
ativa. Era como se eu tivesse sido atingida por uma brisa gelada, que deixava
minha pele arrepiada para, em seguida, entrar em uma banheira com água cálida,
que me aquecia por dentro e por fora, e relaxava meus músculos.

Fechei os olhos e deixei a criatividade me atingir. A primeira coisa que eu vi


foi ela. A dona do medalhão. Ela tinha cabelos cor de mel, e um sorriso adorável.
Ela tinha uma constituição delicada, era pequena e magra, mas havia uma
energia arrebatadora em seus olhos.

Em seguida, eu o vi. O foco todo dele era nela, seus olhos castanhos a
encaravam com tamanha admiração que senti uma lágrima descendo pelo meu
olho. Ele a tocou no rosto, um toque inocente, mas repleto de paixão.

Eu precisava escrever sobre eles dois. Os seus nomes vieram tão


naturalmente quanto suas imagens; Elias e Margaret.

Peguei um diário novo e comecei a escrever. Contei a história de como eles


se conheceram, a confusão entre eles que os levou a se apaixonarem, os desafios
que precisaram superar para ficarem juntos e, finalmente, sobre a morte
misteriosa e prematura deles.

Precisei trocar a pena duas vezes, minhas costas estavam rígidas, minhas
mãos, doloridas, porém, quando os primeiros raios de sol surgiram no horizonte,
eu havia terminado. Retornei para a primeira página e coloquei o título e meu
pseudônimo. Segredos de Sangue, de Lady M.

Eu precisava mostrar o manuscrito a Frederick imediatamente.

***

Colei o ouvido na parede fina que separava o meu quarto do de Frederick e


Tessa até escutar o som de alguém deixando a cama. Torcendo para que fosse
meu irmão, corri até a porta vizinha à minha e bati.

Soube que era Frederick quem estava acordado, pois ele fez questão de
ignorar as batidas. Continuei insistindo, sempre fazendo pouco barulho, para não
despertar Tessa. Ele também permaneceu fingindo que não escutava nada. Fui
batendo mais forte, e mais forte, até que, por irritação ou medo de despertar a
noiva, ele finalmente abriu a porta.

— Bom dia! — disse animadamente, o diário contra o peito, que eu abraçava


como um bebê.

Havia manchas roxas sob os olhos de Frederick, que estavam um pouco


avermelhados. Seus cabelos desordenados estavam espetados para todos os
lados, e ele não parecia nem um pouco contente em me ver.

Mal-agradecido. Se não fosse pelo meu plano, ele sequer teria uma noiva
agora.

— O que quer a esta hora da manhã?

— Preciso de um favor — anunciei, começando a ficar irritada com aquele


mau humor dele sem motivo.

Fiz questão de não lhe dar os parabéns pelo noivado. Apenas o faria depois
de receber um agradecimento por tudo o que eu fizera por ele. Ingrato.

— Eu estou ocupado, Lotty.

— Com o quê?

— Com a minha noiva.

Revirei os olhos. Sempre gostava de fazê-lo quando mamãe não estava por
perto para me dar bengaladas.

— Depois de tudo o que fizeram ontem à noite?

Não era possível que eles continuariam a fazer intimidades de marido e


mulher depois de uma noite inteira acordados? Sendo que eles eram apenas
noivos, mas eu ia deixar aquela passar depois de tudo o que havia ocorrido em
Crawford Hall.

Se satisfazer seu marido significava passar noites em claro, então eu ficaria


muito contente em me tornar uma solteirona.

— Como? — ele ficou corado.

— Eu ouvi o pedido de casamento — expliquei metade da história.

Imediatamente, seus ombros relaxaram.


— Ah.

Mal sabia ele que eu ainda não havia terminado. Oh, como era bom provocá-
lo! Mamãe sempre dizia que cavalheiros simplesmente não sabiam lidar com
mulheres que não agiam como perfeitas bonecas de porcelana, e era assim que
conseguíamos deixá-los nas palmas de nossas pequenas – e aparentemente
frágeis – mãos.

— Também ouvi a comemoração de depois.

— Ah.

Segurei-me para não gargalhar; a expressão de Frederick era impagável.


Teria que memorizá-la para contar tudo à mamãe depois. Agora, ele faria
qualquer coisa que eu pedisse.

— Acho melhor deixar sua noiva descansar um pouco. Eu tenho a perfeita


distração.

— E qual seria? — havia desconfiança em seus olhos.

Entreguei-lhe meu diário. Ele o folheou, levantando as sobrancelhas ao


verificar que havia dezenas de páginas preenchidas, em seguida observou
minhas mãos sujas de tinta.

— Era este o livro que estava escrevendo em Crawford Hall?

— Não. Este aqui eu comecei ontem.

Apenas havia escrito alguns contos bem curtinhos em Crawford Hall. Não
tivera muita criatividade até tocar no medalhão.

— Escreveu tudo isso em uma noite?

— Sim.

Um meio sorriso surgiu em seus lábios. Ele ficou animado com a notícia;
meus melhores romances eram aqueles que eu escrevia depois de uma onda de
criatividade repentina, que geralmente surgia com a ajudinha dos meus objetos
especiais.
— Vou lê-lo agora mesmo — ele movimentou-se para fechar a porta, mas eu
o interrompi com o pé.

— Não na frente de Tessa — implorei.

Apesar de confiar nela, ainda não estava pronta para revelar aquela parte de
mim a Tessa. Um livro era como a essência de sua alma, e já era difícil o
bastante saber que meu irmão tinha acesso aos meus escritos.

— Ela está dormindo, Lotty.

— Deixe-me ver — escancarei a porta.

Tessa estava apagada na cama. Apesar de parcialmente coberta com um


lençol, era possível perceber que estava nua sob ele. Um de seus braços pendia
da cama, e seus lábios estavam partidos.

— Perfeito, parece que dormirá por bastante tempo.

— Vá. Agora — ele me disse em tom de ameaça. — Antes que eu mude de


ideia.

— Ai, e eu achando que você não estaria tão irritado depois de tudo o que se
passou ontem.

***

Esta era a pior parte; a espera. Quando eu havia terminado a história, e


Frederick a lia pela primeira vez. Sentia-me julgada, como se, ao avaliar meu
livro, meu leitor estivesse também analisando meu caráter.

Ao menos, Frederick era um ótimo crítico, sempre fazia comentários


construtivos, e me entendia, conseguia identificar as nuances da história,
compreender as personagens, dar o devido valor às principais cenas. Ainda
assim, era agonizante ter de esperá-lo terminar.

Algumas horas mais tarde, uma camareira bateu à porta, informando que
meu irmão havia me convidado para o desjejum em seu quarto com a noiva. Ele
era um leitor ávido, porém, jamais tinha lido nada tão rápido assim. Aquilo podia
ser um ótimo sinal ou um péssimo.
Senti o estômago embrulhando.

Lavei o rosto e o pescoço e fui. Frederick e Tessa estavam à mesa, sendo


servidos pela mesma camareira que me passara a mensagem. A expressão no
rosto dele era neutra, o que apenas serviu para me deixar ainda mais
desesperada. Estaria ele fazendo aquilo de propósito, como retaliação por mais
cedo?

O que pareceram muitas horas depois, a camareira deixou o cômodo, e Tessa


se escusou também. Frederick levantou-se para sair, mas eu o puxei de volta para
a cadeira.

— O que achou?

Ele me observou com um olhar contemplativo. Oh, não. Oh, céus.

— É o seu melhor, Lotty — ele enfim disse, e achei que o meu coração fosse
explodir.

Levantei-me repentinamente e o abracei, fazendo-o gargalhar com a minha


animação.

— Do que estão falando? — Tessa devia ter escutado os meus gritos de


alegria.

— Hã... — Tinha que inventar algo. Algo factível. — Fiz bolo de laranja
para Frederick e trouxe esta manhã — Não sabia sequer ferver água. Além disso,
estávamos em uma estalagem. Onde eu poderia ter cozinhado um bolo durante a
madrugada? — É o favorito dele. — Frederick não era chegado a doces. — Ele
amou.

— Não vi bolo quando acordei.

Felizmente, Tessa era ingênua. A única dúvida dela era facilmente explicável
naquela teia de mentiras sem pé nem cabeça.

— Meu irmão não gosta muito de dividir bolo — eu expliquei, em tom


conspiratório, recebendo um olhar reprovador de Frederick. Eu pagaria por
aquela mentira. — Deve tê-lo devorado antes que você pudesse saber de sua
existência.
— Também adoro bolo de laranja! — ela reclamou com o noivo. Em
seguida, dirigiu-se a mim. — Poderia fazer um dia para mim, Lotty?

Oh, céus. Frederick, claro, estava agora se divertindo bastante.

— É, Lotty, deveria fazer um bolo para a minha noiva. E mamãe ficará muito
satisfeita ao descobrir que, enfim, aprendeu a fazer bolo.

Maldito!

— Vou terminar de arrumar as minhas coisas.

Pelo menos, Tessa nos deixou a sós novamente, sem notar qualquer
desavença entre nós. Se eu tivesse a bengala de mamãe comigo, era capaz de
quebrá-la na cabeça dura de Frederick. Mulheres podiam contar mentiras, pois
fazia parte da sobrevivência de nosso status como verdadeiras damas.
Cavalheiros, jamais!

— Vou matá-lo — avisei, usando meu tom mais meigo.

— Não vai — o tom dele era arrogante. — Precisa de mim para enviar o
manuscrito a Lorde Devon.

— SHHH.

— Pressinto que este aqui será seu grande sucesso, Lotty.

E, com aquela frase, Frederick pôs um fim à nossa discussão, e meu corpo
inteiro estremeceu com um misto de alegria e ansiedade.

***
Julho, 1816
Capítulo 4
CHARLOTTE

Meus retornos da temporada londrina sempre eram, ao mesmo tempo, um


grande alívio e uma enorme dor de cabeça. Por um lado, eu não precisaria ir
mais aos bailes repletos de debutantes acompanhadas de mães desesperadas para
casá-las e cavalheiros tentando me seduzir; por outro lado, mamãe passava o
mês seguinte falando sem parar como eu morreria uma solteirona.

Aos vinte e seis anos, eu sabia que minhas chances de encontrar um


pretendente interessante eram praticamente nulas. Eu havia sido apresentada à
sociedade na temporada londrina pela primeira vez aos dezoito anos de idade, o
que significava que acabara de retornar da minha oitava temporada sem um
marido.

Surpreendentemente, pretendentes jamais faltavam nesses períodos. Sempre


acreditei que, eventualmente, eles desistiriam, mas não. Sempre aparecia um
corajoso, achando que poderia me conquistar, que poderia fazer algo de
diferente.

Porém, eles eram todos iguais; os mesmos assuntos, as mesmas táticas de


conquista, a mesma forma condescendente de me tratar, como se eu fosse uma
dama menos burra que as demais, mas, ainda assim, uma tola completa.

Nenhum deles aceitava meu espírito, muito menos admirava minha


inteligência. Uma vez, escutei-os comentando como desejavam saber quem seria
o homem que conseguiria, enfim, me domar. Era por isso que eu os detestava:
eles pensavam em damas como éguas, não como seres humanos.

Era uma tradição dos Morgan passar algumas semanas em Bath no verão,
para, em seguida, retornarmos a Gregory House, nossa casa em Kent. Este ano,
entretanto, mamãe estava particularmente insuportável; na realidade, as coisas
entre nós pioraram bastante desde o ano anterior, quando eu retornara da minha
estada na Escócia sem um noivo, conforme eu estupidamente havia prometido.

Jurara, desde então, que nunca mais faria promessas a Lady Morgan.

Decidi, assim, voltar direto para Kent. Pelo menos, Tessa e Frederick
estariam lá, assim como o capitão Andrew Winchester e sua esposa, Amélie.
Tirando o meu irmão mais velho, que podia ser sisudo e chato, os demais eram
ótimas companhias, infinitamente superiores àquelas de Londres.

Frederick veio me receber na porta principal de Gregory House quando


cheguei, um sorriso estampado no rosto. Eu havia reparado que, desde seu
casamento com Tessa, um ano antes, ele estava bem mais animado.

— Lotty, tenho novidades excelentes — ele anunciou, ajudando-me a descer


do coche.

— Tessa está grávida? — o sorriso dele me contagiou; eu ganharia um


sobrinho?

— Bem, não. Ainda não. — ele me segurou pelos ombros, o orgulho


estampado nos olhos. — É sobre o seu bebê, não o meu. O seu livro.

Meu coração palpitou de alegria. Conforme Frederick havia previsto,


Segredo de Sangue tinha se tornado o maior sucesso de Lady M.

Eu havia recebido mais de quinhentas libras por ele até o momento, o que era
uma fortuna, considerando que mulheres geralmente sequer tinham direito à
herança dos pais. E, quando cometiam a loucura de se casarem, praticamente
viravam propriedade do marido.

— Conte-me logo!

— As vendas dobraram. Assim que chegaram às Américas, os exemplares


esgotaram — ele explicou.

Aquilo era excelente! O livro tinha sido publicado há pouco mais de um ano
e estava indo muitíssimo bem. Sozinho, ele já havia vendido o triplo dos meus
outros seis romances juntos. E o melhor: a fama dele havia alavancado as vendas
dos demais.
— O seu editor enviou uma mensagem a você. Digo, a Lady M.

Lorde Devon? O que ele ia querer comigo? Eu publicava com ele há anos, e
ele jamais havia me enviado qualquer correspondência. Até mesmo suspeitava
que ele nunca lera meus romances.

— O que ele quer?

— Parabenizá-la, provavelmente — Frederick respondeu. — Eu não li a sua


carta, ela veio dentro de uma que ele enviou para mim.

Ele colocou um papel dobrado dentro da minha mão, fechado com o selo dos
Devon. Notei, naquele instante, que minha mão estava trêmula. Dirigi-me ao
escritório, praticamente correndo, ansiosa para saber o que meu editor havia
escrito.

Desde nosso encontro bizarro em sua propriedade, eu me pegava pensando


nele mais do que gostaria. Não entendia qual era o motivo do meu interesse, já
que o homem era um grosseirão, e eu não o via há um ano e meio. De qualquer
modo, ele era também meu editor, o que o tornava alguém relevante o suficiente
na minha vida para eu ficar curiosa sobre sua carta.

Parti o selo e abri a carta com a respiração acelerada, como se tivesse corrido
quilômetros e mais quilômetros. Suas letras eram elegantes e muito bonitas; suas
palavras, porém, eram tão grosseiras quanto o homem que as havia escrito.

Seu bilhete era ofensivo e arrogante, acabando com meu bom humor de
imediato.

Lady M,

Exijo sua presença em Rosebery Hill dentro das próximas semanas, sob pena
de não mais publicar seus livros.

Lorde Richard Devon.

Arrogante! Rude! Maldito!

Ele exigia a minha presença? Ou não iria mais me publicar? Ele estava me
dando ordens e me ameaçando? Ele sequer era o meu marido! Eu não havia
aceitado a meia dúzia de proposta que recebera de pretendentes ao longo dos
anos exatamente para não passar por uma situação daquelas!

Uma ideia me veio logo em seguida. A cólera tinha esse efeito nas pessoas,
transformava-nos em seres vingativos, e bastante criativos também. Peguei uma
folha, uma pena e o tinteiro e escrevi uma carta. Minha carta, todavia, não era
para o meu editor tirânico, e sim para outra editora.

Ora, eu não era mais aquela autora desconhecida implorando que alguém
acreditasse em mim. Era uma escritora de sucesso e, como tal, desejada por
todas as editoras.

Assinei como Lady M e pedi ao nosso mordomo, o Sr. Morlon, que enviasse
a correspondência da maneira mais discreta possível, para que ninguém soubesse
a quem eu escrevia, nem mesmo Frederick. Apenas contaria a ele sobre o que eu
fizera quando estivesse tudo acertado com a minha nova editora.

Se Lorde Devon achava que ele poderia me controlar, ele teria uma
surpresinha.

***

Três semanas mais tarde, eu estava saltitando de ansiedade toda vez que a
correspondência chegava, esperando a resposta da minha nova editora. Quando
escrevi a carta, sequer passara pela minha cabeça a hipótese de não ser aceita,
porém, com o passar dos dias e, depois, das semanas, eu começava a questionar
se eles teriam interesse em publicar um romance de uma autora cuja identidade
era um mistério.

Talvez eles achassem que eu não era a verdadeira Lady M, e eles de fato não
teriam como verificar minha identidade apenas pela minha grafia. Poderia pedir
a Frederick que passasse uma semana em Londres para falar com eles.

No entanto, meu irmão me mataria se soubesse que eu havia traído seu


amigo de vários anos. Ele se correspondia com Lorde Devon mensalmente, e
sempre o elogiava. Provavelmente, Lorde Devon usava todo seu charme com
meu irmão, porque eu vi apenas seu lado grosseiro quando o conheci e quando
ele me enviou a mensagem ofensiva.

Para piorar, mamãe havia retornado de Bath, e não parava de falar em como
nenhuma de suas três filhas estavam casadas, apesar de seus dois filhos homens
já terem esposas.

Estava escondida de mamãe na biblioteca uma manhã, lendo um livro de


mistério que Alice havia recomendado, quando o Sr. Morlon adentrou o cômodo.

— Com licença, há um mensageiro esperando na porta. Ele diz que tem uma
correspondência urgente. Pediu por seu irmão, mas eu não consigo encontrá-lo.

Claro que não. Àquela hora, Frederick deveria estar com Tessa na cabana
atrás do bosque. Ele se refugiava lá com ela diversas vezes por semana desde
que mamãe retornara de Bath. Digamos que mamãe não era fã de bater em
portas antes de adentrar um cômodo, e ela já os tinha pego em situações um
tanto quanto íntimas.

— Vou falar com o mensageiro, Sr. Morlon. Meu irmão está ocupado.

Fui até a entrada e reparei que a carta devia ser urgente mesmo. O pobre
rapaz que viera estava empoleirado e com marcas roxas sob os olhos. Estava
claramente cansado, devia ter cavalgado por dias, o coitado.

— Sou a irmã de Sir Frederick. Disseram-me que tem uma correspondência


para ele.

— Sim, senhorita.

Meu coração quase parou quando vi a carta. Estava dirigida a meu irmão, e
era da Escócia. Mais precisamente, de Lorde Devon. Estranhei toda a urgência;
mesmo que ele escrevesse para reclamar da falta de resposta de minha parte, não
precisava ter feito o mensageiro vir como se corria por sua vida.

Maldito mimado! Tudo tinha que ser feito do jeito dele, no tempo dele.
Irritei-me ainda mais com Lorde Devon por mais aquele gesto insensível.

— O senhor pode se dirigir à cozinha — expliquei. — Deve estar cansado e


faminto, precisa comer algo.

— Obrigado senhorita — ele parecia verdadeiramente agradecido. — Tenho


ordens também de não deixar Kent enquanto não receber uma resposta.
Oh, céus. Devia ser uma carta ainda mais ofensiva do que aquela que ele
havia me enviado, para Lorde Devon ter feito tal exigência ao mensageiro. Já
estava lidando com uma mãe que não parava de reclamar, não aguentaria ter um
irmão me importunando também.

E a solução era bem simples: Frederick não retornaria a Gregory House nas
próximas horas, oferecendo-me tempo suficiente para ler a carta de Lorde Devon
e responder em seu lugar. Eu era muito boa em imitar a letra de Frederick, já o
havia feito algumas vezes, quando precisava de sua assinatura ou resolver um
assunto cujos responsáveis tolos não lidavam com mulheres.

Se Frederick soubesse quantas vezes eu havia escrito cartas e assinado


documentos em seu nome, provavelmente me expulsaria de sua propriedade.

Discretamente, fui até o escritório, e abri a correspondência dirigida a meu


irmão. Ao contrário do que eu imaginara inicialmente, a carta não continha nada
demais, apenas pedia que Frederick entregasse uma mensagem a Lady M o
quanto antes.

Revirei os olhos, já imaginando o conteúdo da minha carta. Ele devia estar


todo irritadinho, exigindo que eu respondesse à sua ordem. Mal sabia ele que eu
responderia com um desaforo na altura do dele; já estava à procura de outra
editora, então não precisaria mais dos serviços dele.

Ri internamente só de imaginar sua face arrogante ficando chocada com a


minha réplica. Infelizmente, foi ele quem me pegou desprevenida.

Lady M,

Soube que escreveu à Editora Letras e Romances com o intuito de ser


publicada por eles. Sou um amigo íntimo do Sr. Jackson, o proprietário.
Inclusive, antes de lhe escrever esta carta, eu terminava de fazer uma proposta
da compra de sua editora. Creio que o negócio será finalizado em breve.

Exijo sua presença em Rosebery Hill em agosto. Não tente mudar de editora
novamente; não será bem-sucedida. Se quiser publicar algum livro de novo em
sua vida, fará exatamente o que eu ordeno.

Lorde Richard Devon.


Maldito! Meu desespero foi tamanho que deixei Gregory House sem falar
com ninguém, fingindo que não escutei os chamados de minha irmã Alice.

Precisava encontrar Frederick imediatamente, ele tinha que me ajudar. Não


contaria a ele que eu tentara mudar de editora, claro que não. Porém, teria que
explicar a ele as exigências de seu amigo.

Se houvesse alguma justiça no mundo, Frederick também ficaria furioso e o


mandaria para o lugar onde o sol não chega.

Entrei na cabana sem me anunciar antes. Frederick compreenderia meus


motivos quando soubesse como eu havia sido injustamente ameaçada.

— Frederick! Frederick, preciso de ajuda! — gritei, torcendo para que ele


pudesse me salvar.

***
Capítulo 5
CHARLOTTE

Frederick não ajudou em nada. Se uma mulher precisava de uma solução, ela
precisaria encontrá-la sozinha.

Ao entrar na casa, escutei a risada de mamãe. Era a primeira vez que eu a


ouvia rindo desde que retornara de Bath. Aquela poderia ser a oportunidade
perfeita para pedir de vez autorização para ir à Escócia. De novo. Sem um noivo.
De novo.

Oh, céus, aquela seria uma tarefa praticamente impossível. Ainda assim, eu
precisava tentar.

Ao me aproximar, consegui distinguir as vozes do capitão Andrew


Winchester, nosso vizinho em Kent e amigo de infância, e sua esposa, Amélie.
Eles haviam se conhecido no ano anterior, em uma ilha francesa. Praticamente
desde que pusera os pés na Inglaterra, Amélie havia se tornado uma grande
amiga minha e de minhas irmãs.

Desde que Amélie anunciara sua gravidez oficialmente, dias antes, mamãe
vivia repetindo o quanto queria também seus próprios netos. Pelo menos, a
presença deles poderia suavizar o espírito Lady Morgan. Mel e Andrew
geralmente me apoiavam nas inúmeras discussões com mamãe.

Assim que me viu, o sorriso de mamãe virou uma carranca. Aparentemente,


nem mesmo a presença de seu casal favorito fez mamãe me perdoar por ter
retornado de mais uma temporada londrina sem marido. A culpa não era minha;
se não havia cavalheiros interessantes, como poderia arranjar um noivo?

Teria que usar outra estratégia; talvez, elogios a deixassem um pouco mais
receptiva.
— Bom dia a todos. Mamãe, está tão bonita.

— Está bebendo de manhã, Charlotte? — seu tom era tão receptivo quanto
sua bengala, apontada ameaçadoramente em minha direção.

— Claro que não, mamãe!

Ela bateu a bengala contra o chão algumas vezes, e juro que senti uma dor no
traseiro, a lembrança de quantas vezes ela havia me batido ali. Alguns amigos
meus riam de meu temor em relação a Lady Morgan, até conhecê-la.

— Apenas me tece elogios quando quer alguma coisa, ou quando bebeu mais
vinho do que deveria. Se não bebeu, o que quer?

Oh, céus. Ela me conhecia bem demais. Qual era o problema das mães?
Pareciam ter bússolas internas que as guiavam até as mentiras dos filhos, por
menores e mais inocentes que fossem, como era o meu caso.

— Mamãe, estava sendo sincera, está muito bonita mesmo.

Agora que enfim notei o que ela vestia, tinha de admitir que era, de fato, um
vestido adorável.

— Concordo com Lotty, Lady Morgan.

O sorriso de Amélie era gentil, e sua delicada mão foi inconscientemente


para sua barriga, que começava a ficar arredondada.

Ela ainda estava no primeiro trimestre da gravidez, provavelmente o bebê


nasceria entre janeiro e fevereiro do ano seguinte, ainda assim, já era possível
afirmar que ela seria uma daquelas mulheres que praticamente brilhavam quando
estavam grávidas, e apenas ganharia barriga.

A única coisa incômoda sobre a gravidez de Mel era que Andrew a olhava de
um jeito lascivo e nada cavalheiresco. Ele poderia ao menos disfarçar!

— Amélie, querida, conheço minha filha desde que ela me rasgou entre as
pernas. — Mamãe tinha mesmo acabado de dizer aquilo? Pelo tom rosado das
bochechas de Amélie, eu acreditava que sim. — Essa aí é briguenta desde que
nasceu.
— Mamãe! Sabe que detesto brigas — defendi minha honra.

— Continue dizendo isso a si mesma, querida, talvez algum dia se torne


verdade. Eu duvido muito.

Cruzei os braços em frente ao peito. Minha vontade era berrar com ela; se eu
o fizesse, no entanto, ela venceria a discussão. E Lady Morgan já era acostumada
demais a vencer.

— Lady Morgan — Andrew interveio. —, talvez Lotty apenas quis ser gentil
com a senhora.

— Gentil? Essa aí me puxou, e eu prefiro tomar banho de ácido do que ficar


de boazinha com as pessoas. Bando de inúteis.

Andrew suprimiu um riso com tosses.

— Quem é inútil, exatamente?

— Todos! Exceto a sua querida esposa, que fará de mim uma madrinha
muito feliz.

Mamãe estava sentada na poltrona ao lado do pequeno sofá onde Andrew e


Amélie estavam acomodados, e colocou a mão sobre a dela. Bem, se ela estava
sendo gentil, era porque ela queria algo deles, assim como ela me acusara.

Um segundo. Para tudo. Mamãe disse que seria a madrinha da criança?


Mas... Mas... Amélie nos dissera que seríamos eu, Rose ou Alice! Ela também
havia sugerido que sorteássemos para ver quem seria, a fim de evitar brigas entre
nós.

Dirigi um olhar ameaçador ao casal, e Andrew engoliu algumas vezes antes


de conseguir respondê-la.

— Lady Morgan, ainda não havíamos decidido a respeito dos padrinhos e...

— Eu sei que queriam fazer uma surpresa, mas vamos logo acabar com esse
mistério desnecessário. Serei a madrinha e, se for menina, sei também que a
batizarão com meu nome.
Não! Traíra! Mamãe deve ter descoberto que uma de suas filhas seria a
madrinha e decidiu agir por conta própria. Logo agora, que eu já tinha planejado
como falsificaria o sorteio para que eu fosse a escolhida!

— Ah, é mesmo? — havia um pinguinho de nada de desafio no tom de


Andrew. Isso mesmo, Andy, lute contra a déspota da mamãe! — Como posso dar
à minha filha (se for menina) o seu nome se nem sequer o conheço, Lady
Morgan?

— Claro que não sabe! Por que eu me daria ao trabalho de lhe contar meu
primeiro nome, capitão? Homens são as mais inúteis das criaturas, ainda piores
que cavalos e cachorros!

Ela apontou a bengala para ele, e o pinguinho de nada de coragem de


Andrew desapareceu. Honestamente, como ele conseguira tornar-se um capitão
da Marinha Britânica e participar de algumas das batalhas navais mais
memoráveis da guerra contra Napoleão Bonaparte se sequer conseguia manter
uma postura digna na frente da bengala de mamãe?

Homens eram um bando de inúteis mesmo, tinha que concordar com Lady
Morgan.

Por sorte, sua esposa não era tão covarde assim.

— Mesmo Sir James era inútil, Lady Morgan?

— Aquele ali não seria nada sem mim.

— E seu filho, Sir Frederick?

— Pior ainda. Precisa ver o pedido de casamento que fez para Lady Caroline
Hamilton. Ridículo. E, se não fosse pela minha Lotty, ele sequer estaria casado
com Tessa!

Bem, nesse ponto eu tinha de concordar com ela. Frederick era bastante
inútil em relação à sua vida amorosa.

De uma forma ou de outra, a continuidade do tema deu a Andrew tempo


suficiente para se recuperar do medo insensato da bengala de mamãe. Eu tinha o
direito de temê-la, pois era uma dama delicada; além do mais, ela dormia sob o
mesmo teto que eu! Ele, porém, não tinha a mesma justificativa.

— De qualquer maneira, como posso homenageá-la se não sei seu nome,


Lady Morgan?

— Sua esposa sabe qual é o meu nome, capitão Winchester — mamãe


replicou duramente.

Eu também o conhecia, mas nem morta o contaria a Andrew sem a


autorização expressa e por escrito de mamãe.

— E o senhor vai conhecê-lo quando sua filha nascer — ela explicou,


apontando novamente a bengala para ele, e ele se afundou no sofá. Ridículo.

— Será uma honra termos a senhora como a madrinha de nossa filha, ou do


nosso filho — Amélie disse à mamãe, dirigindo-me um olhar de desculpas.

— Eu sei, minha querida.

— No elogio de Amélie a senhora acredita? — Decidi retornar à discussão,


agora que mamãe estava satisfeita com sua posição de madrinha.

Adquirida de forma irregular e injusta, diga-se de passagem.

— Claro que sim. Para aguentar o capitão Winchester, a dama precisa ser
verdadeiramente gentil.

— Achei que desejava que eu me casasse com ele, mamãe.

— Sim, para ver como eu estou desesperada para vê-la casada.

Naquele instante, o outro homem inútil da minha vida, Frederick, decidiu


aparecer. Ele e Tessa tinham claramente vindo direto da cabana, e não esperavam
encontrar-nos na sala de visitas.

Os cabelos de Frederick continuavam desgrenhados, enquanto que o vestido


de sua esposa estava todo amassado. Ouvi risinhos de Amélie e os ombros de
Andrew sacudindo em uma risada silenciosa.

Eu adoraria fazer algum comentário sarcástico sobre o estado deles, porém,


na última vez em que os embaracei, mamãe fez questão de me lembrar que eu
sequer tinha um noivo, enquanto que eles já estavam se esforçando ao máximo
para lhe dar um neto.

Eu não acreditava que eles faziam o que faziam com o intuito de satisfazer o
desejo de mamãe de ter um bebê em Gregory House, mas consegui me manter
milagrosamente calada.

— O que está se passando aqui? — Frederick questionou.

— Sua irmã me fez um elogio. O que significa que quer me pedir algo.

— Depois conversamos sobre isso, mamãe.

— Ah, então sabe o que ela quer, Frederick? Exijo que me digam, agora!

Eu e meu irmão mais velho nos entreolhamos. Desde pequenos, éramos


muito bons em trocar mensagens silenciosas apenas com olhares. Os olhos dele
me diziam, “não diga nada, maldição!”, e os meus respondiam, “preciso dizer
alguma coisa, maldição!”.

Que bom que mamãe ainda não lia nossos pensamentos. Se soubesse o
quanto xingávamos em nossas próprias mentes, ela nos bateria até quebrar a
bengala.

— Preciso ir à Escócia! — Eu enfim admiti, um pouco mais desesperada do


que queria.

— Eu também preciso de muitas coisas, Charlotte — ela disse calmamente,


seu tom gélido como neve. — Por exemplo, preciso que as minhas filhas se
casem.

— Mamãe, é muito importante. Preciso visitar uma pessoa.

— A menos que esta pessoa seja seu noivo, não irá.

— Vou visitar meu noivo! — inventei.

Oh, céus. O que eu havia feito?


— Como? — Frederick gritou.

— Quem? — Andrew quis saber.

— Parabéns! — Tessa desejou.

Amélie apenas me contemplou com um olhar desconfiado.

— Finalmente! — Mamãe levantou-se e me abraçou. — Sabia que ler a


Bíblia serviria para alguma coisa! Oh, minha querida! Tinha certeza de que
morreria uma solteirona!

— Nem sabe quem é, mamãe — eu a recordei.

— Ele está vivo?

— Claro.

— Está preso?

— Não! — Ela pensava que eu estava desesperada o suficiente para arranjar


um noivo criminoso?

Bem, na verdade, meu noivo nem existia, então ele podia ser até um pirata.

— É um advogado? Sabe que detesto o tipo.

— Não.

— Então meus parabéns, minha querida!

***
Agosto, 1816
Capítulo 6
CHARLOTTE

Menos de suas semanas mais tarde, nós estávamos na Escócia. Antes de ir ao


meu destino final, Rosebery Hill, precisava passar em Crawford Hall para deixar
Tessa e fazer uma breve visita aos Hamilton.

Queria falar com Caroline, a irmã mais velha de Tessa, e a noiva original do
meu irmão. Caroline era uma mulher muito bonita e inteligente, que tinha
perdido o noivo no ano anterior de forma trágica, pouco tempo antes do
casamento.

Desde então, ela estava em um luto profundo, e, apesar das cartas que eu e
Tessa enviávamos a ela todos os meses, suas respostas eram raras e curtas.

Durante nosso longo percurso, eu fui convencida por Frederick a revelar o


meu grande segredo a Tessa. Temi que ela se chateasse ao descobrir que eu não
estava noiva de verdade; ao invés disso, ela ficou animadíssima.

— Você é tão famosa! Nem acredito que eu li Lady M durante todos esses
anos e não me dei conta de que era você.

— Ah. Então você conhece os meus livros?

— Se conheço? Eu devo ter lido cada um deles meia dúzia de vezes!

Claro que ela iria gostar dos meus livros. Tessa acreditava em
relacionamentos equilibrados, em que a mulher não era simplesmente uma
propriedade do marido, e sim parte atuante da família, em todas as instâncias.

Engraçado como eu jamais me inspirava a contar histórias de mulheres


submissas ou de perfeitas damas. Minhas heroínas eram rebeldes, autênticas,
independentes.

— Não podemos contar nada disso a seus pais.

— Não se preocupe, Lotty. Seu segredo estará a salvo comigo.

— E o noivado? — Frederick perguntou.

Já era ruim o bastante mamãe achar que eu estava comprometida com Lorde
Devon, não poderia contar a mesma mentira aos Hamilton. Tessa e Frederick
concordaram que seria melhor dizermos que eu o visitaria por outro motivo,
talvez para visitar uma amiga que estaria hospedada na propriedade ou algo
assim.

— Pode pedir a Lorde Devon ajuda para arranjar alguma desculpa que
justifique sua presença em Rosebery Hill.

— Que não tenha qualquer relação com Lady M — eu disse.

— Ou com noivados que não existem — Frederick esfregou, mais uma vez,
a minha mentira ridícula na minha cara.

— Combinado, então. Ninguém pode saber que Lady Morgan acredita que
Charlotte e Lorde Devon estão noivos — Tessa encerrou o assunto quando o
cocheiro abriu a porta da carruagem.

Lorde e Lady Hamilton, como de costume, nos aguardavam em frente à casa,


e a dama estava bastante animada. Imaginei que fosse por causa da filha, mas ela
veio me abraçar antes.

— Querida Charlotte! Sua mãe já nos contou a novidade! Meus parabéns!

Ah, não.

***

— Que novidade, Lady Hamilton?

Quando uma dama se encontra em uma encruzilhada, o segredo é se fazer de


desentendida. Talvez, ela estivesse falando de outra novidade.
— Ora, do seu noivado.

Mamãe provavelmente enviara um mensageiro de emergência para avisar.


Provavelmente, àquela altura, a Inglaterra inteira (e parte da Escócia, pelo visto)
sabia do meu noivado. Do meu falso noivado. Pelo menos, meu suposto noivo
raramente deixava sua propriedade, e então era capaz de sequer saber que estava
de casamento marcado com uma dama inglesa que o chamara de arrogante.

Por outro lado, fora ele quem me obrigara a retornar à Escócia, deixando-me
sem outra saída a não ser mentir para mamãe. Ou seja, no fim das contas, toda
essa bagunça era culpa de Lorde Devon.

— Ah. Obrigada.

Minha resposta foi curta; talvez isso desencorajasse Lady Hamilton a


prosseguir no tema.

— Jamais imaginei que você e Lorde Hamilton poderiam ter algum


relacionamento — eu me enganei. Ela continuou a falar no assunto. — Na
realidade, sequer sabia que se conheciam.

— Pois eu achei óbvio — Lorde Hamilton comentou. De onde ele tirara


isso? Que o fato de eu me casar com um homem arrogante e isolado era óbvio?
— Ele é um cavalheiro estranho; ademais, também gosta de livros.

Ah. Onde havia gentileza em Lady Hamilton, havia sinceridade crua em seu
marido. Apesar de suas palavras ofensivas, eu me divertia com seus comentários
ácidos.

— De qualquer forma — a esposa o interrompeu, embaraçada —, Lorde


Devon é um homem maravilhoso.

— Ele é insuportável.

Achei que tinha pensado aquilo, porém, as caras de choque do lorde e sua
esposa indicaram que eu havia dito em voz alta.

— Como?

— Digo, às vezes ele é tão maravilhoso que chega a ser um pouco


insuportável.

— Isso não faz qualquer sentido — Lorde Hamilton me olhou desconfiado.

— Bem, estamos pensando em oferecer um baile de noivado para vocês em


setembro. O que acha?

Oh, céus. Aquilo era uma péssima ideia. Eu conhecia Lorde Devon – meu
falso noivo – muito pouco, mas o suficiente para saber que ele detestava festas
ou qualquer evento que pudesse ser minimamente divertido. Ele tinha aquele
jeito sisudo de viver a vida; precisava de motivos para reclamar.

Em uma palavra, insuportável. Um insuportável bastante atraente, ainda


assim, insuportável.

— Não há qualquer necessidade, Lady Hamilton. O noivado será longo.

Para todo o sempre, na realidade. Vendo agora o meu copo meio cheio,
aquele noivado de mentirinha poderia me ajudar com mamãe; eu não precisaria
mais participar das temporadas londrinas. Aí, poderia terminar o noivado com
ele em uns cinco ou seis anos, quando já não teria mais idade para casar.

— Noivado longo? — Lady Hamilton parecia confusa. — Sua mãe nos


escreveu que se casarão em outubro.

Meu coração quase parou.

— Como?

Oh, céus. Oh, céus. Ohcéus. Ohcéusohcéusohcéus.

— Na realidade, ela insistiu que fizéssemos a festa de noivado. Não acha


uma ótima ideia?

— Eu... Eu...

Eu deveria saber que não seria possível enganar mamãe! Agora, ela me
obrigaria a casar com Lorde Devon, nem que tivesse que nos arrastar até a igreja.

— Convidei até mesmo a sua mãe para vir!


Senti o estômago embrulhando. Torci para não vomitar sobre os pés de Lady
Hamilton.

— Foi Lady Morgan quem nos avisou que viria para ajudar na organização
— Lorde Hamilton anunciou.

— A ajuda de sua mãe será muito bem-vinda — a esposa tentou ser


agradável, mas tudo no que eu pensava era em possíveis motivos para terminar o
falso noivado antes de outubro.

— Ela não vai ajudar. Vai organizar tudo.

— Lorde Hamilton! — ela deu uma bronca no esposo. — O melhor é que ela
pode retornar à Inglaterra junto com vocês.

Devo ter ficado pálida, porque Lorde Hamilton perguntou;

— Está bem, Charlotte?

— Deve ser a viagem. Deu-me uma enorme dor de cabeça.

— Mentiras também dão dor de cabeça — meu irmão comentou atrás de


mim.

Ele queria me provocar, mas acabou me salvando, pois os dois voltaram sua
atenção a Frederick e Tessa, e eu pude voltar a respirar.

— Minha querida Tessa! Sentimos saudades! Sir Frederick!

— Lady Hamilton. Muito obrigado por nos receber.

Enquanto eles trocaram as costumeiras gentilezas e comentários sobre a


viagem e nossa família em Kent, eu me foquei em acalmar meu corpo
novamente, controlando a respiração e as palpitações.

— Charlotte, soube que não ficará hospedada conosco — Lady Hamilton


voltou a falar comigo, enquanto caminhávamos em direção à casa.

O combinado era que passaríamos algumas horas em Crawford Hall antes de


seguirmos para nosso destino. Na realidade, Frederick estava achando que ficaria
com a esposa. Mal sabia ele que eu tinha outros planos. Nem morta eu iria à casa
de Lorde Devon sem ele.

— Ficarei em Rosebery Hill alguns dias....

— Ou semanas — Frederick disse com um sorriso.

Pois ele se arrependeria de sua provocação.

— Depois virei para cá — finalizei.

— Vai para lá sozinha? Ainda não são casados.

Nem precisei pôr em prática meu plano. Lorde Hamilton, com aquele
comentário seco, o fez para mim. De repente, meu querido e inocente irmão deu-
se conta do que estava prestes a acontecer. Ele realmente não havia percebido
que, mesmo estando falsamente noivos, não haveria qualquer possibilidade de eu
me hospedar sozinha em Rosebery Hill.

Quase gargalhei ao ver sua expressão de desespero ao imaginar que passaria


as noites seguintes longe da esposa de quem não desgrudara desde o casamento.

— Claro que não, Lorde Hamilton. Meu irmão também vai. Ficará comigo
essas semanas...

— Ou dias — ele complementou, com a voz trêmula.

***

Rosebery Hill apareceu de repente, como uma bela miragem em meio a


árvores e atrás de um lago. Parecia um pequeno castelo de contos de fadas.
Conhecendo o homem e sua disposição para ser mal-humorado, eu achei que
viveria em um local escuro, largado, com todos os aspectos de abandono.

Ao invés disso, o que eu vi foi uma mansão muito bem mantida, com largas
janelas e jardins coloridos enfeitando seus arredores, e uma elegante fonte no
meio do lago. Com uma propriedade daquelas, até eu consideraria a
possibilidade de viver nos invernos congelantes da Escócia.

Como eu havia me recusado a escrever a Lorde Devon, de tão irritada que


estava com sua carta desaforada, fora Frederick quem lhe respondera em meu
nome, aceitando seu “convite” para visitar Rosebery Hill. Assim que chegamos
em Crawford Hall, ele também escrevera um bilhete a seu amigo antipático,
avisando o horário em que deveríamos chegar.

Por isso a minha surpresa em não ver Lorde Devon dentre as pessoas que nos
aguardavam em frente a Rosebery Hill.

— Onde está Lorde Devon? — questionei meu irmão, já sentindo o sangue


pulsar com raiva.

— Como sabe que ele não é nenhum dos cavalheiros que nos aguarda?

Ah, claro. Frederick não sabia que eu tivera a infelicidade de conhecer Lorde
Devon anteriormente.

— Eu o vi uma vez... No ano passado... Eu... Eu me perdi e acabei


adentrando as terras dele.

— Como se perdeu? Há uma placa avisando.

Cavalheiros e suas malditas placas! Respirei fundo e tentei responder com a


paciência adequada para uma dama.

— Deve ter caído em uma das muitas nevascas, Frederick.

— Mas há também dois portões.

O que eu fizera para merecer tantos chatos em minha vida?

— Eu invadi a propriedade! Vocês homens não podem ao menos fingir que


acreditam em uma pequena mentira de uma dama? Bando de inúteis!

— Sabe que está falando exatamente como mamãe, não? — um sorriso


apareceu em seus lábios.

Cruzei os braços como uma criança mimada e olhei para fora de novo. Lorde
Devon ainda estava ausente.

— Isso é um ultraje!
— Fala de mamãe, dos portões ou de homens inúteis?

— Falo do fato de Lorde Devon não vir me receber!

Frederick inclinou-se para a frente.

— Lotty, Lorde Devon não pode vir recebê-la porque...

Não deixei que ele concluísse.

— Se eu pude vir do sul da Inglaterra para vê-lo, ele pode dar alguns passos
até a porta principal de sua casa!

— Lotty, Lorde Devon é um cavalheiro com algumas limitações, e...

— Percebi! — interrompi-o novamente. — Uma das limitações dele é a falta


de boas maneiras. Pois eu vou ensiná-lo!

Antes mesmo que a carruagem parasse por completo, eu saltei dela de um


jeito nada educado, e notei os olhares de choque dos inúteis que me esperavam
em frente à casa.

— Lotty! — ignorei os chamados de meu irmão.

Um dos inúteis recuperou-se do choque e sorriu em minha direção.

— Bom dia, sou...

— Com licença! — entrei correndo na casa.

***
Capítulo 7
RICHARD

Em alguns minutos, eu conheceria Lady M. Exceto pelo fato de que ela era uma
das minhas autoras com maior número de vendas, sua existência não tinha
grande relevância para mim até dois meses antes, quando li seu livro de maior
sucesso, Segredo de Sangue.

Tudo começara em uma tarde chuvosa, quando Patrick adentrou meu


escritório esbaforido, com o rosto vermelho e a respiração entrecortada. Era
óbvio que algo o havia assustado. E esse algo, ele relatou, era o novo livro de
Lady M.

Do ponto de vista literário, a obra era muito boa, infinitamente melhor do


que eu esperava para um romance. Todavia, à medida que lia um novo capítulo,
eu ficava mais irritado. A autora, quem quer que ela fosse, havia usado a história
sobre o casamento dos meus pais.

Eu precisava saber como ela conhecia aquela história; tinha que ter sido
algum dos empregados de Rosebery Hill. Precisava saber quem havia me traído.

Para piorar, a história não tinha fim; falava de traição, sem revelar os
traidores, mencionava mentiras, sem explicar quais eram as verdades. Segundo
Patrick, estava prevista uma continuação para o livro; eu, porém, não poderia
permitir que publicassem a história de como meus pais haviam morrido, e
precisava saber qual era a versão que a autora conhecia, qual era a verdade que
ela havia claramente descoberto.

Estava preparado para odiá-lo. Entretanto, sua escrita era tão apaixonante,
seus diálogos, tão realistas, que me vi admirando-o antes mesmo de terminar o
livro. Tentei me convencer de que Lady M poderia ter ouvido aquela história
sem saber a que família o casal pertencia. Ela usara os verdadeiros nomes dos
meus pais, mas seus sobrenomes e títulos eram diferentes.

De uma maneira ou de outra, precisava falar com ela o quanto antes,


descobrir quem eram suas fontes.

A ansiedade era praticamente palpável nas últimas semanas. Desde que


anunciei que Lady M visitaria Rosebery Hill, descobri que havia muitos fãs seus
sob meu teto. Até a austera Sra. Jones deu um meio sorriso quando descobriu
que sua autora favorita ficaria hospedada conosco. Eu jamais adivinharia que
minha governanta era fã de romances. De livros de terror e tortura, talvez.
Romances com muita paixão envolvida? Jamais teria imaginado.

Patrick já saíra com o mordomo para esperar por Lady M e Frederick, mas
eu permanecera no meu escritório. Enquanto que os caminhos da casa até os
estábulos e hortas haviam sido adaptados para a minha cadeira de rodas, não
conseguimos fazer o mesmo na parte de frente da propriedade, senão
estragaríamos parte dos jardins.

Estava terminando de ler o jornal quando escutei sua voz. Eu não a ouvia
havia mais de um ano, mas jamais esqueceria seu tom irritado. Imediatamente,
minhas entranhas despertaram.

— Onde está Lorde Devon? — Lady Charlotte Morgan praticamente berrou.

Ela estava irritada. Muito irritada. E eu não poderia ter ficado mais excitado.

***

Alguém a informou sobre meu paradeiro (não o julgaria, pois nem mesmo eu
teria o espírito de negar qualquer exigência sua) e, alguns segundos mais tarde,
ela entrou no meu escritório. Sem bater.

John ficou boquiaberto. Talvez, pela ousadia da dama. Mais provável que
fosse também por sua beleza. Não estávamos acostumados a receber muitas
jovens, e nenhuma tão deslumbrante. O mordomo, que veio correndo atrás dela,
estava paralisado do pescoço para cima. E eu estava bem acordado entre as
pernas. Por sorte, a mesa escondia a minha situação.

Indiquei ao mordomo, o Sr. Clayton, que a deixasse entrar (como se ele


conseguisse impedi-la), e ele fechou a porta atrás dela, deixando-me sozinho
com meu criado particular, que permanecia encarando a dama, atônito.

Lady Charlotte Morgan era ainda mais bonita do que eu recordava. Seus
olhos eram mais brilhantes, seus lábios, mais cheios, seu rosto, mais vivo, seus
seios, mais arredondados. E ela me encarava como se estivesse prestes a me
matar; como se eu houvesse invadido sua casa, não o contrário.

Decidi ignorar sua falta de modos e ser o educado da situação.

— Bom dia, Lady Charlotte Morgan. Não a esperava aqui.

Agora, mais do que nunca, suspeitava que era a mãe dela a mulher por trás
de Lady M. Aquilo explicaria por que ela estava fuçando a minha propriedade no
ano anterior, e por que viera a Rosebery Hill agora. Provavelmente,
acompanhava Lady Morgan.

— Então o senhor não me ordenou a vir com ameaças ridículas e absurdas?

Como?

Aquilo significava que...

Não, não era possível. Pelos meus cálculos, ela devia escrever desde muito
jovem.

— A senhorita é Lady M?

Ela colocou as mãos na cintura e revirou os olhos para mim.

— Sim, sou eu, seu tolo! Deve ser um verdadeiro inútil para não ter
percebido antes!

Uma adorável e educada dama, como sempre. Senti-me enrijecendo ainda


mais; deveria estar ofendido, no entanto, ela falava de modo tão energético, tão
ousado, tão diferente de como todas as demais pessoas à minha volta se dirigiam
a mim...

Em geral, eu recebia olhares de admiração e pena. Como ela me olharia


quando descobrisse? Por um instante, desejei que não tivesse enviado as
malditas cartas. Se eu soubesse que era ela... Por outro lado, eu precisava saber.
Precisava descobrir a fonte de todas as informações íntimas de meus pais.

De repente, dei-me conta de outra coisa.

— A senhorita queria ver onde morava o seu editor. Por isso invadiu as
minhas terras.

Aquele foi o pior comentário que eu poderia ter feito. Ela ficou ainda mais
corada, aproximou-se da escrivaninha e inclinou-se sobre a mesa, deixando seu
rosto a centímetros do meu. Precisei forçar-me a manter os olhos em seu rosto, a
não baixá-los para encarar o discreto decote que ela usava.

O que não consegui, no entanto, foi manter os olhos longe de seus lábios.

— Não invadi nada, Lorde Devon! Eu me perdi, já expliquei.

— Sim, sim...

Mal escutei suas palavras, tamanha minha concentração para não encarar
seus seios. Ela me encarava como se esperava uma resposta, mas eu não tinha
ideia de qual era a pergunta, se é que havia alguma. Decidi mudar para um tema
mais banal.

— Como foi de viagem?

— Péssima! — ela esbravejou, o rosto ainda perigosamente próximo ao meu.


— Primeiro, sou praticamente obrigada a vir à Escócia, pelos desejos de um
lorde mimado que me ameaça!

— Entendo.

Usei todo o meu autocontrole para não rir de sua clara irritação, para não
acabar com a camada de ar entre nossos lábios e calar suas reclamações com
beijos fervorosos.

— Depois, esse mesmo lorde arrogante sequer faz a gentileza de me


aguardar em frente à casa, o que considero um verdadeiro desaforo!

John finalmente saiu de seu estupor; soltou um gemido de dor,


provavelmente temendo que eu tivesse um dos meus ataques de raiva. Se
qualquer outro ser humano tivesse ousado me chamar de arrogante, eu não
reagiria nada bem.

No entanto, meu corpo parecia adorar quando Charlotte defendia suas


posições, mesmo que essa defesa incluísse algumas ofensas contra a minha
pessoa. Ela não se importava que eu poderia acabar com a carreira dela de
escritora, ou com meu poder na Escócia. Não; ela viera para dizer algo e, mesmo
que aquilo lhe custasse a vida, ela manteria sua posição.

E aquilo era admirável. Os homens mais impetuosos que eu conhecia não


tinham metade da ousadia desta dama.

Infelizmente, eu precisaria agora revelar meu terrível segredo; aquele que ela
não desvendara quando me vira montado. Afastei-me um pouco da escrivaninha,
de maneira que ela pudesse ver a cadeira de rodas.

— Como pode ver, tenho minhas razões para não poder ir recebê-la, milady.

Os olhos dela alargaram-se com compreensão, em seguida, encolheram-se


em desconfiança.

— O senhor não estava cavalgando quando nos conhecemos?

Ela estava mesmo duvidando que eu não era capaz de caminhar?

— Acha que estou fingindo uma coisa dessas?

Ela ficou em posição ereta de novo, afastando-se da mesa, e suas pequenas


mãos retornaram à sua cintura.

— Esperaria qualquer coisa do senhor.

Ela fez beicinho. Uma dama adulta fez beicinho, e eu estava seguro de que
não era para fazer charme ou me seduzir. Ela simplesmente não se importava
com o que pensariam dela, e, muito menos, dava atenção especial à etiqueta.

Conhecer uma pessoa da alta sociedade, seja homem ou mulher, que se


mostrava de maneira tão sincera era como uma brisa fresca de primavera. Era
reconfortante, prazeroso. E, quando a pessoa em questão era uma bela dama, era
também sensual.
— Posso lhe garantir que não estou fingindo. Foi um acidente de infância.

— Ah. — ela olhou para baixo, enfim percebendo o quanto fora grosseira. —
Sinto muito, Lorde Devon.

— Já faz muito tempo. E eu consegui me adaptar relativamente bem.


Consigo montar porque uso uma sela especial.

Ela me encarou com um olhar contemplativo por alguns segundos.

— Imagino que senhor precise se esforçar para cavalgar.

— Sim, claro.

— E não pode se esforçar para receber uma dama?

Ela não desistia nunca?

— Obrigado pela compreensão, Lady Morgan — eu disse sarcasticamente.

— Eu vou sair, e vou dar uma volta com o coche — ela comentou, já se
retirando do escritório.

— Mas...

Ela mal havia chegado! Como poderia estar saindo novamente?

— Em cinco minutos, eu vou retornar, e é melhor o senhor estar me


esperando na porta da casa, como é devido.

Ela bateu a porta atrás de si. John levou longos segundos para mover-se,
inclinando a cabeça em minha direção, esperando a minha ordem.

— O que está fazendo, homem? Temos apenas cinco minutos!

***
Capítulo 8
RICHARD

Exatos cinco minutos depois, o coche que transportava meus convidados


aproximou-se. Deu a volta no lago e, em seguida, parou bem em frente ao local
onde eu, John, o Sr. Clayton e Patrick aguardávamos por Frederick e sua irmã.

Àquela altura, a casa inteira já sabia o que havia se passado, e notei alguns
olhares curiosos vindos das janelas. Aparentemente, Frederick ficou tão
horrorizado com o comportamento da irmã que apenas pediu desculpas a Patrick
enquanto Charlotte o puxava pelo braço de volta à carruagem.

Vira a mulher duas vezes e, em ambas, ela havia me impressionado.

Frederick deixou a cabine primeiro, e ajudou a irmã a sair. O Sr. Clayton


contorceu-se um pouco, provavelmente esperando que ela me desse uma nova
bronca; o que aconteceu, no entanto, foi ainda mais surpreendente.

Ela sorriu. Não um sorriso forçado que damas são treinadas a usar desde
pequenas para demonstrar uma falsa cortesia. Ou sorrisos sedutores que
cavalheiros aprendem a aplicar em mulheres vulneráveis. Não; seu sorriso era
honesto e despido de falsidades ou regras de etiqueta, como tudo nela.

Achei que John desmaiaria ao meu lado.

— Lorde Devon! — ela fez uma elegante cortesia. — Quanto tempo!

Se ela podia fingir que nossa discussão no escritório não acontecera, eu


também conseguiria fazê-lo.

— Fico contente em revê-la, Lady Morgan. E que tenha aceitado meu


convite.
— Não foi bem um convite, foi uma ameaça.

Antes que começássemos uma nova batalha de palavras, seu irmão interveio.

— Lorde Devon, obrigado por nos receber.

Frederick foi incrivelmente cordial, parecendo também ter se recuperado da


confusão de minutos antes. Eu apresentei Patrick, meu criado particular e meu
mordomo a Charlotte, que foi mais do que gentil com cada um deles,
encantando-os de imediato.

Eles a encaravam como se tampouco se lembrassem de como ela havia


invadido minha casa para jogar acusações contra a minha pessoa.

Seria perigoso deixar que ela ficasse aqui muito tempo, eu logo soube. Em
breve, todos na casa estariam encantados com ela. Em breve, seria impossível
resisti-la.

— Preciso conversar com sua irmã a sós o quanto antes — anunciei a


Frederick.

— A irmã está aqui, Lorde Devon — a irritação tocou levemente seu tom,
avisando-me que eu não deveria ignorá-la. Mal sabia ela que tal feito era
impossível. — De qualquer maneira, todos temos nossas prioridades, Lorde
Devon. Infelizmente, as nossas não são correspondentes.

— Ah, não?

— Bem, eu gostaria de me refrescar antes. Damas gostam de se refrescar e


de se alimentar após uma longa viagem feita contra sua vontade.

— Lotty... — seu irmão sussurrou em tom de aviso.

— Vai insistir neste ponto até o final da estada? — questionei.

— Certamente. Estou começando a irritá-lo?

Ela me dirigiu um sorriso travesso que, juro por tudo que é mais sagrado,
poderia ter feito que minhas calças explodissem naquele instante, na frente de
todos.
Todos me olhavam de maneira curiosa, e foi quando lembrei-me que
Charlotte fizera uma pergunta.

— Nem um pouco, milady.

— Hã... O Sr. Clayton vai levá-la até seu quarto — Patrick avisou,
quebrando o feitiço entre nós.

— A Sra. Jones não está aqui?

Em geral, era ela quem fazia tais arranjos, especialmente considerando que a
convidada era uma dama.

— Hã... Ela teve que sair. Tinha assuntos urgentes para resolver no vilarejo.

Assuntos... Sei. Ela deve ter avistado Charlotte quando ela entrou na casa aos
berros, e decidiu escapar. Já imaginava a expressão de seu rosto quando ela
descobrisse que sua autora favorita era o Anticristo.

Charlotte seguiu o Sr. Clayton enquanto que seu irmão ficou para trás,
ajudando John e Patrick a carregarem a cadeira de volta para dentro.

— Ela não vai ceder, sabia? — ele comentou, suando, quando estávamos no
hall de entrada.

— Espero que não. Assim é mais divertido.

John e Patrick riram, mas Frederick manteve-se sério.

— Divertido? Espere até conviver com ela todos os dias.

E todas as noites, uma vozinha em minha cabeça disse.

Maldição, a mulher mal havia chegado e eu já estava pensando em como


seria passar a noite com ela? Se ela fosse tão fogosa na cama como era em suas
discussões... Eu estava em sérios apuros.

***

Usei o tempo longe dela para reestabelecer meu autocontrole. Ela não ficaria
muito tempo. Eu não sabia se podia confiar nela, considerando que ela sabia da
história dos meus pais sem qualquer explicação. Ela claramente me detestava.
Tolerava-me, na melhor das hipóteses. Seu irmão era um homem honrado. Ela
era uma das minhas autoras de maior sucesso. Eu não faria bem a ela.

Havia diversas razões para eu me manter distante, e elas me ajudaram a


reconstruir o muro que eu deixava à minha volta. Assim, era seguro; eu do lado
de dentro, e o mundo do lado de fora.

Já estava me sentindo mais confortável com a presença de Charlotte em


Rosebery Hill até vê-la. Estávamos conversando na sala de jantar, quando o
cômodo ficou repentinamente em silêncio. Por sorte, a dama não reparou no
efeito que causou, pois conversava animadamente com o irmão.

Patrick levantou-se abruptamente e arrastou a cadeira ao seu lado para que


ela sentasse. Eu sentia falta de muitas coisas; sentir a grama sob meus pés, correr
até os músculos das coxas ficarem doloridos, subir árvores, viajar livremente.
Jamais sentira falta de fazer uma gentileza para uma dama. Até aquela noite.

Eu queria ter usado as malditas pernas para me levantar, dar a volta na mesa,
puxar a cadeira para Lady Charlotte Morgan e lhe dizer como ela estava bonita.

Era melhor que não o fizesse. Alguns males eram para o bem. Eu já havia
condenado Patrick e tia Julia àquela prisão comigo. Era uma bela prisão, ainda
assim, limitava nossa liberdade. Não queria arrastar uma mulher para aquela
situação, muito menos uma com tanta energia como Charlotte.

Ainda assim, doía-me vê-la divertindo-se com Patrick. Queria que ela
gargalhasse de meus comentários, que seu sorriso fosse dirigido a mim.

Aqueles pensamentos eram egoístas; era raro Patrick ter a oportunidade de


divertir-se, e ele parecia mais leve. Até mesmo suas costumeiras linhas de
expressão suavizaram-se um pouco.

Minha lógica dizia que eu deveria estar feliz por Patrick, enquanto que o
resto do meu corpo queria arrancá-lo de seu assento e jogá-lo para longe dela.
Estava tão entretido com meus pensamentos macabros que mal notei quando
Charlotte virou-se para mim. Ela precisou fingir tossir para minha atenção
retornar a ela.

Quando nossos olhares se cruzaram, ela anunciou docemente;


— Ah, Lorde Devon, devo avisá-lo que estamos noivos.

***
Capítulo 9
RICHARD

Patrick engasgou com o vinho. John começou a tossir compulsivamente atrás de


mim. O Sr. Clayton derrubou um garfo no chão. Frederick ficou mais pálido que
uma vela. Eu não acreditei no que ouvi.

— Como?

Minha pergunta deve tê-la ofendido, pois Charlotte revirou os olhos.

— Céus, cavalheiros e o medo de compromisso. É um noivado de


mentirinha, Lorde Devon.

Como se esse detalhe fizesse alguma diferença.

— Poderia explicar melhor como estamos noivos, tendo em vista que jamais
a pedi em casamento, de verdade ou de mentira?

Achava aquela questão bastante óbvia, porém, aparentemente não o era para
a dama em questão. Nada com relação a Charlotte era óbvio ou mundano.

— O senhor me obrigou a vir até a Escócia. Contudo, esqueceu-se de que


damas não podem simplesmente viajar quando desejam, como cavalheiros.

— Entendo — não entendi absolutamente nada. — E o que isso tem a ver


com o fato de estarmos noivos?

— Estamos noivos de mentirinha — ela repetiu, impaciente. — Bem,


precisava explicar à mamãe a minha urgência repentina de vir à Escócia.

Ela falava como se aquela justificativa fosse a mais natural do mundo!


Precisava viajar? Então criava um noivado fictício!

Notei os ombros de Patrick sacudindo, e dirigi a ele um olhar ameaçador. Era


melhor ele não ousar rir agora. O assunto da mesa acabara de ficar sério.
Praticamente fatal.

— E não havia nenhum outro motivo que convenceria Lady Morgan a deixá-
la vir? — disse entredentes, forçando-me a permanecer polido.

— Não — Charlotte e o irmão responderam em uníssono.

— Além disso, sabe que já tenho idade para ser uma solteirona, não?

Daquela vez, Patrick não segurou a risada. Eu simplesmente não estava


acreditando no teor daquela conversa. Parecia que, a cada vez que dialogávamos,
ela encontrava uma forma nova de me surpreender. A cada nova resposta dela,
mais perdido eu ficava.

Agora entendia por que Lorde Hamilton sempre repetia como mulheres eram
o verdadeiro mistério do universo. Céus, eu falava o mesmo idioma que a dama
e mal compreendia uma frase inteira do que ela dizia.

— Como ter um noivado de mentira ajuda a sua situação marital?

— Tem ideia de como é sofrido ter de aguentar todos aqueles cavalheiros


pomposos durante as temporadas londrinas?

— Não, nunca pude ir a Londres — disse o óbvio.

Não era impossível viajar com a cadeira de rodas, apenas um grande


inconveniente. Então, eu achara menos complicado simplesmente ter uma boa
vida em Rosebery Hill, ao invés de ter uma vida medíocre sofrendo pelas
estradas do país.

— Céus, que sorte.

— Lotty! — seu irmão reclamou, e Patrick tornou a rir.

— O quê? Se Lorde Devon fosse uma pessoa sem rendas ou serviçais à sua
disposição, seria uma coisa. No entanto, ele tem tudo de que precisa bem aqui.
— Exceto uma esposa — Patrick comentou e, se eu tivesse uso dos pés,
chutaria suas malditas canelas.

— Mas tem uma noiva de mentira... — Até mesmo Frederick, que


geralmente era sério, entrou na brincadeira.

— Não sabem? — se estávamos naquele jogo, então eu participaria dele. —


Eu não me casei por causa de Lady Morgan.

— Lady Morgan é minha mãe! — as palavras saíram um pouco emboladas.


Ela já tomara mais vinho do que deveria, notei pelo olhar preocupado que o
irmão direcionou à sua taça vazia. — Podem me chamar de Charlotte, já que não
sei por quanto tempo serei prisioneira aqui.

Ignorei o comentário irônico.

— O que quis dizer, Lorde Devon? Com o fato de não ter uma esposa por
causa de Lotty? — Frederick perguntou.

— Sua irmã me disse que, se eu tivesse uma esposa, seria obrigada a rezar
todas as noites pela pobre alma dela.

— Lotty! — Ele ficou sério novamente.

— Ele me disse coisa muito pior, Fred! Acusou-me de não ser uma dama!

Acusei mesmo. E ela tinha ficado tão irritada quanto estava agora.
Simplesmente irresistível. Sem conseguir controlar o desejo, imaginei se toda a
pele dela ficaria corada como seu rosto estava naquele momento.

— E o que você fez para Lorde Devon acusá-la? — seu irmão questionou em
tom de acusação.

Ele conhecia Charlotte muito bem, pelo visto.

— Se ele fosse um cavalheiro de verdade, não diria algo tão ofensivo sob
nenhuma hipótese! — De repente, ela pareceu lembrar-se de algo e tornou a falar
comigo, em um tom de voz gentil, como se não tivesse dizendo as coisas mais
ofensivas sobre a minha pessoa momentos antes. — Ah, antes que eu me
esqueça, haverá também uma festa de noivado.
— Como?

— Festa. De. Noivado. — Ela repetiu lentamente, levantando a taça para que
uma criada a enchesse. — No final de setembro ou começo de outubro, creio.
Será em Crawford Hall.

— Os Hamilton acham que vamos nos casar também?

— Sim. Oh, mamãe é incorrigível.

— Agora é tudo culpa de Lady Morgan — comentei, mais uma vez sem
acreditar no que ouvia.

— Claro que não! Mamãe apenas ficou feliz que sua filha finalmente aceitou
se casar. Porém, não sei se ela achará o mesmo quando o conhecer. O senhor é
um tanto sisudo.

— Sisudo? — daquela vez, fiquei verdadeiramente ofendido.

— Charlotte! — seu irmão reclamou mais uma vez, não que fosse fazer
qualquer diferença.

— Concordo com a dama — Patrick, o traíra, disse.

— De qualquer maneira, a culpa de toda essa confusão é sua, Lorde Devon.

— Perdão?

— Fico contente que saiba que errou e tenha pedido desculpas. Vou pensar se
devo aceitá-las. Não foi nada gentil me obrigar a vir, Lorde Devon.

Fiquei tão estarrecido que não sabia o que dizer. Honestamente, não tinha
mais argumentos. Olhei para Frederick e Patrick. Eles pareciam tão tontos com
os rumos daquela conversa quanto eu.

— Bem, vou buscar algo para me agasalhar — Charlotte levantou-se


abruptamente. — Encontramo-nos no escritório em um quarto de hora?

Antes que eu pudesse responder, ela deixou a sala de jantar.

— Ela é sempre assim?


— Sim. Ela é sempre assim — Frederick levantou sua taça para mim, como
se me desejasse boa sorte para lidar com ela no escritório.

— Devo temer pela minha vida? — questionei, metade brincando, metade


sério.

— Não, ela é inofensiva.

— Jamais perde uma discussão? — insisti.

— Reze para que não perca — ele disse. — Ela fica muito pior quando isso
acontece.

***

Eu estava lendo um relatório quando ela entrou no escritório. Daquela vez,


pelo menos, esperou ser anunciada por John. Com um gesto, pedi que nos
deixasse a sós, e não pude deixar de reparar em sua cara de decepção quando
saiu do cômodo.

Charlotte estava enrolada em uma espécie de xale, apesar da temperatura


estar bastante confortável, para a Escócia. Por sorte, quando ela avisou que iria
buscar agasalho, eu pedi a John que acendesse a lareira e a deixasse bastante
aquecida para a minha convidada.

O tema da nossa conversa já seria frio e mórbido o bastante; não queria que a
temperatura também lhe desse desconforto. Indiquei que ela sentasse na poltrona
em frente à minha cadeira de rodas, deixando a escrivaninha entre nós, e ela o
fez sem dizer qualquer palavra.

Não era nada ortodoxo ficar a sós com uma dama daquele jeito, porém,
depois de explicar brevemente ao seu irmão que o assunto se referia à morte dos
meus pais, ele aceitou nos dar privacidade, desde que eu deixasse a porta de
acesso à sala de jogos entreaberta, onde ele estaria fumando um charuto com
Patrick.

Conseguia escutá-los conversando, mas suas vozes estavam abafadas. As


construções de Rosebery Hill eram centenárias e, inicialmente, foram
construídas com propósitos militares; por isso, suas paredes eram sólidas e
espessas. Apesar de estarem no cômodo ao lado, parecia que eles conversavam
na cozinha ou no jardim, a muitos metros de distância.

— Tem alguma ideia por que eu pedi que viesse a Rosebery Hill? —
questionei, depois dela me garantir que estava confortável.

— Tenho as minhas teorias.

Claro que ela tinha.

— Gostaria de ouvi-las.

— Talvez, já soubesse que eu era Lady M, apenas fingiu não ter ideia.

— Por que eu faria isso?

— Quando nos conhecemos, o senhor disse que desejava me ver novamente


— ela não teve qualquer pudor em ressaltar.

Apesar de me acusar de ser arrogante, não havia uma gota sequer de


humildade em Lady Charlotte Morgan.

E ela estava certa; não apenas eu mesmo admitira aquilo no nosso primeiro
encontro como também me via pensando nela nas situações mais
inconvenientes.

— Se fosse apenas isso, não precisava tê-la obrigada a vir. Se meu interesse
fosse genuíno, eu teria ido visitá-la em Crawford Hall quando esteve lá no ano
passado, milady — ela poderia ter razão, mas eu não lhe daria mais fogo para me
queimar na fogueira.

— Eu passei em Crawford Hall antes de vir para cá. Mary comentou que o
senhor foi visitar os Hamilton poucos dias depois de me conhecer.

Precisaria ter uma conversa com Mary sobre discrição.

— Verdade. Mas os motivos para eu lhe enviar a carta não têm nada a ver
com a senhorita.

— Então por que estou aqui?

— Por causa do seu livro, Segredo de Sangue — ela apertou os olhos,


parecendo confusa. Uma linha surgiu entre suas sobrancelhas. Estaria ela
fingindo? — É a história dos meus pais.

Ela ficou imediatamente pálida. Bem, ela poderia mascarar sua expressão,
entretanto, não poderia fingir a palidez. Estaria nervosa por que enfim percebera
que fora pega no flagra ou por outro motivo?

— Não. Não é possível — ela disse baixinho, quase para si mesma.

— Eles se chamavam Elias e Margaret, como os seus protagonistas.

— Pare com isso!

Seus olhos verdes ficaram embargados. Se ela estava simulando a emoção,


era a melhor atriz que eu jamais vira. Puxei as rodas da cadeira e dei a volta na
mesa, ficando ao seu lado, virado de frente para ela.

Por um momento, fiquei inseguro de como proceder a seguir. Como


estávamos em casa, nenhum dos dois usava luvas. Eu jamais havia tocado sua
pele sem qualquer tecido entre nós. Hesitei por meio segundo e coloquei a mão
sobre sua. Assustei-me com a frieza de sua pele.

Ela não se afastou, então envolvi suas duas pequenas mãos dentro da minha,
enquanto enxugava as lágrimas que escorriam pelo seu rosto com a mão livre.
Não queria continuar, mas era preciso.

Por mais que eu quisesse acreditar que Charlotte não havia conseguido
descobrir a história dos meus pais de forma ilícita, pela forma que havia reagido,
tampouco poderia acreditar que ela não soubesse de nada. Precisava entender
como aquela história havia chegado até ela e, principalmente, o que mais ela
poderia saber a respeito deles.

— Lady Morgan — ela olhou para mim, seus olhos avermelhados do choro,
seus lábios partidos, seus soluços contínuos e incontroláveis —, eles se
conheceram precisamente da forma que descreveu no seu livro.

Ela tirou as mãos da minha.

— Mentira!
— E se apaixonaram como a senhorita contou.

Ela levantou-se da cadeira, inclinando-se sobre mim, apontando para a minha


face.

— Por que faz isso comigo?

— Eu que queria perguntar isso à senhorita. Com quem conversou? Quem


lhe falou sobre eles?

Aquilo a fez controlar-se um pouco.

— Como assim, quem me falou?

Ela estava achando que eu era um completo idiota? Na época em que


escreveu o livro, poderia até não saber que as pessoas sobre as quais escrevia
eram os meus pais, poderia desconhecer o fato de que eu herdara Rosebery Hill
de Lorde Elias Devon. Porém, devia ter ouvido a história deles de alguém.

E, por bem ou por mal, eu arrancaria sua fonte dela. Puxei-a para mim, e ela
caiu sentada sobre as minhas pernas, o tronco inclinado em minha direção. Seu
rosto parou a milímetros do meu, e consegui sentir sua respiração acelerada
contra a minha pele.

— Acha que, por ser a mulher mais linda em que pus os olhos, vou acreditar
que não tem ideia do que estou falando?

Seu rosto adquiriu um adorável tom rosado.

— Acha-me a mulher mais bonita que já viu?

Não deveria fazer isso; não estávamos no escritório para isso, porém, ela era
irresistível. Meus lábios quase roçaram nos dela enquanto eu murmurei:

— E a mais difícil também.

Ela afastou o rosto, mas apenas um pouco, apenas para impedir que aquilo se
tornasse um momento sem retorno para a reputação dela. Aparentemente, ela era
muito mais racional do que eu considerara, mais do que eu, inclusive.
Lentamente, ela levantou-se do meu colo e retornou à cadeira. Dirigiu-me
um sorriso tímido ao responder:

— Vindo de um cavalheiro, considero tal característica um elogio.

Mesmo no meio de uma discussão daquelas, ela conseguia me provocar. Não


resisti e sorri para ela, colocando novamente minha mão sobre a dela, que agora
estava morna.

— Como sabe o que se passou entre meus pais, Lady Morgan?

— Charlotte — ela respondeu, e fechou os olhos.

— Diga-me o que sabe, Charlotte.

Ela abriu novamente os olhos, e me encarou intensamente.

— E se nem eu mesma souber, Lorde Devon?

***
Capítulo 10
CHARLOTTE

Levantei-me novamente, e comecei a dar voltas pelo cômodo, dezenas de


perguntas voando pela minha mente. Seria possível eu ter visões da história dos
pais de Lorde Devon ao tocar o medalhão? Se sim, o que aquilo significava?
Será que as minhas outras histórias também eram reais, também tinham
acontecido com pessoas reais?

E a principal questão: como eu explicaria uma loucura daquelas ao homem


que agora me encarava com desconfiança?

— Eu... Eu... — inspirei profundamente, e prossegui; — Sempre tive uma


relação diferente com determinados objetos.

— Como assim, uma relação diferente?

— Algumas vezes, quando toco um objeto, eu consigo... Ver histórias —


expliquei.

— Que histórias? — ele insistiu.

Não queria falar sobre aquele meu segredo; eu o guardara a sete chaves. Nem
mesmo Frederick sabia daquilo. Ninguém. Além de mim. Agora, Lorde Devon
também saberia; ele conheceria aquele canto escuro da minha alma.

Ele merecia saber; eu havia escrito a história privada dos pais dele, por céus!
Nem imaginava como eu me sentiria se alguém escrevesse, em detalhes, um
romance sobre os meus pais.

— Não sei explicar, Lorde Devon. Eu apenas vejo histórias. É como se


conseguisse ver vidas se passando à minha frente, como se eu estivesse lá e não
estivesse ao mesmo tempo. Compreende?

— Não. Raramente eu a compreendo, Charlotte — apesar das palavras serem


duras, seu tom era gentil. Ele me dirigiu um sorriso de lado, que eu retribuí.

— Eu sei. Eu também não me entendo, às vezes.

Ele aproximou-se de mim, e parei de andar em círculos. Ele segurou minha


mão com as suas duas gigantes, aquecendo-me por dentro e por fora, fazendo-me
ficar arrepiada. Eu gostava muito mais do seu toque do que era apropriado.

— Não há nada de errado com a senhorita — seus olhos pareciam conseguir


enxergar a minha alma.

— Sempre achei que essas visões fossem apenas como uma onda de
criatividade, que me atingia repentinamente.

— E essas visões sempre vêm quando a senhorita toca objetos?

Ele estava acreditando em mim? Eu decerto não acreditaria nele se ele me


contasse sobre como conseguia “ver” histórias ao tocar determinados objetos.

— Não todos. Apenas alguns. Eu os chamo de meus objetos especiais. Mas


eu não tinha ideia de que as histórias eram de verdade, eu juro.

— Qual foi o objeto que tocou que a fez ter visões dos meus pais?

Engoli em seco. Eu havia encontrado o medalhão na propriedade dele; era


furto, na melhor das hipóteses. De qualquer maneira, eu sabia que, mais cedo ou
mais tarde, teria de devolvê-lo.

Na realidade, eu coloquei o medalhão no bolso antes de descer para o


escritório com o intuito de deixá-lo no cômodo. Entretanto, minha ideia inicial
era escondê-lo em uma gaveta ou algo assim, para que Lorde Devon o
encontrasse acidentalmente. Não queria ir para a prisão. Infelizmente, agora a
minha liberdade estaria nas mãos dele.

Tirei a joia do bolso e abri minha mão para que ele pudesse vê-la.

— Foi este objeto aqui.


— O medalhão de mamãe — ele sussurrou, sua voz ficando trêmula.

— Encontrei-o aquele dia na estrada. Quando invadi sua propriedade.

— Enfim, admitiu — ele me olhou de soslaio, o meio sorriso retornando aos


seus lábios.

— Desculpe-me. Se eu soubesse...

— A culpa não é sua. Viu como a história termina?

— Não.

Minhas visões terminavam quando eles se casaram. Não vi nada além disso.
Ainda assim, havia várias questões sem respostas, inúmeros segredos que não
tinham sido revelados. Eu tinha pensado que, talvez, a inspiração ressurgiria com
o tempo, entretanto, desde aquela noite que passei acordada escrevendo o livro
alucinadamente, nenhuma nova ideia me ocorrera a respeito de Elias e Margaret.

Não imaginava o que poderia ter acontecido, mas eu pressentia que havia
algo de muito errado no casamento deles, pela forma que Lorde Devon fizera
aquelas questões sobre seus pais.

Estiquei o braço na direção dele, a fim de lhe devolver o medalhão. Ele tocou
a joia e, em seguida, fechou a minha mão em volta dela.

— Fique com ele. Até enxergar a história completa.

— Por que deseja isso?

— Porque há muitas coisas mal explicadas sobre a morte da minha família. E


preciso que a senhorita me diga exatamente o que aconteceu.

***

Passei um bom tempo encarando o medalhão, tocando-o em lugares


diferentes, fechando-o em minha mão e concentrando-me na história do casal a
quem ele pertencera. Nada. Quando o sono estava incontrolável, decidi que não
conseguiria avançar naquela noite.
Talvez, no fundo, eu tivesse medo de descobrir o que acontecera no acidente
que matara os pais de Lorde Devon. Que o deixara paralítico. Que matara sua
irmã mais velha, Claire, que tinha apenas dezesseis anos na época. A história era
terrível, e ele se lembrava apenas de alguns momentos sem qualquer nexo.

Ele se recordava de ter saído de Rosebery Hill para visitar Crawford Hall.
Lembrava-se também de neve caindo. E do sorriso de Claire. De repente,
sentiram um solavanco, como se tivessem parado de uma vez. Em seguida,
sentiu um puxão; a carruagem estava caindo, e caindo, e aí, a escuridão.

Ele não sabia quanto tempo havia se passado quando ouviu os gritos do Sr.
Patrick Duncan. Apenas se recordava de sentir braços ao seu redor, uma voz lhe
dizendo que ficaria bem, um grito implorando que pedissem ajuda.

Lorde Richard Devon tinha apenas doze anos quando o acidente ocorreu. O
Sr. Duncan tinha dezoito. Ele estava prometido a Claire desde que eram infantes.
Jamais se casou depois que a perdeu.

Inspirei fundo. Eu queria ajudá-lo. Se era a verdade sobre o acidente que o


libertaria, então eu me esforçaria ao máximo para consegui-lo. Entretanto, não
seria hoje. Coloquei o cordão em volta do pescoço, sentindo o frio do ouro do
medalhão sobre o peito. Deitei-me e deixei o sono me levar para longe, bem
longe.

***

O casamento foi lindo. Nem acreditava que eu era agora Lady Margaret
Devon. Não mais a Srta. Lindsay, e sim a dama de Rosebery Hill, esposa de um
dos homens mais importantes da região.

E ele era tão romântico. Apesar das regras rígidas de papai, ele não desistiu
de mim. A despeito de sermos acompanhados sempre que estávamos juntos,
mesmo depois do anúncio de nosso noivado, ele não teve dúvidas de que
desejava me desposar.

Levei algum tempo para acreditar que os boatos terríveis sobre ele na
cidade eram apenas mentiras de pessoas invejosas. Ele era um homem bom e
íntegro, e provara isso nos seis meses em que ficamos noivos.

Assim que entramos no coche que nos levaria à sua propriedade (mal podia
acreditar que viveria ali!) ele começou a me beijar. Mamãe conversara comigo
sobre as intimidades entre marido e mulher, sempre ressaltando que deveríamos
deixar os homens nos guiarem, que nossa falta de experiência era uma virtude,
não um problema.

Seus beijos eram um pouco agressivos, mas talvez fosse a paixão que ele
precisara inibir durante tanto tempo. Suas mãos agarravam meu corpo, e
comecei a sentir vergonha. Estava rápido demais. Não conseguia acompanhá-
lo.

Recusei-me a reclamar. Era isso o que eu queria, não? O amor de meu


marido, que ele me desejasse e me desse toda a sua paixão, e era isso que ele
fazia. Porém, será que deveria doer tanto? Suas mãos apertavam meus braços
com força, e eu sabia que deixariam marcas roxas se ele não parasse.

De repente, ele se afastou um pouco, apenas para puxar meu vestido para
baixo, com o corpete, revelando meus seios. Quis escondê-los, mas ele tornou a
prender meus braços de cada lado do meu corpo.

Assustei-me a ver sua expressão; era faminta, como de um predador


encarando sua presa. Eu não o reconheci. Aquele não era o noivo gentil e
educado que eu tivera nos últimos seis meses.

Esperei que ele me olhasse de novo, para que pudesse ver o temor em meus
olhos e, quem sabe, diminuir um pouco o ritmo de seus avanços. Sabia que ele
não fazia por mal; estava apenas muito excitado por estarmos, enfim, juntos
perante Deus e a sociedade.

Ele não me olhou, entretanto. Seus olhos ficaram fixados em meus seios e,
em seguida, sua boca se fechou em volta de um dos meus mamilos. Ele me
mordeu levemente, e senti uma mistura de prazer e dor, de vergonha e desejo.

Ele começou a puxar meu mamilo dentro de sua boca, ao ponto de deixá-lo
tão sensível que estava dolorido. Em pouco tempo, eu não suportava mais. Aí ele
foi para o outro seio, e repetiu o procedimento. Será que deveria ser tão violento
assim? O desejo já me abandonara, assim como o prazer.

Mamãe havia recomendado que eu relaxasse, que ficar tensa pioraria a dor.
Tentei fazê-lo, até sentir suas mãos procurando a barra da minha saia, e
subindo entre as minhas pernas.
Oh, céus. O que ele iria fazer?

— Deixe-nos um momento! Tenho assuntos urgentes a resolver com a minha


esposa! — ele gritou para o cocheiro.

O veículo parou e escutei o homem saindo, enquanto Elias subia as minhas


saias até revelar a minha intimidade. Tentei fechar as coxas, manter alguma
dignidade, mas ele as abriu com os joelhos, enterrando-as sob seu peso. A dor
tornou-se excruciante.

— Está me machucando, Elias! — implorei que parasse.

— Cale a sua boca e faça seu papel de esposa — ele replicou, baixando as
calças, encostando algo duro e pulsante na minha entrada.

Ele se empurrou para a frente, e senti meus músculos contorcendo-se ao


redor de seu membro duro, como se eu estivesse rasgando por dentro. A
sensação foi uma das piores que já senti.

— Pare!

— Parar? — ele se afastou um pouco e arremeteu em mim de novo, fazendo-


me berrar de dor. — Por que acha que me casei com a senhorita?

— Não me ama?

— Eu amo o que tem entre as suas pernas; o que nenhum outro homem
tocou. O que será apenas meu.

***
Capítulo 11
RICHARD

Sonhava com olhos verdes e brilhantes, lábios vermelhos e fartos, e uma voz de
veludo que clamava por mim.

— Lorde Devon! — a voz disse, o tom insistente, quase desesperado.

Eu queria tocá-la, mas ela não estava ao meu alcance; tão perto e tão distante
ao mesmo tempo...

— Lorde Devon! — a voz repetiu, desta fez, com mais força.

Eu ainda estava sonhando?

— Lorde Devon, está acordado?

Senti mãos sacudindo meus ombros. Mãos pequenas e firmes que pertenciam
a uma dama que não desistia.

— Agora estou — minha voz saiu rouca e baixa. — O que houve?

Forcei-me a abrir os olhos. Os olhos verdes do meu sonho estavam me


encarando, mas aquele era o mundo real. Sua expressão era de medo e
preocupação. Ainda assim, não era apropriado que Charlotte tivesse entrado
sozinha no meu quarto.

Deveria pedir que se retirasse, porém, algo em seu olhar me impediu.

— Tive um sonho terrível, Lorde Devon.

Sentei-me na cama, tentando afastar-me um pouco dela. A lareira ainda


estava acesa, e, junto com a luz da lua que passava pelas janelas, conseguia vê-
la. Charlotte vestia um robe de algodão cujo laço fora desfeito, deixando-o
aberto o bastante para revelar uma chemise de dormir que batia em seus joelhos.
Apesar da fraca iluminação, era possível verificar que não usava nada sob a
chemise.

Seus pequenos pés estavam descalços; não devia ser nada demais, porém, foi
uma das visões mais eróticas da minha vida. Imaginei-me beijando-os, subindo
os lábios pelos seus calcanhares, suas pernas, chegando ao ponto intocado entre
as suas coxas.

Precisava concentrar-me no problema em questão, no motivo pelo qual ela


viera aos meus aposentos no meio da noite. Subi o olhar até alcançar seu
delicado pescoço. Dele, pendia um cordão com o medalhão de mamãe. A nossa
conversa no escritório veio à mente.

— Seu pesadelo está relacionado aos meus pais?

Ela acenou uma vez, sua postura rígida. Sentou-se ao meu lado na cama, sua
proximidade começando a despertar meu corpo.

— O casamento deles era feliz?

Uma pergunta íntima demais para o meu gosto; entretanto, sabia que ela
desejava me ajudar, e que ela era a chave para eu descobrir o que se passara de
verdade naquele acidente.

— Nunca vi nada que me provasse que não era, mas...

— Mas o que? — ela questionou quando parei de falar.

— Às vezes, mamãe olhava para o meu pai com uma expressão estranha.

— Expressão de quê? — ela insistiu.

— Medo.

Ela não parecia surpresa com a minha resposta; na realidade, parece ter
confirmado seus temores, o que me deixou ainda mais curioso.

— Com o que sonhou, Charlotte?


— Com o que aconteceu logo depois do casamento deles.

Abruptamente, ela começou a chorar, e eu a puxei para acolhê-la em meus


braços.

— Foi tão ruim assim? — questionei, acariciando seus cabelos, que estavam
presos em uma trança frouxa.

— Se eu tinha dúvidas de que morreria uma solteirona, não as tenho mais —


ela replicou, entre soluços.

— Eu sinto muito.

— Seu pai foi horrível!

— Charlotte, eu sinto tanto.

— E eu sonhei que era a sua mãe! Oh, como ela sofreu!

Ela não precisava explicar mais nada. Alguns homens consideravam que
suas esposas eram apenas mercadorias, meros objetos que serviam para três
propósitos: status social, dote considerável, e sexo.

Infelizmente, para esses homens, falsos cavalheiros, pouco importava os


desejos e as vontades da mulher. Aparentemente, meu pai era um deles. Aquilo
me doeu em lugares que eu nem sabia que existiam dentro de mim.

Eu era jovem quando meus pais faleceram, e mal conhecera meu pai, que
passava mais tempo longe de Rosebery Hill do que na propriedade; entretanto,
tinha diversas memórias felizes de mamãe e da minha irmã mais velha. E eu as
definia em uma palavra: adoráveis.

Mamãe era doce, gentil, e carinhosa. Claire era inteligente, brincalhona, e


engraçada. Se tivessem a oportunidade de se conhecerem, ela e Charlotte seriam
grandes amigas, considerei com pesar. Talvez, se Claire tivesse sobrevivido,
seria feliz com Patrick, e eu poderia me casar com...

Não, não poderia pensar assim. Minha vida não era feita de “e se”. Precisava
lidar com a minha realidade. E com o fato de que não poderia fazer Charlotte
feliz, prendendo-a a um paralítico que mal podia deixar sua casa.
Os soluços de Charlotte foram diminuindo, até pararem por completo. Eu me
mantive quieto; pelo que ela havia descrito, sonhara com algo extremamente
traumático para uma dama, especialmente se viu pela perspectiva de mamãe.
Quando, enfim, ela parecia estar mais calma, eu a afastei o suficiente para poder
encará-la.

— Quero que deixe o medalhão comigo.

— Não! Preciso descobrir mais!

— Não posso permitir que tenha pesadelos assim, Charlotte! Quem sabe o
que mamãe sofreu?

— Preciso fazer isso, Lorde Devon. Pela sua mãe. Pela garota apaixonada
que foi enganada pelo homem que amava.

Como eu desejava beijá-la agora. Quando a conheci, imaginei tratar-se de


uma mulher mimada com uma inteligência acima do normal. Agora, entretanto,
entendia que seu coração também era maior do que o da maioria. Ela nem
conhecera mamãe, mas sentia empatia por ela, desejava ajudar a mulher que
ninguém conseguiu ajudar.

— Tudo bem.

— O senhor tem certeza de que quer descobrir a verdade?

Eu sabia exatamente o que ela queria dizer. A verdade seria dura, cruel. Em
sua primeira noite usando o medalhão, fora revelado a Charlotte que o
casamento de meus pais começara repleto de violência e agressividade. O que
mais ela descobriria? Ainda assim, para mim, havia apenas uma resposta àquela
pergunta.

— Eu preciso da verdade.

Achei que a conversa estava encerrada, porém, depois de se recompor e de


enxugar as lágrimas, Charlotte continuou sentada ao meu lado na cama, olhando
para tudo, exceto para mim.

— A senhorita quer me contar mais alguma coisa?


— Na verdade... Agora que desabafei... É que... Fiquei com algumas
dúvidas.

— Dúvidas? Pode perguntar. Espero conseguir respondê-las.

E que não fossem muitas; estava ficando bem difícil manter uma postura
adequada perto dela.

— Quando um homem e uma mulher têm intimidades... Dói muito para a


mulher?

***

Seria possível morrer de ansiedade por causa de uma dama? Ou pior, por
causa de uma questão de uma dama? Se eu fingisse que tinha desmaiado, ela iria
embora? Não, provavelmente jogaria água na minha cabeça para me acordar e
despertaria a casa inteira.

Nem podia imaginar o que a Sra. Jones faria se descobrisse a minha


convidada no meu quarto àquela hora da noite. Pior, o que seu irmão faria se nos
visse.

A pergunta era ainda mais inadequada do que sua presença em meus


aposentos, ainda assim, seu olhar não transmitia nada além de uma verdadeira
curiosidade, misturada com temor da resposta. Ela não fizera a pergunta para me
provocar, muito menos para me seduzir, simplesmente porque queria
compreender algo e eu era o único por perto a quem poderia perguntar.

— Tendo em vista que sou um homem... — comecei, sem saber ao certo o


que dizer.

— Claro...

— Creio que dependa muito mais do parceiro.

— Se ele é gentil? — ela questionou, ficando um pouco mais esperançosa.

— E compreensivo — complementei, torcendo para que ela não desse


prosseguimento ao tema.
Minha resposta pareceu satisfazê-la, mas ela não deixou meu quarto, apenas
ficou com o olhar perdido, como se tivesse se esquecido de onde estava. E com
quem estava. E como ela estava vestida.

Limpei a garganta para lhe desejar boa noite, entretanto, as palavras que
saíram de minha boca foram outras.

— Não deveria desistir de se casar, Charlotte.

— É fácil para um homem dizer isso. Vocês não viram propriedade da


esposa.

Segurei-a pelos ombros, para que ela voltasse a me encarar.

— Eu jamais a machucaria.

Maldição! Devia ter dito que o homem certo jamais a machucaria. Porém, a
ideia de que outro cavalheiro sequer a tocasse, sequer a visse como eu a via
agora, fazia meu sangue ferver.

— Se me acha a mulher mais bela que já conheceu, por que não tentou nada
comigo?

A questão dela me pegou desprevenido. E trouxe uma nova preocupação à


minha mente.

— Cavalheiros já foram inconvenientes com a senhorita?

— Já tentaram — ela disse, fazendo um som de escárnio que faria seu irmão
explodir de vergonha.

Eu achei adorável.

— O que faz nessas situações? — Nada de bom, disso eu tinha certeza.

— Depende. Em geral, um pisão no pé funciona. Às vezes, preciso lhes dar


uma joelhada entre as pernas.

— Entendo. — E esperava não ser vítima das tais joelhadas.

— Não que eu fosse fazer qualquer dessas coisas com o senhor se me


beijasse.

Ela havia dito mesmo aquilo? Não somente o fizera como agora encarava
meus lábios descaradamente. Maldição! Por que eu não havia lhe dado boa noite
e deixado que ela fosse embora? E agora, o que eu faria? Não poderia seguir
meu coração, ou o meu desejo, ou o meu corpo, senão estaríamos ambos nus
entre lençóis em poucos segundos.

Soltei seus ombros e fechei os olhos, tentando pensar em algo desagradável.


O cheiro de mofo do porão. O bafo de cebola do padre Newman. Os porcos
banhando-se na lama. Urubus rodeando um cadáver. O bolo de cenoura da Sra.
Jones.

Estava começando a funcionar, quando...

— Não me deseja, Lorde Devon?

Abri os olhos por causa do susto. Maldição! Havia apenas olhos verdes, e
lábios carnudos, e seios redondos, e cabelos sedosos.

— É impossível resisti-la, milady — acabei confessando. — E é exatamente


por isso que devo fazê-lo.

— Não faz qualquer sentido, milorde.

— Quer ficar presa nesta casa para sempre? Quer ficar presa a um homem
que não pode sequer dançar com a senhorita pelo resto de sua vida? Que não
pode arrastar a cadeira para a senhorita? Que não pode acompanhá-la em uma
caminhada pelos jardins?

Apesar de tudo que eu havia dito, queria que a resposta dela fosse sim. Era
egoísmo da minha parte, mas eu almejava, com todo o meu ser, que ela me
desejasse a ponto de relevar aqueles obstáculos.

Charlotte ficou calada, entretanto, sem palavras, sem resposta. E aquilo


significava um não. Ela era apenas gentil demais para admiti-lo.

— Precisa ficar longe de mim, Charlotte.

— É o primeiro cavalheiro que não tenta se aproveitar de mim, Lorde Devon


— ela enfim levantou-se, caminhando em direção à porta do quarto.

— E isso é bom, não é mesmo?

Para mim, a questão era óbvia. Porém, nada era óbvio quando se tratava de
Lady Charlotte Morgan. Ela olhou por cima do ombro, a mão na maçaneta.

— Seria, se não fosse também o primeiro homem que eu gostaria que não se
comportasse como cavalheiro.

***
Capítulo 12
RICHARD

Nem preciso mencionar que a noite foi dura. Extremamente e dolorosamente


dura.

Pelo menos, eu estava com a consciência limpa, acreditando que fizera a


coisa certa. Até John acabar com meus ideais de bom samaritano.

— Bom dia, Lorde Devon. Dormiu bem?

Estava tão focado em Charlotte na noite passada que não me dei conta de que
John poderia ter escutado nossa conversa. Por conta das minhas limitações, ele
dormia em um quarto adjacente ao meu, conectado por uma porta. Caso eu
tivesse alguma urgência, ele chegava rapidamente.

Sempre considerei nossa proximidade muito confortável, até aquela manhã.


Sua pergunta fora inocente; seus olhos, entretanto, diziam-me que ele escutara
tudo.

— Imagino que tenha reparado na visita que recebi ontem.

Um dos cantos de seus lábios curvou-se para cima.

— Crê que fiz a coisa certa, John?

— Precisa mesmo de uma resposta, se me fez essa pergunta?

— Sim, John.

Ele começara a trabalhar como meu criado particular há seis anos. Antes
disso, tinha brincado com ele diversas vezes quando éramos crianças; ele era o
filho de um dos cocheiros do meu pai, que ainda trabalhava conosco.

Nossa relação profissional tornara-se amizade há tempos, apesar de John


manter a formalidade, especialmente quando estávamos sendo observados. Eu
aprendi a ouvir seus conselhos; em geral, eram racionais e razoáveis. E ele não
deixava de ser sincero apenas para me agradar, algo que eu admirava nele.

— O que é certo ou errado? Seguir a etiqueta? Os padrões da sociedade? Ou


seguir os nossos corações?

— Pedi uma resposta, homem, não um maldito poema.

— Ela deseja o senhor.

— Aparentemente.

— E o senhor claramente a deseja.

Aquele comentário não carecia de resposta. John havia notado a minha


atração pela irmã de Sir Frederick desde a primeira vez em que a conheci, no
início do ano anterior.

— Por que a deixou ir, Lorde Devon?

— Não quero que ela fique presa aqui.

— A dama parece ser bastante inteligente.

— Mais do que deveria.

Ele riu.

— E muito independente também — ele continuou.

— Novamente, mais do que deveria.

— Então não acha deveria ser ela a tomar essa decisão?

Ele se pôs a me ajudar a me vestir, deixando a pergunta no ar. Ela havia


deixado claro que me desejava, todavia, quando lhe falei da realidade da minha
condição, das desvantagens de ter um marido paralítico, vi hesitação em seus
olhos.

Porém, poderia eu julgá-la por ter dúvidas a esse respeito? Ela não parecia
ter qualquer insegurança no que concernia à sua atração por mim.

Ainda assim... Ela não tinha ideia do efeito que a minha limitação teria sobre
o casamento. Atração era uma coisa, amor, outra bem diferente, e casamento,
ainda mais complexo.

Seria cruel condená-la àquela vida, e, por mais que a conhecesse pouco, a
última coisa que eu queria era ser o responsável por tirar a vivacidade de seu
olhar, ou o sorriso de seus lábios.

Estava decidido a deixar as coisas como estavam, a mantê-la a uma distância


segura, porém, a pergunta teimou em sair.

— O que teria feito em meu lugar, John?

Ele voltou-se para mim, surpreso com a pergunta. De repente, um sorriso


abriu em seus lábios, espalhando-se pela expressão em seu rosto, dando um
brilho a seus olhos.

— Se uma dama como Lady Charlotte Morgan me desse uma chance? Eu me


casaria com ela hoje mesmo, senhor.

***

Era sempre o primeiro a chegar ao café-da-manhã. Gostava de começar meu


dia cedo, uma vez que, para mim, as atividades mais simples podiam ser de
execução extremamente delicada.

Para a minha surpresa, Charlotte chegou logo em seguida. Pelas manchas sob
seus olhos, cheguei à conclusão de que, assim como eu, ela não dormira muito.
E, pelo sorriso que John tentava suprimir, ele também notara seu cansaço.

— Bom dia, Charlotte — eu desejei animadamente, enquanto John se


retirava da sala com uma desculpa esfarrapada.

Ela apenas me olhou friamente em resposta, levantando uma sobrancelha.


Eu sabia exatamente como tirar aquela sobriedade de sua face. Fechei os
olhos e comecei a tremer violentamente. Charlotte correu até mim e sacudiu-me
pelos ombros.

— Richard, o que houve? Está se sentindo bem? — ela questionou, tocando


minha testa para medir a temperatura. Estava certo de que estaria absolutamente
normal.

Abri um olho e parei de me mover.

— Uma dama acabou de congelar meu sangue com um olhar.

Ela revirou os olhos, mas um sorriso mínimo surgiu em seus lábios.

— John — ela chamou pelo meu criado, provavelmente adivinhando que ele
estaria escutando atrás da porta.

Ela acertou. Ele estava. Entrou no cômodo meio segundo depois.

— Sim, Lady Morgan.

— Lorde Devon parece estar com frio. Poderia trazer cobertores para ele, por
favor?

Seu tom era doce, mas sua intenção era diabólica. Aquela mulher perversa;
ela sabia que eu não iria dar para trás.

Tentando segurar a gargalhada, John deixou-nos a sós; de verdade, daquela


vez.

— Apronte uma dessas novamente, e pagará ainda mais caro — ela


comentou enquanto se sentava de frente para mim.

— Valeu a pena — seu olhar encontrou o meu. — Consegui que falasse


comigo. E ainda ganhei um bônus: chamou-me pelo primeiro nome.

O rosto dela ficou corado. Ela abriu a boca para responder, mas foi impedida
pela entrada de uma ajudante de cozinha. John retornou logo depois, trazendo
um cobertor para cobrir minhas pernas. Santo John; sabendo o que Charlotte
aprontava, ele trouxe o mais fino de que dispunha.
Sabia que Charlotte estava se segurando para me dizer algo quando
estivéssemos a sós. Porém, não parecia que aquilo aconteceria tão cedo. Patrick
chegou enquanto a criada servia-nos chá.

— Bom dia, Lady... — ele recebeu um olhar ameaçador da dama que o fez
engolir a formalidade. — Digo... Bom dia, Charlotte.

— Bom dia — a irritação sumiu, como se jamais tivesse existido.

— Rick, dormiu bem? Parece um pouco cansado.

Havia tantas formas de responder àquela pergunta em particular. Eu poderia


ser o perfeito cavalheiro, eu poderia ser o maior dos devassos, ou eu poderia
provocá-la, em retaliação pelo que ela fez com o cobertor. Nem preciso dizer
qual das opções eu escolhi.

— Na realidade, meu sono foi interrompido.

Ela deixou o garfo cair.

— Por quem?

— Ah, alguém que não se deu por satisfeita até que eu estivesse acordado.
Alguém que invadiu meu quarto no meio da noite.

Ela se engasgou com o pedaço de pão que acabara de colocar na boca.

— Está bem, Charlotte?

— Sim, acho que engasguei. Ajude-me, Sr. Duncan!

Ela achou que tinha interrompido de vez a conversa ao distrair Patrick,


porém, não esperava que seu irmão estivesse nos escutando.

— Ouvi-o do corredor — Frederick comentou, depois de nos cumprimentar.


— Quem invadiu seu quarto, Lorde Devon?

Charlotte parecia desesperada. O que inventaria daquela vez? Um desmaio?


Antes que pudesse fazê-lo, eu respondi:

— Uma coruja.
— Coruja? — Charlotte e o irmão questionaram em uníssono, um com
curiosidade no tom, a outra com desconfiança.

— Sim. E falante, também. Não parava de cantarolar com aqueles grandes


olhos verdes me encarando.

Percebendo que Charlotte já passava bem, Patrick deu a volta na mesa e


sentou-se ao meu lado. Frederick acomodou-se em frente a ele, à direita da irmã.

— Olhos verdes? Nunca soube que corujas tinham olhos verdes. Não são
amarelos, Lorde Devon? — Charlotte questionou ironicamente, e eu não segurei
um sorriso maroto.

— Meu quarto é próximo ao seu — Patrick comentou. — Não escutei essa


coruja.

— Porque ela não desejava acordá-lo. Apenas queria me afligir.

— Talvez, a culpa foi de Lorde Devon — Charlotte sugeriu, passando


manteiga no pão como se quisesse assassinar o pão.

— O que posso ter feito à coruja?

— Deve tê-la irritado. O senhor é um bocado irritante.

— Charlotte! — seu irmão a repreendeu, enquanto que Patrick riu.

Eu não deixaria barato.

— Corujas também podem ser bastante inconvenientes, com sua cantoria


incessante e suas atitudes inadequadas.

— Pois o senhor deveria dar graças aos céus que uma coruja fez o favor de
visitar seu quarto para animá-lo um pouco.

— Ainda estamos falando de corujas? — Frederick questionou.

Patrick olhava de mim para Charlotte, como se estivesse, enfim, somando


dois mais dois.

— Não preciso de companhia noturna, Lady Morgan — comentei,


entredentes, ignorando meu outro convidado.

— Pois acho que é exatamente disso que precisa, Lorde Devon.

— Definitivamente não falamos mais de corujas, Sir Frederick — Patrick


anunciou o óbvio, um sorriso irritante em sua face.

— Algo está acontecendo entre vocês?

— Não! — eu e Charlotte respondemos em uníssono.

— Então continuam apenas sendo noivos de mentirinha?

— Sim! — afirmamos juntos.

— E eu não tenho com o que me preocupar?

— De forma alguma — eu garanti a Frederick.

— Lorde Devon é um verdadeiro cavalheiro, Fred. Mesmo que aparecesse


apenas com minha chemise de dormir em seu quarto, ele não faria absolutamente
nada a respeito.

Maldita diabinha! Ela queria que o irmão me chamasse para um duelo?


Estava tentando me matar por meio de uma terceira pessoa?

— Charlotte, não diga uma coisa dessas nem de brincadeira! — ele exaltou-
se, levantando-se da mesa.

— Pois eu não brinco com tais assuntos — ela replicou calmamente, sem
tirar os olhos de mim.

Era impressão minha ou o cômodo tinha ficado quente, de repente? Como a


temperatura dentro de um maldito vulcão!

Frederick inspirou profundamente e sentou-se novamente à mesa, desistindo


do assunto. Tomou um gole de seu chá, que, àquela altura, já deveria estar frio e
tomou a sábia decisão de mudar o rumo da conversa.

— Lotty, estava pensando que, agora que já teve sua conversa com Lorde
Devon, podemos ficar hospedados em Crawford Hall.
Imediatamente, as ondas de raiva que emanavam de Charlotte, as quais
estavam dirigidas a mim, passaram para o seu irmão. Tive pena do coitado.

***
Capítulo 13
RICHARD

Conseguia observar Charlotte tentando controlar a irritação. Suas pequenas


mãos fecharam-se em punhos sobre a mesa, as maçãs de seu rosto ficaram
coradas, seus lábios franziram-se até formar uma linha, e havia uma veia
pulsando na lateral de seu pescoço.

Ela passou dois segundos completamente controlada. Aí, no terceiro, ela


explodiu.

— Por céus, Frederick, não pode ficar longe de sua esposa uma noite sequer?

— Lotty!

— Intimidades de marido e mulher devem ser muito boas mesmo.

— Charlotte!

— De qualquer forma, terá que apagar esse seu fogo, porque ainda não estou
pronta para ir.

A criada fingiu ter algum motivo para deixar a sala. John foi servir o chá frio
a todos, buscando algo para fazer. Patrick estava com uma uva entre os dedos, no
caminho entre seu prato e sua boca, parada no ar. Eu estava boquiaberto.

Estava elaborando um plano para fugir dali, porque eu sabia o que eles
fariam, mais cedo ou mais tarde. Eles me envolveriam na discussão. E,
independentemente do que eu dissesse, alguém acabaria chateado comigo. Não
queria perder a confiança de Frederick, e muito menos ousaria irritar Charlotte
novamente. Já havia a provocado o bastante naquela manhã.
Infelizmente, antes que eu pudesse tomar alguma atitude, Frederick me
puxou para dentro da discussão acalorada.

— Não é você quem precisa estar pronta para ir embora, Charlotte. A casa é
de Lorde Devon.

Maldição! Por que eu era o dono de Rosebery Hill?

— Eu...

— Lorde Devon e eu ainda não resolvemos nossas questões, não é mesmo


Lorde Devon?

O olhar dela indicava que ela me daria um de seus famosos chutes entre as
pernas se eu fosse louco de contrariá-la.

— Bem...

— Viu, Frederick? — Graças aos céus, ela me interrompeu de novo. —


Agora, seja um bom amigo e apoie Lorde Devon. Ele precisa de sua ajuda.

— Perdoe-me, Lorde Devon, mas vamos embora esta tarde.

Quatro pares de olhos voltaram-se para mim, pesando mais do que toneladas
de ferro. Um par de olhos em particular me preocupava. Charlotte. Ela não
desejava ir, contudo, eu não sabia quanto tempo mais conseguiria manter a
postura de cavalheiro se ela insistisse em invadir meus aposentos à noite.

Seria melhor deixá-la ir, por mais que isso doesse.

— Entendo, Sir Frederick — respondi sem olhar para ela, apesar de sentir
seus olhos verdes me pinicando como pequenas agulhas.

— Podemos visitá-lo diariamente, até que o senhor e minha irmã resolvam


suas questões.

— Agradeço a gentileza.

***

— Agradeço a gentileza — ela me imitou quando seu irmão deixou o


recinto. — Poderia ter me ajudado a ajudar o senhor, Lorde Devon!

Ela jogou o guardanapo sobre a mesa, levantou-se e começou a caminhar em


torno do cômodo. Na terceira volta, segurei-a pelo pulso quando ela passou perto
de mim.

— Charlotte, não desejo que brigue com seu irmão por minha causa.

— Não se preocupe. Não sou eu quem vai brigar com ele.

Soltou-se de mim e recomeçou sua atividade de criar um buraco no chão da


sala de jantar.

— Do que está falando? — Patrick questionou, porém, ela ignorou a


pergunta.

— Lorde Devon, o senhor se importaria se eu contasse a história de seus pais


para uma pessoa da máxima confiança em um caso de vida ou morte?

Bem, se era caso de vida ou morte...

— Sim, creio que não haveria problema.

— Obrigada. Com licença.

Ela nos deixou embasbacados. Aparentemente, era algo que ela fazia com
frequência.

— Sabe o que acabou de autorizá-la a fazer? — John indagou.

— Não faço ideia. Juro que não entendo metade das coisas que ela diz.

— O que John quer dizer é que não haverá briga entre irmãos, Rick. E sim
entre marido e mulher.

Agora eu também não compreendia mais Patrick e meu criado. Excelente; se


continuássemos assim, dentro de uma semana precisaria de um tradutor para me
explicar o que diabos se passava na minha própria casa.

— Para quem acha que ela vai contar o seu segredo? — Patrick questionou,
uma das sobrancelhas arqueada.
A resposta me acertou como um raio.

— Oh, céus. Ela vai falar com Tessa.

— Exatamente. Charlotte vai pedir que a esposa de Sir Frederick interceda


por ela.

Um sentimento indesejado surgiu em meu peito; esperança. Não deveria


querer que ela ficasse. Seria melhor que conversássemos apenas na companhia
de outras pessoas, e que ela passasse suas noites a alguns quilômetros de
distância.

Ademais, Frederick tinha um argumento válido. Agora que tínhamos


conversado, Charlotte não precisava mais ficar hospedada aqui. Apenas
precisava vir me ver quando tivesse uma nova visão. Meu lado racional
explicava isso pacientemente, enquanto os sentimentos crescentes por ela
gritavam que eu deveria ter insistido para eles que ficassem mais alguns dias.

Não, eu não podia alimentar falsas esperanças.

— Sir Frederick estava convicto de sua posição — comentei com Patrick. —


Acho que nem mesmo Tessa conseguirá convencê-lo.

— Quer fazer uma aposta?

***

Perdi a aposta naquela mesma tarde. Estava procurando um livro na


biblioteca, acompanhado de Patrick e Frederick, quando vi um movimento na
janela. Havia duas mulheres conversando no jardim da frente.

Não precisei de muito tempo para identificar a dona dos belos cabelos
negros. Charlotte. A outra vestia a famosa capa vermelha de Tessa, e segurava as
rédeas de um garanhão branco.

— Aquela é a sua esposa no jardim? — perguntei a Frederick, que parou ao


meu lado na janela.

— Sim. Não sabia que ela viria.


Estranhei o fato dela estar ali. Não que Tessa ou qualquer dos Hamilton não
fosse bem-vinda. Muito pelo contrário. O que não fazia sentido era o fato dela
vir nos visitar no mesmo dia em que seu marido ia para Crawford Hall. O que
quer que ela tivesse a dizer a ele, poderia fazê-lo à noite, não?

A não ser que...

— Creio que Lady Charlotte Morgan enviou uma mensagem esta manhã à
sua esposa, Sir Frederick — John comentou ao adentrar o cômodo,
comprovando que as minhas suspeitas estavam corretas.

— Não! — ele empalideceu. — Oh, céus.

Deve ter chegado à mesma conclusão que eu e todos os demais ocupantes do


cômodo.

— Está com medo de duas damas inofensivas, homem? — Patrick


questionou ironicamente.

— Sr. Duncan, tenho medo de apenas duas coisas na vida; da bengala de


mamãe e da língua de Charlotte.

— Não parece muito assustador, Sir Frederick.

— Quando for vítima de uma delas, conversamos novamente.

De repente, Tessa soltou um gritinho de raiva e voltou-se para a casa. Todos


os homens – mesmo Patrick, que era metido a corajoso – encolheram-se quando
seus olhos repousaram sobre janela da biblioteca. Seus olhos franziram, em
seguida, ela correu para dentro da propriedade.

A porta abriu-se de forma violenta.

— Bom dia, senhores — o sorriso no rosto delicado de Tessa não indicava


que o dia continuaria bonito por muito tempo. Jamais a vi daquele jeito.

— Meu amor, o que faz aqui? — seu marido disse com um sorriso, mas sua
voz estava trêmula, e seus ombros, tensos.

Quem disse que eram os homens os donos das suas esposas? Naquele
casamento, parecia ser exatamente o contrário.

— Ouvi dizer que quer deixar Rosebery Hill ainda hoje.

Indiquei para John e Patrick que deveríamos deixá-los a sós, até um deles
apontar para a única porta por onde poderíamos sair. Tessa estava em frente a
ela, obstruindo a nossa fuga.

— Sim — ele limpou a garganta algumas vezes antes de dar prosseguimento


—, Lorde Devon já conversou com Lotty.

— Quando eu decidi me casar com você, não sabia que tinha um coração de
pedra!

— Como?

— Quer deixar Lorde Devon sem a ajuda essencial de Charlotte?

Não, não, não. Eu definitivamente não queria fazer parte daquela discussão.
Quatro pares de olhos viraram-se para mim. Patrick e John estavam à beira da
risada, Frederick implorava por ajuda, enquanto que Tessa me encarava com
uma determinação de deixar qualquer homem inseguro.

— Eu... — comecei.

— Bem... — Frederick tentou se defender, mas a esposa o interrompeu.

— Lorde Devon não sofreu o bastante para você, Frederick?

— Mas...

— Acha que ele nem mesmo merece saber o que aconteceu?

— Um momento...

— Não deseja que ele descubra mais sobre o acidente?

— Não entendo...

— Eu é que não entendo como pode ser tão egoísta, Frederick!


Naquele momento, em que o irmão fora encurralado por acusações e parecia
um pequeno e patético rato cercado por uma gatinha bastante feroz, sua irmã
decidiu aparecer à porta. Apesar de tentar fazer cara de triste, a satisfação estava
clara em seus olhos. Aquela diabinha.

Vi o instante em que Frederick aceitou a derrota; ele inspirou profundamente,


endireitou os ombros, e caminhou até sua esposa, colocando as mãos sobre seus
ombros estreitos.

— Meu amor, Lotty entendeu errado — ele sussurrou, passando os dedos por
seus cabelos de um loiro que se aproximava do branco.

— O que quer dizer? — o olhar de Tessa suavizou, assim como suas linhas
de expressão.

Ela podia ser impetuosa, mas era, no fim das conta, uma jovem apaixonada.
Era uma força impressionante de se ver, como o amor mudava as pessoas. Meus
olhos foram automaticamente para Charlotte quando pensei naquela maldita
palavra. Os dela brilhavam com uma inteligência que pertencia apenas a ela.

Charlotte havia feito tudo aquilo por mim. Não por mim, eu me repreendi;
pela minha mãe. Ela não tinha qualquer interesse próprio naquela situação; já
havia me dito anteriormente que, independentemente do que descobríssemos, o
livro que terminaria a história que ela iniciou em Segredos de Sangue seria
completamente criado, sem qualquer relação com a história verdadeira.

— Eu não quis dizer que deixaria a casa de Lorde Devon hoje — Frederick
disse, e Charlotte precisou colocar a mão sobre a boca para disfarçar o sorriso.

Em seguida, ela olhou para mim, a felicidade estampada em seu rosto. Não
queria que ela brigasse com irmão por minha causa, e muito menos que causasse
distúrbios ao jovem casal. Porém, de seu jeito nada convencional e bastante
manipulador, ela encontrara uma maneira de me ajudar.

Ou será que ela também queria ficar perto de mim? Tentei expulsar aquele
pensamento; ideias assim eram perigosas.

— Não deixará Rosebery Hill hoje?

— Claro que não. Ficarei quanto tempo Lorde Devon desejar.


Charlotte fingiu tossir, e Tessa pareceu recordar-se de algo.

— E quanto tempo Charlotte achar que precisa.

O sorriso de Charlotte era contagiante. Senti um reflexo dele em meus lábios


e, ao olhar para meus companheiros, vi que Patrick e John também sorriam.

— Claro — seu irmão disse entredentes.

Aparentemente, ele não considerava o sorriso da irmã agradável.

— Jura?

— Sim — ele segurou o rosto de Tessa entre as mãos —, juro.

— Eu sabia que não havia cometido um erro ao me casar com você.

— Claro que não, Tessa. — Charlotte caminhou para dentro do cômodo e


abraçou a cunhada de lado. — Meu irmão pode ser muito generoso. Quando é
incentivado.

Ela virou-se com Tessa e elas deixaram a casa com os braços interligados.
Todos os homens voltaram a respirar ao mesmo tempo. Depois de alguns
momentos, Frederick dirigiu-se a mim:

— Eu lhe disse que ela era muito pior quando perdia uma discussão.

***
Setembro, 1816
Capítulo 14
RICHARD

Rosebery Hill contava com a presença de Lady Charlotte Morgan havia duas
semanas. Parecia que uma vida inteira havia se passado. Em apenas quinze dias,
ela conseguiu deixar a casa mais leve; exceto pela Sra. Jones, que continua a
evitá-la sempre que podia.

Notei que os criados sorriam mais, que Patrick sempre estava gargalhando
perto dela, que John a encarava admirado. Até mesmo Frederick parecia muito
confortável com a nossa situação. Desde, claro, que ele fizesse suas visitas
diárias à esposa. Charlotte sussurrou um dia que esperava a notícia de um
sobrinho a qualquer momento.

E o que ela fizera comigo? Tudo. Às vezes, eu me esquecia das minhas


limitações, e a imaginava ali em Rosebery Hill ao meu lado, como mais do que
uma convidada. Comecei a sonhar com Lady Devon, e ela tinha olhos verdes e
lábios macios. Ela tinha uma língua afiada e uma inteligência muito acima da
média (definitivamente acima da minha).

O problema dela ter revirado meu mundo era o que aconteceria a ele quando
ela se fosse. A cada novo dia, a possibilidade dela nos deixar me atormentava
mais.

Em pouco tempo, eu tinha me habituado às suas risadas pelos corredores, às


nossas conversas em meu escritório, às nossas refeições animadas e
descontraídas, às nossas cavalgadas juntos, ao seu sorriso radiante ao me ver
toda manhã, às promessas ocultas em seus olhos quando me desejava boa noite.

Estava, como sempre, refletindo sobre formas de tentar me manter


emocionalmente protegido de tudo o que se referia a Charlotte quando a própria
entrou no meu escritório. Ela sentou-se em uma poltrona de frente para a minha
cadeira, fazendo beicinho e cara de sofrimento.

Fiquei preocupado com sua expressão por um segundo. No segundo


seguinte, dei-me conta de que era domingo.

— Bom dia, Charlotte. Está se sentindo bem? — Questionei, já sabendo qual


seria a resposta.

— Acho que tenho dor de cabeça — ela inclinou a cabeça para trás,
fechando os olhos teatralmente, como se sequer conseguisse manter-se acordada.

— Interessante.

— O quê? — Ela abriu apenas um olho, sua voz um fiapo.

— Acabei de perceber que costuma ter dores de cabeça aos domingos.

— Está insinuando algo, Lorde Devon? — como se sua dor de cabeça


estivesse milagrosamente curada, ela levantou-se e colocou as mãos sobre cada
braço da minha cadeira, inclinando-se para me encarar.

— Absolutamente nada — respondi com um sorriso torto.

— Acho bom — ela retornou para a sua poltrona, sua dor de cabeça
aparentemente esquecida. — Ainda não o perdoei por ter me acusado de não ser
uma dama. Acho melhor não me acusar de ser uma má cristã.

— Jamais faria isso. Também percebi que sempre está com as mãos
manchadas de tinta quando retornamos da igreja.

Ela se ajeitou na poltrona, franzindo o cenho, estreitando os lábios.

— Escrever ajuda minhas dores de cabeça.

— Sabe Tessa?

Ela revirou os olhos daquele jeito adoravelmente mal-educado dela.

— A esposa do meu irmão?

— Essa mesma. Ela costumava ter essas dores de cabeça misteriosas


religiosamente aos domingos. Assim como a senhorita.

Ela abriu a boca para falar. Fechou-a novamente. Olhou em volta, tentando
descobrir no escritório alguma coisa para me distrair. Era divertido vê-la sem
fala. Charlotte sem resposta era algo tão raro quanto um aristocrata inglês
humilde.

Enquanto ela se desdobrava para encontrar uma saída para a nossa discussão
infrutífera, seu irmão entrou no cômodo.

— Lotty, Tessa me disse que está com dor de cabeça e não poderá ir conosco
hoje. Vá se trocar, por favor.

Vi suas pequenas mãos agarrando a poltrona como se fosse rasgá-la. Assim


que o irmão saiu, ela soltou um gritinho raivoso:

— Traíra!

— Tessa provavelmente cansou-se de ter a senhorita roubando semanalmente


a desculpa que ela criou. Foi mais rápida desta vez.

— Preciso ir mesmo?

Girei as rodas da cadeira para ficar próximo a ela. Coloquei a minha mão
sobre a sua em um gesto de compreensão.

— Mas os sermões são tão enfadonhos.... — ela admitiu.

Seus olhos arregalaram-se ao perceber a gafe que cometera.

— Digo, muito relevantes, claro. Apenas um pouco... Longos demais.

— Vá com seu irmão — eu sugeri.

Ela seguiu a minha sugestão, levantando-se sem disfarçar a falta de


empolgação.

— Notei que o senhor nunca vai à igreja acompanhado do meu irmão — ela
comentou enquanto saíamos juntos do meu escritório.

— Sou católico.
Não entendi por que razão, mas Charlotte ficou impressionada com a
resposta.

— Que revolucionário de sua parte! — Ela disse, sem disfarçar a admiração.


A qual era, por sinal, totalmente desnecessária.

— Não creio que rezar o Pai Nosso todos os dias seja revolucionário.

— Católicos foram perseguidos na Inglaterra e na Escócia durante séculos,


Lorde Devon havia se passado seus olhos brilhavam ao relatar o óbvio.

— Eu bem o sei, Charlotte — alguns dos meus ancestrais tinham sido mortos
apenas por conta de sua crença.

— É tão proibido... — Ela sussurrou, com um olhar sonhador. — Posso ir à


missa com o senhor? Decerto será mais interessante que o sermão do Sr.
Jackson.

— Esse comentário não foi muito cristão de sua parte. Ademais, os sermões
do padre Newman também são longos.

Ela me ignorou solenemente, de repente animada com a perspectiva de ir à


igreja.

— Oh, será que haverá algum tumulto?

— Sabe que o catolicismo já foi legalizado na Inglaterra há vários anos, não


é mesmo? Não precisamos mais fazer missas secretas.

Quando chegamos à porta principal, Patrick estava lá, nos aguardando. Pela
sua expressão, ele estava escutando a conversa havia algum tempo.

— Por mim, tampouco seriam em latim, mas fazer o quê? — Patrick


comentou sarcasticamente.

— Vou com os senhores, Sr. Duncan! — ela anunciou.

— Ouvi dizer.

— Vamos logo, antes que Frederick venha me procurar!


Como se estivesse escutado seu nome, ele apareceu na escadaria.

— Onde pensa que vai, Lotty? — Ele desceu as escadas apressadamente e


pegou seu chapéu com o Sr. Clayton, que ficou concentrado na conversa.

Essa era outra nova mania que surgiu com a minha convidada. As discussões
na casa tornaram-se, por conta dela, interessantes, e seus desfechos eram sempre
imprevisíveis, motivo pelo qual os criados passaram a ouvi-las descaradamente.

Eu deveria adverti-los e exigir que não agissem de tal forma, contudo, os


pobres coitados raramente tinham motivos de divertimento em suas vidas,
considerando que eu era isolado e raramente recebia visitas.

John estava tão focado nas palavras seguintes de Charlotte que nem piscava.
Assim como eu, ele estava fascinado pela dama; afinal de contas, nenhum de nós
jamais conhecera alguém como ela.

— Esqueceu por acaso que hoje é domingo, Fred? — Ela questionou como
se o irmão fosse um tolo por tê-la feito tal pergunta. — Vou à igreja com Lorde
Devon e Sr. Duncan.

— Eles são católicos.

— Sim, eu sei.

— Nós somos protestantes, Lotty.

— Também estou ciente disso.

— Então por que vai com eles?

— Não foi você quem disse que eu deveria praticar mais o meu latim, Fred?
— ela replicou e deixou a casa como se fosse a rainha da Inglaterra.

***

O vilarejo mais próximo de Rosebery Hill era Geal, que significava branco
em gaélico, uma vez que, durante os invernos escoceses, a cidade inteira ficava
desta cor.
Durante o trajeto entre a propriedade e a igreja, Charlotte encheu-nos de
perguntas sobre o catolicismo e o histórico de perseguição contra católicos desde
que o Rei Henrique VIII rompeu com Roma.

Ela ficava interessada pelo mais irrelevante dos detalhes, e ficava


verdadeiramente revoltada ao nos ouvir contando sobre nossos antepassados que
foram presos, precisaram fugir ou – literalmente – perderam a cabeça por causa
de sua religião.

Quanto mais tempo eu passava com ela, mais admirava sua compaixão pelos
outros, sua curiosidade ilimitada, sua completa falta de discrição ao perguntar as
coisas mais inapropriadas.

Ao chegarmos à igreja, Patrick escusou-se e foi falar com alguns de seus


conhecidos, enquanto John me ajudava a descer e me acomodar na cadeira.
Jamais ficava chateado com Patrick; eram poucas as ocasiões que ele tinha para
socializar, e esta era a sua diversão semanal.

Fiquei surpreso, no entanto, ao notar que Charlotte não o acompanhou; ficou


ao lado da minha cadeira, esperando que John me ajeitasse nela. Ao terminar, ela
avisou que iria empurrá-la ela mesma, dispensando o meu criado particular, que,
depois de me dirigir um olhar e receber a minha confirmação, entrou sozinho na
igreja.

— É bem mais leve do que eu pensava — ela comentou, depois de um


momento.

Em geral, eu não gostava que ninguém me empurrasse. Eu mesmo girava as


rodas. A dama, porém, parecia tão determinada que não quis frustrá-la. Talvez
fosse também o fato de Charlotte não ter me deixado para trás.

— Espere até chegarmos a um declive — sussurrei.

— Oh, os jardins dessa igreja são muito mais agradáveis que aqueles do Sr.
Jackson. Até os jardins do homem são entediantes.

— Soube que o filho dele estava noivo de Lady Caroline Hamilton.

— Sim. Oh, céus! — Ela pareceu lembrar-se de quem estava falando. — Não
deveria falar dele assim! Ele quase virou família.
— Juro que não contarei a ninguém, Charlotte.

— Melhor que não, Lorde Devon — ela sussurrou no meu ouvido, fazendo
os pelos da minha nuca ficarem eriçados. Diabinha; deveria ter imaginado que
ela aproveitaria a oportunidade para me provocar. — Afinal de contas, não seria
bom para sua reputação se descobrissem as blasfêmias que sua convidada de
honra diz.

Olhei em volta, notando que as pessoas já haviam entrado na igreja.


Aproveitei a nossa privacidade e segurei-a pela nuca, virando meu rosto na
direção do dela, até que nossos narizes estivessem quase colados, e sentisse sua
respiração quente contra a minha face.

— Penso que seja muito mais que minha convidada de honra, não? A cidade
toda deve achar que estamos noivos.

Ela olhou para os meus lábios. Meus olhos instintivamente baixaram para os
dela também. Senti seu sangue pulsando mais forte sob meus dedos, vi seu rosto
ruborizando, seus seios redondos subindo e descendo com maior frequência. E,
claro, senti o incômodo que estava ficando cada vez mais comum entre as
minhas pernas.

Fechei os olhos; ela jogara a isca e eu a peguei, despreparado que estava.


Soltei-a e virei o rosto para a frente de novo.

Ela se recuperou rapidamente de nosso momento.

— Já que todos sabem do nosso suposto noivado, não vão estranhar se


passearmos pelos jardins depois da missa. O que acha, Lorde Devon?

— Eu adoraria, Lady Morgan.

Apenas para se vingar de como eu me dirigira a ela, Charlotte deu uma


sacudida na cadeira de rodas, fazendo-me rir.

Ao entrarmos na igreja, minhas suspeitas acerca dos boatos do vilarejo


revelaram-se verdadeiras. O ambiente ficou silencioso, de repente, e todos
encararam – alguns, boquiabertos – minha noiva de mentira. Contra a minha
razão, senti o peito inflar de orgulho. Charlotte era uma mulher e tanto.
A noiva em si, entretanto, não pareceu notar. Estava falando com John sobre
onde eu ficaria. Normalmente, ele deixava minha cadeira nos fundos da igreja, e
ficava em pé ao meu lado. Desse jeito, não atrapalhávamos a passagem de
ninguém e podíamos sair sem problemas um pouco antes da cerimônia terminar.

— Recuso-me a ficar em pé! — ela reclamou.

— É o melhor lugar, Lady Morgan — John replicou nervosamente, seus


olhos me implorando para ajudá-lo.

Uma coisa era observá-la dando sermão nos outros. Outra completamente
diferente era ser objeto de seu escrutínio. Eu bem o sabia.

— A senhorita pode ficar na frente, com Patrick — eu sugeri.

— Quer se livrar de mim, Lorde Devon? Eu o incomodo, por acaso?

— Onde sugere que eu fique?

— Ali.

Ela apontou para a última fileira dos bancos de madeira. Sempre havia
alguns lugares vagos na parte de trás, e o corredor era amplo o suficiente para eu
deixar minha cadeira nele. Ainda assim, se alguém precisasse passar pelo meio,
como o padre Newman, ficaria apertado.

— Vou atrapalhar a passagem, Charlotte.

— Então a igreja deveria ter pensado nisso e arranjado um lugar mais


confortável para um de seus membros mais devotos — ela comentou um pouco
mais alto que devido, para que um dos noviços pudesse escutá-la.

Eu não era, nem de longe, um dos membros mais devotos. E não desejava ter
qualquer privilégio por conta do montante que eu doava anualmente à igreja,
para ajudar com suas reformas e com a comida que eles distribuíam aos
moradores de rua e às pessoas humildes que muitas vezes abrigavam.

No entanto, a reclamação de Charlotte fez inflar um incômodo que eu tinha


quando vinha à missa. Eu me sentia deslocado, excluído, como se não me fosse
permitido fazer parte de uma comunidade espiritual por causa de uma limitação
física.

Por um lado, jamais exigi, ou sequer pedi, um lugar mais confortável. Por
outro, essa era a primeira vez que alguém me defendia perante a minha paróquia.
Irônico como vinha de uma protestante.

Distribuindo olhares irados a todos que ousassem fitar em nossa direção,


Charlotte posicionou a cadeira no corredor, sentando-se, em seguida, ao meu
lado.

— Não deveria deixar que o isolem, Lorde Devon — ela disse de repente.

— Apenas não quero dar trabalho a ninguém.

— Não é dar trabalho; o senhor é diferente, então tem necessidades


diferentes dos outros. Não é crime ser diferente — notei que seus olhos ficaram
embargados de repente, e ela fingiu ler a Bíblia para disfarçar.

De repente, entendi sua preocupação. Charlotte era uma das damas mais
diferentes que já conheci. Ela devia sofrer com os constantes preconceitos da
sociedade inglesa, especialmente com o passar dos anos, quando se recusava a
aceitar um marido que não amasse. Ainda assim, não deixara de ser quem ela
era, de expor suas opiniões ou de agir conforme suas crenças e valores, mesmo
sabendo que poderia ser julgada por isso.

Maldição, eu não queria ter mais um motivo para admirá-la.

***
Capítulo 15
RICHARD

Senti que estava me movendo. Em seguida, a luminosidade aumentou. Separei


as pálpebras; estava de volta nos jardins em frente à igreja. Minha cadeira parou
próximo a um banco de pedra, e Charlotte sentou-se nele, de frente para mim.

Enquanto ela admirava seus arredores, provavelmente acreditando que eu


ainda dormia, eu a observei. Ela usava um vestido simples, cuja coloração, verde
claro, fazia seus olhos ficarem ainda mais brilhantes. As mangas eram curtas e
tinham flores rendadas, assim como a barra do vestido.

Seu chapéu era igualmente simples, com uma fita verde combinando com as
vestes, e, discretamente, ela o afastou um pouco do rosto a fim de sentir o sol
sobre a pele imaculada. Imaginei tudo o que desejava fazer se pudesse ter acesso
àquela pele, e ela parecia ter lido meus pensamentos quando me acusou:

— Pagão! — seus olhos estavam fechados e sua cabeça, inclinada para cima.
Como ela sabia que eu havia despertado?

— Como?

— Pagão! — As esmeraldas de repente me observavam. — Dormindo


durante uma missa!

Olhei em volta; não havia mais ninguém, nem mesmo as carruagens estavam
mais lá. O que significava que ela havia deixado todos irem embora antes de me
trazer para cá. Dois podiam jogar aquele jogo.

— Bruxa! — Eu a acusei de volta.

— O quê?
— Bruxa!

Ao contrário de mim, ela não considerou a acusação divertida. Bateu no meu


braço com seu leque.

— Ai! — fingi sentir dor, senão ela bateria de novo.

— Por que me chamou de bruxa?

Ajeitei minha cadeira para que meus joelhos tocassem os dela, e inclinei o
corpo para a frente, como se fosse lhe contar um segredo.

— Por que enfeitiçou todos os homens do recinto. Eles não paravam de olhar
para a senhorita. Creio que alguns ficaram com torcicolo.

Ela mordeu o lábio inferior, tentando conter um sorriso que já se espalhava


pela sua face.

— Sei de um cavalheiro que não me olha.

Tentei afastar a cadeira, mas ela não permitiu, segurando as minhas mãos.
Nós nos provocávamos às vezes, mas não falávamos abertamente daquele tema
desde que ela invadiu meu quarto no meio da noite. Achei melhor não dizer
nada, por temor de acabar revelando meus sentimentos.

Devia ter imaginado que ela não desistiria fácil.

— Na realidade, há um cavalheiro que sequer deseja ser inapropriado


comigo, a despeito da minha clara autorização que se aproveitasse da minha
pessoa.

— Charlotte, eu...

— É um terrível devasso.

Aquela acusação em particular me fez gargalhar.

Eu ri tanto que senti uma lágrima descendo pelo rosto. Ela a secou com a
pequena mão enluvada, seus dedos roçando contra a minha pele por longos
segundos que pareceram durar uma eternidade. Mesmo através do tecido,
consegui sentir sua calidez. Eu ansiava por seu toque.

Apenas quando ela se afastou de mim, consegui voltar a raciocinar.

— Sou mesmo um terrível devasso?

— Claro que é! Prometi ao senhor que não lhe daria um pisão no pé nem o
chutaria entre as pernas e, mesmo assim, nada fez.

— Sabe que eu não sentiria um pisão no pé, não é mesmo?

— Sabe que não para de encarar meus lábios, não é mesmo?

Maldição! Nem mesmo quando ela me disse aquilo, meus olhos conseguiram
deixar sua boca.

Desde que a vi na primeira vez, irritada comigo por acusá-la de invadir


minhas terras, imaginei como seria beijar aqueles lábios carnudos. Como seria
proclamá-los meus, tomá-los sempre que desejasse. Se assim fosse, eu
suspeitava que não conseguiria fazer muita coisa a não ser beijá-la.

— Pagã — decidi que a melhor defesa era o ataque.

— Como?

— A senhorita é uma pagã. Falando de assuntos profanos em uma igreja.

— Não estamos mais na igreja, Lorde Devon — ela cruzou os braços, me


desafiando a refutar seu argumento.

— Teoricamente, aqui é um lugar sagrado. Portanto, a senhorita ainda pode


ser qualificada como pagã.

— Seu... Seu...

— Enquanto pensa em uma ofensa, deixe-me entregar algo à senhorita. O Sr.


Clayton me deu esta carta por engano.

Seu foco imediatamente passou para o papel dobrado em sua mão. Era
interessante observar como Charlotte focava toda a sua atenção a uma atividade
de cada vez. Se, alguns segundos atrás, sua missão de vida era achar um jeito de
me ofender sem perder sua pose de dama, agora ela precisava descobrir por que
Lady Hamilton lhe enviara uma correspondência.

Enquanto lia a mensagem, seus olhos foram se arregalando.

— Oh! — ela exclamou.

— O que é?

— Eles realmente vão fazer isso... Achei que era apenas animação do
momento...

— Do que a senhorita está falando?

— É um convite para a nossa festa de noivado.

Ah. Interessante como precisávamos ser convidados para a nossa própria


festa de noivado. Também devo ressaltar a bizarrice que era não termos
participado de sua organização; apenas havíamos sido notificados de quando o
evento ocorreria.

Por último, devo admitir que ainda não sabia quais eram meus sentimentos a
respeito do noivado de mentira. Se, por um lado, eu não tive qualquer voz
naquela enrascada, por outro, havia algo dentro de mim que sentia verdadeiro
prazer quando alguém chamava Charlotte de minha noiva.

Sim, era doentio. Porém, se a única forma de tê-la era com base em uma
mentira, eu ia aproveitar cada segundo daquilo.

Ela continuou lendo, e sua expressão foi se fechando, como se algo sombrio
estivesse para acontecer. As palavras devem ter sido duras, pois ela levantou-se,
e gritou:

— NÃOOOOOOOOOO!

Em seguida, desmaiou. No meu colo.

***

— Charlotte? Charlotte! — chamei seu nome, e seus olhos permaneceram


fechados.

Movi-a até que ela ficasse deitada na transversal sobre a minha cadeira,
posição que seria mais confortável para ela e menos embaraçosa se fôssemos
vistos juntos. Olhei em volta, pela primeira vez percebendo que a minha
carruagem não estava em qualquer lugar que eu pudesse ver.

Patrick e John tampouco estavam nas redondezas. Eles haviam nos deixado
ali? Decerto, fora um pedido de Charlotte. Quando verifiquei o caminho que
precisaria fazer até a igreja, cheguei à conclusão de que seria impossível; minha
cadeira de rodas não passaria pelo gramado. Isso indicava que ao menos dois
homens haviam me carregado até ali, provavelmente meu melhor amigo e meu
criado.

Não poderia culpá-los por serem incapazes de recusar um pedido de


Charlotte. Eu também o era.

Agora, no entanto, o que eles fizeram se tornara um inconveniente, já que eu


tinha uma dama desmaiada e nenhuma forma de sair do lugar.

Por sorte, um noviço deixou a igreja no instante em que eu pensava no que


teria de fazer para buscar ajuda.

— Olá! Bom dia! — Eu o chamei.

— Lorde Devon, está tudo bem? — ele se aproximou rapidamente.

— Não, a dama passou mal. Poderia encontrar meu cocheiro, por favor?

— Ah, eu o vi saindo com o Sr. Duncan. Deve retornar a qualquer momento.

Maldição! Não tinha ideia do que Charlotte combinara com eles, era
impossível saber se ele retornaria direto para me buscar.

— Tem algo que possa ajudar a acordar a dama?

Enquanto o noviço foi buscar algo para Charlotte, provavelmente vinagre, a


própria despertou de repente.

— Não! — ela gritou de novo.


— O que exatamente está negando, Charlotte? — questionei, sorrindo para
ela.

Ela olhou para cima, ainda um pouco atordoada, mas, apesar de acordada,
não saiu do meu colo. Ao invés disso, começou a remexer-se, o que não ajudou
em nada a situação crescente em minha calça.

— Foi um pesadelo? — ela me puxou pelo colarinho.

— O quê?

— A carta! Leia o final, por favor!

A carta de Lady Hamilton? No meio de toda a confusão, eu nem mesmo


sabia onde ela tinha aprado. Porém, se a carta a havia deixado tão transtornada,
era melhor que ela não a lesse de novo. Pelo menos, até retornarmos a Rosebery
Hill.

— Que carta? — fingi não ter ideia do que ela estava falando.

— Ah, graças aos céus.

Ela levantou-se e, enquanto ajeitava as saias e os cabelos, o noviço retornou


correndo, com um pequeno frasco na mão.

— Ah, que bom que a senhorita acordou.

— O que tem aí? — ela parecia desconfiada.

— Algumas essências. Costumam funcionar em damas que desfalecem.

— Não sou uma dessas damas que colapsam pelos ambientes em busca de
cavalheiros para salvá-las!

O pobre noviço parecia querer fugir.

— Ele apenas queria ajudá-la, Charlotte. A senhorita me deu um susto


quando desmaiou.

— Não desmaiei, Lorde Devon! — Pelo menos, a raiva dela voltou-se para
mim, e o rapaz pôde respirar aliviado. — Eu apenas precisava de um rápido
cochilo.

— Entendo.

Infelizmente, meu plano não foi bem-sucedido por muito tempo. Enquanto
buscava um buraco onde poderia se enfiar, o noviço encontrou a maldita carta.

— A carta de Lady Hamilton! — ela disse, arrancando-a da mão do rapaz, no


mesmo instante em que identifiquei a carruagem de Rosebery Hill aproximando-
se.

— Charlotte, vejo que nossa carona está chegando. Por que não lê a carta
quando estivermos em Rosebery Hill?

De nada adiantou meu pedido. Ela já começara a reler o texto, fazendo as


mesmas expressões. Até chegar na parte que fez seus olhos arregalarem.

— NÃOOOOOOOOOO!

Ela desmaiou novamente. Desta vez, seu rosto enterrou-se na minha virilha.

***
Capítulo 16
RICHARD

O alvoroço que noviço fez ao ver a dama com a cara enterrada nas minhas
partes íntimas em nada se comparou com a confusão criada quando chegamos
em Rosebery Hill. Charlotte havia acordado, mas ainda estava se sentindo tonta,
e sua palidez indiciava que desmaiaria novamente se a deixássemos levantar-se.

Não gostei nada dos arranjos, porém, tive que aceitar que Patrick a
carregasse até o quarto de visitas. Eu não tinha qualquer compromisso com ela e,
mesmo que tivesse, não teria condições de carregá-la.

Aquele exemplo bobo de minhas limitações apenas consolidou minha


posição de que eu não seria capaz de oferecer a Charlotte o que ela precisava.
Maldição, eu sequer conseguia carregá-la pela escadaria quando ela desmaiava,
como iria cuidar dela? Ou dos nossos filhos?

Felizmente, Frederick chegou pouco depois, arrancando-me de meus


devaneios, e eu o levei para conversarmos no meu escritório.

— Está me dizendo que uma carta fez a minha irmã desmaiar?

— Sim — coloquei a correspondência em questão sobre a minha


escrivaninha.

— Esta carta?

— Isso mesmo.

Ele a examinou por alguns momentos, sem ousar tocá-la. Patrick entrou logo
em seguida e, assim como Frederick, passou a examinar a carta que havia
derrubado uma mulher corajosa e sem frescuras não apenas uma, mas duas
vezes.

— O que tem nesta carta? — Patrick finalmente questionou.

— Não a li.

— Não ficou curioso?

— Claro que fiquei. Porém, conheço bem a história do gato.

— A história do gato? — desta vez, foi Frederick quem quis saber.

— Sim, aquele que morreu por causa de sua curiosidade.

Patrick e Frederick entreolharam-se, a dúvida clara em suas faces.

— O que acham que Charlotte fará se descobrir que eu li a correspondência


particular dela? — questionei-os.

— Ah, agora quem tem medo de Charlotte, Lorde Devon?

— Eu jamais afirmei que não tinha, Sir Frederick.

E o que eu mais temia era quebrar seu voto de confiança em mim, depois de
ter conquistado sua amizade ao longo das últimas semanas. Não foi fácil; ela
passou diversos dias de mau humor, lembrando-me constantemente que era a
minha prisioneira, apesar de ter tido a chance de ficar em Crawford Hall e ter
insistido para continuar conosco.

A despeito de suas acusações e provocações, que jamais cessavam, ela


passou a se abrir mais comigo; dia após dia, eu a sentia mais confortável em
minha presença. Já que eu não a teria como minha esposa, ao menos queria
aproveitar sua companhia da melhor forma possível.

Não permitiria que uma carta estragasse meus planos.

— Dê-me isso — Frederick exigiu, já pegando a carta na escrivaninha.

A expectativa era tamanha enquanto ele a lia que eu e Patrick prendemos a


respiração.
— Hummm...

— O quê? — dissemos em conjunto.

— Os Hamilton realmente oferecerão um baile em homenagem ao noivado


de vocês.

— Sim, Charlotte comentou.

— E parece que... Não. Nãoooooooo!

— Céus, sua irmã disse exatamente a mesma coisa. O que houve?

Toda a cor se esvaiu da face de Frederick. Ele jogou a carta de volta na mesa
e foi até o aparador servir-se de conhaque. Decidi não repreendê-lo pelo horário;
eram onze da manhã. Ele devia ter uma boa razão.

— Está se sentindo bem, Sir Frederick?

A pergunta de Patrick ficou sem resposta durante os segundos que Frederick


levou para engolir a dose do conhaque e, em seguida, tomar uma segunda.
Depois, ele se jogou na cadeira mais próxima e anunciou, com a cabeça jogada
para trás e os olhos fechados.

— Lady Morgan está vindo.

Aquilo era, de fato, uma surpresa. Porém, seria o suficiente para fazer
Charlotte desmaiar duas vezes e seu irmão beber álcool em plena manhã de
domingo? Eles estavam exagerando.

— O senhor não comentou no outro dia que ela não vinha à Escócia desde a
morte de seu pai? — Patrick lembrou.

— Sim, isso mesmo.

— O que a fez vir?

— O casamento de Charlotte e Lorde Devon.

Quê? Do que diabos ele estava falando?


— Nós não vamos nos casar!

— Então terá de contar isso a ela, porque nem morto serei eu a fazê-lo.

— Explique o que diabos está acontecendo, Frederick — demandei. — E


faça-me o favor de não suprimir nenhum detalhe.

***

Aparentemente, a festa de noivado da qual eu e Charlotte não participamos


em absolutamente nada aconteceria em vinte dias, no início de outubro. Lady
Morgan chegaria alguns dias antes da festa, dentro de duas semanas, com o
intuito de conhecer o novo cunhado.

Eu.

Lady Hamilton relatara também como Lady Morgan desejava que o


casamento ocorresse em Kent entre outubro e novembro, e que eu estava
convidado a passar o inverno longe das nevascas escocesas, em Gregory House,
a propriedade de Sir Frederick.

Havia tantas informações sem qualquer sentido naquela correspondência que


eu sequer sabia por onde começar. Sabendo que Frederick tampouco teria as
respostas de que eu precisava, girei as rodas da minha cadeira até o aparador, e
servi três doses de conhaque, que eu, Frederick e Patrick tomamos em um gole.

Estávamos perdidos em nossos próprios pensamentos quando um anjo


chegou.

— Pat! Richard! — escutei uma das vozes mais doces me chamando.

— Titia! Que prazer em vê-la! — As minhas preocupações sobre o falso


casamento desapareceram naquele instante.

— Mamãe! Achei que retornaria apenas em novembro! — O rosto de Patrick


iluminou-se também.

A propriedade dos Duncan ficava a alguns minutos de coche da minha. Tinha


menos de um quinto do tamanho de Rosebery Hill, entretanto, a falta de
grandeza em hectares era compensada pela elegância simples que tia Julia fazia
questão de manter. Era um lugar lindíssimo, e eu me sentia mal pelo fato de que
eles haviam desistido de viver em sua própria casa para ficarem comigo.

Tanto Patrick quanto tia Julia visitavam sua casa quase que diariamente;
ainda assim, não era o mesmo que desfrutá-la como se fossem seus habitantes.
Eles tinham muita sorte de ter como mordomo e governanta um casal de grande
confiança, e que cuidavam da propriedade como se fosse deles.

Porém, abdicar de sua casa para cuidar de um inválido não foi suficiente para
a tia Julia e seu filho. Eles também me ajudavam a cuidar das minhas outras
propriedades, quando nossa presença se fazia necessária.

Nos últimos meses, tia Julia estava nas Ilhas Shetland, bem ao norte da
Escócia, onde eu herdara a maior propriedade do meu pai em tamanho. Por mais
que Rosebery Hill fosse a mais valiosa, Eilean House era a propriedade mais
impressionante, cercada de um lado por mares revoltos e, do outro, por colinas
rochosas.

Havia um pequeno vilarejo nas adjacências das terras dos Devon, e a maior
parte de seus moradores dependia de Eilean House. Tia Julia estava lá
supervisionando algumas reformas de estrutura necessárias.

Infelizmente, eu não visitava o local desde meu acidente, uma vez que era
ermo e longínquo demais. Era uma das coisas de que eu mais sentia falta da
época em que minhas pernas funcionavam. Sempre amei Eilean House, assim
como as pessoas do vilarejo.

— Eu vim agora porque recebi uma correspondência pedindo que voltasse o


quanto antes — ela explicou, sorridente.

Era raro vê-la sorrindo daquele jeito. Tia Julia era sempre doce e carinhosa,
porém, havia uma tristeza em seus olhos, especialmente quando olhava para
mim. Agora, entretanto, ela parecia estranhamente animada com algo.

— Qual é a urgência, tia?

— O seu casamento, ora!

Maldição! Dirigi um olhar raivoso a Patrick, que imediatamente defendeu-se:


— Nem olhe para mim, não fui eu.

— A sua futura sogra me escreveu, contando a novidade. — Ela veio até


mim, e me deu um beijo na testa. — Ela é um doce.

— Acha isso porque a senhora ainda não a conhece — Frederick sussurrou,


fazendo Patrick engasgar com o último gole de conhaque.

— Perdão?

— Tudo bem, Sra. Duncan? — Ele disfarçou. — Sou Sir Frederick Morgan,
lembra-se de mim?

— Claro! — Ela o cumprimentou e o avaliou por um momento. — Tornou-


se um cavalheiro muito bonito.

— Obrigado.

— Parabéns pelo casamento — ela o parabenizou —, admiro muito Tessa.

A expressão preocupada de Frederick imediatamente relaxou, dando lugar a


um sorriso apaixonado.

— Eu também, Sra. Duncan — ele replicou, ficando levemente corado.

Céus, homens sempre ficavam tolos quando se apaixonavam? Considerei o


que vinha sentindo nos últimos dias, e fiquei bastante assustado com a minha
própria pessoa.

Não apenas me dei conta de que meus sentimentos por Charlotte eram mais
fortes do que uma simples atração avassaladora, como também que eu devia ser
o maior tolo da Terra por me permitir sentir tudo aquilo por alguém que eu
jamais poderia ter ao meu lado.

— E o seu casamento, Richard? — A atenção de titia retornou para mim. —


Conte-me tudo! Como estão os preparativos?

— É... — eu gaguejei.

— Bem... — Patrick começou.


— Sabe.... — Frederick tentou explicar, sem sucesso.

— E a noiva? Como ela é? — Ela decidiu perguntar algo que acreditava ser
mais fácil.

O mesmo procedimento repetiu-se.

— É...

— Bem...

— Sabe...

Decidi acabar com aquela conversa ridícula.

— Titia, temo dizer que Lady Charlotte Morgan desmaiou esta manhã. Ela
acordou agora há pouco. Poderia verificar como ela está? — Se tinha algo que
distraía tia Julia era ajudar pessoas.

— Pobrezinha! O que houve?

— Ela acabou de saber que sua mãe virá para a festa de noivado.

— Ah, deve ter ficado muito animada!

— Ou aterrorizada — Frederick e seus sussurros inconsequentes!

— Como?

— Minha noiva vai adorar conhecer a senhora, tia! — Tentei distraí-la de


novo.

— Eu também mal posso esperar para conhecê-la! Finalmente terei uma


companhia feminina na casa. Como é sua irmã, Sir Frederick?

— Tão doce quanto mamãe — a ironia não passou despercebida por mim.

Tia Julia não poderia ter ficado mais satisfeita com a resposta, mas eu dirigi
um olhar gélido para ele, que respondeu com um levantar de ombros.

— Oh! Que adorável!


— Tenho várias outras palavras para descrevê-la, Sra. Duncan — minha
paciência com a ironia de Frederick estava chegando ao seu limite.

Eu não poderia permitir que ele falasse da minha noiva daquela forma!

Digo, da minha noiva de mentira.

— Vou agora mesmo vê-la!

Quando tia Julia saiu, Frederick retornou ao aparador e encheu uma nova
taça de conhaque.

— Eu vou para o inferno — ele comentou casualmente.

— Pelo menos faremos companhia uns aos outros, meu amigo — Patrick
disse.

***
Capítulo 17
CHARLOTTE

A tia de Lorde Devon não poderia ser mais gentil. Logo depois de se
apresentar, ela começou a falar como estava animada com o nosso casamento,
feliz por seu sobrinho ter encontrado uma noiva tão compreensiva, aliviada que
ele não passaria o resto da vida sozinho.

Apesar de suas palavras doces, o gosto delas em minha boca era amargo.
Quanto mais ela falava, pior eu me sentia por criar toda aquela confusão. Não
desejava dar falsas esperanças a ninguém, e meu peito doía só de imaginar como
mamãe e a doce Sra. Duncan ficariam arrasadas quando puséssemos um fim
naquele noivado falso.

E como eu ficaria?, uma vozinha insistente perguntou. A verdade era que eu


gostava mais da companhia de Lorde Devon do que deveria, e, rapidamente, ela
havia se tornado muito importante para mim.

Jamais me comportei de forma tão absurda com um cavalheiro como eu fazia


quando estava perto dele. Eu simplesmente não conseguia resistir! E, quando
mais ele me recusava, mais decidido meu coração ficava. Talvez, eu estivesse tão
ousada assim porque confiava nele, porque sabia que não se aproveitaria da
situação.

Contudo, havia mais entre nós. E eu tinha certeza de que não estava sozinha.
Ele sempre me olhava com tanta intensidade, prestava atenção em cada palavra
minha, sorria genuinamente das minhas tiradas irônicas, apreciava o que eu tinha
a dizer. Sem contar como eu enxergava o desejo em seus olhos sempre que
entrava no cômodo em que ele estava.

No entanto, ele fazia de tudo para manter-se distante, como se tivesse se cercado
de flechas afiadas, e as atirasse contra quem tentasse chegar perto demais. Pois
eu queria chegar perto. Eu iria me aproximar, ele querendo ou não.

— Já sabe o que vai vestir?

Estava tão perdida nos meus próprios pensamentos que mal notei que a Sra.
Duncan ainda falava.

— Perdão?

— Se quiser, pode usar o meu vestido de casamento — ela comentou


timidamente. — Sei que não deve estar de acordo com a moda atual, mas foi a
minha melhor amiga quem o costurou, Margaret.

— A mãe de Lorde Devon?

— Sim.

— Sra. Duncan... Nem sei o que dizer.

Oh, céus. Oh, meu senhor amado. Eu estava prestes a chorar. A mulher mal
me conhecia, mas já sabia que eu havia desmaiado de forma indigna duas vezes
em um mesmo dia, e agora me veria chorando?

O que ela pensaria de mim? Não que eu me importasse muito com a opinião
alheia, mas ela era diferente. Porque ela era importante para Lorde Devon, o que
significava que também o era para mim.

Quando eu havia me tornado uma daquelas damas sentimentalistas e bobas?

Uma lágrima caiu. Não!

— Sinto muito, Sra. Duncan, não sei qual é o meu problema hoje...

— Não se preocupe, querida. O amor faz isso com as pessoas.

Como? Quê? Meu coração acelerou em um ritmo desesperado, e achei que


ele fosse explodir em meu peito. Amor? Amor? Decerto, ela não sabia do que
estava falando. Não era mesmo?

— Meu sobrinho também está mudado. Jamais o imaginei tão apaixonado.


Aquela última informação me interessava.

Ela não me conhecia, não tinha ideia do que falava. Amor? Pfff. Eu estava
atraída por Lorde Devon, gostava da sua companhia, não imaginava como
conseguiria me despedir dele, nem tinha ideia de como contaria a verdade à
mamãe, sonhava com ele todas as noites, imaginava-o me abraçando enquanto
estávamos juntos, mas amor? Pfff.

Agora, ela o conhecia desde sempre. O que significava que, se ela dizia que
ele estava apaixonado, era porque devia estar mesmo. Pobrezinho... Sofreria
tanto quando eu partisse... Não que eu me importasse de ficar algumas
semanas... Ou anos, em Rosebery Hill. Por ele, claro.

— Querida, deixe-me enxugar esta lágrima.

Ela tirou a luva e me tocou. E foi aquele toque que a gerou: a visão mais
realista que eu já tive na vida. E a mais traumática também.

***

Crawford Hall era ainda mais linda por dentro que por fora. Nem acreditava
que tinha sido convidada para o primeiro baile realizado pelo novo Lorde
Hamilton. Ele e Sarah haviam noivado há algumas semanas, e não se falava em
mais nada além daquele casal impensável.

Sarah, que em breve seria Lady Hamilton, tinha apenas dezesseis anos, um a
menos que eu, e mesmo Lorde Henry Hamilton era bastante jovem, acabara de
fazer dezenove. Aparentemente, o romance deles fora como um conto de fadas; o
lorde grosseiro de família rica, que se achava dono do mundo, apaixonara-se
enlouquecidamente pela doce Sara, filha de padeiro.

Um dos melhores amigos de Lorde Hamilton era o herdeiro de Rosebery


Hill, uma propriedade que diziam ser ainda mais impressionante que a dos
Hamilton. Seu nome era Elias, e, ao contrário de seu grande amigo, ele era
simpático e muito atraente.

Algumas mulheres fofocavam coisas terríveis sobre ele, e os pais do vilarejo


proibiam suas filhas de sequer lhe dirigir a palavra. Os rapazes, entretanto, o
admiravam, e as jovens damas suspiravam sempre que ele passava pelo vilarejo
em seu magnífico garanhão.
Ele podia ter a mulher que desejasse, e ele escolheu a mim. Dias antes do
baile, ele passara pela minha casa e pedira autorização a papai para que eu
fosse a sua parceira para as duas primeiras danças, uma grande honra.

Meus pais não haviam sido convidados para o baile, nem a minha melhor
amiga, Margaret, então foi uma conhecida de longa data dos meus pais, Simone,
quem me acompanhou. No trajeto até Crawford Hall, ela repetiu diversas vezes
que eu não deveria ficar a sós com nenhum cavalheiro, especialmente com
Lorde Elias Devon.

— Ele é sedutor, Julia, cuidado com ele — ela repetiu, ao entrarmos no


salão de baile.

Felizmente, não fiquei em sua companhia por muito tempo, pois logo Elias
me encontrou e me levou para o centro do amplo salão. Eu havia praticado
aquelas danças durante uma semana inteira; pedi a Sarah que me contasse
quais músicas tocariam ao longo do baile, e ela havia me ajudado a praticar.

Ela podia estar prestes a se tornar Lady Hamilton, porém, recusara-se a


abandonar suas antigas amizades.

Enquanto nós dançávamos, reparei em um rapaz que me observava.


Reconheci-o depois de alguns minutos. Era o Sr. William Duncan, que todos no
vilarejo chamavam de Will. Seus pais tinham uma propriedade adorável, vizinha
de Rosebery Hill, e ele era extremamente tímido, raramente visto em público.

Seus olhos não desgrudaram de mim, e havia preocupação neles. Por que
ele estaria preocupado comigo? Nós mal nos conhecíamos.

As danças com Elias terminaram rápido demais e, antes que eu percebesse,


já estava com outro parceiro. E outro, e mais outro, sempre sendo observada por
Elias, assim como William.

Depois muitas danças, decidi tomar algo para me refrescar. Foi quando senti
uma mão se fechando em volta do meu pulso.

— Vamos tomar um ar? — Elias sussurrou em meu ouvido quando a música


cessou. — Está bastante abafado aqui.

Fiquei na dúvida. Ele pedia que eu fizesse precisamente o que papai havia
proibido, o que Simone sugerira que eu evitasse; ficar a sós com ele. Elias deve
ter visto a hesitação em meus olhos, pois comentou:

— Não se preocupe, vamos até o jardim de rosas, onde há muitos


convidados.

Em outras palavras, não ficaríamos sozinhos, então não seria inadequado.

Ele me ofereceu o braço, que eu tomei com alegria. Saímos juntos do salão,
e não consegui desgrudar os olhos dele. Passamos pela cozinha e vi, pela
janela, muitas pessoas do lado de fora, exatamente como ele havia mencionado.

— Venha. Por aqui.

Ele abriu uma porta, e estava bastante escuro lá dentro.

— É apenas a passagem para o jardim — ele explicou.

Dei o primeiro passo, e perdi o equilíbrio quando o chão desapareceu sob


mim. Caí por vários degraus de madeira antes de parar em um chão frio. Meu
corpo inteiro doía. Pedi ajuda a Elias, e escutei a porta fechando atrás de mim,
acabando com a pouca luminosidade que havia.

Sons de passos se aproximaram, e eu pedi ajuda novamente a Elias.

— Ninguém vai escutá-la lá fora, Julia. Somos apenas nós dois aqui dentro.

Senti meu sangue gelando quando, enfim, compreendi suas intenções. Ele
havia me enganado. Havia mentido para me trazer aqui. Agora, eu estava nas
mãos dele.

Como se conhecesse aquele porão tão bem como a palma de sua mão, Elias
me encontrou com facilidade, e puxou-me pelos cabelos. Tentei me desvencilhar
dele, porém, quanto mais eu me mexia, mais ele me machucava. Achei que fosse
arrancar meu couro cabeludo.

— Entregue-se logo e isso acabará mais rápido, Julia — ele sussurrou, e


senti nojo de sua voz, de seu toque. Como eu o havia considerado atraente
apenas momentos antes?
Jogou-me sobre o que parecia ser um pequeno monte formado por sacos de
batatas. Minhas costas sentiram a pressão, mas nenhuma dor foi pior do que a
que veio a seguir.

Ele deitou-se sobre mim, colocando seu peso sobre meu corpo, separando
minhas coxas coma as dele. Apesar de suas ameaças, tentei lutar, arranhei seu
rosto, mas ele prendeu meus pulsos sobre a minha cabeça com apenas uma mão.
Tentei chutá-lo, porém, ele apenas pressionou ainda mais meu corpo contra os
sacos de batatas.

Com a outra mão, ele rasgou meu vestido e levantou minhas saias,
revelando minha intimidade. Com o corpo bruto, ele me violou. Gritei até ficar
sem voz, chorei até ficar sem lágrimas.

Parecia que ele gostava do meu sofrimento, pois, quanto mais eu dizia que
estava doendo, com mais força ele me violava. De repente, parei de lutar; meu
corpo cansou-se de reagir. Foi quando ele chegou ao ápice e me deixou ali,
sozinha, como uma boneca usada e sem valor.

Não sei quanto tempo se passou, mas escutei alguém entrando novamente no
porão. Não poderia ser ele; o que mais ele poderia querer de mim? O que mais
ele tomaria?

— Srta. Wallace? — escutei uma voz gentil me chamar. Porém, como era
masculina, desconfiei, e nada respondi.

Uma luz fraca acompanhou a voz e, momentos mais tarde, o rosto de Will
Duncan surgiu à minha frente. Eu não disse nada. Tampouco ele falou. Apenas
tirou sua casaca, enrolou-me nela e, em seu colo, tirou-me dali.

Salvou-me do inferno.

***

Senti as lágrimas quentes rolando pelo meu rosto quando, finalmente, a visão
se evaporou. Olhos gentis me encaravam com preocupação. Para mim, aquela
visão tinha sido apenas um pesadelo; entretanto, para a mulher doce que me
contemplava, tinha sido real.

Pobre Sra. Duncan.


— O que houve, querida? Está se sentindo bem? — ela questionou.

Senti algo queimando a minha pele, sobre o meu peito. Era o medalhão. De
repente, dei-me conta de algo.

— O medalhão era seu antes de ser de Lady Devon?

— Do que está falando, querida?

— Disso aqui, Sra. Duncan. — Puxei o cordão de ouro, expondo a joia que
deixava escondida sob as vestes.

— Onde o encontrou?

— Na estrada onde aconteceu o acidente — não precisava explicar a que


acidente me referia.

— Eu dei esse medalhão de presente para a minha melhor amiga, Margaret,


no nosso aniversário de dezoito anos. Eu tinha me casado havia poucos meses
com Will.

Aquilo justificava o que eu tinha testemunhado sob a perspectiva da Sra.


Duncan. Ela havia sofrido uma cruel violência quando tinha apenas dezessete
anos, era apenas uma menina. Eu sequer tinha sido apresentada à sociedade
nessa idade.

O Sr. Duncan era o único que sabia o que ela sofrera, mas a terrível
lembrança ficara alojada em outro lugar: na joia que ela ofereceria de presente a
Margaret pouco tempo depois.

Ela explicou que Margaret e ela faziam aniversário na mesma data. Naquele
ano, ela ofereceu o medalhão de sua família à amiga, enquanto que Charlotte lhe
deu um anel adorável que pertencera à avó.

A Sra. Duncan não entrou em detalhes, mas deu a entender que se afastou um
pouco de Margaret após seu casamento com Elias.

— Precisamos conversar, Sra. Duncan.

— Sobre o quê?
— Sobre o que posso ver. Sobre o que vi Lorde Elias Devon fazer com a
senhora.

***
Capítulo 18
RICHARD

Avisei a John que não precisaria mais dos serviços dele naquela noite. A
conversa no jantar poderia rapidamente se transformar em algo pesado. O
noivado era falso, mas eu não queria que todos os criados soubessem disso.

Desde que ouvira os rumores do nosso suposto casamento, a Sra. Jones


passou a fazer o sinal da cruz sempre que passava por mim, provavelmente
rezando pela minha alma. Notei que ela fazia o mesmo gesto quando passava por
Charlotte, mas, no caso dela, parecia rezar para se proteger.

Estava no corredor de acesso à sala de jantar quando ouvi Charlotte


pronunciar meu nome. Por algum motivo, aquilo me fez parar. Queria ouvir o
que ela teria a dizer.

— Preciso contar a Lorde Devon, Fred.

— Não pode contar amanhã? Ele já não teve surpresas o bastante por hoje?

— O que precisa me contar, Charlotte? — decidi anunciar logo a minha


presença.

— O senhor estava bisbilhotando? — Charlotte me repreendeu.

— Não creio que seja possível bisbilhotar se eu estou na minha casa e a


senhorita, na minha sala de jantar.

— Humph — ela reclamou.

Eu deixaria aquela passar. Apenas porque Frederick estava certo: tivemos


animação demais para um dia.
— Onde está tia Julia?

— Ela pediu para avisar que vai dormir mais cedo esta noite.

Não me surpreendia aquela notícia: o trajeto das Ilhas Shetland até Rosebery
Hill era longo e árduo, especialmente para damas e cavalheiros a partir de certa
idade.

As estradas eram esburacadas e íngremes, além do trajeto que fazíamos de


barco, em mares revoltos e imprevisíveis. Lembro-me de como ficava com as
costas doloridas durante dias depois de viajar até a propriedade. Ela devia estar
demasiadamente cansada.

Charlotte acomodou-se em uma das cadeiras, e foi quando percebi o objeto


de madeira que ela segurava.

— O que é isso em sua mão, Charlotte?

— Uma bengala.

— Para que precisa de uma bengala?

O olhar que ela me dirigiu foi sóbrio, sério. Fiquei preocupado, até ouvir
qual era o seu objetivo.

— Precisamos prepará-lo para Lady Morgan, Lorde Devon.

***

O tom dela foi misterioso e amedrontado, obrigando-me a ficar em silêncio


até que tivesse certeza de que não iria gargalhar. Parecia que era o rei George, o
Louco, quem viria nos visitar, não uma dama inglesa.

Sentamo-nos à mesa, e logo Patrick chegou. Enquanto estávamos sendo


servidos de sopa, comentei:

— Entendo que a mãe de vocês possa ser...

— Impossível de enganar? — Charlotte complementou.

— Agressivamente imprevisível? — Frederick sugeriu.


— Eu ia dizer que é uma dama com bastante personalidade.

— É muito querido de sua parte dizer isso, Lorde Devon, mas o que mamãe
tem não é personalidade. Ela é possuída.

— Tal mãe, tal filha — a Sra. Jones balbuciou atrás dela.

Charlotte, entretanto, não parecia nem um pouco ofendida.

— Não sabia que conhecia a minha irmã Alice, Sra. Jones. Ela é impossível,
não é mesmo?

Patrick engasgou com seu vinho, e os ombros de Frederick começaram


sacudir. Nenhum de nós, entretanto, ousou explicar que a minha governanta mal-
humorada referia-se a ela.

— Vamos começar — Frederick anunciou.

— Agora? Lady Morgan chegará em quinze dias!

— Precisamente! Estamos atrasados, Lorde Devon!

— A primeira coisa que mamãe vai fazer é tentar desestabilizá-lo —


Charlotte explicou.

— Com o quê?

Senti uma pontada forte na minha lateral.

— Ai!

Olhei para o lado e vi o pedaço de madeira que ela trouxera para o jantar. Ela
havia acabado de me bater com ele?

— Pode ser com uma bengalada — ela comentou, com ar inocente.

— Ou uma pergunta inadequada.

— Nenhuma pergunta me atingirá, isso eu lhes garanto.

— O senhor não conhece Lady Morgan.


— Faça-me uma pergunta, Charlotte.

— Pode ter filhos? — ela questionou.

Daquela vez, Patrick cuspiu seu vinho. Frederick olhou para o seu próprio
prato e a Sra. Jones soltou um gritinho horrorizado.

— C-como?

— Suas partes íntimas funcionam?

Patrick, o traíra, gargalhou alto. Frederick ficou boquiaberto, deixando um


pedaço de cenoura cair de sua boca à mesa. A Sra. Jones desmaiou. E eu desejei
estar no lugar dela.

***

Naquele dia, tivemos mais ação do que Rosebery Hill tivera durante o ano
inteiro. Três desmaios, uma festa de noivado e um casamento que eu não tinha
ideia de como cancelar depois, e eu enfim estava no conforto de minha cama.

Estava quase adormecendo, quando escutei passos se aproximando. Não, não


era possível. Uma maçaneta girando. Ela não faria isso. A porta do quarto abriu-
se lentamente. Não podia ser ela. Um pequeno dedo tocou meu peito. Será que
eu estava sonhando?

— Lorde Devon.

Maldição. Era ela.

— Lorde Devon, está acordado? — Charlotte insistiu quando não respondi.

Será que, se eu me fingisse de morto, ela iria embora?

A resposta veio segundos mais tarde, quando pequenas mãos sacudiram


meus ombros.

— Lorde Devon! Acorde!

— Maldição! — xinguei. — Isso está se tornando um péssimo hábito,


Charlotte.
Como da outra vez, sentei-me na cama, tentando me inclinar para longe dela.
Pelo menos, desta vez, ela estava decente; ainda usava o vestido do jantar.

— Preciso perguntar algo.

— Por que não o fez no jantar, como uma dama normal?

— Deixe de frescuras, Lorde Devon!

— Eu? Frescuras? — defendi-me. — É a sua reputação que está em jogo!

— Teoricamente, estamos noivos, então quem se importa com uma pequena


visita noturna?

Céus, essa mulher não sabia quando parar? Por algum motivo misterioso,
apesar de estar muito irritado, também senti uma atração irresistível por ela;
parecia que nossos debates eram capazes de fazer meu sangue ferver em vários
sentidos.

Antes que eu pudesse usar o cérebro, meu corpo tomou conta de seus
movimentos e, sem resisti-la, um de meus braços traiçoeiros segurou-a pela
cintura, puxando-a até que seu torso estivesse junto ao meu.

A outra mão, ainda mais diabólica, segurou sua nuca, aproximando seu rosto
até que seus lábios estivessem roçando os meus. Suas pupilas dilataram, de uma
forma que o verde de seus olhos praticamente desapareceu. Sua pele estava
brilhando com a luz da lareira, fazendo-a parecer um anjo.

— Eu me importo com a sua reputação, Charlotte — sussurrei contra seus


lábios. — Seu irmão se importa. A senhorita também deveria se importar.

Ela fechou os olhos e partiu os lábios em resposta. Eu precisava resistir.


Sabia que, estando sozinho com ela na minha cama, não pararia em apenas um
beijo. Senti a maciez de seus seios, seus mamilos ficando rijos contra meu peito.
Ela precisava sair. Agora.

Com um esforço homérico, soltei-a de meu abraço, e nós dois voltamos a


respirar ao mesmo tempo. Ela recuperou-se antes de mim.

— Deixe-me então fazer logo a pergunta para poder sair, Lorde Devon!
Parece até que está me enrolando de propósito!

Ela ia me culpar por aparecer no meu quarto no meio da noite?

— Fale, Charlotte — repliquei entredentes, segurando-me para não colocá-la


em meu colo e lhe dar algumas palmadas bem merecidas em seu traseiro
redondo.

— Pode cavalgar amanhã de manhã comigo?

— Esta era a sua pergunta?

— Sim.

— Acordou-me para isso?

— Sim.

— Eu não acredito.

— Pode ou não?

Voltei a me deitar e virei-me de lado, de costas para ela.

— Posso responder amanhã de manhã, quando não estarei mais interessado


em apertar seu delicado pescoço?

— É urgente, Lorde Devon — ela sacudiu novamente meus ombros.

— Tudo bem, então.

— Ótimo! Vou avisar a John que deve preparar nossos cavalos bem cedo.

— Não vai acordá-lo agora!

— Claro que não vou invadir o quarto dele no meio da noite! Sou uma dama,
Lorde Devon!

***
Capítulo 19
RICHARD

John estava me observando quando acordei. Olhei para a janela e notei que o sol
mal despontava no horizonte. Era ao menos quinze minutos mais cedo do que
meu horário habitual de despertar.

— Aconteceu alguma coisa, John?

— Lady Morgan aconteceu, senhor — ele respondeu, um ligeiro sorriso


contornando seus lábios.

Claro. Ela não o havia acordado no meio da noite, graças aos céus, mas havia
garantido que ele estivesse nos meus aposentos no horário que considerava
adequado.

Gargalhei ao me recordar de mais uma conversa absurda que tivemos


naquela noite, e John riu junto comigo. Ele certamente escutara de novo. Eu
estava irritadíssimo com ela à noite, no entanto, agora que estava descansado,
percebia o quão hilária e absurda aquela interação havia sido.

— Se me permite, senhor... — ele comentou, quando havíamos controlado o


humor.

— Fale, homem — ordenei, curioso para o que ele teria a dizer.

— A dama faz muito bem à casa. E ao senhor, em particular.

Não se dirigiu a mim como um criado, mas como um amigo. Eu sabia que
tinha razão, e meu peito doeu com a realização de que, em poucas semanas,
voltaríamos a ser um canto esquecido do mundo, sem o som inebriante das
gargalhadas de Charlotte, sem o brilho de seus olhos verdes travessos, sem seus
comentários honestos e inapropriados.

E eu não seria o único a sentir o vazio que sua partida deixaria.

— Vamos logo! — uma voz irritada veio da porta.

Devia imaginar que Charlotte não conseguiria manter-se distante muito


tempo.

— Bom dia para a senhorita também — comentei ironicamente, fazendo


John sorrir outra vez.

— Ah, céus. Mamãe tinha razão — ela atravessou o quarto, empurrando


John para o lado, a fim de verificar meu armário. — São um bando de inúteis.

Concluiu, separando roupas para eu vestir.

— Sabe que é uma intrometida? — Quis soar sério, mas não consegui tirar a
risada da voz.

— Sabe que é um lerdo? E nem venha me dizer que tem limitações, ouvi
como vocês dois, inúteis, estavam rindo ao invés de se prepararem logo!

Sua bronca absurda apenas fez com que nos descontrolássemos; eu ri até
lágrimas deixarem meus olhos, e John se dobrou de tanto gargalhar. Eu a
adorava mais a cada dia, especialmente porque, ao contrário de todos ao meu
redor, ela não tinha pena, não me deixava dar desculpas por não poder andar.

Ela exigia de mim o mesmo que exigia de seu irmão, de Patrick, de John.
Pela primeira vez desde que perdi o movimento das pernas, eu me sentia uma
pessoa normal. Era tratado como alguém normal, não um pedaço de carne sem
utilidade.

Sempre cuidei do meu corpo da melhor forma que podia; apesar de não
poder correr, eu me exercitava, seja em cima de um cavalo, seja fazendo flexões
com uma barra de madeira que pedi a John que pregasse no alto de uma das
portas dos meus aposentos.

Desde que ela chegara, entretanto, eu havia aumentado os esforços, e já


notava meus músculos mais fortes, mais definidos. Quando nos conhecemos,
percebi que Charlotte observava meus músculos sob o casaco, e ela às vezes me
fitava com desejo nos olhos, quando achava que eu não estava observando.

Mas eu sempre a observava.

Sabia que isso era doentio, uma vez que eu já decidira que não poderíamos
nos casar, porém, era extremamente prazeroso saber que era desejado. Não por
uma mulher que queria a minha fortuna, ou os meus títulos, mas alguém que me
apreciava como homem.

Quando finalmente parei de rir, o abdômen dolorido com o esforço, vi que


Charlotte me contemplava com um olhar gélido. Endireitei-me na cama, e ela
disse, com um tom ácido que deixou nós dois paralisados:

— Se não estiver pronto e em frente aos estábulos em dez minutos, vou


visitá-lo todas as noites, Lorde Devon.

John esperou até que ela saísse de vista e me perguntou, com um olhar
malicioso que quase me fez rir novamente:

— Devo atrasá-lo, senhor?

— Não estou certo de que essas visitas noturnas seriam agradáveis, John.

Ele arregalou os olhos em compreensão e tratou de me arrumar rapidamente.

***

Os lábios vermelhos de Charlotte estavam contraídos em uma linha quando


chegamos aos estábulos. Não conseguia ver seus olhos, estavam escondidos sob
um chapéu de cavalgada, mas sabia que devia haver uma linha entre suas
sobrancelhas negras.

Ela não reclamou enquanto John me ajudava a montar meu garanhão, mas
seu pequeno pezinho batendo no chão indicava que sua pouca paciência estava
no limite. Ela ajudou John a ajeitar algumas das fivelas da sela, e eu sabia que
não era para ser gentil; apenas queria terminar o processo mais rápido.

Sem aceitar a ajuda de John ou dos cavalariços, ela montou seu animal com
uma elegância e agilidade impressionantes. Tentei segurar a vontade de usar meu
chicote para bater nos rapazes, que a encaravam com admiração, como se ela já
fosse a dona da casa.

— Vamos logo! — ela reclamou sem qualquer cerimônia, deixando-me para


trás.

— Que dama! — ouvi John exclamando, antes do meu garanhão, George,


sair em disparada também.

George havia nascido em Rosebery Hill e, desde que era um potro, foi
treinado para entender meus comandos específicos, já que eu não podia apertar
meus calcanhares contra seu estômago. Ele fora criado para mim, porém, tinha
uma personalidade própria Sem que eu o tivesse ordenado, ele seguiu Charlotte,
até alcançá-la.

Por céus, até o meu cavalo estava encantado por ela?

— Então, o que era tão urgente? — questionei quando estávamos lado a lado.

Ela desacelerou sua montaria, e George fez o mesmo.

— Sua tia, Lorde Devon.

Aquilo fez meu humor mudar cento e oitenta graus; de animado, fiquei
extremamente preocupado. Tia Julia teve sua parcela de sofrimento na vida. No
mesmo dia em que meus pais morreram, seu marido, o Sr. Duncan, sofreu um
acidente bizarro, e acabou morrendo também.

Jamais enchi-a de perguntas sobre as circunstâncias de sua morte, pois ela


ficava abatida e nervosa quando falávamos daquele fatídico dia.

— Ela está bem? O que aconteceu? Está doente?

— Não — ela engoliu em seco e, de repente, dei-me conta de que tinha algo
a ver com o medalhão. — Ela também foi vítima do seu pai.

***

À medida que ela foi descrevendo sua visão mais recente, senti-me
diminuindo, mais e mais, até ser apenas aquele garoto inocente que achava seu
pai um herói, e sua mãe a mulher mais maravilhosa do mundo. Como eu não
havia notado isso? Quando eles morreram, eu tinha doze anos, já era grandinho o
suficiente para notar que havia algo de errado!

Aí, lembrei-me de algo. Eu era tão apegado às minhas lembranças felizes que
evitava pensar que nem tudo era um mar de rosas. A tarde do acidente, por
exemplo. Eu os ouvi brigando. Não me recordo a quem pertenciam as vozes,
mas havia gritos, e ofensas, e ameaças.

Havia sentido mãos sobre meus ombros; era a minha irmã Claire, com um
sorriso gentil, e tristeza nos olhos. Patrick estava ao seu lado, pálido e
preocupado. Eles me dirigiram até a parte de fora da casa. Os Duncan estavam
em nossa casa. Sim, foi o Sr. Duncan quem chegara primeiro, seguido da esposa
e do filho. Tínhamos um jantar naquela noite em Crawford Hall, porém, por
alguma razão, eles haviam nos visitado.

Todavia, por mais que me esforçasse, não conseguia me lembrar do motivo


da briga. Sequer me recordava da razão para eles nos visitarem naquele dia.
Talvez, uma parte de mim não queria se lembrar.

— Devia ter seguido seu conselho.

— Claro que devia — ela rebateu, em um tom arrogante. — A que conselho


se refere, especificamente?

— Quando tentou me devolver o medalhão da primeira vez. Talvez, eu


devesse deixar o passado no passado — inspirei profundamente, pensando em
que outras ocasiões minha memória estava me enganando, tentando acobertar
lembranças traumáticas. —Como ficou titia?

— Arrasada — ela admitiu. Parou seu cavalo, e puxou as rédeas do meu para
que eu fizesse o mesmo. Tirou o chapéu, revelando olhos marejados. — Por
outro lado, senti que ela ficou aliviada por alguém ter escutado sua história. Sem
julgamentos.

— Por que ela não o denunciou?

Ela revirou os olhos.

— Típico de um homem rico e aristocrata perguntar isso.


— Ele foi o criminoso, não ela!

Ela apoiou o chapéu na sela, e cruzou os braços em frente ao peito.

— Mas foi ela quem entrou com ele naquele porão.

— Isso não faz qualquer diferença!

— Foi ela quem saiu sozinha com ele do salão de baile.

— Porque acreditou que ele era um cavalheiro!

— E ela estava arruinada para qualquer outro homem.

— Por causa dele!

Não era possível que Charlotte acreditasse naquilo! Eu não estava


acreditando que ela, de todas as mulheres, não estava defendendo tia Julia.
Como pôde?

Segundo ela própria relatou, aquela foi sua visão mais traumática, mais
violenta, e minha tia tinha sido uma grande heroína. Como poderia agora falar
do terrível crime que ela havia sofrido como se ela própria fosse a culpada de tê-
lo causado?

De repente, a postura de Charlotte mudou, e ela colocou de volta o chapéu,


tentando disfarçar sua reação às minhas respostas. Apesar de esconder seus
olhos, ela não conseguiu disfarçar uma lágrima rolando por seu rosto. Senti um
alívio enorme ao compreender que ela tinha, no fim das contas, empatia pelo que
ocorrera à tia Julia.

— Eu sei que é cruel, Lorde Devon — ela enfim disse, sua voz tão trêmula
quanto suas pequenas mãos. — E fico muito satisfeita que também o saiba. Mas
essa é a realidade dos nossos tempos. Mesmo quando somos as vítimas, os
homens acham um jeito de nos culpar.

Ela estava me testando, dei-me conta. Queria saber como eu verdadeiramente


me sentia a respeito daquilo. Ela realmente imaginava que haveria alguma
possibilidade de eu não defender a minha tia? Que tipo de homem ela achava
que eu era?
— Eu jamais culparia tia Julia.

— Quem mais o senhor conhece que pensaria desta forma?

— Patrick. Seu irmão.

— Menciona as exceções de nossa sociedade. Acha, por exemplo, que Lorde


Hamilton ficaria contra seu pai, que era um de seus melhores amigos?

Ah. Agora eu entendia. Ela queria se certificar de que eu era o que ela
considerava exceção, não regra. Com que tipo de cavalheiro ela havia lidado, se
achava que crápulas como meu pai eram a regra?

— Não, mas... — tentei defender meu ponto, mas ela me cortou


bruscamente.

— E a paróquia, que recebia altos montantes anualmente dos Devon, acha


que eles ficariam ao lado da Sra. Duncan?

— Não é bem assim e...

— E o povo do vilarejo, que dependia dos empregos e do dinheiro de


Rosebery Hill, assim como de Crawford Hall?

— Acho que exagera...

— Não exagero. Como eu disse antes, é cruel, Lorde Devon. Porém, é isso
que é ser mulher. É precisar se calar quando teríamos o direito de berrar. É ser
humano, mas ser tratada como propriedade. É ser inteligente, mas precisar se
fingir de tola para conquistar cavalheiros. É brutal, injusto e, muitas vezes,
violento.

Calei-me. O que dizer depois daquilo tudo? Charlotte não apenas havia
mudado a forma como eu me sentia, os motivos que me levavam a sair da cama
todos os dias; ela havia alterado a maneira como eu enxergava o mundo,
virando-o do avesso. Eu jamais pensei como era a sociedade para uma dama.
Jamais me dei ao trabalho.

Agora, percebia o quanto sempre fui privilegiado, a despeito das minhas


pernas. E entendia por que a bela mulher à minha frente não tinha pena de mim,
mas nutria uma grande empatia pela minha tia, que mal conhecia.

Uma mulher que precisava dar pisões em pés e chutar virilhas para manter
sua reputação intacta. Que era julgada e ridicularizada como solteirona por se
recusar a casar com alguém que não amava. Que era ignorada quando
demonstrava mais inteligência e perspicácia que os cavalheiros à sua volta.

Ainda assim, havia algo naquela história que não se encaixava.

— Por que ela não disse nada à mamãe? Era a melhor amiga dela! Como
pôde deixá-la se casar com um monstro?

— Ela me contou que tentou alertar sua mãe várias vezes. Porém, sua mãe
estava muito apaixonada.

— Estava cega de amor — dei-me conta. — Não acreditou em tia Julia.

— Sim. Sua tia arrepende-se amargamente de não ter insistido mais.

— Não é culpa dela. Ela não é um monstro.

Senti a bile na garganta; será que eu era? A pergunta rodopiou em minha


mente uma centena de vezes em um par de segundos, até uma pequena mão
enluvada tocar meu antebraço, transportando-me de volta para a minha
realidade.

Charlotte havia retirado novamente o chapéu, e os cavalos permaneciam


parados, um ao lado do outro, contentes em comer capim enquanto
conversávamos.

— O senhor também não é um monstro, sabia?

— O sangue dele corre em minhas veias — comentei, entredentes, sentindo


nojo de mim mesmo por carregar aquele sangue, por ter seu nome e títulos. De
orgulho, passei a sentir vergonha de ser seu herdeiro.

— O sangue de sua mãe também corre em suas veias, Richard. E ela era
adorável.

Coloquei a minha mão sobre a dela. Ela não a tirou, apenas me encarou com
aqueles belos olhos que pareciam perfurar a minha alma com tanta intensidade.

— É a segunda vez que me chama pelo primeiro nome. Acho que gosto.

O clima entre nós mudou subitamente; de tensão deprimente, passamos à


nossa costumeira tensão sexual. Um sorriso travesso e diabólico surgiu nos
lábios perfeitos de Charlotte.

— Posso repeti-lo, se prometer não se comportar.

— Não deveria ser o contrário? — eu comentei, rindo.

Ela gargalhou e apertou os calcanhares para seu animal correr, deixando-me,


mais uma vez, para trás. Apressei-me para alcançá-la. George era o animal mais
veloz da minha propriedade, então eu sabia que não teria problemas em chegar
até a minha diabinha.

Quando ele entrou em galope, senti a sela movendo sob mim. Isso não era
nada bom. Continuei escorregando, e caí de uma vez. Apenas consegui gritar
uma palavra antes do meu corpo chocar-se contra o gramado.

— Charlotte!

***
Capítulo 20
CHARLOTTE

— Richard! — gritei por seu nome, temendo ser tarde demais.


Seu corpo era uma forma imóvel no chão. Seu cavalo, George, estava por
perto, parado, como se esperando por algo. Céus, até mesmo animais machos
eram inúteis!

Corri até ele, repetindo seu nome, mas ele não se moveu.

— Oh, céus. Oh, não. Eu o matei — gritei, o desespero tomando conta de


mim à medida que me aproximava dele.

Averiguei primeiro ele, tentando encontrar sangue, ou algum ferimento


visível. Não havia nada na superfície, o que não significava que não estivesse
sangrando por dentro, o que era ainda mais perigoso. Em seguida, analisei
rapidamente sua sela: havia uma fivela aberta. E tinha sido aquela que eu
fechara. Como pude ser tão irresponsável?

Não sabia muito bem o que fazer. Balancei seus ombros, mas ele não
acordou; pelo menos, estava respirando, e senti seu coração batendo forte sob a
minha palma. Toquei em alguns pontos de seu corpo, aqueles que tinham
recebido o maior impacto. Não era uma especialista, porém, com três irmãos
mais novos, havia aprendido a verificar fraturas sérias e ossos quebrados. Não
parecia ser o caso de Lorde Devon, felizmente.

Passei os dedos pelo seu couro cabeludo, tentando ignorar como seus cabelos
eram sedosos. Senti um galo se formando acima de sua nuca. Poderia ser o
ferimento responsável por ele estar desacordado. Seu casaco tinha um furo no
cotovelo direito, que ele provavelmente usara para diminuir os danos do
impacto, e a palma de sua mão direita tinha arranhaduras superficiais.
— Oh, não! Mamãe vai me matar se souber o que fiz ao meu noivo!

— Achei que eu era apenas seu noivo de mentirinha... — ele sussurrou de


repente, e quase morri de alegria.

Na emoção, abracei-o, mas o grunhido de dor dele me afastou.

— Seu tolo! Por que não falou nada antes? — acusei-o. Não era certo deixar
uma dama no estado em que eu estava.

— Porque eu estava apagado, Charlotte — ele tentou se defender.

Desculpa mais esfarrapada.

— Seu inútil! Por que desmaiou?

— Acho que não foi por escolha.

Homens simplesmente não conseguiam assumir a responsabilidade por suas


tolices!

— Deu-me o maior susto! — gritei novamente.

Ele se apoiou em seus cotovelos, fechando os olhos de dor. Pobrezinho,


havia se machucado mesmo. Sugeri puxá-lo até uma árvore que devia estar a uns
dez metros de distância. Assim, ele poderia recostar-se em seu tronco.

— Sou muito pesado para a senhorita.

— E eu sou mais forte do que aparento, Lorde Devon!

Cavalheiros tinham a mania irritante de tratar damas como se fossem pétalas,


que podiam partir-se com a mais fraca das brisas.

Levantei-me, posicionei-me atrás dele, agachei-me e puxei-o pelos ombros.


Ele não se moveu um milímetro sequer. Tentei novamente. Nada.

Maldito homem! Ele era feito de rocha? Tentei fingir que não sentira os
músculos de seus ombros e de seus braços enquanto tentava achar uma maneira
de segurá-lo, porém, minhas mãos sensíveis sentiram tudo – e tiraram bom
proveito, já que o cavalheiro em questão era incapaz de tomar qualquer atitude
minimamente devassa.

Continuei tentando puxá-lo, de todas as formas, em várias posições, mas


nada funcionou. Eu havia derrubado o homem e sequer era capaz de lhe dar o
mínimo de conforto?

— Eu sou tão inútil quanto o senhor! — disse, desistindo, sentando-me ao


seu lado.

É quando eu o sinto vindo. O choro.

Oh, não. Oh, céus. Não queria chorar – de novo – na frente dele, porém,
minhas lágrimas surgiram em meus olhos como pequenas rebeldes decididas a
fugir de sua prisão. Senti-as descendo pelas minhas bochechas e, ao tentar
esconder a minha face, ele a segurou com suas mãos.

— Não fique assim — ele sussurrou, puxando-me na direção dele.

Inclinei de forma que meu rosto estivesse sobre o dele, que permanecia
deitado sobre a grama.

— Como não? A culpa foi minha! Eu não afivelei sua sela direito.

— Vai ficar tudo bem, não me machuquei muito.

Pressionei o cotovelo dele que tinha recebido a maior parte do impacto.

— Ai!

— Viu? Machucou-se, sim! E é tudo minha culpa!

Continuei lamentando a minha estupidez, enquanto que Lorde Devon provou


não ser o maior dos inúteis. Mesmo machucado, ele me tomou em seus braços e
me consolou.

***

Depois de um quarto de hora, eu estava entediada. Já havia chorado, havia


pedido desculpas a ele, havia exigido desculpas pelo tolo ter desmaiado e me
deixado desesperada, e, finalmente, havíamos nos acertado.
E agora?

— O que faremos? — questionei, levantando o rosto de seu peitoral para


poder encará-lo.

Não que eu tivesse do que reclamar sobre conforto: ele havia me acolhido
em seu ombro esquerdo, e seu braço intacto estava em volta da minha cintura.
Era uma posição bem íntima para estar com ele, porém, já pensava em meu
próximo passo.

— Meu cavalo é treinado para esse tipo de situação. Ele vai até Rosebery
Hill e vão saber que preciso de ajuda.

Céus, como ele era lento para entender questões de cavalheiros e damas?
Não entendia nada de sedução?

— Eu quis dizer, o que faremos até a ajuda chegar?

Minhas intenções não podiam ser mais claras.

— Charlotte...

Já que ele simplesmente não agia, comecei a fazê-lo. A mão que estava sobre
seu coração subiu, tocando sua clavícula, seu pescoço, seu queixo e, finalmente,
alcançando seus lábios. Tracei os contornos de sua boca com as pontas dos
dedos.

— Não machuquei aí, Charlotte.

Toda dama tinha seu limite, e cheguei ao meu naquele momento. Saí de seu
abraço, plantando as mãos no chão, de cada lado de sua cabeça, e meus joelhos
nas laterais do seu quadril, deixando meu corpo alinhado ao dele, sentada sobre
ele e inclinada para a frente.

— Deixe de ser insuportável! Estou tentando seduzi-lo!

— Não está fazendo seu melhor trabalho. Ofender-me vai produzir o efeito
oposto.

— Então terei que mudar de estratégia — avisei, perdendo os últimos


resquícios de minha paciência.

— O que isso quer dizer...

Calei-o ao tocar meus lábios nos dele.

***
Capítulo 21
RICHARD

Vi a resolução em seus olhos antes mesmo dela soltar-se de meu braço e


colocar uma perna de cada lado da minha cintura. Em seguida, espalmou as
mãos próximas à minha cabeça, e inclinou-se para frente, fazendo nossos hálitos
se misturarem. A tensão sexual fez o ar ficar pesado em volta de nós.

— Deixe de ser insuportável! — ela avisou, seus lábios perigosamente


próximos aos meus. Tive que me esforçar ao máximo para não levantar a cabeça
e acabar de vez com o pouco espaço que havia entre nós. — Estou tentando
seduzi-lo!

— Não está fazendo seu melhor trabalho. Ofender-me vai produzir o efeito
oposto.

— Então terei que mudar de estratégia.

Seus olhos dilataram, diminuindo o verde. Eu havia despertado a leoa dentro


de Charlotte, e nada agora iria pará-la. Não que eu desejasse fazê-lo.

Seus quadris estavam pressionados contra os meus, e os poucos segundos de


contato foram mais que suficientes para despertar aquela parte do meu corpo.

— O que isso quer dizer...

Senti a calidez que emanava dela, senti sua necessidade, que refletia a minha,
ainda assim, não consegui reagir quando ela eliminou a distância entre nossos
lábios.

Que momento deslumbrante. Nossos lábios tocaram-se com delicadeza. Não


que eu quisesse ser gentil; poderia alegar que agia como um cavalheiro, uma vez
que aquele era, claramente, seu primeiro beijo. Mas seria uma mentira. A única
razão para eu não invadir sua boca com a minha língua em um beijo cálido e
apaixonado era a surpresa.

Ela vinha me ameaçando com um beijo, seja com palavras diretas, com
sorrisos travessos ou com olhares repletos de desejo. Ainda assim, não acreditei
que fosse de fato fazê-lo. E, agora que ela o havia iniciado, eu sabia que não
teria forças de me separar dela.

Entreguei-me aos sentimentos que vinham se acumulando desde o ano


anterior, quando pus os olhos na mulher mais diabolicamente perfeita da Europa.
Céus, como eu a desejava.

Quando o choque do momento desapareceu, ele foi imediatamente


substituído pelo desespero de tocá-la, de explorá-la, de clamá-la como minha,
nem que fosse por aquele momento, nem que fosse por alguns malditos e
gloriosos minutos.

E havia um desejo ainda mais primitivo dentro de mim, que crescia


exponencialmente, a cada novo toque, a cada nova exploração: queria marcá-la,
precisava que esse momento fosse tão importante para ela quanto o era para
mim.

Apenas de imaginar que outro cavalheiro poderia beijá-la daquele jeito, achei
que fosse enlouquecer. Havia uma necessidade irracional e primitiva de estragá-
la para todos os homens, de fazê-la desejar apenas a mim e o nosso beijo.

O que não fazia qualquer sentido, já que eu sabia que não poderia ficar com
ela. O que posso dizer? Nem sempre as boas intenções ficam firmes em um
momento daqueles, em que o sangue esvai-se da nossa cabeça e viaja para outras
partes do corpo...

Charlotte entreabriu os lábios, e sequer pensei nas possíveis consequências


quando deixei que minha língua a invadisse, ganhando um belo gemido dela, que
engoli com prazer.

— Richard — ela gemeu de novo, seus quadris mexendo-se


inconscientemente sobre os meus, fazendo-me perder os poucos resíduos de
controle que ainda tinha.
— Lotty, eu quero me sentir dentro de você e nunca mais sair — admiti, e ela
me beijou com ainda mais paixão.

Seus desejos e instintos compensavam qualquer inexperiência. Charlotte era


naturalmente sensual, e não tinha vergonha de demonstrar o que queria. Eu era
um homem muito, mas muito sortudo.

Minhas mãos, que eu tentara manter firmes em sua cintura, começaram a


explorar seu corpo. Senti seu traseiro, firme e redondo em minhas mãos, e achei
que fosse explodir naquele mesmo momento. Senti a maciez de seus seios contra
meu fronte, e minhas mãos decidiram explorar aquelas curvas.

Quando espalmei uma das mãos por cima do seu seio, sua resposta foi
inclinar-se ainda mais para perto de mim, colocando-o firmemente em minha
mão felizarda. Rocei seu mamilo através do vestido, sentindo-o retesar sob meus
dedos.

Meus lábios separaram-se dos seus, e mordisquei a base de seu pescoço,


sentindo o pulso acelerado sob minha língua.

— Por favor, Richard — ela implorou, sem precisar explicar do que


precisava.

Assim como eu, Charlotte precisava de mais. Assim como eu, ela queria
tudo.

Enquanto meus lábios baixavam para sua clavícula, tracei espirais com meu
dedo em volta de seu mamilo, que se tornara uma pontinha dura que eu mal
podia esperar para explorar com os lábios.

As coxas dela pressionaram meu quadril, e a minha outra mão foi para suas
costas, que estavam tensas. Com a mão livre, baixei seu corpete, até revelar um
dos seios, e precisei afastar meu rosto de sua pele para admirá-la.

Céus, como ela era linda, sentada sobre mim, os olhos observando tudo o que
eu fazia, o rosto corado de paixão. Ela não estava embaraçada, e senti uma
sensação de posse tomando conta de mim ao ver a confiança plena em seus
olhos.

Ela se entregava porque me desejava, mas também porque confiava em mim.


Senti a boca salivando com a expectativa de tomar seu seio redondo na boca,
quando escutei o som de um cavalo aproximando-se. Charlotte deve ter ouvido o
barulho também, pois ajeitou rapidamente o vestido e os cabelos.

O que não fez, entretanto, foi sair do meu colo, então ainda estávamos em
uma posição bastante comprometedora quando Patrick entrou no meu campo de
visão.

***

A expressão no rosto de Patrick não poderia estar mais satisfeita.

— Vejo que não precisam de muita ajuda — ele comentou sarcasticamente.

A face de Charlotte fechou-se, e uma carranca logo surgiu, indicando que


uma tempestade era iminente. Ela levantou-se abruptamente e virou-se para o
Patrick, sem qualquer embaraço na postura, apenas raiva.

— Céus, Sr. Duncan! Não poderia esperar mais um pouco?

— Como? — ele ficou estarrecido com o sermão.

— Sabe o quão difícil foi seduzir o seu amigo?

— Quê? — ele provavelmente não acreditou no que havia escutado.

— Meu Deus — busquei ajuda divina.

— Só chamando pelo nome Dele para conseguir uma reação devassa do


senhor, Lorde Devon! — a fúria da beldade focou-se em mim.

— Agora sou Lorde Devon novamente? — sabia que não era hora de
provocá-la, mas não consegui resistir.

— Quer que eu o chame de forma íntima na frente do Sr. Duncan?

Era com isso que ela estava preocupada, depois da cena que ele
testemunhara?

— Eu posso retornar em um quarto de hora — Patrick sugeriu.


— Preciso de meia hora, pelo menos! — Charlotte reclamou. — Não dá para
fazer nada em um quarto de hora, Sr. Duncan!

— Se forem bem criativos...

Aquilo estava saindo do controle rapidamente.

— Chega disso! — ordenei. — Estamos indo embora agora mesmo. Onde


está John?

— Deve ter se escondido ao ouvir os gritos da dama.

— Damas não gritam, Sr. Duncan, apenas falam firme! — Ela o repreendeu.
Aos berros, que fique de registro.

— Perdoe-me, Charlotte. Tem toda a razão.

— Não o perdoo! O senhor estragou tudo!

Com isso, ela nos deixou teatralmente, batendo os pequenos pés no gramado,
a boca praticamente espumando de raiva.

***

Patrick recuperou-se da discussão absurda antes que eu. Porém, não era ele
que estava beijando a mulher mais linda do Reino Unido momentos antes. Eu
ainda lutava para disfarçar a ereção que continuava pulsante entre minhas
pernas.

— Richard...

Eu conhecia aquele tom. Era o tom que Patrick usava quando queria me dar
um conselho, quando não concordava com algo que eu fazia. E eu sabia
exatamente o que ele estava prestes a dizer. Era exatamente o que eu desejava
ouvir; exatamente por esse motivo, decidi cortá-lo.

— Não diga nada — avisei.

— Vou dizer sim! Sabe que uma mulher dessas não aparece duas vezes na
nossa vida, não? Já tem sorte dela sequer ter aparecido!
Eu sabia, maldição! Queria nunca tê-la conhecido! Queria não saber que uma
mulher como ela existia. Era cruel saber que alguém que me fazia tão feliz, me
deixava tão vivo (em vários sentidos), não poderia ser minha. Era como se o
destino quisesse me pregar mais uma peça, exibindo para mim o que eu jamais
poderia ter ao meu lado.

— Eu não quero estragar a vida dela!

Já tinha repetido aquela mesma frase infinitas vezes, especialmente dentro da


minha cabeça. E, a despeito do que havíamos acabado de fazer (e o que mais
poderíamos ter feito se Patrick não tivesse nos interrompido), esse fato não
mudava. Ela não seria feliz em Rosebery Hill, presa a um paralítico.

— Talvez, ela não considere ficar ao seu lado um infortúnio, Rick — ele
comentou, como se pudesse escutar meus pensamentos.

— Ela não sabe a abrangência das minhas limitações!

Ela não sabia como ficávamos isolados no inverno, ou como eu era difícil
viajar além dos limites do vilarejo, ou como eu podia ser difícil depois de meses
preso em casa pelas nevascas.

— Ela é inteligente. Deveria explicar a ela. E deixar que a dama escolha o


que deseja para si.

— Chega!

O beijo de Charlotte, as reações dela ao meu toque, a forma como nossos


corpos se encaixaram perfeitamente, e a visão de seu seio perfeito já eram
suficientes para fazerem a dúvida pairar sobre mim. Eu não precisava do meu
melhor amigo também me fazendo questionar a minha decisão.

Eu estava tentando agir da forma certa! Queria que ela tivesse mais! Ela
merecia mais.

— Você a ama?

Ele fez a questão que eu temia. A questão que meu coração já havia
respondido, mas eu não tivera ainda coragem de anunciar em voz alta. Não
adiantava mentir. Não para Patrick.
— Por que acha que não posso deixar que ela fique? Não desejo sua
infelicidade, muito menos que fique presa a mim, a esta casa.

— Tampouco vai fazê-la feliz se a rejeitar desta forma, Rick.

Respirei fundo. Eu estava fazendo a coisa certa, disse a mim mesmo. Ela
sofreria agora, mas encontraria alguém melhor.

— É para o bem dela.

— É muito arrogante se acha que sabe mais do que a dama o que é melhor
para ela.

***
Outubro, 1816
Capítulo 22
CHARLOTTE

Era o primeiro dia de um novo mês. E o que havia acontecido desde que tomei
a iniciativa de beijar Lorde Devon?

Imaginei que ele já teria feito a proposta.

Tinha a impressão de que repetiríamos muitas vezes o que havíamos feito.

Pensei que, pelo menos, ele admitiria seus claros sentimentos por mim!

Ao invés disso, o que eu recebera? Nada. Absolutamente nada. Tinha tentado


de tudo: tinha usado os meus melhores vestidos, havia provocado o cavalheiro
com meus decotes e olhares lascivos, tinha feito algumas visitas noturnas a ele.

Quando eu o encarava, ele desviava o olhar. Quando sorria para ele, ele
mantinha-se sério. E o maldito teve até mesmo a audácia de trancar-se no quarto
à noite! Lorde Richard Devon deveria ser eleito o pior devasso de todos os
tempos!

Para piorar, a data de chegada de mamãe estava cada vez mais próxima. Eu
esperava já ter transformado meu noivado de mentirinha em um noivado de
verdade a essa altura. Mas nada. Meu suposto noivo era mais lerdo que uma
tartaruga, e não tinha nada a ver com a sua inabilidade de mover as pernas.

Agora, eu usava minha última tática. A ideia me veio durante um jantar,


quando meu irmão inútil (que não se deu ao trabalho de me ajudar em relação a
Lorde Devon) demonstrou servir para alguma coisa no fim das contas, ao
comentar como era irônico que eu desejava receber um pedido de casamento do
único cavalheiro que se recusava a se casar comigo.
Claro! Era isso! Eu estava pagando pelos corações que havia partido!

Estava agora mesmo colocando meu plano em prática, em um banco de


pedra nos jardins de Rosebery Hill.

— O que está fazendo, Charlotte? — Patrick questionou, atrás de mim.

Apesar dele ter estupidamente estragado a minha melhor chance com Lorde
Devon, nos últimos dias ele estava tentando compensar seu erro. Buscava formas
de nos deixar a sós o tempo inteiro; todavia, Lorde Devon se provou mais
esperto com ele, sempre prevendo seus movimentos.

Nesse período, havíamos desenvolvido uma amizade bastante confortável.

— Bom dia, Patrick — eu comecei a chamá-lo pelo primeiro nome depois da


cena que ele havia testemunhado. Afinal de contas, ele estava a poucos passos de
se tornar meu primo de consideração também. Ao menos, era o que eu esperava.
— Estou revisando algumas cartas que escrevi.

Ele sentou-se ao meu lado, tentando ler o papel por cima do meu ombro.

— Cartas? Para sua mãe e suas irmãs?

Gostava muito de Patrick, mas, por vezes, ele era um tanto quanto indiscreto.
Eu jamais me meteria em questões pessoais dos outros assim. Se havia algo que
eu respeitava, era a privacidade alheia.

— Não. Para os homens que me pediram em casamento — expliquei.

— Ah.

— E aqueles que me cortejaram — continuei.

— Sei.

— E aqueles que tentaram me beijar — lembrei-me.

— Posso perguntar por que a senhorita vai enviar cartas para eles?

— Eu os maltratei muito — inspirei fundo, lembrando-me de todos os meus


pecados. — Pisei em incontáveis pés, chutei várias virilhas, dei desculpas a
muitos convites, parti alguns corações.

— Mas por que agora? Arrependeu-se de repente?

Homens e suas perguntas estúpidas.

— Claro que não! Todos eles mereceram ser maltratados! Porém, tenho que
acabar com essa maldição.

— Perdão?

— Não é óbvio?

— Não.

Céus, como sentia falta das minhas irmãs. Elas me entenderiam de primeira.
E, se não tivessem ideia do que eu estava falando, pelo menos fariam o favor de
fingir que me compreendiam, ao invés de me encherem de perguntas tolas.

— Sou amaldiçoada, Sr. Duncan! Por isso seu amigo me rejeita.

— Charlotte, na realidade...

Ele tocou meu braço, e não usava luva. Foi a primeira vez que a pele dele
tocou a minha. Senti algo perpassando meu corpo, como se eu tivesse viajando
pelo tempo, pelo espaço, para o infinito. Quando dei por mim, ele me encarava,
o olhar preocupado.

E, atrás dele, vi alguém se movendo. Não sabia por que razão, ou sequer
quem era o rapaz que corria desesperadamente, mas tinha certeza de que deveria
segui-lo.

***

Escutei gritos ao longe; porém, todos os sons estavam abafados, e o mundo


virou uma realidade distante, como se cortinas tivessem se fechado ao meu
redor, cobrindo tudo, exceto por ele.

O rapaz.

Ele corria tão rápido, mas não era como se fugisse de algo, e sim como se
estivesse buscando alguma coisa desesperadamente, como se soubesse que
alguém precisava de sua ajuda.

Senti alguns ramos batendo em meus braços e puxando o tecido delicado do


meu vestido. Eu me empurrei para a frente, mesmo quando minhas pernas
imploravam por descanso, mesmo quando meus pulmões ameaçavam parar de
funcionar. Puxei as saias quando grudavam em alguma planta, ignorando os
chamados incessantes.

Corri pelos bosques, sem destino, sem saber para me dirigia, sendo guiada
por um rapaz que jamais havia visto, mas que era, ao mesmo tempo,
estranhamente familiar. Cabelos cacheados e castanho-claros voavam atrás dele.

Quando ele olhou para trás, notei que seus olhos eram castanhos, do mesmo
tom que aqueles de Lorde Devon e Patrick. Porém, o que quase fez meu coração
parar foi o fato de que, apesar de olhar diretamente na minha direção, o rapaz
não havia me visto. Foi naquele instante que percebi: ele era uma visão.

Quando ele enfim diminuiu o ritmo, tive condições de analisar meus


arredores. Foi como abrir as cortinas que, até então, mantinham-se fechadas,
separando-me do mundo. Surpreendi-me ao verificar que nevava. E eu estava na
estrada onde Lorde Devon sofrera o acidente que matara sua família.

— Mãe, o que aconteceu?

Até o rapaz fazer a pergunta, nem havia reparado na mulher que estava
parada à beira da estrada, lágrimas rolando pelo seu rosto, seu vestido com as
barras molhadas.

— Patrick, ajude-os! — ela implorou. — Salve-os.

A verdade explodiu em minha mente, atordoando-me. Se aquele jovem rapaz


era Patrick, então a dama era a Sra. Duncan. Juntos. No meio de uma nevasca.

Sem querer ver para o que ela apontava, contudo, sem conseguir conter a
curiosidade, aproximei-me da beirada, e olhei.

A dezenas de metros abaixo de nós, eu a vi. A carruagem.

— Charlotte? — Senti uma mão me segurando pelo braço. — O que


aconteceu? Por que correu até aqui?

Do nada, a nevasca desapareceu, dando lugar às folhas alaranjadas do


outono. O rapaz e a dama também haviam sumido.

Olhei para o dono da mão que me agarrava. Era Patrick.

— Eu... Eu...

O que deveria dizer a ele? Como poderia explicar? Poderia confiar nele?
Afinal de contas, ele e a mãe estavam presentes durante o acidente.

De repente, vimos uma carruagem aproximando-se na estrada, vindo da


direção de Crawford Hall. Considerando a data, nem precisava ver quem estava
dentro da cabine para saber quem era a nova visitante de Rosebery Hall.

Lady Morgan havia chegado à Escócia.

***
Capítulo 23
CHARLOTTE

Fui ensinada a sempre tentar ver o copo meio cheio. Naquele momento,
contudo, era impossível fazê-lo. Mamãe havia chegado antes de eu conseguir
terminar a minha missão com Lorde Devon, enquanto que Patrick me encarava
como se mal pudesse esperar para me encurralar sozinha e fazer um verdadeiro
interrogatório sobre o que se passara na estrada em que perdeu os tios de
consideração e a moça a quem estava prometido.

— O que estavam fazendo no meio da estrada? — Mamãe questionou,


quando a carruagem voltou a se movimentar.

— Mamãe, este é...

— Sei exatamente quem é! — Ela me interrompeu, parecendo extremamente


irritada. — Lorde Devon, preciso que me garanta que vai cuidar bem da minha
filha.

Seu comentário implicava que ela acreditava que ele não estava fazendo um
bom trabalho.

— Não sou... — Patrick tentou falar, mas claro que Lady Morgan não
permitiu que ele se explicasse.

— Irresponsável, sei. Isso é o que todos os cavalheiros me dizem. Mas


depois acabam fazendo tolices. E somos nós mulheres que pagamos pelos seus
erros. Bando de inúteis! — Ela reclamou, fazendo-me corar com sua grosseria
gratuita.

Pobre Patrick! Sequer era ele quem estava falsamente noivo de mim! E ainda
tinha que ouvir desaforos desmerecidamente! Eu jamais trataria alguém de forma
tão mal-educada! A menos que a pessoa justificasse a minha fúria com alguma
tolice, claro.

Tentei novamente. Mais uma vez, fui interrompida:

— Mamãe, ele não é...

— Inútil? Vamos ver. Para isso que eu vim.

— Estenãoéomeunoivo! — vociferei, falando tão rápido que ela não foi


capaz de me interromper antes que eu completasse a frase.

— Quê? — Patrick questionou.

— Não é o seu noivo? — uma ruga aprofundou-se entre as sobrancelhas de


mamãe. — Quem é este cavalheiro, então?

— É o Sr. Duncan — enfim, ela me deixou falar.

— Ah! — sua carranca dissolveu-se em uma expressão animada. — Por


acaso é o filho da adorável Sra. Duncan?

— Sim, sou eu mesmo.

Ela calou-se, analisando-o com um olhar contemplativo que me preocupou.


Lady Morgan estava planejando algo e, conhecendo bem a minha mãe, devia
estar relacionado a casamentos.

— É solteiro?

— Mamãe! — Eu sabia que ela faria isso!

Quanta humilhação!

— Que foi? Ainda tenho duas filhas solteiras — ela falou para mim, em
seguida, voltou seu olhar para Patrick. — E muito atraentes.

— Tem que casar esta aqui antes — apontei para a minha própria pessoa.

Eu amava mamãe profundamente, mas como era difícil ser filha de Lady
Morgan!
— Você está encaminhada, querida. Já virei a página — mais uma vez, assim
que terminou seu pequeno discurso, ela retornou o foco para Patrick. — Então,
Sr. Duncan, está comprometido com alguma dama?

— Não estou, Lady Morgan — replicou, sorrindo.

Que tolo! Não percebia que, quanto mais ele sorrisse e fosse gentil, pior ela
ficaria? Mamãe era uma força da natureza, como um rio bravo, que passava
pelos caminhos mais tortuosos, furava a mais dura das rochas, vencia a maior
das barreiras.

— Que ótima notícia! Posso lhe garantir que Rose e Alice são excelentes
partidos!

— Mamãe!

— E nenhuma delas dá nem metade do trabalho que Charlotte dá.

— Ai, céus — era possível morrer de vergonha? Porque eu já estava


pensando em cavar minha própria cova.

— Porém, se procura alguém mais discreta, devo sugerir Rose. Que menina
maravilhosa. E muito bonita também.

— Se ela possui a beleza da mãe, deve ser lindíssima.

Que bajulador. Claro que mamãe quase explodiu de alegria ao ouvir um


rapaz bem mais jovem e consideravelmente atraente elogiá-la com tanta energia.

— Oh! Encontrei meu novo genro!

— Ainda não conheceu Lorde Devon, mamãe.

— Estou falando do Sr. Duncan! — Ela me repreendeu. A audácia! — Exijo


que me convide para uma dança no baile de noivado da minha filha, Sr. Duncan.

— Será uma honra, Lady Morgan.

Enquanto eles tinham aquela conversa frívola, nós havíamos chegado a


Rosebery Hill. Como mamãe não avisara de antemão acerca de sua chegada,
Lorde Devon e Frederick não a aguardavam do lado de fora da casa.

Ótimo. Eu ainda teria tempo para explicar a ela sobre a condição de Lorde
Devon.

— Mamãe, preciso lhe falar algo sobre Lorde Devon — segurei sua mão,
mas ela se liberou de mim e desceu da carruagem com a ajuda do Sr. Clayton,
que veio correndo auxiliá-la ao notar nossa aproximação.

Ela já caminhava em direção à entrada quando disse por cima do ombro:

— Adorei sua nova casa, querida. Um espetáculo!

O pobre Sr. Clayton foi praticamente arrastado enquanto ela o guiava para
dentro da propriedade, como se fosse Lady Devon, a proprietária de Rosebery
Hill. Onde estavam seus modos, para invadir a casa dos outros de maneira tão
abrupta?

— Céus, é tão difícil falar com ela... — comentei baixinho, enquanto Patrick
me ajudava a descer do coche.

— Acha mesmo? Eu a adorei.

— O senhor tem um gosto bastante peculiar — comentei enquanto tentava


alcançá-la, já conseguindo ouvi-la conversar com criados que encontrava no
caminho até Lorde Devon.

— Ela me lembra de outra dama por quem tenho bastante apreço.

O comentário me fez parar. Virei-me e encarei-o, encontrando-o sorridente.

— Conhece outra dama como mamãe? Pobre coitado...

***

— Mamãe, o que faz aqui? — Ouvi a voz assustada de Frederick do


escritório. Cheguei tarde demais; ela conseguira encontrar meu irmão e meu
suposto noivo antes que eu pudesse preveni-los.

— Lady Hamilton não avisou que eu chegaria em duas semanas?


— Sim, sim — Frederick replicou, pasmo.

Entrei a tempo de ver sua face ficar pálida.

— Ficará aqui, mamãe? — questionei, oferecendo a ele e a Lorde Devon,


que estava sentado atrás de sua grande escrivaninha, tempo para se recuperarem
da surpresa.

— Ficarei onde meus filhos ficarem — ela replicou, encarando Lorde Devon
em seguida, esperando que ele se levantasse para cumprimentá-la, ficando
claramente irritada com sua demora.

Ele deu a volta na escrivaninha e mamãe enfim percebeu que ele não
cometera qualquer gafe.

— É uma honra finalmente conhecê-la, Lady Morgan — ele disse


cordialmente, forçando um sorriso nervoso.

Ela o observou por alguns segundos, nos quais o cômodo caiu em um


silêncio ensurdecedor. Depois de analisá-lo com seu olhar clínico, ela perguntou:

— O senhor é Lorde Devon?

— Sim, senhora.

— Sua propriedade é muito bonita — ela elogiou.

— Obrigado.

— O senhor é bastante atraente — oh, céus.

— Eu... Obrigado — ele titubeou daquela vez.

— Pode me dar netos?

— Mamãe! — eu e Fred exclamamos em uníssono.

— Sim — a réplica de Lorde Devon veio acompanhada de um sorriso


despudorado daquela vez, e o maldito sequer disfarçou ao me dirigir um olhar
libidinoso.
Se aquilo tudo era fingimento por causa do nosso noivado de mentira, ele
estava fazendo um trabalho primoroso. Senti músculos que eu nem sabia existir
contraindo-se entre minhas pernas com a mistura do nervosismo e atração por
aqueles olhos cálidos.

— Bem-vindo à família, meu querido! — mamãe replicou, inclinando-se


para poder abraçá-lo.

Eu e Frederick nos entreolhamos; ela deveria estar verdadeiramente


desesperada para me casar. Mal nos abraçava! Imagina agarrar um cavalheiro
que acabara de conhecer?

— Agradeço a gentileza.

Felizmente, Lorde Devon foi educado o bastante para retribuir a


demonstração bizarra de carinho.

Naquele momento, a Sra. Duncan entrou no escritório. Imediatamente, fiquei


preocupada; desde que ela retornara à Escócia, ficava quase o tempo inteiro no
quarto, e havia perdido pelo menos cinco quilos. Senti-me culpada por toda a
história do medalhão de sua melhor amiga e as minhas visões.

— E essa beldade deve ser a sua tia! — Mamãe quebrou o clima estranho.

Ao perceber quem era a nova visita, o rosto da Sra. Duncan transformou-se


com seu sorriso adorável.

— Querida Lady Morgan! Que bom conhecê-la pessoalmente! Ouvi certo?


Ficará conosco?

— Se não for incomodá-los... — Se Lorde Devon tivesse o mínimo de juízo,


inventaria uma desculpa para recusá-la.

— Será um prazer tê-la conosco, Lady Morgan. Pelo tempo que desejar.

Três pares de olhos encaravam mamãe com admiração. Oh, céus, ela os tinha
na palma de sua mão. Eu e Frederick estávamos sozinhos naquela. Dei uma
cotovelada na costela dele, incentivando-o a consertar aquela confusão de
proporções napoleônicas.
— Mamãe, talvez fosse melhor ficarmos hospedados em Crawford Hall.

— Que excelente ideia, Fred! Lady Hamilton adora a sua companhia, mamãe
— corroborei com o comentário do meu irmão.

Mamãe bateu sua bengala três vezes no chão, o suficiente para nos calar e
fazer-nos encolher de temor. Notei que os demais ocupantes do cômodo estavam
achando a situação cômica.

Quando a bengala de Lady Morgan se voltasse para eles, duvido que o


sorrisinho em seus lábios duraria mais do que um segundo para se desfazer em
desespero e arrependimento por terem provocado a ira de mamãe.

— Deixe de besteiras, Lotty! O casal precisa praticar!

— Praticar? — Perguntei, mas deveria ter engolido a maldita língua.

— Sim! Seu irmão ainda não teve a consideração de me dar um neto!

— Mamãe — Frederick tentou defender-se —, não é por falta de vontade ou


de tentativas e...

— Tenho certeza de que Lorde Devon não me decepcionará — ela sorriu


para ele. — O casamento é em pouco mais de um mês, e quero que um neto já
esteja a caminho até lá!

— Mamãe! — daquela vez, apenas Frederick a repreendeu.

Eu estava ocupada demais passando pela pior humilhação da minha vida.

— E, Charlotte, não me decepcione! — ela apontou a bengala para mim e


não me movi. Não teve nada a ver com coragem: eu ainda estava chocada
demais com seu comentário anterior para poder reagir. — Não quero esperar
mais de um ano, como é o caso de seu irmão.

— Mamãe, eu...

— Certamente não está fazendo seu trabalho bem o suficiente, Frederick.


Voltará a Crawford Hall para me garantir logo um neto, e eu ficarei aqui com
Charlotte.
— Mamãe, eu... — ele insistiu.

— Vá logo! Quero estar rodeada de pequenos Morgans e Devons até o


próximo verão!

***
Capítulo 24
CHARLOTTE

Eu precisava dizer tanto a Lorde Devon: sobre mamãe, sobre nosso falso
noivado, e, acima de tudo, sobre Patrick e sua tia.

Encontrei-o conversando com a cozinheira, instruindo-a a preparar um jantar


especial para sua nova convidada.

— Por favor — comentei, imediatamente recebendo sua atenção —, diga-me


que vai pedir a Jane para colocar alguma erva com efeito sonífero para mamãe.

Jane, a cozinheira de Rosebery Hill, sorriu para mim, com um olhar de


compreensão. Já havíamos conversado algumas vezes, e sabia que, assim como
eu, ela tinha uma mãe impossível.

— Por que eu faria isso com a minha futura sogra, Charlotte? — ele
comentou entredentes, e notei como enfatizou a palavra sogra, já que, apesar
daquele circo ser uma farsa, seus criados não tinham conhecimento da mentira.

— Céus! Seu patrão é demasiado sério, Jane... Qualquer um saberia que eu


estava apenas brincando... — ela tentou segurar a gargalhada.

— Posso ajudá-la com alguma coisa, Charlotte? Além de planos para apagar
Lady Morgan?

— Podemos conversar a sós um momento, Lorde Devon? É urgente.

— Talvez as suas prioridades não sejam as mesmas que as minhas, Charlotte.


— O maldito usou as minhas palavras contra mim.

— Acredite em mim, milorde: desta vez, são.


Não esperei que ele compreendesse meu desejo de lhe falar sobre o acidente
de sua família, então fui para trás da cadeira dele e a empurrei até a sala de
inverno, um dos meus cômodos favoritos da propriedade, que ficava nos fundos
da casa.

— Charlotte, o que...

— Tive uma nova visão — interrompi-o. — Desta vez, foi do acidente.

Ele esticou o braço, indicando que eu me sentasse no pequeno sofá que


ficava posicionado de frente para as largas janelas, com uma vista agradável dos
estábulos, hortas e pequenos jardins dos fundos da casa.

Anoiteceria em breve, o jantar seria servido em meia hora, no máximo.


Precisava lhe contar o mais rápido possível.

— Patrick estava lá — expliquei.

— Eu sei. Foi ele quem me salvou.

— Ele não estava sozinho, Lorde Devon. Sua tia estava com ele.

— Tia Julia?

E fora isso que havia levantado minhas suspeitas. Desde sempre, Lorde
Devon sabia da presença de seu melhor amigo no acidente. Ele não se recordava
precisamente do primo o salvando, apenas se lembrava de ter gritado por ajuda e
alguém tê-lo tirado dos escombros. Posteriormente, soube que seu salvador havia
sido Patrick, o rapaz prometido à sua irmã.

No entanto, em nenhum momento se falou na presença da Sra. Duncan.


Então, o fato dela estar lá era estranho. Por que ela não contaria para Lorde
Devon sobre a sua participação no evento fatal? Porque estava escondendo
alguma coisa, eu logo concluí.

Desde que tivemos a conversa sobre as minhas visões, ela me evitava ao


máximo. Eu notei como ela sempre estava com luvas, mesmo dentro de casa. Ela
não queria mais me tocar, e eu desconfiava que fosse por causa do segredo
envolvendo sua atuação no acidente trágico.
Porém, ela não havia contado ao filho sobre as minhas habilidades. Por isso,
ele me tocara no braço sem a proteção de luvas. Tinha sido uma grande sorte; ele
devia ter acabado de retirá-las ao retornar de algum compromisso no vilarejo. E,
como eu usava o medalhão contra o peito, como a joia também tocava a minha
pele, eu tive a visão.

O problema era: eu vi a perspectiva de Patrick da história, não sabia o que


sua mãe estava fazendo antes dele chegar.

— Eu tenho certeza de que há uma explicação para tia Julia estar lá,
Charlotte.

— Se há uma explicação plausível — rebati —, então por que ela jamais


contou a você que foi uma testemunha?

— Não sei. Porém, ela deve ter suas razões — ele reforçou o argumento.

Céus, como ele podia ser tão cego?

— Deveríamos perguntar a ela.

— A senhorita não vai fazer nada. Esta é uma questão de família, Charlotte
— apesar das palavras rudes, o tom dele ficou ligeiramente mais gentil. — Sei
que deseja ajudar, mas esse é um tema bastante sensível para todos nós.

— Eu entendo.

E, de uma certa forma, entendia mesmo. Eu não estava aqui mais de uma
década antes, quando tudo ocorreu. Muito menos conhecia com profundidade a
relação entre Lorde Devon e sua tia de consideração. Talvez, ele soubesse mais
do que desejava me contar sobre o acidente. Eu não o julgaria por isso.

— Acho que o nosso experimento foi longe demais. Poderia me devolver o


medalhão, por favor?

Nem consegui falar, de tão desapontada que fiquei. Tirei o cordão do


pescoço e coloquei a joia sobre sua palma, tomando cuidado para não tocar a
pele dele. Quando a joia deixou a minha posse, era como se eu a tivesse perdido:
Margaret.
Poderia parecer ridículo, mas eu havia me afeiçoado a ela: era como se o
medalhão tivesse unido nossos espíritos de alguma forma. Eu compreendia suas
dores, admirava sua força para suportar o marido violento.

Por outro lado, sabia que Lorde Devon tinha razão. Aquilo estava fora de
controle. Era uma questão extremamente sensível. Ainda assim, será que ele
havia desistido de descobrir o que acontecera?

— Vamos, Charlotte? — ele convidou, um sorriso triste surgindo em seus


lábios.

Foi naquele momento que eu decidi: ele precisava da verdade. Talvez ele não
tivesse se dado conta daquilo, mas era o que ele merecia, era o que Lady
Margaret Devon desejaria para ele: que fosse revelado ao seu filho os segredos
que rodeavam sua morte.

Eu acharia um jeito de saber o que havia acontecido. Com ou sem a


permissão dele.

***

Pela primeira vez em muitos dias, a Sra. Duncan desceu para jantar conosco.
E eu tinha certeza de que era graças à presença de mamãe. Ela estava até um
pouco mais relaxada comigo, fazendo algumas perguntas e rindo dos meus
comentários.

Frederick já havia sido enxotado para Crawford Hall: não que ele tivesse
ficado sentido de ter que voltar a dormir ao lado da esposa. Mamãe também
fizera questão de ser apresentada a todos os criados da propriedade, e havia
conseguido tal proeza em apenas uma tarde.

Pelo menos, a tensão em que estivemos desde sua chegada havia se dissipado
àquela altura. Claro que o clima ameno não duraria muito. Era impossível falar
apenas sobre amenidades quando Lady Morgan estava no recinto.

— Charlotte, fiquei com o seu quarto — ela anunciou de maneira abrupta.

Estava na metade de minha sopa de cenoura, no entanto, sabia que não iria
terminá-la agora. Conhecia o tom de Lady Morgan: ela queria comunicar algo
que considerava importante, e provavelmente não era uma questão tão simples
quanto uma mudança de quartos.

— Por que preferiu meu quarto, mamãe? Há muitos outros disponíveis. —


sabia que ela desejava a minha pergunta, para poder explanar seus motivos.

— Aquele é o mais próximo ao da Sra. Duncan.

— Sei... — estreitei os olhos. Ela estava aprontando algo. — E eu ficarei em


qual, agora?

— Naquele adjacente ao de Lorde Devon.

Céus, como pude ter sido tão estúpida? Eu jamais deveria ter permitido que
ela fizesse os arranjos do quarto com a Sra. Duncan. Eu deveria estar presente
enquanto ela escolhia os aposentos onde ficaria.

— O quarto de John? — Lorde Devon questionou.

Ele precisava se impor: se desse uma gota sequer de poder à mamãe, não
mandaria mais em sua própria casa. Enquanto estivesse ali, todos obedeceriam
às exigências de Lady Morgan se ele assim o permitisse. Ele tinha que ser forte;
precisava ser firme.

— O querido rapaz o ofereceu.

Mamãe tinha um jeito impressionante de convencer as pessoas, de submetê-


las às suas vontades. E, na maioria das vezes, sequer precisava usar sua bengala.

— Onde John ficará, mamãe?

Eu já imaginava a resposta: ela desejava manter John bem longe de Lorde


Devon, e eu, bem próxima.

— Em outro cômodo. No final do corredor.

— E se eu precisar de ajuda? — Lorde Devon estava chocado demais para


questionar as decisões tomadas por mamãe sem a sua autorização.

Devo comentar que sua tia estava com a expressão pacífica, como se já
considerasse a nova amiga a dona da casa, enquanto que Patrick estava usando o
guardanapo para esconder o sorriso.

— Tenho certeza de que sua noiva o ajudará, Lorde Devon.

— Sei...

— E que o senhor será um perfeito cavalheiro.

— Até demais — reclamei, arrancando uma gargalhada de Patrick. Ele se


controlou assim que ele viu os olhares que eu e Lorde Devon dirigíamos a ele.

— Lembre-se, Lorde Devon: netos — mamãe ressaltou.

— Oh, céus — eu cometi o erro de dizer em voz alta.

— Acho que rezar não adiantará muito, Lotty. Precisa praticar com seu noivo
para gerar filhos.

Até a Sra. Duncan estava rindo agora, e juro que senti ondas do mais puro
ódio vindos da Sra. Jones. A mulher me adorava, óbvio, sempre rezava quando
estava próxima a mim, provavelmente torcendo para que eu e seu patrão nos
casássemos logo. Porém, temia que ela agora deixasse de me admirar, depois de
ouvir os absurdos que mamãe dizia.

— Mamãe, poderia deixar de dizer tantas coisas escandalosas?

— Não há qualquer motivo para escândalo, Lotty. Quando se casarem, em


outubro, sua barriga ainda não estará grande o bastante para notarem.

***
Capítulo 25
RICHARD

Daquela vez, eu já a aguardava. Se Charlotte já invadia meu quarto quando


dormia do outro lado da casa, imagine agora, que estava acomodada no cômodo
ao lado do meu. Daquela vez, pelo menos, ela bateu à porta que separava nossos
quartos. Até esperou que eu autorizasse sua entrada.

Usava o mesmo roupão da primeira vez que aparecera nos meus aposentos
no meio da noite. Pelo menos, ele estava bem fechado agora, impedindo que eu
visse a chemise quase transparente que provavelmente usava por baixo. Senti um
misto de alívio e decepção.

Caminhou cabisbaixa até a cama, e eu bati de leve no colchão, para que ela
se sentasse em seu lugar de costume.

— Eu sinto muito pela minha mãe, Lorde Devon — ela enfim disse, em um
tom tão baixo que era praticamente um sussurro.

Havia tanta tristeza em sua voz que eu senti meu peito me sufocando. Não
queria vê-la assim, parecendo derrotada. Decidi provocá-la para tentar puxar um
pouco daquela energia que eu tanto admirava.

— Eu poderia dizer que não é culpa sua, mas seria uma mentira, não?

— Céus, o senhor não aprende — seus olhos imediatamente voaram para os


meus, a ferocidade felina de volta neles.

— O que eu deveria aprender? — fiz-me de inocente.

Era melhor uma Charlotte impaciente que uma Charlotte sem ânimo.
— A mentir para damas a fim de deixá-las satisfeitas, Lorde Devon!

— Que mentira deveria contar à senhorita? — questionei, um sorriso


formando-se em meus lábios.

— Que eu sou uma pobre vítima de uma soma de circunstâncias


desfavoráveis.

— Acha que foi tão ruim assim?

— Estávamos no mesmo jantar? Eu sequer consegui lidar com mamãe!

Segurei sua mão, tentando consolá-la com aquele toque. Não poderia chegar
um milímetro sequer mais perto, senão meu fraco controle ruiria de vez.

— Acho que nem mesmo o rei da Inglaterra seria capaz de negar qualquer
pedido de Lady Morgan, Charlotte.

— Está dizendo isso porque agiu como um fracote!

Gargalhei de sua impaciência. Minha Charlotte estava de volta.

Tentei ignorar o quanto gostei de chamá-la de minha, mesmo que fosse


apenas em minha mente.

Era engraçado como a irritação fazia Charlotte brilhar tanto quanto a alegria.
Ela havia entrado em meu quarto murcha, desanimada, e agora já parecia uma
flor no meio da primavera.

— Está em minha casa, invadiu o meu quarto, inventou um noivado que


jamais existiu, e ainda me ofende?

— Poderia parar de me acusar de coisas que escapam do meu controle?

— Perdoe-me por ressaltar todos os erros que cometeu, Charlotte.

— O que faremos agora, Lorde Devon? Mamãe acha que vamos nos casar
em outubro, e eu já desisti de conquistá-lo!

Fingi uma expressão de neutralidade, mas, por dentro, uma parte de mim
morreu quando ela disse que havia desistido de mim. Não era isso que eu queria,
no fim das contas? Que ela ficasse com alguém que pudesse fazê-la feliz?

Você pode fazê-la feliz, Richard, uma voz incômoda sussurrou nas
profundezas da minha mente e do meu coração.

Não! Estava tão perto. Precisava resistir.

— Vejo que é tão direta quanto Lady Morgan.

— Esta é a nossa realidade: ou o senhor enfim aceita que há algo entre nós,
ou precisaremos acabar com essa farsa.

— Não nego que haja... Muito entre nós, Charlotte. Mas sabe por que não
posso.

Eu a queria, céus, como eu a queria! Tinha que controlar meu desejo,


entretanto; ele nascera do meu egoísmo.

— Jamais imaginei que um homem como o senhor se deixaria ser derrotado


por um detalhe.

— Acha que ser paralítico é um detalhe?

— Para mim, é isso mesmo.

— Não sabe como é...

— Eu o quero, Lorde Devon, independentemente de como seja!

— Mas...

— Para um cavalheiro tão inteligente, o senhor pode ser o maior tolo da face
da Terra, às vezes...

Ela tinha razão. Maldição, ela tinha razão. Eu a desejava. Ela me desejava.
Nós tínhamos sido feitos para aquele momento, para estarmos juntos, para
compartilharmos sentimentos que jamais conseguimos dividir com outras
pessoas.

Ela não viu a mudança da minha resolução, baixou a cabeça e tentou se


levantar. Porém, daquela vez, eu não permitiria que ela deixasse meu cômodo
frustrada.

Segurei seu pulso e ela, no susto, voltou a me encarar. Seus olhos devem ter
visto o que eu estava prestes a fazer, pois seus lábios macios se repuxaram em
um sorriso travesso.

— Finalmente, Richard.

***

Ela ainda sorria quando os meus lábios encontraram os dela. Não lhe dei
tempo de continuar a falar. Não me dei tempo para pensar. Decidi seguir o meu
coração e o desejo que via nos olhos dela sempre que suas esmeraldas estavam
dirigidas a mim.

Eu a puxei para o meu colo, em seguida, virei-a no colchão, deixando-a


deitada ao meu lado. Sem soltar seus lábios, coloquei-me em cima dela,
deixando parte do meu peso sobre os cotovelos, e ela me recebeu com paixão,
separando os joelhos e acomodando meu quadril junto ao dela.

Podia não sentir minhas pernas, mas minhas entranhas estava pegando fogo.
Era como se lava estivesse correndo pelas minhas veias no lugar de sangue,
como se meu coração estivesse sendo alimentado por fogo e ardor. Entre um
beijo e outro, surpreendi-me ao ouvir minha voz ecoando meus pensamentos:

— Sabe o que eu pensei quando a vi pela primeira vez? — Arfei. — Se você


seria tão fogosa na cama quanto era em uma discussão.

— Sabe o que eu fiz enquanto discutíamos? — Ela questionou, e aproveitei a


breve pausa dos nossos lábios para me afastar um pouco de seu torso, e desfazer
o laço do seu roupão.

— O que fez, Lotty? — Minha voz estava profunda e rouca e meu tom mal
passava de um murmúrio.

— Apertei minhas coxas na sela. O pobre cavalo deve ter ficado com dores
por dias! — Ela gargalhou com a lembrança, e a visão dela sorrindo apenas me
deixou mais excitado.

Passei os dedos por suas clavículas, agora descobertas, e retornei minha boca
no instante em que ela parou de rir.

Ela partiu os lábios, abrindo-se para a minha invasão. Explorei sua boca, ao
mesmo tempo em que deixava todo o meu peso sobre ela, afundando-a ainda
mais no colchão. Precisava dos meus braços livres para explorar seu corpo como
fazia com seus lábios.

Minhas mãos enterraram-se sob Charlotte, e desci-as até encontrar a


curvatura perfeita de seu traseiro, apertando-o, puxando-o contra meus quadris,
enquanto ela gemia na minha boca.

— Estou muito pesado?

— Seu peso é excitante, Richard.

Ouvir ela pronunciando meu nome foi como o segundo anterior à erupção de
um vulcão: nós estávamos envolvidos em um torpor de desejo e paixão, e agora
eu libertaria meus últimos pedaços de autocontrole.

Uma das minhas mãos foi até seu calcanhar, enquanto meus lábios libertaram
os dela, baixando para o seu queixo, mordiscando sua orelha, lambendo sua
clavícula. À medida que minha mão subia por sua perna, meus lábios desciam
em direção aos seus seios.

Ela ainda usava a chemise, mas era fina, e não havia nada por baixo. Eu
usava uma peça parecida, que tampouco restringia meus movimentos ou meus
sentidos. Ao mesmo tempo em que meus lábios abocanharam um mamilo, meus
dedos alcançaram sua intimidade.

— Rick! — ela arfou: era uma súplica, um pedido íntimo.

Ela queria mais. Ela precisava de mais.

Mordisquei seu mamilo, e acariciei-a no pequeno ponto da sua intimidade.


Ela continuou dizendo coisas incoerentes, e seu corpo foi ficando tenso sob mim,
arqueando-se, aproximando-se, desesperando-se por alívio.

Ela estava úmida. Céus, como ela estava úmida quando meus dedos
deslizaram para dentro dela.
— Rick, por favor, Rick... — como eu desejara ouvi-la se dirigindo a mim
daquela forma.

Naquele momento, Charlotte não pertencia a ela mesma: ela pertencia a


mim, e eu, a ela.

Passei minha atenção para o outro seio, fazendo círculos em seu ponto
sensível com um dedo, enquanto o outro enterrava-se nela e saía, em um ritmo
frenético.

Senti-a apertando-se em volta de mim quando chegou ao ápice, seu grito de


prazer foi lindo, erótico, perfeito.

Em seguida, ela apagou.

Observei sua face por um longo instante e, finalmente, cheguei à conclusão


de que Charlotte nascera para se tornar Lady Devon. Não haveria nenhuma outra
para mim. Assim como não haveria nenhum outro para ela.

— Eu a amo, Lotty — sussurrei, mas ela nem se mexeu. — Vou pedi-la em


casamento amanhã. E, desta vez, será de verdade.

***
Capítulo 26
CHARLOTTE

— Eu a amo, Lotty. Vou pedi-la em casamento amanhã. E, desta vez, será de


verdade.

Aquilo foi sonho ou realidade? Apenas sei que senti meu corpo inteiro
formigando, ficando tenso e, quando achei que meu coração iria explodir, veio o
alívio. Foi como ir do desespero absoluto à satisfação plena.

Meu corpo inteiro relaxou de uma vez, e senti o cansaço se apoderando de


mim rapidamente. Antes de dormir, entretanto, ouvi aquelas palavras.

Talvez, eu já estivesse sonhando. Esperava que não.

***

Não tinha ideia de que horas eram quando despertei novamente. Richard
dormia profundamente, virado para mim, um braço em volta da minha cintura, o
outro sob sua cabeça, apoiando-a, como se ele estivesse me observando antes de
ser levado pelo sono.

Não era inverno ainda, mas eu, acostumada ao clima de Kent, considerava o
outono escocês demasiado frio. Bem devagar, para não acordá-lo, saí de seu
abraço, e fui alimentar a lareira.

Ao me reaproximar da cama, a luminosidade permitiu que visse melhor a


expressão de Richard. Naquele instante, não havia preocupação em sua face,
apenas puro contentamento, um reflexo perfeito do que eu sentia.

Seu rosto parecia angelical, mesmo com a cicatriz, e eu podia jurar que havia
uma curvatura nos lábios dele, indicando que sorria. Esperava que ele estivesse
sonhando comigo.

Era melhor que estivesse sonhando comigo.

Queria logo retornar para os braços de Richard, o que me impediu foi um


objeto reluzente sobre seu criado mudo.

O medalhão.

Eu sabia que, quando acordássemos, tudo seria diferente. Depois do que


acontecera hoje, Richard não podia mais mentir para si mesmo, não podia mais
alegar que o que havia entre nós era apenas faz de conta.

No entanto, eu também sabia que, enquanto todos os detalhes do trágico


acidente não fossem revelados, o evento seria como um fantasma do passado de
Richard, perseguindo-o constantemente, não permitindo que ele tivesse paz.

Por isso, por ele e Margaret, coloquei o medalhão no pescoço, e uma


sensação de plenitude perpassou pelo meu corpo quando a joia tocou meu peito.
Agora, eu estava completa. Agora, eu estava pronta para compreender os
segredos de sangue dos Devon.

Voltei para a cama, e Richard, como se tivesse sentido minha aproximação,


puxou-me para perto de si. Fechei os olhos, acolhendo o sono como um querido
amante.

***

Mal podia esperar para visitar os Hamilton. Caroline acabara de ganhar um


potro de aniversário, e ela tinha me garantido que ele era infinitamente mais
bonito que James, o cavalo do meu pai. Eu apostei todas as minhas economias
que o potro dela, Tempestade, jamais seria mais elegante, mais veloz, ou mais
inteligente que James, e ela parecia tão segura quanto eu que venceria.

Meninas eram umas bobas mesmo.

Estava pronto um quarto de hora antes do combinado, e estava no hall de


entrada de Rosebery Hill quando alguém bateu à porta. Caminhei para abri-la
e, pela primeira vez na minha vida, cheguei antes que o Sr. Clayton.
Ele me dirigiu um olhar desapontado, em seguida, deu as boas-vindas ao Sr.
Duncan. Eu gostava bastante do Sr. Duncan: ele era gentil, cordial, e muito
calmo. Por isso, estranhei sua expressão. Ele parecia irritado, aborrecido com
algo, como papai ficava depois de beber muito vinho.

— Onde está ele? Onde está Lorde Devon?

Ele não esperou pela minha resposta ou a do Sr. Clayton. Foi em busca de
papai, que provavelmente se encontrava em seu escritório. Momentos depois,
ouvi-o gritar com meu pai, que deve ter fechado a porta do escritório, pois os
sons ficaram abafados.

Caminhei lentamente até o cômodo, tentando escutar o que se passava.

— Eu vou matá-lo, seu desgraçado! — Ouvi as ameaças do Sr. Duncan, e


quase não pude acreditar que o homem pacífico que eu conheci toda a minha
vida poderia ser aquela pessoa que havia atacado papai sem motivo aparente.

— Acalme-se, por favor. Vamos conversar como cavalheiros — papai


implorou, mas o Sr. Duncan passou a atirar objetos pelo cômodo, xingando-o.

O som de passos fez que eu me virasse. Patrick, o filho do Sr. Duncan, estava
atrás de mim, e sua mãe corria escadaria acima atrás dele.

— O que está acontecendo, Pat? — Claire veio da sala de inverno.

— Depois explico. — Ele comentou com ela, olhando de esguelha para mim.

O que quer que fosse, ele não desejava discutir o assunto na minha frente. O
que significava que era algo bastante grave, pois Patrick costumava me contar
tudo.

Como se a briga no escritório não fosse suficiente, ouço um grito vindo do


segundo andar, de mamãe.

— Precisamos falar com ele! O que ele vai fazer? — Mamãe gritou, e desceu
as escadas seguida pela Sra. Duncan. As duas choravam.

Naquele intervalo, a barulheira vinda do escritório havia cessado. Onde


estavam papai e o Sr. Duncan?
— Leve seu irmão para a carruagem! Agora! — Mamãe ordenou ao passar
por nós.

— Não faça nada, Pat! — A Sra. Duncan implorou ao filho.

Claire me puxou pelo braço, enquanto prometia a Patrick que o visitaria


mais tarde para ele explicar o que estava acontecendo. Ele a encarou com um
olhar triste, arrependido, e lhe deu um beijo na testa.

Estava tremendo quando entramos no coche, mas Claire me garantiu que


ficaria tudo bem, que era apenas uma discussão entre velhos conhecidos. Ela
começou a falar das nossas brigas de irmãos, lembrando das discussões, dos
planos de vingança, das pegadinhas.

Quando meus pais entraram na cabine, meu coração estava mais leve, e
havia um sorriso em meu rosto bem parecido com o de minha irmã. Ela
continuou me distraindo enquanto a carruagem se dirigia a Crawford Hall.

Achei que estávamos indo rápido demais. Em geral, o cocheiro era bastante
cuidadoso durante o inverno, já que as estradas ficavam cobertas de gelo e
escorregadias. Porém, meu pai exigira que ele se apressasse, alegando que não
queria se atrasar para o jantar na casa dos Hamilton.

Estávamos no meio de uma ladeira quando eu senti a carruagem diminuindo


o ritmo, e deslizando para baixo. Ela virou-se abruptamente, possibilitando que
eu visse qual era o obstáculo à frente. A Sra. Duncan estava parada no meio da
estrada, sua face expressando um ódio mortal que me assustou. Assim que seus
olhos encontraram os meus, o ódio foi substituído por pavor.

— Não!

Ela gritou, enquanto nós caíamos na escuridão.

***
Capítulo 27
RICHARD

Acordei com o grito ensurdecedor de Charlotte. Quando abri os olhos, ela


estava no chão, o rosto pálido e contraído de dor, afastando-se da cama, com o
olhar perdido, como se não soubesse como chegara ali.

— Charlotte! O que houve?

Senti-me péssimo por não poder me levantar da cama sozinho para acudi-la,
confortá-la em meus braços, e garantir que ficaria tudo bem. Como se não me
reconhecesse, ela se arrastou até a porta que dava acesso ao quarto de John.

— Charlotte, sou eu, Richard — tentei deixar a voz mais calma, mais gentil.
— Está tudo bem. Foi só um pesadelo.

— Richard? — Seu olhar concentrou-se em mim, e ela se levantou devagar.


Vi, através de sua chemise quase transparente, algo brilhando em seu peito.

Logo compreendi o que estava acontecendo. Olhei para o criado mudo. O


medalhão não estava mais lá. Maldição!

— Charlotte? O que está acontecendo? — Titia entrou no cômodo junto com


Lady Morgan que, ao ver a filha tremia alucinadamente, embrulhou-a com uma
manta que estava sobre a poltrona.

— Foi ela, Richard! — Ela apontou para tia Julia, no mesmo instante em que
John e Patrick entraram. — Foi ela quem causou o acidente!

— Do que está falando, Lotty? — Lady Morgan perguntou, mas minha tia e
seu filho entenderam imediatamente a sua acusação.
Senti a raiva subindo à minha cabeça, viajando pelas minhas veias,
atravessando o meu coração. Eu tinha pedido para ela não se meter mais naquele
assunto. E ela havia me traído.

— A Sra. Duncan precisa se explicar agora! — Charlotte exclamou.

— Minha tia não precisa explicar nada à senhorita — sem que pudesse me
controlar, meu tom ficou duro como aço. A raiva cálida fora substituída por um
ódio gélido, que me congelou por dentro. — Como já disse anteriormente, esta é
uma questão de família.

— Mas, Richard...

— E a senhorita não faz parte desta família — interrompi-a. — Ou já está


começando a acreditar na mentira que contou à sua mãe?

— Que mentira? — Tia Julia e Lady Morgan perguntaram em conjunto.

— O noivado jamais existiu — respondi.

Charlotte saiu correndo do quarto, suas mãos cobrindo seu rosto. John e
Patrick foram atrás dela, ambos me dirigindo olhares de decepção. Até parecia
que eu era o mentiroso da história! Que eu era quem prometia coisas que não
cumpria! Que era eu o responsável por gerar todo aquele desconforto na minha
família.

Lady Morgan continuou me encarando, atônita, enquanto eu explicava tudo o


que havia acontecido. Não sabia se ela estava mais chocada com o fato da filha
ser Lady M ou por ela ter criado um noivado de mentira.

— O senhor fica repetindo que este noivado não é verdadeiro, Lorde Devon
— ela comentou quando parei de falar.

— E nunca foi mesmo.

— Pois eu jamais vi um casal tão apaixonado. E, se o senhor não conhece


enxergar isso, é porque não merece a minha filha mesmo.

Suas palavras foram como um flecha contra meu coração. Teria eu


exagerado? Ainda estava cercado pelas brumas da raiva, então, naquele
momento, considerei que tinha razão.

Ela havia me traído! E sequer se dera ao trabalho de pedir desculpas! Ao


invés disso, ficou fazendo acusações absurdas contra tia Julia.

— Vamos sair agora mesmo de Rosebery Hill, Lorde Devon — Lady


Morgan anunciou. — A menos que o senhor já tenha percebido o quão estúpido
foi com a minha filha e vá se arrastando pedir desculpas.

— Não precisam me aguardar, Lady Morgan.

— Então o senhor é ainda mais idiota que supus — ela disse, e retirou-se do
aposento.

Maldição! Não acreditava que havia sido ofendido em minha própria casa
por duas Morgan! Não havia um pingo sequer de etiqueta naquelas mulheres.

— Rick, precisamos conversar — tia Julia sussurrou, entre soluços, quando


ficamos sozinhos no cômodo.

— Agora não, tia — começava a sentia uma dor de cabeça instalando-se.

— Agora, sim — ela insistiu, sentando-se na cama. — Charlotte estava certa:


a culpa pelo acidente foi minha.

***

— Charlotte deve ter lhe contado sobre o que seu pai fez a mim.

Como Charlotte previra, tia Julia considerava-se culpada até mesmo por ser a
vítima do monstro que meu pai era. Ela disse aquelas palavras cabisbaixa, como
se fora ela quem havia cometido um terrível crime.

— Sim, tia.

— Porém, o que ela não sabe é que eu fiquei grávida naquela noite.

— Céus!

Com apenas uma frase, ela mudou meu mundo: as injustiça que aquela
mulher sofreu foram muito maiores do que eu imaginara. O que ela acabara de
me dizer, o que ela acabara de revelar era que Patrick era o filho mais velho de
Lorde Elias Devon, não eu!

Era ele quem deveria ter herdade seu título e posses, não eu! Patrick perdera
todos os direitos que deveria ter adquirido com o nascimento por causa de um
detalhe tolo: sua mãe não era casada com Lorde Elias Devon.

Mais do que nunca, eu me sentia em dívida com eles: poderiam odiar a


minha pessoa, por quem eu representava, por ser filho de meu pai, por ter tirado
deles o que lhes era de direito. Ao invés disso, nunca senti nenhum pouco de
ciúme ou inveja vindo deles, apenas muito carinho e cuidado.

Agora entendia por que Patrick cuidava de mim como se eu fosse seu irmão
caçula. Eu era.

— Eu me recusei a contar a Will quem havia me atacado — ela continuou.


— Ainda assim, ele me pediu em casamento.

— Era um bom homem.

— O melhor — os olhos dela encheram-se de lágrimas ao mencionar o


falecido marido.

— Ao contrário do meu pai.

— Por isso não quis lhe contar nada, Rick. Jamais desejei que odiasse seu
pai.

De repente, juntei os fatos: minhas poucas lembranças do acidente, as


acusações que Charlotte fizera e o que tia Julia acabara de admitir. Eu me
lembrava de muito pouco, mas tinha uma longínqua lembrança do Sr. Duncan
indo nos visitar naquele dia.

Não me lembrava do que havia acontecido, com quem ele havia falado, mas
Charlotte parecia saber o suficiente para acreditar que a morte dele estava
relacionada ao acidente da carruagem.

Uma vez, alguém me disse que muitas pessoas suprimiam memórias


traumáticas. Talvez, eu havia esquecido da maior parte dos fatos daquele dia
porque era doloroso demais saber. Porém, aquelas memórias estavam dentro de
mim, faziam parte de mim.

E, de alguma forma, com suas habilidades misteriosas, Charlotte havia


conseguido acessar aquelas minhas memórias.

— Foi isso que o Sr. Duncan descobriu naquele dia, tia? Quem era o
verdadeiro pai de Patrick?

— Sim — ela inspirou profundamente, como se a menção daqueles


momentos fosse dolorosa demais para suportar. — Pat estava insistindo em se
casar com Claire, mas eu não podia permiti-lo.

— Porque eles eram meios-irmãos.

— Exato. Porém, tive que admitir a verdade sobre o parentesco dele para
convencê-lo a não se casar com Claire.

— E foi assim que o Sr. Duncan descobriu que foi meu pai o monstro que a
atacou.

Foi naquele momento que eu percebi: sempre considerei que a minha perda
naquele dia havia sido maior que a dos Duncan. Porém, eles haviam perdido
tanto quanto eu. Ou até mais.

Tia Julia perdera seu marido, o amor de sua vida, e sua melhor amiga, que
ela se culpava por não ter conseguido persuadir a não se casar com o monstro do
meu pai.

Patrick perdeu tudo dobrado. Perdeu Claire duas vezes em um mesmo dia: a
primeira quando descobriu que não poderia se casar com a mulher por quem era
apaixonado. A segunda quando sua melhor amiga faleceu.

Ele perdeu também o pai que o criou, aquele que o amou como se fosse seu
filho de sangue, aquele que brigou por ele, e ficou com sua mãe apesar de viver
em uma sociedade que deixava uma mulher na situação dela à sua margem. E,
por mais que meu pai fosse um crápula, Patrick acabara de descobrir que ele era
seu verdadeiro pai, e o havia perdido horas depois.

—Durante a discussão com o seu pai, Will teve uma dor no peito e caiu no
chão. Ele ficou tão nervoso que teve um ataque cardíaco.
— E meu pai o deixou lá?

Céus, não havia limites para sua falta de escrúpulos? Ele não podia fazer a
coisa certa nem quando o Sr. Duncan morreu? Apenas o abandonou, para que a
esposa e o filho recolhessem os pedaços?

— Sim, Elias o deixou no escritório e arrastou sua mãe para a carruagem,


onde você e sua irmã estavam. Foi o Sr. Clayton quem me ajudou a colocá-lo
sobre a escrivaninha e mandou chamar o médico. Mas Will já estava morto
quando vocês saíram.

— O que aconteceu depois, tia?

Eu não podia odiar mais o meu pai do que já odiava, isso era certo. E estava
convicto de que, independentemente da participação de tia Julia na morte da
minha família, eu não iria julgá-la. Eu queria saber de todos os detalhes, para ela
ficar segura de que eu a perdoava com todo o meu coração.

— Eu estava com tanta raiva do seu pai... Apenas saí correndo pelos
bosques. Queria parar o coche, queria lhe dizer tudo que jamais dissera, todas as
acusações que estavam presas em minha garganta.

— A senhora estava no meio da estrada e o cocheiro perdeu o controle da


carruagem.

— Sim.

— Tia, tudo isso é culpa do meu pai. Não se culpe, por favor.

Senti um alívio se apoderar de mim por ter acabado com aqueles mistérios
do passado, por ter deixado tudo às claras.

De certa forma, Charlotte tomara a decisão correta. O que eu não aceitava era
a sua traição para fazê-lo. Poderia ter me convencido a deixá-la usar o medalhão
mais uma vez. Ao invés disso, ela o fez pelas minhas costas.

— Eu sinto tanto, Rick — sua voz estava trêmula e fraca, e lágrimas desciam
descontroladamente pelo seu rosto adorável.

— Não fique assim, tia.


— Sabe o que mais me dói?

— O quê?

O que quer que fosse, eu faria de tudo para acabar com aquela dor. Tia Julia
já sofrera o bastante.

— Imaginar que você pode perder a mulher da sua vida por minha causa
também. Vá atrás dela, Rick. Por favor.

Respirei fundo. Não concordava com o que Charlotte fizera, mas todos
cometiam erros. Se eu não soubesse lidar com eles, faria o que sempre fiz:
empurraria as pessoas para longe e, em algum momento, mesmo Patrick e tia
Julia desistiriam de mim.

Estava na hora de enterrar as desgraças do meu passado e construir uma nova


família, com uma mulher que tivesse energia para lidar com a minha condição e
coragem para dizer a mim o que pensava.

E essa mulher era Lady Charlotte Morgan.

— Tem razão — admiti.

— Claro que tenho! E Lady Morgan também! Se não for atrás dela, é um
tolo.

— John! John! — gritei pelo meu criado, ao mesmo tempo em que notei,
pela janela do meu quarto, que estava amanhecendo. — Onde está Lady Morgan
e sua filha?

Ele estava pálido ao entrar no cômodo.

— Elas já foram embora.

***
Capítulo 28
RICHARD

Caro Lorde Richard Devon,


Espero que esta carta o encontre arrependido e com algum juízo. Não posso
dizer que sei exatamente o que se passou entre o senhor e a minha filha, mas
posso lhe garantir uma coisa: Charlotte jamais faria algo para prejudicar uma
pessoa. Às vezes, suas intenções não são compreendidas, e suas ações, um
pouco desmoderadas. Porém, seu intuito jamais é egoísta, muito menos
maléfico, ela apenas deseja ajudar.

Se ainda não se deu conta de que ela o ama, sua inteligência é bastante
limitada. Porém, se finalmente percebeu o que deixou escapar por um orgulho
estúpido, envio-lhe, em anexo, as localizações e nomes de todos os
estabelecimentos em que pretendo parar durante a nossa viagem para lhe dar
tempo hábil de vir atrás dela.

Sugiro que o faça o quanto antes, pois, quando alcançarmos a fronteira


entre a Escócia e a Inglaterra, perderá também o meu apoio.

Não seja um completo idiota, Lorde Devon.

Sua futura sogra (assim o espero),

Lady Morgan

***

Não resisti e sorri enquanto lia as palavras verdadeiras – mesmo que bastante
ofensivas – de Lady Morgan. Assim como ela, eu desejava que ela se tornasse a
minha futura sogra.
Aquela era uma família nada convencional, e era disso que eu precisava: ser
cercado de pessoas que enxergavam além do nosso tempo, além das minhas
limitações físicas, além dos pecados do meu pai.

John havia me entregado a carta logo depois de anunciar que as Morgan já


haviam partido. Ao levantar os olhos do papel, notei que não apenas meu criado
e tia Julia me encaravam, como também Patrick, o Sr. Clayton e até mesmo Jane.

Todos eles estavam reunidos com expectativa: era emocionante perceber que
todos nós em Rosebery Hill havíamos nos tornado uma família e, ao contrário do
que eu dissera a Charlotte, ela agora também fazia parte dela.

— O que faremos, Rick? — Patrick enfim perguntou.

— O que Lady Morgan escreveu? — John quis saber.

— Vocês vão ficar aqui. Eu vou trazer a minha noiva de volta.

***

John e Patrick recusaram-se a ficar para trás, e, considerando que eu


precisaria de toda a ajuda possível naquela viagem, achei melhor levá-los
comigo.

Infelizmente, pegamos uma chuva torrencial pouco depois de deixarmos


Rosebery Hill, e levamos muito mais tempo do que calculávamos para chegar
em Edimburgo, a primeira parada que Lady Morgan listara em seu anexo.

Ao chegarmos na estalagem, sua proprietária veio me cumprimentar, como


se já me esperasse. Ela avisou que Lady Morgan esperou um dia inteiro antes de
seguir viagem, e reclamou bastante da minha ausência.

— E a filha dela, a senhora a viu? — questionei.

— Ah, a pobrezinha! Mal falou uma palavra, e passou o dia inteiro trancada
em seu quarto!

As notícias ruins de Charlotte apenas me deram mais energia para prosseguir,


para ir mais rápido, com mais força. A dona da estalagem entregou-me um
bilhete que Lady Morgan deixara com ela, e previ uma nova onda de ofensas. Li
enquanto Patrick e John me colocavam de volta no coche.

Lorde Richard Devon,

Se o senhor chegou até aqui é porque ainda tem alguma chance. Vá mais
depressa, seu inútil!

Sua futura sogra (ainda esperançosa),

Lady Morgan.

Trocamos de cavalos, para pegar alguns mais descansados, e seguimos


viagem. Achávamos que não devíamos demorar mais que uma tarde para
chegarmos à segunda parada estabelecida por Lady Morgan. Entretanto, outro
obstáculo surgiu no meio do caminho: uma das rodas do coche soltou-se do
veículo, e perdemos horas preciosas consertando-a.

— Elas saíram há uma hora! — um senhor simpático nos informou assim


que chegamos à nova estalagem.

Maldição! Eu não acreditava que as havia perdido novamente! E por tão


pouco... Nem descemos da carruagem daquela vez; o homem estava sentado em
frente ao estabelecimento, e falou assim que viu o brasão dos Devon pintada na
porta do coche.

Como da outra vez, Lady Morgan havia prevenido alguém da minha


chegada, o que significava que ela ainda acreditava em mim.

— A dama pediu que eu lhe desse uma mensagem.

Estendi a mão pela janela, mas o homem balançou a cabeça.

— Ela não escreveu. Ela pediu para informar que o senhor, além de um tolo,
é o homem mais lerdo da Escócia — algumas pessoas que passavam pela
estalagem viraram-se para ver quem era o tolo da carruagem.

— Entendo.

— Mas disse também que ainda o aguarda.


— Não por muito tempo — eu murmurei para mim mesmo, calculando que
não faltava muito até a fronteira com a Inglaterra. Só mais uma parada até lá.
Apenas mais uma chance.

Dei uma gorjeta ao senhor, que fez questão de gritar que a dama lhe dera
mais dinheiro, e saímos em disparada. Chegamos na última estalagem na
madrugada do dia seguinte, quando o sol começava a despontar no horizonte. Eu
não dormira um instante sequer; ainda assim, nunca me sentira tão acordado.

Assim que John me acomodou na cadeira de rodas, senti alguém me puxando


e me guiando para dentro da estalagem.

— Finalmente, Lorde Devon! — Lady Morgan disse atrás de mim,


exasperada. — Achei que não conseguiria chegar!

— Tivemos alguns imprevistos na estrada, Lady Morgan.

— Não precisaríamos passar por isso se não tivesse sido um completo tolo.

— Claro — o que fazer além de concordar? Não era hora de brigar com a
minha futura sogra, muito menos depois do que ela fizera por mim.

— Tive que inventar uma diarreia para justificar tantas paradas.

— Que desagradável — comentei, por falta do que dizer.

— Não se preocupe! Vai valer a pena! Vá logo pedi-la em casamento!


Estamos atrasados.

Não tinha ideia para o que ela estaria atrasada, porém, naquele momento,
minha prioridade era a filha dela. Ela indicou em que quarto a filha estava (por
sorte, ela escolhera aposentos no térreo) e eu juntei toda a minha coragem para
encarar a mulher que eu esperava ser a futura Lady Devon.

***

Entrei sem ser anunciado. Na realidade, Lady Morgan escancarou a porta do


cômodo, empurrou a minha cadeira de rodas lá para dentro, e trancou a porta
atrás de mim.
Lotty estava sentada em uma cadeira virada para a janela, que tinha vista
para um pequenino jardim que ficava ao lado da estalagem. Quando sua cabeça
voltou-se para mim, meu coração afundou-se de culpa ao ver seus olhos
vermelhos e seu rosto marcado por lágrimas.

— Lotty — a palavra saiu com dor.

Rapidamente, ela escondeu o rosto e tentou se recompor. Ao olhar para mim


novamente, o rosto estava seco, o queixo, erguido, porém, a tristeza ainda estava
em seus olhos. Céus, como eu pude machucá-la daquele jeito? Sua mãe tinha
razão: eu era realmente um tolo.

— Como sabia que nos encontraria aqui? — Ela questionou, tentando deixar
a voz firme. — Ah, mamãe.

— Sim.

— Ela não teve diarreia.

Balancei a cabeça.

— Eu sinto muito, Lotty.

— Humph. É melhor que sinta mesmo.

Com aquela reclamação, senti o corpo formigar de esperança. Minha


Charlotte ainda estava ali e, se já tinha retornado à sua postura irritada, era
porque me daria uma chance de pedir desculpas.

— Fui um tolo.

Não era hora para orgulho. Muito menos de dizer que ela também havia
errado, por mais que desejasse me ajudar. Era hora de baixar a minha guarda,
deixá-la confortável em minha presença, garantir que eu não a perderia para
sempre.

— Exato.

— Fui um completo idiota — continuei.


Ela levantou-se, colocando as mãos na cintura. Pouco a pouco, minha
Charlotte estava retornando. Eu havia ferido o que construímos entre nós, porém,
não havia destruído a nossa conexão.

— Pode parar de se xingar assim? Ou não sobrará nada para eu acusá-lo!

— Fique à vontade para me acusar, Lotty — ofereci, sabendo que ela estava
pronta para falar.

— É um palerma. Eu queria apenas ajudá-lo.

— Eu sei.

— Apenas desejava o melhor para o senhor.

Queria arrancar a formalidade de seus lábios com beijos. Eu era Richard


agora. Eu queria que ela me chamasse de “você”. Porém, ainda não era hora para
beijos apaixonados; era hora de fazer reparações. De fazer um pedido.

— Tenho certeza que sim.

— E o senhor me expulsou como se eu fosse lixo! Como eu queria odiá-lo,


não acredito que eu me apaixonei por um grosseirão!

Meu coração acelerou ao ouvir aquelas palavras.

— Você me ama? — fui tão direto quanto ela era.

— Queria não amá-lo.

Aproximei a cadeira dela, e segurei suas pequenas mãos, desejando tocar


todo o seu corpo, desejando tomá-la de uma vez por todas. Por que eu havia
permitido que ela partisse? Por que eu não havia feito de tudo para que ela
ficasse? Por que eu não fizera o maldito pedido em Rosebery Hill, quando ela
estava disposta?

Temia que fosse tarde demais. Porém, eu estava decidido. Mesmo que ela me
negasse, eu continuaria pedindo, ainda que tivesse que seguir viagem até Kent.

— Juro que, se me perdoar desta vez, e aceitar ser Lady Devon, passarei o
resto dos meus dias compensando pelas tolices que fiz, Lotty.

Ela me encarou intensamente, seus olhos me queimando por dentro,


despertando meu corpo, meu desejo, minha paixão. Céus, como eu a amava.
Como eu precisava dela. Agora, que havia a chance de perdê-la, eu percebia que
ela se tornara tão essencial para mim quanto oxigênio.

— Vai me escutar?

— Sempre.

— Vai aceitar meus conselhos?

— Sim.

— Vai ser devasso comigo?

Puxei-a para o meu colo, meu braço rodeando sua cintura, a outra mão em
sua nuca, aproximando seu rosto do meu até que nossos lábios estivessem
roçando.

— O tempo inteiro, Lotty.

— Então aceito, Lorde Devon — ela sussurrou de volta.

A porta do quarto escancarou-se de repente, fazendo Charlotte quase cair da


cadeira no susto. Do outro lado, estava Lady Morgan, sorridente e emocionada.

— Perfeito!

***
Capítulo 29
RICHARD

— Lady Morgan? Estava escutando?


Ela obviamente estava, mas fiquei tão chocado que perguntei mesmo assim.

— Mamãe adora ouvir a pedidos de casamento — Charlotte comentou como


se fosse a coisa mais natural do mundo sua futura sogra escutar um dos
momentos mais privados de sua vida.

— Estamos atrasados! — Lady Morgan reclamou. — Por causa do lerdo de


seu noivo!

Qual era essa preocupação dela com atrasos? Eu pretendia passar a noite na
estalagem com a minha noiva. A sós!

— Atrasados para o quê, exatamente? — Charlotte questionou.

— Adorei o pedido de desculpas, querido — ela se dirigiu a mim, ignorando


a pergunta da filha. — E você se comportou muito bem, Lotty.

— Obrigada, mamãe, mas para onde vamos?

— Retornar a Rosebery Hill, é claro. O seu casamento é em cinco dias!

— Como? — Eu e minha noiva perguntamos ao mesmo tempo.

Nós mal havíamos noivado, não teríamos tempo de organizar um casamento


em cinco dias.

— Já está tudo organizado!


— Perdão?

— Não precisa se desculpar comigo, Lorde Devon! Sabendo que o senhor


perceberia seu erro, eu deixei tudo combinado com o padre Newman antes de
irmos embora.

— Por isso a senhora disse que queria se confessar! — Charlotte disse em


tom acusatório. Eu ainda não havia me recuperado daquele novo choque. — E
me falou que parte de sua família era católica!

— E é mesmo. E há também protestantes, judeus, e até feiticeiras. De onde


acha que tirou suas visões, Lotty?

— Sabia delas? — Os olhos de Charlotte arregalaram-se tanto que tive medo


que saltassem de sua cabeça.

— Sei de tudo sobre os meus filhos.

— Mas...

— Não há tempo! Vamos!

Iniciou-se, naquele momento, uma guerra de teimosia entre Lady Morgan e


sua filha. Elas se encararam duramente, enquanto eu as observava em minha
quietude, esperando ser ignorado. Não me meteria entre aquelas duas.

Finalmente, Charlotte disse:

— Tudo bem, mas eu e Lorde Devon vamos em uma carruagem separada.


Sozinhos.

— Que tolice é essa agora? Quer se casar ou não?

— Quer ter netos ou não? — Ela perguntou para a mãe, mas seus olhos
travessos estavam focados em mim.

Céus, como eu amava esta mulher.

— O Sr. Duncan e John vão na minha carruagem! — Lady Morgan ordenou.


—Vamos!
***

Assim que o coche começou a se mover, fechamos as cortinas da cabine. O


tecido não nos protegia totalmente, mas seria impossível algum pedestre
distinguir quem éramos e o que fazíamos lá dentro.

Puxei-a de volta para meu colo, e ela veio sem resistência. Ataquei seu
pescoço: precisava sentir seu cheiro, mordiscar sua pele, sentir sua veia pulsando
sob minha língua: ainda não estava acreditando que Charlotte seria minha.

— Avisei ao cocheiro que não deveríamos parar até chegarmos em


Edimburgo — ela arfou, inclinando a cabeça a fim de me oferecer maior acesso
ao seu delicado pescoço.

Uma das minhas mãos procurou os botões de seu vestido em suas costas,
enquanto a outra viajava pelas curvas de seu traseiro.

— Se ele ousar parar antes, sua mãe vai matá-lo.

Ela riu, e eu engoli sua gargalhada, beijando-a com ferocidade, enquanto


meus dedos desabotoavam o vestido, e a outra mão explorava seu corpo.
Charlotte agarrou meus cabelos, arqueando as costas para roçar os seios em meu
peito.

Quando cansei de abrir os malditos botões, arranquei-os, e o som deles


caindo no chão da cabine foi mágico. Tirei a parte de cima do vestido de
Charlotte, enquanto ela me livrava da minha casaca. Passei a trabalhar em seu
corpete, sem deixar de beijá-la.

— Tive medo de perdê-la, Lotty.

— Nunca vai me perder, Richard: sou sua.

Aquilo foi o suficiente para acabar com toda a minha gentileza.


Rapidamente, livrei-me de seu corpete e levantei os braços para que ela tirasse a
minha camisa. Em seguida, os olhos verdes travados nos meus, ela se levantou
dentro do coche e despiu-se do vestido por completo.

Eu a contemplei, sem acreditar que aquela mulher seria a minha esposa em


alguns dias. Até conhecê-la, eu me considerada um cavalheiro de pouca sorte.
Agora, sentia-me o homem mais sortudo do mundo.

Maldição, ela era perfeita. Usava agora apenas a chemise, meias de seda, e seus
sapatos. Minhas mãos estavam formigando para tocar suas coxas, seu traseiro
redondo, sua intimidade. Mas havia mais a tirar antes.

Inclinei-me, auxiliando-a a tirar seus sapatos. Em seguida, puxei-a de volta


ao assento, deitando-a sob mim, e tirei sua chemise. Os braços dela moveram-se
para cobrir seus seios, mas eu os interrompi antes que ela pudesse fazê-lo.

— Vou enchê-la de bons momentos dentro de um coche, Lotty — prometi.


— Vou lhe dar muito amor e prazer. Jamais sentirá dor comigo.

— Finalmente, está se tornando um devasso — ela sorriu com


contentamento.

— Apenas para você, meu amor.

Conforme eu imaginava, sua pele de porcelana estava corada, no rosto, no


pescoço, nos seios.

Meus lábios foram instintivamente para um mamilo rosado, enquanto as


mãos dela agarraram as minhas costas, suas pernas separando-se, mais uma vez
abrigando-me entre elas. Era o paraíso: como eu conseguiria fazer mais alguma
coisa que não fosse ficar entre as belas pernas de Charlotte?

Minhas mãos foram aos seus quadris, levantando-se contra os meus. Quando
ela deu a entender que iríamos fazer amor no coche, temi frustrar suas
expectativas pela falta do movimento das pernas. Entretanto, meu corpo a
desejava tanto que ele próprio compensava o peso e, naquele instante, minha
limitação física não teve qualquer importância.

Baixei a calça, enquanto explorava o outro mamilo. Encarei-a por um


momento, e ela me contemplava com um olhar faminto. Com o olhar travado nas
esmeraldas, baixei os lábios, lambendo seu estômago, explorando seu umbigo.
Quando me aproximei de sua intimidade, suas coxas abriram-se ainda mais.

Ela estava pronta para mim.

Enterrei meu rosto entre suas pernas, e ela fechou as coxas na minha cabeça
instintivamente, virando a cabeça para trás e gritando:

— Rick!

A carruagem balançou no instante em que minha língua começou a explorar


sua intimidade, encaixando-se dentro dela, fazendo-a gemer e implorar, exigir e
querer mais. Ela já estava úmida quando eu comecei a beijá-la ali, mas, para sua
primeira vez, sabia que ela precisaria estar o mais relaxada possível.

Levantei a cabeça quando percebi que ela estava chegando ao ápice, e recebi
um tapa na cabeça em reação.

— O que pensa que está fazendo? Volte! — Ela ordenou, deixando-me ainda
mais rijo com suas exigências sensuais.

Céus, seria difícil me controlar quando eu estivesse dentro dela: estava quase
explodindo de antecipação. Encarei-a e lhe dirigi um olhar devasso, ao mesmo
tempo em que introduzi um dedo dentro dela. Ela estava tão apertada, mas tão
pronta ao mesmo tempo.

Movi-o lá dentro e incluí um segundo dedo, enquanto minha boca voltava a


explorá-la. Continuei a atiçar sua calidez até ela atingir o ápice, até seus
músculos apertarem meus dedos, até ela convulsionar de prazer.

Daquela vez, entretanto, eu não permitiria que ela caísse no sono. Usei os
braços para posicionar meu corpo novamente sobre ela, encaixando meu quadril
sobre o dela. Seus olhos esbugalharam-se quando ela sentiu minha rigidez
pulsante em sua abertura, e começou a tremer levemente.

Ela ainda tinha medo. Que eu a machucasse como meu maldito pai fez com
mamãe.

Voltei minha atenção ao seu pescoço, murmurando palavras de conforto,


garantindo que ela gostaria do que estava por vir. Quando seu corpo voltou a
relaxar sob o meu, empurrei-me mais em sua entrada. Em resposta, ela se abriu
mais para me acomodar.

Maldição do inferno, como estava sendo duro – literalmente – segurar o meu


avanço. Meu desejo era afundar-me inteiro nela, e apenas sair quando
chegássemos em Edimburgo. No entanto, eu não queria deixá-la mais dolorida
do que ela ficaria após sua primeira vez: hoje não era sobre o meu prazer, era
sobre o dela.

Quando ela se acostumou com minha rigidez, empurrei-me mais um


pouquinho, os lábios jamais deixando de acariciar seu queixo, seu pescoço, sua
jugular. Eu estava prestes a perder o controle, quando um novo balançar da
carruagem me forçou para dentro dela, e senti sua barreira rompendo-se, seus
músculos esticando-se para me acomodar.

— Rick! Céus! Portudoqueemaissagrado! Diga-me que não tem mais! — seu


tom era um misto de susto e prazer.

Afastei o rosto para encará-la.

— Tem muito mais, meu amor — comentei, e, como se para provar meu
ponto, a carruagem voltou a mexer-se, ajudando-me a me mover dentro dela.

— Rick! — ela gemeu e arfou, ela gritou e reclamou.

— Está doendo?

— Sim, mas... — ela fechou os olhos quando o veículo passou por mais um
buraco. — É tão bom também!

Gargalhei, tomando seus lábios nos meus. Não me mexi: nem precisei, a
carruagem o fez por mim. Apenas fiquei enterrado dentro dela, no meu paraíso,
esperando que ela se habituasse à minha presença.

Ela não precisou de muito tempo. Em alguns minutos, senti seu quadril
movendo-se, levantando-se, aproveitando o balançar da carruagem para me
encaixar melhor dentro dela. Em pouco tempo, estávamos os dois arfando,
gemendo juntos, gritando pelo nome um do outro.

Daquela vez, chegamos ao ápice juntos, e, mais do que nunca, eu tive


certeza: Charlotte havia nascido para se tornar Lady Devon.

***
Epílogo
Crawford Hall

Amizades são como uma tarde de outono: agradáveis e previsíveis. Porém, às


vezes, os ventos sopram em direções opostas. Era assim com Lady Morgan e
Lady Hamilton. O conforto entre elas era grande; o respeito, absoluto; a
confiança era total. Entretanto, não poderia haver duas pessoas mais diferentes
em toda a Europa.

Apesar de sua diferença, a amizade das duas apenas se consolidou ao longo


das décadas em que se conheciam. E, o que uma dizia, a outra fazia. Essa uma
era Lady Morgan. Essa outra era Lady Hamilton.

Naquela tarde, Lady Hamilton não desejava nada além de tomar um chá com
biscoitos em sua sala íntima. O casamento de Charlotte e Lorde Devon fora
naquela mesma manhã, e os dias anteriores tinham sido bastante atarefados. Sua
amiga, no entanto, ainda estava agitada, então acabaram passeando pelos
bosques de Crawford Hall como ela havia solicitado.

— Tantas novidades nos últimos dois anos, não? — Lady Hamilton tentou
puxar assunto. Sua parceira estava estranhamente calada durante a caminhada.
— Minha Tessa e seu Frederick se casando, e seus filhos John e Charlotte
também! Está contente?

— Não, e nem a senhora deveria ficar, Lady Hamilton — como sempre, a


resposta de Lady Morgan fora direta.

Seu comentário deixou a amiga apreensiva.

— Como não?

— Eu ainda tenho duas filhas para casar, e Lady Hamilton ainda tem
Caroline.

— Oh, é verdade. Mas será que Caroline está pronta para noivar de novo?

Desde que perdera o noivo, Caroline nunca mais fora a mesma. Não que ela
ainda estivesse de luto: já voltara a usar suas roupas e cores de costume nos
últimos meses. Entretanto, ainda havia uma tristeza profunda em seu olhar, que
parecia segui-la como uma sombra.

— Pfff. Claro que Caroline está pronta! Já faz mais de um ano! E eles sequer
eram casados!

— Ainda assim... Não sei se ela aceitará participar da próxima temporada


londrina.

Na realidade, Lady Hamilton estava segura de que Caroline não aceitaria,


porém, não desejava decepcionar sua querida amiga.

— Quem falou em temporada londrina? Eu tenho o plano perfeito. E envolve


nossas três filhas se casando nos próximos meses.

— Nos próximos meses? — Lady Hamilton imediatamente ficou interessada.

Seu marido sempre criticava os planos de Lady Morgan, apenas para ter que
morder sua língua azeda quando eles acabavam funcionando. Talvez, nem
sempre tinham os resultados previstos, mas os objetivos eram alcançados de todo
modo. Ou seja, alguém acabava casado.

— Isso mesmo, minha cara. Apenas precisamos ir a Wales.

— O que há em Wales?

— Herdeiros, Lady Hamilton! Herdeiros, bonitos e solteiros.

***
LANÇAMENTO EM BREVE:

O HERDEIRO DE WALES

SÉRIE HERDEIROS

LIVRO 2

Lady Caroline Hamilton não estava pronta para o amor. Não sabia se jamais
estaria. Ela escondia um terrível segredo e mal conseguia viver com ele. Como
poderia dividi-lo com outra pessoa? No entanto, sua mãe e a temível Lady
Morgan não queriam mais esperar: elas estavam determinadas a casá-la, e logo.

O problema era que elas desejavam um pretendente com títulos e fortuna, e o


único cavalheiro que despertou a atenção (e o coração) de Caroline não tinha
nenhum dos dois. Deverá ela seguir seu coração ou os conselhos da mãe?
DISPONÍVEL NA AMAZON:

O HERDEIRO DE SIR JAMES

SÉRIE HERDEIROS 1

(Prequel de A Última Condessa)

Desde pequeno, Sir Frederick Morgan tinha consciência de que, um dia, ele
se casaria com uma das filhas de Lorde Henry Hamilton, o melhor amigo de seu
pai. E ninguém melhor para o papel de sua esposa que Lady Caroline Hamilton.
Ela era respeitável e educada, com prestígio na sociedade inglesa, aprovada até
mesmo pela temida Lady Morgan.

Após ser aceito pela dama, Frederick descobre que precisará ser aprovado
também pela irmã de sua noiva, a impetuosa Tessa. Ao visitá-la na Escócia,
porém, ele se vê em uma encruzilhada. Conseguirá Frederick casar-se com a
mulher adequada para ele, mesmo que isso vá contra os desejos de seu coração?
LANÇAMENTO DA EDITORA PEDRAZUL EM 2019:

A ÚLTIMA CONDESSA

A MALDIÇÃO DOS WINCHESTER

LIVRO 1

Eu conheci a mulher dos meus sonhos no dia em que morri.

Andrew Winchester, o herdeiro do conde de Lennox, é mais do que um


aristocrata inglês: ele é um herói nacional. Suas façanhas nas batalhas navais das
Guerras Napoleônicas ficaram conhecidas em todo o reino, garantindo-lhe
medalhas de honra e a fama de ser o solteiro mais cobiçado da Grã-Bretanha.

Ele está em um baile em Londres quando uma carta de seu vice-almirante lhe
ordena que retorne ao navio sob seu comando, o King George. Há rumores de
que Napoleão Bonaparte fugiu da Ilha de Elba, e a Marinha Real Britânica
precisa tomar as devidas precauções.

Após algumas noites em alto mar, Andrew e sua tripulação deparam com
uma forte tempestade, que afunda sua embarcação. Sem outra alternativa,
Andrew sobrevive ao flutuar sobre um pedaço de madeira até chegar ao litoral
de um lugar desconhecido.

Logo ele descobre que está em território francês, em uma ilha habitada
apenas por mulheres. Aos poucos, Andrew e seus companheiros vão percebendo
que há um grande segredo guardado ali, que aquelas damas são muito mais do
que aparentam.

Sem qualquer notícia de seus superiores, isolado naquele local ermo, Andrew
precisará escolher entre a lealdade a seu país e a paixão avassaladora pela bela e
misteriosa Amélie, o anjo que salvou sua vida.
TRECHO DE

O HERDEIRO DE SIR JAMES

Prólogo
Maio, 1814

O clima estava agradável no pequeno jardim da casa londrina dos Morgan. As


flores começavam a murchar, com o verão se aproximando; contudo, o aroma
ainda contagiava o ambiente, e as cores faziam com que a vista do pequeno
gazebo parecesse uma obra de arte.

A moça ao lado do herdeiro de Sir James Morgan era tão adorável quando as
flores que eles admiravam. Ela tinha olhos acinzentados e brilhantes, cabelos
castanho-claros e sedosos, que ficavam quase dourados sob o raro sol de
Londres. Seus lábios eram rosados, assim como as maçãs de seu rosto.

Ainda assim, enquanto a encarava, Frederick não sentia um pingo de atração


por ela. Ela era respeitável e ele a admirava; todavia, não existia paixão entre os
dois, e ele imaginava que jamais existiria. E era exatamente por isso que ele
estava certo de que Lady Caroline Hamilton seria a esposa perfeita para ele.

Romances deixavam as pessoas transtornadas, davam dores de cabeças e


geravam escândalos. Para ele, bons relacionamentos eram aqueles entre duas
pessoas que tivessem valores semelhantes, e respeito mútuo. Para que mais?
“Mais” era complicado. Preferia manter as coisas simples; já bastava ter que
cuidar do legado do pai, que fora um grande homem, estimado por seus amigos,
adorado por sua esposa e filhos.

Frederick não precisava de prestígio ou de paixão. Se conseguisse manter a


honra do nome dos Morgan, e garantir que o título e as propriedades
continuariam em boas mãos por muitas gerações, ele já estaria satisfeito.
Desde a morte do pai, ele conquistara a maior parte dos objetivos, superara
seus desafios e, exceto por um ponto, cumprira todas as exigências de Sir James
Morgan: casar-se e ter herdeiros. Por isso, desejava livrar-se logo daquele peso
em suas costas.

Não poderia ter achado uma pretendente melhor: Caroline era uma dama
exemplar, sem frescuras, prática e inteligente. Não precisaria de muitos rodeios
para completar a missão que ele se impusera naquela manhã, quando a convidou
para conversarem a sós no jardim.

Se a dama não tinha imaginado o objetivo daquele convite, os rostos


sorridentes de Lady Morgan e suas filhas decerto haviam revelado o teor da
conversa que teriam.

— Desde que meu pai faleceu — ele começou, olhando intensamente para
ela —, tenho me dedicado ao máximo para merecer meu lugar como seu
sucessor.

— Tenho certeza de que seu pai teria muito orgulho do senhor— a moça
respondeu educadamente.

Agradava-lhe o fato de Caroline não ser afetada; seu elogio soava sincero, e
suas palavras pareciam desprovidas de exageros. O que ela dizia era o que de
fato sentia. Não queria meramente agradá-lo.

— Obrigado, milady. — Ele sorriu. — De tudo que realizei, no entanto,


ainda não cumpri minha grande promessa ao meu pai; casar-me com uma das
filhas de Lorde Hamilton, seu melhor amigo.

— Sim, papai sempre desejou que uma de nós se casasse com o senhor
também.

Era de conhecimento público que Sir James Morgan e Lorde Henry


Hamilton, que haviam sido melhores amigos desde que eram jovens, desejavam
juntar suas famílias por meio do casamento. Jamais haviam disfarçado suas
intenções, e suas respectivas esposas, que também acabaram se tornando grandes
amigas, ajudavam a incentivar os filhos naquele ponto.

— É uma das damas mais respeitáveis que conheço — o elogio dele


tampouco era forçado.
Frederick poderia não ser apaixonado por Caroline, mas sua consideração
pela dama escocesa era verdadeira.

— Obrigada, Sir Frederick. — Ela lhe ofereceu um sorriso tímido, que ele
retribuiu.

— Creio que será uma esposa adequada e uma mãe dedicada. — Ele inspirou
profundamente, e continuou: — Considerando o exposto, gostaria de saber se
aceitaria casar-se comigo?

Antes que a dama pudesse tecer comentários, Frederick sentiu um pedaço de


madeira colidindo contra a lateral de seu corpo, causando uma dor lacerante. Em
seguida, ninguém menos do que Lady Morgan apareceu no campo de visão dos
dois, balançando sua famosa bengala de forma ameaçadora.

— Considerando o exposto? — ela o imitou com sarcasmo. — Que proposta


mais ridícula, Frederick! Eu o eduquei para fazer melhor do que isso!

— A senhora estava nos ouvindo?

— Claro que eu estava! — ela rebateu, sem um pingo sequer de embaraço na


voz. — Que mãe eu seria se não estivesse participando de um dos momentos
mais importantes da vida do meu filho?

O queixo de Frederick caiu. Até mesmo a impecável Caroline não conseguiu


segurar o som de surpresa que deixou sua garganta ou o olhar descrença que
dirigiu à potencial futura sogra.

— Uma mãe que respeita a privacidade do filho! — Frederick enfim


conseguiu dizer, após alguns momentos paralisado pelo choque.

— E filho lá tem direito à privacidade, depois de tudo pelo que passamos


para dar à luz a vocês, bando de ingratos! — Lady Morgan apontou a ponta da
bengala contra o rosto de Frederick, deixando-a a poucos centímetros de seu
nariz.

Ele engoliu em seco, mas recuperou-se rápido daquela vez. Como a mãe
acabara de dizer, aquele era um dos momentos mais significativos de sua vida, e
ele não permitiria que nem mesmo Lady Morgan o estragasse.
— Mamãe, por favor, Lady Caroline Hamilton ainda não respondeu à minha
questão — ele sabia que não seria eficaz usar um tom rude contra a mãe; apenas
a deixaria mais exaltada e menos propensa a retornar à casa. — Poderia nos
deixar a sós, por favor?

— De forma alguma! — ela soou insultada com o pedido do filho. Virou-se


para a dama. — Não responda a essa proposta de casamento absurda, minha
querida Caroline! Frederick vai refazer a questão e, desta vez, é melhor que ele
seja romântico!

Caroline queria apenas encontrar um buraco onde pudesse se enterrar por


completo; Frederick, por sua vez, estava no limite de sua paciência, mas
obrigou-se a respirar fundo e conter a fúria.

— Se eu prometer que vou refazer minha proposta à dama, vai nos deixar a
sós? — ele usou seu tom mais gentil.

Não funcionou.

— Se eu os deixar a sós, como saberei que a proposta está satisfatória? —


sua mãe questionou, balançando a bengala na sua frente.

— Não é a senhora quem tem que aceitar a proposta, é Lady Caroline


Hamilton — ele a lembrou.

— Por céus, mamãe, ele tem toda razão!

De repente, Charlotte saiu de um dos arbustos. Ele não podia acreditar


naquilo; já era absurdo o que a mãe fizera, e agora ele descobria que a irmã
havia desrespeitado sua intimidade também? Quem mais escutava sua conversa,
o maldito mordomo? O jardineiro? A preceptora das irmãs? Ele não sabia que o
jardim havia se transformado num maldito teatro!

— Lotty? Você também estava ouvindo?

— Claro! — ela respondeu como se a pergunta do irmão mais velho fosse


ridiculamente estúpida. — Porém, ao contrário de mamãe, respeitei seu
momento.

— Como isso é respeito, se estava escutando tudo? Sem a minha


autorização? Ou a da dama?

Caroline continuava sua busca incessante por um buraco onde pudesse se


esconder.

— Se eu não escutasse, como saberia como a proposta foi feita, para contar a
respeito dela no baile de Mr. Jones esta noite? — Charlotte colocou as mãos na
cintura, desafiando-o.

— Poderia me perguntar, Lotty. De qualquer forma, cabe a mim e à minha


noiva anunciar no baile. — Ele olhou de relance para a moça em questão. — Isto
é, se aceitar meu pedido de casamento.

— Ela não aceitará se não melhorar a proposta! — sua mãe o ameaçou,


esquecendo-se por completo de perguntar à dama que recebera a proposta se ela
estava ou não satisfeita com seus termos.

— Não farei uma nova proposta se não nos deixarem a sós! — ele ameaçou
de volta, temendo que Caroline o rejeitasse pela loucura que era a sua família.

Céus, ele deveria ter feito aquela proposta na Escócia, longe dos Morgan. Era
possível que até seu irmão, John, estivesse assistindo à cena de algum lugar da
propriedade. Aquela tinha sido uma péssima ideia.

— Estamos discutindo em círculos! — Charlotte reclamou, apesar de


ninguém ter solicitado sua opinião.

Ela tinha o grande defeito de ser uma daquelas damas que se pronunciava
sem ser questionada.

— Eu me recuso a sair! — Lady Morgan avisou.

— E eu me nego a falar sem a devida privacidade! — Frederick protestou.

— Eu aceito! —Caroline manifestou-se.

— Como? — Lady Morgan não acreditava no que ouvira.

— Tem certeza? — Charlotte achou melhor verificar.


— Graças aos céus — Frederick disse.

E foi assim que Sir Frederick Morgan, o herdeiro de Sir James Morgan, e
Lady Caroline Hamilton, a filha mais velha de Lorde Henry Hamilton, noivaram.

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