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Maria Aridenise Macena Fontenelle

Maria de Fátima de Lima das Chagas


Organizadoras

Redes de Cuidado e Aprendizagem na

Saúde Mental
e na Educação
Karla Rosane do Amaral Demoly
Maria Aridenise Macena Fontenelle
Maria de Fátima de Lima das Chagas
Organizadoras

Redes de Cuidado e Aprendizagem na

Saúde Mental
e na Educação

Ijuí
2017
 2017, Editora Unijuí
Rua do Comércio, 3000, Bairro Universitário
98700-000 – Ijuí – RS – Brasil
Fone: (0__55) 3332-0217
E-mail: editora@unijui.edu.br
Http://www.editoraunijui.com.br
Editor: Fernando Jaime González
Capa: Alexandre Sadi Dallepiane
Responsabilidade Editorial, Gráfica e Administrativa:
Editora Unijuí da Universidade Regional do Noroeste
do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí; Ijuí, RS, Brasil)

Catalogação na Publicação:
Biblioteca Universitária Mario Osorio Marques – Unijuí

R314 Redes de cuidado e aprendizagem na saúde mental e na educação /


organizadoras Karla Rosane do Amaral Demoly, Maria Aridenise
Macena Fontenelle, Maria de Fátima de Lima das Chagas. – Ijuí: Ed.
Unijuí, 2017. – 352 p. –
ISBN : 978-85-419-0244-1
1. Educação. 2. Aprendizagem. 3. Saúde mental. 4. Ensino-
aprendizagem. I. Demoly, Karla Rosane do Amaral (Org.). II. Fontenelle,
Maria Aridenise Macena (Org.). III. Chagas, Maria de Fátima de Lima das
(Org.). IV. Título
CDU : 37.015

Bibliotecária Responsável
Eunice Passos Flores Schwaste – CRB 10/2276
SUMÁRIO

PREFÁCIO ................................................................................................. 9

APRESENTAÇÃO .................................................................................... 11

CANTIGA ................................................................................................. 17
Ray Lima
Junio Santos

PARTE 1 – REDES TEÓRICAS CONFIGURANDO


MODOS DE VIVER E CONHECER ........................................................ 19

LOUCURA TAMBÉM É UM ESTADO DE TERNURA ............................ 21


Jadiel Lima

LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL:


sobre a atenção e cuidado de si e do outro na convivência............................. 23
Karla Rosane do Amaral Demoly

VERSÕES DA DIVERSIDADE
– políticas cognitivas e modos de subjetivação.............................................. 39
Laís Vargas Ramm
Carlos Baum
Cleci Maraschin

CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING............................. 55


Clara Costa Oliveira

TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO:


processos de individuação e reconfiguração da vida humana......................... 67
Maria de Fátima de Lima das Chagas
Nize Maria Campos Pellanda
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA:
o fenômeno da conversão de pacientes de saúde mental em artistas.............. 81
Gerciane Maria da Costa Oliveira

REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A REDE DE ATENÇÃO


PSICOSSOCIAL E INTERDISCIPLINARIDADE...................................... 93
Raimunda Hermelinda Maia Macena
Ulisseia de Oliveira Duarte
Marcos Silva dos Santos
Maria Aridenise Macena Fontenelle

COMPLEXIDADE E EMOÇÕES:
uma trama sutil......................................................................................... 103
Nize Maria Campos Pellanda

BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE:


uma interpretação da vida.......................................................................... 117
Felipe Gustsack
Niqueli Streck Machado

PARTE 2 – A ESCRITA DA EXPERIÊNCIA......................................... 133

TECENDO REDES, CONSTRUINDO LUGARES:


as interfaces entre saúde mental coletiva
e educação especial na perspectiva inclusiva............................................... 135
Ricardo Lugon Arantes
Danielle Celi dos Santos Scholz
Cláudia Rodrigues de Freitas

OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSi:


relato de experiência.................................................................................. 145
Maria Aridenise Macena Fontenelle
Larissa Nogueira de Morais
Max Silva de Oliveira
Maria do Carmo Duarte Freitas
Isaura Uhmann
DESENVOLVIMENTO DE UM JOGO DIGITAL ADAPTATIVO
PARA CRIANÇAS E JOVENS AUTISTAS............................................... 157
Rafael de Almeida Rodrigues
Francisco Milton Mendes Neto
Karla Rosane do Amaral Demoly

SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL:


uma discussão sobre a relação entre os
serviços principais e suplementares............................................................. 165
Bruno Layson Ferreira Leão
Yákara Vasconcelos Pereira
Judson da Cruz Gurgel
Karla Rosane do Amaral Demoly

SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO


AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL............. 179
Ramiro de Vasconcelos dos Santos Júnior
Francisco Milton Mendes Neto
Karla Rosane do Amaral Demoly

A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO


DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL:
O Papel dos Relatos de Campo na Pesquisa-Intervenção............................. 197
Laura Pozzana
Virgínia Kastrup

OFICINANDO COM JOVENS:


análise de processos de atenção na experiência com jogos digitais............... 213
Washington Sales do Monte
Karla Rosane do Amaral Demoly
Francisco Milton Mendes Neto

SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA:


um estudo da saúde mental dos professores que atuam com a inclusão de
crianças com deficiência na rede municipal de Garanhuns/PE..................... 245
Mylena Carla Almeida Tenório
Deise Juliana Francisco
ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES
NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM.................................................. 269
Kézia Viana Gonçalves
Karla Rosane do Amaral Demoly

ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO


ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS............................................ 293
Remerson Russel Martins

OFICINANDO COM OS EXERGAMES:


habitando territórios ainda pouco explorados............................................. 311
Adilson Rocha Ferreira
Deise Juliana Francisco

NAS MALHAS DA UTOPIA PELOS CORREDORES


DOS SONHOS COTIDIANOS DA AMÉRICA LATINA........................ 333
Ray Lima

SOBRE OS AUTORES ........................................................................... 341


PREFÁCIO
Este livro é fundamental para aqueles que acreditam em uma educação
para a saúde inclusiva, acolhedora e baseada no amor.
Amor não deveria ser palavra estranha à academia, e sobretudo na saúde. 
O amor tece redes.
O amor tece redes como a que gerou este livro: uma rede de saberes
compartilhados e que se potencializa em múltiplos locais de prática.
Assim, o livro demonstra na prática como é a construção conjunta de
ações em saúde e educação que levam à mudança de realidades.
Em tempos difíceis, é preciso resistir. Como manifesta a sábia Internet,
“em tempos de ódio, é melhor andar amado”. O amor é revolucionário, assim
como o compartilhamento do conhecimento. Nuccio Ordine, em seu livro A
utilidade do inútil, expressa que a educação pode nos dar um exemplo de como
fugir da lógica da divisão e da escassez. Afinal, observa ele, se dois estudantes
vão à escola com uma maçã cada, podem trocar as maçãs, mas sairão com uma
maçã cada, ainda assim. Se, contudo, forem com uma ideia cada um, no final
cada um terá conhecido duas ideias.
Este livro está cheio de ideias, e fiquei infinitamente mais rica por conhe-
cê-las. Espero que cada leitor sinta-se assim também, e possa multiplicar ideias
para revolucionar o cuidado.

Lucia Campos Pellanda


Reitora da UFCSPA

9
APRESENTAÇÃO
Temos neste livro intitulado Redes de cuidado e aprendizagem na saúde mental
e na educação relatos de ideias, fazeres, processos de vida que compõem a cami-
nhada em um percurso complexo que vivemos no Programa Rede de Oficinandos
na Saúde Mental que desenvolvemos desde o ano de 2012 em Mossoró/RN.
O programa que inicialmente intitulávamos Oficinando em Rede de Mossoró
articula projetos de extensão, pesquisa e ensino, em parceria com os serviços de
saúde mental de Mossoró RN e cidades circunvizinhas. O denominador comum
desses projetos é a experimentação de diferentes modos de linguajar, tecnologias
da informação e da comunicação, artes no campo da saúde mental, em ambientes
que atendem crianças, jovens e adultos que vivem em diferentes circunstâncias
de sofrimento psíquico. Os projetos são tecidos em perspectiva transdisciplinar
e ocorrem atualmente em três ambientes sensíveis da saúde mental de nossas
comunidades, tão fragilizadas na dimensão do cuidado e do acolhimento neces-
sários para sustentar a experiência do viver.
O livro que organizamos tornou-se realidade devido ao trabalho cotidiano
dos autores – pesquisadores, profissionais, estudantes, cenopoetas, artistas – que
se dedicam a inventar práticas de promoção da saúde mental e da educação
inclusiva. Importante ressaltar o apoio financeiro do Ministério da Educação
por meio do Edital Proext 2015-2016, programa este que vinha fomentando
um conjunto de trabalhos no campo social em nosso país até o ano de 2016.
Os textos envolvem a experiência da saúde mental e da educação inclusiva que
construímos por entender que um projeto de universidade acontece quando os
fazeres de docentes, estudantes e técnicos articulam-se com as necessidades mais
prementes de nossas comunidades.
Ray Lima e Junio Santos iniciam a obra trazendo a cenopoesia com a
Cantiga intitulada “Nas malhas da rede”. Os autores ajudam-nos a pensar sobre
as redes que tecemos e que nos constituem como seres humanos no encontro
com os outros.

11
K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – M a r i a A r i d e n i s e M a c e n a Fo n t e n e l l e
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s

Na primeira parte do livro o leitor vai encontrar um conjunto de textos


e reflexões que configuram a temática Redes teóricas configurando modos de viver
e conhecer. Jadiel Lima situa a temática central da obra com o poema: “Loucura
também é um estado de ternura”.
Karla Rosane do Amaral Demoly, no texto “Linguagens, tecnologias, saúde
mental: sobre a atenção e cuidado de si e do outro na convivência” desenvolve uma auto-
narrativa em que procura trazer a experiência do programa Rede de Oficinandos
na Saúde Mental considerando os principais momentos de sua construção desde o
ano de 2012. A autora procura estabelecer as conexões entre a experiência direta
e os principais conceitos e entendimentos presentes no percurso de realização dos
projetos de extensão-pesquisa que integram o programa.
No texto Versões da diversidade – políticas cognitivas e modos de subjetivação,
Laís Vargas Ramm, Carlos Baum e Cleci Maraschin indicam que no campo da
educação e, mais especificamente relativo ao tema da inclusão, podemos destacar
o programa do Ministério da Educação “Educação inclusiva: direito à diversida-
de”. Os autores recorrem ao conceito de políticas cognitivas para problematizar
diferentes formas de tratar a diversidade e como essas formas instituem regimes
de subjetividade.
Clara Costa Oliveira, pesquisadora da Universidade do Minho, de Por-
tugal, no artigo intitulado Caring for mourning-related suffering nos traz uma dis-
cussão potente sobre o luto, uma experiência de sofrimento diferente da dor.
A autora esclarece que estamos inseridos em comunidades que têm diferentes
significados para dor, morte e sofrimento. Seu trabalho oferece ferramentas teó-
ricas para nossa reflexão sobre os diferentes significados do luto na experiência
humana.
Tecnologias digitais e educação: processos de individuação e reconfiguração da vida
humana é um texto que envolve reflexões sobre a relação educação e tecnologia,
no qual as autoras Maria de Fátima de Lima das Chagas e Nize Maria Campos
Pellanda abrem espaços para pensar a autoria e a emoção na constituição de redes
no devir dos seres humanos na relação com objetos técnicos.
Gerciane Maria da Costa Oliveira faz uma aproximação entre a experiên-
cia estética e a saúde mental. A autora discute a arte e o fenômeno da conversão
de pacientes em artistas, experiência esta tão presente na obra da psiquiatra Nise
da Silveira. O texto As relações entre arte e vida psíquica: o fenômeno da conversão de

12
APRESENTAÇÃO

pacientes de saúde mental em artistas oferece ferramentas teóricas e metodológicas


para ampliar nosso entendimento sobre as possibilidades da experiência das artes
na saúde mental.
No texto Reflexões teóricas sobre a rede de atenção psicossocial e interdisciplinari-
dade Raimunda Hermelinda Maia Macena, Ulissea de Oliveira Duarte, Marcos
Silva dos Santos e Maria Aridenise Macena Fontenelle alertam para a potência
do fazer inter/transdisciplinar quando desejamos promover saúde nos serviços
de atenção psicossocial.
Nize Maria Campos Pellanda discute no texto Complexidade e emoções: uma
trama sutil, a constituição de redes de cuidado e de amor na educação. A autora,
inspirada nas teorias da Biologia do Conhecer, de Humberto Maturana e Fran-
cisco Varela, ressalta que não podemos separar o viver do conhecer quando pen-
samos sobre aprendizagem, saúde e educação na perspectiva da complexidade.
Felipe Gustsack e Niqueli Streck Machado, com o texto Biologia do amor,
educação e saúde: uma interpretação da vida, discutem concepções de educação em
sua relação com a saúde para pensarmos uma possível interpretação da vida
pelos vínculos humano-linguagem-mundo. Os autores desenvolvem um estudo
bibliográfico e retomam aspectos das trajetórias reflexivas que levaram Maturana
e Varela a pensarem a autopoiese e as bases da biologia da cognição, que depois,
a partir de Maturana, passou a ser denominada de biologia do amor.
A segunda parte da obra é dedicada a trazer experiências vividas na
interface saúde mental e educação inclusiva, a partir de projetos e redes tecidas
nos fazeres do programa Rede de Oficinandos na Saúde Mental de Mossoró e
nos encontros que o programa promoveu com diferentes pesquisadores nesses
anos de trabalho.
A Escrita da Experiência inicia-se com o texto Tecendo redes, construindo
lugares: as interfaces entre saúde mental coletiva e educação especial na perspectiva inclusi-
va. Os autores Ricardo Lugon Arantes, Danielle Celi dos Santos Scholz e Cláudia
Rodrigues de Freitas discutem sobre a importância da constituição de redes em
saúde e educação, redes tecidas na experiência direta dos autores nos campos da
saúde mental coletiva e educação especial.

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K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – M a r i a A r i d e n i s e M a c e n a Fo n t e n e l l e
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s

Maria Aridenise Macena Fontenelle, em coautoria com Larissa Noguei-


ra de Morais, Max Silva de Oliveira, Maria do Carmo Duarte Freitas e Isaura
Uhmann, bolsistas do Programa e colaboradores, abordam experiências com
a produção em pintura com familiares de crianças e jovens no CAPSi no texto
intitulado Oficinando com famílias no CAPSi: relato de experiência.
Nas experiências com crianças e jovens autistas, Rafael de Almeida Rodri-
gues, sob a orientação dos professores Francisco Milton Mendes Neto e Karla
Rosane do Amaral Demoly desenvolve um jogo e nos conta o processo de tra-
balho que resultou no jogo para o fazer em saúde mental no texto intitulado
Desenvolvimento de um jogo digital adaptativo para crianças e jovens autistas.
O texto intitulado Serviços de atenção em saúde mental: uma discussão sobre a
relação entre os serviços principais e suplementares traz uma discussão sobre a orga-
nização dos serviços em saúde mental, considerando a experiência direta do
bolsista Bruno Layson Ferreira Leão, sob orientação da pesquisadora Yákara
Vasconcelos Pereira e colaboração de Judson da Cruz Gurgel e Karla Rosane do
Amaral Demoly.
Pesquisar requer imersão do sujeito que não é apenas observador, mas
parte da experiência de pesquisar. No texto Sistema diário de bordo eletrônico como
apoio ao desenvolvimento de jogos na saúde mental, os autores Ramiro de Vasconcelos
dos Santos Júnior, Francisco Milton Mendes Neto e Karla Rosane do Amaral
Demoly nos ajudam a entender a relação sujeito e tecnologia no devir pesquisa-
dor e propõem um sistema de diário de bordo como ferramenta para a pesquisa
na saúde mental.
Laura Pozzana, em parceria com Virgínia Kastrup, traz para esta obra
o texto A roda como método de aprendizado do movimento com pessoas com deficiência
visual: o papel dos relatos de campo na pesquisa-intervenção. As autoras nos presen-
teiam com esta escrita que favorece nossa compreensão sobre a experiência do
aprender em circunstâncias de deficiência visual.
Washington Sales do Monte, que viveu momentos transformadores de
invenção de si no CAPSi discute a experiência dos jogos digitais na saúde mental.
Em coautoria com Karla Rosane do Amaral Demoly e Francisco Milton Mendes
Neto, Washington Sales do Monte analisa os efeitos de jogos na experiência de
crianças e jovens em atendimento no CAPSi de Mossoró no texto intitulado
Oficinando com jovens: análise de processos de atenção na experiência com jogos digitais.

14
APRESENTAÇÃO

Mylena Carla Almeida Tenório e Deise Juliana Francisco trazem uma


experiência potente no campo da saúde mental e da educação inclusiva. As
autoras discutem a experiência e a saúde mental de professores no texto Saúde
mental e educação inclusiva: um estudo da saúde mental dos professores que atuam com a
inclusão de crianças com deficiência na rede municipal de Garanhuns/PE.
As experiências transdisciplinares vividas no Programa Rede de Ofici-
nandos na Saúde Mental acolhe e faz conexões com a experiência de estudantes
na escola pública. Neste caminhar teórico-metodológico Kézia Viana Gonçalves
e Karla Rosane do Amaral Demoly no texto Espaços de autoria e legitimação dos
estudantes no processo de aprendizagem escrevem sobre a legitimação dos estudantes
que experienciam diferentes circunstâncias de conhecimento na escola.
No atual contexto social e educacional brasileiro vivemos situações de
estresse e adoecimento que são discutidas no texto Adversidades, estresse e enfrenta-
mento entre estudantes universitários de Remerson Russel Martins. O autor analisa a
própria experiência construída no atendimento a estudantes do Ensino Superior.
No texto intitulado Oficinando com os exergames: habitando territórios ainda
pouco explorados Adilson Rocha Ferreira e Deise Juliana Francisco analisam a viabi-
lidade da introdução dos exergames em oficinas terapêuticas, de modo a contribuir
com outras formas de intervenção e produção de subjetividade na saúde mental.
Ray Lima, brilhante ator e cenopoeta, faz-se presente novamente na obra
com sua escrita poema e arte intitulada Nas malhas da utopia pelos corredores dos
sonhos cotidianos da América Latina. Educador popular em saúde mental, o autor
retoma escritos da experiência e nos convida a seguir resistindo e inventando a
alegria e o cuidado na saúde mental.

Karla Rosane do Amaral Demoly


Maria Aridenise Macena Fontenelle
Maria de Fátima de Lima das Chagas
Organizadoras

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CANTIGA
Ray Lima e Junio Santos

Nas malhas da rede eu vou, eu vou


Balançar pra vida vir
Com o tempo avançar
Nas malhas da rede eu vou, eu vou
Navegando na maré
Da cultura popular
Essa rede é do homem
Essa rede é da mulher
Essa rede é inclusiva
Pode vir donde vier
Saúde é cidadania
Trabalhador sonha e tem fé
Nas malhas da rede eu vou, eu vou
Balançar pra vida vir
Com o tempo avançar
Nas malhas da rede eu vou, eu vou
Navegando na maré
Da cultura popular
Nossa rede é unida
É erudita é popular
A rede é libertadora
Sabe aonde quer chegar
Nela cabem as diferenças
E os saberes do lugar
Nas malhas da rede eu vou, eu vou
Balançar pra vida vir
Com o tempo avançar
Nas malhas da rede eu vou, eu vou
Navegando na maré
Da cultura popular

17
PARTE 1

REDES TEÓRICAS
CONFIGURANDO MODOS
DE VIVER E CONHECER

19
LOUCURA TAMBÉM É UM ESTADO DE TERNURA1
Jadiel Lima

Loucura também é
um estado de ternura

Quando o afeto é tão grande


que um peito só não segura
Quando a mente come veneno
e o corpo esperto não atura

Quando o sorriso fica mais fácil


e cada abraço aperta bem a cintura
Quando a luta está tão intensa
que não precisa mais de armadura

Quando o carinho seca da quintura


e dá vontade de ficar nu!
O de dentro pede pra o de fora
permitir ser o que é

Ternura também é
uma forma de bravura

Lima, J. In: Da vila para a cidade. Maranguape, CE: Edições Vila de Poetas Mundo, 2016.
1

21
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL:
Sobre a Atenção e Cuidado de si
e do Outro na Convivência
Karla Rosane do Amaral Demoly

Me encontrei com a pergunta: qual é o sentido de minha vida?


Os seres humanos não sabemos em que consiste nossa experiência. [...]
Temos que dar-nos tempo. Uma vez que cada um se pergunta sobre si
mesmo resulta mais fácil entender as dificuldades e as dúvidas dos demais.
Francisco Varela

Ao trabalhar em diferentes contextos da educação inclusiva e da saúde


mental, minhas perguntas estão direcionadas às formas de linguajar e às mudan-
ças cognitivas e afetivas que podemos observar no encontro com diferentes tec-
nologias.
O que me impulsiona e sustenta a energia de seguir adiante inventando
projetos neste cenário brutal em que vivemos é o profundo Amor e confiança
que sinto na nossa humanidade, como possibilidade de nos transformarmos
inventando formas de alegria, cuidado, saúde e aprendizagem na convivência.
Amor em maiúscula para destacar e explicar que significa o modo de conviver,
tecer vida e conhecimento com os outros.
Este emocionar implica que nos sentimos afetados convivendo com crian-
ças, jovens, familiares e adultos nos Centros de Atenção Psicossocial de Mossoró
e ali buscamos inventar redes, inscrições que se tecem com linhas, cordas, tintas,
imagens, tecnologias, nós que se fazem no encontro e nas ações que permitem
observar e explicar modos de cuidar e de aprender.
Nesta escrita passarei do eu ao nós, pois o propósito é tecer reflexões sobre
o que destaco na experiência: modos de linguajar, cuidar, atentar e aprender; o
fazer e as tecnologias na promoção da saúde mental. A experiência é coletiva,

23
Karla Rosane do Amaral Demoly

portanto há necessidade de compartilhar os entendimentos que construímos com


apoio de autores e diretamente com os oficineiros que constituem o programa
em andamento em Mossoró/RN.
O texto é organizado de modo a apresentar o percurso que me levou a
iniciar um programa na saúde mental no ano de 2012 pela Universidade Federal
Rural do Semi-Árido (Ufersa), a rede teórica que sustenta a prática em andamen-
to nos Centros de Atenção Psicossocial e a indicação dos projetos que se iniciaram
em 2017 e seguirão adiante. A experiência será trazida com pequenos recortes e
indicações, pois mais adiante nesta obra temos escritas em que nos debruçamos
mais de perto sobre os diferentes projetos e pesquisas que emergem dos fazeres
envolvidos no programa.

MODOS DE CUIDAR E APRENDER


Mestres e amigos como Paulo Freire, Mario Osorio Marques e Larry
Wisniewski ensinaram sobre a potência do Amor e confiança em nós mesmos e
nos outros com quem fazemos vida. São “emocionares” que sustentam modos
de agir que se tecem com sabedoria e conhecimento.
Francisco Varela (1994), brilhante biólogo e filósofo, deixou-nos uma
obra valiosa no curto período de sua vida. O cientista refere-se à sabedoria e ao
conhecimento no documentário Monte Grande – What is life? – construído em
sua homenagem. Reconstruo aqui o que esclarece Varela sobre como acontece a
experiência humana, os movimentos e processos da cognição e os mundos que
configuramos no fazer. A sabedoria é o modo como fazemos as coisas em nosso
cotidiano: como plantamos e cuidamos das plantas acompanhando o crescimen-
to, como fazemos bolos e comidas, como acolhemos um amigo ou como reagimos
a um acontecimento. O conhecimento é a explicação e há distintas formas de
conhecimento: as artes, a ciência, a magia, etc.
As ações de cuidar e aprender na saúde mental têm a ver com diferentes
modos de lidar. As mãos e o corpo inteiro se movimentam e se transformam,
acontece conosco e com nossos amigos e amigas que buscam o atendimento
nos CAPS. Temos nos ambientes sensíveis da saúde mental vidas muitas vezes
marcadas pelo abandono social, ou que se mostram com sintomas que dizem de
modos diferenciados de coordenar condutas, sentir, pensar e fazer.

24
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

Vamos tecendo redes de sabedoria e conhecimento, nos equivocamos e


aprendemos. As redes estão presentes nos documentos que tratam das políticas
da saúde mental e da educação inclusiva, mas precisam de fato existir no coti-
diano.
Recorto um momento da experiência que fez disparar a possibilidade do
trabalho na saúde mental. Durante encontros de orientação do Doutorado, ainda
no ano de 2006, recebi um convite de Cleci Maraschin para pensar sobre as práti-
cas de escrita no Programa Oficinando em Rede, que estava sob sua coordenação
em Porto Alegre, em um Centro Integrado de Atenção Psicossocial (Ciaps) do
Hospital Psiquiátrico São Pedro. Na ocasião, eu estava imersa em uma experi-
ência com professoras que vivem em condições perceptivas diferenciadas, devido
à presença ou ausência da visão ou da audição. Estas professoras experienciavam
oficinas, práticas de escrita na convergência com diferentes mídias – imagens,
sons e textos – e eu acompanhava o percurso da composição de um livro digital
para entender como modificavam modos de escrever e coordenar condutas na
experiência. Pude observar que a composição do livro tornava-se potente ao
permitir o encontro entre professoras que vivem em condições perceptivas dife-
renciadas e as mídias – imagens, sons e textos – na escrita.
No ano de 2009 eu já estava na Universidade Federal Rural do Semi-
-Árido e sentia forte desejo de elaborar estudos que interagissem com a luta pela
educação inclusiva e pela promoção da saúde mental. Por vezes sonhos e convites
são retomados adiante no transcurso de uma experiência, e foi o que aconteceu.
Deparei-me com a história de Nise da Silveira, que atualmente considero nossa
grande ensinante da saúde mental, e passei a assistir documentários organizados
por Leon Hirszmann sobre três clientes artistas, como designa Nise da Silveira,
e seus percursos de reabilitação psicossocial na experiência orientada por ela.
Naquela ocasião eu pensei sobre o que podia oferecer como estudiosa das práticas
de escrita e das tecnologias na aprendizagem nos ambientes da saúde mental.
Cleci Maraschin generosamente me enviou os escritos dos projetos do
Oficinando em Rede de Porto Alegre e conversamos sobre a possibilidade de
invenção do fazer em Mossoró/RN.
Naquele contexto das políticas públicas e sociais em nosso país havia
importantes programas governamentais que favoreciam a busca de recursos para
apoiar ações, entre eles projetos para promover saúde mental. Antes mesmo de

25
Karla Rosane do Amaral Demoly

buscar e obter recursos financeiros, fomos com um pequenino grupo de discentes


de Graduação e de Mestrado visitar o Centro de Atenção Psicossocial da Infância
e da Adolescência de Mossoró (CAPSi). O acolhimento dos profissionais foi tão
amoroso que pudemos sentir que ali tínhamos um coletivo e terreno fértil para
iniciarmos uma ação.
Em janeiro de 2012 passei a coordenar o que intitulamos como progra-
ma de extensão, pesquisa e ensino “Rede de Oficinandos na Saúde: tecnologias
da informação e comunicação promovendo inserção social, cuidado e formação
em saúde mental” em Mossoró. Inventávamos a experiência inspirados espe-
cialmente nos escritos de Maraschin, Francisco e Diehl (2011), Nise da Silveira
(1992) e Humberto Maturana e Francisco Varela (1980, 2001). Contávamos com
coletivos de discentes e de docentes de diferentes campos do conhecimento, pois
entendemos que saúde mental é tema de todas as áreas.
Iniciamos a experiência contando com nossos próprios materiais para
a realização de oficinas de jogos digitais, artes, fotografia com jovens, adultos,
profissionais e/ou familiares de usuários atendidos no Centros de Atenção Psi-
cossocial da Infância e da Adolescência (CAPSi) de Mossoró. Até o ano de 2016,
portanto cinco anos de atividades de extensão, pesquisa e ensino, o trabalho
concentrou-se no CAPSi, mas em 2017 ampliamos o fazer e o programa acontece
nos CAPS situados nos bairros Nova Betânia e Alto da Conceição, em Mossoró.
Interagimos, ainda, com a experiência que acontece em outros ambientes sensí-
veis da saúde mental nas cidades circunvizinhas a Mossoró, especialmente com
os colegas que coordenam ações em Icapuí/CE e Assú/RN.
Durante os fazeres, os discentes e os professores tecem escritas e cons-
troem projetos de pesquisa em torno de temas relacionados à saúde mental,
perguntas que emergem no fazer e que interessam particularmente a discentes
e professores orientadores dos estudos.
Recortarei a seguir uma dimensão da experiência que permite a reflexão
sobre o próprio fazer. Discutirei sobre os diferentes modos de agir na linguagem,
as tecnologias e os processos da atenção e cuidado de si e do outro que acompa-
nhamos na convivência com os participantes das ações do programa. Indicarei,
ao final, alguns dos projetos que já foram finalizados e se referem à formação

26
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

de estudantes de Graduação e Mestrado, com destaque, ainda, para alguns dos


que estão em andamento no programa e que interagem com a Pós-Graduação
Interdisciplinar em Cognição, Tecnologias e Instituições.

O LINGUAJAR E AS TECNOLOGIAS
O ser humano configura a vida e o conhecimento agindo com diferentes
modos de estar na linguagem. Estamos de acordo com Goody (2007), Maturana
e Varela (1980; 2001), Marques (1999) quando defendem que o humano surge
como espécie distinta dos demais seres vivos com a linguagem. Goody (2007)
destaca a invenção técnica e sustenta duas hipóteses que definem o problema: o
humano surge com a linguagem e o modo de comunicação verbal já implica o
surgimento de uma tecnologia.
Entre os historiadores da humanidade, muitos consideram que a emer-
gência da espécie está ligada ao advento da tecnologia material, à capaci-
dade de fabricar objetos, à chegada do homo faber, o homem fabricando
ferramentas. Quaisquer que sejam os casos limites, é claramente um
domínio onde se produz um enorme passo adiante, a acumulação de
mudanças levando a avanços rápidos. Outros pesquisadores colocam o
acento sobre a emergência do homem como animal dotado de lingua-
gem, mesmo que seja difícil de determinar exatamente o início desta
fase, existe uma fronteira técnica ainda mais complexa entre o sistema de
comunicação oral dos homens e aquele dos outros animais (...) (Goody,
2007, p. 193 – tradução nossa).

Assim, podemos pensar a comunicação verbal como uma espécie de fer-


ramenta, na medida em que é constitutiva do modo como conhecemos, isto é,
de certa forma, modifica as próprias formas de conhecer.
Roger Chartier, historiador estudioso da cultura da escrita, define a condi-
ção humana em sua relação com a linguagem: “(...) tudo o que nas utopias clás-
sicas parece prometer um futuro melhor, sem guerras, sem pobreza nem riqueza,
sem governo nem políticos conduz à perda daquilo que define os seres humanos
em sua humanidade: a memória, o nome, a diferença” (Chartier, 2002, p. 15).
Nesta humanidade a que se refere Chartier podemos pensar que se produzem no
linguajar formas de convivência que podem ser guerras, destruição, competições,
abandonos no social, ou processos amorosos de cuidado e acolhimento.

27
Karla Rosane do Amaral Demoly

Maturana e Pörksen (2004), desde a Biologia do Conhecer desenvolve pes-


quisas que favorecem a reflexão sobre os processos cognitivos e os modos de viver
do humano. Entre tantas posições, destacamos a de que os humanos distinguem-
-se de outros seres vivos justamente por viverem imersos em redes conversacio-
nais, coordenando condutas uns com os outros, linguajando.
Ao tratar dos processos do ser vivo humano, Humberto Maturana segue
seus estudos com a participação de Francisco Varela (1980, 2001). Estes pes-
quisadores debruçaram-se sobre uma questão central: explicar o que possuem
os sistemas viventes que nos permitem qualificá-los como tal. Autopoiése é um
conceito criado pelos autores para dar conta do fenômeno do viver, para expli-
car fenômenos moleculares, o operar em organismos moleculares. Os humanos
vivem a mesma dinâmica molecular. A expressão é de origem grega e significa:
auto por si e poiése – produção, o que implica pensar que o viver sucede auto-
produtivamente nos organismos vivos. Autopoiése refere-se à dinâmica circular
autoprodutiva dos organismos vivos que os diferencia dos não vivos. A vida
mantém-se pela dinâmica autopoiética e pela congruência ao meio, a perda de
uma ou outra pode levar a processos destrutivos (Maturana; Varela, 2001)
Maturana esclarece que se pode usar o conceito de autopoiése nas circuns-
tâncias relacionadas com a conservação do viver. Para que a vida siga se diferen-
ciando, há necessidade de conservar a autopoiése e a congruência ao meio. O
fluir do nosso viver é uma deriva, como um timoneiro que não controla o barco,
muda o seu curso diante de novas circunstâncias que podem surgir (Maturana;
Pörksen, 2004).
Francisco Varela propõe alargar o horizonte das ciências cognitivas de
modo a incluir a experiência humana vivida.

É somente tendo uma visão do fundamento comum entre as ciências


cognitivas e a experiência humana que nossa compreensão da cognição
pode ser mais completa e atingir um nível satisfatório. Propomos então
uma tarefa construtiva: alargar o horizonte das ciências cognitivas de
forma a incluir, num escopo mais abrangente, a experiência humana
vivida, por meio de uma análise disciplinada e transformadora (Varela;
Thompson; Rosch, 1991, p. 14).

28
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

O autor e colaboradores desenvolveram o conceito de en-action para


indicar que os estudos da mente precisavam se deslocar da ideia de que a cogni-
ção é um processo localizado no cérebro, pois o que nos acontece é uma inscrição
corporal da mente. Conforme Varela: “Resumidamente, o problema mente-corpo
adquiriu o status de problema central de uma reflexão abstrata porque a reflexão,
em nossa cultura, foi afastada de sua existência corporal (Varela; Thompson;
Rosch, 1991, p. 30)”.
Estamos sempre imersos no mundo e com nossas ações vamos conservan-
do o que queremos viver. Não se trata de tomarmos um conjunto de pressupos-
tos teóricos e regras que nos permitam representar o que acontece conosco ou
diante de nós, pois na relação eu-o outro/os outros e o mundo temos as ações e
o fluxo do devir que têm a ver com nossa história humana. “Não podemos nos
excluirmos do mundo para comparar o seu conteúdo com as suas representações,
estamos sempre imersos neste mundo (Varela, 1994, p. 78)”.
Sabemos que tudo o que nós os seres humanos fazemos acontece median-
te um modo de agir na linguagem e este entendimento é que nos inspirou a tecer
os diferentes projetos que desenvolvemos nos ambientes de saúde mental de
Mossoró. Organizamos oficinas de jogos, artes, fotografia com crianças, jovens,
familiares, adultos e profissionais e estas são acompanhadas por meio de escritas
em diários de bordo. O fazer nas oficinas e as escritas são ações de oficineiros,
bolsistas de extensão, pesquisadores e discentes de Graduação e Mestrado.
Oficinar envolve o corpo inteiro, o linguajar que se tece no contínuo
entrelaçamento de linguagens e emoções. Oficinar favorece a observação e com-
posição de escritas sobre modos de funcionamento da atenção e cuidado de si e
do outro na convivência. Uma rede de escritas é tecida nos diários de bordo de
oficineiros e pesquisadores e ajudam a compor este texto e nossa reflexão.

OFICINAS, LINGUAGENS E TECNOLOGIAS NA SAÚDE MENTAL


O Programa que na edição 2015-2017 intitulamos “Rede de Oficinandos
na Saúde Mental” organiza-se na forma de oficinas que são pensadas em encon-
tros semanais de oficineiros, pesquisadores e professores supervisores de projetos
individuais e/ou coletivos de extensão e pesquisa. Nas tardes de terças-feiras nos
encontramos – desde o ano de 2012 – e pensamos sobre o que podemos oferecer,

29
Karla Rosane do Amaral Demoly

propor aos sujeitos em atendimentos nos CAPS de modo a ampliar e potencia-


lizar processos de atenção e cuidado de si e do outro. Contamos com diferentes
artefatos técnicos, materiais: computadores, tablets, câmeras fotográficas, tintas,
linhas, papéis, cordas, entre outros.
O desafio que nos colocamos em um encontro de formação interna do
coletivo que ocorreu em setembro de 2017 foi o de aprender o método do fazer
com teatro, orientados por Ray Lima, Junio Santos e inspirados na leitura do
médico psiquiatra, ator e nosso amigo Vitor Pordeus, que queremos trazer para
nosso convívio em 2018.
Os oficineiros organizam-se de modo a propor oficinas diferenciadas para
crianças, jovens, familiares e estas acontecem com pequenos grupos todas as
semanas. Profissionais dos CAPS ajudam a compor os pequenos grupos que
participam de cada oficina e dois a três bolsistas os acompanham, fazem juntos.
Aqui é importante ressaltar que há uma proposição inicial para fazer disparar
processos de atenção e cuidado de si, processos interativos e inventivos. Cada
pequeno grupo de bolsistas acompanha, interage e faz apontamentos sobre o
que vai acontecendo, conforme já referimos antes.
Acolher com afeto e liberdade, escutar, apoiar e esperançar, estas ações
são muito importantes na experiência que construímos. Sobre esperançar nos
ensina Vera Dantas, médica e educadora popular em saúde mental: “Quero con-
jugar o verbo esperançar, porque nesse verbo tem ação”. Sobre escutar, acolher
e cuidar, nos ensina Ray Lima:
Escuta, escuta, o outro a outra já vem.
Escuta, cuidar do outro faz bem.
Desde o tempo em que nasci.
Logo aprendi algo assim.
Cuidar do outro é cuidar de mim.
Cuidar de mim é cuidar do mundo!

Ray Lima é artista cenopoeta que participa do nosso programa e de dife-


rentes ações de formação em saúde, juntamente com Vitor Pordeus pelo Brasil
afora. Ray Lima, Jadiel Lima, Regina Lima, Junio Santos e Vera Dantas são
grandes mestres que nos ensinam no fazer dos corredores de cuidados e nas ciran-
das da vida a arte do encontro e os fazeres que efetivamente implicam o cuidado.

30
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

Oficineiros entregam materiais, tecnologias e convidam crianças, jovens, adultos,


familiares e profissionais a inventarem, a tecerem formas de viver e, assim, dife-
rentes modos de linguajar acontecem nos ambientes sensíveis da saúde mental.
Em nosso programa entendemos as oficinas em andamento como tecno-
logias do cuidado. Gilbert Simondon é autor que nos acompanha na construção
deste entendimento sobre a potência do oficinar nos ambientes de saúde mental.
Seus estudos nos oferecem ferramentas para pensar que são muito importan-
tes porque se referem aos processos cognitivos, ao modo como nos fazemos a
cada instante nas dimensões psíquica e coletiva. Oficinar permite o linguajar e
este opera como experiência de corpo inteiro. Gestos, sensibilidades, alegrias,
dores, angústias, desesperos. Histórias se tecem e nós aprendemos sobre vida e
conhecimento.
“Somos todos seres muito frágeis, precisamos uns dos outros” afirmou em
entrevista Oscar Niemeyer quando completava 100 anos de idade. O brilhante
arquiteto indicava ser esta sua principal aprendizagem de vida. Para estarmos
juntos aprendendo sobre a promoção da saúde mental é imprescindível a reflexão
sobre como acontece os processos humanos do viver.
Em nosso programa não estamos focalizando diagnósticos que cristalizam
posições para os sujeitos. Estudamos sobre autismo, esquizofrenia, depressão,
mas nos concentramos na potência do humano de transformar modos de sentir,
fazer, viver. Como nos ensina Nise da Silveira (1992, p. 21):
Rótulos diagnósticos são, para nós, de significação menor, e não costuma-
mos fazer esforços para estabelecê-los de acordo com classificações clássi-
cas. Não pensamos em termos de doença, mas em função de indivíduos
que tropeçam no caminho de volta à realidade cotidiana. O principal
método de tratamento empregado na Casa das Palmeiras é o exercício
espontâneo de atividades diversas, geralmente chamado de terapêutica
ocupacional. Esse método, se corretamente conduzido, é um legítimo
procedimento terapêutico, e não apenas prática auxiliar e subalterna,
como é considerado habitualmente. Fazemos constante apelo às ativi-
dades que envolvam especialmente a função criadora mais ou menos
adormecida dentro de todo indivíduo. A criatividade é o catalisador por
excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações,
emoções, pensamentos são levados a reconhecer-se, a associar-se. A tarefa
principal da equipe técnica da Casa das Palmeiras é permanecer atenta ao
desdobramento fugidio dos processos psíquicos que acontecem no mundo

31
Karla Rosane do Amaral Demoly

interno do cliente através de inumeráveis modalidades de expressão. E


não menos atenta às pontes que ele lança em direção ao mundo externo,
a fim de dar-lhes apoio no momento oportuno.

Aprendemos com Nise da Silveira (1992), Gilbert Simondon (1989-


2009), Francisco Varela e Humberto Maturana (2001) entre outros, que a expe-
riência humana é processo em transformação.
Simondon esclarece que o indivíduo é um ser que constantemente está se
individuando, fazendo-se em um processo inventivo que sempre tem a ver com
os outros, com os objetos, com o meio associado. Há uma realidade pré-indi-
vidual, fases no ser que se transforma porque procura resolver-se ao se defasar.
Há busca incessante de manutenção do sistema vivo e transformação
estrutural na convivência, como indicam Maturana e Varela. O indivíduo cons-
titui-se linguajando como ser que produz a si mesmo, sempre se individuando,
ou tornando-se num meio/milieux. Nas oficinas podemos observar processos de
autoconstituição que se tornam visíveis nas inscrições, imagens, escritas, gestos,
emoções dos participantes.
Processos de autoconstituição e atenção a si, ao outro e ao mundo não
envolvem a representação de um mundo já dado e não estão predefinidos nos
sujeitos por meio de escritas diagnósticas. Para pensar a individuação é impor-
tante considerar o ser não como substância, ou matéria, ou forma, buscando os
princípios ou causas que expliquem o modo como alguém é ou está. Muitas vezes
este é o principal movimento nos ambientes da saúde mental, o que resulta na
cristalização de posições sobre e para os sujeitos.
Nós os seres humanos nos transformamos continuamente na experiência
do viver-conhecer.

[...] o ser concreto, ou ser completo, isto é o ser pré-individual, é um


ser que é mais do que uma unidade. [...] a unidade e a identidade se
aplicam apenas a uma das fases do ser, posterior à operação de indi-
viduação; [...] elas não se aplicam à ontogênese entendida no sentido
pleno do termo, isto é, no sentido do devir do ser enquanto ser que se
desdobra e se defasa [se déphase] ao se individuar (Simondon, 2009, p.
13-14 – tradução nossa).

32
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

As individuações psíquica e coletiva são recíprocas uma em relação à


outra e o mundo psicossocial pressupõe operações de individuação que partem
de uma realidade pré-individual em um ser capaz de constituir uma nova cir-
cunstância devido à metaestabilidade que caracteriza os sistemas vivos.
O transindividual é, portanto, o nome da complexa trama de relações
que constitui a um só tempo a individuação psíquica e a coletiva, processos que
acontecem com integração de tecnologias.
O objeto técnico, tomado em sua essência, quer dizer, o objeto técnico
enquanto foi inventado, pensado e querido, assumido por um sujeito
humano, torna-se o suporte e o símbolo desta relação que chamamos
de transindividual. Por intermédio do objeto técnico se cria uma relação
inter-humana (Simondon, 1989, p. 247-248).

Simondon e Varela, entre outros cientistas, ajudam a compreender que


o conhecimento não é representação do mundo, mas um corpo engajado numa
interação com o mundo, sendo este levado a se abrir em ações e movimentos
de transformação. E essas ações e movimentos envolvem tecnologias. O fun-
damental para Simondon é que a individuação não é um resultado, mas um
processo contínuo por meio do qual o indivíduo se constitui como tal a partir
de um campo de singularidades e potencialidades. Isto é, um indivíduo é um
processo que acontece mediante uma resolução de tensões, incompatibilidades e
desigualdades que buscam o equilíbrio pertinente ao sistema de potencialidades
que habitam o sistema:
[...] é preciso operar uma inversão na busca do princípio de autono-
mia, considerando como primordial a operação de autonomia a partir
da qual o indivíduo chega a existir e cujo desenvolvimento, regime e
modalidades ele reflete em seus caracteres. O indivíduo será captado,
então, como uma realidade relativa, uma certa fase do ser que supõe,
antes dela, uma realidade pré-individual e que, ainda após a autonomia,
não existe completamente sozinha, pois a autonomia não consome, de
um golpe, os potenciais da realidade pré-individual e, por outra parte, o
que a autonomia faz aparecer não é somente o indivíduo, senão a dupla
indivíduo-meio. Assim, o indivíduo é relativo em dois sentidos: porque
não é todo o Ser e porque resulta de um estado do Ser no qual não existia
como indivíduo nem como princípio de autonomia (Simondon, 2009, p.
26 – tradução nossa).

33
Karla Rosane do Amaral Demoly

Simondon chama a nossa atenção para as operações de autonomia nas


quais o indivíduo passa a existir e destaca que temos uma realidade sempre
relativa, as fases do ser que permitem observar não apenas o ser, mas a dupla
indivíduo-meio. Estamos, portanto, nos reconfigurando continuamente na
experiência do viver, o que acontece intensamente ao estarmos convivendo com
circunstâncias brutais de abandonos e sofrimentos e/ou circunstâncias em que
alegria e inventividade emergem na experiência dos sujeitos nos ambientes sen-
síveis da saúde mental.
Retomando o fazer nas oficinas com jovens, familiares, adultos e profissio-
nais nos CAPS, temos diferentes modos de agir na linguagem que contam com
objetos e artefatos técnicos, como já referimos. Tablets, câmeras, linhas e cordas
ou outros objetos ajudam a compor redes de afetos, aprendizagens e cuidados.
Modos de linguajar ampliam-se em possibilidades para a escuta e aprendizagem
sobre como cada um está e, oficinando, inventamos modos de estarmos juntos
e de fortalecermos a amorosidade e o conhecimento sobre nossos próprios pro-
cessos de atenção e cuidado em saúde.
Simondon explica sobre modos de configuração da individualização
técnica e humana quando temos ferramentas em nossas mãos e passamos a agir
sobre problemáticas que na saúde mental podem ser vitais na direção de manu-
tenção da vida mesma, quando a dor e o sofrimento são intensos:
[...] o objeto técnico é determinado de certa maneira pela escolha
humana que tenta realizar o melhor possível um compromisso entre
dois mundos. [...] a função de individualização técnica é assumida por
indivíduos humanos; a aprendizagem por meio da qual um homem
forma hábitos, gestos, esquemas de ação que lhe permitem se servir das
ferramentas muito variadas que a totalidade de uma operação exige, faz
com que esse homem se individualize tecnicamente; é ele quem se torna
meio associado de diversas ferramentas; quando ele tem todas as ferra-
mentas em mãos, quando ele sabe o momento em que se torna necessário
trocar para continuar o trabalho, ou empregar, ao mesmo tempo, duas
ferramentas, ele assegura por seu corpo a distribuição interna e a auto-
-regulação da tarefa (1989).

O autor permite pensar sobre o conjunto que se constitui como processos


de individuação dos seres vivos, físico e técnico, e esclarece sobre a congruência
entre modos de configuração da sociedade, das tecnologias e da vida dos seres

34
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

vivos. Destaca que os objetos técnicos integram-se ao mundo humano que eles
prolongam. Traz-nos a noção de uma tecnoestética, ao explicar que “[...] uma ferra-
menta pode ser bela na ação, logo que ela se adapta bem ao corpo que ela parece
prolongar de maneira natural e amplificar, de alguma maneira, seus caracteres
estruturais” (Simondon, 1989, p. 186). Para o autor, é preciso compreender as
relações entre as ações humanas e os objetos que as reconfiguram:
A alegria que se sente ao circular entre as construções novas é, ao mesmo
tempo, técnica e estética. O sentimento técnico-estético parece ser uma
categoria mais primitiva que o próprio sentimento estético, ou o aspecto
técnico considerado sob o ângulo estrito da funcionalidade, que é empo-
brecedora (Simondon, 1998, p. 265).

Na perspectiva com a qual trabalhamos no programa Rede de Oficinan-


dos na Saúde Mental, a técnica é compreendida em sua dimensão epistêmica e
ontológica de forma inseparável. A relação dos sujeitos nas oficinas dos CAPS
com os diferentes materiais e artefatos é uma relação que favorece modos de
composição e linguajar.
Telas, imagens, escritas, surgem e se referem às circunstâncias do viver
de cada um que acompanhamos com cuidado. Uma luz que se ascende, a cor
vermelha no pincel, imagens e cores podem provocar lágrimas quando se conec-
tam com recortes de circunstâncias dramáticas do viver. Nas ações do jogo com
crianças autistas o clicar nos ícones da tela pode significar exploração inicial que
se mantém durante certo tempo, depois... devagar... se passa a jogar e a explorar
um jogo até o fim. Modos de interação diferenciados na experiência do autismo,
nas circunstâncias de transtornos mentais e/ou depressão.
Aprendemos no cotidiano das oficinas a pousar nossa atenção sobre o que
se passa e, assim, como ensina Nise da Silveira, afetos e cuidados fazem disparar
formas inventivas de reconstrução da vida mesma. Ou seja, a relação dos sujei-
tos com a técnica é uma relação que os constitui em termos cognitivos. E, indo
mais longe em relação a estas implicações ontoepistêmicas, poderíamos indicar
algo que é muito importante para a nossa pesquisa que segue em andamento:
os sujeitos em circunstâncias diferenciadas de transtornos mentais ou sofrimento
psíquico podem vivenciar no encontro com diferentes tecnologias os mecanismos

35
Karla Rosane do Amaral Demoly

de autorregulação e, por abdução, entender que eles próprios podem agir sobre
si mesmos e irem resolvendo parcialmente as problemáticas que os afligem,
transformando formas de sentir, viver, conhecer.

PARA SEGUIR APRENDENDO

Numa sociedade doente como a de nosso tempo histórico, promover


saúde mental é necessariamente remar contra a corrente. Quem não faz
isso, está automaticamente alinhado com a corrente maligna da doença
mental coletiva, mesmo que fale em nome de Nise, que tente falar em
nome de Dionisos, mesmo que diga que quer o melhor para os pacien-
tes, mesmo que finja que age em interesse da saúde pública. As ações
revelam, as experiências comprovam, as obras falam por si. Só é preciso
que nosso povo exercite abrir o olho e os ouvidos, perceber, refletir sobre
a prática, juntar as peças dos quebra cabeças (Pordeus, 2016).

A aprendizagem que caracteriza o fazer na promoção da saúde mental


envolve uma experiência em que estamos agindo sobre problemáticas vitais.
Circunstâncias como esquizofrenia, autismo, depressão, fazem-se presentes na
experiência e as formas de linguajar nos permitem aceder a percursos de vida e
conhecimento. Acolhemos o desafio de aprender o que é mais difícil, o que na
experiência da autora implica a aprendizagem do cuidado de si e do outro na
convivência. A aprendizagem do cuidado requer tempo, o lidar com perguntas
que precisamos suspender para que se abra o espaço da reflexão e da aprendi-
zagem inventiva.
Francisco Varela refere-se à necessidade de contemplar, suspender as per-
guntas. E o brilhante psiquiatra e artista Vitor Pordeus destaca a necessidade de
formas de resistência fazendo artes e vida.
Seguiremos aprendendo, pois as circunstâncias do fazer na saúde mental
requerem esta sabedoria, escutar, estar ao lado, contemplar o fazer – imagens,
gestos, emoções e, pouco a pouco, nos vemos ao lado de uma experiência humana
em transformação, a começar pela própria.
Nesta escrita o propósito não foi o de trazer recortes detalhados da expe-
riência, pois estas se farão presentes mais adiante nesta obra. Interagimos com
crianças, jovens e adultos que são grandes artistas, ou jogadores, ou fotógrafos,
capazes de aprendizagem e inventividade. Aprendemos modos de comunicar e

36
LINGUAGENS, TECNOLOGIAS, SAÚDE MENTAL

conviver. Algumas crianças que iniciaram conosco já não estão mais no CAPSi,
receberam alta. Nós comemoramos cada mudança, pois é maravilhoso acom-
panhar mudanças cognitivas e afetivas que experimentamos juntos nas oficinas.
Atualmente alguns projetos de extensão e ensino se destacam, como:
desenvolvimento de um robô adaptativo para crianças autistas na forma de
fantoches; uma plataforma de jogos digitais para profissionais da saúde mental;
teatro, fotografia e pintura em dois CAPS com adultos e no CAPSi com os fami-
liares das crianças e jovens. Nestes tempos sombrios que vivemos, o fazer coletivo
na saúde mental implica uma forma de resistência. Sigamos!

REFERÊNCIAS
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GOODY, J. Pouvoirs et savoirs de l’écrit. Paris: Editions La Dispute, 2007.
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37
Karla Rosane do Amaral Demoly

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38
VERSÕES DA DIVERSIDADE
– Políticas Cognitivas e Modos de Subjetivação
Laís Vargas Ramm
Carlos Baum
Cleci Maraschin

Um espaço de convivência fundado no compreender a natureza biológica,


no entender que não podemos distinguir entre ilusão e percepção. Nele
não há tolerância, mas respeito. O respeito é diferente da tolerância,
porque a tolerância implica na negação do outro, e o respeito implica em
se fazer responsável pelas emoções frente ao outro, sem negá-lo (Matu-
rana, 2001, p. 38).

A partir da Constituição de 1988 questões relativas aos direitos humanos


passaram a ampliar os eixos de responsabilidade do Estado, figurando em diver-
sas políticas públicas em respostas às demandas e lutas de diferentes movimen-
tos sociais. No campo da educação e, mais especificamente relativo ao tema da
inclusão, podemos destacar o programa do Ministério da Educação “Educação
inclusiva: direito à diversidade” (Brasil, 2011) que tem como alvo gestores das
redes de ensino.
O programa objetiva o desenvolvimento de uma educação inclusiva
fazendo parte da proposta de uma educação para todos. Proposta que se juntava
a outros discursos comuns, atualmente postos em xeque, como saúde para todos
e cidadania para todos. A ideia de inclusão aparece como enunciado organizador
do discurso em várias das políticas públicas e, em especial, na educação.
A expressão educar para a diversidade propõe que a escola busque promo-
ver práticas que possibilitem aos estudantes e professores não hierarquizar as
diferenças pessoais ou de grupos sociais, incentivando o conhecimento a respeito
de diferentes marcadores, como gênero, sexualidade, raça e etnia; assumindo que

39
L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

o reconhecimento dessas diferenças colabora para a supressão das desigualdades


e que, de outra forma, sua negação promoveria a manutenção de sistemas de
opressão.
Nosso texto recorre ao conceito de políticas cognitivas para problematizar
diferentes formas de tratar a diversidade e como essas formas instituem regimes
de subjetividade. Utilizamo-nos da criação de contrastes como estratégia meto-
dológica para dar visibilidade aos diferentes elementos e modos de composição
de duas políticas cognitivas (Baum, 2017): as modulações das políticas cognitivas
que podemos evidenciar no discurso pedagógico especificado a partir de artigos
científicos e materiais de formação do Ministério da Educação que abordam o
tema da diversidade e inclusão na escola (Brasil, 2013, 2011) e as modulações
efetuadas pelos estudantes secundaristas durante as ocupações das escolas em
2016, e atualizada, por meio do relato etnográfico da visita, feita em novembro
de 2016, a uma escola no interior do Estado do Rio Grande do Sul, que perma-
neceu ocupada até o início do mês de dezembro do mesmo ano.
A escola visitada é um campus do Instituto Federal de Educação, Ciência
e Tecnologia Sul-Rio-Grandense (IF-Sul), que além do Ensino Médio, também
oferece cursos técnicos, superiores e de Pós-Graduação. O protagonismo do
movimento, que inclusive teve continuidade após o fim da ocupação, é dos
estudantes “secundaristas”, cursantes do Ensino Médio e técnicos na instituição.
A ocupação visitada articula-se ao movimento através do qual, a partir
de meados de 2016, secundaristas de todo o Brasil passaram a ocupar escolas
públicas para reivindicar demandas coletivas, algumas particulares de determi-
nados Estados, outras que assumem amplitude nacional. O movimento iniciou-se
em São Paulo, em 2015, como protesto dos secundaristas contra a proposta de
reorganização do sistema de ensino, que visava a fechar 92 escolas e enxugar o
quadro docente (Piolli; Pereira; Mesko, 2016). No Rio Grande do Sul, as ocupa-
ções desse período tinham como enfoque protestar contra o projeto de lei 44/16,
que visava a permitir a caracterização de instituições privadas como organizações
sociais a fim de efetuar parcerias público-privadas para que tais organizações
realizassem atividades de ensino, desenvolvimento científico e tecnológico, entre
outras. Também era pauta das ocupações a falta de repasses do governo do
Estado para a área da educação e o projeto Escola sem Partido.

40
VERSÕES DA DIVERSIDADE

No mês de outubro, as ocupações recomeçaram em todo o Brasil, espe-


cialmente no Estado do Paraná, onde atingiram maior número. Os movimentos
protestavam especialmente contra a proposta de Emenda Constitucional 241 –
55 no Senado – que congela investimentos nas áreas de educação e saúde pelo
período dos próximos 20 anos, e contra a reforma do Ensino Médio, que modi-
fica o currículo atual do curso, reduzindo as disciplinas obrigatórias e alterando
também a carga horária. Mais de mil escolas foram ocupadas em todo o território
nacional, de forma que esses movimentos não se restringiram somente à discus-
são de suas pautas disparadoras, mas produziram novas formas de se relacionar
com a escola, questionando estruturas sociais consolidadas.

POLÍTICAS COGNITIVAS
Antes de iniciar o contraste, é importante uma sucinta definição do que
estamos denominando políticas cognitivas: a expressão política cognitiva é apre-
sentada por Kastrup (1999) ao final de seu livro, intitulado “A invenção de si
e do mundo”, no qual propõe um deslocamento no modo como estudamos a
cognição. Trata-se, segundo a autora, de passar do interesse no funcionamento
e na estrutura da cognição para considerar as práticas concretas que a configu-
ram. O termo, portanto, não remete a uma teoria – se compreendemos teoria
como um conjunto sistemático de afirmações explicativas ou com uma estrutura
lógica e consistente que conecta causas a seus efeitos. Referimo-nos às políticas
cognitivas como um programa de pesquisa que tem como objeto as práticas que
operam na constituição da cognição.
A cognição é, portanto, uma produção encarnada e contingente às prá-
ticas que a produzem. Definida em sua processualidade, uma política cognitiva
varia dependendo do arranjo/relação entre seus atores, que podem ser humanos
e não humanos. Em cada um desses arranjos são constituídas, distribuídas e
negociadas as possibilidades de ação de cada ator, configurando agenciamentos
que definem e redefinem as possibilidades cognitivas individuais, institucionais
e técnicas. As direções ativadas pelas políticas cognitivas podem ser as mais
diversas, mas sempre se tratará de repartir, de arranjar, de definir possibilidades
de ação. Uma abordagem política permite criar um espaço problemático no qual
a questão do ordenamento dessa ecologia pode ser acompanhado (Baum, 2017).

41
L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

Reconhecemos no termo política uma referência à participação ativa em uma


coletividade heterogênea, ao estabelecimento de associações entre elementos
distintos e à constituição do(s) contexto(s) em que tais associações podem ocorrer
(Maraschin et al., 2016). Com isso, colocamos em questão a coexistência e a
multiplicidade das formas e dos atores que permitem diferentes performances
da cognição, não em direção a uma eliminação das controvérsias, mas investindo
na possibilidade de uma nova composição do coletivo.

EDUCANDO PARA E VIVENDO COM A DIVERSIDADE


Como já anunciado, contrastamos diferentes políticas cognitivas. Uma
modulação importante dessas políticas cognitivas está inserida em dois campos
de análise. A que se depreende das políticas públicas, pela análise de documentos
governamentais (Brasil, 2013, 2011) e, outra, pelo registro da visita realizada
pela primeira autora a uma ocupação de estudantes secundaristas em uma ins-
tituição pública no interior do Estado do Rio Grande do Sul.
Descrevemos uma primeira modulação como uma política prioritaria-
mente informativo-comunicativa, que compreende o ensino como transmissão
competente de informações, e a aprendizagem, por sua vez, como uma orga-
nização de fatos dados sobre o mundo (que existe de um modo independente
daquele que aprende). A partir dessa política, a tarefa da escola seria construir
condições para que o aluno receba um conjunto de informações confiáveis de tal
modo que o torne capaz de produzir julgamentos sobre as desigualdades, dife-
renças e a diversidade social. O pressuposto é que um julgamento bem embasado
conduziria cada aluno a efetuar julgamentos mais justos.
O conteúdo objetivo/científico/escolar removeria o sujeito da ignorância
de seus modos de vida opressores e alienados. Em suma, a política informativo-
-comunicativa compreende o aprendente e o mundo como existindo de forma
independente e a cognição como aquilo que medeia a relação entre ambos por
meio de regras e lógicas que variam de acordo com a qualidade da comunicação
estabelecida e das informações disponibilizadas. Qualidade essa que permitiria
aos estudantes construírem representações adequadas das diferenças existentes
no mundo e poder julgá-las de modo justo.

42
VERSÕES DA DIVERSIDADE

A escrita oficial…
O manual Educar na Diversidade, de 2006, que é resultado de um projeto
realizado em parceria entre os países do Mercosul para tratar do tema da inclusão
nas escolas, versa prioritariamente sobre a questão dos alunos com necessidades
especiais de aprendizagem. Aborda também questões sobre diversidade étnica e
de gênero, tais como atitudes discriminatórias presentes na escola e estratégias
utilizadas pelos professores para modificar esses elementos da cultura escolar. O
manual foi confeccionado tendo como base as atividades realizadas nos encontros
formativos do projeto, que no Brasil teve início em 2005 e fez parte do “Progra-
ma Nacional Educação Inclusiva: direito à diversidade”. A ideia do manual é que
ele possa auxiliar nos processos escolares de crianças, jovens e adultos, com ou
sem deficiência, que de alguma forma encontram barreiras a sua aprendizagem
e participação.
Apesar da potência do material no que se refere ao fato de ter sido produ-
zido em um contexto de atividades formativas, nas quais os professores tiveram
oportunidade de pensar suas experiências na qualidade de educadores, ele acaba,
em parte, reforçando uma política recognitiva, pelas próprias concepções de
sujeito e experiência que carrega. O projeto que originou o manual Educar na
Diversidade teve como um dos seus objetivos principais “transformar o ambiente
escolar em um espaço acolhedor para todos, no qual o processo de aprendizagem
seja colaborativo, contínuo, valorize e responda às diferenças humanas” (Brasil,
2006). O contraste que aqui estamos tentando empreender entre as duas polí-
ticas cognitivas, a expressa nos documentos oficiais e a que podemos reconhecer
no movimento estudantil secundarista por meio das ocupações, não se refere a
esse objetivo, mas aos modos de enatuá-lo, de efetivamente produzir relações
diferentes na escola.
Segundo o material de formação docente, “em uma escola inclusiva a
situação de “desvantagem ou deficiência” do educando não deve ser enfatizada.
Ao invés disso, a escola deve adquirir uma melhor compreensão do contexto
educacional onde as dificuldades se manifestam e buscar formas para tornar o
currículo mais acessível e significativo. Essa afirmação está contextualizada em
um material cujo enfoque principal é a abordagem de ensino com os alunos por-
tadores de necessidades especiais. Quando, no entanto, ampliamos a discussão
da inclusão percebemos que a ideia de não enfatizar a desvantagem pode levar

43
L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

à redução das possibilidades de expressão de questões sociais importantes, como


a desigualdade que se impõe a partir de marcadores sociais, como raça, classe,
gênero e orientação sexual, que também estão presentes na escola, mas não se
restringem a esse domínio.
No momento político atual, em que há um crescimento do movimen-
to “Escola sem Partido”, tornado projeto de lei – contestado pelos movimen-
tos de ocupação das escolas – além de suas versões estaduais e até em alguns
municípios,1 parece-nos urgente que pesquisadores, movimentos sociais ligados
à educação e trabalhadores da área possam pautar a importância de que essas
discussões sejam feitas no cotidiano da escola. Nesse sentido, o material de for-
mação docente traz contribuições importantes, apontando para a necessidade de
a escola voltar o olhar para essas questões. É necessário que se tome cuidado, no
entanto, para que isso não seja feito de forma a reiterar a cultura meritocrática
de responsabilização individual, não permitindo que as problematizações a res-
peito de “desvantagens” e privilégios sejam feitas de forma aberta no cotidiano
das atividades escolares.
Nessa perspectiva política que embasa o documento é enfatizada a impor-
tância do currículo para, entre outros objetivos:
• eliminar o espírito de competitividade, a partir do qual a visão de
mundo se restringe a uma corrida na qual apenas alguns conseguirão
chegar ao final;
• oferecer oportunidades a todos para compensar as desigualdades exis-
tentes, mas sem educar para “formar pessoas iguais” (...) (Brasil, 2006).

Os objetivos indicados pelo material partem de uma premissa de que é


possível “eliminar” o espírito competitivo, como se ele estivesse presente somente
na cultura escolar, e não na sociedade de uma forma mais ampla, e nas relações
de poder e modos de subjetivação que constituem alunos e professores. Além
disso, opõem competição e colaboração, o que nem sempre se produz na experiên-

O projeto Escola sem Partido, que tipifica e criminaliza o assédio ideológico, tramita no Congresso
1

Nacional (PL 1.411/2015 de Rogério Marinho do PSDB/RN). Para exemplificar um projeto


municipal, citamos o PLL 124/16, Escola sem Partido, que mesmo tendo recebido parecer de
inconstitucionalidade do procurador-geral Claudio Roberto Velasquez, segue tramitando na
Câmara Municipal de Porto Alegre.

44
VERSÕES DA DIVERSIDADE

cia concreta (Gavillon; Kroeff; Markuart, 2017). Ao mesmo tempo, objetiva-se


compensar desigualdades, o que difere de construir, na prática, um ambiente
em que elas possam ser superadas a partir da experiência dos sujeitos. É neces-
sário, portanto, reconhecer que se trata de um processo lento quando se pensa
em espaços sociais mais amplos, e que a transformação da realidade que se pode
operar em um âmbito micropolítico não necessariamente seja uma compensação.
Maturana (2001) ajuda-nos a compreender que uma explicação é uma
reformulação da experiência, mas nem todas as reformulações da experiência são
explicações. Quem determina o que pode ou não ser considerado uma explicação
é o observador, a partir da sua própria experiência. Nessa perspectiva, não há
uma realidade em si, mas domínios de realidade, que não são independentes
do observador. Quando um professor, por exemplo, tenta realizar uma série
de explicações sobre os marcadores sociais que geram desigualdade, e sobre os
preconceitos que urgem ser superados na escola, elas não necessariamente serão
aceitas pelos alunos. Isso dependerá da composição possível entre a reformulação
de experiências do professor com as experiências dos alunos.
Nesse sentido, pensando nas políticas cognitivas que norteiam a abor-
dagem da inclusão na escola, parece-nos que embora as discussões, nas quais os
alunos podem formular, ouvir, aceitar e refutar explicações, sejam fundamentais,
elas se sustentam de forma muito mais eficaz quando articuladas com a produção
de um novo repertório de experiências na comunidade escolar. Não se trata de
produzir uma única nova e pretensa realidade hegemônica, mas de possibilitar
um espaço comum em que sejam possíveis experiências de respeito, que segundo
Maturana (2001) se diferencia da tolerância, à medida que a tolerância parte de
uma objetividade sem parênteses, ou seja, parte do pressuposto de que alguns
teriam um acesso privilegiado à realidade, e que, portanto, não aceitar o domínio
de realidade do outro não é uma responsabilidade de quem emite o julgamento,
mas é uma questão que está no outro, a quem se deve tolerar.
Essa concepção de que existe uma realidade a ser acessada é hegemônica,
reflete-se na tradição escolar, e inclusive aparece nos documentos que versam
a respeito do educar para a diversidade. O manual que até aqui discutimos
expressa:

45
L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

O conceito de diversidade é inerente à educação inclusiva e evidencia


que cada educando possui uma maneira própria e específica de absorver
experiências e adquirir conhecimento, embora todas as crianças apresen-
tem necessidades básicas comuns de aprendizagem, as quais são expres-
sas no histórico escolar e obedecem às diretrizes gerais de desempenho
acadêmico (Brasil, 2006).

Embora a escrita do material evidencie o objetivo de considerar a singu-


laridade do aluno em seu processo de aprendizagem, ela parte do pressuposto
de que existe uma experiência específica de escolarização e aprendizagem que é
“absorvida” de forma diferente por cada aluno. Parte-se, portanto, de um refe-
rencial que considera o conhecimento como sendo independente do sujeito que
conhece, algo a ser adquirido, e não a composição de explicações que se dão na
experiência, e a produção de sentidos que não é possível senão pela singularidade.
O manual Educar na Diversidade, embora se proponha a discutir as ques-
tões étnicas e de gênero, acaba por oferecer pouco subsídio aos professores,
sobretudo no que respeita às questões étnico-raciais. A discussão restringe-se
às particularidades na educação de alunos oriundos de comunidades indígenas
e quilombolas, e toca pouco na questão racial de uma forma mais ampla, no
que se refere, por exemplo, às condições históricas e sociais do negro no Brasil.
Ao contrastarmos o manual de formação docente com as diretrizes cur-
riculares nacionais relativas ao tema da diversidade e inclusão (Brasil, 2013),
observamos que este último contém um capítulo especificamente voltado às
questões étnico-raciais, apontando também diretrizes para o ensino de História
e cultura afro-brasileira e africana, obrigatória no Brasil desde 2004. O texto,
endossado por ativistas do movimento negro, conselhos estaduais e municipais
de educação e professores que realizam trabalhos que abordam a questão racial,
discute as condições do negro no Brasil, oferecendo um panorama do posiciona-
mento dos movimentos que militam pelos direitos dos negros. Nesse sentido, o
capítulo procura desfazer o “mito da democracia racial no Brasil”, que considera
que os negros não alcançam as mesmas oportunidades que os brancos por dife-
renças nas capacidades individuais, desconsiderando a história de escravização e
dominação que o negro sofre ao longo da História.

46
VERSÕES DA DIVERSIDADE

Ao mesmo tempo, o texto oferece orientações práticas sobre como com-


bater o racismo no ambiente escolar, permitindo que a cultura negra integre o
currículo e as práticas educativas. Algumas orientações são bastante simples,
por exemplo, a atenção que os professores devem ter para que os materiais
visuais, como cartazes, na escola, estampem personagens de diversas etnias, como
negros, indígenas e asiáticos, e não apenas de descendência europeia. Enfatiza-se
a importância de que se estude a história das contribuições do povo negro para
o Brasil, bem como a história africana, de modo que os alunos negros possam
cada vez mais valorizar sua identidade étnico-racial, e também para que os
comportamentos discriminatórios possam reduzir-se na comunidade escolar. O
documento também orienta para a “valorização da oralidade, da corporeidade e
da arte, por exemplo, como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado
da escrita e da leitura” (Brasil, 2013, p. 140), de modo que pretende se distanciar
da tradição escolar hegemônica, na qual o corpo não ocupa lugar de importância
nas teorias e práticas pedagógicas (Louro, 2000).

O que ensinam os secundaristas


Entendemos que os movimentos de ocupação das escolas públicas produ-
zem, em determinados momentos, uma política cognitiva do fazer-com; fazer-
-junto. As questões que tangem à diversidade são retomadas de uma forma con-
trastante em relação a que é predominante às proposições das políticas públicas
analisadas, deslocando a questão de um julgamento justo para um fazer-com;
fazer-juntos. A ocupação visitada realizou diferentes oficinas, colocando em pauta
questões como raça, gênero e sexualidade, entre outras.
A oficina, recurso metodológico priorizado pelos movimentos dos secun-
daristas, pode ser entendida como um dispositivo de encontro, que destitui a
distinção hierárquica entre aquele que ensina e o que aprende, acontecendo a
partir do compartilhamento de conhecimentos e percepções de forma horizontal
(Araldi et al., 2012; Kroeff; Baum; Maraschin, 2012). Este modo de realizar
as discussões prioriza as trocas ao modelo escolar conteudista hegemônico. Não
dispensou convidados ou voluntários que facilitavam as discussões, a partir das
suas experiências com o tema, mas o objetivo era de que eles pudessem somar-se à
luta protagonizada pelos secundaristas, e não levar-lhes ensinamentos de forma
unilateral.

47
L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

Além das oficinas, a própria organização cotidiana da ocupação colocava


em xeque os modos de fazer, por meio dos exercícios de autoanálise empre-
endidos pelos estudantes. Assim, questões sobre a diversidade constituíam-se
mormente como um fazer que se efetivou a cada acontecimento que convocava o
movimento, advindo da própria experiência da ocupação. “Aqui a gente aprende
a conviver, né?”, foi a fala de uma estudante que contava sobre as dificuldades
enfrentadas no cotidiano da ocupação, que, em sua percepção, se confundiam
com os aprendizados construídos pelo coletivo de estudantes a respeito da vivên-
cia das diferenças, especialmente na escola.
Outra estudante, ao mostrar as dependências da escola ocupada, com
algum orgulho disse: “aqui todo mundo é muito desconstruído, nossos banhei-
ros são sem gênero e eu gosto muito disso”. A fala da secundarista, de 15 anos,
aponta para o questionamento que os movimentos de ocupação dispararam a
respeito das distinções binárias de gênero, e da necessidade de discuti-las no
ambiente escolar. Semelhantemente, os papéis atribuídos socialmente ao gênero
feminino e masculino também foram problematizados nas ocupações, mesmo
em ações simples como a divisão de tarefas na escola.
Sobre a forma de fazer deliberações na ocupação, mediante os processos
de autogestão empreendidos, uma estudante afirmou: “fazemos da ocupação
espelho da sociedade que queremos”. Entendemos que a afirmação da estudante
não tratava de colocar a “sociedade que queremos” em um plano imaterial que
não pode ser acessado, mas um ato coletivo de se ver ao colocar-se na ação de
construir outros modos de se relacionar com a escola e com as pessoas, de modo
a incorporar novos repertórios de aprendizagem que emergem em resposta às
demandas do estar presente na escola, fazendo, por meio das ações coletivas mais
simples as problematizações que são também pensadas nos currículos escolares.
Essa construção de uma sociedade mais justa e pautada no respeito às diferenças
também é abordada nos documentos oficiais:
Para reeducar as relações étnico-raciais, no Brasil, é necessário fazer
emergir as dores e medos que têm sido gerados. É preciso entender
que o sucesso de uns tem o preço da marginalização e da desigualdade
impostas a outros. E então decidir que sociedade queremos construir
daqui para frente (Brasil, 2013, p. 136).

48
VERSÕES DA DIVERSIDADE

Essa recomendação – de decidir que sociedade queremos construir – nas


ocupações, é posta em ato, quando, por exemplo, os estudantes participam de
discussões políticas na cidade, que não estão diretamente vinculadas à ocupação,
mas dizem respeito ao exercício de participação que aprenderam coletivamente
durante o movimento. Efetuam-na também quando as estudantes constroem
espaços de denunciar o machismo que poderia eventualmente ser reproduzido
no cotidiano da ocupação. Ou quando eles afirmam que, independentemente
dos resultados que o movimento viria a ter nas leis, na posição dos deputados,
por exemplo, a ocupação já era vitoriosa, uma vez que eles aprenderam “mais
do que em sala de aula”. Para eles, o movimento já havia tido resultados práti-
cos no meio social em que estavam inseridos, uma vez que o enfoque, segundo
eles, era “conscientizar as pessoas”. Informar, por exemplo, pessoas que sequer
compreendiam a dimensão prejudicial assumida pela PEC 55, por meio de pan-
fletagens e outras atividades. Para eles, a ocupação foi capaz de transformar a
eles mesmos e a outras pessoas.
Nesse sentido, o movimento de ocupação foi capaz de atuar nos processos
de singularização dos estudantes e de outros agentes da comunidade escolar, de
modo que, mediante a organização coletiva, elementos da subjetividade capitalís-
tica hegemônica, também presente na escola, fossem contestados, enquanto eles
aprendiam a conviver, conforme sublinharam. Trata-se, portanto, de construir
“modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção,
modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular” (Guattari;
Rolnik, 2013, p. 22).
Seffner (2017), relatando a pesquisa que realizou em diversas escolas
ocupadas, analisa que os estudantes expressam nas ocupações o fato de compre-
enderem que a escola é um importante espaço de aprendizado do convívio das
diferenças, não de forma que os alunos aprendam apenas com os professores,
mas também entre si.
É a escola lugar importante para não transformar diferenças em
desigualdades, e a escola pública brasileira tem sido, desde a Constitui-
ção de 1988, um importante instrumento de redução das desigualdades.
As novas gerações percebem isso, acreditam que a partir de seu sucesso
na escola poderão se inserir num mundo menos marcado pelas desigual-
dades, e as ocupações, não por acaso, acontecem num momento em que
isto está ameaçado por cortes, pelo discurso da crise, pela privatização dos

49
L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

espaços públicos, pela ética neoliberal de que cada um deve ser o empre-
sário de si mesmo, pelo estado mínimo como melhor opção, por isenções
fiscais combinados com cortes do bolsa família (...) (Seffner, 2017, p. 27).

Estes pequenos fragmentos de diálogos travados durante a ocupação de


uma escola, vinculados a análises de outros autores, exemplificam a forma como
entendemos que o movimento “ocupou-se” da questão da diversidade mediante
um exercício ético cotidiano. As aprendizagens, descritas pelos estudantes como
mais significativas do que as propiciadas pelas práticas escolares convencionais,
se deram no plano da experiência, em ações que se efetivam em um saber-fazer.
Para Varela (1992), a competência ética, diferentemente do julgamento moral,
consiste no reconhecimento progressivo da virtualidade do “si mesmo”, uma
certa disposição às transformações que acontecem em um constante acoplamento
com o mundo. A prática ética, presente nas ocupações, é, nessa perspectiva,
reconhecidamente, uma ética do fazer, de maneira que se constrói com um certo
nível de improvisação de acordo com as demandas apresentadas na convivência,
mais do que por normativas anteriores ou por um repertório planificado de
alternativas potenciais.
A partir da composição dessas modulações das políticas cognitivas advin-
das das políticas públicas que visam a uma educação para a diversidade e do
exercício ético e coletivo realizado nas ocupações, procuramos apontar pistas para
pensar formas de construção de conhecimento a respeito dos marcadores sociais e
das desigualdades que eles carregam. Diferentemente de uma política predomi-
nantemente informativo-comunicativa, na qual o conhecimento é tratado como a
aquisição de informações objetivas que independem da experiência do sujeito, as
ocupações tiveram na experiência, sobretudo da convivência, sua forma de possi-
bilitar ações éticas e não assumiram um tom prescritivo, como ocorre na maioria
das políticas. A experiência do movimento social, portanto, pode ajudar a pensar
estratégias em que a escola, sem dispensar a discussão de temas relacionados à
diversidade, possa fazê-lo considerando a natureza incorporada da aprendizagem.
Entendemos que ao lado da ampliação das questões que tangem à diver-
sidade e inclusão no currículo, nas disciplinas, o que é fundamental, deve-se
atentar às experiências vivenciadas na escola. Em termos gerais, é sobretudo isto
que ensinam os secundaristas, que educar para a diversidade se faz com o corpo,
aprendendo a conviver.

50
VERSÕES DA DIVERSIDADE

O contraste realizado permite indagar: Quais efeitos de subjetividade


que diferentes políticas cognitivas instituem no sentido da diversidade? Podemos
pensar que a atenção à diversidade pode levar, dependendo da abordagem que
tiver, paradoxalmente, para uma homogeneização dos modos de vida. Isso é,
uma tentativa de acabar com as diferenças tendo como referência a normalidade
em nome de uma igualdade de acesso. Surgem, com isso, práticas que legitimam
a diferença a partir de um discurso de tolerância que é levada à virtude: o que
importa é que aquele que acolhe aceite o outro, mas não necessariamente aquilo
que o marca como reprovável e no lugar de ser “reconhecível”. Essa posição
constrói uma imagem em que o diverso não somos nós: são os outros. E a tole-
rância cria uma hierarquia entre o virtuoso que tolera e o tolerado, o normal
que tolera o anormal.

POLÍTICAS COGNITIVAS E ÉTICAS EM AÇÃO


Procuramos descrever aqui duas modulações de políticas cognitivas que,
de formas diferentes, abordam a questão da inclusão, tendo como suas posições:
a tolerância ou o respeito à diversidade. Ambas carregam consigo concepções
e práticas a respeito do fazer ético, e em certa medida, têm como objetivo sua
construção. A primeira política, que denominamos de informativo-comunicativa,
predominante nas políticas públicas e nos textos oficiais, aposta na aquisição de
conhecimentos formais para a construção de um campo de saberes capazes de
reconhecer e de julgar ações e pensamentos discriminatórios.
A segunda, predominante nos movimentos de ocupação das escolas públi-
cas, não dispensa os conhecimentos formais e a sua discussão, uma vez que a
programação das escolas ocupadas – em grande medida abertas à comunidade
– foi repleta de oficinas que abordaram essas questões, mas a denominamos
de uma política do fazer-com ou fazer juntos. Foi possível observar que muitas
das práticas empreendidas pelos secundaristas não se reduziam ao objetivo de
modificar as relações e a ética presente na escola a partir de conhecimentos
declarativos, mas sim a partir da efetivação de práticas que criam um espaço
propício à virtualidade de si, a sua disposição e abertura a novos aprendizados e
deslocamentos, no âmbito coletivo.

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L a í s Va r g a s R a m m – C a r l o s B a u m – C l e c i M a r a s c h i n

Varela (1992) afirma que apesar da nossa tradição ocidental conferir


grande importância às regras explícitas para a ética, o desenvolvimento ético
baseia-se mais nas capacidades que conseguimos evocar em cada situação, a
partir da experiência, do que no reconhecimento delas. O autor, tomando como
ponto de partida ideias de Meng Tzu, afirma que o primeiro movimento que
fazemos ao tentar empreender um comportamento correto é a extensão. Procu-
ramos estender a uma nova situação a postura que tivemos em uma situação
anterior e que consideramos correta. Além da extensão, Varela (1992) cita a
atenção e a consciência inteligente. A atenção à nova situação permite que não se
faça simplesmente uma transposição, mas se possa criar algo novo, compor com
a imediatidade da situação que se apresenta, por meio da consciência inteligente.
Uma política cognitiva aberta à experimentação possibilita desestabilizar
certezas, mas, principalmente, constituir novos conjuntos de emoção que podem
ser estendidos a outras situações. Não se trata aqui de refutar uma política cog-
nitiva com base nas práticas da outra, mas de perceber que elas disparam efeitos
cognitivos diversos, e que o movimento estudantil secundarista, por intermédio
dos rastros que desenha na escola, pode ajudar a pensar criticamente as políti-
cas públicas para educação e diversidade. Isso é evidenciado no fato de que as
principais pautas dos movimentos de ocupação se relacionaram, justamente, às
políticas públicas para a educação, indicando formas pelas quais elas podem ser
construídas e enatuadas.

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52
VERSÕES DA DIVERSIDADE

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53
CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING
Clara Costa Oliveira

Mourning is a suffering experience different from pain one. Nevertheless,


we must note that although perceived as an experience at the inner dimension
of the person, the body is the place where mournig takes place. So, it occurs in
a body but also within the relational and symbolic dimensions of the person.
We are inserted in communities that have different meanings for pain, death
and suffering; which allow us to relieve their impact in one’s life. We reflect here
about some of these meanings.

SUFFERING
Mourning constitutes an experience of suffering that is commonly taken
as an example of the difference between suffering and pain. In the context of
this paper, however, we refer to the definition of suffering that is most accepted
by the medical establishment, described by Eric Cassell (2004, p. 32, 224) as “a
state of severe distress associated with events that threaten the integrity (intac-
tness) of a person. […] Suffering requires consciousness of the self, involves the
emotions, has effects on the person’s social relationships, and has an impact on
the body. Thus, the loss of someone we were attached to induces a perception of
internal disintegration whose intensity, as a general rule, is directly proportional
to the bond between the departed and the mourning person”.

A PROCESS TAKES TIME


Any person in mourning goes through a process, in which the self is not
always conscious of the loss of one’self. Time occupies an extraordinary dimen-
sion in the experience of mourning, be it saluto or pathological. This process
occurs with advances and setbacks, which are not necessarily negative for the
re-construction that the mourner is to undertake. By re-construction, we refer

55
Clara Costa Oliveira

to the process in which the grieving person – within the circumstances of her
cultural context, her community and the autopoietic (Maturana; Varela, 1980)
idiosyncrasy of her life story – is again capable of finding joy in rebuilding a
different life project (Alves et al., 2014).
For this to occur, the community (i.e. the other people who are meanin-
gful to the person in mourning) has a significant role to play, but which cannot
substitute the person’s need for seclusion and confrontation with her existential
void. To a varying extent, most people in mourning need moments of solitude.
However, this is not to be understood (Mounier, 1949) as social isolation for it
is generally beneficial that the people closest to them remain present in their
support (Derrida, 2003).
Whoever cares for someone in mourning should thus comprehend the
expression of mixed-feelings and dispositions (including feelings of abandon-
ment, irritation, contempt, etc.) of those in grief. The caretaker will require
generous amounts of knowledge, dedication, patience and even self-abnegation
in order to understand the various forms of expression of the process, which go
far beyond the typical crying and forced smiles. “Converging evidence from
several studies demonstrates that a search for meaning is commonplace in the
wake of bereavement” (Neimeyer, 2010, p. 75).

ILNESS AND MOURNING


The belief that the person in mourning is psychologically ill derives from
the profoundly pathological manner in which the so-called Western civilization
deals with sadness, especially nowadays. This type of suffering emerges and
submerges in each person within her spiritual and biopsychosocial unity and
identity.
Classical science conceptualizes and attempts to explain human phe-
nomena by dividing the person in sections, a habit inherited from the classical
dualism of subject/object (Damásio, 2000). Hence, we have the conviction that
the process of mourning occurs in the mind. This accords with the mind/body
dichotomy that is based on the above-mentioned dualism. The term “somatize”
emphasizes this dichotomy even further for it binds the mental state to some-
thing that is not the body (Groopman, 2004).

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CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING

Attempting to understand the suffering of someone in mourning as


something that occurs in the brain/mind as a autonomous res in regard to the
body (soma), which could then eventually be later affected by the former, dis-
respects the person (Pinto-Machado, 2006) who should be cared for instead of
evaluated as the total of the sum of hypothetical parts.
The dogma of Darwinian evolutionism circulates as a “proof ” that those
who survive are the strongest and the fittest to adapt to environmental change.
In the context of our subject, this cultural mythos has become disingenuously
embedded with economic liberalism, recognizable in the constant encourage-
ment from friends and acquaintances to “stay strong” during our mourning, in
the calls for “strength” at funerals and in the empty houses of the departed we
loved. “The medicalization of grief results in three major consequences inclu-
ding overtreatment and overdiagnosis, an expanded market for pharmaceutical
companies, and the loss of traditional and cultural methods of grieving that
are all expressed on both the macro- and microlevels (Bandini, 2015, p. 350).

CARE AND PATERNALISM


It is also in this context that we observe the condescending paternalism
with which the elderly in mourning are often treated. Situations susceptible to
cause mourning are sometimes hidden from them who are considered too weak
because of their advanced age to deal with reality. But such paternalism can also
manifest itself through the inverse outcome, that of old people being coldly and
insensitively informed about their losses with the assumption that they ought to
prepare themselves for what is in line for them, i.e., their own death or loss of
autonomy and integrity through the confinement in a senior home.
Rather than violently confronting old people with their loss or altogether
avoiding informing them, we would do better to learn from them strategies to
cope with the grieving process. An elderly but lucid person has resources to help
her that we ignore and, even if they do not mention it, older people are surely
keenly aware of their nearing demise (Ribeiro; Paúl, 2011).
When someone is grieving for an elderly relative, it is sometimes odd for
the surrounding community (including relatives and friends) that the matter has
not been resolved within a week’s time. Being the natural law of life, the sadness
of mourning for a person who has lived beyond the average life expectancy often

57
Clara Costa Oliveira

seems to burden the community. Unfortunately, however, the process depends


on the actual bond with the deceased, whereas the age factor remains fairly
unimportant.
Many people opt to offer their condolences to the family survivors not at
the funeral but at the 7th day mass, because in their mind the grieving process
will by then have entered a phase of acceptance and appeasement. This is why
the community members tend, with time, to progressively distance themselves
from the process. When the bereaved start to mention their loss and respective
personal impact, others will often want to change the subject, ironically not for
the affected person’s sake, but for their own!
Modern science allows the suppression of pain in almost any situation
and, likewise, it is a common stance that the suffering caused by mourning
can and should be anaesthetized. The ease with which people in mourning are
medicated has its root-cause in this hurriedness to return the person to a state
of “normalcy”, as if sadness were an abnormal enormity. Thanks to the hastened
prescription of numbing drugs, many people do not go through their mourning
process (Fauré, 2012), which increases the risk for pathologic mourning that in
turn is dealt with prolonged, or even increased, medication.
Talking about the situation countless times or the fixation with photogra-
phs of the departed are considered a normal part of the process. This is especially
the case during the first stages of mourning, which, although extremely variable
and case-dependent, usually develop over an average timeframe of six months
(American…, 2000).
Many people take a long time to part with the possessions of the decea-
sed, others with the ashes that are still a token of their presence. Every person
has their own pace, and a sufficiently prepared caretaker (with or without formal
training) will be able to distinguish signs of pathological mourning from simple
idiosyncratic manifestations of the grieving process (Delecroix; Forest, 2015).

THE LOVE OF MOURNING


Any process of grieving is rooted in a or in the perception thereof, of
someone. It relates to the definitive, or pre-announced as definitive, loss of some-
body. Such loss, however, only sets in motion a mourning period when we feel

58
CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING

bound to the “loved object”, to use Camões’ expression. It cannot be overstated


that biology, by itself, guarantees such a bond. Such situations are not easily
accepted in societies that take the heredity of biological love as granted, and thus
tend to be seen as abnormal, as a pathology of social or psychological character.

BODILY MOURNING
When people describe the experience of interior disintegration that
ensues from their grief, they will almost always mention specific parts of their
body they feel to be affected.
Indeed, the discovery of a specific area of the brain that produces chemi-
cal substances that metabolize throughout the whole body (connecting abstract
and emotional dimensions) has added weight to the suggestion by neuroscien-
tists that it is through the chemical production rather than the neuronal-electri-
cal processing that this connection is to be understood (Groopman, 2004). Thus,
when someone in mourning presents symptoms of pain and medical exams
(including auxiliary diagnosis exams) fail to produce conclusive results, the
formal caretakers should refrain from dismissing the need for medical attention.
The person in question may fail to display any organ or tissue-related disorder,
but a doctor may still be needed, even if just for support and reassurance since
the function of the doctor is to diminish human suffering, and not just to cure
physico-chemical, cellular or organ-specific anomalies.
The body of a person in mourning typically experiences different forms
of malaise precisely because we are persons, i.e. unique, irreplaceable and indivi-
sible beings in relation to our identity (Derrida, 2003). Therefore, to a greater
or lesser extent, changes on one level have repercussion on all the other levels.
The fact that the human being is also a symbolic animal means that this
dimension has equally an important role to play in the process of mourning and
its bodily manifestations. These are to be interpreted within the specific symbo-
logy of each civilization and society. In other words, discomfort or pain in a given
part of the body should be considered under the light of the cultural symbology
where the person is immersed. The most common complaints are related to
the person’s heart, the abode of the affective life as sung by our civilization’s
poets. Sometimes symptoms will be located in the intestinal area, where life is

59
Clara Costa Oliveira

maintained through the absorption of what nourishes and the elimination of


what does not. Pain around the neck and shoulders are also common in people
undergoing an especially difficult mourning period.

TIME DIFFERS FORM PERSON TO PERSON


The temporal dimension is among those that need to be better unders-
tood so that health professionals (or informal caretakers such as voluntaries or
members of religious groups) can be helped in face of the dying they accompany.
Many of these caretakers avoid spending too much time, or conversing longer
than strictly necessary, with the terminally ill that they regularly see (e.g. in
prolonged hospitalizations). They do this to minimize their attachment and
avoid subsequent grief. Even though this type of emotional contention is com-
prehensible, it causes great suffering to their patients and renders the process
more complicated from a professional point of view. Likewise, avoiding the rela-
tives and friends of dying patients also constitutes neglect of the deontological
responsibility to care for the suffering of these people.
The drama of such caretakers is not being adequately supervised and
integrated in teams in which they can effectively share, receive and be received.
In these contexts, confessing emotions is often perceived as a sign of weakness,
of being unworthy as a caretaker. Learning to manage emotions instead of sup-
pressing them is practically taboo among health professionals (Pinto-Machado,
2006), especially among doctors. Religious carers and voluntaries curiously seem
to find more immediate possibilities for the supervision and management of their
emotions (Encarnação; Oliveira; Martins, 2015).
The space we have permitted others to occupy within us is, therefore,
very often associated to the time we have spent with them during the process
of expecting their nearing death.

AVOIDING PATHOLOGICAL MOURNING


There are, however, endless situations in which these variants are inter-
twined, confounded, ignored, omitted. Let us know consider some instances that
could potentially be considered as types of pathological mourning.

60
CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING

Let us begin with that classical story by Joyce in which the husband
leaves home to buy cigarettes and never comes back… nor alive, nor dead! For
decades, often until their own death, those left behind will struggle to begin
mourning for somebody who, although no longer there, could return at any
moment.
Another situation of suspended mourning, and an increasingly common
one, is that of people who, in spite of their real attachment, are geographically
distant from one another. When one of them dies, or simply exits from the rela-
tionship, the process of mourning may not occur normally due to the physical
distance, which can be further aggravated by the suddenness of the event (at
least from the mourner’s perspective). With the current situation of extreme
mobility and chaotic migration movements, thousands of people are bound to
find themselves in this situation (as was the case after WWII). Be it for financial
or political reasons, many migrants are not able to travel to the regions where
their beloved ones died or disappeared without trace.
A less common situation, although not exactly rare, is when people lose
others with whom they were secretly attached, e.g., long-time lovers. In these
cases, the grieving person may have some emotional support, but will not be
able to normally access the mourning community as such, which may disturb
the management of the grieving process. Indeed, the impossibility of commu-
ning with others who share the same grief is conducive to pathological mour-
ning. The mourner will then attempt to confide with health professionals and
thus create a sort of alternative mourning community. It may sound absurd,
but what a person expects from her doctor and respective team is empathy for
the suffering she experiences, in what constitutes a correct reading of what the
professional (and human) function of her caretakers should in fact be.
The most common (and effective) strategy to try to normalize the mour-
ning of people involved in this sort of context consists in the symbolic ritua-
lization of the experienced loss. This occurs through the elements that to the
mourner signify or are associated to the state of being in mourning, such as
wearing clothes of a certain colour, or reuniting the mourning community so
that members can share about the past and the events, feelings and personal
impact caused by the loss of the person being mourned.

61
Clara Costa Oliveira

MOURNING RITES
The fact that people are embedded in communities that attribute ritu-
alized meanings to suffering and death contributes to relieve the personal toll
thereof to a considerable extent. Those meanings are multiple but depend on
the contextual specificity of individual communities to be successfully adopted
and recognized as such.
Mainly influenced by the work of Le Breton (1995), we now present a
list with a few examples of such meanings:
1 – Suffering as protective of greater evil. This is observable, for instance, in
the raising of children, when they are intentionally exposed to situations
that involve suffering, so that they may progressively incorporate ritualized
behaviours that integrate it within a certain context. Hence the wisdom of
taking children to funerals of people that belonged to their wider commu-
nity, including people that they might not have known at all or just from
sight, long before they are confronted with the death of someone they love.
2 – Suffering as redemptive sacrifice. Very common in Mediterranean cultures or
in regions they colonized, it is based on the belief that suffering is necessary
to acquit past wrongdoings. This symbolic interpretation helps many people
in accepting the prolonged suffering of terminal patients.
3 – Suffering as overcoming of one’s self. This interpretation occurs mainly in
communities that value people according to their capacity to face and over-
come afflictions that appear too much to bear. This dimension is often at
the root of pathological mourning because of its negation or mere apparent
acceptance.
4 – Suffering as the price of longevity. From this perspective, the impact of
suffering is diminished by acknowledging it as the “price” to pay in exchange
for a long life. This would correspond to a salutogenic dimension through
the acceptance of suffering.
5 – Suffering as shame. This is typical of situations in which the suffering is
caused by marginalization due to social difference (like poverty, homosexu-
ality, having an infectious disease, etc.) and is often used as a self-justification
for the abandonment of terminal patients.

62
CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING

6 – Suffering as educative of the precarious condition of the human being (Mon-


taigne, 2010) i.e., as an instrument through which life reminds of our mor-
tality and thus stir us from the illusion of being eternal as pointed out by
Kant (2008).
7 – Suffering as recognition. Currently a popular idea, it is derived from the
common belief that those who suffer become better people from an ethical
point of view. As a consequence, many people (often individuals who have
been diagnosed with serious illnesses) display their suffering ostensibly and
recurrently so as to benefit professionally, affectively or emotionally.
8 – Suffering as a manifestation of fear or some other basic emotion. This occurs
frequently in association to the anticipation of difficult situations in the near-
-future. In the context of mourning, it corresponds to anticipated grieving,
i.e., when the mourning begins before the actual passing of the person to
whom we are attached.
9 – Suffering as moral pain. Very frequent with people who carry an unack-
nowledged guilt and do not feel at peace with themselves, this meaning
constitutes an obstacle to the process of mourning.
10 – Suffering as medical failure. This refers to situations in which health profes-
sionals neglect and fail to care for patients with incurable diseases because
of their incapacity to treat them, thus generating additional suffering. This
phenomenon is related to the unsuccessful mourning to which health pro-
fessionals are often subjected (Douglas et al., 2015).
11 – Suffering as the price of living. Often unconsciously, it is experienced in
people who live without accepting themselves, without a life project of
their own, etc. It is an unfortunate situation that results in the most exis-
tentially difficult type of mourning: the mourning of one’s self.
12 – Suffering as a mechanism for maintaining identity. Although this may seem
paradoxical at first sight, suffering can be put to good use as a process of
personal self-organization, i.e. as reinforcement of a victimizing significa-
tion pattern. Curiously, it constitutes a salutogenic dimension and may
avoid the situation mentioned in the previous point.

63
Clara Costa Oliveira

13 – Suffering as trigger for disintegration of the self. This form of suffering


occurs when people are undergoing a phase of profound interior transfor-
mation and therefore need a more flexible pattern of self-organization if
they are to survive. Its successful overcoming requires both the mourning
of one’s self and the capacity to bury the people who had importance in
one’s life. This type of suffering symbolizes the possibility of progressing
onto other levels of attributing meaning in and to the world. It occurs
exclusively through the process of mourning for people to whom we were
very attached, and who are usually still living.

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64
CARING FOR MOURNING-RELATED SUFFERING

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RIBEIRO, O.; PAÚL, C. Manual de envelhecimento ativo. Lisboa: Lidel, 2011.

65
TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO:
Processos de Individuação
e Reconfiguração da Vida Humana
Maria de Fátima de Lima das Chagas
Nize Maria Campos Pellanda

Na contemporaneidade vivemos um momento de grandes instabilidades


políticas e sociais, em que direitos antes garantidos estão sendo negados a muitos
seres humanos, especialmente aos que são atendidos pelas redes de assistência
social, saúde e educação. Dessa forma, torna-se ainda mais urgente a construção
de redes para disseminar a amorosidade e o fortalecimento das subjetividades
humanas em busca de uma nova (re)invenção de si e dos mundos que queremos
viver.
A leitura de Simondon (2008) ajuda-nos no entendimento de que estamos
sempre em busca de resolver tensões, agindo sobre nós mesmos na resolução de
incompatibilidades e desigualdades, queremos o equilíbrio pertinente ao sistema,
dando mais e mais espaço para as potencialidades que habitam o sistema. Hum-
berto Maturana, contribui destacando que construímos a realidade na lingua-
gem, na convivência, nas interações com outros indivíduos, em que “essa ligação
do humano ao humano é, em última instância, o fundamento de toda ética como
reflexão sobre a legitimidade e presença do outro” (2001, p. 269).
Nesse aspecto, a educação pode ser compreendida como prática social
caracterizada como ação de grupos de sujeitos que se individuam, se reinventam
na relação com o outro, em experiências cooperativas em diversos ambientes de
aprendizagens dentro e/ou fora da escola. Essa relação de cooperação, conside-
rando o outro como parte da nossa unidade, pode acontecer com (outros) sujeitos
humanos e/ou (outros) sujeitos técnicos.

67
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s – N i z e M a r i a C a m p o s P e l l a n d a

Nize Pellanda (2012), estudiosa da educação e das tecnologias, esclarece


que estamos em uma nova era de máquinas cada vez mais complexas, máquinas
que colocam os seres humanos em um acoplamento de forma que, neste proces-
so, os sujeitos se transformam virtualizando-se a cada momento na interação,
nesse devir.

TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO:
CONSTITUINDO REDES DE AFETO, SUBJETIVAÇÃO E DE INVENÇÃO DE SI

[...] um espaço de convivência fundado no compreender a natureza bio-


lógica, no entender que não podemos distinguir entre ilusão e percepção.
Nele não há tolerância, mas respeito. O respeito é diferente da tolerância,
porque a tolerância implica na negação do outro, e o respeito implica em
se fazer responsável pelas emoções frente ao outro, sem negá-lo (Matu-
rana, 2001, p. 38).

Vivemos em rede, seja de forma física ou virtual estamos vivendo em uma


sociedade conectada, em busca de interações que nos fortaleçam subjetivamente
como seres humanos. Para Arendt (2007, p. 31), “todas as atividades humanas
são condicionadas pelo fato de que os homens vivem juntos”. Segundo Spinoza,
uma das coisas úteis, e, portanto, boas, para o homem, é a união com outros
homens, ou seja, a sociedade.

E útil aos homens, antes de mais nada, ter relações entre si, apertar-lhes
os laços e ligar-se de maneira que possam formar um todo bem unido e,
de uma maneira geral, fazer com que mais sólidas se tornem as amizades
(Spinoza, 2003, p. 360).

Neste percurso de buscar compreensão de si e do mundo, o ser humano


em um processo de individuação, de vir-a-ser, estabelece interações com outros
sujeitos, com técnicas e instrumentos que favoreçam sua autonomia na inter-
pretação de sua própria existência. Uma autonomia vista como um processo a
partir do qual o ser humano evolui para um estado de ampliação da consciência,
estabelecendo interações coletivas sem perder de vista seus entendimentos, obje-
tivos, projetos e anseios produzidos por ele, em virtude da sua condição humana.

68
TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO

Assim, em movimentos de interações complexas, vamos estabelecendo


redes de afeto, em que na ação, na linguagem, produzimos o mundo que criamos
com os outros, e é neste ato de convivência, de conexão, que surge a humani-
dade.
Nós sabemos pela nossa vida humana cotidiana que, ao nos movermos
de uma emoção para outra, mudamos nosso domínio de ações, e isto
vemos como uma mudança de emoção. Em outras palavras, é a emoção
sob a qual agimos num instante, num domínio operacional, que define
o que fazemos naquele momento como uma ação de um tipo particular
naquele domínio operacional. Por este motivo, se queremos compreender
qualquer tipo de atividade humana, devemos atentar para a emoção
que define o domínio de ações no qual aquela atividade acontece e,
no processo, aprender a ver quais ações são desejadas naquela emoção
(Maturana, 2011, p. 30).

Na escola também constituímos encontros, laços de emoções. Redes


de conversas, mesmo que em breves momentos de intervalo. Redes de afetos,
mesmo que aos cochichos em (re)cantos. Redes virtuais, mesmo que o acesso à
tecnologia seja limitado e escondido com as mãos tateando dentro da mochila.
Enfim, não desfazemos nossas redes, porque esse pertencimento social nos faz
exercitar a autoria no devir humano.
Neste contexto, Turkle (2005, p. 261) observa que estamos vivendo em
uma sociedade em rede, e uma das chaves da comunidade em rede é a ausência
do transitório, quando se tem a possibilidade de compartilhar uma história, uma
memória, com pessoas diferentes, em lugares distintos, e a continuidade da rede
traz a possibilidade de construir normas sociais, rituais, sentidos para grupos
específicos. Em uma rede, aprende-se junto a se fazer confiança na medida em
que experiências são partilhadas.
As redes são constituídas de muitas formas, algumas articuladas nos
encontros em um mundo físico (presencial), outras em uma interface digital, ou
de forma híbrida. As redes presenciais como espaço de conversas, de exercício
de autoria, nem sempre são possíveis devido a barreiras espaciais e temporais.
Aquelas articuladas na Internet, como as redes sociais, permitem uma conec-
tividade entre pessoas que nem sempre se conhecem de forma presencial, mas
que a partir de interesses comuns interagem e produzem juntas ações/afetos.

69
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s – N i z e M a r i a C a m p o s P e l l a n d a

Em rede, na interação com humanos e também com outras tecnologias,1


produzimos não só conhecimentos, mas a nós mesmos em um contexto de sub-
jetivação, de individuação, refletimos sobre as formas que buscamos para engen-
drar, para aprender, para experimentar mudanças cognitivas, afetivas e sociais
em nossos contextos de vida. Assim, nas interações, como professores, criamos
outros modos de nos relacionarmos com tecnologias digitais na experiência
inventiva de aprender/viver que nos constitui humanos. Quando mencionamos
inventiva, trazemos um conceito de invenção de Kastrup quando afirma que
“[...] a invenção é de modo recíproco e indissociável, invenção de si e invenção
do mundo” (2004, p. 38).
Seguiremos na escrita agora olhando para o tema educação e tecnologia,
a partir de uma aproximação com conceitos de Gilbert Simondon e Humberto
Maturana.

Cultura técnica e escola:


tecendo pensamentos, encontros e entendimentos
Gilbert Simondon nasceu em 2 de outubro de 1924 e, desde a infância,
manifestava seu interesse pelo modo como ocorrem as invenções técnicas e,
ainda, pela maneira como a sociedade se posiciona perante as mudanças tecnoló-
gicas. Exerceu a docência em Liceus e em Escola Normal Superior e dedicava-se
a sua formação nos campos da Física e da Filosofia, tendo sido aluno de filó-
sofos importantes, entre os quais destacamos Georges Canguilhem e Maurice
Merleau-Ponty.
Em 1958, Simondon defende sua tese de Doutorado organizada em dois
volumes: Du mode d’existence des objets techniques e L’Individuation à lalumière des
notions de forme et d’information, passando a assumir a docência na Faculdade de
Letras da Universidade de Poitier, até 1963; depois na Universidade de Sorbon-
ne, na qual lecionou Letras, Ciências Humanas e Psicologia. Buscou, ao longo de
sua trajetória, contribuir para o desenvolvimento de um novo modo de percepção
da tecnicidade, ao trabalhar com os processos de aprendizagem de estudantes

Destacamos a expressão outras tecnologias porque consideramos o corpo, a linguagem, como tecno-
1

logia, em uma discussão ampliada na perspectiva de Jack Goody (2007) e Nize Pellanda (2012).

70
TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO

sobre a cultura técnica. Nesse entendimento, a relação das pessoas com a técnica
é uma relação que as constitui em termos não apenas cognitivos, mas também
afetivos. Ampliando a discussão sobre a técnica, a tecnicidade, Virgínia Kastrup
nos ajuda a compreender quando destaca:

A técnica não é somente o terreno dos objetos artificiais, mas potência


de artificialização da cognição e de virtualização da inteligência. Não
artificializa uma natureza dada, mas reverbera sobre a natureza da cog-
nição, natureza em si mesma artificiosa e inventiva, que a vida virtual
prepara (1999, p. 183).

Simondon, engenheiro e filósofo, desenvolveu sua tese sobre a existência


dos objetos técnicos na relação com o ser humano e nos esclarece sobre a técnica
como ação humana e sobre a humanidade presente nas máquinas inventadas
para a ampliação da ação humana.
Uma importante discussão sobre autoria e redes de aprendizagens nos
acoplamentos humano-máquina nos é permitida quando estudamos acoplamen-
to estrutural de Humberto Maturana, a cultura técnica como inseparável da
história da humanidade e o processo de construção do conhecimento com a
fabricação de objetos que Espinosa nos apresenta ao exprimir que “[...] a inte-
ligência pela força natural fabrica para si instrumentos intelectuais” (Espinosa,
2007, p. 20). Nestes termos a relação que se estabelece entre humano-máquina
assume uma importância na produção do conhecimento e na configuração da
própria vida humana.
Para Maturana (2009, p. 29), “a educação como sistema educacional
configura um mundo, e os educandos confirmam em seu viver o mundo que
viveram em sua educação”. Segundo o mesmo autor, “o ato de educar se constitui
no processo em que o sujeito convive com o outro e, ao conviver com o outro,
transforma-se espontaneamente, de forma que seu viver se faz mais congruente
com o do outro no espaço de convivência”, neste caso – a escola. Nesse entendi-
mento, a produção de saber emerge nos encontros e nesses encontros os sujeitos
se reinventam, tecem juntos atos complexos em um devir histórico.

71
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s – N i z e M a r i a C a m p o s P e l l a n d a

Para Gilbert Simondon, a própria história evolutiva do homem coincide


com a história da técnica. Assim, as tecnologias desenvolvidas em cada época
e os saberes envolvidos para sua existência contribuíram para a nossa própria
existência. Nesse sentido, a técnica não se opõe ao sujeito, mas podemos afirmar
que a técnica é parte do processo de vida humana.
A oposição entre a cultura e a técnica, entre o homem e a máquina, é
falsa e sem fundamento; ela esconde apenas ignorância ou ressentimento.
Ela mascara atrás de um humanismo fácil uma realidade rica em esforços
humanos e em forças naturais e que constitui o mundo dos objetos téc-
nicos, mediadores entre a natureza e o homem (Simondon 1989, p. 9).

Há um certo descrédito na ideia de vincular o progresso técnico a melho-


rias no viver humano, devido ao que ocorreu nas últimas duas guerras mun-
diais, estando a técnica associada à destruição da liberdade e da própria vida
dos sujeitos. Para o autor, é importante entender como acontecem as relações
entre as ações das pessoas com os objetos técnicos que em conjunto desenham
experiências de autoria.
A alegria que se sente ao circular entre as construções novas é, ao mesmo
tempo, técnica e estética. O sentimento técnico-estético parece ser uma
categoria mais primitiva que o próprio sentimento estético, ou o aspecto
técnico considerado sob o ângulo estrito da funcionalidade, que é empo-
brecedora (Simondon, 1998, p. 265).

Gilbert Simondon (1989, p. 12), em seu livro Du mode d’existence des


objets techniques, afirma que existe uma recusa do homem em atribuir uma maior
importância aos objetos técnicos. Essa resistência acontece em razão de ele não
compreender o modo de existência desses objetos, vendo-os muitas vezes numa
dimensão utilitarista, de domínio, de uso, quando o correto seria vê-los como
prolongamento das mãos humanas, em uma dimensão de devir coletivo.
Com o início da presença do homem no mundo e sua busca de organi-
zação como sociedade, este produz modos e objetos que favoreçam seu agir na
individualidade e na coletividade. Em cada época histórica, os grupos sociais
constroem tecnologias/ferramentas que conversem com seus projetos, com seus
desejos, em busca especialmente de conservação da sua condição humana. Assim,
a presença do homem nas máquinas é uma invenção perpétua. O que reside nas

72
TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO

máquinas é da realidade humana, do gesto humano fixado e cristalizado em


estruturas que funcionam, contudo a discussão não é centrada nas máquinas
isoladas, ou no humano isolado, mas na relação que se estabelece.
E, se o ser humano continuar sendo central para nós, seres humanos, a
tecnologia será um instrumento para a sua conservação, não o que guia
o seu destino. Não se trata de opor-se ao desafio tecnológico, mas de
assumir a responsabilidade do uso da tecnologia no devir na e conservação do
humano. (Maturana; Rezepka, 2008, p. 84).

Neste sentido, em que as tecnologias emergem de projetos humanos


e, por isso, carregam em si uma humanidade que permite acoplamentos no
viver cotidiano, de forma a contribuir inclusive para a conservação da condição
humana, voltamos a citar Simondon, quando este afirma que “uma ferramenta
pode ser bela na ação, logo que ela se adapta bem ao corpo que ela parece pro-
longar de maneira natural e ampliar de alguma maneira seus caracteres estrutu-
rais” (Simondon, 1989, p. 186). Essa relação homem-máquina aqui destacada é
realizada quando o homem, em interação com a máquina/tecnologia, aplica sua
ação ao mundo natural; a máquina é, então, veículo de ação e de informação,
numa relação em três termos: homem, máquina, mundo, a máquina estando
entre o homem e o mundo.
Pensando no que nos ressalta Simondon (1989), os objetos técnicos aco-
plados ao indivíduo passam a ser vistos como uma alternativa de consolidar uma
organização dos sistemas psíquicos, afetivos e, consequentemente, sociais. Isso
nos lembra que não somos seres prontos, acabados, mas vamos nos constituindo
no devir, na complexidade, nos encontros que estabelecemos conosco, com outros
humanos, outras culturas e com tecnologias, em processo de individuação.
Assim, sendo a modernidade o tempo das fragmentações, neste estudo
com um destaque para a separação do humano e da cultura técnica no processo
de viver e de aprender, refletimos sobre as possibilidades de perceber o contexto
escolar para além de um espaço revestido pelo cartesianismo que sistematizou
um paradigma científico a partir da não aceitação do erro, do afastamento do
sujeito dele mesmo na busca de “aprender cientificamente”. Queremos destacar
que ainda podemos construir entendimentos entre educação e tecnologia, fora da
fragmentação sujeito/objeto; eu/outro; corpo/alma; cognição/emoções; exterior/
interior, tão presente nas experiências educativas escolares.

73
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s – N i z e M a r i a C a m p o s P e l l a n d a

A DIMENSÃO ONTOLÓGICA DA TECNOLOGIA NO CONTEXTO ESCOLAR

A escola que temos é uma escola onde não flui a vida, onde não apren-
demos a viver porque faltam nesses espaços os elementos fundamentais
para essa construção: as emoções, as interações solidárias, autoria. Se o
modelo da vida é o modelo de rede e se conhecer passa por autoria, como
nos sugere a teoria que estamos tratando, então o que precisamos é de
um ambiente rico de perturbações estéticas e amorosas, um espaço de
convivência. Ou seja, um ambiente tal que possamos sempre considerar
“o outro como legítimo outro”, como costuma dizer Maturana (Pellanda,
2004, p. 17).

A escola em seu contexto histórico, quando assume a função de formar


os sujeitos aprofunda marcas que atribuem ao sujeito um distanciamento dele
mesmo. A escola desvincula de seus espaços educativos o encantamento, o dina-
mismo das relações na condição de dispositivos de aprendizagem.
O mundo foi desencantado. Vivemos um momento extremamente difícil
da história da humanidade, como culminância de um longo processo no
qual perdemos a capacidade de ver, de ouvir, de sentir. As emoções e a
imaginação, elementos constituintes de realidade e de conhecimento, são
relegadas a um plano inferior. Enfim, perdemos a capacidade de conhe-
cer, o que compromete nosso viver. Trago aqui a ideia de conhecimento
ampliado, para muito além do racional, do individual, do cérebro, do
humano. Conhecimento é, antes de tudo, inseparável do processo de
viver (Pellanda, 2004, p. 13).

Pellanda (2004, p. 13), ainda nos traz sabiamente que “sem encantamen-
to não há conhecimento”, o que nos faz pensar a aprendizagem na linearidade
imposta no ambiente escolar (ensinar-aprender), em que o conhecimento e o
fenômeno do viver estão separados. Isso nos faz pensar também nas explicações
do biólogo Humberto Maturana quando em seu livro A Árvore do Conhecimento,
escrito com Francisco Varela, define a vida como um processo permanente de
conhecimento, identificando o viver com o conhecer.
Sua teoria da cognição, conhecida como Biologia da Cognição, coloca os
seres vivos como coprodutores do mundo, seres em constante processo cognitivo,
condição essencial para a conservação da vida, em que “aprender é viver”. Sobre

74
TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO

a relação entre professores e alunos, e a relação dos alunos entre si, Maturana
acredita que uma educação baseada em respeito e aceitação nega a competição,
por que a competição nega o outro em sua legitimidade.
Nessa perspectiva, trazemos à discussão a abertura de outros espaços
na escola para convivência, para produzir afeto, incluindo espaço na interface
digital. A Internet traz para o ambiente escolar possibilidades para o exercício de
autoria, de modo a integrar dimensões do humano na relação com as tecnologias
em encontros e construções subjetivas de aprendizagem num processo de autoria
coletiva. Desse modo, interagindo, respeitando o outro como legítimo outro,
respeitando a relação que os sujeitos estabelecem com ferramentas, espaços e
consigo mesmos, abrimos espaços para a vida dentro da escola, na qual
[...] educar é um processo de transformação na convivência de todos os
atores envolvidos e, se queremos que nossos meninos e meninas cresçam
como seres autônomos no respeito por si mesmos e com consciência
social, temos de conviver com eles respeitando-os e respeitando-nos na
contínua criação de uma convivência na colaboração, a partir da confian-
ça e do respeito mútuos (Maturana, 1996, p. 31).

Compreender os sujeitos e suas subjetividades no contexto da educação,


com possibilidades de estes serem ouvidos, falarem, inventarem a si mesmos
constantemente nas experiências de interações com pessoas e ferramentas na
constituição de percursos de vida e de conhecimento é um grande passo para
que a escola seja um ambiente rico de perturbações estéticas e amorosas, um
verdadeiro espaço de convivência.
Para Bergson (1979), podemos pensar na interação dos sujeitos na própria
experiência, na configuração do viver, na produção de percursos enquanto pro-
cessos de construção do próprio universo, no qual não podemos assumir posição
de origem, nem de fim, mas podemos pensar em termos do inacabado, da
criação, do tempo e da transformação.

A tecnologia digital no contexto da formação continuada de professores


Neste percurso de invenção de si, do conhecimento e do mundo em
que operamos na congruência com o outro, refletimos o processo de formação
continuada de professores na contemporaneidade: Há nesses fazeres formativos
espaços de autoria e legitimação dos professores no processo de aprendizagem?

75
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s – N i z e M a r i a C a m p o s P e l l a n d a

Percebemos ainda no sistema de ensino brasileiro uma escola dada, entre-


gue pronta para uma atuação organizada anteriormente para a atuação dos
sujeitos que dela fazem parte. Os cursos de formação continuada vêm com guias,
com passos a serem seguidos em forma de tutorial. As atividades vêm prontas,
os pensamentos estão intrínsecos e as ordens de manutenção da lógica capitalista
estão no não dito, nas entrelinhas.
No site do Ministério da educação – MEC – encontramos essa linguagem
impositiva para a inserção de tecnologias na escola, com guia pronto direcionado
de forma a deixar a autoria do professor totalmente fora do seu percurso de for-
mação, este sendo apenas um participante das indicações. Vejamos a descrição
do Guia de Tecnologias espaço produzido para discutir sobre tecnologias.
O Guia de Tecnologias é composto pelas tecnologias pré-qualificadas em
conjunto com as tecnologias desenvolvidas pelo MEC. Com essa publicação,
o MEC busca oferecer aos gestores educacionais uma ferramenta a mais
que os auxilie na aquisição de materiais e tecnologias para uso nas escolas
públicas brasileiras.2

No mesmo site temos também o Programa Nacional de Tecnologia


Educacional (ProInfo), que destaca seu objetivo de promover o uso pedagógico
da informática na rede pública de Educação Básica e para isso leva às escolas
computadores, recursos digitais e conteúdos educacionais.
Nestes e em outros programas para a inserção de tecnologia na escola o
exercício de autoria, a presença do professor na invenção dos cursos e também
de si são descartados. Para aproximar professor e tecnologia em seu devir, é vital
que sua autoria, seu percurso de vida componha esse fazer.
Esse exercício de autoria no viver de professores emerge de um processo
complexo no qual o sujeito não se adapta mais ao mundo dado, aos mecanismos
de controle, de ordem, de estabilidade; acontece quando por meio da invenção
criam sua condição de autor. Os professores na autoria tecem escolhas de um
modo de viver, configurando-as conforme os sentidos sobre o aprender/viver a
escola. Na autoria tecem um viver em conversações, de modo que cada sujeito
é único, mas nas interações continuam se (re)inventando.

Transcrição. Disponível em: <www.mec.gov.br>.


2

76
TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO

O que temos, porém, na concretude do fazer na escola? Muitas vezes as


relações estabelecidas mostram-se em meio a mecanismos de repetição, de ouvir
e obedecer, “sem interferir”, preceitos daqueles que estão à frente, que coorde-
nam não só o fazer, mas a vida dos sujeitos que compõem o contexto da educação
escolar. O espaço da escola para o professor quase sempre não sugere a pesquisa,
ou possibilidades de questionar para a produção de perguntas.
As vozes? Onde estão as vozes dos professores? Muitos não ousam ques-
tionar ou “atrapalhar” o que há de concreto na estrutura da escola porque isso
os deixaria “marcados” como aqueles que são subversivos ao sistema. Os que
perguntam, os que duvidam, questionam, são vistos na maioria das vezes como
aqueles que atrapalham, que não contribuem com o bem comum coletivo. Trata-se,
de acordo com Nize Pellanda, do “autoritarismo epistemológico: alguém tem
o direito de dizer e alguém tem que ficar calado” (Pellanda; Pellanda, 1996, p.
238).
Desse modo, um caminho diferente da linearidade na escola, só por
arrombamento. Mexer na organização da estrutura da escola que tende a se
respaldar na “ordem pela ordem” ao invés de perceber a “ordem pelo ruído”
(Von Foerster, 1996), é algo que ainda buscamos. Buscamos porque um espaço
educativo sem ruído, sem perturbações, sem o olhar do observador mudando
uma realidade “dada” mantém uma lógica de um fazer que distancia a autoria
e amplia o autoritarismo. Um autoritarismo que é percebido dentro e fora das
salas de aula, nas quais os estudantes repetem a mesma lógica.
Em outra lógica, Maturana nos mostra que na escola é importante per-
ceber a aprendizagem em uma outra perspectiva, na perspectiva de construção
coletiva, de autoria na convivência com o outro porque “[...] nos transformamos,
em congruência” (Maturana; Varela, 2011).

OUTRAS CONSIDERAÇÕES
Vivemos momentos de instabilidades econômicas e sociais. Na escola
vivenciamos instabilidades que são percebidas nas relações cada vez mais arbi-
trárias, com menos afeto, menos interações. Nesse sentido, o acoplamento tec-
nológico entre os sujeitos e tecnologias em percursos de autoria constitui outros
modos de invenção, de constituição da aprendizagem.

77
M a r i a d e Fá t i m a d e L i m a d a s C h a g a s – N i z e M a r i a C a m p o s P e l l a n d a

Na formação continuada, quando os professores se atualizam, o exercício


de autoria potencializa seu devir professor. Afinal, como destaca Lévy (1999, p.
169): “os indivíduos toleram cada vez menos seguir cursos uniformes ou rígidos
que não correspondam às suas necessidades reais e às especificidades de seu
trajeto de vida”. Sabemos que a tecnologia por si só não efetiva a aprendizagem
em contextos de formação, pois pensar assim seria colocá-la numa dimensão
tecnocrática. Por isso ressaltamos que a tecnologia acoplada ao professor pode
desencadear emoções que impulsionam uma nova relação com a aprendizagem,
consigo mesmo, potencializando processos de individuação e de reconfiguração
da vida.
Na contemporaneidade alguns professores ainda reagem negativamente à
inserção de objetos técnicos na educação, especialmente porque muitas vezes esta
é uma demanda imposta, e, em alguns casos, a aproximação com as tecnologias
ainda não aconteceu efetivamente. Por outro lado, os estudantes anseiam por
interações digitais na produção da aprendizagem. Percebemos neste entendi-
mento que a aproximação de professor e tecnologia potencializa também uma
aproximação com os alunos. Nesse contexto, a relação tecnologia-sujeitos-meio
reconfigura as interações, as formas de exercício de autoria em diversas nuances
e ambientes, perpassando espaços físicos, horários fechados, como são os esta-
belecidos na escola.

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TECNOLOGIAS DIGITAIS E EDUCAÇÃO

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79
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80
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA:
O Fenômeno da Conversão de Pacientes
de Saúde Mental em Artistas
Gerciane Maria da Costa Oliveira

AS TRANSFORMAÇÕES NOS CAMPOS DA ARTE E DA PSIQUIATRIA


No ano de 2015 o Museu de Arte de São Paulo (Masp) expôs uma
centena de desenhos feitos por pacientes do Hospital Psiquiátrico do Juquery,
localizado em Franco da Rocha, São Paulo. Esses trabalhos que foram doados
ao Museu no ano de 1974 pelo médico, crítico de arte e músico paraibano
Osório Thaumaturgo Cesar (1895-1979). Ao serem divulgados em uma das mais
importantes instituições museais do país, expressam o movimento de institucio-
nalização de produções realizadas por pacientes de saúde mental pelo sistema
oficial das artes no Brasil.
Tal dinâmica de legitimação inscreve-se no lastro histórico da concomi-
tante transformação dos campos da Psiquiatria (advinda com a reforma da esfera
da saúde mental) e do campo das artes (promovida pela vanguarda moderna que
institui novos cânones balizados pelos valores da criação, autenticidade e origi-
nalidade). Os discursos que irão se produzir em ambos os domínios permitirão
interfaces e atravessamentos entre esses mundos, conformando limites cada vez
mais indefinidos entre as identidades sociais de artistas e pacientes.
Colocando ênfase sobre as mudanças que se operaram no campo das artes
e como esta possibilitou a conversão de pacientes de saúde mental em artistas,
vê-se que com a ruptura da arte moderna aos padrões e regras instituídos pela
arte acadêmica, o predicado da inovação passa a arbitrar sobre aquilo que irá
se denominar de objeto de arte. Nesse sentido, sob o regime do “moderno” a
criatividade é elevada como predicado indispensável na denominação do que
seria ou não uma obra artística.

81
Gerciane Maria da Costa Oliveira

Com efeito, o verdadeiro artista não só reproduz friamente, ele cria,


imprimindo na arte a sua experiência singular que é irredutível a qualquer
equivalência; objetivando em uma espécie de marca pessoal, distinta, as suas
vivências únicas e peculiares, as quais o trabalho da crítica busca “reconstituir”
tecendo uma leitura aproximativa entre esta dupla dinâmica de particulariza-
ção: a artística, na ordem do estilo, e a biográfica, em torno da pessoa (Heinich,
1991, p. 40).
Vincula-se, desta maneira, o processo de criação artística à individuali-
dade e à subjetividade. É neste sentido que as abordagens psicológicas ganham
terreno como modelo interpretativo de compreensão da criação estética. A psi-
canálise, campo clínico emergente no final do século 19, traz como pressupos-
to central a criatividade do indivíduo como resultante do conflito oriundo da
repressão dos desejos libidinais. Sob este prisma, faz-se uma ligação imediata
entre a obra do artista e sua vida psíquica considerando, especialmente, nesta
associação, a fase da infância. Para Freud,

em geral, embora todas as crianças sejam capazes de produzir fanta-


sias infantis, a maioria delas simplesmente as reprime; os neuróticos
são incapazes de controlá-las, mas os indivíduos criativos, os mais raros,
conseguem usá-las para obter equilíbrio psíquico, sublimando-as ou
direcionando-as para canais de criatividade (apud Zolberg, 2006, p. 183).

Para outras escolas da Psicologia, como as abordagens sociopsicológica e


a Psicologia Cognitiva, a dimensão criadora do sujeito pode ser entendida con-
siderando questões de desenvolvimento cognitivo ou de afetividade. O modelo
sociopsicológico busca, com base na construção de um material empírico ela-
borado a partir de testes de criatividade, entrevistas, análise dos processos de
produção, etc., enfatizar as qualidades cognitivas que envolvem o fazer estético,
sem negligenciar nesta análise aspectos mais amplos, como a ligação desse tra-
balho às estruturas institucionais (Ibidem).

82
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA

A Psicologia Social de orientação cognitiva, por sua vez, “vê a criativi-


dade e a apreciação artística como um processo progressivo” (Ibidem, p. 185).
O trabalho de Howard Gardner,1 representativo desta linha de pensamento,
correlaciona fatores de natureza intrapessoal a elementos contextuais ao explicar,
por exemplo, como o talento tende, geralmente, a diminuir com o passar dos
anos, ou, em casos mais particulares, a tornar-se especializado em determinada
manifestação específica de arte.
Partindo de histórias de vida de artistas, Gardner “(...) interpreta a cria-
tividade artística como algo mais do que uma solução de distúrbio interior,
baseada na capacidade dos humanos de simbolizar e abstrair, como mais que
as qualidades lúdicas intelectuais e espontâneas”. (Ibidem). Problematizando a
compreensão do talento como uma característica inata, como “dom” predesti-
nado, Gardner destaca como as estruturas ambientais são condicionantes para a
manifestação da criatividade artística.
Tais pressupostos tributários ao domínio da Psicologia são incorporados
pela linguagem interna do campo artístico como tentativa de explicar a excep-
cionalidade do artista diante das “pessoas comuns”. O elemento subjetivo e
intrapessoal passa a ser mobilizado pela própria crítica especializada como um
dado revelador, uma espécie de chave interpretativa do significado da obra.
Tem-se em Van Gogh o caso mais emblemático desse movimento explicativo.
São os aspectos paradoxais, inéditos, trágicos de sua história, sua pobreza,
sua morte prematura fruto de um suicídio e, sobretudo, seus transtornos psí-
quicos, que tornam o artista irredutível a qualquer outro. O reconhecimento e
valorização estética e econômica póstuma do seu trabalho passam pela dupla
constituição de valor, a artística e a pessoal, dimensões indissociáveis neste

“Gardner afirma que todo ser humano é dotado de três processos, cada qual se desenvolvendo
1

numa direção específica. Eles compreendem ‘realizar’ (atos ou ações), ‘perceber’ (discriminações
ou distinções) e ‘sentir’ (afetos). Em face disso, um indivíduo com habilidade artística partilha
algumas características com aqueles que têm habilidade artística e científica. Todavia, enquanto a
habilidade artística e a científica, como processos em desenvolvimento, partilham uma orientação
semelhante no que tange à solução de problemas, elas diferem na medida em que a ciência enfati-
za a comunicação intelectual, enquanto a arte também envolve a comunicação do conhecimento
subjetivo entre indivíduos, por meio da criação de objetos não traduzíveis” (Zolberg, 2006, p.
186).

83
Gerciane Maria da Costa Oliveira

regime. É dessa maneira que Van Gogh encarna a figura do pintor maldito ou
porque é moderno e moderno porque é maldito, vindo a se tornar o modelo
paradigmático de artista, no que diz respeito às práticas estéticas e ao modo de
viver (Heinich, 1996, 1991).
Em linhas gerais, os estudos historiográficos demonstram que a relação
entre obra e personalidade corresponde a condições histórico-sociais peculiares.
No âmbito da pintura, o período da Renascença enseja o deslocamento do inte-
resse exclusivo pela obra e por suas propriedades plásticas e imagéticas para os
aspectos biográficos e subjetivos dos seus autores,2 movimento intensificado no
período moderno com a instituição do regime artístico da singularidade expresso
duplamente no status original da obra e na singularidade da trajetória daquele
que a produziu.
Com efeito, no século 20, as figuras que marcaram o mundo da arte não
foram somente autores de obras inovadoras, mas também autores de biografias
inéditas, permeadas de fatos particulares e singulares, em muito referentes à
ordem psíquica. Nesse sentido, “A invenção da arte não é somente plástica, mas
também biográfica e identitária” (Heinich, 1996, p. 61). Tal realidade decorre
do duplo movimento de singularização que caracteriza esse período: o coletivo
e o individual.
O primeiro reporta-se à organização de artistas em grupos singulares
(ou grupos formados dentro de singularidades), constituídos em torno de um
programa comum de inovação plástica e estilística, propagado e validado, geral-
mente, por meio de manifestos pictóricos; o segundo trata da elaboração de um
modelo de singularidade expresso na ordem biográfica, em muito responsável
pelo fenômeno inflacionário de publicações biográficas e autobiográficas cele-
brativas de uma imagem idealista, espiritual e heroica do produtor artístico, das
quais derivam a associação recorrente entre arte e loucura (Idem, 1991).

São famosas as biografias escritas neste período histórico por Belini e Vasari (Greffe, 2013).
2

84
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA

Vê-se que é na esteira das transformações do discurso artístico que obras


produzidas por pacientes clínicos em saúde mental ganham estatuto “aurático”,3
contudo também concorre para o surgimento deste fenômeno o movimento de
utilização de práticas artísticas como formas alternativas de clínica ao modelo
asilar. Com efeito, a crescente utilização de manifestações criativas como dis-
positivos de tratamento e cuidado nos serviços de saúde mental derivam não
apenas da consideração da relação do fazer artístico com a vida psíquica, mas da
capacidade terapêutica que este fazer pode vir a assumir nas políticas e práticas
do domínio da saúde mental.
No caso brasileiro a inserção destas práticas decorreu do conjunto de
ações que se processaram na segunda metade da década de 70, tal como o
Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que entre outras
reivindicações denunciava as condições de abandono e maus-tratos da maioria
dos internados nos grandes hospitais psiquiátricos do Brasil e o movimento
sanitarista, que pautou a reformulação do sistema nacional de saúde, originan-
do o atual Sistema Único de Saúde (SUS), em funcionamento desde os anos 90
(Reinheimer, 2012).
Ao descentrar o discurso da condição biológica para uma abordagem com
enfoque na diferença, pleiteava-se que os usuários da rede de saúde mental par-
ticipassem de experiências que não ficassem restritas ao mundo clínico. É nesse
sentido que a arte se apresentou como uma via ideal para promover o contato
desses sujeitos com dimensões sociais plurais que de uma forma geral lhes seriam
negadas tendo em vista a redução identitária ao diagnóstico clínico (Ibidem).
Esta incorporação de práticas artísticas aos dispositivos de cuidado anco-
ra-se na crença sistemática do caráter positivo das manifestações estéticas, seja
o teatro, a música, a gravura, a pintura, etc. A compreensão da arte como um
elixir, “boa para todos”, não seria recente e remontaria ao período helênico.
Segundo Aristóteles, a música (exceto o som de flauta que exercia efeitos maléfi-
cos na personalidade das crianças) influenciava na formação do caráter, exercendo
melhorias na alma dos jovens.

Faz-se referência ao conceito de “aura” informado por Walter Benjamin (2013) ao atribuir valor
3

autêntico ao objeto artístico singular em detrimento aos múltiplos produzidos no contexto maciço
de reprodução técnica.

85
Gerciane Maria da Costa Oliveira

Para Hegel, a arte modera a selvageria dos desejos. Para Shelley, os poetas
são os fundadores da sociedade civil, pois eles estimulam a imaginação,
esta sendo instrumento do bem moral. Para Goethe, visitando as gale-
rias de Dresden em 1768, o museu parecia mais um templo antigo e
provocaria os mesmos efeitos. Conforme Carol Ducan sugeriu em sua
obra Civilizing Rituals, no século XVIII a arte assumiu o lugar ocupado
até então pela religião ou, no mínimo, partilhava desse lugar (Greffe,
2013, p. 259).

No que respeita às experiências em artes plásticas, a transformação de


espaços de dispositivos tradicionais em ateliês proporcionará que usuários de rede
de saúde mental possam ser reconhecidos como artistas pelos mundos da arte
(Becker, 2010), exercendo desta forma outra identidade social que ultrapassa o
universo da saúde mental. A valorização estética destes objetos produzidos em
condições muito específicas, de uma forma geral não direcionados à apreciação
do sistema artístico oficial, problematiza a própria definição de objeto e criador
artístico, embotando cada vez mais os movediços limites entre arte e não arte.

O RECONHECIMENTO DA ARTE REALIZADA POR PACIENTES


EM TRATAMENTO DE SAÚDE MENTAL
Muito embora nem todas as produções realizadas por internos sejam
consideradas objetos artísticos, compreender como as manifestações criativas
destes indivíduos, feitas à margem da ortodoxia, são introduzidas e apropriadas
no curso da História da Arte, requer acionar novamente o tema do movimento
do campo artístico, sob o entendimento de somente, pelo efeito de uma lógica
imanente de um campo elevado a um alto grau de autonomia e habitado por
uma dinâmica de ruptura constante com a tradição estética, é que se torna
possível conceber o registro destas manifestações artísticas na história da qual
elas mesmas são indiferentes e estranhas (Bourdieu, 1996).
É na busca por fontes alternativas à tradição acadêmica ocidental que
artistas vão ao encontro do “outro” para definir sua própria arte. Pablo Picasso
apropria-se da estética ibérica e africana e transmuta os elementos estilísticos

86
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA

de carrancas e máscaras para sua obra.4 Paul Gaugin estabeleceu-se durante


certo tempo na remota ilha do Taiti e nas ilhas Marquesas, na Polinésia, para
perseguir os “equivalentes pictóricos do ‘primitivo’” (Harrison; Frascina; Perry,
1998, p. 19), encontrando neste repertório seu caminho de vanguarda estéti-
ca. As produções das chamadas pinturas fauvistas também se informavam do
primitivismo. Matisse, Vlaminck e Derain interessavam-se cada vez mais pelos
artefatos africanos (Ibidem). Em meio a este movimento de valorização da arte
primitiva, popular e infantil é que as obras dos pacientes em saúde mental são
vistas sob outra perspectiva.
Foram dois psiquiatras que atribuíram inicialmente valores estéticos às
obras dos seus pacientes, o alemão Hans Prinzhorn e o suíço Walter Morgen-
thaler. Informados pelos movimentos expressionista, dadaísta e surrealista que
tinham como princípio criativo a ideia de irracionalidade, estes médicos exerce-
ram um trabalho intelectual fundamental que serviu de base para a definição da
chamada Arte Outsider, classificação esta que abriga os produtores e obras que
se encontram à margem do sistema oficial das artes, seja por razões culturais ou
clínicas (Volpe, 2013).
É preciso considerar que foram as afinidades entre a Arte Moderna e a
Arte Outsider que permitiram a conversão de internos de hospitais psiquiátricos
em artistas. Com feito, os aspectos formais associados à cultura artística designa-
da como outsider amoldavam-se plenamente ao processo de depuração pictórica
vivenciado pela linguagem plástica na Arte Moderna. O primado da forma sobre
o conteúdo, ao dispensar a extrema semelhança da obra com os elementos do
mundo (a mostra de habilidade ao retratar a “realidade” ficava, portanto, interli-
gada à falta de conteúdo emocional, ou à insinceridade), alocava ao puro jogo de
cores, formas e linhas as reais finalidades da pintura, permitindo a entronização
de trabalhos, tais quais os outsiders que, sob o julgamento da academia, seriam
classificados como mal representativos ou não figurativos.
Além destas conformações no plano estilístico, a concepção desta apreen-
são imediata da “realidade” presente nas manifestações artísticas outsider, cons-
tituía afinidades com o discurso “moderno” também na ordem da reelaboração

Como exemplo Demoiselles d’Avignon.


4

87
Gerciane Maria da Costa Oliveira

identitária do artista. O criar sem sujeições, com “honestidade”, buscando reso-


luções “instintivas” e “espontâneas” próprias, reitera a ideia das potencialidades
criativas, inatas do ser artista, que galgando as interposições da técnica e dos
procedimentos não responde a nenhum artífice, só o seu coração. Sob este ponto
de vista, o autodidatismo não se apresenta somente como uma via possível de
fazer arte, mas de todas a mais privilegiada
Ampliando o alcance desta assertiva, compreende-se em que sentido se
estabelece a própria inserção e a cooptação destas práticas classificadas como Arte
Outsider no seio do movimento de vanguarda, do início do século 20, na Europa,
e de como esta lógica empresta-se em outras configurações, inclusive a brasileira.
Incontestavelmente, a radicalização das fissuras com os padrões técnicos, formais
e estilísticos acadêmicos, realizada de maneira mais contundente pela linguagem
moderna,5 proporciona o registro destas expressões “independentes da história e
do estilo” (Merin, 1978, p. 13) no bojo desta dinâmica de subversão e superação,
além de instituir uma série de afinidades entre elas.
No contexto brasileiro, o movimento concretista das cidades do Rio de
Janeiro e São Paulo do período pós-guerra, por exemplo, encontra-se ligado à
história do Ateliê do Engenho de Dentro, espaço que reuniu, de 1946 a 1951,
artistas, críticos de arte, médicos e doentes do Centro Psiquiátrico Nacional
Pedro II (Bôas, 2008). É também a busca pela renovação do fazer artístico bali-
zado pelas regras acadêmicas da Escola Nacional de Belas Artes e pelos princípios
revisados pela Semana de Arte Moderna de 1922, que artistas vão ao encontro
dos trabalhos feitos por pacientes em tratamento de saúde mental no intuito
de renovar suas práticas estéticas, universos temáticos e repertórios estilísticos.
Nesta aproximação, os mundos das artes não só repensam seus fundamento e
limites, mas operam a integração de indivíduos e obras completamente alheias
a sua lógica e história.

A arte romântica, do início do século 19, já produzia esta reação contra a frieza e sujeição aca-
5

dêmica da arte neoclássica que a arte moderna levará até as últimas consequências. Calcados na
busca do individualismo, da liberdade de ação, da espiritualidade em lugar da lógica e método,
artistas como Eugène Delacroix e os pré-rafaelitas Dante Gabriel Rosseti e William Holman Hunt
já apresentavam na intensidade das cores e nas temáticas recorrentes à “Idade da fé”, a oposição
aos convencionalismos apregoados pelo estilo neoclássico (Gombrich, 1954).

88
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA

No caso do Brasil, para que estas conversões ocorressem deve-se men-


cionar a atuação de duas importantes figuras do campo psiquiátrico nacional,
Osório Thaumaturgo César e Nise da Silveira (1905-1999). Apesar de uma
diferença temporal, pode-se afirmar que a ação dos dois correu em paralelo.
Osório César fundou a Escola Livre de Artes Plásticas do Juquery, que funcio-
nava no Hospital Psiquiátrico do Juquery entre os anos de 1950 e 1970, em São
Paulo. Nise da Silveira criou o Ateliê Engenho de Dentro no Centro Psiquiátrico
Nacional Pedro II, na cidade do Rio de Janeiro.
Ultrapassando a direção destes dois espaços de produção artística asilar,
ambos tiveram papel fundamental na valoração estética de parte desses traba-
lhos pelo campo artístico. Osório fornecerá uma base teórica importante sobre a
relação entre arte e vida psíquica ao escrever artigos sobre as diferenças entre a
arte de pacientes e arte de produtores profissionais6 (Dantas, 2009). Nise criará
em 1952 o Museu de Imagens do Inconsciente, no Rio de Janeiro, instituição
que permitirá a formação de um acervo voltado para produções dos internos.
Ainda que a intenção inicial seja acompanhar e documentar o processo de trata-
mento dos pacientes, não se pode negar que ele assume propriedades culturais,
fato que se constata pelos comentários do crítico especializado Mário Pedrosa7
(1900-1981).
(...) Inaugurado em 20 de maio de 1952, o museu cria outro estatuto
para as obras dos artistas internos. Pinturas e desenhos tornam-se mate-
rial para comprovação das teses de Carl Jung sobre o inconsciente coleti-
vo. As obras passam a ser guardadas e zeladas para o bem da ciência e da
terapêutica que combate os métodos físicos e químicos brutais utilizados
no tratamento da loucura (Bôas, 2008, p. 216).

O reconhecimento deste campo de produção artístico asilar tem na figura


do artista Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) talvez sua situação mais para-
digmática. Interno do Hospício Pedro II, no Rio de Janeiro, Bispo do Rosário
produziu um conjunto de obras “miniaturas, vitrines (assemblages), embarcações,
estandartes bordados, vestimentas e objetos diversos” (Dantas, 2009, p. 15) que

Em Expressão dos Alienados, de 1929, ele aborda essa discussão.


6

Importante crítico de arte brasileiro, com atuação marcante no movimento artístico-concretista.


7

89
Gerciane Maria da Costa Oliveira

hoje integram o acervo do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea. A


inserção do artista na classificação de Arte Contemporânea expressa a operação
de conversão de um produtor desavisado do campo a um produtor integrado.
Considerando o papel dos diversos agentes que atuam nesta conversão, críticos,
historiadores da arte, agentes do mercado, etc., é preciso destacar que tal dinâ-
mica, nesta manifestação em específico, deve-se à mútua atividade do campo
psiquiátrico ao inserir práticas artísticas no conjunto de seus dispositivos de
tratamento impulsionada pelas reformas do seu sistema e ao campo artístico, na
ampliação das definições dos seus limites, modos de recrutamento e princípios
de valoração.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A inserção de práticas artísticas como um dispositivo terapêutico nos
hospitais psiquiátricos buscou promover a experimentação dos usuários da rede
em saúde mental de universos plurais e outras dimensões sociais que não esti-
vessem restritas ao universo clínico. Tais vivências amparavam-se na compre-
ensão positiva do fazer artístico como via alternativa a tratamentos violentos
como lobotomia e eletrochoques, amplamente denunciados pelo movimento da
reforma psiquiátrica configurado no contexto brasileiro dos anos 70.
As transformações do campo artístico, por sua vez, levavam os artistas a
buscarem fontes distintas ao cânone oficial para o interior de suas práticas. Sob
o estatuto da criatividade que prima pela inovação e pela marca da singularida-
de impressa na obra indistinta, trabalhos realizados sem nenhuma informação
técnica, completamente alheios à história do campo, passam a ser valorizados,
em virtude de sua autenticidade e genuinidade de concepção.
É nesta dinâmica que os trabalhos dos produtores artísticos em situação
asilar são vistos sob outra perspectiva. Mesmo que não estejam direcionados
ao sistema das artes oficiais, a força que motiva sua criação não estaria em
consonância com a força motora que impulsiona os artistas? Afinal, quais seriam
os critérios de definição do objeto artístico em uma configuração de porosidades
entre os limites da arte e não arte? Tais questionamentos orientam a descentrali-
zação do olhar de críticos e demais agentes da esfera artística para pensar o novo
estatuto das obras realizadas por usuários em rede de saúde mental.

90
AS RELAÇÕES ENTRE ARTE E VIDA PSÍQUICA

Em suma, a inscrição e legitimação destes produtores artísticos no campo


das artes revelam que as transformações no domínio da Psiquiatria e no das artes
permitiram as interfaces e atravessamentos entre esses campos, promovendo
deslocamentos e conversões de um universo para outro.

REFERÊNCIAS
BECKER, H. Mundos da arte. Lisboa: Livros Horizonte, 2010.
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Porto Alegre,
RS: L&PM, 2013.
BÔAS, G. V. A estética da conversão: o ateliê do Engenho de Dentro e a arte
concreta carioca (1946-1951). Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 20, n.
2, 2008.
BOURDIEU, P. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. Tradução
Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
DANTAS, M. Arthur Bispo do Rosário: a poética do delírio. São Paulo: Editora
Unesp, 2009.
GREFFE, X. Arte e mercado. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2013.
GOMBRICH, E. H. Historia del arte. Barcelona, Espanha: Libreria Editorial
Argos, 1954.
HARRISON, C. Abstração. In: HARRISON, Charles; FRASCINA, Francis;
PERRY, Gill. Primitivismo, cubismo, abstração: começo do século XX. São Paulo:
Cosac & Naify, 1998.
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abstração: começo do século XX. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
HEINICH, N. La Gloire de Van Gogh. Essai d’anthropologie de l’admiration,
Paris: Éditions de Minuit, 1991.
______. Être artiste. Les transformation du statut des peintres et des sculpteurs.
Paris: Klincksieck, 1996. 109p. (Collection: Etudes).
MERIN, O. B. Les peintres naifs. São Paulo: Editora Delpire, 1978.

91
Gerciane Maria da Costa Oliveira

REINHEIMER, P. Manifestações artísticas: práticas e representações sobre saúde


mental no contexto da reforma psiquiátrica. In: BUENO, Maria Lucia (Org.).
Sociologia das artes visuais no Brasil. São Paulo: Ed. Senac São Paulo, 2012.
VOLPE, G. Arte Outsider: aproximación a la construcción artística de las mani-
festaciones creativas al margen del sistema del Arte. Barcelona: Facultad de
Humanidades; Universidad Pompeu Fabra, 2013.
ZOLBERG, V. L. Para uma sociologia das artes. São Paulo: Senac, 2006.

92
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A REDE DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL E INTERDISCIPLINARIDADE
Raimunda Hermelinda Maia Macena
Ulissea de Oliveira Duarte
Marcos Silva dos Santos
Maria Aridenise Macena Fontenelle

A aprovação do Plano de Ação Global de Saúde Mental 2013-2020, pela


Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), prevê objetivos
globais para atualizar políticas, bem como leis de saúde mental, de acordo com
os instrumentos internacionais e regionais de direitos humanos e evidencia a
pertinência da promoção e proteção dos direitos humanos para pessoas com
transtornos mentais e da urgente necessidade da estruturação de uma rede de
cuidados de base comunitária (Pinto et al., 2012; Vannucchi; Carneiro Junior,
2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013; Hirdes, 2015; Schulze, 2016).
Nesse sentido, a Reforma Psiquiátrica brasileira consolida-se como uma
mobilização médico-social que tem como pilar a consolidação da Atenção Pri-
mária à Saúde (APS) e, consequentemente, a Estratégia Saúde da Família (ESF)
e Núcleos de Apoio à Saúde da Família (Nasfs). Para tanto, a instituição dos
Nasfs e Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) tornam-se elementos impor-
tantes para a construção de uma Rede de Atenção Psicossocial (Raps) l efetiva
(Silveira, 2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013; Iglesias; Avellar, 2014; Hirdes,
2015; Rosso, 2015). A Raps deve ser constituída por unidades básicas de saúde,
ambulatórios, centros de convivência, residências terapêuticas, clubes de lazer,
ESF, os Nasfs e o CAPS, constituindo este o ponto estratégico do componen-
te Atenção Psicossocial Especializada (Silveira, 2012; Prates; Garcia; Moreno,
2013; Iglesias; Avellar, 2014; Hirdes, 2015; Rosso, 2015).
Nessa perspectiva, o trabalho em equipe de forma integrada e colaborati-
va consiste em revisar o modo de organização das práticas individuais para uma
abordagem ampliada das necessidades de saúde do usuário, na perspectiva da

93
Raimunda Hermelinda Maia Macena – Ulissea de Oliveira Duar te
Marcos Silva dos Santos – Maria Aridenise Macena Fontenelle

integralidade preconizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS) (Prates; Garcia;


Moreno, 2013; Amazarray; Câmara; Carlotto, 2014; Colebrusco de Souza et al.,
2016; Anjos Filho; Souza, 2017)
No modelo teórico atualmente vigente no país, há um compromisso
político-assistencial de oferecer possibilidades efetivas de soluções às necessidades
de saúde mental da população por meio da rede integrada, utilizando tecnologias
adequadas, na perspectiva do cuidado integral, intersetorial (Vannucchi; Carneiro
Junior, 2012), devendo as ações ocorrerem no contexto territorial e comunitário
em que residem as pessoas com transtornos mentais, com a atuação assistencial
multidisciplinar e participativa sendo o foco na garantia dos direitos humanos
como um princípio transversal (Prates; Garcia; Moreno, 2013; Hirdes, 2015;
Schulze, 2016).
Há que se destacar, entretanto, que a transformação do modelo hospita-
locêntrico para a assistência integral exige remodelação do modo de organização
e articulação entre os serviços, do cenário de infraestrutura das organizações, mas
sobretudo do modo de agir das equipes que atuam no processo terapêutico de
atenção psicossocial integral ao indivíduo (Silveira, 2012; Anjos Filho; Souza,
2017; Barbui et al., 2017).
Nesse sentido, a Raps demanda o trabalho de uma equipe multiprofis-
sional, que atua na perspectiva interdisciplinar por meio da lógica da descen-
tralização (Prates; Garcia; Moreno, 2013; Rosso, 2015). A descentralização em
saúde mental é estabelecida mediante o Apoio Matricial (AM) na APS, posto que
possibilita o acesso universal, a integralidade e a equidade (Pinto et al., 2012;
Silveira, 2012; Iglesias; Avellar, 2014; Hirdes, 2015).
A interdisciplinaridade e a intersetorialidade são pontos importantes no
processo terapêutico de atenção psicossocial, uma vez que exige intercâmbio de
saberes e formação de redes de apoio, que ultrapassem os limites da saúde (Silvei-
ra, 2012; Arce, 2014; Callard; Fitzgerald; Woods, 2015). Diante deste cenário,
o trabalho coletivo colaborativo na área de saúde mental torna-se imperativo e
exige uma relação de intercâmbio entre as ações técnicas e saberes profissionais,
configurando, por intermédio da comunicação, uma prática articulada e com a
colaboração entre os pares (Callard; Fitzgerald; Woods, 2015; Rosa et al., 2015;
Ely; Toassi, 2016; Anjos Filho; Souza, 2017; Griggs, 2017).

94
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E INTERDISCIPLINARIDADE

Assim sendo, esta revisão narrativa aborda os aspectos teórico-conceituais


que balizam a lógica do modelo da Raps no Brasil.

PROCESSO TERAPÊUTICO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL


E INTERDISCIPLINARIDADE
O processo social e político de construção do SUS gerou identificação
da necessidade do trabalho em equipe interprofissional e interdisciplinar, em
especial na atenção primária e nas redes de atenção à saúde (Prates; Garcia;
Moreno, 2013; Iglesias; Avellar, 2014; Hirdes, 2015). Nesta concepção, a Raps
tem como foco das ações o sujeito em sofrimento, logo, entender o contexto e
suas necessidades de modo integral é a direção da intervenção (Silveira, 2012;
Rosa et al., 2015; Schulze, 2016; Charara et al., 2017; Poirel, 2017).
Nessa perspectiva, o modelo de processo terapêutico de atenção psicos-
social integral exige o entendimento e a articulação de alguns elementos, a
saber (Silveira, 2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013; Callard; Fitzgerald; Woods,
2015; Rosa et al., 2015; Schulze, 2016; Charara et al., 2017; Griggs, 2017):
• Conhecimentos do processo saúde-doença e dos meios teórico-técnicos para
lidar com ela.
• Entendimentos da organização das relações sociais, institucionais e o trabalho
interdisciplinar.
• Percepção da forma de relações da instituição e de seus agentes com a popu-
lação.
• Compreensão dos efeitos das ações em termos terapêuticos e éticos.
• Ações colaborativas pautadas na autonomia e o protagonismo dos sujeitos.
• Fortalecimento da corresponsabilidade, dos vínculos solidários e da conside-
ração dos sujeitos implicados no processo de produção de saúde mental.
• Acessibilidade em um entendimento holístico.
• Experimentação da humanização.
Considerando que há formulações culturais que nos possibilitam uma
melhor compreensão do adoecimento mental, as demandas da população
exigem uma articulação interdisciplinar e colaborativa efetiva do cuidado em
saúde mental no território, de modo a se refletir sobre a medicalização excessiva

95
Raimunda Hermelinda Maia Macena – Ulissea de Oliveira Duar te
Marcos Silva dos Santos – Maria Aridenise Macena Fontenelle

(Rosso, 2015; Ely; Toassi, 2016; Griggs, 2017). Nesse contexto, o entendimento
do conceito de território compõe-se do lugar onde as situações, as pessoas ou
as relações estão relacionadas ao desequilíbrio mental, além de ser o espaço de
reconhecimento dos hiatos e das carências da população, o que possibilita o
desenvolvimento de atividades voltadas à inclusão social e ao exercício da cida-
dania (Pinto et al., 2012; Silveira, 2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013; Arce,
2014; Callard; Fitzgerald; Woods, 2015; Barbui et al., 2017).
Neste prisma, a interdisciplinaridade sobressai como uma ação concreta
para a efetivação e resolutividade dos serviços de assistência psicossocial, propi-
ciando aos profissionais a reflexão da necessidade do trabalho colaborativo como
forma de oferecer cuidado em processo de melhoria contínua (Hirdes, 2015; Rosa
et al., 2015; Colebrusco de Souza et al., 2016). Nessa ótica, a interdisciplina-
ridade não só promove o acesso a novos conhecimentos teóricos como a novos
modos do fazer assistencial em saúde mental (Rosso, 2015; Barbui et al., 2017)

PROCESSO TERAPÊUTICO DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL


E O TRABALHO COLETIVO COLABORATIVO
Nesta conjuntura, a articulação da saúde mental e da atenção básica
torna-se indispensável, considerando a Unidade Básica de Saúde (UBS) como
espaço de acesso da comunidade local, na qual as pessoas em sofrimento vivem
e devem ser inseridas socialmente. Nesse sentido, a UBS é o primeiro nível de
interação da população em processo de sofrimento mental. Assim, precisam ser
acolhidas, por mais que o processo terapêutico de atenção psicossocial não se
restrinja a este espaço (Prates; Garcia; Moreno, 2013; Iglesias; Avellar, 2014;
Schulze, 2016).
Como elemento intermediário entre as UBSs e os equipamentos de
atenção secundários (CAPS), encontram-se as equipes de apoio, ou de referência,
que são profissionais que assumem a responsabilidade pela formação de vínculo
estável entre equipe de saúde e usuário/família (Pinto et al., 2011; Pinto et al.,
2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013).
Em muitos municípios, as equipes de referência são hoje conhecidas como
equipes do Nasf. Há que se destacar, contudo, que no processo terapêutico de
atenção psicossocial, o profissional de referência terá o encargo de acompanhar as

96
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E INTERDISCIPLINARIDADE

pessoas ao longo do tratamento na instituição à qual está vinculado, devendo ser


o elo entre os outros profissionais ou serviços de apoio e, finalmente, assegurando
sua alta e continuidade de acompanhamento em outra instância do sistema de
saúde (Pinto et al., 2011; Pinto et al., 2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013;
Rosa et al., 2015).
Além disso, os profissionais que atuam no Nasf devem estar aptos a
instrumentalizar e apoiar as equipes da ESF no atendimento às demandas de
saúde mental de sua região (Prates; Garcia; Moreno, 2013). Desse modo, surge
a lógica do apoio matricial que deve se estabelecer mediante a comunicação e
trabalho colaborativo das equipes da ESF e do processo terapêutico de atenção
psicossocial a fim de propiciar um adequado acompanhamento das pessoas em
sofrimento psíquico (Pinto et al., 2012; Prates; Garcia; Moreno, 2013).
O AM propõe um modelo de dialógica horizontal e colaborativa entre
profissionais do serviço de referência (UBS) e do serviço especializado (CAPS),
ampliando a clínica (Silveira, 2012; Iglesias; Avellar, 2014; Hirdes, 2015). A
concepção matricial constituiu-se como proposta do Ministério da Saúde para
a articulação entre a rede de saúde mental e as unidades de saúde, mas supõe
a instituição de uma clínica ampliada, organização de trabalho que valoriza a
integração, a colaboração e a descentralização, disponibilização de outras ofertas
terapêuticas por intermédio de um profissional de saúde mental que acompa-
nhe sistematicamente as UBSs, integração dialógica entre diferentes categorias
profissionais e especialidades (Iglesias; Avellar, 2014)
Para uma efetiva instalação do AM devem existir duas equipes – uma de
referência e outra de apoiadores – que devem compartilhar experiências, saberes
e poderes para as tomadas de decisão. A equipe de referência é responsável pela
direção do caso, com vistas à expansão das possibilidades de vínculo no trata-
mento e avanço da intervenção junto ao caso. O apoiador matricial, por sua vez,
é um especialista que pode acumular um conhecimento, contribuindo para a
ação assistencial proposta para a resolução de determinado problema (Iglesias;
Avellar, 2014; Rosa et al., 2015; Rosso, 2015).
Nesse sentido, surge a clínica ampliada como base de sustentação do AM.
A clínica ampliada é um conceito epistemológico que se pauta na construção do
trabalho clínico, que vai além da doença, incluindo as situações que ampliam

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Raimunda Hermelinda Maia Macena – Ulissea de Oliveira Duar te
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a vulnerabilidade das pessoas e a divisão do processo de trabalho é integrada e


acompanhada da corresponsabilização dos profissionais (Prates; Garcia; Moreno,
2013; Iglesias; Avellar, 2014).
O Apoio Matricial tem-se revelado um importante definidor de fluxos,
educação permanente e promoção da assistência colaborativa e compartilhada,
contudo ainda há necessidade de investimento financeiro e profissional nos pro-
cessos de transformação das práticas em saúde mental (Prates; Garcia; Moreno,
2013; Hirdes, 2015; Ely; Toassi, 2016). Nesse sentido, a interdisciplinaridade,
a responsabilidade compartilhada, assim como a valorização igualitária de todos
os saberes além da democratização das relações de trabalho são condições indis-
pensáveis para efetivação do AM (Pinto et al., 2012; Silveira, 2012; Iglesias;
Avellar, 2014).
O CAPS, por outro lado, é o serviço de saúde ordenador das ações de
saúde mental nas redes assistenciais (Silveira, 2012; Amazarray; Câmara; Carlotto,
2014; Rosa et al., 2015; Rosso, 2015). Deve ser compreendido como ponto
base da Atenção Psicossocial Especializada, cujo principal objetivo é assistir às
pessoas em sofrimento psíquico grave e persistente e às pessoas que possuam
necessidades decorrentes do uso de drogas (Silveira, 2012; Amazarray, Câmara;
Carlotto, 2014; Rosa et al., 2015; Rosso, 2015).
As atribuições do CAPS incluem difundir e favorecer a reinserção social
dos seus usuários por meio do exercício dos direitos civis, trabalhistas, de lazer,
além da consolidação dos laços familiares e comunitários (Iglesias; Avellar, 2014;
Hirdes, 2015; Schulze, 2016). Nessa perspectiva, as ações do CAPS devem
priorizar ações em espaços coletivos, atuações em grupos operativos, trabalho
colaborativo e em equipe, além de articulações com serviços ofertados por outras
redes (saúde, justiça, educação, etc.) (Arce, 2014; Anjos Filho; Souza, 2017).
A comunicação do grupo envolvido na atenção psicossocial, entretanto,
deve pautar e garantir a privacidade das informações pessoais, seja para pessoas
com problemas psíquicos leves, seja para aquelas em sofrimento psíquico grave
e persistente (Schulze, 2016). Para tanto, a disponibilidade do processo terapêu-
tico de atenção psicossocial deve ser mediada por meio do Projeto Terapêutico
Individual (PTI), cujo processo de construção envolve a equipe, o usuário e seus
familiares (Arce, 2014; Melo; Oliveira; Vasconcelos-Raposo, 2014; Anjos Filho;
Souza, 2017).

98
REFLEXÕES TEÓRICAS SOBRE A REDE DE ATENÇÃO PSICOSSOCIAL E INTERDISCIPLINARIDADE

O PTI é uma discussão prospectiva e não retrospectiva, que materializa


a concepção da interdisciplinaridade, pois agrega a contribuição de várias espe-
cialidades e de distintas profissões. O PTI é estruturado após uma avaliação
compartilhada sobre as condições de vida e de saúde do usuário. A mola pro-
pulsora do PTI são os pactos de procedimentos a cargo de cada um dos diversos
membros da equipe multiprofissional, denominada equipe de referência (Pinto
et al., 2011; Pinto et al., 2012).
No Brasil, contudo, o trabalho em equipe ainda tem uma estrada difícil
para sua instituição e posterior consolidação. Por vezes, o tradicional processo de
trabalho fragmentado vem emanando nas práticas do SUS, gerando uma intensa
dificuldade de desenvolver horizontalidade entre as categorias profissionais, ori-
ginando um trabalho multiprofissional, mais frequentemente assumindo um
caráter pluriprofissional (Callard; Fitzgerald; Woods, 2015; Rosa et al., 2015;
Rosso, 2015; Charara et al., 2017; Griggs, 2017). A pluridisciplinaridade ocorre
quando há predominância de complementaridade em lugar de uma integração
de teorias e métodos (Melo; Oliveira; Vasconcelos-Raposo, 2014; Colebrusco de
Souza et al., 2016; Anjos Filho; Souza, 2017).
As ações ainda são uniprofissionais e pluriprofissionais, o que revela mais
a complementaridade entre as disciplinas do que para uma integração e colabo-
ração efetiva (Silveira, 2012; Anjos Filho; Souza, 2017). Desse modo, a identifi-
cação dos mundos sociais e culturais da doença, das estruturas e equipamentos
sociais e institucionais, das redes sociais locais e familiares que podem promover
uma compreensão dos fatores estressores e das experiências comunitárias não é
possível (Rosso, 2015; Griggs, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, há que se considerar que os profissionais que atuam
nas Raps necessitam dispor de ferramentas internas e externas para reafirmem
práticas diárias interdisciplinares e colaborativas, nas diferentes unidades de
saúde em que possam estar inseridos (Nasf ou UBS). Desse modo, será pos-
sível constituir uma atenção integral à saúde mental, reconhecendo o campo
psicossocial como enfoque clínico, ético e político, priorizando e garantindo a
intersubjetividade, a participação e a articulação intersetorial.

99
Raimunda Hermelinda Maia Macena – Ulissea de Oliveira Duar te
Marcos Silva dos Santos – Maria Aridenise Macena Fontenelle

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100
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101
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES:
Uma Trama Sutil
Nize Maria Campos Pellanda

“O amor é a mais universal, mais formidável e mais misteriosa das


energias cósmicas” (P. Teilhard de Chardin).
“Todas as coisas são uma só” (Heráclito).
“Na verdade, eu diria que 99% das doenças humanas têm a ver
com a negação do amor” (Maturana, 1995).

É uma honra, uma alegria e uma oportunidade fazer parte de um livro


tão significativo como este e, por isso, começo por agradecer amorosamente
às organizadoras pelo convite. Trata-se de uma obra efetivamente complexa
porque articula de forma rigorosa e afetiva as dimensões tragicamente cindidas
da realidade: aprendizagem, saúde e educação numa rede tal em que a urdidura
é o cuidar/amar. Com isso, as autoras/organizadoras resgatam uma epistemo-
logia plena de sabedoria perene contemplando, ao mesmo tempo, as pesquisas
complexas de uma nova Biologia que não separa o viver do conhecer e que tem o
amor como pressuposto seminal. Estou me referindo aqui às pesquisas biológicas
paradigmáticas de Humberto Maturana e Francisco Varela, as quais constituem
os referenciais teóricos básicos deste texto (Maturana; Varela, 1980).
O lugar de onde falo é o da complexidade, ou seja, daquele contexto
científico e cultural que vai substituindo o antigo paradigma cartesiano que
configurou a cultura mundial e cuja marca principal é a fragmentação. Esta
característica fundante deste paradigma teve consequências profundas na vida
dos seres humanos na modernidade: sociais, políticas, éticas, culturais e exis-
tenciais. Para conceituar este novo paradigma Edgar Morin, um dos pensadores
mais significativos da complexidade, afirma que “Complexus é o que se tece
junto” (Morin, 1991, p. 13) Pois bem, é sobre essa tessitura que desejo escrever
neste texto, sobre a unidade perdida e o que isso significa para a vida de cada

103
Nize Maria Campos Pellanda

um(a) hoje. Neste cataclismo moderno, foram águas abaixo aquilo que é o mais
significativo para a vida dos seres humanos: a relação eu-outro, a compaixão, a
interação homens e mulheres com a natureza, o protagonismo humano e autoria,
a técnica como instrumento de autoconstituição, a separação do sujeito cognitivo
do objeto conhecido, o que significa a separação de si mesmo com a ideia sub-
jacente de que conhecer é representar. Esta premissa foi letal para a epistemo-
logia e para a ontologia, pois privou os humanos de aprendizagem de viver e da
maestria sobre si mesmos, uma vez que formalizou e congelou o conhecimento
em suas funções vitais que é a aprendizagem do viver, reduzindo-o a questões
conceituais. Quando Sócrates, na Grécia Clássica, inaugurando a metafísica
que ainda domina a nossa cultura, separou sabedoria de conhecimento, estava
selando esta cultura de desagregação. Descartes foi buscar nela a sua inspiração.
No mesmo século 17 em que Descartes sistematizou a ciência moderna
em torno de um eixo racional-fragmentário, um outro filósofo, Baruch Espinosa,
na Holanda, formulou um dos mais perfeitos sistemas filosóficos da História
baseado num holismo absoluto e numa imanência radical sustentado por uma
epistemologia profundamente complexa. O mundo seguiu o caminho cartesiano,
o que explica, em grande parte, o difícil contexto que hoje vivemos.
A partir dessa tessitura procuro focar no resgate do sujeito desaparecido
na modernidade em suas condições biológicas de autoria e amorosidade, que se
realizam numa consciência cósmica, de pertencimento a um todo maior. Ao fazer
isso, busco em pesquisas recentes de viés complexo nascidas no berço cibernético
em torno do conceito-eixo de auto-organização, bem como num pensamento
filosófico dos chamados “filósofos da vida” (Espinosa, Nietzsche e Bergson),
o suporte teórico para a minha argumentação sobre o lugar das emoções na
complexidade.

PARA JUNTAR O QUE FOI SEPARADO...


O mundo foi desencantado! Descartes, amparado na velha metafisica,
configurou no início dos tempos modernos uma ciência sem sujeito e com a
concepção de uma natureza inerte e sem vida. Olgária Matos, filósofa brasileira,
assim expressa esta situação:

104
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES

A ciência moderna, particularmente na expressão cartesiana, procurará


ocultar e, por vezes, esquecer os componentes trágicos desta ruptura
entre o homem e a natureza, o eu e o mundo, sob o signo de uma “meta-
física da separação” (1993, p. 85).

A ciência não é um epifenômeno. Não está acima da vida concreta dos


homens e mulheres. Ela é produto das relações sociais. Assim, a ciência moderna
surgiu, não por acaso, mas no bojo do contexto do qual emergia o modo capita-
lista de produção. Este regime, por ser profundamente excludente, precisava de
toda uma sustentação ideológica para se legitimar. Essa estratégia foi encontra-
da em grande parte na ciência nascente. Como destaca o epistemólogo Hilton
Japiassu:

Nossa preocupação fundamental consiste em mostrar que não foi a


“razão pura” nem tampouco nenhum “espírito absoluto” que, na aurora
da modernidade, estabeleceram o vasto programa de explicação mecani-
cista da natureza e do homem, mas a livre determinação de uma burgue-
sia ascendente de dominar o mundo e de sobre ele exercer sua ação e seu
poder. De forma alguma defendemos a idéia segundo a qual a revolução
científica moderna foi o resultado de um simples triunfo da “Razão”
contra os “preconceitos” e as “superstições” (1997, p. 15).

Foi então, neste cenário histórico, com ideologias profundamente desu-


manas subjacentes, que se desenvolveu um materialismo exacerbado, um indi-
vidualismo radical e se perdeu a singularidade, a compaixão e o sentimento de
pertencimento cósmico.
Ilya Prigogine, Prêmio Nobel de Química de 1977, costumava se referir
às consequências do velho paradigma como um desencantamento. Quando assim
falava, ele se referia a uma perda de laços cósmicos que nos ligam a tudo que
existe. A dimensão do sagrado, nesse sentido, seriam as ligações que nos vin-
culam ao cosmos. Não por acaso, Prigogine foi um dos cientistas que ajudaram
a construir o paradigma da complexidade devido ao reatamento das relações
rompidas por uma cultura da fragmentação.

105
Nize Maria Campos Pellanda

Hoje, a crítica a esta cultura vem, em larga medida, de cientistas de


ponta como físicos, por exemplo, que têm colaborado com a ciência no sentido
de importantes descobertas na Física Quântica, que aproximam a ciência oci-
dental aos pressupostos da Filosofia oriental. Um deles, David Peat, destaca o
seguinte:

Mas o poder preditivo do novo mapa de Newton significava também


que outros velhos mapas deveriam ser rejeitados e esquecidos. Até o
surgimento da ciência, o mundo natural tinha sido algo no qual nós
estávamos totalmente imersos. Era algo a ser experimentado pelo corpo
e espírito de forma direta, cada segundo do dia. O mundo era prazer,
dor e sensação. Era algo para ser visto, tocado e provado e cheirado e
ouvido, e este total envolvimento no saber e valor da experiência estava
refletido nos mapas, cerimônias e símbolos. Então, um novo mapa foi
desenvolvido no qual o mundo foi objetivado e tornado abstrato. Que
lugar existe em tal mapa para as vozes interiores e qualidade das coisas
quando tudo é quantidade e número? (2002, p. 31).

Foi-se o mistério. Desencantou-se o mundo. Outra física contemporânea


é Danah Zohar que, a partir de descobertas na Física Quântica faz um ataque
lúcido ao paradigma clássico, tecendo em seu comentário elementos da ciência
ocidental e da sabedoria perene:

Desde Platão, o Ocidente tem enfatizado o racional e o analítico, as


regras através das quais formamos pensamento e tomamos decisões, os
“componentes” de nossa vida consciente. A lógica disso levou natural-
mente ao modelo do cérebro calcado no computador, embora em detri-
mento de um outro lado do conhecimento e experiência humanos – o
que se pode chamar o lado intuitivo, o lado que lida com a sabedoria, a
imaginação, a criatividade, etc. Em termos neurofisiológicos modernos,
esses dois lados de nossa vida mental têm sido abordados sob o aspecto de
uma cisão entre hemisfério cerebral direito e hemisfério cerebral esquer-
do. Utilizando uma metáfora igualmente boa, vinda da física quântica,
poderíamos nos referir a isso como uma cisão entre onda e partícula,
dizendo que nossa cultura enfatizou o aspecto partícula da mente. Os
“holistas” querem enfatizar o aspecto onda da experiência, à medida que
cada elemento da consciência – na verdade cada elemento da própria
realidade- se relaciona com todos os outros (Zohar, 2005, p. 83-84).

106
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES

A vida, porém, não é linear como também não o é o funcionamento do


universo como um todo. Muitos foram e a ainda são os homens e mulheres de
todos os tempos que souberam conservar sua condição biológica de seres com-
passivos e amorosos como também os poetas que tiveram a coragem e a lucidez
de gritar contra a opressão de um regime profundamente hegemônico.
Queira Deus nos livrar
Do sonho de Newton
E da verdade única
(William Blake).
E assim, no próprio seio de uma ordem racionalista, determinista e
negadora do humano começa a surgir uma nova cultura na qual a lógica da
complementaridade vai substituindo a lógica do terceiro excluído. Ilya Prigo-
gine, já citado, importante representante de um paradigma complexo, expressa
sempre uma dimensão filosófica da complexidade no fazer científico tecendo
junto dimensões separadas. As palavras a seguir expressam muito bem este novo
espírito científico:

A visão de mundo que nos rodeia converge com a do mundo interior.


Já que dou esta conferência em Delhi, por que não destacar essa classe
de convergência, de síntese do mundo externo que nos rodeia com o
mundo interior, posto que é um dos temas tradicionais da filosofia hindu?
(Prigogine, 2004, p. 38).

O grande mérito deste cientista foi ter feito a ponte entre as chamadas
“ciências duras” e as “ciências light” ao unificá-las com as noções de tempo e
história.
O sujeito morto da modernidade começa a reaparecer no seio de uma
ciência complexa. Ainda nas palavras de Prigogine:

Me perguntam muitas vezes por que me interessam os problemas


humanos. Sem dúvida, uma das razões principais consiste no fato de
que eles são o que melhor reflete a complexa dialética entre unidades e
estrutura global (2004, p. 154).

107
Nize Maria Campos Pellanda

Com este espírito integrador começa a emergir uma nova ciência liber-
tada das categorias fixas de pensamento e, mais especificamente, uma Biologia
renovada e libertada da noção de fundamentos e mecanismos adaptativos cegos
mostrando que o modelo da vida é a rede. Há uma harmonia profunda no
cosmos. Por isso, o processo de construção é a interação, o que, necessariamente,
implica cooperação, solidariedade. Tudo é construído, portanto, nesta interação.
Há uma conectividade radical que dá sentido a tudo: somente conhece-
mos, somos e vivemos conectados. Nessa ótica, não existe realidade pré-dada,
na medida em que nos construímos ao interagir com os outros. Há uma histori-
cidade radical na qual tudo é imanência. Por esse motivo, as ciências complexas
começam a adotar o método genealógico no sentido de que as coisas não têm
um lugar fixo de origem no tempo e no espaço, mas elas emergem nas ações
humanas. Tudo o que implica fragmentação, linearidade e homogeneização é
alheio à vida, trazendo uma desarmonia radical. Foram essas últimas atitudes
que nos trouxeram um desencantamento do universo.
O grande objetivo da vida é realizar uma integração perfeita – oneness.1
Espinosa falava da existência de uma Substância Única no universo (Espinosa,
1983). Tudo o que fragmenta nos afasta dessa meta de integração dinâmica e
tende à degradação das condições de vida. Por consequência, quanto maior for
a fragmentação de uma cultura ou de um sujeito maior será o afastamento dessa
meta de integração e, portanto, maior a perda de energia.
A termodinâmica atual e a yoga milenária têm muito a nos ensinar sobre
isso. E, por outro lado, quanto mais tivermos a capacidade de juntar o que foi
separado, maior potência teremos para construir o mundo e a nós mesmos,
controlando nosso destino. “Ser mestre de nós mesmos” aconselha Yogananda
(2000, p. 114), um dos mais importantes divulgadores da Filosofia oriental no
Ocidente, expressando a sabedoria yogue de 4 mil anos. Voltarei a este tema
no próximo segmento. Com isso, estaremos expandindo nossa capacidade de
conhecer e dando sentido ao viver. Pensando metaforicamente, a fragmentação
da modernidade pode ser expressa em linhas retas e, por outro lado, o desejo de

Paramahansa Yogananda, um dos primeiros yogues a pregar no Ocidente, usava essa expressão
1

de dificil tradução para o Português mas que significa aproximadamente – ser um com o todo.

108
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES

juntar o que foi separado, o desejo de síntese e de fazer convergências pode ser
expresso pelo círculo que a tudo integra numa harmonia perfeita. Como afirma
Nietzsche: “Curva é a senda da eternidade” (1996. p. 64).
Por outro lado, a complexidade nos ensina que cada ser humano no seu
nó é parte da rede e, ao mesmo tempo é um microcosmos original que, com sua
autoria, vai inventando a si próprio e a rede de forma original.
Coloco aqui a questão:
– Como fazer convergir alguns pressupostos da sabedoria do Oriente,
naquilo que eles têm de elaborações mais profundas sobre o amor, a natureza, os
seres humanos e o conhecimento, com alguns pressupostos da ciência e Filosofia
ocidentais, aqueles que fogem do quadro fragmentário da modernidade, extrain-
do dessa convergência uma proposta de potencialização dos seres humanos em
direção a um “ultra-humano” ou a um “além do homem”?
Gostaria de esclarecer, antes de seguir adiante, o que essa expressão
“sabedoria do Oriente e do Ocidente” significa para mim. Incluo no Oriente
não somente a Filosofia oriental que está profundamente perpassada por uma
atitude sagrada diante da vida, como também a obra de muitos cientistas, prin-
cipalmente indianos, alguns até ganhadores do Prêmio Nobel, que souberam ser
rigorosos no método sem perder a dimensão sagrada de sua obra. Por outro lado,
em relação ao Ocidente, penso desde os pré-socráticos, passando por sábios de
todas as épocas até chegar nos construtores das ciências complexas que resgatam
alguns pressupostos universais, como a ideia do eterno retorno, da circularidade,
das espirais e a noção dos homens e mulheres como fazedores de seu destino.
Espinosa, Nietzsche, Bergson e Teilhard de Chardin, entre outros, me parecem
simbolizar, a partir da Filosofia e da ciência do Ocidente, a engenharia de pontes
entre Oriente e Ocidente.
No mais profundo espírito espinosiano, Pierre Lévy, um leitor profundo
de Espinosa, ajuda-me a expressar este sentimento de conexão profunda, no
qual subjaz o amor:
O Oriente não está no leste, está no interior, no infinito. O Ocidente
não é uma cultura diferente das outras, está no mundo concreto, nas
relações políticas igualitárias entre os homens, em uma economia livre. O
verdadeiro programa de expansão do espírito é unir a liberdade interior

109
Nize Maria Campos Pellanda

e a liberdade exterior. Uma trabalhará para a outra. Não há senão um


único espírito, onidirecional, interior e exterior, Oriente e Ocidente. Uma
única humanidade (2003, p. 135).

O surgimento da Filosofia ocidental com os pré-socráticos na Grécia


ainda está muito próximo à ideia integradora do Oriente. Esses primeiros filó-
sofos, à maneira trágica, porque contemplando a complexidade da realidade,
não separavam homem de natureza, conhecimento de ser. Com Sócrates, essas
distinções começam a aparecer num processo de fragmentação que iria estourar
na modernidade. Na concepção de Nietzsche, Sócrates inaugura um tipo de
racionalismo que rompe com a tragicidade da cultura grega antiga impondo à
civilização um formalismo estranho à vida. Nietzsche via na tragédia grega um
manancial de sabedoria de vida, fonte da percepção da circularidade do viver,
em que as diferentes dimensões da realidade se encontram (Nietzsche, 1983).
Não se trata de meros formalismos cognitivos em termos de tomar
conhecimento desses saberes para melhorar automaticamente a vida. O que
está em discussão é como essa sabedoria potencializada da convergência pode
contribuir para novas práticas pelo fato de que a experiência e a ação autônoma
e, ao mesmo tempo solidária, de cada homem e de cada mulher e não o conhe-
cimento formal, subjaz a esse conhecimento integrado.
Práticas científicas que estão inscritas na perspectiva da complexidade
começam a nos trazer esperança de que uma nova cultura científica e social
seja possível. Todo este esfacelamento da ciência e da cultura ocidental, como já
referido, teve consequências profundas e, neste processo, o ser humano perdeu
sua condição de autoria, de alteridade, de protagonismo e de singularidade. Estas
características não são meramente acessórias, mas biológicas segundo os biólogos
da complexidade Humberto Maturana e Francisco Varela (1980).
Mais tarde estes dois cientistas separam-se e tomam rumos diferentes em
suas pesquisas, sem, no entanto, negarem ou abandonarem os conceitos seminais
que construíram juntos como o conceito de autopoiesis, por exemplo.
Nesta nova etapa, Maturana (1991) elabora a teoria da Biologia do Amor
para mostrar que o amor é a emoção fundante do humano e que, em condições
de negação dele as pessoas e as sociedades adoecem. Afirma ele:

110
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES

O que diferencia a linguagem hominídia de outras linguagens de pri-


matas é um modo de vida no qual compartilhar alimentos, com tudo o
que isso implica de aproximação, de aceitação mútua e coordenação de
ações no trocar-se coisas uns com os outros, exerce um papel central. É
o modo de vida homínido o que torna possível a linguagem, e é o amor,
como a emoção que constitui o espaço de ações em que se estabelece
o modo de viver homínido, a emoção central na história evolutiva que
nos dá origem. Que isso seja assim, é aparente no fato de que a maioria
das doenças humanas, somáticas e psíquicas, pertencem ao âmbito de
interferências com o amor (Maturana, 1995, p. 97).

Nesta abordagem biológica, a história evolutiva humana desde seus


inícios tem como emoção fundante o amor e na qual a conservação de um modo
de vida depende da aceitação do outro como legítimo outro. Por isso, observa
Maturana: “somos animais dependentes do amor” (1991, p. 23). O amor, por-
tanto, não é algo complementar ou acessório na vida dos seres humanos, mas é
“(...) uma condição necessária para o desenvolvimento físico, condutual, psíquico,
social e espiritual normal da criança, assim como para a conservação da saúde
física, condutual, psíquica, social e espiritual do adulto” (p. 23).
Outro importante cientista da complexidade, que ajudou a fundar a
primeira ciência complexa da História, a cibernética, foi Gregory Bateson. O
próprio Maturana seguiu os passos de Bateson em pontos cruciais de sua teoria.
Pois bem, Bateson trouxe, corajosamente, para o seio da nova ciência, o con-
ceito de amor e de seu alcance na realidade humana. Nas palavras da filha de
Bateson, Mary Catherine Bateson, sobre o pai, podemos perceber a revolução
da complexidade se gestando:
Gregory havia chegado a estabelecer uma estratégia de tomar palavras
como “amor” ou “sabedoria”, espírito, mente ou o sagrado – palavras
com que se designam questões que os não materialistas consideram
importantes e que os homens de ciência seguidamente consideram como
inacessíveis ao estudo – e redefini-las recorrendo aos instrumentos con-
ceituais da cibernética (Bateson; Bateson, 2000, p. 20).

Pierre Lévy, já citado, e mais conhecido como o filósofo do ciberespaço, dá


também a sua contribuição aqui no resgate radical de nossa condição amorosa:

111
Nize Maria Campos Pellanda

Eis o meu credo epistemológico. Todos aprendemos na escola que era


bom exercer o espírito crítico. Mas também aprendemos sobre a vida que preci-
sávamos amar. Não entendemos senão o que amamos. O mundo não precisa de
crítica, o mundo precisa de amor. É somente quando amamos o mundo que ele
se rende a nós e nos entrega seu sentido. O amor é o microscópio mais sensível.
O amor é a maravilha observada. O amor é o olho que olha (2003, p. 157-158).

A EMERGÊNCIA DE UMA EPISTEMOLOGIA COMPLEXA


Como tantas vezes já referido neste texto, o ser vivo desapareceu da
ciência e da Filosofia sob o peso de um formalismo conceitual que separa o viver
do conhecer, no entanto alguns pensadores seminais da vida resgatam isso por
vias diversas.
No bojo das novas práticas paradigmáticas, neste trabalho de articular
dimensões da realidade que haviam sido cindidas, surge, necessariamente, uma
nova epistemologia que ainda não foi completamente cartografada. Ela traz a
marca do devir e da imanência. As emoções trazem perplexidade em um sistema
neutro que se consolidou sem a presença delas. Dá-se então aquela passagem à
qual Dupuy se refere como a transição dos sistemas observados para os sistemas
observantes (Dupuy, 1996). Para von Foerster, o que precisamos agora é uma
“teoria do observador” (von Foerster, 2003)
A epistemologia emergente é aquela que não admite separação entre
cognição, vida e emoções. O exemplo mais recente é a pesquisa complexa de
Maturana e Varela expressa pelo famoso aforismo circular “Conhecer é viver.
Viver é conhecer” (Maturana; Varela, 1990).
Espinosa parece ser o mais radical dos filósofos da vida. Ele reinventa a
Filosofia e contribui profundamente para uma ciência da complexidade a partir
de uma epistemologia viva na qual o conhecer é o próprio viver sem o entulho
dos formalismos tradicionais. A Ética, o grande sistema filosófico da História, é
uma Ética da alegria. E, a partir daí, leio esta obra a partir da ótica da potência
que é desencadeada pelos afectos afirmadores da vida.
No centro da Filosofia espinosiana está a ideia de uma única substância,
o que remete a uma concepção autopoiética, para usar um termo da Biologia
contemporânea, no sentido da autocriação, o que o filósofo chama de causa sui.

112
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES

Ao articular internamente alma e corpo, força pensante e força imagi-


nante, virtude e aptidão para pensar e agir, e ao tornar inseparáveis o
pensamento e o sentimento, a liberdade e a felicidade, não nos oferece
uma via ampla – embora árdua e difícil, para compreendermos as rela-
ções entre o psíquico e o físico, o intelectual e o afetivo, a autonomia e a
alegria de viver? Que é o Deus-Natureza de Espinosa senão nós mesmos
quando descobrimos a força para pensar e agir livremente na companhia
dos outros? Que é a filosofia espinosiana senão o mais belo convite a
perder o medo de viver em ato? (Chauí, 1995, p. 82).

Por sua vez, Nietzsche, que foi leitor de Espinosa, é o filósofo da afirma-
ção da vida. É o grande desconstrutor da modernidade, fazendo a crítica severa
de suas origens ao combater com severidade o racionalismo se Sócrates e Platão.
Ao fazer isso, funda uma epistemologia do devir e da afirmação do ser do devir.
Roberto Machado assim expressa a epistemologia nietzschiana:

O conhecimento não é “imaculado”: não se realiza libertando-se dos


afetos, dos desejos, das paixões, das emoções, da vontade; na base do
conhecimento se encontra a perspectiva da vida definida como vontade
de potência, conceito que, quando é produzido é, em geral, assimilado
ao de instinto (Machado, 1999, p. 95).

Nietzsche denunciou a representação com a renúncia do ser humano de


sua condição de autoconstituição e autoria numa percepção genial daquilo que
seria chamado de autopoiesis por uma nova Biologia. Isso corresponderia ao
conceito de Vontade de Potência de Nietzsche, que pode ser interpretado como
vontade de criar.
Henri Bergson é outro filósofo da vida cujo pensamento complexo inspi-
rou muitos cientistas que trabalham com a matriz da complexidade. Prigogine
é um dos cientistas mais importantes do novo paradigma que reconhece sua
dívida com Bergson no que diz respeito a um pensamento não linear e a uma
evolução criadora.
A epistemologia bergsoniana, como aquelas dos demais pensadores que
estou examinando aqui, é calcada nos pressupostos da inseparabilidade entre a
teoria do conhecimento e a teoria da vida. Argumenta ele sobre isso: “Impõe-se

113
Nize Maria Campos Pellanda

que essas duas reflexões, teoria do conhecimento e teoria da vida se reúnam, e,


por um processo circular, impulsionem uma à outra infinitamente (Bergson,
1979, p. 11).
Além disso, a filosofia bergsoniana, como as demais aqui discutidas,
também apresenta o caráter autopoiético da condição humana de seres criadores,
de modo que as emoções são instrumentos de autoconstituição. Destaca Bergson:
Mas quem estiver seguro, absolutamente seguro de que produziu uma
obra viável e duradoura, este não tem nada a fazer do elogio e sente-se
acima da glória, porque é criador, porque sabe disso e porque a alegria
que sente é uma alegria divina, Portanto, se em todos os âmbitos o
triunfo da vida é criação, não devemos supor que a vida humana tem
sua razão de ser em uma criação que, diferentemente daquela do artista
e do cientista, pode prosseguir a todo o momento em todos os homens:
a criação de si por si, o engrandecimento da personalidade por um
esforço que extrai muito do pouco, alguma coisa do nada e aumenta
incessantemente a riqueza que havia no mundo? (2009, p. 23).

PERSPECTIVAS
Tudo o que foi aqui escrito foi com a intenção de fazer uma tessitura
para identificar numa postura paradigmática elementos de incorporação opera-
tória das emoções e da autoria humanas, integrando-as numa epistemologia da
complexidade. Este trabalho cartográfico é crucial num paradigma que ainda
separa as emoções do fazer científico. Isso será muito útil para todos, mas prin-
cipalmente para aqueles que transitam de forma transdisciplinar entre as áreas
da saúde, da educação e da tecnologia.
No que diz respeito à tecnologia, podemos identificar de maneira com-
plexa, em cada um dos autores referidos, a presença de um conceito-eixo de
potência autocriadora. Isso nos remete à concepção ampliada de tecnologia como
dispositivos destinados à criação de processos inventivos ou criadores de nós
mesmos, da natureza ou das coisas em geral. Assim, podemos identificar em
Espinosa o conceito de conatus, que diz respeito ao esforço de homens e mulheres
de não somente perseverarem no ser como também, de autoconstituição (Espi-
nosa, 1983). Em Nietzsche, encontramos o conceito de Vontade de Potência que
nada mais é do que autonomia/autoria humana de criar a si próprio, uma vez já

114
COMPLEXIDADE E EMOÇÕES

que não existe um mundo pronto ou um ser pré-dado. Finalmente, em Bergson


o conceito de um elan vital leva-nos à mesma ideia autocriadora dos demais.
Seria a atualização da nossa potência em ato (Bergson, 1979).
Para concluir sem concluir, mas apenas lançando provocações para levar
adiante estas questões, chamo a atenção para o fato de que algo mudou radi-
calmente na ciência e na Filosofia. Este algo tem a ver com uma mudança
de vértice: da referência externa com a representação para a referência interna
com a autoconstituição. Maturana sinaliza esta nova epistemologia da seguinte
maneira: “Não pergunto mais – o que é isso? Mas pergunto: como faço para
conhecer isso? (Maturana; Porksen, 2004, p. 67).

REFERÊNCIAS
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2000.
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115
Nize Maria Campos Pellanda

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ZOHAR, D. O ser quântico. 15. ed. São Paulo: Best Seller, 2005.

116
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE:
Uma Interpretação da Vida
Felipe Gustsack
Niqueli Streck Machado

Queremos refletir acerca de concepções de educação em sua relação


com a saúde para pensarmos uma possível interpretação da vida pelos vínculos
humano-linguagem-mundo. Para tanto, propomos trazer e aproximar conceitos
que tratam da emergência do amor como emoção que configura a deriva do
humano e constitui um dos traços fundantes do paradigma da complexidade,
como referência para a leitura, interpretação e compreensão dos nossos modos
de viver-conhecer.
Trata-se de um estudo bibliográfico para o qual destacamos a necessidade
de retomar aspectos das trajetórias reflexivas que levaram Maturana e Varela a
pensarem a autopoiese e as bases da biologia da cognição, que depois, a partir de
Maturana, passou a ser denominada de biologia do amor. Complementarmente
refletimos acerca da potência dos afetos com contribuições de Osvaldo Giacóia
Júnior a partir de leituras de Nietzsche e Espinosa.
As concepções de educação decorrem de leituras de Paulo Freire, que
aproximamos de contribuições de Masschelein e Simons, entre outros. As con-
clusões confirmam a urgência de colocar-se em comum as concepções de edu-
cação e saúde, tomando ambas como lugares de convivência no acolhimento do
outro como legítimo outro, para alcançar bem-estar e alegria como indicadores
de nossa potência vital, marcada pela ternura e sensualidade do viver no amor
e na brincadeira.

A GESTAÇÃO DA IDEIA: o lugar do amor


Confessamos a cópia parcial deste subtítulo, tomado do prefácio de
Francisco Javier Varela García à segunda edição do livro De máquinas e seres
vivos: autopoiese – a organização do vivo (Maturana; Varela, 1997) pelas razões que

117
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

seguem. Primeiro, para expressar que somos seguidores de uma epistemologia


experimental,2 ou de uma epistemologia da experiência; o que delineia traços
que consideramos muito importantes de nosso modo de pensar sob o paradig-
ma da complexidade. Ou seja, partilhamos das ideias daqueles que defendem
“a ‘capacidade interpretativa do ser vivo’, que concebe o homem não como
um agente que ‘descobre’ o mundo, mas que o constitui” (Maturana; Varela,
1997, p. 35-36). Segundo, porque o que hoje chamamos de biologia do amar,
inicialmente nomeada por Maturana de “neurofisiologia da cognição” e depois
de “biologia da cognição”, tem raízes no pensamento latino-americano – mais
especificamente chileno – com Humberto Maturana e Francisco Varela, o que
nos impede de associá-la, por questões de coerência, com o caráter coletivo e
histórico da aprendizagem, a somente um deles.
Com contribuições da médica chilena Gabriela Uribe,3 alguns estudos de
Maturana sobre neurobiologia o levaram às primeiras tentativas de questionar a
representação como característica da percepção visual.4 Ainda segundo Varela,
“o antecedente direto da gestação da autopoiese é o texto de Maturana escrito em
meados de 1969, originalmente intitulado Neurophysiology of cognition”5 (Matu-

Expressão cunhada por Warren Sturgis McCulloch, neuroanatomista, psiquiatra e cibernético


2

norte-americano. Nascido em Orange, Nova Jersey, em 16 de novembro de 1898; faleceu em


Cambridge, Massachusetts, em 24 de setembro de 1969. Em parceria com Walter Pitts, publicou,
em 1943, o artigo intitulado A Logical Calculus of the Ideas Immanent in Nervous Activity (Cálculo
lógico de Ideias Inerentes à Atividade Nervosa), que é considerado um marco inicial dos estudos
sobre a chamada rede neuronal artificial, hoje conhecida como Inteligência Artificial – IA.
Médica que participou do grupo de pesquisa dirigido por Humberto Maturana. Em parceria com
3

Samy Freck e o próprio Maturana, é coautora do artigo intitulado A biological theory of relativistic
colour Coding in the primate retina. Archivos de Biologia y Medicina Experimentales. p. 1-30, 1968.
Nas palavras de Varela (Maturana; Varela, 1997, p. 40-41, “Humberto percebia que os seres vivos
4

são, como dizia naquela época, ‘auto-referidos’, e que de alguma maneira o sistema nervoso é
capaz de gerar suas próprias condições de referência. Tratava-se de fazer uma reformulação que
levasse a uma ‘epistemologia experimental’, um feliz termo introduzido por McCulloch”.
Versão já modificada desse estudo foi publicada como: Maturana, Humberto R. Biological Computer
5

Laboratory Research Report BCL 9.0. Urbana IL: University of Illinois, 1970. Mais tarde também foi
publicada em: Maturana, Humberto R. Autopoiesis and Cognition: The Realization of the Living.
Dordecht: D. Reidel Publishing Co., 1980, p. 5-58. Disponível em: <http://www.enolagaia.com/
M70-80BoC.html>. Acesso em: 26 jul. 2017.

118
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

rana; Varela, 1997, p. 43), fruto das interrogações que vinha fazendo a respeito
da inadequação das ideias de informação e representação para compreender o
sistema biológico.
A concepção da biologia do amor nos ajuda a compreender a vida e
também, na mesma espiral reflexiva, o que entendemos por saúde. Defendemos
uma concepção de saúde segundo uma abordagem complexa, o que nos leva a
compreendê-la como o estado de equilíbrio pleno e dinâmico do organismo vivo
em seu acoplamento estrutural e funcional com o meio. Em outras palavras, é a
existência, a vida possível de um organismo dentro de parâmetros e condições
desejáveis como exigência de sua forma própria de vida, conforme a fase no ciclo
vital de sua espécie. Retomando as reflexões de Maturana e Varela, a biologia do
amor exige compreender a autopoiese como processo vital dos seres vivos. Nas
palavras de Maturana (Maturana; Varela, 1997, p. 18),
[...] nós, os seres vivos, somos sistemas autopoiéticos moleculares, indi-
cando que o que nos define como a classe particular de sistemas auto-
poiéticos que somos, isto é, o que nos define como seres vivos, é que
somos sistemas autopoiéticos moleculares, e que [...] todos os fenômenos
biológicos resultam do operar dos sistemas autopoiéticos moleculares, ou
das contingências históricas de seu operar como tais e que, portanto, ser
vivo e sistema autopoiético molecular são o mesmo.

Indo além, Maturana vai propor e distinguir sistemas autopoiéticos de


diferentes ordens ao tratar dos seres vivos. Segundo ele, “as células são sistemas
autopoiéticos de primeira ordem”, uma vez que “existem diretamente como
sistemas autopoiéticos moleculares”. Já os organismos vivos são sistemas auto-
poiéticos de segunda ordem porque se estabelecem como “agregados celulares”
(Maturana; Varela, 1997, p. 19).
Ainda segundo o autor,
[...] é possível falar de sistemas autopoiéticos de terceira ordem ao con-
siderar, por exemplo, o caso de uma colmeia, ou de uma colônia, ou de
uma família ou de um sistema social como sendo um agregado de orga-
nismos. Porém, ali o autopoiético resulta do agregado de organismos e
não é o definitório ou próprio da colmeia ou da colônia, ou do sistema
social, como a classe particular de sistema que cada um desses sistemas é.

119
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

Nesse último caso, especificamente quanto aos sistemas de tercei-


ra ordem, é importante lembrar que não é mais a autopoiese que os define
como sistema social, mas sim a forma de relações que se estabelecem entre os
organismos que o compõem. Ainda assim, ressalta Maturana, é necessário não
esquecermos que esses sistemas também se configuram “através da realização
da autopoiese de seus componentes”.
Neste ponto cabe destacarmos a importância das relações, das interações
que se estabelecem na vida e conspiram por mais vida, sejam elas moleculares,
celulares ou entre organismos. No plano do humano, do que podemos chamar
de sistema social – dos sistemas autopoiéticos de terceira ordem – chegamos,
assim, à linguagem.

[...] digo que é na conservação de um modo de vida, caracterizada pelo


compartilhar alimentos no prazer da convivência e no encontro sensual
recorrente, no qual os machos e as fêmeas convivem em torno da criação
dos filhos, que pode dar-se, e há de se ter dado, o modo de vida em
coordenações consensuais de coordenações consensuais de ações que cons-
tituem a linguagem (Maturana, 1998, p. 21-22).

Vale ressaltar que em um nível biológico, pensando à deriva da espécie


humana, Maturana está falando de amor. Ou seja, para que organismos de um
sistema social – sistema autopoiético de terceira ordem – possam operar em
reciprocidade, na aceitação do outro como legítimo outro na convivência, é
necessária uma emoção que lhes garanta essa possibilidade.

[...] sustento que não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça
como tal e a torne possível como ato. Por isso penso também que, para
que se desse um modo de vida baseado no estar juntos em interações
recorrentes no plano da sensualidade em que surge a linguagem, seria
necessária uma emoção fundadora particular, sem a qual esse modo de
vida na convivência não seria possível. Esta emoção é o amor. O amor
é a emoção que constitui o domínio de ações em que nossas interações
recorrentes com o outro fazem do outro um legítimo outro na convivên-
cia (Maturana, 1998, p. 22).

120
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

Varela, complementarmente, em nossa compreensão, pensa a organização


do vivo como sendo “um mecanismo de constituição de sua identidade como
entidade material” (Maturana; Varela, 1997, p. 47), destacando que a constitui-
ção dessa identidade é circular:
[...] uma rede de produções metabólicas que, entre outras coisas, pro-
duzem uma membrana que torna possível a existência mesma da rede.
Esta circularidade fundamental é portanto uma autoprodução única da
unidade vivente em nível celular. O termo autopoiese designa esta organi-
zação mínima do vivo (Maturana; Varela, 1997, p. 47 – grifo do autor).

Para Varela, em referência a essa identidade autoproduzida ocorrem as


interações, tanto ao nível de sua estrutura físico-química quanto no âmbito da
unidade organizada em si. Nesse processo, segundo o autor, “aparece de maneira
explícita um ponto de referência nas interações e, portanto, surge um novo nível
de fenômenos: a constituição de significados. Os sistemas autopoiéticos inau-
guram na natureza o fenômeno interpretativo” (Maturana; Varela, 1997, p. 47
– grifos do autor). Assim, Varela defende que
o fenômeno interpretativo é uma chave central de todos os fenômenos cog-
nitivos naturais, incluindo a vida social. O significado surge em referência
a uma identidade bem definida, e não se explica por uma captação de
informação a partir do exterior (Maturana; Varela, 1997, p. 48 – grifos
do autor).

Apresentamos essas reflexões, que trazem e atualizam para o escopo do


pensamento educacional um conjunto de ideias acerca dos seres humanos e de
seus modos de viver-conhecer como sistemas autopoiéticos, com a intenção de
demarcar a emergência e a popularização das teorias que sustentam o paradig-
ma da complexidade como uma nova maneira de conceber o mundo. Ou seja, a
biologia do amor, ao colocar esse sentimento como central para a compreensão
do devir humano, possibilita outras maneiras de pensarmos e realizarmos nossa
interpretação da vida.

Outros enlaces entre educação e saúde


Pensar as relações da biologia do amor com a educação e a saúde, objetivo
central deste estudo, levou a percorrer outras concepções de aprender-viver, espe-
cialmente aquelas que defendem a inseparável presença do corpo e sua sensibi-

121
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

lidade, sobretudo a amorosidade, na aprendizagem. Fizemos isso na intenção de


defender olhares mais demorados acerca da centralidade do corpo como matéria
sensível, lugar privilegiado de ação e registro da linguagem da vida. Assim, para
além dos artefatos, invenções de nossa mais coerente racionalidade, que possi-
bilitam marcar inícios e trajetórias de nossos fazeres, é o corpo que carrega os
sentidos de nosso aprender, das ações nas quais se transforma, se conhece-vive e
pode mostrar as suas potências. Por isso, é urgente pensarmos outras concepções
de educação e saúde, porque também é delas que se nutre o nosso ser, aquilo que
sabe e a potência desse saber. De acordo com Espinosa: “Se uma coisa aumenta
ou diminui, facilita ou reduz a potência de agir do nosso corpo, a idéia (sic) dessa
mesma coisa aumenta, facilita ou reduz a potência de pensar de nossa alma”
(1973, p. 190). Nesse sentido, queremos pensar a educação como um lugar em
que se coloca em comum o mundo e sobretudo como um espaço primordial e
sagrado do que entendemos como democracia, pois se trata do lugar no qual
aprendemos, desde crianças, a acolher e a escutar o outro no desafio de viver a
relação de um “eu” com um “outro”.
Para dialogarmos sobre essa relação entre nossa compreensão do outro
como legítimo outro (Maturana, 1998) e a de saúde e bem-estar (Maturana;
Dávila, 2009), nos aproximamos de Cohn (2013) que, ao realizar um levan-
tamento sobre produções em antropologia com foco na pesquisa com crianças,
chama-nos a atenção para o fato de que o modo como olhamos para o outro
define nossas ações, nossa interpretação e nossas expectativas quanto a esse
outro. Nesse estudo, a antropóloga apresenta, entre outras, duas pesquisas que
discutem a relação entre concepções de criança e de saúde, justamente para
mostrar o quanto padrões e estereótipos adultos definem a atuação e a expecta-
tiva do adulto com relação ao outro, que, nesse caso, são crianças.
Nas políticas públicas de saúde, as concepções de infância entram forte-
mente em jogo. Este é um caso de um exemplo extremo, o dos diagnósticos da
depressão infantil. Eunice Nakamura acompanhou casos em que crianças [...]
recebem o diagnóstico de depressão. [...] Este diagnóstico é sempre feito tendo
por referência uma imagem de infância normal, ou seja, uma concepção de infân-
cia. [...] O trabalho de Nakamura demonstra que a medicina atua também na
definição de uma normalidade da infância (Cohn, 2013, p. 232).

122
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

Então, é preciso pensar em como olhamos e, sobretudo, em como escu-


tamos efetivamente o outro, e assim também, qual nossa compreensão sobre
educação, amor e saúde, pois a partir dessa compreensão é possível pensar as
relações, via biologia do amor, entre a educação e a saúde. Promover o debate
sobre essa relação diz respeito ao modo como convivemos com o outro, à cultura
de convivência que inventamos, o que pode constituir um convite a “um viver
no bem-estar psíquico e corporal, a um viver sem esforço na unidade de toda a
existência no fazer que surge do ver o presente quando não há preconceito ou
expectativa” (Maturana; Dávila, 2009, p. 59).
Importante sublinhar que pensamos saúde a partir do conceito de bem-
-estar. Quanto a isso, Maturana e Dávila (2009) contribuem para afirmar esse
conceito enquanto presente e efêmero em um caminho do amar que considera
o modo como existimos no fluir do impermanente.
É desde a consciência da experiência cotidiana de eternidade de um viver
transitório em que se vive cada instante como se fosse eterno que surge
em nós o desejo e a busca do permanente na tentativa de reter o valor
ou sentido desse presente que, embora se viva como permanente, sabe-se
que é transitório. [...] E não vemos que entramos num viver cego ante a
beleza de nossa transitoriedade que nos permite viver a identidade não
permanente que nos dá o bem-estar da conservação do desapego que
nos libera do controle [...]. O humano ocorre no efêmero, no trânsito
entre um começo e um fim, e é nesse trânsito que se pode dar um viver
no presente na conservação consciente do bem-estar que se vive quando
se vive sem apego nem rejeição à consciência do efêmero que nos faz
humanos, e humanos na Biologia do Amar (Maturana; Dávila, 2009,
p. 71).

Com a intenção de ultrapassar a ideia de padrões estereotipados e nor-


mativos acerca do outro, bem como de saúde (Cohn, 2013) e bem-estar, defen-
demos a perspectiva de uma experiência que não tem a ver com o que se vive, e
sim com o como se vive o que se vive. Existimos e operamos num devir em que
tanto nosso ser como organismo assim como o meio que torna nossa existência
possível, nos sustenta e nos conserva em nosso existir. Nós, na condição de seres
vivos, conservamos nosso viver em um meio acolhedor e amoroso, tornando pos-
sível nossa legitimidade operacional, qualquer que seja o modo de viver. Nesse
sentido, compreender as singularidades do viver de cada ser vivo, assim como

123
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

argumentam Maturana e Dávila (2009, p. 186), é uma escolha pelo caminho


“que leva ao entendimento profundo de que qualquer âmbito do viver humano
seja o Caminho do Amar na ampliação do olhar que o amar desde si implica”.
Perceber o outro como legítimo outro significa compreender que, na
relação, o outro produz ideias e saberes acerca do mundo que o cerca. Nessa linha
de pensamento, o ser vivo existe em seu viver como organismo numa dinâmica
molecular sistêmica de contínua produção de si mesmo. A contínua produção de
si mesmo do ser vivo ocorre na condição de sistema autopoiético.
Tudo o que ocorre no viver de um organismo ocorre como um aspecto
da contínua produção de si mesmo. No viver de um organismo não há
doença, nada funciona mal, porque no viver não há propósito nem inten-
ção, e o que ocorre a um organismo no fluir de seu viver é tão-somente
um aspecto do fluir de seu viver (Maturana; Dávila, 2009, p. 187).

Nesse sentido, perseguimos o conceito de saúde no sentido de bem-estar


que acontece no conviver no momento em que somos capazes de abandonar as
expectativas sobre o que deve acontecer, deixarmos de lado as exigências sobre
o dever-ser do outro ou de si mesmo e suspendermos a discriminação a partir
de uma verdade, de uma preconcepção. Assim, o bem-estar se constitui, na
premissa da biologia do amor, no caminho para a recuperação do respeito por si
mesmo e pelo outro e, com isso, para a liberação da dor.
Antes eu falava de amor, biologia do amor [...]; agora falo da Biologia
do Amar. A Biologia do Amar constitui o fundamento do bem-estar no
viver e conviver como dinâmica relacional no fato de que o amar consiste
nas condutas relacionais através das quais o outro, a outra, o próprio
ou o outro surge como legítimo outro na convivência com a gente, e é
o fundamento do mútuo respeito. Assim o amar é a única emoção que
amplia o olhar e expande o ver, o ouvir, o tocar, o sentir e faz isto porque
é o único olhar que não antepõe um preconceito, uma expectativa, uma
exigência ou um desejo como guia do ouvir e do olhar na conduta rela-
cional que se vive (Maturana; Dávila, 2009, p. 171).

Evitando adentrar aqui no debate que poderia ser feito em torno das
transformações conceituais apresentadas por Maturana e Dávila, considerando as
limitações de espaço deste artigo, optamos por acompanhar o pensamento destes
autores utilizando ambas as expressões: “biologia do amor” e “biologia do amar”,

124
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

conforme nos vão conduzindo os sentidos de nossa argumentação. Para situar o


leitor, porém, vale dizer que compreendemos a palavra amor como o nome da
emoção que sentimos ao estarmos afetivamente envolvidos em uma relação de
convivência, de acolhimento, de escuta do outro como legítimo outro. Amar,
por sua vez, remete ao sentido dessa ação de se envolver, de se dispor a estar
com o outro, a gostar de um outro ser, de alguma coisa ou de algum fenômeno.
Em ambos os casos, em nosso entendimento, o que está posto é a convivência,
em cujos domínios a ação rega a emoção que por seu lado realimenta a ação.
Em outras palavras, queremos afirmar que partindo da ideia de que é
na convivência que aprendemos a conhecer a nós mesmos e ao outro e de que
a mesma pressupõe a presença da alteridade, defendemos que o conviver tem
como foco referencial um sentimento de bem-estar como horizonte que possibi-
lita o início, o rompimento ou a iluminação da continuidade dessa experiência.
Assim, podemos recorrer a Maturana e Dávila para afirmar que: “Em nós, os
seres humanos, esse viver ocorre como um viver no linguajear sem se alienar no
explicar, viver que surge quando se vive na ampliação do ver no desapego que
é a Biologia do Amar” (Maturana; Dávila, 2009, p. 59). Ou, singularmente, as
palavras de Maturana quando defende que
[...] não há ação humana sem uma emoção que a estabeleça como tal e a
torne possível como ato. Por isso penso também que, para que se desse
um modo de vida baseado no estar juntos em interações recorrentes no
plano da sensualidade em que surge a linguagem, seria necessária uma
emoção fundadora particular, sem a qual esse modo de vida na convi-
vência não seria possível. Esta emoção é o amor. O amor é a emoção que
constitui o domínio de ações em que nossas interações recorrentes com
o outro fazem do outro um legítimo outro na convivência (1998, p. 22).

Para o que estamos argumentando na defesa de uma educação que aporte


a concepção de saúde e vice-versa, é importante destacar a aproximação que
vimos fazendo entre os sentidos de bem-estar e saúde, associados à escuta e ao
acolhimento que pela linguagem se configuram na convivência. Assim, o dese-
jado bem-estar, como sinônimo de saúde, é interdependente da alteridade, desse
outro com quem o ser convive. Fruto da imaginação, o desejo pelo bem-estar
nos leva a fazer escolhas conforme o domínio da emoção que predomina na con-

125
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

vivência. Algumas escolhas não nos trazem o bem-estar que buscamos porque
as realizamos no limite do que podemos saber um poder saber que alcançamos
na e pela linguagem.

Amor e brincadeira no tempo-espaço da escola


Maturana e Verden-Zöller (2004) sublinham que o amor é um fenômeno
biológico básico e cotidiano no humano, pois pertencemos a uma história bioló-
gica centrada na conservação do amor e do brincar como aspectos fundamentais.
O amor é o fundamento biológico do humano, pois é “a emoção central na
história evolutiva que nos dá origem” (Maturana, 1997, p. 174).
Pensar no amor e na brincadeira como fundamento biológico do humano
contribui para problematizarmos o que nos constitui como pessoas. Nesse
sentido, Piorski nos provoca a pensar a relação que estamos defendendo entre
educação e bem-estar, ao escrever que o interesse da criança pela vida diz respeito
a um desejo de estar perto de tudo que a constitui como pessoa.
O interesse da criança por formas, sons, gestos, afazeres, cores, sabores,
texturas, assim como suas perguntas sem fim, sua vontade de tudo
agarrar e examinar, e seu amor às miniaturas que comportam o grande
em menor tamanho, pode ser traduzido por um desejo de se intimidar
com a vida. Esse desejo embrenha a criança nas coisas existentes. É um
intimar para conhecer, pertencer, fazer parte, estar junto daquilo que a
constitui como pessoa (2016, p. 63).

Ao pensar nessas relações, o que nos provoca é debater a complexidade


da ação de brincar como linguagem e princípio da Biologia do Amor. Como
argumenta Piorski (2016, p. 96),
a criança pequena, já desde o final do primeiro até o sétimo ano de vida,
é vitalizada de um crescimento contínuo da fonte imaginal. Tudo o que
lhe chega pelos sentidos [...] logo se submete à lei sintética da vontade
imaginadora. [...]. Concêntrico é o brincar: no tempo e no espaço. No
tempo, por viver no agora, no presente, sem a culpa do passado e o temor
do futuro. No espaço, por animizar, (de)formar, plasticizar o mundo das
formas. Portanto, tempo e espaço, para a criança, não têm a linearidade
como o adulto a concebe, nem a mesma realidade por nós creditada.

126
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

Assim, nos aproximamos de Masschelein e Simons (2015), para, com


eles, defendermos a ideia de que a escola pode ser compreendida como tempo
livre, que transforma as habilidades e conhecimentos em bens comuns e, por
isso mesmo, “tem o potencial para dar a todos, independentemente de antece-
dentes, talento natural ou aptidão, o tempo e o espaço para sair de seu ambiente
conhecido, para se superar e renovar (e, portanto, mudar de forma imprevisível)
o mundo (p. 10). Nesse viés, os autores argumentam que a escola pode ser rein-
ventada, apresentando o mundo aos alunos de uma maneira interessante, envol-
vente. A escola, e com ela a educação, a partir dessa linha de pensamento, surge
como a materialização concreta do tempo que, literalmente, retira os alunos para
fora da desigualdade e para dentro do “luxo de um tempo igualitário”.
Acreditamos, corroborando com Masschelein e Simons (2015), que essa
escola como tempo livre, em que o mundo é partilhado e as crianças e os jovens
têm a experiência de serem capazes de começar, deve ser (re)criada. Esse caminho
dialoga com a compreensão de que a educação acontece mediante princípios de
escuta e acolhimento, legitimadas em ações de aprendizagens capazes de pro-
mover o amor, a alegria, a esperança, a saúde e o bem-estar entre pessoas que
convivem coletivamente. Conceber a escola como suspensão implica não só a
interrupção temporária do tempo, mas especialmente (re)começos de histórias,
sonhos, aprendizagens e esperança.
Acreditar nisso ajuda-nos a conceber a educação como ação capaz de
legitimar a presença do outro. Uma ação saudável, por origem. E, nessa pers-
pectiva, a escuta acontece pela observação, atenção e sensibilidade, como uma
atitude de acolhida do outro, que é diferente de mim, tem um tempo diferente
do meu e que, portanto, merece esta espera e este respeito, pela razão simples –
numa dimensão complexa – de ser ele um legítimo outro.
Em outras palavras, digo que só são sociais as relações que se fundam
na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência, e que tal
aceitação é o que constitui uma conduta de respeito. Sem uma história
de interações suficientemente recorrentes, envolventes e amplas, em que
haja aceitação mútua num espaço aberto às coordenações de ações, não
podemos esperar que surja a linguagem. Se não há interações na aceita-
ção mútua, produz-se a separação ou a destruição. Em outras palavras,
se há na história dos seres vivos algo que não pode surgir na competição,
isso é a linguagem (Maturana, 1998, p. 24).

127
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

Aqui, consideramos relevante destacar a responsabilidade da escola, pois


a educação da qual tratamos é a que ocorre nas relações no espaço escolar.
Como postula Maturana (2005), o âmbito educacional deve ser amoroso e não
competitivo, um âmbito no qual se corrige o fazer e não o ser da pessoa, pois
somos seres pertencentes ao presente de uma história amorosa, não de agressão
ou de competição. Como defende Freire (2005), não podemos nos esquivar da
responsabilidade ética em nosso mover-nos no mundo.
[...] mais do que um ser no mundo, o ser humano se tornou uma pre-
sença no mundo, com o mundo e com os outros. Presença que, reco-
nhecendo a outra presença como um “não-eu”, se reconhece como “si
própria”. Presença que se pensa a si mesma, que se sabe presença, que
intervém, que transforma, que fala do que faz, mas também do que
sonha, que constata, compara, avalia, valora, que decide, que rompe. E é
no domínio da decisão, da avaliação, da liberdade, da ruptura, da opção,
que se instaura a necessidade da ética e se impõe a responsabilidade
(Freire, 2005, p. 9)

Nesse sentido, uma educação que se organize pela alegria da brincadeira


e seja realizada na amorosidade da escuta e do acolhimento do outro, não está
dissociada de nossa responsabilidade ética, pois é a mesma que ocorre em pro-
funda sintonia com o bem-estar e com a saúde de todos. Ou seja, uma ação de
aprender e de ensinar que pode ser legitimadora da presença do outro é a mesma
que legitima a nossa presença e por isso mesmo pode (re)alimentar o bem-estar
e a alegria daqueles e daquelas que habitam o tempo e o espaço educacional da
escola.

REFLEXÕES FINAIS
Percebemos, ao finalizar este texto, o quanto há para se pensar e expor
acerca das contribuições da Biologia do Amor para uma concepção de educação
na sua intrínseca relação com a saúde. Assim, consideramos oportuno retocar,
sucintamente, algumas das ideias que apresentamos nas páginas anteriores.
Quando falamos em ser humano, para além das contribuições do para-
digma da complexidade aqui apresentadas pela teoria da Biologia do Amor,
também nos reportamos à compreensão de Paulo Freire que o concebe como
“ser social e histórico, pensante, comunicante, transformador, criador, realiza-

128
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

dor de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar” (Freire, 2005, p. 41).
Ou seja, não defendemos aqui uma educação e uma escola que apenas sigam
as concepções e procedimentos de viés segregacionista, bastante presentes nas
mídias atuais, segundo as quais professores e estudantes não podem conversar
e aprender sobre gênero, etnia, livre manifestação artística e cultural. Por que,
afinal, como enfatiza o sábio oriental Jiddu Krishnamurti6 (1895-1986), uma
pessoa não será ou terá uma boa referência de saúde se estiver bem ajustada à
cultura de uma sociedade doentia.
Assim, procuramos não trazer para o debate acerca das relações da educa-
ção com a saúde exemplos de práticas em saúde que sirvam para a educação ou
vice-versa. Aqui nos referimos, por exemplo, à ideia em voga nos últimos tempos
de se falar em “residência pedagógica” em substituição ao “estágio”, porque não
queremos pensar que as crianças sejam obrigadas, por alguma manifestação de
problemas de saúde, a vir para a escola e tampouco que ali elas sejam nossos
“pacientes”. Tratamos de pensar educação e saúde a partir da Biologia do Amor
para problematizar e perceber como essas duas áreas de ações do humano no
mundo podem conversar sem anular uma à outra. Defendemos, isto sim, que a
educação realizada segundo a Biologia do Amor, pela qual destacamos a escuta
e o acolhimento do outro como legítimo outro na convivência, tem a ver com
saúde, com o bem-estar porque tem no desejo da alegria e da felicidade daque-
les e daquelas que habitam a escola as suas referências de vida e aprendizagem
coletivas. Nesse sentido, vale lembrar das palavras de Mariotti, parafraseando
Espinosa: “não desejamos as coisas porque as consideramos boas: ao contrário,
nós as consideramos boas porque as desejamos” (1997, p. 13).7

Para referência de suas obras e conferências recomendamos: <https://pt.wikipedia.org/wiki/


6

Jiddu_Krishnamurti#Refer.C3.AAncias>.
Nas palavras de Espinosa: “não apetecemos nem desejamos qualquer coisa porque a considera-
7

mos boa; mas, ao contrário, julgamos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque a
queremos, a apetecemos e desejamos”. (1973, p. 190).

129
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

Segundo Oswaldo Giacóia Jr., “desejo é potência de existir. É a mola


propulsora que nos leva além do conhecimento imaginário”.8 O filósofo lembra
o ideal de conhecimento e de verdade que bloqueia aos afetos a possibilidade
de contribuir para um conhecimento objetivo das coisas, afirmando que essa
maneira de compreender atribui aos afetos um papel negativo, levando a bani-los
das atividades intelectuais. Para a defesa dos afetos nos processos de conhecer e
interpretar o mundo, Oswaldo Giacóia recorre à Nietzsche.
De agora em diante, senhores filósofos, guardemo-nos bem contra a
antiga, perigosa fábula conceitual que estabelece um “puro sujeito do
conhecimento, isento de vontade, alheio à dor e ao tempo”, guarde-
mo-nos dos tentáculos de conceitos contraditórios como “razão pura”,
“espiritualidade absoluta”, “conhecimento em si” – tudo isso pede que
se imagine um olho que não pode absolutamente ser imaginado, um
olho voltado para nenhuma direção, no qual as forças ativas e interpre-
tativas, as que fazem com que ver seja ver-algo, devem estar imobiliza-
das, ausentes; exige-se do olho, portanto, algo absurdo e sem sentido.
Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um “conhecer” perspectivo;
e quanto mais afetos permitirmos falar sobre uma coisa, quanto mais
olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto mais
completo será nosso “conceito” dela, nossa “objetividade”. Mas eliminar
a vontade inteiramente, suspender os afetos [...] seria castrar o intelecto
(Nietzsche, 1988, p. 47).

A partir da ideia de “conatus”, em Espinosa (1973), Giacóia compreende


que conhecer não é algo que ocorra sem um afetar-se. Conhecimento, segundo
ele, “é o meio-termo no conflito entre as paixões. Quanto maior é a capacidade
de afecção do corpo, maior é a potência. O conhecimento não elimina o corpo”.9
Importa, aqui, destacarmos o fato de que nos afetamos, e aprendemos, nas rela-
ções com o outro, nos encontros com o outro. A questão que se impõe, novamen-
te, então, tem a ver com a convivência; tem a ver com o tipo de encontro de que
participamos com esse outro. Assim, se nosso encontro se dá na amorosidade, na
escuta e no acolhimento próprios de uma Biologia do Amor teremos as alegrias

Disponível em: <http://www.institutocpfl.org.br/2015/09/15/o-poder-dos-afetos-com-oswaldo-


8

-giacoia-jr-integra/>.
Idem.
9

130
BIOLOGIA DO AMOR, EDUCAÇÃO E SAÚDE

de encontros bons. Encontros bons tendem a aumentar a potência de nosso devir


porque aumentam a potência do nosso corpo. “O que define a nossa natureza é
precisamente a nossa potência. Todo encontro que nos fortalece é um encontro
que nos produz alegria”.10
Assim, as conclusões a que chegamos com nosso estudo, no qual pensa-
mos as relações entre educação e saúde a partir da Biologia do Amor concebida
como uma teoria que possibilita outra interpretação da vida, confirmam que
os caminhos para que a educação contemple a saúde e vice-versa passam pela
escuta e pelo acolhimento do outro na alegria dos encontros. Em outras palavras,
compreendemos a potência da educação e da saúde quando são tomadas como
espaços os quais as pessoas possam tornar seus lugares de pertencimento para
alcançar o bem-estar e a alegria desejados.

REFERÊNCIAS
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logia da criança no Brasil. In: Civitas – Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre:
PUCRS, v. 13, n. 2, p. 221-244, maio/ago. 2013.
ESPINOSA, B. Pensamentos metafísicos. Tratado da Correção do Intelecto. Ética.
Tratado Político. Correspondências. Tradução Marilena Chauí. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).
FREIRE, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São
Paulo: Paz e Terra, 2005.
GIACÓIA JR. O. O poder dos afetos (Palestra). Café Filosófico. Campinas: Insti-
tuto CPFL, 15 set. 2015.
MARIOTTI, H. O conhecimento do conhecimento: a filosofia de Espinosa e o
pensamento complexo. Revista Thot, São Paulo, 67:25-33, 1997. (Publicado com
pequenas modificações).
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. Em defesa da escola: uma questão
pública. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.

Disponível em: <http://www.institutocpfl.org.br/2015/09/15/o-poder-dos-afetos-com-oswaldo-


10

-giacoia-jr-integra/>.

131
Felipe Gustsack – Niqueli Streck Machado

MATURANA, H. R.; DÁVILA, X. Y. Habitar humano em seis ensaios de biologia-


-cultural. São Paulo: Palas Athena, 2009.
MATURANA, H. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte:
Editora UFMG, 2005.
______. Emoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1998.
MATURANA, H. R.; VERDEN-ZÖLLER, G. Amar e brincar: fundamentos
esquecidos do humano do patriarcado à democracia. São Paulo: Palas Athena,
2004.
MATURANA, H R.; VARELA, Francisco J. De máquinas e seres vivos: autopoiese
– a organização do vivo. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997.
NIETZSCHE, F. W. Genealogia da moral – uma polêmica; III – O que significam
ideais ascéticos? Belo Horizonte: Companhia das Letras, 1988.
PIORSKI, G. Brinquedos do chão: a natureza, o imaginário e o brincar. 1. ed.
Uberaba: Fundação Peirópolis, 2016.

132
PARTE 2

A ESCRITA
DA EXPERIÊNCIA
TECENDO REDES, CONSTRUINDO LUGARES:
As Interfaces entre Saúde Mental Coletiva
e Educação Especial na Perspectiva Inclusiva
Ricardo Lugon Arantes
Danielle Celi dos Santos Scholz
Cláudia Rodrigues de Freitas

A vida pode ser inventada quando todas as imagens são produzidas de


antemão?
Guattari – Sim, veja o exemplo dos químicos. Eles trabalham com o
mesmo material todos os dias: carbono, hidrogênio. O principal é livrar-
-se dessa espécie de redundância, de serialidade, de produção em série
da subjetividade, de solicitação permanente a voltar ao mesmo ponto. É
como a situação de um pintor, que compra suas tintas na mesma loja. O
que interessa é o que vai fazer com elas (Guattari; Rolnik, 1999, p. 53).

Os campos da Saúde Mental Coletiva e da Educação Especial na pers-


pectiva inclusiva compartilham importantes desafios na condição de políticas
públicas no sentido de produzir lugares para sujeitos historicamente excluídos
da possibilidade de contratualidade em um contexto de crescentes processos de
exclusão.
A Saúde Mental Coletiva organiza seu modo de operar sobre a realidade
a partir dos legados construídos no percurso de diferentes movimentos sociais.
Destacamos aqui a importância do movimento sanitarista do final da década de
70, o qual culminou com a instituição de saúde como direito de todos e dever do
Estado no texto da Carta Magna (Brasil, 1988), e da Reforma Psiquiátrica, cujo
objetivo é transformar a visão social sobre a loucura na defesa de uma sociedade
sem manicômios (Amarante, 2007).
A Educação Especial na perspectiva inclusiva, por sua vez, herdeira da
lendária iniciativa de Itard junto ao selvagem de Aveyron (Montanari, 1991),
teve suas práticas revisitadas nas últimas décadas. Os movimentos que culmi-
Ricardo Lugon Arantes – Danielle Celi dos Santos Scholz – Cláudia Rodrigues de Freitas

naram com a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência
romperam com o paradigma biomédico e propuseram uma leitura ampliada para
a questão da deficiência, oferecendo uma nova forma de conceituar as barreiras
que estas pessoas enfrentam (Câmara..., 2015).

AGENCIAR O CUIDADO E OS PROCESSOS DE INCLUSÃO:


As “Reuniões de Rede”
Em Novo Hamburgo,1 trabalhadores implicados nestes dois movimentos
encontram-se mensalmente na busca de uma tessitura de redes de cuidado e
produção de lugares para sujeitos-crianças-adolescentes em vivências de exclusão
ou que pairam à margem das políticas vigentes. A constituição das “reuniões de
rede” remonta ao final dos anos 90, quando servidores das Secretarias Municipais
de Educação e de Saúde começam a pensar as práticas nos territórios a partir da
intersetorialidade, lançando mão da ideia de tecer redes capazes de dar conta da
complexidade das maneiras de viver naqueles espaços de exclusão.
Redes, nesse contexto, deixam de ser reduzidas à mera existência dos
serviços estatais ou eventualmente de instituições filantrópicas. Como nos aponta
Couto (2012), as redes devem ser pensadas como uma forma de agir e conceber o
cuidado, ou seja, o que indica a existência de uma rede é muito mais a sincronia
com a qual os seus trabalhadores lançam-se ao compartilhamento de objetivos
comuns (Kinoshita, 2015) e não necessariamente à dimensão estrutural dos edi-
fícios nos quais trabalham seus operadores, ainda que o seu componente material
não possa de maneira alguma ser negligenciado (Couto; Delgado, 2016). Nas
redes, são concretas as relações que os trabalhadores estabelecem entre si, mesmo
atravessadas por tensionamentos, discordâncias e impasses. Em outras palavras:
Rede supõe um processo. Ou seja, a positividade de uma rede depende
de ela estar em permanente construção. Dessa forma, “construir rede” –
fala recorrente no campo da SMCA – não visa em si uma materialidade,
onde um conjunto de dispositivos estaria à disposição dos operadores
para referência e contrarreferência dos casos atendidos. (...) A rede, então,
nunca estará finalizada, porque nunca se poderá saber de antemão o
que um determinado caso demandará como suporte em seu processo de

Novo Hamburgo, cidade próxima a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, onde acontece a ação.
1

136
TECENDO REDES, CONSTRUINDO LUGARES

tratamento e cuidado, para que alcance a ampliação de sua cidadania


no que diz respeito aos modos possíveis de pertencimento social (Couto;
Delgado, 2016, p. 181)

Entra em cena aqui o conceito de tecnologias do cuidado propostas por


Merhy e Feuerwerker (2009), nesse processo de invenção/produção de cuidado
e inclusão aptas a gerar protagonismo e pertencimento das crianças e adoles-
centes que habitam um determinado território. Trilhamos as reflexões seguintes
a partir dos escritos destes autores, que nos emprestam o conceito de caixa de
ferramentas e seus respectivos tipos de tecnologias no contexto da produção de
cuidados de saúde.
Os autores recorrem a um fragmento da leitura de Marx sobre o trabalho.
Todo processo de produção envolve o trabalho do homem em si, as matérias-
-primas e as ferramentas ou instrumentos de trabalho. O projeto do trabalho
a ser realizado define a articulação e a sequência de utilização destes compo-
nentes. O ato vivo do homem permite juntar estes componentes para criar um
certo produto. Denominam trabalho morto os produtos-meio envolvidos no
processo e que são resultados de um trabalho humano anterior (as ferramentas,
por exemplo, que não existiam antes de serem produzidas,2 mas que num novo
processo produtivo já estão dadas).
Por sua vez, o trabalho vivo em ato é a tarefa de criar, que possibilita
a fabricação de um novo produto. O processo produtivo, assim, demanda do
homem uma certa autonomia sobre os elementos que já estão dados e esse auto-
governo está marcado pela ação do seu trabalho vivo em ato sobre o que lhe é
ofertado como trabalho morto e às finalidades perseguidas.
Nosso olhar aqui pousa sobre o campo das relações do trabalhador com o
seu ato produtivo e o resultado do exercício do seu ofício, e com outros trabalha-
dores e possíveis usuários de seus produtos. O lugar social do trabalhador, seus

Ainda que a ideia de invenção das ferramentas pareça interessantíssima, pensamos que as ferra-
2

mentas são sim produzidas. Há o trabalho vivo de produzi-las; este se apropria do trabalho morto
de quem as inventou. É como se fosse a 2ª geração: alguém inventou (trabalho vivo), alguém
copiou (saber morto, mas trabalho vivo de produzi-las) e o 3º na fila pegou a ferramenta pronta
e fez novos produtos...

137
Ricardo Lugon Arantes – Danielle Celi dos Santos Scholz – Cláudia Rodrigues de Freitas

valores culturais, seu pertencimento ou não ao processo produtivo vai ser crucial
para determinar se aquele trabalho se tornará um composto de atos cuidadores/
educadores ou uma sequência de ações mecânicas e desimplicadas.
O trabalho de cuidar e educar demanda que seus operadores utilizem fer-
ramentas tecnológicas, incluindo os saberes que carregam e seus desdobramentos
materiais e imateriais, e tais ferramentas fazem sentido de acordo com o lugar
que ocupam nesse encontro e conforme as finalidades almejadas.
Merhy e Feuerwerker denominam de tecnologias duras aquelas que
envolvem as ferramentas-equipamentos necessários para alimentar a produção
discursiva centrada em um certo tipo de raciocínio clínico-pedagógico e às inter-
venções terapêuticas-educantes que consomem trabalho morto (das máquinas)
e trabalho vivo de seus operadores.
As tecnologias leve-duras, por sua vez, lançam mão de ferramentas que
envolvem processos de apreensão do mundo e de suas necessidades a partir de
um ponto de vista de determinados saberes bem definidos, aos quais os autores
chamam de trabalho morto, pois produzidos anteriormente. Quando um traba-
lhador de saúde antepõe o nome da doença ao nome do sujeito, quando um pro-
fessor parte do diagnóstico classificatório para pensar o atendimento educacional
especializado de uma criança com deficiência, ocorre reprodução de trabalho
morto, pois sua parte “viva” ficou a cargo daqueles responsáveis por elaborar os
conceitos, parâmetros, categorias, etc.

A TESSITURA DA EDUCAÇÃO ESPECIAL E SAÚDE MENTAL COLETIVA


Nas “reuniões de rede” a produção de saber emerge dos encontros e novas
narrativas de produção de cuidado constituem-se por meio do trabalho vivo
produzido entre a Educação Especial e Saúde Mental Coletiva. O trabalho vivo
acontece em ato, no momento do processo criativo, portanto ocorre na atividade
do trabalhador, sendo controlado por este. Tal proceder oferece altos graus de
liberdade na execução da sua atividade produtiva, pois se realiza enquanto é
exercida a tarefa (Merhy; Franco, 2012).
Cartografando estas tessituras emergem, na micropolítica dos encontros
destes sujeitos em rede, narrativas de suas vozes, dialogando sobre o campo das
deficiências, atentas às afetações e laços fortes nas redes de cuidado e a produção

138
TECENDO REDES, CONSTRUINDO LUGARES

social dessas pessoas. Tomamos as palavras de Benjamim (1994, p. 198) ao com-


preender estes narradores a partir da “experiência que passa de pessoa a pessoa
aí é a fonte a que recorreram todos os narradores”, trabalho em rede, em ato,
produção de si e de novos mundos.
E é no território das ações cuidadoras que essa negociação pode aconte-
cer. É esse território que pertence aos usuários e a todos os trabalhadores
(...). É esse território que é configurado a partir do trabalho vivo em ato
e da articulação de saberes que pertencem ao mundo da vida e não estão
aprisionados pela razão instrumental. É nesse território que se produzem
os encontros e a possibilidade de uma construção efetivamente negocia-
da, pois aí é que se pode fabricar autonomia para os usuários e o trabalho
da equipe (Merhy; Feuerwerker, 2009).

Em novembro de 2016, às margens de uma artéria rodoviária que trans-


passa a capital nacional do calçado, um ginásio de futsal acolhe o encontro
mensal entre os dispositivos intersetoriais de um dos cinco distritos sanitários
de Novo Hamburgo. Na pauta o tema “pessoas com deficiência”. Agendada
com alguns meses de antecedência, a ocasião possibilitou o comparecimento de
dois representantes do Conselho Municipal dos Direitos das Pessoas com Defi-
ciência. Faziam-se presentes trabalhadores de escolas municipais, unidades de
saúde e dispositivos da assistência social, além de representantes da associação
de moradores de um dos bairros e do projeto futsal social que sediou o encontro.
Um dos autores fez uso da palavra para apresentar resumidamente como
seriam os trabalhos. Os participantes leram e assinaram o termo de consentimen-
to autorizando o registro de suas falas. Em seguida, exibimos o vídeo The Eyes
of a Child (Os olhos de uma criança,3) o qual exibe uma situação na qual pais e
filhos são convidados a “mimetizar” caretas feitas por outras pessoas numa tela
projetada. Na cena final, uma criança com deficiência é retratada fazendo careta
e apenas as crianças reproduzem a cena, focando o constrangimento dos pais e
valorizando a naturalidade do olhar da criança sobre a questão da deficiência.
Por um problema operacional as falas foram registradas apenas em papel, não
ocorrendo uma gravação em áudio a partir do qual pudesse haver transcrição
ipsis literis.

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WB9UvjnYO90>.


3

139
Ricardo Lugon Arantes – Danielle Celi dos Santos Scholz – Cláudia Rodrigues de Freitas

Com o esforço possível de registrar cada intervenção, trazemos a seguir


as vozes desses protagonistas a partir do disparador do vídeo.

REVELANDO VALIOSOS VIVERES


Destacamos a seguir algumas narrativas que emergem nesta “reunião de
rede” a partir do vídeo disparador, pensando as formações discursivas e os efeitos
dos atos produtivos dos trabalhadores dessas redes de sustentação e cuidado de
crianças e adolescentes, na busca da produção de lugar social para/com estas
pessoas por meio do imperativo do cuidado e da afirmação da vida como contra-
ponto para as diversas barreiras erguidas sobre as bases da exclusão em diferentes
espaços da sociedade.
As falas ecoam o fazer da rede em movimento, autênticas vozes de
cuidado e produção de lugar social fundidas aos saberes da interdisciplinarida-
de. Destacamos este mover que sustenta o trabalho vivo em ato de tecnologias
de cuidado leves. Vozes de diferentes profissionais se entrecruzam:
“não estou preparado”, nossas crianças veem de outra forma, nossa cultura sempre
segregou – quanto mais falamos, leio, participo, vai dando um reforço.
O cuidado acaba ressaltando a diferença.
Como construímos igualdade na diferença? (Anotações do caderno de campo,
2016).

Nestas falas podemos observar as narrativas partindo de saberes e fazeres


que emergem de tecnologias de cuidado leves, ou seja, relacionais e integraliza-
das, centradas nos sujeitos e na produção de subjetividade que compõe os tra-
balhos em redes individuais e coletivas, implicadas com a produção do cuidado
(Merhy; Franco, 2003). Destacamos a busca por construir igualdade nas dife-
renças e na potência da criação dos trabalhadores feita na tessitura das redes,
possibilitando “reforço” nestes fazeres a partir da micropolítica dos encontros.
Trazemos também narrativas desta vivência a marcar a potência dos
agenciamentos e diferentes olhares que compõem as articulações de cuidado e
produção de lugar social de adolescentes e crianças com deficiências na tessi-
tura da Educação Especial e Saúde Mental Coletiva de modo interdisciplinar
em rede.

140
TECENDO REDES, CONSTRUINDO LUGARES

Precisamos de pessoas com coragem para falar e todos escutarem


“a gente nunca está preparado”
[...] se a gente quer que mude, tem que ter coragem de se dispor e de se indispor
(Anotações do caderno de campo, 2016).

Estas falas compõem a busca por arranjos a se produzir na lógica de


cuidado costuradas na singularidade dos sujeitos, trabalhadores que nestes
encontros lançam mão de coragem e criatividade no cotidiano de suas práticas
em desdobramento de itinerários de redes de suporte que integram saberes inter-
disciplinares e diferentes setores implicados na afirmativa da inclusão social como
produção de vida. As considerações sobre a interdisciplinaridade levam a pensar
nas especialidades e na formação dos especialistas. Entendemos, porém, que, se
as fronteiras são necessárias para dar segurança, definir tarefas, também precisam
ser flexíveis para permitir as trocas e a constituição de redes, configurando um
trabalho vivo e criativo (Barbosa et al., 2009).
A nossa dureza, do adulto, não consegue, criança é tudo igual, o preconceito... “os
pais não conseguiam fazer a cena, não aceitam... as crianças agem naturalmente”.
“Qual é o pensamento deles?” “É pena, é preconceito, não conseguir ver como uma
pessoa normal... as pessoas se chocam”; “o que é isso, é uma piada?”;“não posso
imitar pois vou estar debochando”; “temos valores que nos impedem”;... “tem
duas questões: o dedo no nariz e a diferença da pessoa” (Notas de diário de
campo, 2016).

Ouvir e ver o outro ensina tanto quanto o conhecimento já pronto e


embalado. Cada pessoa traz em si a sua história e a de muitos outros também. O
momento de trocar saberes entrelaça o pensar e o fazer. Compartilhar experiências
é tecer uma grande rede de cuidado, atenção e carinho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A experiência em ato indicou que a interface entre Saúde Mental Coletiva
e a Educação Especial na perspectiva inclusiva delineia importantes vetores de
produção de vida, saúde e inclusão a partir da construção de redes. Essas podem
ser pensadas ao mesmo tempo como instauradoras de suporte às pessoas com
deficiências e produtoras de si para os seus protagonistas, que emergem rein-
ventados do enfrentamento compartilhado das barreiras.

141
Ricardo Lugon Arantes – Danielle Celi dos Santos Scholz – Cláudia Rodrigues de Freitas

As reuniões de rede como dispositivos intersetoriais e inclusivos oferecem


espaço para a circulação de vozes e narrativas de seus protagonistas, permitindo a
movimentação dos saberes e afetações como forma constituinte de novas apostas
nos sujeitos-crianças-aprendentes. A sustentação de encontros vivos e poten-
tes entre trabalhadores da Saúde Mental Coletiva e da Educação Especial tem
tornado possível a disseminação de tecnologias leves como ética predominante
nas redes hamburguenses.

REFERÊNCIAS
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2007.
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Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.
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142
TECENDO REDES, CONSTRUINDO LUGARES

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ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo.
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143
OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSI:
Relato de Experiência
Maria Aridenise Macena Fontenelle
Larissa Nogueira de Morais
Max Silva de Oliveira
Maria do Carmo Duarte Freitas
Isaura Uhmann

O programa Oficinando em Rede é realizado semanalmente com quatro


turmas de oito usuários do CAPSi em Mossoró, no Rio Grande do Norte. Em
reunião mensal de avaliação do programa foi solicitada pelos familiares alguma
atividade que pudesse ser desenvolvida por eles durante as oficinas realizadas
com os jovens e as crianças. Considerando a formação de uma docente da equipe
na Pedagogia Waldorf, optou-se por realizar atividades utilizando a aquarela e
o desenho de formas.
A Pedagogia Waldorf, metodologia de ensino baseada em procedimen-
tos artísticos, existe desde 1919, quando Rudolf Steiner, seu criador, fundou a
primeira escola em Stuttgart, na Alemanha.
Essa Pedagogia busca abranger os três veículos de expressão que são:
o corpo, a mente e as emoções, que correspondem respectivamente às funções
do querer, sentir e pensar, fundamentais para a plena realização do potencial
humano.
A educação do corpo, por meio de atividades práticas de jardinagem,
marcenaria, construção, ginástica, trabalhos manuais, entre outras, como é
praticada nas Escolas Waldorf, fortalece também o caráter do indivíduo, pois
desenvolve a sua força de vontade, criando nele qualidades como a disposição
para enfrentar dificuldades e a perseverança.

145
Maria Aridenise Macena Fontenelle – Larissa Nogueira de Morais – Max Silva de Oliveira
– Maria do Carmo Duar te Freitas – Isaura Uhmann

As emoções são trabalhadas por meio da arte: música, canto, desenho,


pintura, literatura, teatro, recitação, escultura e cerâmica. Por intermédio da
expressão artística, são dadas muitas oportunidades para o refinamento da sen-
sibilidade e a harmonização de conflitos nas áreas afetiva e social.
Com a educação integrada de todos os aspectos do seu ser, o indivíduo
aprende a não dissociar seus pensamentos, sentimentos e ações, podendo tornar-
-se um adulto equilibrado e coerente.
Este texto apresenta um estudo sobre procedimentos artísticos utilizados
na sala de aula durante a Educação Básica no curso de formação em Pedagogia
Waldorf. Enfatiza a realização de atividade prática em aquarela e desenho de
formas realizadas com as famílias dos jovens e das crianças que participam do
programa Oficinando em Rede no CAPSi em Mossoró, RN. As oficinas são
coordenadas por um docente do curso de Engenharia Civil e uma discente do
Direito na Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa) na região Nor-
deste do Brasil. Cabe salientar que questões legais sobre os direitos dos usuários
do CAPSi são discutidas com a estudante de Direito. Durante uma das oficinas
foram debatidas com os participantes questões sobre saúde, bem-estar, qualidade
de vida, saúde física e mental.

PSICOLOGIA COGNITIVA
A Psicologia Cognitiva é mencionada com o intuito de exprimir quais
fatores fazem com que os indivíduos atentem para o desenho como expressão
artística. Para isso, são identificados os aspectos relacionados à percepção dos
objetos, atenção do leitor e também a interpretação dos conteúdos veiculados.
Os elementos que compõem uma mensagem visual são utilizados para
representar um significado, com vistas a indicar o objetivo desejado. Sobre esse
aspecto Dondis expõe:
Na criação de mensagens visuais, o significado não se encontra apenas
nos efeitos cumulativos da disposição dos elementos básicos, mas
também no mecanismo perceptivo universalmente compartilhado pelo
organismo humano. Colocando em termos mais simples: criamos um
design a partir de inúmeras cores e formas, texturas e tons e proporções
relativas; relacionamos interativamente esses elementos; temos em vista
um significado (2007, p. 30).

146
OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSI

O autor, no entanto, discute ainda que o significado depende da resposta


do espectador, que também modifica a mensagem e a interpreta por intermédio
da rede de seus critérios subjetivos. A veiculação do conteúdo de forma clara
torna-se fundamental para que o usuário receptor da mensagem possa interpre-
tar de maneira correta.
No contexto dos anúncios, segundo Arnheim (2000), a percepção envolve
o sentido da visão, pelo qual realiza, a nível sensório, o entendimento. Dondis
(2007) explica que a percepção é a capacidade de organizar a informação, seja
no momento de montar a mensagem ou de interpretá-la, e depende de processos
naturais, das necessidades e propensões do sistema humano.
A Teoria da Gestalt apresenta a forma como uma “entidade percebida em
sua totalidade, como um elemento único do qual dependem as propriedades das
partes, como uma totalidade da qual submergem os detalhes” (Coelho Netto,
2007).
A Gestalt está diretamente ligada ao estudo da forma, esta sendo conside-
rada por Arnheim (2000) como um meio de identificação melhor do que a cor,
não somente porque oferece mais tipos de diferença qualitativa, mas também por
suas características distintivas, que são mais resistentes às variações do ambien-
te. De fato, as formas dos objetos podem ser analisadas independentemente do
ângulo de visão ou luminosidade dos ambientes, enquanto a cor sofre variações
dependendo do local em que o indivíduo se encontra.
As leis da Gestalt serão apresentadas nesta pesquisa de forma geral, visto
que o propósito não é fazer um estudo minucioso da teoria, mas sim perceber
como esta pode influenciar na aprendizagem. O objetivo é compreender melhor
as leis dispostas, em que a principal consideração é acerca do entendimento e da
interpretação realizados pelos indivíduos que as observam.

ASPECTOS SEMIÓTICOS
Diferentemente das demais pesquisas e para propor os elementos de inde-
xação, esta investigação requer que o pesquisador faça uso do método semiótico,
além de utilizar a pesquisa bibliográfica e de campo.

147
Maria Aridenise Macena Fontenelle – Larissa Nogueira de Morais – Max Silva de Oliveira
– Maria do Carmo Duar te Freitas – Isaura Uhmann

O princípio da semiótica implica uma expropriação do objeto, o que


somente é possível quando se relacionam os conceitos de realidade e verdade.
A semiótica não se refere diretamente à realidade, ela prefere fazer por meio do
signo e do texto (Duarte; Barros, 2005).
Peirce criou o método semiótico na tentativa de desenvolver uma ciência
de todas as ciências criando o princípio do pragmatismo. Em grego pragma quer
dizer experiência, portanto toda conclusão deve ser submetida à experiência,
deve ser checada em todas as suas possibilidades para que possa convencer de
sua veracidade (Duarte; Barros, 2005).
Hamaguchi (apud Gomes Filho, 2003), acrescenta o conceituado signo
como um processo e um mecanismo pelo qual a informação é transmitida para
o cérebro através do sensor dos cinco sentidos humanos. O signo não apenas diz
respeito ao reconhecimento de alguma coisa, mas também promove a comuni-
cação entre pessoas e entre objetos e pessoas.
Com a tecnologia da escrita, o texto passa a ser um espaço de registro do
objeto com limites claros que embora de certa constrição, simultaneamente é um
espaço aberto para a construção dos sentidos (Gomes Filho, 2000). A necessidade
do método semiótico surge junto com o objeto na mente do pesquisador. Projeta-
-se posteriormente em estratégias de percepção e apreensão para, finalmente, ser
equacionada segundo bases epistemológicas vigorosas que não necessitam parar
do objeto para detê-lo didaticamente (Duarte; Barros, 2005).
Na aplicação e vivência com a arte, Gomes Filho (2000) cita que para a
criação de signos, significados e a elaboração de conceitos, busca-se compreender
e explicar a realidade e também cria-se valores, desejos e fantasias, que consti-
tuem as subjetividades geradas por experiências e expectativas.
Ao fazer uso de elementos semióticos trabalhará o mundo vivido pelo
homem (lebenswelt) e suas relações cotidianas. O ambiente exterior produz
impressões que funcionarão como ligações de acesso à decodificação de futuras
informações que serão captadas do meio, constituindo então o mundo interior
(innenwelt) do sujeito. O cérebro humano, porém, não funciona como um simples
receptáculo por possuir uma capacidade de reflexão que permite ao homem fazer
previsões, generalizações e construir suas interpretações particulares (Gomes
Filho, 2000).

148
OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSI

Gomes Filho (2000) contextualiza a aplicação da arte com jovens de


modo a conduzi-los ao ato de refletir sobre a realidade vivenciada e expressa
pela linguagem mediante a manipulação dos signos presentes. Em um processo
semiótico o homem utiliza a informação para fazer generalizações e previsões.
Cabe ao professor fazer a relação da teoria a ser transmitida nas imagens
e os aspectos observados em cada aluno quanto aos estoques (fatos, ideias e sen-
sibilidades) que assimilados geraram informações e conhecimentos individuais
(Figura 1).

Figura 1 – Pirâmide de fluxos e estoques

Fonte: Barreto (1999).

Como resultado das experiências vividas e das práticas comunicativas


é construído um acervo informacional composto de dois ambientes: o indivi-
dual e o público. O ambiente individual relaciona-se ao acervo armazenado na
memória, no qual residem nossas lembranças, experiências, valores, comporta-
mentos, etc., enfim, correspondem à subjetividade. O ambiente público relacio-
na-se aos acervos compostos dos conhecimentos comunicados e materializados
em um artefato que se denomina informação, correspondendo ao ambiente da
objetividade (Gomes Filho, 2000).

149
Maria Aridenise Macena Fontenelle – Larissa Nogueira de Morais – Max Silva de Oliveira
– Maria do Carmo Duar te Freitas – Isaura Uhmann

Analisar a expressão artística como objeto informacional significa tra-


balhar o elemento semiótico como um objeto de pesquisa, e relacioná-lo com o
mais significativo número e natureza de possibilidades que ele comporta, buscan-
do compreendê-lo em movimento dinâmico e operante (Duarte; Barros, 2005).

VIVÊNCIAS ARTÍSTICAS FUNDAMENTAIS NA ESCOLA WALDORF


Para Steiner (1999), arte é aquilo que se pode introduzir da forma mais
bela na prática de vida da educação e que também é algo que atua sobre o cres-
cimento, a saúde e o progresso do homem.
O cotidiano de uma Escola Waldorf permite observar a utilização de
diversos procedimentos artísticos na sala de aula durante toda a Educação Básica.
Especialmente no período correspondente ao Ensino Fundamental, percebe-se
que a pintura em aquarela e o uso de diversos tipos de narrativa – contos, mitos,
biografias – norteiam a ação docente como base para o planejamento diário.
Uma narrativa pode subsidiar o ensino de qualquer conteúdo, desde a
alfabetização, o ensino de Matemática ou História, até alcançar disciplinas mais
abstratas, por exemplo, a Geometria, oferecida no quinto ano.
A pintura em aquarela é utilizada para a elaboração imagética desses
conteúdos e perpassa todos eles ao longo da formação do aluno.
Lanz (1998) considera que, na vida real das classes, as experiências feitas
com elementos das artes plásticas se confundem, com o princípio sendo consti-
tuído pelo desenho de formas, antes da pintura. Explica que o desenho de formas
se constituirá em um assunto essencial durante várias épocas. Destaca ainda que
os outros elementos não aparecem tão isoladamente, eles vivem no ensino de
uma maneira geral.
No livro para estruturação do ensino do 1º ao 8º ano nas Escolas
Waldorf, Rudolf Steiner orienta sobre os conteúdos do ensino de pintura,
desenho de formas, desenho livre, modelagem e outras atividades, como des-
crito a seguir:

150
OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSI

• Pintura
A pintura em aquarela acompanha os alunos do 1º ao 5º ano e tem um
lugar bem definido no plano de ensino semanal. Do 1º ao 3º ano é importante
que a criança conheça o mundo das cores, que sinta o elemento qualitativo das
diversas cores e percebe que cada uma delas fala uma língua específica e procura
transmitir algo.
As cores de aquarela são inicialmente colocadas em estado líquido em
pequenos recipientes. São usadas primeiramente as cores básicas: amarelo, ver-
melho e azul, em diversas concentrações. Posteriormente a mistura dessas cores
primárias possibilita na folha branca o surgimento das cores secundárias. Pelo
seu uso em superfícies grandes, o indivíduo recebe diretamente o impacto da cor
e deixa de pensar no que talvez tivesse imaginado.
O professor tem assim a possibilidade de satisfazer a procura de imagens
que o estudante sente na fase inicial. Ele aprende como as cores se combinam
e vivencia as combinações belas em contraste com as menos belas. O discen-
te precisa sentir a dignidade do vermelho, a suavidade do azul e a alegria do
amarelo. Isso fortalece sua vida anímica e faz com que ela se abra a toda riqueza
que fala por intermédio das cores.
No decorrer das aulas, a dinâmica das cores vai sendo acrescentada ao
conteúdo já estabelecido, por meio de histórias e contos relacionados com as que
ainda não visam a representar um objeto, evidenciando as diversas tendências
formativas pertencentes a cada cor.
O amarelo com sua tendência de irradiar leva as formas diferentes que
as do azul, que se contrai ao ficar mais escuro e pode ter algo de tranquilo e
recolhimento.
Dos 1º ao 3º ano são realizados diversos tipos de exercícios que ainda
não visam a representar um objeto, mas movem na mera qualidade das cores.
É possível transformar um acorde de duas cores em um de três ou inverter os
acordes de duas cores de tal forma que a cor que originalmente estava no meio,
por exemplo, o vermelho, passe para os lados, ao passo que aquela que estava
fora, por exemplo, o verde, torne-se visível no centro.
Pressupõe-se que o professor esteja familiarizado com a teoria das cores
de Goeth, que é a base dos exercícios aqui mencionados.

151
Maria Aridenise Macena Fontenelle – Larissa Nogueira de Morais – Max Silva de Oliveira
– Maria do Carmo Duar te Freitas – Isaura Uhmann

• Desenho de Formas
Em 1915 foi incluído por Rudolf Steiner o desenho de formas como
matéria de ensino. A escrita é preparada pela vivência da linha que não reproduz
nenhum objeto exterior e que corresponde ao impulso motor da criança, atuando
sobre a sua sensibilidade pelas formas e treinando a sua habilidade manual.
Durante as primeiras 4 a 6 semanas os alunos do 1º ano conhecem os
elementos formais das linhas retas e curvas. Eles reencontrarão mais tarde, numa
época de caligrafia, esses elementos nas letras impressas. Depois da primeira
introdução começam os exercícios práticos. Isso implica a conscientização das
várias direções do espaço. Depois das linhas verticais, horizontais e oblíquas vêm
os ângulos, os triângulos e formas estreladas. Alternativamente são desenhados
o círculo, o semicírculo, a espiral e a elipse.
O professor voltará, no decorrer do 1º ano, periodicamente e por repeti-
ções rítmicas, a essas formas básicas, seja em algumas épocas ou em determinados
dias da semana. Dessa maneira a criança é conduzida, cada vez mais, da vivência
das formas a sua expressão visível pelo próprio agir.
Por volta dos 8 anos de vida as forças da imaginação da criança passam
a se desenvolver, começam os exercícios de simetria (reflexão lateral e vertical),
simetrias com quatro polaridades, com formas redondas e pontudas. Steiner
chamou o desenho de formas direcionado para área de um aprendizado por
meio de imagens, pois desenvolve a visão interior de modo que o pensar possa
se desenvolver sem cair na intelectualidade.
Os exercícios anteriores são seguidos por aqueles das “simetrias assimé-
tricas”. Trata-se de linhas que vão de um centro para três direções: a pessoa
deve encontrar formas complementares que levam para dentro, estabelecendo
o equilíbrio e a harmonia. Isso requer uma grande autonomia e mobilidade da
imaginação. Steiner via em tais exercícios um preparo para a Geometria, na qual
a construção começa por meio da régua e do compasso. Sugeriu, para incentivar
os temperamentos, variar os exercícios. Considera ele que o professor promove
por meio disso um modo para compensar as unilateralidades das crianças. O uso
de formas espelhadas é também praticado e ajuda aquelas pessoas que espelham
as letras, como é o caso das letras “p” e “q”, por exemplo.

152
OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSI

Estudos de Casos
As oficinas sobre aquarela e desenho de formas, procedimentos artís-
ticos utilizados na Pedagogia Waldorf, realizadas com as famílias dos jovens e
das crianças que participam do programa Oficinando em Rede no CAPSi em
Mossoró – RN foram coordenadas por um docente do curso de Engenharia Civil
e uma discente de Direito numa Universidade Federal em Mossoró, na Região
Nordeste do Brasil, de março a junho de 2017, uma vez por semana.
Cabe salientar que questões legais sobre os direitos dos usuários do CAPSi
foram dialogadas com a estudante de Direito.
Durante uma das oficinas foi questionado aos participantes sobre saúde,
bem-estar, qualidade de vida, saúde física e mental.
No desenho de formas foi utilizado o conceito de espelhamento, dese-
nhando formas espelhadas (Figuras 2 e 3) e dialogando sobre a importância de
ser um espelho positivo. Neste caso, o modo como o familiar age ou reage vai
influenciar na ação e reação do usuário do CAPSi. Se o usuário está agressivo,
o familiar deve manter a calma. Assim, o jovem ou a criança poderá ficar mais
tranquilo.

Figuras 2 e 3 – Desenho de formas espelhamento

Fonte: Autoria própria.

O conceito de respeito ao espaço do outro e das diferenças individuais foi


abordado na pintura em aquarela em duplas e individual. Colaborar sem invadir
o espaço do outro é uma forma de conviver mais harmônica que foi observada
pelos familiares na pintura em duplas.

153
Maria Aridenise Macena Fontenelle – Larissa Nogueira de Morais – Max Silva de Oliveira
– Maria do Carmo Duar te Freitas – Isaura Uhmann

As Figuras 4 e 5 mostram o resultado de uma oficina em aquarela e a


exposição dos familiares participantes sobre o processo da pintura realizado.

Figura 4 – Familiares vivendo o processo da pintura em aquarela

Fonte: Autoria própria.

Observa-se alegria no semblante dos participantes (Figura 4) durante a


explanação do processo realizado da pintura em aquarela.

Figura 5 – Equilíbrio entre as cores azul e vermelho


na pintura em duplas e individualmente

Fonte: Autoria própria.

Na pintura individual os participantes consideram que houve mais liber-


dade que na pintura em duplas, quando não era permitido conversar, pintar
simultaneamente, deixar espaço em branco entre as duas cores e uma tinta
sobrepor-se à outra. Essas restrições deixavam os participantes da oficina mais
cuidadosos na realização da pintura.

154
OFICINANDO COM FAMÍLIAS NO CAPSI

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este texto apresentou um estudo sobre aquarela e desenho de formas,
procedimentos artísticos utilizados na Pedagogia Waldorf com as famílias do
jovens e crianças que participam do programa Oficinando em Rede no CAPSi
em Mossoró, RN.
Sobre as questões legais observou-se que existem dúvidas quanto ao
direito do benefício monetário e que alguns jovens já apresentam idade acima
de 21 anos e permanecem com usuários do CAPSi. Os familiares relatam que
possuem todos os documentos, inclusive título de eleitor, mas não fazem a Car-
teira de Trabalho, pois eles não são capazes de atuar no mercado. Consideram
que não ter o Título de Eleitor pode representar um risco à perda do referido
benefício. Foi esclarecido pela estudante do curso de Direito que isso não é legal.
No que diz respeito às questões lançadas numa das oficinas como: “O
que entende por saúde mental, bem-estar e qualidade de vida”, considera-se que
foram poucos que responderam, talvez por serem temas subjetivos. Destacam-se
as respostas como: doença mental é falar coisa com coisa (Jaqueline); qualidade de
vida é viajar e ter um bom salário (Vera); bem-estar é estar bem (Kaio).
A partir de registros fotográficos e dos depoimentos das 16 famílias parti-
cipantes, foi evidenciado o entusiasmo da maior parte dos familiares nas oficinas
de aquarela e desenho de formas. Conforme relato dos participantes, as oficinas
possibilitaram mais leveza, relaxamento e tranquilidade no processo de espera
dos jovens e das crianças do Programa Oficinando em Rede.

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Ivonne Terezinha de Faria. 13. ed. São Paulo: Pioneira, 2000.
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revista.ibict.br/index.php/ciinf/article/view/298/264>. Acesso em: 29 mar.
2010.

155
Maria Aridenise Macena Fontenelle – Larissa Nogueira de Morais – Max Silva de Oliveira
– Maria do Carmo Duar te Freitas – Isaura Uhmann

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DONDIS, D. A. Sintaxe da linguagem visual. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
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GOMES FILHO, J. Ergonomia do objeto. São Paulo: Escrituras, 2003.
GOMES FILHO, J. Gestalt do objeto: sistema de leitura visual da forma. 6. ed.
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LANZ, R. A pedagogia Waldorf: caminho para um ensino mais humano. 6. ed.
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ROMANELLI, R. A. A arte e o desenvolvimento cognitivo. Um estudo sobre os
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2008. Tese (Doutorado) – Faculdade de Educação (FE) da Universidade de São
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STEINER, Rudolf. Para estruturação do ensino do 1º ao 8º ano nas Escolas Waldorf.
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______. Pedagogia e arte. In: Anttroposophische Menschenkunde und Paedagogik.
Bibliografie. Livro nº 304. Tradução Crista Glass. Revisão Leonore e Italo
Bertalot. Stuttgart, 25 mar. 1923. (Palestra retirada de um ciclo de conferências
públicas feitas por Rudolf Steiner (Comp.).

156
DESENVOLVIMENTO DE UM JOGO DIGITAL
ADAPTATIVO PARA CRIANÇAS E JOVENS AUTISTAS
Rafael de Almeida Rodrigues
Francisco Milton Mendes Neto
Karla Rosane do Amaral Demoly

Convive-se diariamente com diversos fatores que de certa forma são


nocivos à saúde mental da população, como a violência, desigualdade, consumo
de drogas, competição, estresse, etc. Diante disso, cada vez mais as pessoas são
passíveis de serem diagnosticadas com algum tipo de transtorno mental, em
virtude tanto de fatores externos como internos.
Na interação direta com jovens que apresentavam transtornos do desen-
volvimento foi possível gerar estes questionamentos: Como jovens fomentam
processos cognitivos na experiência e interação com jogos digitais? Qual a vanta-
gem ou melhoria podem ocorrer com o uso de jogos com jovens que apresentam
transtornos mentais? A partir desses questionamentos fui delineando o tema de
estudo e propus a utilização de jogos digitais como ferramenta para ser utilizada
pelos profissionais da saúde como metodologia alternativa no tratamento de
doenças mentais.
Autores como Cláudia Rodrigues Freitas (2011) e colaboradores nos
auxiliam a entender que um diagnóstico é sempre um olhar, quando muitos
outros são possíveis na experiência direta com crianças e jovens. A experiência
dessa educadora possui longa data de interação com crianças e seus familiares.
Washington Sales do Monte (2014) apresenta o uso de jogos digitais como expe-
riência para potencializar processos cognitivos da atenção em jovens e crianças.
O autor que nos auxilia a entender o modo de ser é Gilbert Simondon (1989),
o filósofo da técnica que permite pensar que os seres vivos, os seres físicos e téc-
nicos, vivem o devir, se individuam no transcurso da experiência, não havendo
princípios ou causas que os especifiquem, cristalizando posições a respeito de
um transtorno ou outro.

157
Rafael de Almeida Rodrigues – Francisco Milton Mendes Neto – Karla Rosane do Amaral Demoly

Observou-se em oficinas realizadas no Centro de Atenção Psicossocial


infanto-juvenil de Mossoró – RN, que uma solução genérica não seria viável,
uma vez que cada jovem e criança apresentavam necessidades e capacidades
distintas. Assim, é proposto um jogo que se adapte ao usuário e não o contrário.
Desse modo, o objetivo deste trabalho foi o desenvolvimento de um jogo adap-
tativo, para melhoria da interação social.
O trabalho está organizado nas seguintes seções: o método e a realização,
apresentando conceitos que formaram a base do estudo e o desenvolvimento do
jogo, e por fim resultados e trabalhos futuros.

O MÉTODO E A REALIZAÇÃO
A metodologia abordada baseia-se na pesquisa-intervenção realizada
pelo programa Oficinando em Rede, em que por meio de oficinas e geração de
diários de bordo, foi possível observar na interação direta com os sujeitos ele-
mentos importantes para o desenvolvimento de um jogo digital que atendesse
às diferentes necessidades detectadas. A partir do acompanhamento e utilizando
jogos casuais foram gerados diários de bordo contendo as condutas dos jovens
na interação direta com os jogos.
Por se tratar de um trabalho interdisciplinar é necessário buscar conceitos
de outras áreas do conhecimento. Assim sendo, de acordo com o Manual de
Diagnóstico e Estatística dos Transtornos Mentais-5. ed. (DSM-5), o transtorno
do espectro autista caracteriza-se como uma condição geral para um grupo de
desordens complexas do desenvolvimento do cérebro. Essa abordagem aponta
para os sintomas como se fossem gerais e aparecem do mesmo modo, mas com
a interação direta com crianças e jovens sabemos que essa é uma questão mais
complexa.
As oficinas, bem como os diários de bordo, possibilitaram a produção
de uma tabela que auxiliou na compreensão sobre autismo associados aos jogos
digitais.

158
DESENVOLVIMENTO DE UM JOGO DIGITAL ADAPTATIVO PARA CRIANÇAS E JOVENS AUTISTAS

Tabela 1 – Coordenações de ações no percurso da pesquisa

Coordenações de ações que antecedem a experiência Elementos presentes nos


jogos casuais utilizados
Gestos No coletivo, inicialmente podem não procurar Elementos contidos nos jogos:
estabelecer vínculos. interatividade.
Podem apresentar ausência ou pouco contato Situações nos jogos que cativam
visual, o mesmo para expressão facial e expres- a atenção durante o jogar, como:
são de emoções. sons, imagens vídeos e anima-
Modos de comunicar podem acontecer sem a fala. ções.
Repetição de ações, palavras (quando já iniciam Reações que advêm do medo,
a falar) e na escolha de objetos podem acontecer. como o choro, repetições de
Em algumas circunstâncias podem abrir e fechar gestos com determinado objeto,
os jogos inicialmente, sem explorar. A alegria percebe-se, na maioria dos
pode vir na forma de bater com as pontas dos casos vivenciados, que aconte-
dedos no alto da cabeça, como a comemorar o cia com o volume excessivo do
que fazem ou no sorriso, ou no olhar alegre/sorri- áudio. Nesse caso, o controle
dente, ou ainda com sons, modos de dizer. do volume, de acordo com cada
jovem, deve ser modificado para
O medo pode vir na forma de tapar os ouvidos,
evitar essas reações.
chorar, afastar-se.
Outras reações de medo partiam
Inquietações podem acontecer e, em alguns
de jogos com violência excessi-
casos, temos o sentar no chão, repetição de gestos
va ou cenas de terror a que os
com um objeto, esconder-se atrás da porta.
jovens tinham acesso fora do
ambiente do CAPSi.
Ideias Mostram o interesse por objetos específicos, Elementos contidos nos jogos:
vídeos, jogos e podem permanecer neles durante personagens conhecidos por
longo período. O interesse por vezes se mostra eles.
por meio do pedido para jogar, por vezes apon- São atraídas pela jogabilidade,
tando para aqueles dispositivos que vêm experi- o ato de jogar com praticidade
mentando, ou na forma de palavras, pequenas utilizando um dispositivo como
frases. o tablet.
Emoções Observamos que pode haver um estranhamento O impacto inicial dos jogos que
na interação com elementos que podem provocar foram inseridos nas oficinas
sustos, tensões, medos no ambiente, assim como pode, de certa forma, causar
podem alegrar. um estranhamento, mas depois
Observa-se o receio, o temor e o medo. Estas do primeiro contato é gerado
emoções têm relação com diferentes elementos: um interesse nos jogos.
sons, cores, imagens de objetos. As reações em suas emoções
Observa-se também a vibração e alegria desde podem ser auxiliadas com a
o encontro com um fazer que parece possível, a função de controlar a iluminação
fase de um jogo, o simples iniciar a jogar, mas da imagem, o volume do som, o
estas emoções podem se alterar, na relação com as auxílio de um monitor (oficinei-
circunstâncias do ambiente e do próprio sujeito. ro) durante o jogar.

159
Rafael de Almeida Rodrigues – Francisco Milton Mendes Neto – Karla Rosane do Amaral Demoly

Transformações nas coordenações de ações Elementos a estarem presen-


(coordenações de ações novas e emergentes) tes no jogo
Gestos Atenção pode estar endereçada às imagens e Animação do jogo.
aos movimentos presentes nos jogos. Interatividade de forma adap-
Exploração de diferentes jogos passa a tativa.
ocorrer no ambiente. Várias fases no jogo aumentan-
Podem sair de suas cadeiras e lançam o olhar do os desafios.
para o que os outros fazem.
Passam a experimentar em diferentes cir-
cunstâncias o jogar junto com o outro.
Ideias Estabelecem novos modos de comunicação, Variedade de estilos de jogos
através da escrita ou mesmo de gestos no (estratégia, multiplayer, jogos
ambiente. Podem manifestar a necessidade de plataforma, casuais, etc.)
da presença do outro. Interatividade e jogos multi-
São capazes de aceder, pouco a pouco, à fala player.
e podem tornar fluente este modo de comu- Comunicação (fala, escrita,
nicação. gestos) no mesmo jogo. Recom-
Potencialidades lógicas estão em destaque, pensa de forma adaptativa.
por exemplo, no vencer fases de jogos mais Respostas dos jogos utilizando
complexos, em alguns casos, de modo bri- as diferentes mídias simultane-
lhante. amente: áudio, vídeo e imagem
Temos aqui a multissensorialidade, pois se e animações.
ampliam os modos sensoriomotores de aco-
plamento com diferentes mídias no ambien-
te de jogos digitais, o que favorece o encon-
tro com o outro.
Emoções Podem experimentar fruição estética no Gráfico, design, áudio e vídeo,
jogar. Temos uma maleabilidade e fluidez unidos durante o jogo de forma
que se mostram como processos que produ- atrativa.
zem prazer. Adaptabilidade nos controles
Interação mostra-se serena com diferentes de dificuldade, som, imagem,
mídias, sons, imagens e escritas no ambien- vídeo e diversos outros elemen-
te, a partir da descoberta de que podem tos do jogo.
modelar estes usos nos jogos digitais:
aumentar e baixar sons, ampliar ou reduzir
a tela, entre outras ações.
Circunstâncias de sofrimento podem emergir
e interagem com problemáticas que dizem
respeito a cada jovem no percurso do viver,
não necessariamente com as mídias.

Fonte: Do autor.

160
DESENVOLVIMENTO DE UM JOGO DIGITAL ADAPTATIVO PARA CRIANÇAS E JOVENS AUTISTAS

Existe uma abordagem qualitativa que trabalha a dificuldade com base


na teoria do fluxo, que consiste em um modelo que considera o controle dos
níveis de desafio a fim de manter o jogador no estado de fluxo, evitando estados
de frustração ou tédio, como ilustrado no gráfico a seguir:

Gráfico 1 – Fluxo de estado

Fonte: Do autor.

Na literatura são encontradas diferentes técnicas de adaptabilidade que


abordam regras de comportamentos usando máquinas de estados finitas, agentes
inteligentes, entre outras. Uma técnica de adaptabilidade que vem ganhando
espaço na pesquisa é a adaptabilidade dinâmica da dificuldade em jogos, que
visa a adaptar o jogo à habilidade do jogador, e não o contrário, com o princípio
básico de medir implícita ou explicitamente a dificuldade que o usuário está em
determinado momento do jogo (Csikszentmihalyi, 2000).
Com as oficinas e um levantamento do quadro teórico envolvendo os
estudos existentes em torno do tema, como Siebel (2011) e Silva (2015), con-
cluiu-se que a adaptação dinâmica era a opção que dava suporte ao que se deseja-
va alcançar, pois visa a adaptar o jogo ao usuário e não o contrário. As finalidades

161
Rafael de Almeida Rodrigues – Francisco Milton Mendes Neto – Karla Rosane do Amaral Demoly

das informações obtidas da tabela pretendem permitir definir a adaptabilidade


a que o jogo daria suporte, em relação à interface e à dificuldade. Os elementos
considerados foram animação; fases no jogo que vão modificando os desafios;
interatividade de forma adaptativa; adaptabilidade nos controles de dificulda-
de; cenários temáticos; efeitos musicais; disponibilidade em diferentes mídias;
cooperatividade e mudança de ambiente a cada fase.
O jogo desenvolvido foi nomeado de “Estellar: Uma aventura espacial”,
tendo como ambiente o cenário espacial, em que o objetivo é defender os pla-
netas contra a ameaça natural de asteroides. Para ter acesso ao jogo é necessário
realizar um cadastro, como mostrado na imagem a seguir:

Figura 1 – Telas de login e cadastro

Fonte: Arquivo pessoal de Rafael de Almeida Rodrigues.

Nas imagens a seguir são apresentados momentos do jogo, tanto indi-


vidual quanto cooperativo, quando durante o jogar adaptações são realizadas.
Figura 2 – Imagens de momentos no jogo

Fonte: Arquivo pessoal de Rafael de Almeida Rodrigues.

162
DESENVOLVIMENTO DE UM JOGO DIGITAL ADAPTATIVO PARA CRIANÇAS E JOVENS AUTISTAS

RESULTADOS E TRABALHOS FUTUROS


Diante da pesquisa, percebeu-se a importância de se desenvolver jogos
adaptativos e que estes possam auxiliar em um ambiente de saúde mental.
Como resultado temos o jogo “Estellar: Uma aventura espacial”, que, a partir
da experiência permite o acompanhamento das ações, reações e gestos de jovens
com transtorno no desenvolvimento, possibilitando a integralização de jogos e
a própria tecnologia em um ambiente de saúde mental, capaz de potencializar
processos cognitivos como a atenção, percepção e concentração de jovens e crian-
ças em circunstâncias de autismo.
Para trabalhos futuros pretende-se dar continuidade a este projeto no
Mestrado, realizando uma pesquisa aprofundada sobre o tema e aplicar técni-
cas de adaptabilidade utilizando sistemas computacionais inteligentes a fim de
melhorar a adaptação.

REFERÊNCIAS
CSIKSZENTMIHALYI, M. Beyond boredom and anxiety. San Francisco: Jossey-
-Bass, 2000.
DEMOLY, K. R. A.; FREITAS, C. R. Rede de oficinandos na saúde e na educação:
experiências que configuram formas de convivência. Mossoró: Edufersa, 2014.
FREITAS, C. R. Corpos que não páram: a criança, a escola e o TDAH. 2011. Tese
(Doutorado) – Faculdade de Educação, UFRGS, 2011.
JESTE, D. V. et al. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5. ed.
Washington, D.C.: American Psychiatric Publishing, 2013.
MONTE, W. S. Oficinando com jovens: análise de processos de atenção na expe-
riência com jogos digitais. Dissertação (Mestrado em Ambiente, Tecnologia e
Sociedade) – Universidade Federal Rural do Semi-Árido, Mossoró, 2014.
SIEBEL, R. A. Adaptabilidade dinâmica de jogos. Florianópolis: Ed. UFSC, 2011.
SILVA, M. P. Inteligência artificial adaptativa para ajuste dinâmico de dificuldade em
jogos digitais. 2015. Dissertação (Mestrado em Ciência da Computação) – Uni-
versidade Federal Rural de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2015.
SIMONDON, G. Du mode d’existence des objets techniques. Paris: Aubier, 1989.

163
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL:
Uma Discussão Sobre a Relação entre
os Serviços Principais e Suplementares
Bruno Layson Ferreira Leão
Yákara Vasconcelos Pereira
Judson da Cruz Gurgel
Karla Rosane do Amaral Demoly

Muitas definições de serviços podem ser encontradas na literatura, porém


todas consideram atributos fixos, como a intangibilidade e o consumo e geração
simultânea de elementos constituintes do que vem a ser a prestação de serviços.
A oferta e a geração de serviços compreendem peculiaridades com características
distintas, de acordo com as atividades desenvolvidas. Os serviços comumente
emergem de situações já plenamente estabelecidas, com grau de diferenciação
delineado pela forma como se dá a sua oferta e prestação em processos que
alteram a experiência e valor percebido pelo cliente (Santos; Spring, 2013).
A oferta de serviços é estabelecida por meio de um conjunto de elemen-
tos tangíveis e intangíveis que se inter-relacionam em uma interação em que
os constituintes do serviço delimitam o grau de tangibilidade encontrado nas
atividades que o caracterizam. Estes elementos compõem a atuação delineada
como escopo da prestação do serviço.
Nóbrega (1997) afirma que o serviço, conceitualmente, tem duas ver-
tentes em separado, que devem ser consideradas. Uma volta-se as suas carac-
terísticas predominantes e definição e outra subdivide-se em pacote de serviços
(Fitzsimmons; Sullivan, 1982; Corrêa; Gianesi, 1994) e na oferta de serviços
(Grönroos, 2009; Corrêa; Gianesi, 1994; Lovelock; Wright, 2006).
Grönroos (1984) descreve a estrutura dos serviços classificando-os com
base em sua essencialidade. Para o autor há serviços centrais e acessórios. O
serviço central, ou principal, é a atividade que motiva a procura por aquela
prestação em determinado, enquanto que os serviços acessórios são adendos à

165
B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
– Judson da Cruz Gurgel – Karla Rosane do Amaral Demoly

experiência ofertada em primeiro plano. Serviços acessórios ou suplementares


são aqueles que facilitam o acesso ao serviço central, ou funcionam de forma
complementar a este, facilitando as operações que o envolvem ou dando suporte.
A união entre o serviço principal e as atividades ou processos acessórios
e complementares que facilitam o seu consumo forma o pacote de serviços. A
qualidade empregada no desenvolvimento garante que os resultados propostos
sejam alcançados e os clientes recebam aquilo que esperam da organização.
Configura-se entre as preocupações gerenciais, durante a formação do pacote,
não somente a estabilidade da prestação a ser ofertada, mas também os recursos
que estão implícitos nessa construção (Santos; Spring, 2013). Considerar aspec-
tos subjetivos durante a edificação do serviço e seus constituintes garante maior
amplitude de chances na produção de experiências adaptadas à necessidade do
cliente/usuário.
O processo de produção e entrega de um serviço é fator determinante
para a formação de um pacote adequado de serviços, uma vez que a percepção
do cliente mediante a interação prestador-consumidor pode delimitar o grau de
satisfação com relação à experiência que perfaz o serviço. A interação entre o
serviço central, serviços suplementares e processos de entrega conduz à geração
e oferta dos serviços (Lovelock; Wirtz; Hemzo, 2011), de forma a alcançar as
expectativas dos consumidores. Dessa maneira o planejamento da sequência de
atividades e processos que compõem o corpo do serviço deve alocar os recursos
para que o gerenciamento das operações permita bons resultados relativos à
entrega do resultado final.
Os prestadores de serviço podem adotar processos e parâmetros estru-
turados mais rígidos em relação às novas formas de experienciar o pacote de
serviços, estes continuamente têm se voltado a uma perspectiva informal para
a elaboração de meios que tornem possível adquirir oportunidades constantes
de melhorias, assim como de expansão a ofertas pre-existentes (Santos; Spring,
2013). Ao incluir na perspectiva do pacote básico a interação clientes-organiza-
ção amplia-se a oferta de serviço ao considerar os esforços relativos à participação
do cliente na coprodução daquilo que venha a ser adquirido como serviço (Grön-
roos, 2009). Nessa abordagem considera-se a acessibilidade do serviço, assim
como a relação que se dá durante a geração, entrega e a participação do cliente
como influenciador na produção da experiência a ser ofertada.

166
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

Em saúde mental, os processos que envolvem a geração e entrega do


serviço são desenhados levando em conta a subjetividade das situações em que
se gera a sua oferta, com diferentes graus de contato nas operações, com maior
ou menor interatividade na relação entre o prestador e o usuário do serviço. A
qualidade na assistência ao paciente é um dos pilares principais na construção dos
serviços de saúde, de modo que a forma em que se dá o contato com o usuário
delimita preferências e imperativos relativos às experiências prévias. Estas auxi-
liarão as tomadas de decisão acerca de como o cuidar será dimensionado para
com o assistido pelo serviço (Almeida; Bourliataux-Lajoinie; Martins, 2015).
As instituições que lidam com o portador de distúrbios mentais possuem
fazeres cíclicos e altamente subjetivos, ao passo que as atividades se redesenham
de acordo com o quadro clínico do usuário, em virtude de seu estado. As deman-
das estabelecem-se de forma particular, individualmente, preconizando neces-
sidades e imperativos percebidos em um usuário em específico, ou mesmo um
grupo, o que torna as frentes de ação e os parâmetros para a prestação de serviços
assistenciais ao paciente bastante heterogêneos (Silva; Lancman; Alonso, 2009).
A complexidade na definição da atuação perante as demandas encon-
tradas em processos de atenção e assistência faz com que se torne difícil desen-
volver escalas capazes de mensurar elementos que incrementariam o pacote
de serviços de saúde para inserir qualidade e satisfação no cuidado (Almeida;
Bourliataux-Lajoinie; Martins, 2015). A relação entre o serviço principal e os
serviços suplementares nesse sentido é diretamente relacionada aos moldes das
práticas assistenciais utilizadas em instituições de saúde, substitutivas às práticas
manicomiais decorrentes de políticas públicas em saúde em desuso.
A saúde mental tem se tornado um campo em que preceitos e métricas
decorrentes de um modelo de cuidado focado em hospitais psiquiátricos têm se
reorientado com a construção e estabelecimento de políticas públicas baseadas
em reformas conceituais, o que tornou a rede de assistência e cuidado mais sen-
sível à necessidade do desenvolvimento de ações em aspecto mais amplo, levando
em consideração o contexto comunitário e social (Surjus; Campos, 2014). Nos
novos processos que se consideram as peculiaridades dispostas pela compleição
do serviço e seus constituintes, como uma abordagem adaptativa às demandas
dos assistidos, nota-se que as particularidades do processo de trabalho não obe-
decem a métricas descritivas dispostas em tarefas programáveis, o que torna

167
B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
– Judson da Cruz Gurgel – Karla Rosane do Amaral Demoly

dificultoso definir a organização do trabalho e como se relacionam os serviços


principais prestados pelas instituições e seus serviços acessórios. Desse modo, o
objetivo deste texto é discutir a relação entre os serviços principais e comple-
mentares em saúde mental. Exposta a subjetividade encontrada na formação
do pacote de serviços oferecido em ambientes de saúde mental, cabe analisar os
processos encontrados de maneira a compreender a geração e oferta por meio da
perspectiva do marketing de serviços, apresentada a seguir.

PACOTE DE SERVIÇOS
No nível conceitual, os serviços podem ser classificados mediante tipo-
logias básicas relacionadas à geração e entrega de um conjunto de experiências
ou ações que compreendem processos ou atividades com uma finalidade em
específico. Classificá-los pode ser útil para a sua compreensão na condição de
trabalho dotado de elementos conjugados capazes de gerar valor, expressos em
um pacote de itens indispensáveis a esse intento.
O espectro de serviços é descrito, na literatura, como um pacote, uma
junção de elementos relacionáveis ao consumidor e à experienciação do serviço
(Lovelock; Wirtz; Hemzo, 2011). Os padrões utilizados para a construção de um
pacote de serviços são traduções da percepção do cliente em relação ao projeto de
serviços e como este é apresentado em sua forma final. Constantemente percebi-
da nos ambientes de serviço, a dificuldade para a compreensão das expectativas
do cliente e o emprego destas na elaboração de processos acessórios que fortifi-
quem a atividade central oferecida, é comum caracterizar lacunas de percepção
do projeto e padrões desejados de serviço (Zeithlam; Bitner; Gremler, 2011).
Os prestadores de serviços devem definir atentamente o escopo de
atuação, projetando os processos e seguindo parâmetros a prover o serviço com
qualidade (Santos; Spring, 2013). Quase sempre é possível incluir nos serviços
atributos capazes de gerar valor agregado, em sua maioria intangíveis, e deter-
minantes para um bom desempenho.
Esses atributos geralmente são percebidos como influenciadores do com-
portamento do consumidor, gerando percepções e interações positivas durante o
usufruto do serviço. São os intercâmbios entre as atividades que tomam espaço
na oferta do serviço, que resultam na criação de valor (Santos; Spring, 2013).

168
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

O pacote de serviços conjuga atividades e operações que remetem tanto


a elementos tangíveis como intangíveis, que uma vez conjugados, formam uma
nova experiência a ser entregue ao adquirente do serviço. Fitzsimmons e Fitz-
simmons (2010) o definiram como um conjunto de itens e serviços fornecidos
em um ambiente que contempla as instalações de apoio, bens facilitadores ao
escopo da atividade desenvolvida, informações e os serviços, tanto implícitos
quanto explícitos. Nesse contexto, Lovelock, Wirtz e Hemzo (2011) trouxeram
em sua obra nomenclaturas diferenciadas, dividindo o pacote em dois elementos:
os serviços-núcleo e serviços periféricos.
Todas essas características são percebidas pelo cliente durante os proces-
sos que permeiam a sua experiência para com o serviço e formam o arcabouço
perceptual da qualidade, assim como têm o poder de intensificar as interações
consumidor-prestador de serviços. A satisfação relativa ao serviço se delimita
uma vez que o pacote de serviços esteja alinhado às expectativas do cliente que
faz parte do público-alvo (Fitzsimmons; Fitzsimmons, 2010). Vidor, Medei-
ros e Cruz (2015) indicam a customização do serviço como forma de ajuste
na composição final do pacote para que este tome em sua proposta variáveis
que consideram a necessidade dos clientes, com a proposição de adequações às
demandas individuais. A percepção das ofertas como pacotes de atributos os
torna alinháveis ao intento geral da prestação do serviço, dispondo de maior
flexibilização na gestão das atividades que o permeiam, e estabilidade na cadeia
formada pela união de serviços centrais e periféricos.
Usualmente o serviço central ou serviço-núcleo tende a tornar-se uma
commodity à medida que a competitividade do mercado aumenta, o que faz com
que o papel dos serviços suplementares, ou periféricos, seja fator determinante
para o sucesso na oferta de serviços (Lovelock; Wright, 2006). A análise apurada
do ambiente de serviços é importante para a compreensão dos desafios operacio-
nais relacionados a essa área, e claramente relevante para a solvência de lacunas
que venham a diminuir a qualidade do serviço ofertado.

A flor de serviços
A flor fornece uma analogia clara aos processos que permeiam a relação
entre a atividade principal e seus complementos em termos de operações em
serviços. O núcleo (miolo) corresponde a um produto central e as pétalas repre-

169
B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
– Judson da Cruz Gurgel – Karla Rosane do Amaral Demoly

sentam os serviços suplementares associados a este, de forma conjugada, e que


denota a depreciação do pacote de serviços desenvolvido ao se extrair uma das
ações ou atividades que complementam o serviço central, assim como compro-
meteria a estética de uma flor ao se remover suas pétalas.
Exposto primeiramente por Lovelock (1992), o conceito de flor de ser-
viços está ligado intimamente à percepção de um corpo harmônico de fatores
unidos que espelham uma constituição apreciável de bens tangíveis e intangíveis,
agregando valor à oferta. Cada pétala traz um significado específico para a com-
pleição dos serviços, dividindo-os em oito principais grupos, sejam estes facili-
tadores ou realçadores (Lovelock; Wirtz; Hemzo, 2011). São parte dos serviços
suplementares facilitadores os seguintes elementos: informação, recebimento de
pedidos, cobrança e pagamento, assim como constituem os serviços suplemen-
tares realçadores os seguintes elementos: consulta, hospitalidade, salvaguarda
e exceções.
As pétalas têm sua disposição seguindo o sentido horário, com os servi-
ços acondicionados na estrutura de acordo com o momento do encontro entre
o cliente e a prestação de serviços, o que em determinados casos pode variar. O
desempenho consistente de cada elemento presente na relação entre os serviços
representados pela flor faz com que a percepção geral do todo não seja preju-
dicada. Em serviços bem projetados e administrados, as pétalas, assim como o
miolo, possuem aspecto favorável, de qualidade aferível visivelmente e estruturas
bem preservadas. Já em serviços mal planejados ou mal executados essa estrutura
mostra-se defasada, murcha e pouco atrativa ao consumidor.
Determinados elementos de serviços tendem a atuar como sinalizadores
de qualidade ao passo que delineiam a percepção de valor agregado pelo cliente
no processo de aquisição do serviço. Ao consumi-lo o cliente pode fazer inferên-
cias sobre o serviço de acordo com informações ou evidências percebidas. A má
formação de conexões entre os elementos que compõem a oferta pode causar
dificuldades no fornecimento da qualidade dos serviços, ao passo que estes não
considerem formas de responsividade ao consumidor, prejudicando a impressão
do valor à prestação (Solalinde; Pizzuttio, 2014).
A natureza do produto permite determinar quais serviços suplementa-
res poderão ser necessários ao realce ou facilitar as atividades que permeiam o
processo de geração e entrega do serviço. A escolha bem acertada de elementos

170
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

agrega valor ao produto final e facilita a resposta positiva às ações desenvolvidas,


e cada um desses possui diferentes implicações relativas a procedimentos e dis-
posição de processos, assim como interação entre pessoal e consumidor ou para
com as instalações de serviços (Lovelock; Wirtz; Hemzo, 2011).
Os processos, em seus fazeres, delimitam a margem de amplitude que
o serviço pode alcançar e assim desconsideram atributos constituintes de cada
oferta, em sua geração e possibilidades. Em saúde, o processamento de pessoas
durante a prestação dos serviços tende a trazer, em si, maiores exigências em
termos de elementos suplementares, ao passo que o nível de interação entre pro-
fissional e usuário é mais próximo e intenso, dotado de uma delicadeza latente
percebida nas ações de acolhida, procedimentos e tratamento.
No caso da assistência psicossocial, o serviço traz nitidamente em seu
escopo atribuições relativas à facilidade das atividades dispostas no processo
de acolhida e tratamento do paciente que se vale do serviço de saúde. O rece-
bimento do usuário do serviço deve levar em conta a situação em que este se
encontra, desenvolvendo frentes de atuação considerando o quadro do paciente
e as suas necessidades.
Para compreensão da singularidade dos indivíduos, num contexto social,
os serviços de atenção em saúde mental devem contar com equipe ampla e
multidisciplinar, com o foco dos serviços voltado à promoção da saúde e pre-
venção da doença mental, assim como o enfrentamento das pressões resultantes
do sofrimento psíquico decorrente da enfermidade (Silva et al., 2013). Dessa
maneira, compreender o pacote que abrange não só o serviço principal disposto,
como também os serviços que complementam as práticas assistenciais em saúde
mental tornam-se mais viável quando se utiliza o conceito exposto por Lovelock
(1992) na abordagem do Marketing de Serviços.

Serviços facilitadores
Facilitar, em definição, significa tornar ou fazer fácil, exequível (Ferreira,
1999). Tornar simples, ajudar ou auxiliar são expressões sinônimas ao ato de
facilitar, e que denotam a sua função. A conceituação de serviços facilitadores
remete a uma tipologia de serviços que serve ao consumidor como uma ferra-
menta que traz eficiência e torna mais simples o uso dos elementos do pacote
que a prestação de serviços proporciona (Torres Júnior; Ferreira, 2010).

171
B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
– Judson da Cruz Gurgel – Karla Rosane do Amaral Demoly

Cabe ao profissional de saúde “[...] usar a percepção e a observação, for-


mular interpretações válidas, delinear campo de ação com tomada de decisões,
planejar a assistência, avaliar as condutas e o desenvolvimento do processo”
(Vilella; Scatena, 2004, p. 739), de maneira a buscar uma complementação ao
lançar mão de atividades que forneçam auxílio ao procedimento de acolhida e
tratamento como um todo.
Entre os serviços suplementares cabe destacar os grupos facilitadores rela-
tivos à Informação e Recebimento de Pedidos (Lovelock; Wirtz; Hemzo, 2011),
uma vez que para o intento da pesquisa não são importantes os fatores comerciais
e lucrativos. Os serviços relativos ao grupo de informação são referentes ao for-
necimento de informações e/ou orientações para o alcance do escopo do serviço,
comunicação, facilidade do uso e formas para melhorar a utilização do produto
principal. Em um segundo grupo estão os serviços suplementares relativos ao
recebimento de pedidos, que são garantias de fornecimento de meios para que
o cliente manifeste sua decisão de obter o serviço, seja por meio de inscrição,
pedido, reservas ou mesmo procura.
As competências diversas de cada profissional integradas com os proces-
sos asseguram um espaço de interconexão entre os saberes e práticas, gerando
facilidade para as ações do serviço de saúde. A prestação adequada do serviço
está intimamente ligada ao conhecimento das necessidades do cliente/usuário
e à forma como a assistência é planejada para tornar a experiência ajustada ao
quadro clínico do paciente a ser acolhido. Informações a respeito do paciente,
assim como a sua observação, são fatores determinantes para o desenho das
atividades a serem desenvolvidas no processo de assistência psicossocial.

Serviços realçadores
A mediação durante o processo de acolhida e recepção do usuário de
serviços de assistência psicossocial, em uma perspectiva abrangente, delimita
os termos em que se dá a oferta do pacote de serviços durante a geração do
itinerário de ações desenvolvidas. Os métodos que envolvem o cuidado exigem
uma conscientização do espaço e da situação em que se ambienta a prestação
do serviço, considerando a individualidade do ser e o contexto de saúde em que

172
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

ele está envolvido. Essa percepção permeia a coparticipação do usuário no seu


processo de acolhida, reabilitação e por fim integração social e promoção do
autocuidado (Vilella; Scatena, 2004).
Agregar valor ao serviço substitutivo às práticas manicomiais envolve
aprofundar a discussão sobre o estabelecer de envolvimento em novos parâme-
tros, e melhor relacionamento com os assistidos da instituição (Torres Júnior;
Ferreira, 2010). Serviços realçadores atuam na produção de valor agregado e
conferem a oferta de atributos diferenciáveis ao permitir antever as necessidades
reativas às entradas e saídas do processo de assistência. Entre estas frentes que
adicionam valor à prestação do serviço em saúde mental estão o fornecimento de
serviços excepcionais às métricas já desenvolvidas em situações do tipo padrão e
estabelecimento de relacionamentos interpessoais cordiais, além da humanização
do usuário dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) em uma postura que
coadune com os objetivos da reforma psiquiátrica na inserção da comunidade
e respeito aos padrões de conforto e segurança para o paciente durante o trata-
mento (Vilella; Scatena, 2004; Silva et al., 2013; Silva; Lancman; Alonso, 2009;
Nascimento; Galvanese, 2009).
O cuidado e a assistência envolvem o desenvolver de práticas, métricas
e “[...] ações de reabilitação que visam ajudar o doente a lidar com a realida-
de, compreender a dinâmica de suas relações, reconhecer e admitir suas habi-
lidades, capacidades e potencialidades, bem como aceitar, enfrentar e conviver
com suas limitações” (Vilella; Scatena, 2004, p. 740). Essas frentes de ação que
permeiam os processos em saúde mental fazem parte de elementos próprios de
serviços realçadores, seja considerada a “consulta”, que objetiva responder aos
questionamentos dos usuários em meio as ações em seu tratamento, fornecendo
soluções adequadas aos problemas diagnosticados; a “salvaguarda”, em que os
bens pessoais e os acessórios e/ou pertences dos assistidos pelas instituições são
preservados durante o cuidado, seja extensivo e intensivo, ou não (Torres Júnior;
Ferreira, 2010); as “exceções” que são oferecidas como serviços acessórios que
consideram a articulação para a oferta e geração do serviço como um processo a
ser tomado com base nas demandas individuais, resultando no desenho de ope-
rações bem características à assistência prestada em virtude das condições para
o desenvolvimento do trabalho (Silva; Lancman; Alonso, 2009); e por último a
“hospitalidade”, que considera a acolhida como momento em que deve haver a

173
B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
– Judson da Cruz Gurgel – Karla Rosane do Amaral Demoly

preservação, em maior instância, do paciente, garantindo as condições mínimas


para o desenvolvimento do tratamento de maneira confortável em uma perspec-
tiva humanizada do processo (Silva et al., 2013).

IMPLICAÇÕES NO GERENCIAMENTO DO PACOTE


DE SERVIÇOS EM SAÚDE MENTAL
A assistência psicossocial que parte da instituição e profissionais de saúde
direciona suas atividades de maneira a empregar a diferenciação no tratamento
de doentes mentais, promovendo ações para o desenvolvimento de uma auto-
consideração do sujeito, que passa a se perceber parte de um processo em que
há a sua reabilitação, advinda da participação ativa em seu tratamento (Vilella;
Scatena, 2004). Essa metodologia implica em práticas dotadas de respeito e
dignificação à situação em que se encontra o doente mental assistido pela ins-
tituição.
Estratégica para a organização da rede de atenção à saúde mental num
determinado território, a disposição de serviços substitutivos às práticas mani-
comiais foi fundamental para mudar o cenário da atenção à saúde mental no
Brasil. Nesse sentido, o Ministério da Saúde pautou-se pela instituição de uma
rede pública e articulada de serviços com a decisão política de compor uma rede
pública de Centros de Atenção Psicossocial de modo a prestar assistência básica
na articulação da rede de cuidados em saúde mental.
O CAPS visa à mudança de uma cultura hegemônica instaurada no
decorrer das últimas décadas, em que os portadores de transtornos mentais
severos e/ou persistentes eram tratados em uma perspectiva voltada a parâmetros
pouco ajustáveis e com pequeno grau de customização dos serviços e percepção
da satisfação, de modo a propor melhorias contínuas nos processos. A construção
de um projeto de serviços dessa natureza é uma tarefa difícil e deve ser tema de
planejamento, reflexão e ações específicas.
O modelo de saúde adotado pela Rede de Atenção à Saúde Mental,
segundo Relatório de Gestão da Secretaria de Atenção à Saúde (SAS), informa
em seu Planejamento Estratégico para o período de 2012 a 2015 os objetivos
estratégicos para o fortalecimento da rede de saúde mental, a saber:

174
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

[...] ofertar atenção psicossocial à população em geral, com vistas a tratar


dos agravos mentais; promover a cidadania dos usuários para uma vida
proativa e participativa nas comunidades; ampliar e promover o acesso
aos pontos de atenção nos territórios para todas as pessoas com transtor-
nos mentais (Ministério..., 2014).

Nesse âmbito, o pacote de serviços prestado pelos profissionais que desen-


volvem o cuidar no âmbito dos Centros de Atenção Psicossocial tem em sua
compleição um escopo generalista, porém altamente dotado de subjetividade
em que este se adapta à heterogeneidade de público assistido, é deveras extenso
e dotado de processos que perfazem os novos moldes relativos à saúde mental.
Esses serviços configuram-se de maneira que a assistência se desenvolve como o
serviço central e os fazeres acessórios e suplementares como parte da compleição
da atuação perante o usuário do CAPS.
As métricas e parâmetros para o desenvolvimento desses serviços mos-
tram-se delineados, apesar de que o caráter cíclico de determinadas enfermida-
des faça com que o agir se paute em compreensão do ambiente no qual se dá a
atuação e as necessidades do enfermo. Nesse sentido, há dificuldades de com-
preensão quanto ao estabelecimento da qualidade total do pacote de serviços,
representado anteriormente, em analogia, pela Flor de Serviços (Lovelock; Wirtz;
Hemzo, 2011). Uma vez que são imprecisos o início e o fim da assistência pres-
tada em virtude do estado do público-alvo, por vezes crônica e de necessidades
contínuas e repetitivas (Silva; Lancman; Alonso, 2009), configurar os serviços
centrais e suplementares de maneira apropriada com qualidade requer que o
processo de produção seja capaz de lidar com a heterogeneidade dos indivíduos
e das frentes de ação.
A interação entres os atributos e elementos do pacote de serviços repre-
senta respostas às necessidades dos clientes dos Centros de Atenção Psicossocial,
porém são necessários indicadores mais claros e acessíveis que permitam o ajuste
preciso da relação entre os grupos de ações dispostos ante o processo de acolhi-
da e assistência em saúde mental. Nem todo serviço central necessariamente é
desenvolvido em conjunto com serviços facilitadores de seu objetivo, ou mesmo
com suas atividades realçadas ao adquirir valor agregado.

175
B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
– Judson da Cruz Gurgel – Karla Rosane do Amaral Demoly

Para tanto, a equipe da instituição deve usar a percepção e a observação


para pautar as tomadas de decisão e atuação do serviço a ser disposto e seus
elementos com base no planejamento da acolhida e assistência ao enfermo, ava-
liando as condutas e o desenrolar de todo o processo. A partir dessa compreen-
são extraem-se interpretações que viabilizam o delineamento de um campo de
ação orientado à formação do pacote de serviços mais integrado à realidade do
ambiente e dos recursos disponíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O cuidar envolve o ajuste da capacidade de observação para promover
o desenvolvimento de aptidões que agreguem valor à assistência prestada ao
doente mental, seja em relações interpessoais positivas para com o sujeito e/ou
deste para com o serviço prestado, em uma interação que se constrói de forma
plena e adaptada às necessidades específicas do assistido (Vilella; Scatena, 2004).
Os serviços de saúde são, antes de tudo, produto do meio no qual se
desenvolvem a geração e oferta do pacote de serviços. O ambiente em que se dá o
consumo e a produção de processos de assistência consiste em uma multiplicida-
de de elementos distintos que atuam no delinear das ações relativas aos cuidados
para com os assistidos em instituições de saúde mental. Esses elementos cons-
tituem tanto a ação central e específica para os Centros de Atenção Psicossocial
como também fazem parte da própria compleição do escopo desses ambientes
que possuem atividades e processos acessórios e suplementares que fomentam
a reintegração social e a promoção do autocuidado advindo do portador de
transtornos mentais severos.
Considerar a perspectiva cíclica e crônica das condições em que o usuário
dos serviços de saúde mental se encontra (Silva; Lancman; Alonso, 2009), pre-
conizando o desenvolvimento do pacote de serviços para a sua melhor acolhi-
da, gera produtos particulares e adequados aos imperativos de cada demanda
advinda da relação usuário/equipe. Essa abordagem permite que a percepção do
assistido mediante a relação prestador-consumidor delimite satisfatoriamente a
experiência que perfaz o serviço, tornando os processos de acolhida mais plenos
e capazes de produzir resultados quanto aos objetivos dispostos pelas instituições
de perspectiva substitutiva às práticas manicomiais.

176
SERVIÇOS DE ATENÇÃO EM SAÚDE MENTAL

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B r u n o L a y s o n F e r r e i r a L e ã o – Yá k a r a Va s c o n c e l o s P e r e i r a
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178
SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO
COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO
DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL
Ramiro de Vasconcelos dos Santos Júnior
Francisco Milton Mendes Neto
Karla Rosane do Amaral Demoly

Diariamente somos expostos a informações impactantes, provenientes em


sua grande maioria da Internet. A rede mundial de computadores está cada vez
mais fazendo parte do dia a dia das pessoas, mesmo que estas sequer percebam,
seja em seus trabalhos, suas casas, escolas ou outro ambiente. Nós, os seres
humanos, nos constituímos na linguagem e desde sempre organizamos modos
de viver e conhecer integrando tecnologias (Oficinando..., 2016).
Diante do exposto, as instituições de ensino e de saúde mental também
estão integradas no mundo com tecnologias da informação e comunicação, apro-
veitando os recursos possíveis a fim de minimizar tempo e dinheiro, desenvolven-
do uma forma de acesso aos dados de pesquisas que são feitas em diversas áreas
do conhecimento. A utilização de sistemas Web, ou seja, sistemas disponíveis na
Internet, fazem uso de um navegador (Internet Explorer, Safari, Google Chrome,
Firefox, entre outros) e que podem ser acessados por meio de computadores,
tablets, ou outra tecnologia em qualquer lugar e hora do dia.
De acordo com Pinheiro (2009), o avanço tecnológico possibilitou que a
Internet seja utilizada em todo o mundo de uma forma mais abrangente. Assim,
é possível pensar numa forma de centralização dos dados em um repositório que
possa fornecer informações e conhecimentos por intermédio da Internet e dos
serviços por ela disponibilizados.

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R a m i r o d e Va s c o n c e l o s d o s S a n t o s J ú n i o r – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o
– Karla Rosane do Amaral Demoly

Segundo Freitas e Dutra (2009), em ambientes virtuais, a interatividade


passa pela disseminação dos ciberespaços, uma vez que estes favorecem troca
de informações, criação de conhecimentos, como também a manipulação das
informações sugerindo interatividade na educação e diversas formas e meios de
comunicação.
Considerando este acoplamento dos sujeitos nas instituições de saúde
mental com as tecnologias, o Sistema Diário de Bordo (SDB) destina-se a ser
aplicado no Centro de Atenção Psicossocial da Infância e da Adolescência de
Mossoró/RN (CAPSi), instituição esta que trabalha em parceria com a Universi-
dade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), por meio do programa de extensão,
pesquisa e ensino Rede de Oficinandos na Saúde.1
Este projeto é desenvolvido por intermédio de estudos produzidos por
professores e bolsistas de áreas multidisciplinares e que fazem parte do programa
de extensão. O ambiente no qual são aplicados dispositivos como jogos digitais
casuais, é definido como oficina de jogos. Para tornar mais claro, é preciso con-
siderar que temos em andamento no CAPSi um programa em que 64 jovens
participam semanalmente dessas oficinas e têm à disposição dispositivos tecno-
lógicos que favorecem a comunicação e a aprendizagem.
As atividades são desenvolvidas em 4 grupos. Cada grupo comporta até 8
usuários com algum transtorno de desenvolvimento e são distribuídas em 2 dias
da semana, sempre às quintas e sextas-feiras nos turnos matutino e vespertino,
proporcionando pesquisa e intervenção na área de saúde mental. No transcorrer
das oficinas o bolsista tem como função observar e auxiliar esses usuários (jovens
e crianças) para que possam contribuir com a sua evolução em sua capacidade
cognitiva, coordenação motora, entre outros benefícios que venham a colaborar
para a sua qualidade de vida e daqueles que convivem com eles, como familiares
e amigos.

O programa Rede de Oficinandos na Saúde articula projetos de extensão, pesquisa e ensino, em


1

parceria com os serviços de saúde mental de Mossoró (RN) e cidades circunvizinhas. O denomi-
nador comum desses projetos é a experimentação de diferentes tecnologias da informação e da
comunicação no campo da saúde mental, em ambientes que atendem crianças, jovens e adultos
que vivem em diferentes circunstâncias de sofrimento psíquico.

180
SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

Quanto à observação, é importante o olhar do bolsista para com a


conduta do usuário, pois esses comentários são descritos em forma de diários
de bordo e as informações coletadas são estudadas posteriormente. O modelo
de coletar as informações é o documento no qual o bolsista tem a liberdade de
escrever subjetivamente todo o processo observado durante a oficina realizada.
A atual composição do diário de bordo não possui um padrão definido,
pois ele pode ser feito de forma manual, usando um bloco de anotação, como
também fazendo uso de editores de textos. Estes últimos são usados em compu-
tadores, tablets ou smartphones, mas não têm um repositório para armazenamento
das informações coletadas, como um banco de dados, por exemplo. Elas são
gravadas em arquivos e posteriormente inseridas em algum serviço on-line para
armazenamento em nuvem.
As formas de escrita e armazenamento dos diários não estão errados,
mas um tanto ultrapassados quando se refere a fazer pesquisas, uma vez que
este formato vem sendo usado desde o início do programa de extensão Rede
de Oficinandos na Saúde. O fato é que existem meios que podem automatizar
esses processos, levando à efetivação de um modo de armazenamento de infor-
mações, deixando-as seguras, organizadas e acessíveis. Aliado a este ambiente,
pensou-se uma forma de ampliar os horizontes das pesquisas mediante o uso de
ferramentas tecnológicas.
Como solução foi pensado o desenvolvimento de uma aplicação Web.
Esse sistema será utilizado por aqueles que atuam nas oficinas de jogos digitais,
como bolsistas do Programa Rede de Oficinandos na Saúde e profissionais do
CAPSi. A aplicação mostrou ser de grande relevância e pode vir a contribuir
como um meio organizado e seguro para a coleta de informações mediante os
diários de bordo.

REDE TEÓRICA QUE GUIA O DESENVOLVIMENTO DA APLICAÇÃO


O estudo através do Programa Rede de Oficinandos na Saúde utiliza
tecnologias da informação e da comunicação produzindo cuidado, inserção social,
formação em saúde mental e em educação, e com isso trouxe fatores a serem
estudados no que diz respeito às informações coletadas de jovens com transtornos
de desenvolvimento. Fatores a serem destacados são extraídos durante as oficinas

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R a m i r o d e Va s c o n c e l o s d o s S a n t o s J ú n i o r – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o
– Karla Rosane do Amaral Demoly

junto ao programa e no contato diário com os jovens inseridos nas atividades do


CAPSi. A observação das características que cada jovem apresenta, em particular
durante o contato com jogos casuais, é utilizada nas oficinas.
A observação das características dos usuários que sofrem de alguns dos
transtornos de desenvolvimento se dá por meio do olhar do bolsista e de seu
supervisor durante as oficinas, quando é possível descrever suas condutas por
intermédio da escrita, ou seja, descrevendo todo o processo observado. Este
processo de pesquisa relatado é também conhecido como “diário de bordo”. Os
diários de bordo são formas de escritas em que os observadores tecem autonar-
rativas de modo a tornar visível seu modo de acompanhar processos cognitivos
na experiência de sujeitos durante as oficinas. Estas podem ser oficinas de jogos,
robótica, artes, etc.
Esta escrita é feita de forma subjetiva, manual e armazenada em arquivos
de textos. Não há um repositório único no qual possam ser guardadas tais infor-
mações, como também não existe um padrão para cada diário descrito, ficando
a caráter do bolsista o formato ideal de sua percepção no ato da escrita, a qual
pode ser feita também em bloco de anotação fazendo uso de caneta esferográfica,
tinta direta ou lápis grafite. Houve casos em que alguns bolsistas fizeram uso de
smartphones para registrar seus diários.
Percebendo este meio de escrita como forma de organizar as autonar-
rativas/observações dos oficineiros na saúde mental, é importante que se tenha
uma forma organizada e automatizada na elaboração de um diário de bordo
rico em informações e um repositório que seja fundamental ao armazenar as
informações para que estas estejam sempre disponíveis para análises futuras, ou
seja, um modelo padrão que seja elaborado e definido para quem quer que seja
o bolsista, como também os pesquisadores que fazem parte do programa Rede
de Oficinandos na Saúde.
Um dos principais fatores relacionados ao programa Rede de Oficinandos
é poder trazer qualidade de vida tanto aos usuários como àqueles que com eles
convivem. Estas crianças e jovens que sofrem de diversos transtornos mentais,
como autismo, deficiência mental, depressão, têm, nas oficinas de jogos digitais
casuais, diversos benefícios, como momentos de alegria e descontração. Estes
pequenos, mas importantes momentos, amenizam seu sofrimento, melhoram

182
SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

sua cognição, percepção, memória, entre outros benefícios que são comprova-
damente percebidos por meio de pesquisas baseadas nos elementos extraídos
desses jogos digitais.

Automatizando os processos de escrita dos diários de bordo


Sugere-se o desenvolvimento de um sistema Web para automatizar a
elaboração dos diários de bordo por parte dos bolsistas, como também a organi-
zação e segurança das informações que forem coletadas. Os bolsistas continuarão
com os mesmos procedimentos de observarem condutas dos usuários, porém
os meios de descreverem os diários serão diferentes e melhorados no sentido de
que novas formas e ferramentas estarão disponíveis para agregar valor, como
produtividade e segurança.
A aplicação Web, além de seguir o padrão de escrita dos diários de bordo,
agora de forma automatizada, terá como complemento um meio de coletar
informações referentes a elementos extraídos dos jogos digitais com base em
estudos feitos ao longo do tempo de estudos no Programa Rede de Oficinandos,
como gestos e ações requeridos para jogar, as emoções expressas nos elementos
trazidos no jogo, por exemplo: alegria ao passar de fase, a angústia de não saber,
a confiança na exploração do jogo, etc.
Todo o aprendizado extraído da escrita no diário pela percepção do fluxo
das ações dos jogadores, padrões que se repetem, padrões que se diferenciam,
serão importantes para que se possa propor jogos para as circunstâncias que
eles apresentam, como: deficiência mental, autismo ou depressão. A Tabela 1
apresenta os elementos que deverão ser pesquisados.

Tabela 1 – Elementos específicos a saúde mental

Som Vídeo
Imagem Interatividade
Inatividade Cooperatividade
Luminosidade Animação
Alegria Angústia
Confiança Insegurança
Fonte: Autoria própria.

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Segundo Moura et al. (2016), cada jovem apresenta singularidades,


mesmo que diagnosticados com um mesmo tipo de transtorno. Com base nas
informações coletadas e sabendo desta particularidade, então, especificamente
sobre os elementos, será possível fazer análises para que pesquisas futuras e novas
propostas de jogos digitais sejam elaboradas.
A ideia principal é que esta aplicação possa trazer diversos avanços no
processo de escrita do diário de bordo, em que não apenas seja possível descrever
de forma subjetiva toda a observação do bolsista, como poder coletar informações
com base em elementos predefinidos. Estes elementos servirão de base para
avanços em pesquisas futuras relacionadas a jogos digitais. É relevante haver
agilidade quando estiver sendo feito uso da ferramenta. Essa agilidade dará
produtividade aos trabalhos desenvolvidos pelos bolsistas.

MÉTODO DE PESQUISA UTILIZADO PARA


O DESENVOLVIMENTO DA APLICAÇÃO
Este programa de extensão é executado na Ufersa e contempla o desen-
volvimento de um sistema Web que tem como objetivo automatizar os processos
realizados pelos bolsistas na composição dos diários de bordo para as pesquisas.
Os diários de bordo são essenciais por que permitem observar as condutas das
crianças e jovens, como e onde focam a atenção sobre determinados jogos, e os
elementos presentes nos jogos que os envolvem.
Na interpretação das escritas pode-se observar o jogo na relação com o
que pode estar gerando angústia, medo, alegria, estranhamento, vontade de
jogar, gestos e ações que tornam visíveis lógicas e movimentos da cognição.
Algumas circunstâncias podem surgir como assustadoras, por exemplo, quando
um jovem tapa os ouvidos e fecha os olhos diante de luzes e sons em um jogo.
Estas são apenas algumas das pistas que se observa direta e imediatamente
estando no ambiente e interagindo com as crianças e jovens.

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SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

Um breve comentário sobre o processo de construção da aplicação


O processo de desenvolvimento do sistema foi construído fazendo o uso
da linguagem de programação Java, uma vez que esta tem grande robustez e
um significativo reconhecimento por uma ampla parte dos desenvolvedores. De
acordo com Silva e Rios (2017), o mercado Web está bastante forte e com vasta
tendência ao crescimento futuro.
O desenvolvimento da interface gráfica foi realizado por meio do uso do
Framework JSF (Faria, 2015). Para atender a algumas demandas na sua institui-
ção, alguns componentes sofisticados estavam disponíveis. Uma das extensões
usadas do JSF foi a biblioteca Primefaces. Juntamente a esta tecnologia, é usada
a Linguagem de Marcação de Hipertexto (HTML) e a linguagem de estilo Cas-
cading Style Sheets (CSS).
Todo o processo especificado foi efetivado com o uso da ferramenta de
desenvolvimento Netbeans. Com ela foi criado um projeto Web usando o Maven.
O Maven já encontra-se devidamente configurado, com todo o aporte necessá-
rio para o desenvolvimento da aplicação. A criação de projetos com Maven no
Netbeans é uma tarefa bem simples. Além do mais, existem modelos de projetos
prontos para as principais tecnologias do Java EE (Maven, 2017).

Descrição do sistema diário de bordo e suas funcionalidades


O Sistema Diário de Bordo (SDB) trata-se de um sistema Web que serve
de apoio aos bolsistas do programa Rede de Oficinandos no desenvolvimento de
jogos digitais aplicados à saúde mental. O SDB tem como operador um bolsista
apto a gerenciar toda a parte de cadastros de bolsistas, colaboradores, usuários
com transtorno do desenvolvimento e conforme a Classificação Internacional
de Doenças (CID).
A classificação CID citada faz parte de um grupo de transtornos carac-
terizados pelas anormalidades qualitativas em interações sociais recíprocas e em
padrões de comunicação e atividades restritas (Centro..., 2017). É de respon-
sabilidade do bolsista também a criação do diário de bordo. Este diário é o
documento que capta os dados pertinentes às pesquisas do programa Rede de
Oficinandos. A seguir são mostradas algumas partes do sistema Web.

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– Karla Rosane do Amaral Demoly

Na tela de gerenciamento é possível navegar por meio das funcionali-


dades do sistema pelo “Menu”, como também obter informações referentes ao
programa Rede de Oficinandos clicando no campo específico. Em “Sobre” é
possível visualizar uma sucinta descrição relacionada ao o próprio SDB. A Figura
1 apresenta a interface de gerenciamento do SDB.
Figura 1 – Gerenciamento das funcionalidades no SDB

Fonte: Autoria própria.

A Figura 2 apresenta a listagem dos bolsistas. Nela é possível efetuar


o cadastro de novos bolsistas, como visualizar, editar ou deletar informações
referentes a eles. Para questões relacionadas ao programa Rede de Oficinandos,
é possível que um bolsista seja definido como “ativo”, mas se este estiver contri-
buindo com o projeto de forma voluntária, por exemplo, ele terá seu status atri-
buído ao valor zero, ou seja, o bolsista não faz parte do programa formalmente,
embora seja possível listá-lo junto aos demais.

Figura 2 – Listagem de bolsistas cadastrados no SDB

Fonte: Autoria própria.

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SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

A Figura 3 apresenta a tela de listagem de usuários. Esse cadastro,


embora o nome seja bastante sugestivo, o “usuário” a que se refere não é o que
faz uso do SDB, mas a criança ou jovem que tem algum transtorno de desen-
volvimento. Essa distinção faz-se necessária para que não ocorram definições
equivocadas.

Figura 3 – Cadastro de usuários com transtornos no SDB

Fonte: Autoria própria.

Os nomes listados referem-se ao cadastro das crianças e jovens. Estes


nomes apresentados na Figura 3 são fictícios, pois deve-se preservar as identida-
des neste livro. Para o SDB, estes serão os nomes reais das crianças e jovens que
são usuários do CAPSi, pois servem exclusivamente para o controle do programa
Rede de Oficinandos. Nesta tela é possível efetuar um novo cadastro, editar,
visualizar e deletar um usuário.
A Figura 4 exibe a tela que lista as classificações CID referentes aos
transtornos de desenvolvimento a que os usuários estão condicionados. Esta
classificação é específica de cada usuário individualmente. Para estas crianças e
jovens é possível ter mais de uma classificação. Por exemplo, um usuário pode
ter autismo e depressão.

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Figura 4 – Lista de classificação CID-10 no SDB

Fonte: Autoria própria.

É possível perceber nas figuras que exibem as telas do SDB, em que são
listados todos os cadastros, os botões e suas seguintes definições:
• Criar: para criar um novo cadastro.
• Visualizar: para visualizar um cadastro efetuado.
• Editar: para editar dados referente ao cadastro.
• Deletar: para excluir cadastro, caso seja necessário.
Para que o bolsista pesquisador possa realizar algumas das ações listadas
é necessário clicar sobre o botão correspondente. O cadastro de um novo diário,
como citado também, é produzido a partir de uma nova tela, a qual é exibida
na Figura 5. O modelo de preenchimento deste diário serve de guia para o
entendimento desta etapa. Esta descrição é abordada de acordo com os campos
que exigem a inserção dos dados que são de suma importância para a pesquisa.

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SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

Figura 5 – Cadastro do diário de bordo no SDB

Fonte: Autoria própria.

Inicialmente é solicitado o preenchimento dos campos “Bolsista” e “Cola-


borador”. Em um outro campo, chamado “Grupo”, é informado qual grupo
está sendo acolhido no momento da oficina. Este campo é definido da seguinte
maneira: há semanalmente oito oficinas, distribuídas às quintas e sextas-feiras. A
cada dia desses há duas oficinas pela manhã e outras duas à tarde. Sendo assim,
define-se que o primeiro grupo da manhã será o grupo 1 e o segundo, o grupo
2. No período da tarde, os outros dois grupos seguem a mesma lógica de sequ-
ência, ou seja, o primeiro grupo da tarde será o grupo 3 e por último, o grupo 4.
No campo seguinte é designada a data, imprescindível para a composição
do documento a que se refere. Ele deve conter a data exata do diário, bem como
a hora em que está sendo praticada a oficina, a qual traz para as pesquisas uma
referência temporal para os registros. O passo seguinte é subjetivamente tudo o
que for conveniente e importante no campo destinado à escrita textual.
Os campos seguintes referem-se aos elementos que são observados e
avaliados no momento em que os usuários com transtorno de desenvolvimento
vivenciam a experiência do jogar. Em relação aos elementos, é proposto um
método para medir ou avaliar o grau de satisfação, quando o bolsista pesqui-
sador pode atuar como guia no momento da observação e construção do diário

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R a m i r o d e Va s c o n c e l o s d o s S a n t o s J ú n i o r – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o
– Karla Rosane do Amaral Demoly

de bordo. A Tabela 2 exibe o modelo de avaliação proposto para os elementos


que compõem os momentos vivenciados durante as oficinas de jogos digitais. É
definida uma escala de pontuação de 0 (zero) a 5 (cinco), em que:

Tabela 2 – Modelo de Avaliação Relacionado aos Elementos dos Jogos


Pontuação (0 a 5) Grau de Satisfação
0 ou 1 Insatisfatório
2 ou 3 Satisfatório
4 ou 5 Bastante Satisfatório

Fonte: Autoria própria.

EXPLICAÇÃO DO PROCESSO DE VALIDAÇÃO E OS RESULTADOS OBTIDOS

Technology Acceptance Model (TAM)


Desde a década de 70 a aceitação de tecnologia vem sendo estudada.
As análises resultaram em vários elementos que podem influenciar o uso da
TI (Legris; Ingham; Collerette, 2003). De acordo com De Moura, Ferreira e
Barros (2014), na década de 80 pesquisadores desenvolveram e testaram modelos
para auxiliar a identificar níveis de uso de sistemas. O modelo TAM apresenta
fatores externos a um sistema de informação, por exemplo, as intenções de uso
do próprio sistema.
Segundo Davis (1989), esta tecnologia apresenta os seguintes aspectos:
(i) Utilidade de Uso Percebida – em que abrange o ponto de vista dos que fizeram
uso da aplicação em relação ao seu desempenho; (ii) Facilidade de Uso Percebida
– que expõe o ponto de vista ao uso de um sistema em relação à necessidade de
pouco ou nenhum esforço. Bueno, Zwicker e Oliveira (2004) ressaltam que o
modelo TAM tem como proposta fundamental prover uma base para traçar o
impacto de variáveis em crenças internas, atitudes e intenções comportamentais
do indivíduo em relação a um determinado sistema.
Para a validação da ferramenta foi aplicado um questionário baseado no
modelo de aceitação de tecnologia TAM. Posto isto, foram desenvolvidas 12
questões relacionadas ao Sistema Diário de Bordo. Destas questões, 10 foram

190
SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

elaboradas de forma objetiva e 2 de forma subjetiva. Os participantes desta pes-


quisa foram: três profissionais que colaboraram diretamente em conjunto com
o programa Rede de Oficinandos e CAPSi e sete bolsistas.
Em relação à atuação dos profissionais temos: (i) uma pedagoga com
especialização em Psicopedagogia, (ii) uma educadora física e (iii) uma fonoaudió-
loga. Entre os bolsistas e seus respectivos cursos, temos: (i) três alunos de Ciência
da Computação, (ii) duas de Educação do Campo, (iii) uma aluna de Direito e (iv)
um aluno de Ciência e Tecnologia. Todas as respostas foram registradas e apre-
sentadas com total sigilo dos dados relacionados aos participantes da pesquisa.
Diante das perguntas descritas no questionário que foi elaborado, foi
possível obter algumas observações em relação ao sistema. De acordo com per-
guntas relacionadas à Facilidade de Uso Percebida, a Tabela 3 exibe em detalhes os
resultados relacionados às perguntas objetivas.

Tabela 3 – Facilidade de Uso Percebida (PEOU – Perceived Ease of Use)

Perguntas (?) Respostas em (%)

A interação com o SDB foi clara 100% (Sim)

Interagir com o SDB requer muito esforço mental 100% (Não)

É fácil usar o SDB 100% (Sim)

A aprendizagem do SDB requer muito esforço 100% (Não)

Conseguiu usar o SDB sem auxílio ou suporte 100% (Sim)


Fonte: Autoria própria.

A pergunta subjetiva foi relacionada à dificuldade na utilização das fun-


cionalidades do sistema. Perguntou-se o seguinte: “Se houve dificuldade na uti-
lização do Sistema Diário de Bordo, em qual momento e quais funcionalidades
apresentou dificuldade?” As respostas fornecidas pelos profissionais (colabora-
dores) para esta pergunta foram:
• Profissional 1: o diário de bordo é bastante acessível e prático, sendo assim, não apre-
senta dificuldades.
• Profissional 2: não houve dificuldade, tudo muito prático.

191
R a m i r o d e Va s c o n c e l o s d o s S a n t o s J ú n i o r – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o
– Karla Rosane do Amaral Demoly

• Profissional 3: Não houve dificuldade.


Quando submetidos ao mesmo questionamento relacionado à questão
subjetiva, as respostas dos bolsistas que fizeram parte da pesquisa foram:
• Bolsista 1: algumas informações não são claras no primeiro momento, senti a necessi-
dade de uma pequena explicação a respeito da pontuação dos elementos do jogo.
• Bolsista 2: não houve muitas dificuldades, apenas na parte de busca do sistema.
• Bolsista 3: não houve dificuldade na utilização do sistema.
• Bolsista 4: não houve nenhuma dificuldade.
• Bolsista 5: não identifiquei inicialmente dificuldade na sua utilização.
• Bolsista 6: não houve dificuldade, é um sistema simples e de fácil entendimento e fácil
manuseio.
• Bolsista 7: não – o sistema é claro e objetivo para a sua funcionalidade.
Como resultado sobre as perguntas relacionadas à Facilidade de Uso Per-
cebida, no quesito utilização do Sistema Diário de Bordo em um ambiente de
saúde mental, 100% dos que fizeram parte da pesquisa respondendo todas as
perguntas esboçadas no questionário, afirmaram que sim, o sistema oferece uma
interface de fácil interação.
De acordo com perguntas relacionadas à Utilidade Percebida, a Tabela 4
exibe em detalhes os resultados relacionados às perguntas objetivas, permitindo
assim obter algumas observações relacionadas ao sistema.

Tabela 4 – Utilidade Percebida (PU – Perceived Usefulness)

Perguntas (?) Respostas em (%)


O uso do SDB melhora performance no meu trabalho 100% (Sim)
O uso do SDB no meu trabalho melhora coleta e armazenamento de
100% (Sim)
dados
O SDB melhora minha eficiência para o meu trabalho 100% (Sim)
Eu acho o SDB útil para meu trabalho 100% (Sim)
No uso do SDB alguma funcionalidade não se aplica em ambiente de
100% (Não)
saúde mental
Fonte: Autoria própria.

192
SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

A questão subjetiva sobre a possibilidade de não usar o SDB foi a seguin-


te: “O que levaria você a não utilizar o Sistema Diário de Bordo?” Respostas
que foram dadas pelos profissionais (colaboradores) submetidos à pesquisa para
esta pergunta:
• Profissional 1: não encontrei empecilhos.
• Profissional 2: o Sistema Diário de Bordo facilita o registro de dados com eficiência,
daí a necessidade de utilizá-lo.
• Profissional 3: se melhorasse a individualidade e privacidade do usuário
Os bolsistas que foram submetidos a esta mesma questão subjetiva for-
neceram as seguintes respostas:
• Bolsista 1: o sistema iria deixar o trabalho de escrita de diário mais organizado.
• Bolsista 2: considero de grande relevância, não possuo razões para não utilizá-lo.
• Bolsista 3: inutilidade no uso do sistema.
• Bolsista 4: a única coisa que ocorreria é se o sistema não funcionasse.
• Bolsista 5: eu utilizaria o Sistema Diário de Bordo, é uma forma de controle e orga-
nização que pode trazer inúmeros benefícios.
• Bolsista 6: algo relacionado à falta de funcionalidade.
• Bolsista 7: a necessidade de coletar dados sobre determinado usuário.
Como resultado sobre as perguntas em relação à Utilidade Percebida, no
quesito utilização do Sistema Diário de Bordo em um ambiente de saúde mental,
100% dos que fizeram parte da pesquisa respondendo todas as perguntas esbo-
çadas no questionário, afirmaram que sim, o sistema pode ser utilizado.
De acordo com a pesquisa, o Sistema Diário de Bordo enquadra-se na
categoria de sistema eletrônico pelo modo que foi desenvolvido, atendendo às
necessidades do programa Rede de Oficinandos na escrita de diários de bordo,
em que estes podem ser produzidos a partir de qualquer dispositivo que tenha
um navegador e conexão com a Internet.
A aplicação proposta passou por todo o processo de validação realizada
com profissionais que interagem diretamente com os diários produzidos nas ofici-
nas de jogos digitais, juntamente com os bolsistas, complementando o grupo de
pessoas que fizeram parte da pesquisa. Tem critérios contundentes que o habili-
tam a ser usado no ambiente de saúde mental por parte daqueles que o operam.

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R a m i r o d e Va s c o n c e l o s d o s S a n t o s J ú n i o r – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o
– Karla Rosane do Amaral Demoly

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerando a produção de diários de bordo por parte dos bolsistas
vinculados ao programa Rede de Oficinandos e que atuam nas oficinas feitas no
CAPSi, o desenvolvimento de um sistema Web ampliou todo o processo atual
de escrita dos diários, promovendo uma melhor forma para coleta, organização
e armazenamento das informações.
Diante da pesquisa e validação feita com profissionais e bolsistas que
atuam no CAPSi, o sistema Web está apto a auxiliar os bolsistas em um ambien-
te de saúde mental de forma dinâmica e acompanhada pelos pesquisadores. É
um dispositivo adicional importante que dará suporte às pesquisas dentro do
universo de jogos digitais e também no acompanhamento de crianças e jovens
com transtorno no desenvolvimento.

REFERÊNCIAS
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modelo de aceitação de tecnologia aplicado em sistemas de informações e comércio eletrôni-
co. In: INTERNATIONAL CONFERENCE ON INFORMATION SYSTEMS
AND TECHNOLOGY MANAGEMENT, São Paulo, 2004.
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DOENÇAS EM PORTUGUÊS (CBCD). 2017. Disponível em: <http://www.
datasus.gov.br/cid10/V2008/cid10.htm>. Acesso em: 23 fev. 2017.
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information technology. MIS Quarterly, v. 13, n. 3, p. 319-340, 1989.
DE MOURA, F. L.; FERREIRA, F. A.; BARROS, V. F. de A. Aplicação do modelo
de aceitação de tecnologia para avaliar a aceitação e uso de software ERP. In: PRO-
CEEDINGS OF INTERNATIONAL CONFERENCE ON ENGINEERING
AND TECHNOLOGY EDUCATION, Guimarães, Portugal, 2014. p. 462-
466.
FARIA, T. Java EE 7 com JSF, PrimeFaces e CDI. [S.l.]: [s.n.], 2015.
FREITAS, R. C.; DUTRA, M. A. Usabilidade e interatividade em sistemas web
para cursos on-line. Brazilian Journal of Computers in Education, v. 17, n. 2, p.
48, 2009.

194
SISTEMA DIÁRIO DE BORDO ELETRÔNICO COMO APOIO AO DESENVOLVIMENTO DE JOGOS NA SAÚDE MENTAL

LEGRIS, P.; INGHAM, J.; COLLERETTE, P. Why do people use information


technology? A critical review of the technology acceptance model. Information
& management, v. 40, n. 3, p. 191-204, 2003.
MAVEN, A. Apache Maven Project. 2017. Disponível em: <https://maven.
apache.org>. Acesso em: 22 mar. 2017.
MOURA, M. et al. Jogos, adaptabilidade e cognição: uma plataforma para
potencializar jovens com transtorno do desenvolvimento. In: WORKSHOPS
DO CONGRESSO BRASILEIRO DE INFORMÁTICA NA EDUCAÇÃO.
Uberlândia, 2016. Anais... Uberlândia, 2016. p. 1.403.
OFICINANDO EM REDE. Programa Rede de Oficinandos na Saúde. Mossoró,
2016. Disponível em: <https://oficinandoemrede.ufersa.edu.br/>. Acesso em:
6 maio 2017.
PINHEIRO, M. Sistema web para o reconhecimento de partituras musicais. 2009.
Dissertação (Mestrado Integrado em Engenharia Electrotécnica e de Compu-
tadores Major Telecomunicações) – Faculdade de Engenharia da Universida-
de do Porto, 2009. Disponível em: <https://repositorio-aberto.up.pt/bitstre-
am/10216/57563/1/000135153.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2017.
SILVA, K. L. d. S. D.; RIOS, J. R. A. C. Marketing digital: a influência do grátis
do século XXI na geração de microempreendedores on-line no Instagram. Encon-
tros Universitários da UFC, v. 1, p. 2.920, 2017.

195
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO
MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL:
O Papel dos Relatos de Campo na Pesquisa-Intervenção1
Laura Pozzana
Virgínia Kastrup

Desde maio de 2007 realizamos a oficina Corpo, Movimento e Expressão


com um grupo de pessoas cegas e com baixa visão no Instituto Benjamin Cons-
tant (IBC), no Rio de Janeiro. A princípio era uma atividade voluntária, oferecida
àqueles que integravam o Centro de Convivência do Instituto. Em 2010 passou
a ser tema de nossa pesquisa de Doutorado no Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da UFRJ. Partimos da consideração de que não é natural que o corpo
da pessoa cega e com baixa visão seja tenso e rígido. O objetivo foi investigar
como a mobilização sensível realizada de modo grupal produz uma ativação
de articulações, a criação de território existencial e a produção de confiança no
mundo.
O caminho metodológico se faz com pessoas com deficiência visual e
não para elas (Moraes; Kastrup, 2010). A pesquisa utiliza o Método da Carto-
grafia (Passos; Kastrup; Escóssia, 2009; Passos; Kastrup; Tedesco, 2014), um
método de pesquisa-intervenção que envolve a criação de um campo, de um
corpo comum. A cartografia não é um método a ser aplicado, e sim inventado
no contínuo acompanhamento de processos (Pozzana de Barros; Kastrup, 2009).
A metodologia de investigação não se separa de uma dinâmica de campo
de pesquisa. Pesquisamos com implicação. Cabe fazer referência a Lourau (1993):
“Quando falamos em implicação com uma pesquisa, nos referimos ao conjunto
de condições da pesquisa” (p. 16), condições políticas, econômicas, culturais, etc.,

Publicado originalmente na Revista Benjamin Constant, Rio de Janeiro, ano 21, n. 58, v. 2, p.
1

134-150, jul./dez. 2015.

197
Laura Pozzana – Virgínia Kastrup

em sua dimensão objetiva e também subjetiva, macro e micropoliticamente. O


termo “implicadas” refere-se a um pathos que convoca atenção para um campo
que nos toca, atrai, envolve, perturba. Somos pesquisadoras de um campo que
nos fez interessados nele ao ativar em nós aspectos a serem desdobrados e com-
partilhados. A pesquisa se fez com a oficina e envolveu a análise de seus efeitos.
O texto de Paul Veyne, Foucault revoluciona a história (1978), indica que
seu método consiste em desviar os olhos dos objetos naturais para perceber as
práticas. A atenção volta-se para as práticas, para as relações, para o que se faz
efetivamente. Cada instante é raro. “A afetividade, o corpo sabe mais que a cons-
ciência” (Veyne, 1992, p. 197). Quando experimentamos algo, estamos dentro
de uma paisagem: há uma atmosfera local, afetos são suscitados, participamos
do que sentimos, afirmando e estranhando o momento presente.
Donna Haraway (1995) apoia-se na metáfora da visão para fazer uma
crítica a uma certa concepção masculina da ciência, que distancia o sujeito conhe-
cedor-controlador de seu objeto. Devolvendo o olhar ao corpo, e não consideran-
do um olhar que tudo vê de lugar nenhum, defende o conhecimento que se dá
com uma objetividade corporificada, produzindo saberes locais e sempre parciais.
Se o saber é localizado, ele se dá a partir de um lugar e este lugar de onde se fala,
se sente e se faz é abertura, abertura de sujeitos e territórios. Estamos no meio
das coisas, in medias res. Nessa mesma direção, o objetivo do presente texto é
mostrar como a partir do acompanhamento do processo da Oficina de Corpo,
Movimento e Expressão e do registro das atividades, percebemos como manejo
da oficina associado com o manejo da pesquisa teve como efeito a criação de uma
metodologia de trabalho e a construção de conhecimento.
Os relatos de campo ocupam um lugar de destaque na metodologia de
nossa pesquisa. A escrita dos relatos busca acessar a experiência concreta e exa-
minar os efeitos das práticas em nós. Com eles acompanhamos a oficina em sua
elaboração. Os relatos procuram trazer fatos e afetos, encontrando relevância nas
falas soltas e nas atitudes que fazem andar ou parar o movimento. Tomando o
corpo na sua capacidade de agir em articulação com os afetos, referimo-nos aos
participantes desta pesquisa pelos seus nomes, como pessoas cegas e com baixa
visão, e não como deficientes visuais. Este tema refere-se a uma discussão mais
ampla, que tem o nome de Desability Studies. Uma pessoa torna-se eficiente e

198
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

deficiente segundo como é articulada em certas prática.2 Com Marcia Moraes


(2010) ressaltamos a importância de ter presente que ninguém é deficiente em si
mesmo. O uso dos nomes reais é fruto de uma construção com os participantes:
ao pedirmos que eles assinassem o Termos de Consentimento Livre e Esclarecido
(TCLE) de nossa pesquisa, registrada no Comitê de Ética Anna Néri, da UFRJ,
os próprios afirmaram que desejam que seus nomes façam parte do trabalho.

In medias res: somos e fazemos uma rosa-roda

11 de maio de 2012.
Cheguei e a sala estava trancada. Estranhei. No primeiro andar encontrei uma
moça simpática que está sempre por ali fazendo ginástica com uma mulher cega e outro dia
guiava uma bicicleta de dois lugares. Ela me deu a chave da porta.
Instalei o som e logo chegou a Marlene com o Jota, seu marido. Ela falou que
para ser pontual não tinha lanchado. E aí, não vai passar mal?, pergunto, dado que é
assim que ela costuma justificar seus atrasos eventuais. Ela diz que tinha passado mal na
semana passada, mas foi da barriga e não por causa da diabete. Tião e Alfredo chegam
em seguida, achando que eu não estava lá. Eles também estavam sendo pontuais, algo
cuja importância eu tinha sinalizado para Adriana e Cristiane, assistentes sociais, que
trabalham no Centro de Convivência. Logo chegaram outros e outros, até que a barra
estava cheia. Suely, que era nova ali, chegou dizendo que ia ver como era aquela aula.
Eu disse que ali o perceber era de dentro, participando. Ela topa. Apresento a sala a ela,
levando-a comigo. Coloco-a na barra e digo pra todos aproveitarem para sentir o contato
dos pés com o chão em lugares diferentes. Ela entra na atividade e outros vão também.
Alguns conversam e o clima é calmo.
Augusto, estagiário da pesquisa/oficina, não iria, pois acordara passando mal.
Juliana, outra estagiária, não tinha chegado ainda quando começamos a fazer uma
grande roda. Ao som de Marisa Monte nos movemos docemente: “O céu vai tão longe e
está perto, o céu fica em cima do teto... o céu serve a todos, o céu ninguém pode pegar”. Ouço
Lorena falar com alguém ao seu lado: essa aula é gostosa demais, fundamental!

Remeto o leitor ao trabalho de Martins (2006) e Moraes (2010).


2

199
Laura Pozzana – Virgínia Kastrup

Fazemos a nossa chamada-chamado, procedimento inventado cujo objetivo é cha-


marmos em voz alta nossas próprias presenças por meio de nossos nomes enunciados na
roda. Naquele dia fizemos ele usando um tom médio, nem alto nem baixo, falamos os
nossos nomes e fomos ecoados pela roda. Assim, ao mesmo tempo anunciamos grupalmente
quem está presente, compondo a atividade do dia. Éramos ao todo 23 pessoas. Fazemos
uma segunda rodada com os nomes e sinto meu corpo vibrando todo com os diferentes sons.
Ao final, indico que cada um sinta como o seu corpo vibra. Silêncio e pausa para perceber
o que se dá em nós. O clima é concentrado nesta hora.
Articulamos joelhos e tornozelos. Acompanho-os soltando minhas mãos da roda,
percorrendo a sala e me aproximando deles. Depois falo para fazermos o percurso pelas arti-
culações, como um scanner, de cima para baixo. Pontuo: cabeça, pescoço, ombros, axilas,
cotovelos, punhos, dedos, costelas, cintura, bacia, virilhas, joelhos,... Coloco a música e
ressalto alguns pontos do caminho para passarmos pelas articulações mais ou menos juntos.
Foi ótimo! Usei Yann Tiersen, da trilha sonora de Amelie Poulain.
Depois, ainda em roda, indico para irmos pra frente, entrando na roda, e depois
para trás, recuando, saindo. Fazemos sem música e depois com música. Andar com fé,
Gilberto Gil. Nos movemos também nas laterais. Dançamos e cantamos.
Como a roda está muito grande, falo para fazermos duas, uma dentro da outra.
Coloco Uakti, Dança dos Meninos, e proponho algo novo, que já havia pensado fazer
numa conversa anterior com Juliana e Augusto: os participantes poderiam conduzir o
movimento. Pergunto alto que região do corpo eles sentem que precisam mover mais naquela
hora. Alguns dizem cabeça e muitos dizem a bacia. Acho curioso. Como Mirian tinha
sido uma das pessoas que falou bacia, peço para ela conduzir. Ela mostra acanhamento na
proposta, mas logo embarca. Logo passo a bola para o Zé Carlos, que também falou alto.
Depois Lorena, que prefere não fazer... passo para Luis, ... Foi ótimo!
Coloco Andrea Bocceli. “Se tu fosse nei miei occhi per un giorno, vedresti la belleza
che, piena d’allegria, io trovo dentro gli occhi tuoi, magia o realtá... Se tu fossi nel mio
cuore per un giorno, potresti avere un idea di c’iò che sento io quando mi abbracci... Res-
piriamo insieme”. Ao terminar, Eronides pede para fazer algo também. Respondo que sim
e ele diz: “Vou falar uma poesia da rosa e vamos fazer o movimento da seguinte forma: a
roda de dentro vai pra esquerda e a de fora vai pra direita”. Um maestro! Ele fala frases
simples e nós as repetimos, como pede. Fala da rosa, da flor que criamos ali e de uma flor
que fazemos com o peito. Dedica essa rosa para as mães. É véspera do Dia das Mães, eu
nem havia lembrado. Ao terminar, Sérgio pede pra falar um poema também. Lindo, não

200
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

lembro bem, mas é no mesmo clima. Reparo Eronides chorando lindamente, rosado, um
pouco recolhido, mas com uma espécie de sorriso de emoção. Depois o Luis fala um verso e
Wanderley, ao final, pede a palavra. Diz que quando nasceu não tinha mais mãe. “Aliás,
ela sempre existiu, mas ele não teve a chance de conhecê-la”. Completa dizendo que lembra
dela em cada mulher, em cada encontro que tem com uma dama.
Foi emocionante, agradeço internamente essa lembrança. Minha mãe vive também
naquilo que faço. Ao escolher esta música italiana, minha língua materna, pensei no que
a letra conta: “Se você estivesse nos meus olhos por um dia, veria a beleza que, cheia de
alegria, eu encontro nos teus olhos, magia ou realidade... Se você estivesse no meu coração
por um dia, poderia ter uma ideia daquilo que sinto quando você me abraça... Respiremos
juntos”. Isto me remete às pessoas que amamos, que já morreram e vivem através de nós.
Lembro da cegueira, do não ver e do ver pelos olhos do outro. Ao continuar a ouvir a
música penso sobretudo como esse gesto, o convite de ser habitado pelo outro, não se refere
tanto ao olho, ao olhar, e sim ao que nos é próprio, singular. E com a rosa-roda também
sinto no peito algo que conta de uma relação amorosa, concreta, generosa. A letra da
música e a rosa que criamos com a regência de Eronides falam de um dar-se ao outro, do
dar nascimento, conascer, conhecer e fazer corpo com.
Esse dia a oficina foi diferente, e está cada vez mais encorpada. Ressalto que faz
tempo que ao final ninguém agradece a Deus, ninguém faz uma oração, mas o agrade-
cimento se faz presente no sentir a si e ao outro, na roda, na emoção, na flor, no sorriso
e no silêncio. Por um instante, lembro de algo que tenho observado e de um momento que
aconteceu no mês anterior. Ao final de uma oficina, Zé Carlos, sentindo a força gerada
grupalmente, rege nossas presenças. Pede para que canalizemos a energia mobilizada e
criada ali para o coração de um companheiro amargurado, que atrapalhava os encontros
do grupo da Convivência. Pergunto em voz alta que nome poderia ter essa força gerada.
Penso no amor e ao mesmo tempo dois deles dizem amor.
Eles estão se apropriando mais de nosso trabalho coletivo e criando com o que
acontece.
Escolhemos começar por este relato por alguns motivos: 1) gostaríamos
que o leitor pudesse estar em contato com a experiência que o produz; 2) busca-
mos descrever uma prática em curso, de modo que as múltiplas ações presentes
nos façam conhecer a produção de relações; 3) apostamos numa argumentação
conceitual associada à descrição de um processo de construção, intervenção e
investigação; 4) o relato apresenta diferentes temas que, tomados no recorte de

201
Laura Pozzana – Virgínia Kastrup

um dia, estão ligados a ações presentes e, tomados no tempo (costurados com


outros), estão vinculados à construção de um mundo comum, de um nós; 5)
sentimos que precisamos começar pelo meio das coisas, in media res, com fatos e
encontros; 6) na pesquisa, há algo em comum entre o que é necessário para os
participantes e para os pesquisadores, há um corpo comum, criado na prática
por todos; 7) produzir um texto é correr riscos, o texto é como um corpo entre
outros; 8) a pesquisa é poiesis e a oficina se faz conhecimento, produz conasci-
mentos; 9) encorpamos e incorporamos juntos; 10) apostamos na pesquisa feita
como a rosa-roda, com florescimento para o outro e de cada um.
Os relatos de campo são fortes instrumentos numa pesquisa-intervenção.
Neles anotamos fatos – como o número e o nome dos participantes – bem como
impressões, cenas, falas, pensamentos, dinâmicas, aspectos objetivos e subjetivos.
Com os relatos também registramos acontecimentos, como a criação inesperada
da rosa-roda. Aprendemos e criamos com eles. Podemos afirmar que eles são os
principais aliados e mediadores no discernimento daquilo que se passa e importa
à investigação. Latour destaca que o laboratório de pesquisa se faz com textos
e não com janelas pelas quais o pesquisador observa um campo e defende que
devemos escrever relatos arriscados (2008, p. 177). Nesta direção, trazemos para
o primeiro plano o próprio fazer dos relatos. O que nos faz fazer, nos faz também
escrever estando no meio das coisas.

A OFICINA
A oficina Corpo, Movimento e Expressão foi criada a partir do desejo de
colocar em prática uma formação no Sistema Rio Aberto em ressonância com
outra, em Psicologia. No início havia, de modo ainda difuso, uma intuição: uma
prática regular com pessoas com deficiência visual – cegos e com baixa visão
– poderia ser fértil no cultivo de cada um, na produção de conhecimento e na
ampliação de mundo para todos nós.
Quem participa da oficina são pessoas que integram o Centro de Convi-
vência do Instituto Benjamin Constant, ligado à Divisão de Orientação e Acom-
panhamento (DOA). A Convivência, como é chamada usualmente no feminino,
é definida como um espaço de troca e sociabilidade para as pessoas com defi-
ciência visual que já passaram por um processo de reabilitação. A Convivência
foi uma saída criada pelos usuários do IBC, pessoas que não enxergam ou estão

202
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

perdendo a visão, para dar continuidade aos dois anos vividos na Reabilitação,
na qual frequentam diferentes atividades, tais como: a aprendizagem da leitura
e da escrita Braille, Orientação e Mobilidade (OM), Atividades da Vida Diária
(AVD), entre outras, como a cerâmica, a música, a tapeçaria, a psicologia grupal
e a massagem. Na Reabilitação muitos fazem amigos, aprendem novas práticas
e sentem o Instituto como um novo território existencial, mesmo passando ali
momentos difíceis. Assim, saindo da Reabilitação, entram para o Centro de
Convivência e seguem vinculados ao Instituto Benjamin Constant (IBC). Aos
poucos, vão cultivando certa autonomia nas escolhas e nas atividades oferecidas,
em sua maioria, por voluntários.
Algumas dessas atividades são coordenadas por alunos da Reabilitação,
pessoas que aprenderam ali e se disponibilizam para ajudar outros. É o caso de
Eronides, que se alfabetizou aprendendo Braille ao frequentar a Reabilitação em
momento de perda da visão, e hoje dá aulas de Braile. E José Carlos, baixa visão,
que se tornou monitor da oficina de cerâmica. Outras atividades são coordena-
das por profissionais que se oferecem como voluntários, sem receber retribuição
financeira pelo trabalho. Muitos já trabalham no IBC há anos e outros passam
pouco tempo. As atividades oferecidas são: cerâmica, música, tapeçaria, costura,
Braile, além de incluírem outras, como inglês, espanhol, canto, fisioterapia,
alongamento, psicomotricidade, teatro e a oficina de movimento e expressão,
chamada simplificadamente pela maioria de Expressão Corporal. As pessoas se
matriculam na Convivência anualmente e se inscrevem nas diferentes ativida-
des, por escolha própria. Louis Braille é o criador do sistema, que passou a ser
denominado apenas braile.
Nestes oito anos de oficina ainda em curso, 56 pessoas passaram por ela.
A idade dos participantes varia dos 40 aos 70 anos. Em sua maioria são idosos.
Alguns pararam por um período e voltaram, enquanto outros que pararam às
vezes voltam para dar um “oi” e contar algo. Outros seguem participando desde
o início. Os encontros, reunindo em média 16 pessoas, acontecem nas sextas-
-feiras pela manhã, na sala dos espelhos, no segundo andar do prédio da Edu-
cação Física e têm uma hora de duração. No primeiro ano, em 2007, a oficina
ocorria uma vez por mês, em 2008 e em 2009 acontecia duas vezes, em 2010 e
em 2011 três vezes e em 2012 tivemos encontros semanais. É relevante desta-
car que nos primeiros anos a frequência era oscilante. Algumas vezes fazíamos

203
Laura Pozzana – Virgínia Kastrup

encontros com 4 ou 5 participantes, não sabíamos quantos esperar, e atualmente


é raro acontecer uma atividade com menos de 15 pessoas. É importante ressaltar
ainda que hoje, muitas vezes, os participantes comentam que a atividade deveria
acontecer mais vezes por semana.
Desde 2011 temos estagiários de Psicologia trabalhando na oficina. Eles
participam, são mais elementos na roda, auxiliam nas questões práticas – como
a chegada, a instalação do som e a saída – e também fazem relatos de campo.
Estes relatos servem para sua formação de jovens pesquisadores, como apren-
dizagem de escrita e acompanhamento da oficina. Os relatos são discutidos nas
reuniões de pesquisa e são uma peça-chave na identificação e na elaboração das
questões emergentes.
A oficina é inspirada nas práticas do Sistema Rio Aberto, escola de origem
argentina fundada nos anos 60 por Maria Adela Palcos, que trabalha no sentido
de despertar a presença de cada um e abrir espaços para a expressividade dos
afetos (Palcos, 2011). Por meio da prática corporal busca-se criar condições de
convergência entre aquilo que se sente e se pensa e aquilo que se faz, ou seja,
entre a experiência e a ação, entre experiência e movimento. O que está no hori-
zonte é uma ampliação das conexões de cada um consigo mesmo e com o mundo.

CORPOS RÍGIDOS, CORPOS ARTICULADOS


– em busca da mobilidade
Na abertura de uma apostila organizada pelo Programa Nacional de
Apoio à Educação de Deficientes Visuais (2002) destinada à formação de profes-
sores para a disciplina de Orientação e Mobilidade (OM), lê-se: “A mobilidade
é considerada como a maior de todas as perdas na cegueira e pode ser definida
como a habilidade da pessoa deslocar-se intencionalmente da posição em que se
encontra, para uma outra desejada, reagindo a estímulos internos e externos”.
A referência às perdas resultantes da cegueira não deixa de expor um problema,
uma vez que as práticas de OM são indicadas também para quem nunca enxer-
gou e, portanto, para quem não perdeu a visão.
Laughlim (1975), Stamford (1975) e Castro (2006), ao tratarem do
aprendizado da Orientação e Mobilidade, ressaltam que existe, muitas vezes,
uma inatividade física nas pessoas com cegueira ou baixa visão, seja pela pouca

204
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

curiosidade de explorar o espaço, seja pelo medo do desconhecido e também pela


superproteção que muitas pessoas recebem de familiares e das pessoas próximas.
Nesta direção, a mobilidade física é uma via importante para uma maior auto-
atualização e para o sentido de autonomia (Castro, 2006). Entendemos que o
termo inatividade indica pouca experimentação. Se uma mãe, para proteger sua
filha cega, caminha com ela colada ao corpo, muito provavelmente a menina é
levada pelo mundo e não experimenta ativamente as nuances entre o equilíbrio
e o desequilíbrio, uma passada e outra, parar e iniciar um deslocamento. Se uma
criança não brinca com objetos e com outras crianças, se não interage no espaço,
movimentos básicos como aquele de pegar e dar, empurrar e puxar, abaixar e
pular, etc., não são realizados e conhecidos. Podemos concluir que o campo da
deficiência visual precisa de práticas que expandam o trabalho da OM, que
incluam neste aprendizado do corpo pelo espaço, a experimentação do próprio
corpo no alargamento do próprio mundo.
A literatura sobre deficiência visual indica que a mobilidade espacial é um
grande problema, talvez o maior deles, para as pessoas marcadas de algum modo
pela cegueira. Como a visão é importante no apoio corporal, na estabilização da
postura vertical e do movimento, a cegueira traz problemas no deslocamento
motor no espaço (Hatwell, 2003; Pereira, 1989; Croce; Jacobson, 1986; Barber;
Lederman, 1998). Este problema apresenta-se muito claramente na circulação
dos cegos pela cidade. Nota-se um corpo que constantemente se protege do
perigo, caminha de forma contraída e defendida. Mesmo sem a presença concreta
de algo ameaçador, o corpo parece ficar em uma posição defensiva, apreensiva,
parecendo pouco articulado, rígido e tenso.
No desenvolvimento postural e motor é comum a presença de contra-
ções, como pescoço e coluna endurecidos, cabeça que pende para baixo ou testa
voltada para cima, pernas e braços pouco flexíveis. Para que o indivíduo ganhe
mobilidade, um trabalho atento precisa ser desenvolvido e ganhar corpo. Em
outras palavras, o corpo precisa ganhar articulações. Articulações no próprio
corpo, como o movimento dos joelhos e dos cotovelos; articulações entre corpos,
com as coisas e as pessoas; articulação com o solo, com o território material e
existencial; articulação com ideias e no interior da própria linguagem. Desse
modo, pensamos também que por meio de certas práticas que trabalhem nesta

205
Laura Pozzana – Virgínia Kastrup

direção, alguns problemas existenciais podem ser tocados e mobilizados, como


o medo, a desconfiança e a sensação de dependência, às vezes profunda e mesmo
absoluta.
Não se trata aqui de pensar o corpo que o cego possui separado de suas
relações e nem a cegueira como sinônimo de falta de visão. Amparados pela
noção de corpo de Bruno Latour (2007), interessamo-nos pelo corpo que é arti-
culado com a capacidade (a ação) de afetar e ser afetado. Com pessoas cegas
e com baixa visão nos interessamos pelo corpo em conexão com aquilo que o
constitui e o acompanha em ação (Pozzana de Barros, 2008). Nesse sentido, o
problema do corpo toca diretamente no problema da produção de subjetividade.
O conceito de subjetividade ao qual se acopla a ideia de produção – tal como
pensado por Michel Foucault (1982, 1985, 1988), Gilles Deleuze e Félix Guatta-
ri (1997, 2011) – afasta-se da concepção de sujeito cartesiano, cujas repercussões
se fazem sentir na Psicologia ainda nos dias atuais. Ao contrário do sujeito fixo,
as subjetividades estão em constante transformação e têm relação direta com o
território histórico e afetivo que habita. Sendo sempre coletiva, a subjetividade
é um efeito de agenciamentos, resultado de encontros e entrecruzamentos de
signos os mais diversos possível.
O sistema de pensamento cartesiano que opera dicotomias é substituí-
do, desta forma, por um sistema que privilegia as articulações e ressonâncias.
Partimos do entendimento de um corpo que não se separa de um modo de
vida e de um plano de produção de si e de mundo. O corpo é entendido como
abertura ao mundo e, ao mesmo tempo, ação. O corpo na oficina e na pesquisa
é como o diário de campo no qual são registrados os afetos de um processo de
subjetivação. É preciso voltar a ele, lê-lo, escrever e inventar com ele. O corpo
age e sofre efeitos. Ele mesmo é um efeito das práticas que o engendram. Nesse
sentido, afirmamos que subjetividade é corpo.
Com Descartes, a cultura ocidental aprendeu a separar uma substância
extensa de outra pensante, o corpo do espírito, a objetividade da subjetividade,
e a subjetividade foi excluída das investigações científicas. Somente os dados
objetivos, observáveis e registráveis puderam configurar objetos de estudo por
meio de experimentos neutros e exteriores ao objeto. Protocolos de Psicologia
científica buscavam eliminar qualquer traço de subjetividade. Segundo Claire
Petitmengim (2010), esta prática de afastamento da experiência subjetiva na

206
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

pesquisa tem repercussões no domínio clínico. Não se pode tratar de modo


afastado, objetivo, sem qualquer interesse sobre a subjetividade daqueles que
sofrem. Se assim agimos, a pessoa é privada de qualquer ação autônoma em seu
próprio processo de cura e tratamento.
Varela, Tompson e Rosch (2003), entre outros, faz uma importante
contribuição para a ciência que considera a subjetividade e a interação contí-
nua entre corpo e espírito. O funcionamento da mente é inseparável da ação
sensório-motora e emocional do corpo. A mente tem uma relação direta com o
ambiente, não se situa na cabeça. Reconhecer “a inscrição corporal da mente”
(Varela; Tompson; Rosch, 2003) é não se contentar em observar comportamen-
tos exteriores, deixando de lado o estudo da experiência humana. Petitmengin
(2010) argumenta que o estudo científico contemporâneo da experiência humana
permite dizer que a distinção entre corpo e espírito é muito menos rígida do
que parece. “Existem zonas de nossas experiências onde esta oposição se reduz
ou mesmo desaparece. É nestas zonas de reconciliação entre corpo e mente que
parecem acontecer os processos terapêuticos” (p. 3).

FAZER COM, PESQUISAR COM


Na instituição da Oficina de Movimento e expressão no IBC, havia a
aposta de que com uma prática regular baseada no Sistema Rio Aberto poderia
haver ganho de articulação, ampliação de conexões e expansão de territórios
existenciais. E isso no duplo sentido: para cegos, pessoas com baixa visão e
também para nós. Ou melhor, nos múltiplos sentidos: para a pesquisa, para a
própria oficina, para o IBC, para a Psicologia, para o Rio Aberto e, quem sabe,
para outras práticas que lidam com a vida – um corpo no mundo. Podemos
afirmar hoje, com mais segurança, após anos de uma pesquisa ainda e sempre
em curso, que a prática que desenvolvemos na oficina com pessoas cegas, como
outras práticas grupais que buscam reduzir mecanicidades, despertar presenças
e abrir espaço para a expressividade dos afetos, incide no plano de transforma-
ção (criação) da vida e engendra corpo no mundo, corpo e mundo. Ao dizermos
“sempre” em curso, fazemos referência a uma posição em relação ao conheci-
mento e à experiência humana que considera uma condição de inacabamento
do ser humano, de estarmos sempre em obra. O ganho de articulações corporais

207
Laura Pozzana – Virgínia Kastrup

é também ganho de articulação com o mundo, expansão de território existencial


e ganho de confiança. Isso é material e tangível, isso é imaterial e transportável,
isso somos nós, você e o que nos liga.
A construção do trabalho da oficina passou por uma aprendizagem coleti-
va (Pozzana, 2010). Damo-nos conta de que entre nós, entre todos, a proposta e
o som, o planejamento e o acontecimento, a chegada e a roda, a chamada e a pre-
sença, acasos e pedidos em agenciamentos múltiplos criaram uma oficina. Com
os encontros repetidos e renovados, um grupo se fazia entre toques e se revelava
como apropriação daquele espaço, sorrisos e agradecimentos. Algo espiritual,
mas muito concreto e tangível nos inspirava a seguir e a querer fazer mais com
eles. Daí brotou a tese de Doutorado, defendendo que a mobilidade convocada
e exercitada pela prática corporal grupal inspirada no Sistema Rio Aberto, de
modo não utilitário, abre para uma experimentação de si, do espaço e de afetos
que produz corpos mais articulados e sensíveis (Pozzana, 2013).
Nos primeiros anos, tivemos a impressão de que a prática não era tão
potente no sentido de criar questões e problematizar aqueles corpos, que pare-
ciam dizer e articular pouco. Não tinham questões? Será que a condução não era
tão potente? Ninguém se expressava emocional e verbalmente, ninguém tinha
insight. Em nós havia desejo de entender como intervir mais naqueles corpos,
mas tinha-se a convicção de que o fato de eles voltarem e quererem mais era um
bom sinal. Como rastrear estas impressões de modo concreto?
A aposta foi fazer junto e pesquisar com os participantes, com o grupo,
com cada um e levar a sério os acontecimentos da oficina. Ao tratar da insepa-
rável construção de um campo de pesquisa e atuação, destacamos a importância
que os relatos de campo têm nesta investigação. Eles foram preciosos no rastreio
dos efeitos da prática. Foi com eles que pudemos detectar e estabelecer movi-
mentos com a cegueira e não para ela. Nos relatos detectamos diversos momentos
em que um modo de agir e perceber vidente era deficiente para conduzir uma
atividade com pessoas cegas. Foi o caso de quando esquecemos de apresentar o
espaço da sala, quando não consideramos que tirar os sapatos, deixar as bolsas
e as bengalas de lado não seria trivial. Também apareceu nos relatos que não
conseguíamos decorar o nome dos participantes e que surgiu a ideia da chamada-
-chamado. O mesmo se deu quando nos deparamos com a dificuldade de usar

208
A RODA COMO MÉTODO DE APRENDIZADO DO MOVIMENTO COM PESSOAS COM DEFICIÊNCIA VISUAL

música e indicar movimentos corporais, quando propúnhamos algo novo e ficá-


vamos com a impressão de não termos sido claras, quando gaguejávamos para
buscar palavras adequadas ou para não indicar nada que convocasse a visão, etc.
Os relatos traziam à memória uma situação concreta, quando um silên-
cio, um tropeço ou um aparelho de som quebrado, por exemplo, convocavam
uma atitude sensível capaz de aprender com os acontecimentos e criar com o
que se apresentava. Partimos da consideração de que a cegueira e a baixa visão
engendram corpos rígidos na lida com um mundo perigoso. Tais corpos são pro-
duzidos, eles não são naturais, assim como o mundo não é perigoso em si mesmo.
Eles ficam com pouca mobilidade ao não serem articulados (como acontece com
o pescoço, a coluna, os joelhos, os tornozelos, por exemplo) e principalmente
com a tensão da movimentação pelo espaço que se faz ameaçador quando não se
pode contar com o uso da visão que antecipa objetos e encontros, como buracos
no chão, placas, carros e outras pessoas.
Com Francisco Varela (1996), entendemos que o par corpo-rígido e mun-
do-perigoso é fruto de práticas, de hábitos, que podem sofrer transformações.
Com uma atenção aberta e um corpo disponível é possível que os acasos e os
encontros interroguem hábitos automatizados e façam passar à vida. A suspensão
de nossos modos automatizados, do que saber instituído e paralisa a vida se dá
no encontro entre corpos, na prática e no caso desta pesquisa pode ser rastreado
nos relatos de campo, no próprio pesquisar em processo de criação do campo e
da pesquisa. A intervenção da oficina tem efeitos clínicos ao produzir confiança
no mundo. Esta é uma indicação por onde a pesquisa segue hoje.
A prática de pesquisa é assim também um gesto clínico e político – pen-
samentos corporais em jogo – que pode ser feita de múltiplos modos desde que
associada com os problemas locais e singulares que insistem em fazer passar a
vida.

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212
OFICINANDO COM JOVENS:
Análise de Processos de Atenção
na Experiência com Jogos Digitais
Washington Sales do Monte
Karla Rosane do Amaral Demoly
Francisco Milton Mendes Neto

Este texto discute as formas de atenção que podemos observar na expe-


riência de jovens que participam de oficinas de jogos digitais em um Centro
de Atenção Psicossocial de Mossoró/RN (CAPSi). Outro assunto presente
também neste estudo são os processos cognitivos. Para nos ajudar na reflexão
sobre os processos cognitivos nesta relação seres humanos e máquinas foi valioso
considerar os estudos de Humberto Maturana e Francisco Varela (1995), Pierre
Lévy (1993), Gilbert Simondon (1989), entre outros.
A análise de processos de atenção na experiência de jovens do CAPSi com
os jogos digitais nos aproxima do conceito da atenção, torna-se tema de estudo
na metade do século 20 e segue ganhando espaço em investigações nas áreas da
Psicologia, Psiquiatria, Medicina, Neurociência e Educação. O problema central
que envolve pesquisadores da atenção interage com toda uma circunstância que
se produz em meio a uma perspectiva que considera que as pessoas apresentam
falta de atenção, o que poderia trazer como efeito a não aprendizagem.
Na vida cotidiana da educação escolar temos a queixa insistente de que
jovens não aprendem por falta de atenção. Pesquisadores aprofundam os conhe-
cimentos sobre sintomas da atualidade, como o Transtorno de Déficit de Atenção
e Hiperatividade – TDAH – nos emprestando pesquisas inovadoras nas formas
de percepção da aprendizagem dos sujeitos (Freitas, 2011; Kastrup, 2004).
Este estudo dedica-se a pensar sobre como as oficinas de jogos digitais
participam do trabalho de produção de conhecimentos inovadores, capazes de
criação de práticas de cuidado, quando focalizamos as formas de atenção tão
requeridas para os jovens nas escolas e demais espaços de convivência.

213
Wa s h i n g t o n S a l e s d o M o n t e – K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o

E por que os jogos digitais? O mundo dos jogos digitais está bastante
presente em nosso cotidiano, especialmente nos últimos dez anos do século 21.
A propagação das tecnologias da informação e da comunicação, o avanço das
tecnologias móveis e o desenvolvimento de plataformas de mídias cada vez mais
precisas, com suas interfaces interativas, têm proporcionando experiência mar-
cante na vida de um jogador, seja ele criança, jovem ou adulto. Esses jogadores
são encontrados por toda parte, em casa, na escola, nas ruas, nas universidades.
O crescimento das indústrias de jogos digitais tem levantado muitas discussões,
pesquisas e estudos sobre a utilização, a influência e as potencialidades dos jogos,
especialmente quando nos dedicamos a buscar novas formas de conhecimento.
Neste texto analisamos a experiência dos jovens com o jogo e nos dedica-
mos a observar os processos de atenção, que são passageiros e mudam constan-
temente. Estes processos são considerados muito importantes para a realização
de tarefas de nossas atividades no dia a dia. Já ao iniciar nossos estudos sobre
este processo cognitivo, deparamo-nos com sua complexidade, pois não se trata,
neste caso, do que costumamos escutar no senso comum, de o sujeito ter ou
não a atenção. Conceitos apresentados como atenção podem indicar distração,
dispersão, concentração e focalização, pois todas estas são formas de funciona-
mento da atenção.
Na experiência com jogos digitais, as formas de atenção acontecem desde
a escolha dos jogos até as ações realizadas durante a interação com o jogo. Con-
forme Kastrup (2004), o estudo cuidadoso do funcionamento da atenção revela
que esta não é um processo único e simples de ser entendido. “O prestar atenção
é apenas um dos atos de um processo complexo, que inclui modulações da cog-
nição e da própria intencionalidade da consciência” (2004, p. 14).
Estamos partindo do pressuposto inicial de que os jogos digitais atraem
a atenção e despertam a curiosidade dos jovens, produzindo formas múltiplas
de linguajar em interações sociais, a partir do acoplamento com as ferramentas
tecnológicas disponibilizadas. Os jogos como ferramentas tecnológicas apresen-
tam, por meio de seus aplicativos e de suas interfaces, a possibilidade de fazer
com que jovens estabeleçam novas relações com o mundo, nos domínios do real
e do virtual, que compõem o que chamamos na experiência como a nossa (reali-

214
OFICINANDO COM JOVENS

dade), nossa no sentido de que é sempre uma realidade para um observador. Por
isso escrevemos entre parênteses, o que faz ampliar processos de atenção como
uma aprendizagem.
A discussão dos processos de atenção considera as valiosas construções de
Cláudia Freitas (2011), Virginia Kastrup (2004, 2008, 2007), Luciana Caliman
(2008, 2012) e De-Nardin e Sordi (2007, 2008).
A metodologia empregada na pesquisa será apresentada na terceira parte
do trabalho, uma pesquisa qualitativa e de caráter exploratório, pois observamos
diferentes momentos da interação de jovens com os jogos. Os procedimentos
metodológicos priorizam a invenção de uma experiência de oficinas com jovens,
favorecendo a análise de processos cognitivos. E aqui caberá discutir a oficina
como tecnologia presente em uma pesquisa-intervenção e nossa opção por esse
modo de pesquisar, quando buscamos analisar os movimentos da cognição, aqui
mais especificamente, as formas como a atenção funciona quando jovens atendi-
dos em um espaço de saúde mental jogam.
As oficinas oportunizam que todos os envolvidos (oficinandos e oficinei-
ros) construam suas próprias vivências e a interatividade com os jogos. Como
método de pesquisa que orienta o fazer da pesquisa, escolhemos a cartografia,
um método formulado inicialmente por Gilles Deleuze e Félix Guattari por
volta de 1995, tendo como um de seus conceitos básicos os “rizomas”, conceito
emprestado da Botânica para explicar a Filosofia como sistema aberto e sem
conceitos prontos, preexistentes, um método que é praticado e não “aplicado”.
A pesquisa tem como objetivo central analisar as formas de atenção
desencadeadas na experiência de jovens com os jogos digitais, para entender
como estas tecnologias podem potencializar processos de aprendizagem na expe-
riência do jogar. Buscamos, ainda, compreender como os processos de atenção se
modificam, funcionam na experiência dos jovens com jogos digitais. Queremos
entender o acoplamento sujeito/máquina na tecnologia jogo digital, modos de
interação dos jovens que vivem em diferentes circunstâncias de sofrimento psí-
quico – autismo, transtorno mental, depressão, entre outros modos e circuns-
tâncias que os acompanham.

215
Wa s h i n g t o n S a l e s d o M o n t e – K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o

A experiência no Programa Oficinando em Rede (Rede...,2011), a convi-


vência semanal com os jovens no CAPSi de Mossoró e o conjunto de leituras que
realizo favorecem a definição da seguinte questão de pesquisa: – Como os processos
de atenção acontecem na experiência de jovens usuários do CAPSi e como esses processos se
modificam na experiência do jogar?
A pergunta é construída a partir de uma experiência de três anos de
envolvimento com as circunstâncias de jovens do CAPSI de Mossoró/RN, uma
curiosidade que interage com experiências anteriores como professor e jogador.

METODOLOGIA PROPOSTA
O estudo desenvolve-se metodologicamente com base nos conceitos da
pesquisa-intervenção e da cartografia praticada no processo/intervenção, ou seja,
nos processos que envolvem o pesquisador e os sujeitos da pesquisa (Maraschin,
2004).
Na cartografia como proposta metodológica, o que está em destaque não
são conhecimentos preexistentes, mas sim o que será construído no percurso,
na experiência do processo/intervenção. O método cartográfico é um verdadeiro
desafio pelo fato de intervir produzindo conhecimento.
A entrada do aprendiz de cartógrafo no campo da pesquisa coloca
imediatamente a questão de onde pousar sua atenção. Em geral ele se
pergunta como selecionar o elemento ao qual prestar atenção, dentre
aqueles múltiplos e variados que lhe atingem os sentidos e o pensamento
(Kastrup, 2009, p. 35).

Acompanhamos os processos de jovens por meio de registros de diário


de campo, ferramenta imprescindível e elemento importante para a elaboração
deste texto. Essas anotações colaboram na produção de dados e têm a função de
transformar observações e frases captadas na experiência de campo em conhe-
cimento e modos de fazer.
As oficinas foram pensadas como proposta de intervenção, com o objetivo
de favorecer processos de autoria. Sobre uma perspectiva de tecnologia e intera-
tividade social na forma de oficinas, como esclarece Zaniol (2005).

216
OFICINANDO COM JOVENS

Definimos um número de 2 (dois) jovens, pelo fato de permitir a obser-


vação de ações individuais e ações coletivas. Uma oficina coloca esta necessidade
de uma produção com pequenos grupos. A escolha foi afetiva e procuramos
convidar aqueles que, por alguma circunstância diferenciada, mobilizavam nossa
atenção, nos quais pousamos nosso olhar. Circunstâncias diferenciadas foram
buscadas nesta escolha, porque queremos trabalhar com os processos de sujei-
tos, então o autismo, a depressão, o transtorno mental, estão contemplados nas
escolhas, sem que necessitemos nos dedicar à apresentação de diagnósticos.
Uma vez na semana levamos nossos cadernos, máquinas fotográficas e
filmadora para acompanhar as ações desses jovens na experiência do jogar. As
oficinas têm duração de uma hora e, na pesquisa, aconteceram desde o momento
da escolha dos sujeitos da pesquisa, até a interrupção do fazer para uma dedica-
ção mais intensa na escrita, em novembro de 2013. Consideramos aqui excertos
de diários de campo referidos aos jovens, ainda no programa de extensão, porque
ajudam a compreender os processos vividos no modo como entraram no ambien-
te, na forma como se encontram com as tecnologias e com os jogos.
As interações dos jovens com os jogos vão compondo um portfólio indi-
vidual, contendo as escritas de diários de campo referidas a cada jovem e um
portfólio do grupo, contando com a escrita dos processos que emergem de ações
do coletivo.

JOGOS DIGITAIS
O jogo digital que conhecemos hoje para fins de diversão está entre nós
desde os anos 70, mais especificamente no ano de 1977 nos Estados Unidos,
quando foi lançado no mercado o Atari 2600. Já no Brasil, o jogo digital chega
em 1983, provocando uma febre de vendas.
Os jogos digitais ou games, como são popularmente conhecidos, podem
ser encontrados atualmente em grupos de jogos, conhecidos graças à grande
vivência das pessoas com os computadores (Moita, 2006).
Assim, jogos passam por grandes mudanças com o desenvolvimento da
tecnologia e, com a popularização da Internet, integram a experiência cotidiana
dos jovens. Há pouco mais de uma década o que tivemos foi um grande processo
de desenvolvimento, o qual se tornou tão importante que chegou a ser com-

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parado com a indústria da sétima arte, o cinema. Empresas de entretenimento


investem na execução de projetos de simulação virtual de grande complexidade,
fazendo com que jogadores possam interagir em ambientes que podem ser mais
simples, como os ambientes de jogos casuais, ou mais complexos, como são os
ambientes de jogos com narrativas, produções mais sofisticadas. Quanto aos
jogos, Gee (2009, p. 168) considera “bons videogames” aqueles que incorporam
princípios de aprendizagem para os jogadores.
A definição ou classificação do jogo digital encontra-se em plena cons-
trução e nosso interesse particular está no entendimento do fazer dos jovens
interagindo com jogos casuais (casual games), geralmente de baixa complexidade
e que podem ser acessados nas plataformas móveis.
O jogo tem o poder de envolver seus participantes/jogadores em um
ambiente que favorece novas experiências (Silva et al., 2009). Um aspecto inte-
ressante que observamos inicialmente no desenvolvimento das oficinas é o caráter
voluntário do jogo, uma experiência que acontece em um tempo, considera
regras e vem acompanhada de tensões e emoções:
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos
e determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente
consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si
mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de alegria e de uma
consciência de ser diferente da “vida quotidiana”. [...] Pareceu-nos que
a categoria de jogo fosse suscetível de ser considerado um dos elementos
espirituais básicos da vida (Huizinga, 2012, p. 32-33).

Para Huizinga (2012), a definição de jogo encontra-se enraizada na


cultura e pode sofrer alterações quanto a sua forma linguística e a sua aplicação.
Em nossa experiência com jovens no CAPSi os elementos presentes na experiência
do jogar vão muito além da simples ideia de diversão ou de movimento, pois nas
ações do jogar temos processos diversos ocorrendo nos sujeitos que se transfor-
mam e aprendem. Em nosso estudo, recortamos as formas de atenção como uma
aprendizagem para analisar na experiência de um grupo de jovens.
Com a utilização de tecnologias digitais, profissionais e pesquisadores
passam a contar com um leque de opções para favorecer processos cognitivos
que envolvam tecnologias mais avançadas, mas é preciso que os espaços de con-

218
OFICINANDO COM JOVENS

vivência e atendimento ofereçam situações que permitam o conhecimento e a


invenção dos jovens por intermédio de jogos. É o que estamos experimentando
no CAPSi de Mossoró.

Jogos digitais casuais


“Geração NET” é uma expressão atualmente empregada para se referir
aos jogadores que antes eram conhecidos como nativos digitais. Uma geração que
tem a presença das tecnologias digitais no cotidiano, em especial o computador,
máquina que permite “agregar informação, divertimento, comunicação e educa-
ção a partir dos mesmos comandos” (Cruz, 2006, p. 178). Os jovens de hoje já
cresceram imersos em ambientes virtuais e participam ativamente de diferentes
formas de interação nas redes. Celulares, redes sociais e videogames configuram
modos de convivência e de aprendizagem.
A seleção dos jogos precisa ser criteriosa, quando não queremos fomentar
modos de competição, mas sim favorecer processos de aprendizagem. Neste
caso, os oficineiros do programa procuram jogar antes e analisam o próprio fun-
cionamento dos jogos, selecionando aqueles que se valem de mecanismos que
convidam os jogadores a jogar e, em suas fases, o que temos é a possibilidade de
seguir adiante, para fases mais complexas.
Tomamos como base um estudo desenvolvido pela International Game
Developers Association (Igda) intitulado Casual Games White Paper, realizado nos
anos de 2008 e 2009. Esse estudo apresenta uma discussão sobre o crescimento
e a diversificação na indústria de jogos, focalizando os jogos casuais. “O Livro
Branco começa por estabelecer um quadro para a compreensão de que os jogos
casuais são diferentes do que a maior parte da imprensa considera “a indústria
do jogo”” (International..., 2008, p. 7).
É importante compreendermos esses conceitos desenvolvidos no Igda
(International..., 2008) e por autores como Gee (2009) e Recuero (2012), entre
outros, para que possamos entender e caracterizar os tipos de jogos escolhidos no
desenvolvimento do trabalho. A pesquisa- intervenção sobre o tema atenção como
aprendizagem requer a organização de um ambiente e a proposição de situações
que favoreçam o operar na linguagem e a escrita do que acontece – observação
e análise –, uma escrita que acaba envolvendo profissionais do CAPSi, bolsistas
oficineiros e pesquisadores.

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Caracterização dos jogos casuais


Existem vários tipos de jogos digitais, desde aqueles feitos para quem
inicia na atividade de jogar, até os mais indicados para jovens que vivem imersos
nesse universo. Algumas características são importantes na hora de selecionar
os jogos que utilizamos nos espaços de saúde mental, o que em nosso trabalho
interage com os objetivos definidos no desenvolvimento do Programa Oficinando
em Rede.
Quando estamos envolvidos/imersos no mundo virtual, nosso corpo
mostra as emoções e os gestos desencadeados na interação com os jogos. Ao
acompanhar as jogadas dos jovens podemos observar que quando um perso-
nagem do jogo pula, pode o jovem mover-se na cadeira, ou ainda fazer uma
inclinação para a frente ou para trás, para a direita ou para a esquerda. O corpo
acompanha os movimentos dos personagens dos jogos; as falas, quando acon-
tecem, trazem comentários diante dos resultados das ações no jogo, desde a
comemoração quando uma fase é vencida, até um lamento sobre um equívoco
cometido no ato de jogar.
Optamos por jogos em que o jogador, diante de um erro que se faz pre-
sente na experiência virtual, pode recomeçar do mesmo ponto e seguir, pouco
a pouco, descobrindo e se apropriando do jogo em suas inúmeras fases. Este
tipo de jogo apresenta um dispositivo de jogabilidade fácil, pois são aqueles que
podemos iniciar ou interromper a qualquer momento, retomando mais adiante
do mesmo ponto, sem precisar reiniciar na primeira fase.
Os jogos podem acontecer posicionando o jogador na 1ª ou 3ª pessoa.
Jogos na 1ª pessoa são aqueles em que o jogador incorpora o próprio persona-
gem, ou seja, na interface o que fica visível são apenas algumas partes do corpo,
como os pés e/ou as mãos. Já os jogos na 3ª pessoa são aqueles em que o jogador
opera com um personagem por inteiro. O sentimento de que é o próprio jovem
a experimentar o que acontece com o personagem no espaço virtual pode acon-
tecer nas duas situações, o que mais uma vez reforça o necessário cuidado na
escolha dos jogos. Estamos ali organizando uma situação em que o jovem fará a
imersão no mundo virtual que hoje integra as dimensões de sua vida.

220
OFICINANDO COM JOVENS

Os jogos casuais têm ainda como característica importante o respeitar,


ou seja, não priorizam a ação de punição quando o jogador erra durante o jogo.
Operam quase sempre com mecanismos em que novas chances são dadas ao
jogador. Alguns destes jogos acabam por trazer o que consideramos um equívo-
co, ou seja, o dispositivo de punição diante de um erro, quando os jovens preci-
sam reiniciar o jogo todo, o que não favorece a aprendizagem como um processo.

Classificação e escolha dos jogos digitais


Procurei organizar um quadro composto com jogos digitais que trouxe-
mos para o trabalho com os jovens, favorecendo o acompanhamento de formas
de atenção na interação com jogos casuais. A seguir temos o quadro com uma
breve explicação sobre cada tipo de jogo. Segue-se a descrição de alguns que
foram utilizados (Silva et al., 2009):
• Jogos de Ação: Os jogos de ação ou árcade enfatizam a reação instantânea e
precisam de intensa concentração do jogador. Exemplos: Mario World, Chi-
ckenInvaders.
• Jogos de Simulação: Estes jogos procuram reproduzir com fidelidade um fenô-
meno ou acontecimento real. Também buscam aproximações com aspectos
da realidade física quando apresentam um meio. Exemplos: Rally de carros,
Resgate de Helicóptero.
• Jogos de Simulação de Esportes: Esse tipo de jogo procura desenvolver normalmen-
te esforço físico do jogador no mundo virtual, em que os personagens tendem
a repetir o jogador. Exemplos: Deca Sports Freedom – Xbox 360, Brunswick
Pro Bowling for the Xbox 360.
• Jogos de Aventura: Os jogos de aventura procuram fazer o jogador pensar para
seguir no jogo. Muitas vezes contam com a solução de um problema ao longo
da ação. Exemplos: Dora Aventureira, Diego.
• Jogos de Interpretação de Personagens: Neste gênero, o jogador deve interpretar um
personagem que pode ser da vida real. Uma possibilidade deste jogo é ajudar
o jogador a resolver questões do personagem, a interagir, brincar e fazer falar
os personagens. Exemplos: O gatinho do Ipad, Yoko.

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• Jogos de Quebra-Cabeça: De uma forma geral, este gênero refere-se a jogos em


que o ponto principal está na solução de um problema. Este gênero também
é conhecido como jogos cerebrais. Exemplos: Jogo da Memória – Turma da
Mônica, Paisagens.
• Jogos Educativos: Os jogos educativos são aqueles que ensinam enquanto
divertem. Geralmente estes jogos visam a um público infantil e o projeto é
concebido buscando a adequação com a faixa etária. Os jogos na educação
constituem-se uma estratégia diferenciada para aprimoramento do processo
ensino-aprendizagem. Exemplo: Tux-Nath.
• Jogos de Estratégias: Os jogos de estratégia requerem que o jogador gerencie um
conjunto limitado de recursos para atingir um objetivo predefinido. Geralmen-
te, gerenciar estes recursos envolve decidir que unidade criar e onde colocá-la
em ação. Outros jogos de estratégia são baseados em turnos, o jogador utiliza
o tempo para tomar as decisões e o computador age quando o jogador indicar
que está pronto. Exemplos: Mario World, ChickenInvaders
Há aqui todo um cuidado na escolha dos jogos, processo este que rea-
lizamos em estreito diálogo com os profissionais do CAPSi que participam das
oficinas. Propomos um enriquecimento da experiência levando até a instituição
o que podemos, na condição de academia, oferecer neste momento.

O CONCEITO E OS TIPOS DE ATENÇÃO


“Ele não se concentra, porque não tem atenção”; “Não aprende, porque
não foca no que está fazendo”. É esse tipo de discussão que se apresenta quando
colocamos em jogo o conceito da atenção em vários contextos do nosso dia a
dia, o que não é diferente no CAPSi, quando conversamos sobre a experiência
escolar dos jovens.
A atenção é um assunto dos mais discutidos nesses últimos tempos, em
especial no campo da educação e da saúde mental. Lévy (2004), as pesquisadoras
Cláudia Freitas (2011), Virgínia Kastrup (2004), De-Nardin e Sordi (2008) são
autores que nos ajudam a entender o conceito da atenção.

222
OFICINANDO COM JOVENS

O que eles apresentam indica um caminho possível e interessante para


responder questões que se articulam com as perguntas da pesquisa: Será que
existe uma forma de conceituar a atenção? Um jogador em sua ação de jogar
desenvolve certo tipo de atenção? Qual a forma de atenção que está presente no
gesto, no movimento do jogar?
Para tentar uma entrada nesse campo de estudo, recorremos a Freitas
(2011, p. 42), que apresenta a atenção como um “processo cognitivo”. É justa-
mente como processo que a autora discute o tema (Freitas, 2011).
A atenção vagueia de um canto a outro procurando onde pousar,
mudamos o nosso foco de forma rápida. De-Nardin e Sordi (2008, p. 2) obser-
vam que: “Na busca por novidades que não param de chegar, a atenção muda
constantemente de foco, ficando sujeita ao esgotamento em frações de segun-
dos”.
Freitas (2011) alerta para o fato de que o conceito da atenção nem
sempre teve essa finalidade, tal como conhecemos hoje. Por volta do século 19,
os estudos da atenção na educação estavam voltados para “treino”, com a fina-
lidade de modificar estímulos (impulsos) externos.
Para dar conta do conceito da atenção articulado à perspectiva do conhe-
cer como invenção, Freitas questiona (2011, p. 52): “No interjogo da idéia de
invenção com o que busco transformar em problema, pergunto: Onde estaria a
mente de alguém desatento ou “sem atenção”? Pode alguém estar com a mente
vazia de ideias, vazia de preocupações, sem atenção em nada?” Buscamos apoio
em Kastrup (2004) para pensar juntos sobre o que pergunta Freitas (2011):
[...] Do ponto de vista da invenção, a cognição não se limita a um fun-
cionamento regido por leis e princípios invariantes que ocorreriam entre
um sujeito e um objeto pré-existentes, entre o eu e o mundo. Ela é uma
prática de invenção de regimes cognitivos diversos, co-engendrando, ao
mesmo tempo, o si e o mundo, que passam à condição de produtos do
processo de invenção [...] (Kastrup, 2004, p. 8).

Tomando o conceito da atenção em sua experiência como professora de


criança em escola especial, Freitas chama a atenção para o modo como o objeto
do conhecimento é apresentado. Explica que é preciso ver o sujeito de forma
ativa dentro do processo da aprendizagem. “Não aprendemos por repetição, mas

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por invenção do objeto de conhecimento. O que nos é colocado como objeto de


conhecimento vai tomando forma dependendo de vários fatores; um deles seria
como é apresentado” (2011, p. 55).
Sade e Kastrup (2011) reforçam o entendimento das diferentes formas
como pode funcionar a atenção, que é justamente o que procuramos observar
nas oficinas, na ação dos jovens.
Assim como nos esclarece Freitas (2011), não compreendemos a atenção
como normalmente é reconhecida, como um processo dicotômico de atenção/
desatenção; entendemos como um processo que se constrói de forma não linear,
a forma humana e complexa de organização do próprio viver.
[...] A atenção é movimento e não pode ser reconhecida como algo em
que o sujeito tenha de repetir o que lhe é apresentado. Repetir não
encontra eco na “capacidade atencional”, mas na maneira de ver a
atenção como uma capacidade que pode ser adestrada, docilizada. A
atenção, se entendida como distração, não encontra arreios, não pode ser
adestrada, a não ser quando deixa de ser (Freitas, 2011, p. 59).

A palavra processo pode ter mais de um sentido e o que entendemos aqui


é que Freitas traz a perspectiva não de processo de entrada e saída, como nas
teorias de processamento de informação, mas como processualidade. “Atenção
precisa ser reconhecida como descentração, como dispersão criativa, com a pos-
sibilidade de reconhecemo-nos como autores, de inventarmos conhecimento”
(Freitas, 2011, p. 62). Dispersão criativa pode ser um modo de funcionamento
da atenção que não impede ou prejudica uma aprendizagem.
É expressiva a importância de uma reflexão sobre a atenção hoje, pois
está presente em todos os ambientes. Os conceitos da atenção não fazem parte
apenas das salas de aulas ou dos consultórios de Psiquiatria ou de Psicologia,
faz-se necessário o entendimento em uma sociedade na qual convivemos com
um sentimento da falta de tempo, de não podermos pousar a atenção e ali per-
manecer. Assim como nos apresenta Pierre Lévy (2004, p. 179): “Os fluxos de
atenção são agora infinitamente mais numerosos, móveis e livres que a época
em que o horizonte era limitado pelo que se via do campanário local, quando os
mercados eram fechados, as educações eram locais e as mídias, unidirecionais”.
Nossa proposta é olhar além desse campanário local para o conceito da atenção.

224
OFICINANDO COM JOVENS

Processos cognitivos e modos de funcionamento da atenção

Percepção
É importante retomar a discussão sobre os modos de funcionamento da
atenção construindo um posicionamento sobre o que entendemos por percepção.
De acordo com Sternberg (2010, p. 65), a percepção “é o conjunto de processos
pelos quais é possível reconhecer, organizar e entender as sensações provenientes
dos estímulos ambientais”. Para os estudos de campo da Psicologia Cognitiva, a
percepção se constitui uma das modalidades mais estudadas por esses cientistas.
A forma como vemos e percebermos depende de como conseguimos organizar as
nossas sensações para formar um percepto, ou seja, “[...]uma representação mental
de um estímulo percebido” (2010, p. 65).
A percepção faz parte dos estudos da atenção e as definições podem
variar, conforme a corrente de pensamento que as acompanham. Para De-Nardin
e Sordi (2007, p. 82), o contexto das transformações que estão presentes na
mecanização da produção do capitalismo ocidental gerou “[...] uma dramática
impossibilidade para qualquer estruturação estável e duradoura da percepção –
e determinando, paradoxalmente, um forte regime disciplinar para a atenção”.
Ou seja, durante esse período, o problema da atenção passou a ser fundamental
nos estudos das psicologias científicas.
Para as autoras De-Nardin e Sordi (2007), com o desenvolvimento do
conceito da visão subjetiva, apresentado por elas por meio dos conceitos do novo
observador de Crary (fundador do conceito da atenção instrumental), o entendi-
mento passou a receber outras formas de pensamento, e não mais aqueles fixados
nos séculos 17 e 18, quando tínhamos a maior influência do pensamento newto-
niano. Ainda reforçam as autoras: “O processo de percepção inexoravelmente
atrelou a percepção a um corpo em movimento: passou a ser efeito e produto de
um corpo vivo, humano, com seu modo de funcionamento específico e passível
de ser afetado” (De-Nardin; Sordi 2007, p. 82).
A forma como percebemos os espaços virtuais, as cybercidades, os perso-
nagens, as associações com o mundo real, a forma de se relacionar, os gestos e
as formas de linguagem estão todos vinculados com a percepção que os sujeitos/
jogadores expressam no ato do jogar. Ao analisar os modos de jogar podemos

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nos deparar ou não com ações dos jogadores que interagem com os modos de
funcionamento da atenção que são sempre valorizados como pertinentes a uma
situação de aprendizagem, questão que discutiremos mais adiante. Aqui tra-
remos nossos estudos sobre estas duas formas de funcionamento da atenção: a
focalização e a concentração.

Focalização
Assim como a percepção, a focalização é mais um processo cognitivo
que está ligado aos estudos da atenção. Para Kastrup (2008, p. 195), “o que
caracteriza a focalização é a seleção do estímulo e a intenção de chegar ao reco-
nhecimento”.
Muitos acabam confundindo focalização com concentração, mas se trata
de dois processos cognitivos diferentes. A focalização não é um final do processo
de atenção ou até mesmo um modo de saber que o sujeito está concentrado. O
que se torna interessante para compreender o processo de focalização na ativi-
dade de jogar um jogo digital é estabelecer uma relação com o processo de um
oleiro que trabalha com o barro.

[...] No caso da cerâmica, o foco se encontra na manipulação da massa,


nas formas emergentes e na idéia que se encontra na cabeça. Mas, mesmo
aí, o gesto de focalização não esgota o funcionamento da atenção. Esta
flutua na massa, acompanhando seu movimento, rastreando e seguindo
as sensações e as formas que ela oferece (Kastrup, 2008, p. 195).

No encontro com o jogo o foco do jogador, ao adentrar um ambiente


em dado momento, não tem uma focalização, ou seja, ela flutua no ambiente
interativo, acompanhando os movimentos dos personagens, as interferências de
objetos no cenário, as interrupções com as emoções expressas pelos colegas ao
lado. Ele (jogador/avatar) salta, corre, se abaixa, encaixa, volta, arremessa, entra,
sai, descobre, inúmeras ações podemos observar, mostrando os movimentos da
atenção. Assim, “[...] no vaivém entre a percepção e a ação, a atenção vagueia, e
grande parte do processo de criação (jogar) parece ocorrer fora de foco” (Kastrup,
2008, p. 195-196 – grifo nosso).

226
OFICINANDO COM JOVENS

Os processos da atenção como focalização, dispersão e distração durante


o jogo favorecem uma experiência, aprendizagens e modos de interação ocorrem
em situações as mais diversas, que procuramos explorar na análise dos acon-
tecimentos das oficinas de jogos digitais. É importante ainda discutir sobre o
processo mais esperado por educadores e que se considera no senso comum como
pré-requisito para as aprendizagens, a concentração. Vamos trazer aqui alguns
estudos em que este processo é analisado.

Concentração
A concentração está relacionada sempre aos processos envolvidos em
estudos e aprendizagens. Alguns especialistas sustentam que alguém até pode
aumentar o nível de concentração e que existe perda de concentração durante um
processo de aprendizagem, decorrente de fatores internos (biológico e psíquico)
e externos (estímulos físicos).
Encontramos nas propostas da aprendizagem um entendimento sobre
concentração. Conforme De-Nardin e Sordi (2008, p. 4), “[...] esta supõe a pos-
sibilidade de ir além da capacidade de executar tarefas, supõe uma possibilidade
inventiva e, portanto, uma cognição enquanto capacidade problematizadora”.
Ou seja, a concentração necessita (recorre) à distração, experimentando, assim,
descontinuidade no processo atencional, existindo, dessa forma, um retorno ao
objeto, não da mesma forma que se encontrava antes, mas já na forma de um
retorno transformado.
Muitos diagnósticos ligados ao TDAH estão voltados a problemas de
desatenção, falta de concentração, impulsividade e estão ligados aos estudos psi-
cofarmacológicos, quase sempre direcionados ao emprego da ritalina (Caliman,
2008).
A nossa proposta neste trabalho não é discutir ou apresentar esses aspec-
tos farmacológicos do processo da atenção, mas sua definição e relação com os
jogos digitais.
Caliman (2012), em sua pesquisa sobre “Os regimes da atenção na sub-
jetividade contemporânea”, apresenta os regimes de atenção e se interessa pelo
aspecto empresarial e a cultura da aparência, esclarecendo que:

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Quando ouvimos falar da atenção nos termos acima descritos, o que


está em questão não é apenas a habilidade de manter a mente focada
por longo tempo em uma questão, aspecto ou ideia, mas a capacidade
de intuir ou descobrir em qual aspecto se deve estar concentrado e o
que fazer com ele. A atenção é identificada à capacidade de focalização
e concentração da mente, mas também ao discernimento necessário ao
ato de deixar o resto de lado [...] (2012, p. 7, grifo do autor).

Fazendo um paralelo da atenção do mundo empresarial para o cybermundo,


ou melhor, dos jogos digitais, existe sempre essa relação de concentração sem
focalização na experiência do jogar.
Kastrup (2004, p. 8) explica que restringir a atenção simplesmente ao
“ato de prestar atenção” é a mesma coisa que sobrepor o ato de focalização ao
de concentração, um na verdade não se sobrepõe ao outro. Ela esclarece que
pode existir concentração aberta, ou seja, uma concentração sem foco, assim como
apresenta Caliman (2012), bastante associada à realização de tarefas.
O que podemos notar é a importância que o estudo da atenção tem para
o entendimento da experiência dos sujeitos e sua relação com os jogos digitais, ou
seja, retomando o que apresentam Sade e Kastrup (2011), o ato ou experiência
do jogar está carregado de “microprocessos”, ou “microatividades”.
Vamos nos encaminhando para a busca de modos de acompanhar pro-
cessos de atenção na experiência do jogar de jovens no CAPSi. Seguiremos aqui
com a apresentação dos caminhos que fomos criando para o desenvolvimento
da análise da experiência nas oficinas de jogos digitais.

Dispersão e Distração
Outros pontos importantes para compreensão dos conceitos da atenção
são apresentados na análise sobre outros modos de funcionar da atenção: dispersão
e distração.
Tanto a dispersão quanto a distração são consideradas em muitos casos
indesejáveis diante da possibilidade de fazer frente ao funcionamento da atenção,
pois são responsáveis pelo “abandono” da tarefa que está sendo realizada, ou
como barreiras que impendem o funcionamento da atenção (De-Nardin; Sordi,

228
OFICINANDO COM JOVENS

2008). Já Freitas (2011) indica a presença de uma “dispersão criativa” em pro-


cessos de aprendizagem, que sabemos experimentou em sua caminhada como
professora em escola especial.
É interessante apresentarmos conceitos, definições, pois no processo do
funcionamento da atenção, temos interpretações diferentes. Na definição de
De-Nardin e Sordi (2008, p. 3), a dispersão se dá por meio da experiência, em
que a atenção vagueia de um ponto a outro. Já Kastrup (2004, p. 8) entende
que “a dispersão consiste num repetido deslocamento do foco atencional, que
impossibilita a concentração, a duração e a consistência da experiência.” Esses
processos de foco, concentração, duração e experiências são importantes para se
entender a atenção, mas aqui ficamos a refletir sobre como a distração funciona
em nossa experiência.
Tomando como base essa experiência, sobre a qual traremos outros ele-
mentos mais adiante, indica que na distração a mente do sujeito permanece no
foco por um momento, seguindo um fluxo de experiência, para depois retornar
de forma atualizada, formando assim vários circuitos, conectando um ao outro.
A experiência nesse momento é valorizada, pois é um momento de “experiência
intensa, pura, concentrada, que pode, por um lado, resultar do pensamento –
um certo ganho reflexivo – e por outro em pura afetação” (De-Nardin; Sordi,
2008, p. 3).
Completa Kastrup (2004, p. 8):
[...] Já a distração é um funcionamento onde a atenção vagueia, experi-
menta uma errância, fugindo do foco da tarefa para a qual é solicitado
prestar atenção e indo na direção de um campo mais amplo, habitado
por pensamentos fora de lugar, percepções sem finalidade, reminiscências
vagas, objetos desfocados e idéias fluidas, que advêm do mundo interior
ou exterior, mas que têm em comum o fato de serem refratárias ao apelo
da tarefa em questão.

Podemos pensar, considerando o que nos ensinam estas autoras, que na


experiência da dispersão não existe focalização, concentração, impossibilitando
assim o funcionamento da atenção, mas aqui relacionado às tarefas para os quais
um jovem pode ser solicitado nos ambientes dos quais participa. Estas tarefas
podem não se conectar com os interesses do jovem. Já na experiência da distra-
ção, parece mais presente a necessidade deste processo nas aprendizagens diárias.

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O distraído pode se apresentar com um alto grau de concentração, e não


com desatenção, apenas a atenção vagueia para outro lugar, talvez uma conexão
com um recorte de experiência, com uma ideia nova, algo sobre o qual o pensa-
mento vagueia e depois retorna, atualizando o processo em um pensar sobre o
vivido até aquele instante. Conversando sobre estes processos em encontros do
Programa Oficinando em rede, pudemos refletir sobre a necessidade deste modo
de funcionar, quando, por exemplo, estamos dirigindo nas estradas e, de repente,
surge um animal. Se estivermos muito focados na pista, não fazemos funcionar
a capacidade de distração, de percepção de elementos que surgem de repente e
que, nestes casos, é muito necessário, sob pena de batermos com o carro. Estas
reflexões do nosso cotidiano são muito importantes, pois nos ajudam a compre-
ender as teorias, os conceitos dos autores que querem auxiliar a compreender o
funcionamento da atenção.
Discorrendo um pouco mais sobre o conceito da atenção, Virgínia
Kastrup (2004, p. 10), em seu trabalho A aprendizagem da Atenção na Cognição
Inventiva, esclarece que existem vários tipos de atenção:
• Atenção Voluntária: O funcionamento da atenção voluntária opera por puxões,
por sacudidas que buscam recolocar repetidamente em foco uma atenção cuja
tendência é escapar a todo o momento, ou seja, a seleção operada pela vontade
e pelo eu encontra resistência para sua efetivação, demandando um esforço
reiterado para se manter no foco.
• Atenção à Duração e Suplementar: Conceito apresentado por H. Bergson
(1934/1962), que traz como importante contribuição apontar a existência
de uma atenção à duração, que é como uma atenção suplementar, que não se
confunde com aquela voltada para a vida prática e para imperativos da ação. Já
a atenção suplementar caracteriza um mergulho na duração, sendo evidenciada
sobre tudo na arte e na Filosofia.
• Atenção à Vida: Atenção à vida prática está envolvida nas atividades ordinárias
da vida cotidiana, sendo, portanto utilitária.
• Atenção Flutuante: Freud (1912/1969) estabelece o conceito de atenção flutuante,
destacando-a como aquela a ser exercida pelo analista no setting clínico, posto
que é necessária a escuta sintonizada com as associações inconscientes trazidas
pelo paciente.

230
OFICINANDO COM JOVENS

• Atenção a Si (deixar vir): A atenção que busca é transmutada numa atenção


que encontra, que acolhe elementos opacos e afetivos que nos habitavam num
plano pré-egoico ou pré-reflexivo. Esta segunda qualidade da atenção carac-
teriza uma concentração aberta, destituída de intencionalidade e de foco.
O entendimento dos tipos de atenção torna-se importante para este tra-
balho, pelo fato de possibilitar o conhecimento de qual tipo de atenção está
presente no ato de jogar dos jovens quando são convidados a interagir com as
tecnologias de jogos digitais.

ANÁLISE DA EXPERIÊNCIA
Analisar os tipos de atenção no encontro de jovens com as tecnologias
jogos digitais não se traduz como uma tarefa muito fácil, justamente pela quan-
tidade de inscrições em cada oficina realizada no CAPSi e pela potencialização
nos processos que as ações dos jogadores mostram no decorrer da pesquisa.
Apesar de essa pesquisa ter sido aprovada pela Comissão Nacional de
Ética em Pesquisa – Conep (código: 15935613.0.0000.5294), optamos por pre-
servar os jovens de qualquer modo de identificação, utilizando nomes fictícios.

Jovens jogadores e o encontro com a tecnologia jogo digital

Análise dos mapas de David


Apresentar os mapas de David é justamente perceber a importância que
os jogos digitais têm na vida das novas gerações, dos que nascem familiarizados
com as tecnologias digitais. Esse garoto é o que mais tem vivido essa experiência
de participar das oficinas de jogos, pois já tem uma afinidade com as tecnologias.
David é o mais novo membro do grupo, tem apenas 11 anos. Segundo
a queixa escolar que está descrita em seu cadastro no CAPSi, ele tem
dificuldade de concentração, mexe em tudo, difícil socialização, pensa-
mento desconexo, não responde perguntas fáceis, não sabe nome dos
pais ou de familiares, não tem noção de tempo, não gosta de ser con-
trariado. Pequenino, mas com uma ficha já bem grande. Nas primeiras
oficinas, ele sempre demonstrou estar bem à vontade e familiarizado
com os computadores (Excerto nº 1 – Observando as ações do jovem
David – 13 jul. 2012).

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Wa s h i n g t o n S a l e s d o M o n t e – K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o

É possível afirmar que o jovem descrito no mapa nº 1 nos prontuários do


CAPSi não é o mesmo que participa das oficinas de jogos. O ponto que o liga a
essa descrição é o de não gostar de ser contrariado, registrado em sua ficha, mas
estamos diante de um jogador nato.
Enquanto os computadores estavam sendo organizados para serem insta-
lados no CAPSi, importante aqui relembrar, procuramos uma aproximação com
os jovens mediante outras formas que envolvessem as tecnologias da informação
e comunicação. Sendo assim, organizamos várias oficinas com nossas próprias
máquinas (minha, da professora coordenadora e dos bolsistas) e fomos desenvol-
vendo conforme as oficinas, conforme o que acontecia e era sinalizado como do
interesse dos jovens. Em uma ocasião, levamos algumas imagens no computador
para fazermos uma oficina com imagens digitais. Foi muito interessante a inte-
ração de todos e, principalmente, de David, conforme mapa nº 2.
Os jovens chegaram e perceberam que a sala estava organizada de outra
forma. Começaram a perguntar o que iria ser feito e falamos para eles
que iríamos realizar o jogo das imagens para ver quem era bom em adi-
vinhar. Criamos uma espécie de jogo coletivo (Computador e Datashow).
Os jovens ficaram muito envolvidos, cada um queria acertar mais. O
mais empolgado que nos chamou a atenção foi o David. Ele era o menor
de todos, mas com boas condições e conhecimento, acertou várias res-
postas, ficava em pé, vibrava, ajudava os colegas ((Excerto nº 2 – Obser-
vando as ações da jovem David – 10 ago. 2012).

David opera atenção flutuante. Esse tipo de atenção também pode ser
descrito como uma atenção concentrada e aberta sem intenção e sem foco. Uma
atenção que mobiliza a experiência.
À medida que suas experiências vão aumentando, David procura logo
superá-las, assim como faz um jogador. A prova mais fiel dessa coordenação de
ação está descrita no mapa nº 3, em que David jogou até conseguir vencer a
própria máquina.
David parece ser um jogador nato. Durante a oficina de hoje foi apresen-
tado para um jogo de bicicross. Um jogo bastante complexo por necessitar
de várias habilidades cognitivas e motoras, e o jogador disputa com o
próprio computador. Esse jogo pode ser jogado tanto na primeira pessoa
quanto na segunda. Parece que o Inácio também gosta bastante dele.
Por vários minutos David é desafiado pelo computador e percebe que

232
OFICINANDO COM JOVENS

ele começa a travar uma batalha de horas. Ele quer vencer e depois de
várias tentativas ele conseguiu chegar primeiro do que o computador.
Vibrou muito e chamou todos para ver a sua vitória, e de fato nenhum
outro jogador das oficinas havia vencido o computador anteriormente
(Excerto nº 3 – Observando as ações da jovem David – 28 set. 2012).

A presença da Internet abriu a possibilidade de nos conectarmos a outros


espaços e alguns desejos se manifestaram. Refiro-me aqui ao desejo que alguns
passaram a expressar para jogar determinado jogo, jogos esses que parecem fazer
parte do que já conhecem fora das oficinas, que trazem personagens conhecidos,
assim como apresentado no mapa nº 4.
Hoje na oficina apresentamos para os jogadores que existe a possibilidade
deles pesquisaram outros jogos na Internet, muitos gostaram da ideia.
David pediu para que eu pusesse e passou a pesquisar um jogo do Ben
10. Procuramos em vários sites de jogos. Temos dificuldades com a velo-
cidade da Internet, entramos em um jogo bem simples de plataforma, ele
parece gostar. Ben 10 Power Splash, onde o Ben 10 tem que salvar a sua
prima Gwen. Enquanto o jogo carregava, David aproveitou para ajudar
os colegas em suas dificuldades. Depois ele voltou para a sua máquina
e passou o restante do tempo da oficina jogando Ben 10 (Excerto nº 4 –
Observando as ações da jovem David – 19 out. 2012).

Acompanhar os processos cognitivos da atenção desses jovens tem pro-


porcionado uma aprendizagem mútua entre todos os participantes das oficinas.
Observando o jogador David no ato do jogar, compreendemos o que Maturana
(2001) chama de “coordenações de ações”. Esses processos de coordenações são
importantes para o viver de cada indivíduo, em um ambiente sensível. As ofi-
cinas de jogos digitais têm a capacidade de potencializar essas coordenações de
ações por meio dos cenários dos jogos, dos personagens, das regras e desafios.
Essas coordenações, para o autor, são uma forma de estar na linguagem. “Eu
digo que se pode abstrair de todo este conjunto de circunstâncias, que o estar
na linguagem é um operar em coordenações de coordenações de ação. Não é
meramente coordenação de ação, mas coordenação de coordenações de ação.
Isto é claro e preciso na nossa vida cotidiana” (Maturana, 2001, p. 70). Essas
coordenações estão presentes nos vários mapas do jogador David.

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Wa s h i n g t o n S a l e s d o M o n t e – K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o

Chegamos para mais uma oficina. Como vivemos em processos, o pro-


cesso dessa oficina parece sempre em movimento fluido. Quase que esse
grupo não solicita ajuda para acessar os jogos, tendo uma dependência
em suas ações. Essa cena que escolhemos registrar marca uma das ações
mais comuns das oficinas, onde os trabalhos coletivos, as pressuposições
em ajudar o próximo e o compartilhamento do que já foi aprendido por
alguns são repassados entre eles. Outros jovens estavam querendo jogar
determinado jogo, mas não sabiam para onde ia, de repente David ouviu
o pedido de ajuda e falou – eu te ajudo – levantou e foi até o colega e
começou a passar alguns comandos. O que é maravilhoso nesse processo
é ver a predisposição em ajudar, a interação e o conhecimento do que foi
adquirido naquele mesmo lugar (Excerto nº 5 – Observando as ações do
jovem David – 23nov. 2013).

O mapa nº 5 apresenta uma das ações de alguns jogos presente nas ofi-
cinas, a disponibilidade de compartilhar suas experiências. De fato, percebemos
que os bons jogos digitais, como apresenta Gee (2009), têm a capacidade de
produzir alguns princípios de aprendizagem. Para esse autor, interação consiste
na relação que os jogadores têm com o próprio jogo, ou seja, não vai acontecer
se o jogador não interagir. O processo de feedback do jogo só é possível a partir
da indicação do jogador. Os jogadores são diferentes do que muitos imaginam,
ou seja, além de consumidores, também são produtores. Complementando esse
processo de produção dos jogadores, percebemos que essa produção pode sair
do mundo virtual e ser compartilhada com o colega que se encontra ao lado, ou
que pede ajuda nas oficinas em determinado momento. A agência corresponde
à capacidade dos jogadores de terem sensação de agência de controle, de fato
uma sensação de propriedade do que estão fazendo.
Os princípios de desafios e consolidação para o autor estão presentes nos
bons jogos. Trata-se na verdade de um conjunto de problemas lançados pelo
jogo, quando o jogador terá a capacidade de resolvê-los, depois de ter virtuali-
zado sua rotina, ou automatizado suas soluções (Gee, 2009, p. 172). Parece-nos
que esta indicação aproxima-se da ideia de prontidão-para-ação no presente.
Esclarece Varela (2003, p. 78):
De fato, a chave para a autonomia é que um sistema vivo encontre seu
curso no momento seguinte, agindo de maneira adequada a partir de
seus próprios recursos. E são os colapsos, as junções que articulam os
micromundos, que constituem a origem do lado autônomo e criativo

234
OFICINANDO COM JOVENS

da cognição viva. Esse bom senso deve então ser examinado em uma
microescala: no momento durante o qual ocorre um colapso ele realiza o
nascimento do concreto (grifo do autor).

O acoplamento com as tecnologias interativas, mais diretamente com os


jogos digitais, tem se apresentado como uma porta que possibilita essa abertu-
ra dos jovens para uma autonomia. Jogadores digitais em ambiente de saúde
mental passam a agir pelos seus próprios recursos, passam a coordenar suas
próprias ações, com autonomia e confiança.

Análise dos mapas de Inácio


Prosseguindo na análise dos mapas, trazemos aqui as inscrições e o pro-
cesso de Inácio no encontro com a tecnologia jogo digital. Apresentamos no
mapa de nº 6 uma rápida descrição desse jovem que se chama Inácio.

Hoje trazemos boas notícias! Quase tudo pronto para instalações


dos computadores e, quando falamos isto, Inácio não parece muito
animado. Este jovem tem aproximadamente 17 anos, é o que consta
na ficha dele do CAPSi. Mostra-se como um jovem inquieto, agitado,
que gosta de mexer em tudo. Os discursos que nos chegam é de que dá
trabalho na escola. Apresenta traços de Síndrome de Down. Durante as
primeiras oficinas, Inácio demonstra um interesse por papel e coleções
de colorir, quase sempre fala que vai desenhar um palhaço. Seu desenho
é colorido, algumas formas que se relacionam com um palhaço bastante
conhecido na região, diz Inácio: é fuxiquinho. As formas do desenho são
bem originais, formas carregadas de histórias que ele relata. Convidamos
Inácio para jogar e, nestes momentos iniciais de oficinas, quase sempre
interage com o jogo, interrompendo algumas vezes para desenhar, então
vamos conversar, estar perto das situações do desenho, o palhaço e suas
aventuras estão bem presentes (Excerto nº 6 – Observando as ações da
jovem Inácio – 8 jun. 2012).

Inácio mostra-se um jovem alegre, atento ao ambiente e ao que conver-


samos. Gosta de interagir com os outros, creio que carrega essa característica de
sua mãe. Entre as mães dos jovens que frequentam o CAPSi, a mãe de Inácio
parece ser a mais atuante em todas as atividades da instituição. Inácio está
sempre em sua companhia.

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Wa s h i n g t o n S a l e s d o M o n t e – K a r l a R o s a n e d o A m a r a l D e m o l y – F r a n c i s c o M i l t o n M e n d e s N e t o

A primeira impressão que tive desse jovem foi que ele não iria gostar
de participar das oficinas de jogos, como descrito no mapa nº 6, pois seu inte-
resse quase sempre era outro, no entanto depois que os computadores e jogos
foram instalados começamos a ter algumas surpresas em relação aos interesses
de Inácio. O mapa de nº 7 traz suas primeiras interações com os jogos digitais.
Hoje todos parecem meio agitados. Mas é muito bom ver as oficinas
assim, os participantes resolveram ficar próximos de Inácio e ele que-
rendo jogar. Na oficina anterior apresentamos para ele um jogo de heli-
cóptero e ele gostou muito. Neste jogo de estratégia, inimigos precisam
ser destruídos para que uma nave possa ir para a próxima missão. Não
incentivávamos este tipo de jogo, parecia bastante agressivo, mas eles
descobriram no ambiente. Essas missões não são muito simples, Inácio
não consegue passar da primeira fase que constitui um tutorial, mas
continua jogando. Talvez porque neste jogo pode aprender a controlar o
helicóptero com o mouse, o jogo tem vários tipos de sons, naves, carros,
tiros de bombas, estouros que acontecem. Não conseguimos identificar
o que exatamente mobiliza sua atenção, mas ele consegue jogar e fica
focado, interage comentando o jogo com os outros colegas do ambiente
da oficina (Excerto nº 7 – Observando as ações da jovem Inácio – 8 jun.
2012).

Esse mapa apresenta uma das primeiras interações do Inácio com os


jogos. Como havia vários colegas que estavam jogando um determinado jogo,
ele pediu para jogar também, como apresentamos no mapa nº 7. Ao observar
Inácio nessa ação de jogar, deparamo-nos com um processo de atenção que se
distingue como uma atenção à duração ou suplementar. Inácio passava vários
minutos imerso no jogo, sem de fato jogar. Parecia contemplar os gráficos e os
sons do jogo, além de ficar a admirar sua arte, o cenário. Esse processo também
foi acompanhado em outros jogos que Inácio procurava jogar. Os jogadores,
quando manifestam este processo de atenção suplementar, apresentam uma
focalização sem concentração.
Mais uma oficina, procuramos entrar logo, pois todos estão ansiosos.
Inácio é um dos primeiros. No último mapa que escrevi sobre ele, estava
preocupado, pois esse jovem havia conhecido um jogo, o da bicicleta
(Mountain bike), que fica jogando quase toda a oficina. Meu interesse é
compreender aqui o porquê de emoções expressas pelo Inácio, quando o
avatar cai da bicicleta, ele parece gostar. Procurei me aproximar e per-
guntei, por que você gosta desse jogo? – Porque eu gosto – Nunca tive

236
OFICINANDO COM JOVENS

uma resposta diferente desta, quando é sim porque é sim e não porque é
não. Assim, passamos a observar as ações que não ficam claras nas falas.
Suspeitei que fosse o gráfico do jogo que chamasse sua atenção: limpo,
claro e fácil de jogar para todos. Hoje esse jovem mostrou que está
jogando, o que chamou a atenção de todos no ambiente, Inácio passou a
explorar os demais jogos. Chegou a interagir com o jogo da bicicleta, o
que não é uma ação simples, requer uma atenção mais focada, chegando
à concentração, bastante habilidade e reações rápidas aos movimentos
dos ciclistas para que a bicicleta não caia (Excerto nº 8 – Observando as
ações da jovem Inácio – 16 ago. 2013).

O ponto importante que se destaca no mapa nº 8 são as emoções que


percebemos nas ações de Inácio, emoções aqui como disposições corporais, con-
forme Maturana (2002, p. 15):
As emoções não são o que correntemente chamamos de sentimento. Do
ponto de vista biológico, o que conotamos quando falamos de emoções
são disposições corporais dinâmicas que definem os diferentes domínios de ação em
que nos movemos. Quando mudamos de emoção, mudamos de domínio
de ação (grifo nosso).

Os jogadores que não se expressam de forma direta por vezes utilizam-se


de outros modos de se comunicar e interagir, algumas vezes pelas circunstâncias
de vida que apresentam: autismo, transtornos mentais, entre outros modos do
que entendemos como sofrimento psíquico. Para Maturana (2002, p. 16), as
emoções são disposições de nosso corpo que determinam ou especificam domí-
nios de ações. Essas disposições foram observadas nas ações dos dois jogadores,
Inácio e outros jogadores, não oralmente, mas de formas diferenciadas, nas suas
experiências, ao jogarem.
Hoje me coloco a acompanhar o jogador Inácio e ele demonstra um
interesse por vários tipos de jogos, o que havia iniciado na oficina anterior
segue explorando. Ele experimentou quase todos os jogos disponíveis na
tela do computador, um por vez, como se estivesse procurando um em
especial. Apesar do seu interesse parecer crescer em relação aos jogos
digitais, ainda não mostra atenção endereçada aos jogos no sentido de
uma imersão. Mas entendemos que esta ação de buscar abrir os jogos, ver
as telas e seguir adiante no olhar jogos é importante. Não ficou apenas
no mesmo, o da bicicleta, como estava acontecendo nas outras oficinas.
Em certo momento, eis que Inácio pediu para ensinar como se joga, algo

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que ainda não tinha ocorrido em outras oficinas; neste instante quer algo
mais, quer jogar novos jogos (Excerto nº 9 – Observando as ações da
jovem Inácio – 17 maio 2013).

Assim como em todos os jogadores, podemos constatar que quanto mais


joga, mais o jogador ganha experiência para outros jogos e outras coordenações
de ações. Inácio está tornando suas ações agora mais coordenadas, aqui em
relação à escolha dos jogos. Ele ainda não conseguiu abrir um jogo e ir até o
final. No mapa nº 10 foi possível acompanhar o seu processo.
O que é prestar atenção? Hoje se estivesse em uma escola o Inácio seria
o aluno que todo professor queria. Atento ao que estamos ensinando
sobre o jogo na hora da demonstração dos comandos. Ele conseguiu
iniciar o jogo, sozinho, e chegar até o fim da primeira fase... Seu desafio
está em conseguir articular o movimento do personagem com os botões
do teclado, mas ele é persistente, fica tentando até conseguir (Excerto nº
10 – Observando as ações da jovem Inácio – 17 maio 2013).

Já não existe mais dúvida sobre a utilização dos jogos digitais como uma
ferramenta que potencializa os processos de atenção. Os jogos têm a capacidade
de criar ambientes imersivos, produzindo assim experiências sensório-motora do
próprio corpo, apresentando imersão baseada no conceito de Murray (2003, p.
102) quando destaca:
A experiência de ser transportado para um lugar primorosamente simu-
lado é prazerosa em si mesma, independente do conteúdo da fantasia.
Referimo-nos a essa experiência como imersão. “Imersão” é um termo
metafórico derivado da experiência física de estar submerso na água.

Aqui vemos jovens imersos, completamente mergulhados em ambientes


digitais. Para Lévy (1993), “[...] na medida em que a informatização avança,
certas funções são eliminadas, novas habilidades aparecem, a ecologia cognitiva
se transforma” (p. 54). Essa transformação apontada por Lévy só é possível na
interação do sujeito, nesse caso do jogador, em um ambiente simulado, produ-
zindo assim novos conhecimentos.
A manipulação dos parâmetros e a simulação de todas as circunstâncias
possíveis dão ao usuário do programa uma espécie de intuição sobre as
relações de causa e efeito presentes no modelo. Ele adquire um conheci-

238
OFICINANDO COM JOVENS

mento por simulação do sistema modelado, que não se assemelha nem a


um conhecimento teórico, nem uma experiência prática, nem ao acúmulo
de uma tradição oral (Lévy, 1993, p. 122).

Essa transformação e conhecimento apresentados por Lévy, de fato, não


poderão ser aprendidos na escola, apenas os ambientes simulados têm essa capa-
cidade. E eles estão presentes cada vez mais em nosso dia a dia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo buscou investigar como os processos de atenção acontecem
na experiência de jovens e como esses processos se modificam na experiência do
jogar. Neste caso, de 2 (dois) jovens que são atendidos pelo CAPSi Mossoró/RN.
Essa é a questão maior que tentamos explicar no decorrer de toda essa pesquisa.
Assim, buscamos compreender como jovens experimentam os proces-
sos de atenção nas oficinas de jogos digitais desenvolvidas em um CAPSi no
município de Mossoró/RN. Fizemos uma imersão em leituras que consideramos
essenciais para a trabalho, ao mesmo tempo em que organizamos a experiência
da pesquisa intervenção com jovens, criando as condições para que acontecessem
oficinas no CAPSi.
O objetivo central deste estudo foi analisar as formas de atenção desen-
cadeadas na experiência de jovens com os jogos digitais, para entender como
estas tecnologias podem potencializar processos de aprendizagem na experiência
do jogar. No decorrer do trabalho foi possível entender que os jogos digitais
apresentam-se como grandes potencializadores tecnológicos desse processo.
Neste caso, os jovens atendidos no CAPSi passaram a ser sentidos, aco-
lhidos, como sujeitos que, como nós, vivem, se alegram, se entristecem e fazem
movimentar o processo da atenção. Processo este que interage muito com o
modo como os objetos, as situações, são apresentados a eles. Como bem nos
ensina Freitas (2011), a quem endereça o olhar quando presta ou quando não
presta a atenção. A atenção aqui foi analisada em suas múltiplas formas de
funcionamento, não como um mecanismo binário em que, equivocadamente,
ainda vimos acontecer, quando se considera que um sujeito tem ou não atenção.

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Diante do entendimento do acoplamento sujeito/máquina na tecnologia


jogo digital, como apresentado na análise anterior, o encontro desses jovens
com esse tipo de tecnologia apresentou várias formas de coordenações de ações
durante a relação de cada oficina, e que foram crescendo de acordo com a expe-
riência de jogar/ação dos jovens.
O entendimento das formas de atenção é de fundamental importância
para a compreensão de como se dá o processo de modulação do foco intencional
em um sujeito/jogador envolvido na experiência do jogar. O primeiro contato
desses jovens com esse tipo de tecnologia apresentou-se como um estranhamento
no início.
Em um primeiro momento esse sujeito/jogador apresenta um tipo de
atenção. No caso deste estudo, o tipo de atenção que mais se fez presente no
início da experiência foi “atenção voluntária”, bastante comum em sujeitos que
apresentam um processo de dispersão elevado. É interessante percebermos que
esse tipo de atenção pode ser trabalhado a partir da experiência do jogador, e não
com a proposta de colocar o indivíduo por puxões para um determinado foco.
Percebemos a diferença entre as formas do operar dos processos cog-
nitivos da atenção (distração, dispersão, percepção, focalização, concentração).
Esses processos estiveram presentes durante todo o percurso da experiência. É
interessante ressaltar que esses processos mostraram-se como uma nova forma
de pensar e refletir sobre cada um. A distração apresenta-se como um processo
importante para a aprendizagem. O distraído nem sempre é alguém que não
tem foco. A dispersão pode ser criativa e, neste caso, não impede que o jogador
passe, em um novo momento, a ter uma experiência profunda no processo. A
focalização e concentração são dois processos que se encontram presentes nesses
ambientes. Nem todas as pessoas focadas estão concentradas, a dispersão acaba
sendo importante para a concentração.
Dessa forma podemos distinguir alguns processos importantes no modo
de funcionamento da atenção em oficinas de jogos digitais com jovens atendidos
em um espaço de saúde mental. O sentimento que emerge desta experiência é
de que há muito por fazer diante dos desafios da luta antimanicomial, de modo
a contribuir para o atendimento oferecido pelos Centros de Atenção Psicossocial
e outros espaços de assistência à saúde mental.

240
OFICINANDO COM JOVENS

As oficinas tecnológicas, em especial com os jogos digitais, têm possibi-


litado conhecer as transformações e processos vividos pelos jovens, bem como
acompanhar sua evolução quando estão envolvidos com tecnologias interativas.
Em cada encontro temos a construção de laços, de conhecimentos e de diferentes
formas de interação com os jovens, formas estas que precisam ser reconheci-
das e acolhidas nos espaços de convivência. As oficinas propõem-se a produzir
experiências, novos sentidos para a vida social de jovens em circunstância de
sofrimento, além de contribuir para a produção de novos modos de convivência
com a loucura.

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244
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA:
Um Estudo da Saúde Mental dos Professores que
Atuam com a Inclusão de Crianças com Deficiência
na Rede Municipal de Garanhuns/PE
Mylena Carla Almeida Tenório
Deise Juliana Francisco

A proposta desta pesquisa partiu da necessidade de se entender, em


meio ao trabalho docente no âmbito educacional, como os professores em suas
atividades cotidianas sentem-se diante do processo de inclusão de alunos com
deficiência em escolas regulares, além de detectar quais as possíveis estratégias
de enfrentamento de algum adoecimento advindo da sua prática escolar. Nesse
sentido, ressaltamos que ao falar sobre inclusão estamos tratando de uma quebra
de paradigmas e a busca por estratégias e embasamentos que favoreçam esse pro-
cesso que a cada dia ganha mais força perante a sociedade, mesmo que caminhe
a passos lentos e seja oriundo de um processo contínuo, o que torna “inegável
que os velhos paradigmas da modernidade continuam sendo contestados e o
conhecimento, passa por uma reinterpretação” (Mantoan, 2015, p. 21).
Em meio a isto, acerca da análise do trabalho do professor, não podemos
deixar de citar que essa profissão, por si só, já traz inúmeros problemas ligados
ao desgaste profissional, seja pela falta de infraestrutura, jornadas extensas de
trabalho, baixa remuneração, falta de reconhecimento social, além da indisciplina
e violência às quais estamos cada dia mais expostos (Baião; Cunha, 2013). Tais
fatores acabam por afetar os professores, provocando doenças e elevados níveis
de cansaço, estresse, angústia e desânimo, que comprometem todo o processo
de ensino e aprendizagem e a relação com seus alunos (Araújo; Sousa, 2013).
A escolha da temática inicialmente deu-se a partir do contato com o
campo, no qual busca-se, numa perspectiva qualitativa, compreender a saúde
dos professores que estão diretamente ligados com o processo de inclusão escolar

245
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

de crianças com deficiência. Atualmente muito se estuda e pesquisa acerca da


inclusão desses alunos (Vieira et al., 2014), mas pouco se fala do professor que
estará em contato direto com esse público, de como está a saúde desse profis-
sional que é responsável pelo processo de ensino e aprendizagem desses alunos,
ao qual é dado o papel de pensar nas adequações, adaptações e estratégias para
que a inclusão de fato aconteça.
Com o passar do tempo o trabalho do professor tem ganho novas atribui-
ções, intensificando sua prática e ampliando seu campo de atuação, fatores estes
que implicam o crescimento de suas tarefas diárias e sobrecarga de atividades/
vínculos de trabalho. Podemos observar nas escolas que as situações enfrentadas
pelos professores, em seu cotidiano escolar, nos apresentam características e res-
postas únicas. Nessa perspectiva, Nóvoa (1997) nos mostra que há certa crença
que uma das fontes geradoras de estresse e mal-estar docente pode vir de um
sentimento do professor quanto à ausência de domínio das novas e inesperadas
situações pedagógicas do atual contexto profissional.
Dessa forma, os fatores citados anteriormente podem estar relacionados
também à necessidade de recrutamento de professores, muitas vezes sem uma
formação inicial básica, buscando atender ao aumento da demanda de alunos,
ou até mesmo a necessidade de rever e mudar a prática e métodos que utilizam
em suas atividades cotidianas, a fim de atender a um público diverso que chega
às escolas.
Nesse sentido, a pesquisa buscou analisar a saúde mental do professor
que atua com inclusão de alunos com deficiência nas escolas regulares da rede
municipal de ensino da cidade de Garanhuns-PE. Logo, a pergunta da pesquisa
é: Como tem se manifestado a saúde mental dos professores da rede municipal
de Garanhuns que atuam na educação inclusiva, a partir de sua experiência?
Tem-se como objetivo geral analisar como o professor do Ensino Funda-
mental de turmas regulares com alunos com deficiência, da rede pública muni-
cipal de Garanhuns/Pernambuco, tem vivenciado a inclusão em termos de sua
saúde mental. Os objetivos específicos advêm da proposta de destacar as situa-
ções e os fatores que contribuem para o surgimento de sofrimento no exercício
da profissão docente no processo de inclusão escolar, na perspectiva do professor.

246
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Com isso, este estudo visou a contribuir, ainda que como abordagem
inicial, para uma análise e compreensão dos processos, fatores, situações e con-
dições de saúde e adoecimento mental do professor que atua no processo de
inclusão de alunos com deficiência, a fim de propor estratégias de enfrentamento
dessa problemática docente. O que não quer dizer que uma solução imediata
será proposta, mas os dados coletados servirão de base para que essa intervenção
aconteça, em parceria com a Secretaria de Educação e Saúde do município no
qual o estudo foi realizado.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O processo de inclusão
Para compreendermos melhor o processo de inclusão no atual cenário
brasileiro, partimos dos inúmeros questionamentos que estão sendo levantados
a cada dia, seja em meio a discussões acerca do sistema educacional, a institui-
ção escolar, as políticas públicas, a função social e a atuação do professor, bem
como as práticas inclusivas que chegam nas escolas regulares como inclusão da
diversidade. Pensando nos documentos de base legal que norteiam essa modali-
dade, destacamos que a Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), que visa a
“promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação” (artigo 3º, inciso IV), além de esta-
belecer a “igualdade de condições de acesso e permanência na escola” (artigo
206, inciso I), foi um dos primeiros documentos a abordar a temática, chegando
atualmente a mais recente lei de n° 13.146, de 6 de julho de 2015, que institui
a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Brasil, 2015b), vindo a
declarar a educação como direito de todos, inclusive da pessoa com deficiência,
“assegurado sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao
longo de toda a vida [...]” (artigo 27, Capítulo IV).
Com a Declaração de Salamanca de 1994, esse movimento foi fortalecido
a partir da Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais Especiais:
Acesso e Qualidade, que aconteceu entre os dias 7 e 10 de junho, na cidade de
Salamanca (Organização..., 1994), sendo considerada um dos grandes marcos
da Educação Especial, ao tratar de princípios, políticas e práticas na área das

247
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

necessidades educativas especiais, bem como a inclusão de crianças, jovens e


adultos com necessidades educacionais especiais no sistema regular de ensino,
questão central sobre a qual se discorre. Nesse sentido, se refletirmos sobre as
práticas educacionais que resultam na desigualdade social de diversos grupos, a
Declaração proclama que as escolas regulares com orientação inclusiva consti-
tuem os mecanismos mais eficazes para se combater atitudes discriminatórias,
favorecendo o acesso à escola regular.
As concepções e conceituações da Educação Inclusiva surgiram, mais pre-
cisamente, com a Declaração de Salamanca, cujo princípio norteador mostrava
que as escolas deveriam acolher a todas as crianças, independentemente de suas
condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas e outras. A Decla-
ração foi adotada pelo Brasil e por diversos países e organizações internacionais,
o que nos possibilita perceber que houve reforma dando ênfase nesse assunto nos
sistemas educacionais, apontando para a necessidade das escolas em atenderem
às necessidades de cada educando, reafirmando um compromisso para com a
educação para todos, com a justificativa de que
a experiência, sobretudo nos países em via de desenvolvimento, indica
que o alto custo das escolas especiais supõe, na prática que só uma
pequena minoria de alunos [...] se beneficia dessas instituições. [...] Em
muitos países em desenvolvimento, calcula-se em menos de um por cento
o número de atendimentos de alunos com necessidades educativas espe-
ciais. A experiência [...] indica que as escolas integradoras, destinadas
a todas as crianças da comunidade, têm mais êxito na hora de obter o
apoio da comunidade e de encontrar formas inovadoras e criativas de
utilizar os limitados recursos disponíveis (Organização..., 1994, p. 24).

Com o intuito de mostrar a importância dessas mudanças a serem rea-


lizadas, a Declaração afirma que diante do alto custo em manter instituições
especializadas, as escolas comuns devem acolher todas as crianças, independen-
temente de suas condições físicas, intelectuais, sociais, emocionais, linguísticas,
entre outras. Com isso, Kassar (2011, p. 71) aponta para a necessidade de acre-
ditarmos na efetivação de uma política de “Educação Inclusiva” que deve ser
analisada e levar em consideração o contexto das políticas sociais presentes nas
sociedades capitalistas, “sem desconsiderar os movimentos em prol de situações
menos segregadoras para as pessoas com deficiências”.

248
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Desde então, em meio às mudanças decorrentes do sistema educacional e


o público que chega a esse campo, as expectativas e cobranças sociais em relação
ao trabalho docente têm sido alteradas e intensificadas, mas muitas vezes não
recebe suporte para acompanhar as políticas públicas que o cercam. Abordar o
trabalho docente implica analisar a compreensão acerca de saberes e atividades
exercidas pelos professores ao longo de suas trajetórias profissionais e vivências
no contexto da sala de aula.
Isso nos leva a compreender que a experiência docente advém de aspectos
pessoais, culturais e profissionais que fazem parte do sujeito, considerando o
cotidiano escolar e toda a sua complexidade como instrumentos relevantes para
se conhecer a realidade, saberes e fazeres com as quais cada um convive (Castro
et al., 2010). Assim, devemos entender que
[...] os saberes da formação são importantes, entretanto, por si sós, não
são suficientes para dar conta da complexidade do trabalho docente. Os
saberes da formação não são os únicos a serem mobilizados na prática
escolar, pois, no desenvolvimento dessa prática, professor toma decisões,
organiza/reorganiza suas ações e age, fundamentando-se (de modo cons-
ciente ou inconsciente) em pressupostos conceituais (crenças, concepções)
que definem seu fazer-se professor, o seu jeito de ser e de agir na sala de
aula (Castro et al., 2010, p. 91).

Atualmente a proposta com a qual nos deparamos para uma educação


especial na perspectiva da educação inclusiva advém da necessidade de fazer
com que todas as pessoas tenham acesso ao lazer, cultura, habitação, saúde e
educação, capaz de possibilitar condições para permanência e participação nesse
processo de inclusão nas atividades de cunho social ao qual toda uma sociedade
deve ter direito. Um passo inicial para que a inclusão seja de fato compreendida
advém dessa ressignificação dos termos (Góes; Laplane, 2013), um rompimento
de paradigmas e reinterpretação de conceitos, partindo das transformações que
vêm ocorrendo no nosso país. Com relação a esse processo, E. Mendes (2006,
p. 392) assegura que
[...] A reestruturação das escolas aumentou também a consciência e o
respeito à diversidade, e produziu mudanças no papel da escola, que
passou a responder melhor às necessidades de seus diferentes estudantes,
promovendo recursos variados centrados na própria escola.

249
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

Com isso, há uma necessidade de se estabelecer um “Sistema Educacional


Inclusivo”, que conte com o suporte de Atendimento Educacional Especializa-
do para complementar e suplementar a educação escolar do público-alvo da
Educação Especial (Kassar, 2011). Isso fez com que esse princípio fosse criti-
cado e repensado, pelo fato de sua proposta buscar normalizar as pessoas. A
normalização não era algo para ser feito para uma pessoa, no sentido de tentar
normalizá-la, mas sim um princípio que fornecia critérios por meio dos quais
os serviços poderiam ser planejados e avaliados. Dessa forma, percebemos que
[...] a educação especial foi constituindo-se como um sistema paralelo ao
sistema educacional geral, até que, por motivos morais, lógicos, científi-
cos, políticos, econômicos e legais, surgiram as bases para uma proposta
de unificação (Mendes, E. G., 2006, p. 388).

Tratando-se do ambiente de trabalho docente, agentes atuantes nesse


âmbito educacional, percebemos que este vem sofrendo inúmeras modificações
no que diz respeito a aspectos estruturais e pedagógicos para recebimento da
demanda com o público que chega com mais frequência nas escolas. Com isso,
existem inúmeros problemas que a escola precisa enfrentar, mesmo sem políticas
públicas e suporte dos órgãos responsáveis que favoreçam e garantam condições
adequadas para efetivação do seu trabalho. Nesse sentido, M. Mendes (2006, p.
1) aponta que essa “falta de condições vem provocando doenças nos professores,
o que compromete todo o processo de ensino e aprendizagem”, fatores que nos
levam a lembrar das
[...] longas jornadas de trabalho que podem chegar a ocupar os três
turnos; as pequenas pausas reservadas ao descanso; as refeições rápidas
e geralmente em lugares sem conforto; o ritmo intenso de trabalho e as
exigências de um alto nível de atenção e concentração para dar conta
das tarefas. [...] Não se pode deixar também de considerar as condições
das salas de aula da maior parte das escolas públicas; sem aclimatização,
com iluminação inadequada, desconfortáveis e com excessivo número de
alunos (Mendes, M. L. M, 2006, p. 1).

Esses fatores fazem com que as prevalências de adoecimento dentro dos


espaços escolares aumentem constantemente, tendo em vista a falta de suporte
a esses profissionais em meio ao campo de trabalho. Não só professores que têm
em sua turma alunos com deficiência, mas todo o quadro que se vê em meio

250
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

a um campo de atuação sofre com constantes mudanças e condições nem um


pouco favoráveis para o desenvolvimento de suas atividades, além da desvalori-
zação profissional com a qual convivem diariamente.

Trabalho, saúde e educação


Quando nos referimos a trabalho, destacamos que se trata de um processo
que está presente na sociedade desde a sua base, é nele que se estabelecem as
formas de relação entre os sujeitos e as classes sociais que a compõem, bem como
cria relações de poder e conveniência, definindo o ritmo do cotidiano de todo
um público. Uma definição de trabalho citada por Albornoz (1994) nos mostra
que existem diversos modos de se conceber e organizar o trabalho ao longo da
História, advindo da possibilidade de construir uma sociedade em que trabalhar
rime com prazer e não com submissão. Dessa forma, para Clot (2007, p. 73-74),

[...] o trabalho requer a capacidade de realizar coisas úteis, de estabelecer


e manter engajamentos, de prever com outros e para outros algo que não
tem diretamente vínculo consigo. É porque, a nosso ver, ele oferece fora
de si uma eventual auto-realização graças, precisamente, a seu caráter
estruturalmente impessoal, não imediatamente “interessado”. O trabalho
propõe a ruptura entre as pré-ocupações pessoais do sujeito e as “ocu-
pações” sociais de que este deve desincumbir-se. Por si mesmas, elas lhe
permitem inscrever-se numa troca em que os lugares e as funções são
nomeados e definidos independentemente dos indivíduos que os ocupam
num momento determinado.

Nesse sentido, o significado da palavra trabalho, em sua maioria, está


associado ao esforço físico, mas não é apenas isso, o esforço faz parte, mas deve-se
considerar também a saúde mental desses sujeitos. Vale ressaltar que o trabalho é
algo que faz parte da História da humanidade, bem como suas relações pessoais e
sociais constituem-se propulsores para a evolução e modificadores da sociedade,
espaço no qual as pessoas buscavam sua identidade com o trabalho, mesmo que
antes fosse visto como forma de subsistência. Hoje percebemos a influência do
modo capitalista constantemente, passando o trabalho a ser visto como uma
mercadoria e uma forma de sempre produzir mais e mais (Albornoz, 1994).

251
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

Assim, a função do trabalho atua como campo essencial para o desenvol-


vimento do homem, ligado à função psicológica dada por cada indivíduo a sua
relação com esse âmbito, por meio de uma psicologia do trabalho voltada para a
adaptação do trabalho ao homem, rompendo definitivamente com a perspectiva
tradicional de adaptação do homem ao trabalho, como propõe Clot (2007), afir-
mando que “precisamente por ser uma psicologia do trabalho, [possa] contribuir
com sua pedra para o edifício de uma psicologia do desenvolvimento” (p. 183).
Segundo o campo da Psicologia, o trabalho tem inúmeras formas, fator
que aponta para uma organização do trabalho e desenvolvimento da atividade
que devem ser analisados “junto àqueles que trabalham, no intuito de identificar
situações que contribuem para o desenvolvimento e aquelas que são potencial-
mente perigosas à saúde mental” (Vieira; Barros; Lima, 2007, p. 159), atentando
para o caráter e objetivos da presente pesquisa, que busca partir da realidade do
campo de atuação, em prol de desvendar fatores que põem em risco o desenvol-
vimento do trabalho e como consequência a relação com o outro.
Em se tratando da saúde mental e trabalho, Lima (2013, p. 92) aponta
para a crescente demanda, por parte dos trabalhadores e campos de trabalho,
pelo estabelecimento de conexão entre esses dois âmbitos, a fim de compreender
as relações entre saúde e trabalho, levando em conta que ainda “permanece em
aberto a questão do atendimento adequado a ser oferecido a esses trabalhadores”,
caracterizado pelo sujeito como único responsável, como ainda trata a autora
a seguir:
Isso significa que a ideia ainda bastante vinculada de que os problemas
no mundo do trabalho têm sua origem em questões estritamente pessoais
tem levado à disseminação de outra ideia que lhe é complementar: a de
o tratamento psicológico individual deveria saná-los [...] (Lima, 2013,
p. 93).

Do ponto de vista e da perspectiva de Clot (2007) não há uma menção


direta ao trabalho docente, mas conseguimos perceber o apontamento de subsí-
dios, tanto teóricos quanto metodológicos, que possibilitam uma discussão acerca
do ensinar, com esse ensino constituindo uma atividade que compõe o trabalho
e campo de atuação desse sujeito, com especificidades e características próprias

252
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

e singulares que variam de acordo com a área de cada um, tendo em vista que
esse profissional é um trabalhador que traz consigo personalidade, história de
vida, gênero e estilo de vida próprios.
Dessa forma, percebemos que com a educação, mesmo se tratando de um
trabalho que depende da força humana, não há uma valorização desse âmbito
como direito fundamental da sociedade, mostrando-se necessária a ideia de luta
constante para efetivação desses parâmetros, demonstrando a sua importância
perante o Estado, entidade que deve compreender os interesses da classe, a
fim de proporcionar um trabalho em conjunto para melhor desenvolvimento
(Campos; Leal; Facci, 2016, p. 226). Sendo assim, podemos constatar que

[...] o trabalho no setor de serviços ainda complica muito as tentativas de


separação entre as operações de execução e o sentido da ação. O próprio
trabalho impõe uma responsabilidade renovada quanto ao “objeto” e,
por isso, a definição das tarefas é influenciada, mais do que em outras
circunstâncias, por avaliações conflitantes. O “objeto” trabalhado, que
se tornou sujeito, deixa – ainda menos que anteriormente – os traba-
lhadores em paz, multiplicando “os problemas de consciência” (Clot,
2010, p. 281).

Em meio às inferências realizadas até aqui, em especial a teoria psicológi-


ca ligada ao trabalho, vale destacar a importância deste na construção do sujeito
e na sua inserção social, atividade apontada como estratégia de saúde e possível
associação ao adoecimento mental. Como observa Jacques (2003, p. 98), há um
crescente vínculo entre trabalho e saúde/doença mental, partindo de dados da
Organização Mundial de Saúde (OMS), em que os maiores desafios para a saúde
do trabalhador atualmente são os problemas de saúde ocupacional ligados às
novas tecnologias e os ambientes com os quais estão em contato.
Trabalho, educação e saúde são considerados um “trinômio que
fundamenta a construção e o desenvolvimento de uma sociedade, que deve ser
garantido por meio das políticas públicas governamentais” (Resin; Karpiuck,
2016, p. 2), as quais em sua maioria não são desenvolvidas ou não exercem seu
papel, o que nos faz perceber que em meio a constantes modificações, seja devido
à introdução de novas tecnologias, o crescimento da população, o consumo

253
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

desenfreado diante de tantas opções, entre outros fatores presentes no cotidiano,


vale ressaltar a importância do trabalho como fonte financeira, além de satisfação
profissional pela qual cada um anseia. Sendo assim,
[...] a qualidade de vida implica em criar, manter e melhorar o ambiente
de trabalho, seja em suas condições físicas, higiene e segurança, seja em
suas condições psicológicas e sociais. Um ambiente de trabalho agradá-
vel e amigável resulta na qualidade de vida das pessoas dentro e fora da
organização e isso reflete substancialmente na qualidade de vida externa,
que nada mais é, que uma extensão da qualidade de vida interna vivida
na organização. A qualidade de vida no trabalho representa o grau em
que os indivíduos são capazes de satisfazer suas necessidades pessoais
através de sua atividade exercida na organização. Pode afetar atitudes
pessoais e comportamentais importantes para a produtividade, como:
motivação para o trabalho, criatividade, adaptabilidade e flexibilidade
(Resin; Karpiuck, 2016, p. 7).

Em meio a isso, percebemos uma modificação na atuação e papel do pro-


fessor, que se estendeu para além da sala de aula, a fim de possibilitar também
uma articulação entre família, escola e comunidade, participando de ativida-
des ligadas à gestão, ao planejamento e à efetivação de procedimentos de uma
gestão democrática,1 que propõe a participação desse profissional bem como da
comunidade escolar nas tomadas de decisão e construções sociais que permeiam
o ambiente educacional. Dessa forma,
as condições de trabalho, ou seja, as circunstâncias sob as quais os docen-
tes mobilizam as suas capacidades físicas, cognitivas e afetivas para
atingir os objetivos da produção escolar podem gerar sobre esforços ou
hipersolicitação de suas funções psicofisiológicas. Se não há tempo para
a recuperação, são desencadeados ou precipitados os sintomas clínicos
que explicariam os índices de afastamento do trabalho por transtornos
mentais [...] (Gasparini; Barreto; Assunção, 2005, p. 192).

A Lei nº 9.394/96- LDB em seu artigo 14 atribuiu aos sistemas de ensino a tarefa de definir
1

as normas da gestão democrática do ensino público na educação básica, de acordo com as suas
peculiaridades e conforme os seguintes princípios: I – participação dos profissionais da educação
na elaboração do projeto pedagógico da escola; II – participação das comunidades escolar e local
em conselhos escolares ou equivalentes (Brasil, 1996, p. 5).

254
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Para tanto, há necessidade de mostrar que o papel social do professor


pode ser determinado pela sua saúde, afinal em muitos casos “a satisfação no
trabalho apresenta influência no desenvolvimento do mesmo” (Baião; Cunha,
2013, p. 7), sendo de extrema importância o conhecimento da sociedade acerca
da realidade profissional desses professores, a fim de saber que o desgaste físico
ou mental representa um fator que compromete o desenvolvimento de suas
atividades no que se refere ao processo escolar de seus alunos, no qual “a insatis-
fação contribui para o estresse ocupacional e para um efeito negativo à saúde”,
prejudicando todos os envolvidos.

PERCURSO METODOLÓGICO
As questões levantadas ao longo da pesquisa foram respondidas por meio
da abordagem metodológica qualitativa, a fim possibilitar aos professores, par-
ticipantes da pesquisa, expressarem seus sentimentos e situações vivenciadas em
meio ao âmbito do estudo, mostrando os múltiplos aspectos e particularidades
envolvidos nos processos de adoecimento durante o exercício do trabalho docente
com alunos incluídos e identificar seus fatores condicionantes. Dessa forma,

a metodologia qualitativa preocupa-se em analisar e interpretar aspec-


tos mais profundos, descrevendo a complexidade do comportamento
humano. Fornece análise mais detalhada sobre as investigações, hábitos,
atitudes, tendências de comportamento etc. (Marconi; Lakatos, 2010,
p. 269).

Nessa perspectiva, foi realizado um estudo de caso como mediador no


processo de investigação e teorização das práticas profissionais dos educadores, a
fim de analisar de maneira particular como suas atividades práticas são realizadas
e afetam a saúde desses profissionais, que pertencem a um grupo específico. Esse
tipo de pesquisa caracteriza-se como uma “pesquisa que se concentra no estudo
de um caso particular, considerado representativo de um conjunto de casos aná-
logos, por ele significativamente representativo” (Severino, 2007, p. 121), além
de auxiliar na reflexão da realidade vivenciada por um grupo específico em sua
atividade docente diária.

255
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

As questões éticas foram seguidas com base na Resolução do Conselho


Nacional de Saúde (CNS) nº 510, de 7 de abril de 2016 (Brasil, 2016), que
expressa as diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas científicas envol-
vendo seres humanos, considerando que a ética em pesquisa implica o respeito
pela dignidade humana e a proteção devida aos participantes, bem como o agir
ético do pesquisador em meio à ação consciente e livre do participante.
Levando em conta os riscos, os participantes da pesquisa tiveram ciência
da investigação por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE)
que apresentou todas as informações necessárias relativas ao projeto, ficando
livres para escolher se aceitavam ou não participar, podendo optar em consentir
ou não a utilização dos seus dados. Entendemos também que, com a exposição
dos dados o participante pode deparar-se com alguma situação de constrangi-
mento ou desconforto com relação ao questionário e entrevista respondidos,
porém os docentes não foram identificados e nem tiveram sua identidade reve-
lada.
Assim, os riscos estiveram ligados à ansiedade, desconforto ou constrangi-
mento por se tratar de assuntos pessoais ou de trabalho, apontados e discutidos
em meio ao campo de atuação desses professores, bem como sua realidade e
contato diário. Dessa forma, os benefícios estiveram ligados à coleta de dados
que trouxeram o assunto para discussão na rede e conhecimento de que se trata
de um fator real que não é relevante nem tratado perante a comunidade escolar,
atentando para o sigilo e não divulgação da identidade dos sujeitos que parti-
ciparam do estudo.
A pesquisa foi realizada na rede municipal de ensino da cidade de Gara-
nhuns-PE, com professores que estão diretamente ligados aos alunos com defi-
ciência incluídos em turmas regulares de ensino. Os dados foram coletados por
meio de entrevistas com os participantes da pesquisa, acerca de como se encontra
sua saúde em meio ao processo de inclusão. A cidade escolhida deveu-se ao local
em que reside a pesquisadora, bem como ao contato que ela teve com o campo
que desencadeou a problemática da pesquisa aqui apresentada.
A escolha dos participantes da pesquisa resultou de um levantamento,
realizado na Secretaria Municipal de Educação, das escolas que contam com
o maior número de alunos com deficiência matriculados. O quantitativo de
participantes foi de 21 professores, de 3 escolas distintas, com as entrevistas

256
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

sendo compostas por questionamentos que apontam para um conhecimento do


participante acerca de uma identificação daquele sujeito, seu trabalho no âmbito
educacional e de inclusão de alunos com deficiência e de questões ligadas à saúde,
o campo de atuação.
A análise dos dados coletados foi realizada, inicialmente, por meio do
levantamento prévio de dados estatísticos referentes à inclusão de alunos com
deficiência na rede municipal de Garanhuns-PE, na qual será utilizada a Esta-
tística Descritiva, considerada o procedimento inicial na análise de dados, a fim
de descrever e resumir o que foi coletado, objetivando organizar os dados de
determinada população pesquisada. Como destaca Correa (2003, p.9), a Esta-
tística Descritiva refere-se a um “conjunto de técnicas que objetivam coletar,
organizar, apresentar, analisar e sintetizar os dados numéricos de uma população,
ou amostra”.
Nas entrevistas foi utilizada também a análise do conteúdo, método
comumente adotado no tratamento de dados de pesquisas qualitativas, que
para Bardin (2011, p. 15) trata-se da análise do conjunto de instrumentos de
cunho metodológico em constante aperfeiçoamento, que se aplicam a discursos
extremamente diversificados.

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS


Com base nos dados coletados e já analisados, serão descritos por meio da
abordagem dos aspectos alcançados inicialmente, tendo em vista as categorias
criadas para a análise ao longo desta pesquisa, que se deu mediante a apreciação
das respostas dos professores participantes, partindo do trabalho docente dentro
da escola, fator que aponta para um campo repleto de diversidade e busca por
reconhecimento de estratégias e práticas que possam atender à demanda de
todo o público que ali se encontra. Nesse sentido, o campo de trabalho e saúde
dos professores apontam para uma busca por suporte para realização de suas
atividades, com base em uma falta de formação, apoio, material e parceria com
a família.
O município de Garanhuns conta com 129.408 pessoas, segundo o
último censo, tendo uma taxa de escolarização de 6 a 14 anos de idade de 96,8%.
No Ideb – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – os alunos dos anos

257
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

iniciais da rede municipal da cidade tiveram nota média de 4,5 no ano de 2015.
Em comparação com cidades do Estado de Pernambuco, a nota dos alunos dos
anos iniciais colocou Garanhuns na posição 95 de 185 (Instituto..., 2016).
Após seleção das escolas campo de pesquisa na Secretaria Municipal de
Educação, participaram do estudo três escolas da rede que funcionam nos turnos
da manhã e tarde, do 1° ao 5° ano do Ensino Fundamental. Conforme dados for-
necidos pela Secretaria Municipal de Educação – Seduc – em um levantamento
referente ao ano de 2016, a Rede Municipal de Ensino está organizada em um
total de 57 escolas, das quais 26 na zona urbana e 31 no campo. Dessas escolas
que compõem a rede 38 têm alunos com deficiência incluídos em turmas regu-
lares e 9 possuem salas de recursos multifuncionais. O quantitativo de alunos
da educação inclusiva é de 365. Em 2017 esse quantitativo total de alunos com
deficiência incluídos está em 377, segundo dados atualizados da Seduc, o que
representa um aumento de 7% desse público nas escolas da rede municipal de
ensino em um ano.

Quadro 1 – Alunos da educação inclusiva

Identificação Quantitativo de Alunos Quantitativo de Alunos com Laudo


Escola 1 Total 374 alunos 30 alunos com laudo
188 – Manhã 186 – Tarde 14 – Manhã
16 – Tarde
OBS: Tem mais 4 alunos que foram encami-
nhados para uma equipe multidisciplinar e
estão aguardando laudo médico
Escola 2 Total de 270 alunos 13 alunos com laudo
132 – Manhã 138 – Tarde 5 – Manhã
8 – Tarde
OBS: Tem mais 4 alunos que foram encami-
nhados para uma equipe multidisciplinar e
estão aguardando laudo médico.
Escola 3 Total 362 alunos 38 alunos com laudo
186 – Manhã 17 – Manhã
176 – Tarde 21 – Tarde
OBS: Esses alunos são os que já apresentam
laudos médicos ou já foram encaminhados
pela escola.
Fonte: Autoria própria.

258
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Do total de 21 professores participantes da pesquisa, a Escola 1 teve 8


que aceitaram participar da pesquisa, da 2, 6 professores e da 3, 7. Os docentes
participantes são efetivos da rede municipal e atuam em turmas regulares dos
anos iniciais com alunos com deficiência incluídos nas suas turmas, contando
com suporte de professor de apoio ou não, que é algo avaliado se de fato o aluno
com deficiência precisa ou não desse professor para auxílio nas atividades diversas
no âmbito escolar.
Um estranhamento dos professores foi o fato de a pesquisa ser algo espe-
cificamente com eles, sem ir para sala de aula observar os alunos ou a sua prática
em sala, pois a maioria das pesquisas e pesquisadores que chegam na escola vem
em busca disso. Percebemos que todos os participantes demonstraram empolga-
ção e desejo em participar da pesquisa que, segundo eles, traria um outro olhar
acerca da inclusão dos alunos com deficiências nas turmas regulares, passando a
enxergá-los como sujeitos participantes desse processo de inclusão.
No tocante ao perfil dos participantes, 89% são do sexo feminino, com
faixa etária entre 28 e 47 anos, com preponderância de 30 anos. A maior parte
da amostra é composta por pedagogos (54%), com especialização em Psicope-
dagogia (33%), seguidos de professores formados em outras licenciaturas, como
mostra o gráfico a seguir:
Gráfico 1 – Perfil dos participantes da pesquisa

Fonte: Autoria própria.

259
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

O tempo de trabalho dos participantes da pesquisa como professores tem


em média 13 anos, com o trabalho como professor de alunos com deficiência
incluídos em turmas regulares algo que vem acontecendo em média há 5 anos,
variando de 1 a 10 anos, ou seja, professores que iniciaram em 2016 com esse
público e outros que desde o início das atividades docentes já têm esses alunos
em sala.
O levantamento do quantitativo de alunos/as com deficiência matricu-
lados na rede municipal de ensino da Seduc em 2017 nos mostrou que a rede
é composta de 33 escolas que atendem ao Ensino Fundamental e anos iniciais,
tendo essa pesquisa o contato com 3 dessas escolas, o que equivale a 10% desse
total. Das escolas e professores entrevistados, chegamos a um quadro de 72
alunos com laudos médicos e deficiências diagnosticadas, número que corres-
ponde a 20% dos 365 estudantes com deficiência matriculados na rede. As
deficiências citadas e apresentadas pelos professores e que compõem a estatística
da Seduc nessas instituições correspondem a

Gráfico 2 – Deficiência dos alunos

Fonte: Autoria própria.

Vale ressaltar que os professores citaram as deficiências dos seus alunos


embasados nos laudos que estão anexados às matrículas na escola e/ou encami-
nhamentos recebidos de instituições especializadas. No gráfico constatamos a
presença de alunos com deficiência, transtorno ou dificuldades de aprendizagem.

260
SAÚDE MENTAL E EDUCAÇÃO INCLUSIVA

Em se tratando do campo de trabalho, ao serem questionados como os


participantes da pesquisa sentem-se trabalhando como professores, as respostas
partem do contato com o campo e as necessidades presentes no dia a dia da
profissão. Ao mesmo tempo em que se sentem bem, satisfeitos e realizados,
afirmando a importância da profissão como algo gratificante, que faz com que
sintam que estão contribuindo para a vida dos alunos, mostram a frustração
acerca das dificuldades e desvalorização, advindos dos inúmeros desafios do
âmbito educacional.
Nesse sentido, tal trabalho gera uma “sensação de trabalho incompleto,
não realizado de maneira efetiva”, levando também a um sentimento de angús-
tia e cansaço, como afirma um dos participantes: “Hoje em dia não sinto mais
prazer, já senti prazer em fazer as atividades”. Antes “sentia um grande prazer,
mas não consigo mais vivenciar meu dia a dia escolar com tanta alegria, por se
tratar de uma atividade que a cada dia faz com que o profissional se sinta des-
valorizado, desprestigiado, acumulando responsabilidades que não são só suas”.
No que diz respeito ao processo de inclusão, aponta-se a dificuldade em se sentir
bem em meio a um movimento novo, que traz inúmeros desafios, que exige
constante busca por parte do professor.
Com isso, as dificuldades encontradas pelos professores em meio ao pro-
cesso de inclusão caracteriza-se pela demora na chegada dos apoios de sala para
os alunos da educação inclusiva, além da falta de apoio pedagógico, seja apoio
de sala ou da secretaria, algo mais específico, ajuda, esclarecimentos, falta de
apoio do próprio sistema educacional, tendo em vista que o que acontece é que
o professor “recebe crianças com um grau muito elevado de deficiência que
ultrapassa o âmbito pedagógico porque a lei manda”.
Uma das questões mais presentes na fala dos entrevistados advém da
falta de formação para os professores e apoio de sala, falta de pessoal capacitado,
formação continuada para abarcar as diferentes realidades, afinal “na graduação
não há uma preparação para a realidade”. Percebemos também a ausência de
materiais para trabalhar, além de não haver um momento específico para dedicar
tempo aos alunos com deficiência, o que dificulta a adaptação de atividades com
base nos conteúdos propostos em sala. Ademais, o espaço físico é inadequado,
além das questões estruturais de um modo geral, a falta de salas de recursos para
o Atendimento Educacional Especializado. Outro fator presente nesse processo

261
M y l e n a C a r l a A l m e i d a Te n ó r i o – D e i s e J u l i a n a F r a n c i s c o

origina-se da não parceria com a família, pois esta não participa nem colabora
com os objetivos e estratégias propostas para o desenvolvimento de atividades
para esses alunos.
As entrevistas continuam sendo analisadas, principalmente as que per-
tencem ao grupo de abordagem qualitativa, que utilizarão a análise de conteúdo
como instrumento de interpretação dos dados coletados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos dados que já foram coletados, conclui-se que a ativida-
de docente sofre constante transformação no âmbito educacional, fazendo-se
necessário um olhar não para o público atendido por esses profissionais, mas
para as necessidades emergentes da realidade do dia a dia do campo de atuação.
Em educação, o trabalho docente e suas relações com a saúde vêm servindo de
objeto de estudo de diversas áreas do conhecimento, com essa temática consti-
tuindo alvo de atenção crescente nos últimos anos. Com isso, busca-se entender
as relações entre o processo de trabalho desenvolvido pelos professores, as reais
condições nas quais se encontram e as possíveis causas de adoecimento físico
e mental desses atores que estão diretamente ligados ao processo de ensino e
aprendizagem dos seus alunos.
A partir do que já foi coletado, podemos perceber que a saúde mental
dos professores foi intitulada por eles como sendo aquele momento que abarca
as angústias em meio ao que está acontecendo na prática. No que diz respeito
à inclusão escolar dos alunos com deficiência eles encontram-se despreparados e
sem formação ou suporte necessários da equipe de gestão da educação do muni-
cípio, que não escuta ou intervém nos espaços escolares.

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ticas públicas, formação de professores e práticas pedagógicas. Jundiaí: Paco
Editorial, 2012.

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS
ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM
Kézia Viana Gonçalves
Karla Rosane do Amaral Demoly

Este texto analisa processos que emergem em espaços de autoria dos


sujeitos estudantes em uma experiência de produção com objetos técnicos foto-
gráficos numa escola pública de Mossoró/RN. O fenômeno do conhecer na
escola, na perspectiva que assumimos, é um processo que envolve a produção
de nós mesmos e de estudantes, ao mesmo tempo que produz transformações
nos ambientes de aprendizagem na escola.
Neste estudo sobre os sentidos da escola para a aprendizagem dos estu-
dantes colocamo-nos a seguinte questão: – Como estudantes, em uma experi-
ência de produção inventiva de imagens, transformam modos de perceber os
processos de aprendizagem na escola? Esse desejo flui potencializado em nossas
experiências ao percebermos que, apesar de esforços por parte dos professores e
pesquisadores, a escola segue produzindo relações desrespeitosas na sua forma
de interagir com o conhecimento. São relações que podemos observar quando
entre os sujeitos na escola acontecem situações de exclusão, quando se nega a si
mesmo e/ou a legitimidade do outro nos modos de conhecer e de viver.
Nessa perspectiva, procuramos compreender processos envolvidos na
lógica excludente da negação do outro, a construção do conhecimento pelo
estudante e a constituição de outras formas de conhecer ao perceber que muitas
das experiências nas escolas não aconteciam de modo a conectar o fazer com a
vida cotidiana. – Qual o sentido do estar na escola e das tarefas que ali executa-
mos ou propomos aos estudantes?
Fomos construindo a ideia da urgência de abrir espaços para escutar
os estudantes e, para esta escuta, foi importante escolher um modo de agir na
linguagem, e com isso, fizemos a escolha pela fotografia. A busca em envolver a
produção de imagens toma impulso quando percebemos que a experiência com

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

fotografias pode constituir no contexto de autoria do inventor da imagem um


possível contexto para os estudantes olharem a si, trazendo as circunstâncias que
vivenciam na escola.
Adotamos a metodologia da pesquisa intervenção em que organizamos
um ambiente de produção para um grupo de dez estudantes que se encontram
com tecnologias digitais. A coleta de dados foi feita com base no método do
percurso comentado indicado por Jean Paul Thibaud (2000), em que tomamos
como campo empírico as inscrições, autonarrativas que se produzem no transcur-
so da experiência com imagens fotográficas. A ambiência sensível de Jean Paul
Thibaud torna-se interessante porque participa da organização do que chamare-
mos de percurso fotográfico. Este autor permite aceder a uma perspectiva sensí-
vel no tratar do ambiente no qual estudantes se encontram com objetos técnicos
para produzir algo que envolve as circunstâncias de aprendizagem na escola.
A rede teórica será ampliada com as construções de Humberto Matu-
rana e de Francisco Varela (2001), cientistas que construíram a perspectiva da
“Biologia do Conhecer”, mais diretamente o conceito de autopoiése e as expli-
cações dele decorrentes sobre a circularidade dos processos de viver-aprender.
Para tratar do modo de compreensão das tecnologias e dos objetos técnicos
contamos com o trabalho de Gilbert Simondon (1958, 1989) e ainda, sobre
o percurso inventivo da aprendizagem com imagens, com os estudos de Deleuze
e Guattari (1995); Kastrup, Carijo e Almeida (2012), Roland Barthes (1984);
Philipe Dubois (1994) e Michel Serres (1993). Estes estudiosos são importantes
por que oferecem uma forma inovadora de conceber a tecnologia e/ou o trabalho
com imagens.
Na significância da imagem fotográfica, como um campo vivo da lin-
guagem, os estudantes desenvolveram conceitos, reinventaram o aprender na
escola, o que foi constituindo formas de intervir na realidade. A tessitura das
redes de conversação com estudantes nos espaços das oficinas potencializou o
conhecimento acerca do fenômeno da aprendizagem na escola, das circunstâncias
que muitas vezes negam a legitimidade dos sujeitos.
Como resultado do trabalho foi possível distinguir que, em um percurso
de produção fotográfica, os estudantes puderam significar os diferentes espaços
da escola, distinguindo as experiências que criam obstáculos para o conhecimento
e aquelas em que se percebem como autores em percursos de aprendizagem.

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

A APRENDIZAGEM E EXERCÍCIO DE AUTORIA


NA EXPERIÊNCIA DOS ESTUDANTES
O exercício de autoria na aprendizagem dos estudantes emerge de um
processo complexo em que o sujeito não se adapta ao mundo, mas os mecanis-
mos de controle, de ordem, de estabilidade quando acompanham o processo de
aprendizagem corroem a condição de autor por meio da invenção. O conceito
de aprendizagem inventiva está em sintonia com os espaços de autoria dos estu-
dantes, sem os quais os sujeitos tampouco conseguem inventar os seus mundos.
O acoplamento estrutural de Maturana e Varela (2001) torna-se condição
essencial ao existir, e na aprendizagem à autoria dos estudantes. Na escola isso
traria perturbações mútuas entre o sujeito e o mundo, um sujeito que se rein-
venta no mundo ao mesmo tempo em que este também se reconfigura, ou seja,
por meio de mútuas perturbações. Os estudantes na autoria tecem escolhas de
um modo de viver, configurando-as conforme os sentidos sobre o aprender na
escola. Na corporalidade humana de Maturana e Varela (2001) seria o resultado
do viver em conversações, de modo que cada sujeito é único no processo de
aprendizagem.
O que temos na concretude do fazer na escola? Aprender mostra-se
muitas vezes em meio a mecanismos de repetição, seja em ficar ouvindo aqueles
que falam à frente ou ainda, quando o fazer está na escrita, passamos a inter-
pretar ou mesmo a fazer cópias. O espaço da escola quase sempre não se apre-
senta para a pesquisa, tampouco para fazer questionamentos, para a produção
de perguntas. Ao contrário, os que perguntam, os que duvidam, podem ser
interpretados como sendo aqueles que atrapalham a aula, que não entenderam
o conteúdo porque estudaram pouco. Trata-se, de acordo com Nize Pellanda,
do “autoritarismo epistemológico: alguém tem o direito de dizer e alguém tem
que ficar calado” (Pellanda; Pellanda 1996, p. 238). Nesse sentido, não existe
outro caminho diferente da linearidade. A organização das estruturas da escola
tende a preferir a “ordem pela ordem” ao da “ordem pelo ruído” (Von Foerster,
1996). De forma que, sem ruído, sem a perturbação se mantém uma lógica do
fazer educativo, porém estas são condutas que rejeitam o processo de se mostrar
sujeito no processo cognitivo, condutas que emperram, impedem o desenvolvi-
mento da autonomia.

271
Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

Durante o percurso educativo a presença do professor mostra-se articu-


lada com a aprendizagem do estudante. Esta relação muitas vezes é tramada
com base no controle daquele que se imagina ensinando alguém que aprende.
Ao construir um cenário no qual a aprendizagem dos estudantes seja constitu-
ída na autoria, a escola faz ressurgir em si novas relações. Vale destacar que a
autoria dos estudantes não afasta a importância dos professores no processo de
aprendizagem. Estes podem tecer uma convivência embasada no respeito e na
individualidade de cada ser, o que faz fluir a aprendizagem.
Não temos um caminho em que o professor faz mediação para que o
aluno chegue lá. Temos uma certa direção e responsabilidade no processo, mas
sabemos que o processo de aprendizagem requer perturbação e mudança do
professor e dos estudantes, em congruência. Ambos se aceitam como seres legí-
timos na convivência. Karla Rosane do Amaral Demoly (1999), em seu livro
intitulado O lugar da professora na escola: mecanismos institucionais de poder-saber,
discute um movimento, nem sempre perceptível, em que crianças e professores
experimentam um estar-não estando nas funções de aprendente ou de ensinante.
Nesse sentido, para se mostrar autor, os sujeitos precisam ser aceitos,
acolhidos. E como os estudantes podem se mostrar sujeitos na escola? Uma vez
que, para se mostrar sujeito, fazem-se necessários os espaços de autorias e, em
grande parte, não é o que encontramos nas escolas. Tomamos o fazer docente na
metáfora da aprendizagem, a travessia do rio na Filosofia Mestiça de Michel Serres:
Perceberão os mestres que só ensinaram no sentido pleno aqueles aos
quais contrariaram, ou melhor, completaram, aqueles que obrigaram a
atravessar? De fato, nada aprendi sem que tenha partido, nem ensinei
ninguém sem convidá-lo a deixar o ninho... Quem não se mexe nada
aprende. Sim, parte, divide-te em partes. Teus semelhantes talvez te
condenem como um irmão desgarrado. Eras o único e referenciado.
Tornar-te-ás vários, às vezes incoerente como o universo que, no início,
explodiu, diz-se, com enorme estrondo. Parte, e tudo então começa, pelo
menos a tua explosão em mundos à parte. Tudo começa por este nada
(1993, p. 14).

As resistências que podemos observar na afirmação de suas certezas


tendem a homogeneizar tudo em busca do igual, do conhecido. Esta lógica opera
na educação um desencontro com os espaços de autoria dos sujeitos, quando
não consegue operar uma educação que esteja articulada com a sua vida. Nesse

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

sentido, as produções dos estudantes imersas numa experiência de autoria podem


construir uma outra lógica educativa, agora ancorada na construção da aprendi-
zagem pelos estudantes e na singularidade de cada ser envolvido nesse processo.

O CICLO INVENTIVO DAS IMAGENS


A pesquisa que realizamos faz referência ao ciclo imagem/invenção
baseado nos conceitos de Gilbert Simondon (1958, 1989), o que não impede de
trazemos alguns aspectos condizentes com outras fases da imagem, pois consi-
deramos todo este dinamismo num ciclo. Este autor traz a invenção enquanto
invenção de problemas, processo que ultrapassa a busca pela resolução de um
problema. No ciclo inventivo das imagens, as oficinas podem abrir espaços para
as percepções, as ideias e as emoções dos estudantes na forma como percebem/
sentem/vivem a aprendizagem na escola.
Na abordagem simondoniana, a imagem também consiste em autono-
mia. A imagem não é controlada, objeto, em que o sujeito a regula de acordo
com os seus anseios. Nessa lógica, rompe-se com o caráter passivo da imagem,
pois ela se amplia no caráter dinâmico. Para Dubois essa autonomia da imagem
ocorre “porque a fotografia não é apenas uma imagem produzida por um ato,
é também, antes de qualquer outra coisa, um verdadeiro ato icônico ‘em si’, e
consubstancialmente uma imagem ato” (Dubois, 1994, p. 59).
A imagem rompe essa lógica de passividade e assume um caráter dinâ-
mico “[...] longe de curvar-se à vontade, a imagem é dotada de autonomia. Ela
se impõe ao sujeito, muito mais do que se submete a seu controle. As imagens
estão a meio caminho entre o subjetivo e o objetivo” (Simondon apud Kastrup;
Carijo; Almeida, 2012, p. 61).
A abordagem que acolhemos para a pesquisa não opera na lógica da
imagem como linguagem que representa a realidade. A ideia de representação
condiz com a lógica reducionista de se ter uma realidade única fora dos sujeitos
que buscam sempre capturá-la. Neste ponto, vale destacar o que aprendemos
com a Biologia da Cognição (Maturana; Varela, 2001), de que a realidade não
precede o operar do observador, emerge na explicação. Tomando o caráter infor-

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

mativo da fotografia temos uma intensidade que supõe um sujeito orientado


por um dinamismo vital, ou seja, aquilo que permite ao sujeito um situar-se no
mundo (Simondon, 1998, p. 7).
Temos na observação de imagens possíveis efeitos, uma espécie de mágica
de experimentar outros tempos, outros sentidos, outras realidades. Nesse con-
texto, fotografia e sujeito põem-se em movimento. Numa conexão com Barthes
(1984), a imagem e seu referente tecem um espaço que não é só próprio da
imagem e tampouco do sujeito. Na pesquisa essa relação entre imagem e sujeito
evidencia uma ligação das análises fotográficas pelos estudantes com os projetos
de vida de cada um.

O PERCURSO METODOLÓGICO
A pesquisa que desenvolvemos é uma pesquisa-intervenção, de natureza
qualitativa, que considera as recorrências percebidas nas produções dos estudan-
tes durante uma experiência envolvendo imagens fotográficas. Essa pesquisa,
embora não desconsidere os demais sujeitos da escola, busca um entendimento
sobre a autoria dos estudantes no processo de aprendizagem, por meio das pro-
duções na pesquisa pelos próprios alunos.
Na pesquisa-intervenção o participante é um sujeito, sua metodologia
baseia-se no potencial dos encontros, na produção de acontecimentos, de inven-
ção e de experimentação (Paulon, 2005). Utilizaremos a metodologia de primeira
pessoa que indicamos com base no conceito de enação que envolve toda atividade
de conhecimento.
O percurso comentado apresenta-se como método no qual o pesquisador
propõe aos sujeitos que transitam com constância ou não em um determinado
lugar a realizarem um percurso enquanto descrevem as percepções e emoções
sentidas num ambiente sensível. O enfoque do ambiente sensível, entretanto,
ao trazer este método para a pesquisa, não está apenas na qualidade que este
atribui as emoções dos estudantes, mas na conexão entre o estudante e o seu
território escolar.
Na pesquisa fizemos algumas transformações neste método, pois tivemos
como proposta um convite a um grupo de dez estudantes para percorrer a escola
através do olhar fotográfico, os quais após este percurso participaram de uma

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

roda de conversações. Nesse sentido, resolvemos chamá-lo de Método do Per-


curso Fotográfico, quando trazemos o objeto técnico: a câmera fotográfica aos
espaços das oficinas com os estudantes.
Enfatizamos que o Percurso Fotográfico não condiz apenas com os ins-
tantes que os estudantes percorrem os territórios da escola por meio da produção
de fotografias. Consideramos o percurso fotográfico o próprio vaguear do olhar
destes sujeitos sobre as imagens produzidas. Outro destaque neste método que
inventamos é que os sujeitos envolvidos diretamente na pesquisa não se definem
como sendo aqueles que passam aleatoriamente no percurso a ser fotografado,
como acontece no método desenvolvido por Jean Paul Thibaud (2000). Trata-se
de um grupo de estudantes do 6º ano do Ensino Fundamental, que faz parte
de uma lista dos alunos “trabalhosos” da escola e que aceitaram participar da
pesquisa.
O percurso fotográfico está articulado em três eixos: o primeiro faz refe-
rência aos encontros iniciais na sala de informática, antes mesmo do percurso
de fotografar os territórios da escola, mas quando os estudantes e pesquisadora
lançam perguntas sobre o processo de aprendizagem na escola, um espaço de
situar a problemática da pesquisa. Este momento também faz referência à inte-
ração dos estudantes com as tecnologias digitais, numa vivência em oficinas
envolvendo objetos técnicos digitais: câmeras digitais, tablets, notebooks, compu-
tadores e data- shows.
O segundo eixo condiz com o percurso dos estudantes nos diversos terri-
tórios da escola: pátio, sala de aula, biblioteca, corredores, cantinas, etc. Nessa
ocasião cada estudante escolhe entre os objetos técnicos com dispositivos de
câmera fotográfica presentes na oficina: tablets e câmeras fotográficas, aquele
com o qual quer percorrer os espaços da escola produzindo fotografias.
Já o terceiro eixo é o momento no qual convidamos os estudantes a
retornarem ao espaço das oficinas: sala de informática. Um momento que acon-
tece sempre após o percurso de produção de fotografias, no tempo/espaço de
uma outra oficina, pois optamos por fazer o trabalho de produção e análise das
imagens em encontros alternados. Estes três eixos, contudo, estão organiza-
dos numa estrutura cíclica, em que não há uma definição fechada, mas uma

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

interconexão entre todos durante todo o processo das oficinas. Esclarecemos que
a organização em eixos não segue uma ordem cronológica e a situamos assim
apenas como forma de melhor estruturar uma organização dos nossos fazeres.
Entendendo que este pesquisar vai se modulando à medida que vamos
tecendo relações com os sujeitos estudantes, seja pelas narrativas que vão cons-
tituindo nossas considerações, no nosso olhar do observador implicado com o
fazer (Maturana; Varela 2001), ou ainda nos recortes do cotidiano escolar nos
quais fazemos nossas análises observacionais.
E destacamos ainda que o percurso inicia-se desde este momento com a
escrita num diário de campo das percepções do pesquisador construídas na obser-
vação do que experimenta ao ingressar na escola, ao conversar com o grupo de
estudantes e segue mediante novos procedimentos quando se iniciam as oficinas
propriamente ditas. Neste contexto da experiência propomos a organização de
um conjunto de oficinas que oportunizam formas de exercício de autoria com a
produção de imagens e, ao mesmo tempo, abre um espaço de conversação para
os estudantes de modo que possam falar do que experimentam na escola.
Os dados da pesquisa vão se mostrando a todo instante na experiência
e com isso construímos um diário de campo do pesquisador como objeto de
registro. Este material nos acompanha durante todo o percurso das oficinas e o
temos como referência na identificação das recorrências nas falas dos estudantes
articulados no eixo da autoria e da aprendizagem.
As escritas no diário de campo são tomadas de significação para o desen-
volvimento das análises que produzimos durante e após a permanência no
campo. Utilizaremos ainda como registros das produções na pesquisa um gra-
vador de áudio como meio de registro das percepções dos estudantes durante
o percurso fotográfico. Assim, estas ferramentas de registro da pesquisa atuam
como um campo para guardar, no sentido de manter vivo o conjunto de análises
dos estudantes e também as minhas análises durante a experiência.

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

OFICINANDO COM IMAGENS FOTOGRÁFICAS


Este fazer com os estudantes teve início com uma roda de conversa na
sala de informática, local das oficinas, quando cada participante pôde expressar
suas inquietações, perguntas, ideias e indicações do que desejavam produzir
numa interação inicial com os objetos técnicos: câmeras fotográficas e tablets, um
fazer que compreende o agir na linguagem como modo de exercício de autoria.

Figura 1 – Objetos técnicos fotográficos

Fonte: Acervo pessoal da pesquisadora Kézia Viana Gonçalves.

Enquanto perguntava sobre como acolhiam a proposta de gravar a oficina


em áudio, a palavra oficina despertou dúvidas quanto ao seu significado. Os estu-
dantes foram construindo um cenário de perguntas entrelaçados a um emocionar
em que mostravam desconfiança quanto aos meus objetivos com a gravação.
Nascimento: O que é mesmo oficina? É por que você vai dar aula pra
gente é? Vai ser nossa nova professora?
Silva: Quem pediu para você vir aqui foi a diretora? É esse negócio aí que
grava é? É pra mostrar à diretora o que a gente diz aqui? (estudante ao
olhar os objetos técnicos dispostos à mesa).
Oliveira: É pra saber o nosso comportamento, minha gente, cuidado que
tá tudo sendo gravado, né? (Diário de campo, junho/2013).

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

Mesmo sabendo que a confiança viria a acontecer na convivência, no


decorrer dos encontros do percurso fotográfico, procuramos neste momento
explicar que o convite para estarem lá não estava vinculado ao propósito de
aula, tampouco de colher informações para encaminhar a quaisquer terceiros,
fossem estes professores, gestoras, supervisoras escolares ou familiares, mas no
desejo que tínhamos na condição de pesquisadoras de ter essa vivência com um
grupo de estudantes em que pudéssemos acompanhar nas produções que fariam
durante o percurso fotográfico o processo de aprendizagem na escola numa
experiência com fotografias.
Continuamos a apresentar a pesquisa explicando que se trataria de uma
experiência para a qual estariam convidados a participar, pois não tinha um
caráter de obrigatoriedade. Percebemos uma visibilidade dos deslocamentos
nas expectativas dos estudantes. O emocionar das perguntas estavam tomadas
agora de expectativas diante do novo e da possibilidade de interagirem com
estes objetos.

Aquino: A gente é que vai mexer com essas coisa é? Eu quero o tablet.
Oliveira: É? (admiração)
Silva: Eu quero o tablet também porque eu nunca mexi num tablet.
Nascimento: Menino, é qualquer coisa, o que lhe derem (Diário de
campo, junho/2013).

Estas conversações favoreceram a articulação com a ideia inicial em per-


mitir um encontro dos estudantes com objetos técnicos fotográficos: câmeras
fotográficas e tablets, uma vez que seriam estes os dispositivos que os acom-
panhariam durante todo o percurso fotográfico. Essa experiência das oficinas,
entretanto, ocorreu de forma que um encontro sempre direcionava a um outro,
o que resultou na seguinte organização:
1. Produzindo fotografias livremente,
2. Conhecendo técnicas fotográficas,
3. Fotografando a partir das técnicas e
4. Análise do percurso.

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Resolvemos como parte da proposta ampliar campos de autonomia, per-


mitindo aos estudantes uma atividade de fotografar livremente, interagindo com
os objetos e produzindo imagens. Não havia aqui uma pergunta orientadora para
a produção de imagens e, com isso, foi preciso retomar algumas vezes a dinâ-
mica do encontro, pois alguns perguntavam sobre o que deveriam fotografar.
Temos nessa experiência em que se entrega a câmera aos sujeitos de pesquisa a
possibilidade de produzirem fotografias nas quais possam trazer realidades da
escola no olhar que lançam sobre as superfícies. A proposta do “oficinar” era a
interação mediada por objetos técnicos, favorecendo, assim, a produção autoral
na pesquisa sobre os modos de perceber a escola.

Figura 2 – Fotografando

Fonte: Produção dos alunos – Autoria própria.

Sousa: Eu já tinha mexido com uma câmera, mas não com um tablet!
É fácil!
Oliveira: O sonho do pessoal da escola é mexer no computador. Posso
olhar o meu facebook? Eu amo o facebook.
Silva: Eu também gosto demais do facebook, só que aqui na escola a
gente não pode. Tem Internet, mas é só para os professores e o pessoal
da diretoria (Diário de campo, junho/2013).

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

Algumas das primeiras imagens surgem turvas, como mostramos a


seguir. Na oficina posterior os estudantes lançam olhares para suas produções
fotográficas. Entre risos, pedem para apagar as imagens que aparecem com
pouca nitidez, no entanto achamos interessante apresentá-las na pesquisa, per-
cebendo os deslocamentos e construções que acontecem com os estudantes no
percurso de produção de imagens.

Figura 3 – Primeiras fotografias

Fonte: Produção dos alunos.

Após essa experiência seguimos numa outra oficina envolvendo técnicas


fotográficas, tais como luz, ângulo, composição, textura, foco e movimento. Uma
das dinâmicas dessa oficina foi permitir aos estudantes uma produção imagética
empregando as técnicas trabalhadas. Além disso, as fotos anteriores, produzidas
na oficina – fotografando livremente – foram analisadas como forma de observar
as possíveis transformações na fotografia a partir do operar de uma técnica.
Em um terceiro momento cada estudante, a partir da experiência na
oficina sobre técnicas fotográficas, foi convidado a interagir com a máquina foto-
gráfica produzindo fotografia sobre os espaços escolares, trazendo recortes sobre
o que lhe chama atenção no ambiente. A proposta da oficina era a de registrar
por meio da técnica de “enquadramento” da máquina o território escolar. Este
processo favoreceu a produção autoral dos estudantes, à medida que estes foram

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

estabelecendo os enfoques fotográficos nas andanças pela escola. A autoria desses


sujeitos passou a ser vista de diversas formas, desde os ângulos de captura de
cena, a própria escolha nas produções das inscrições e ainda das narrativas que
acompanham suas escolhas.
Os sujeitos se inventam nas circunstâncias nas quais se encontram e com
a fotografia não foi diferente. A forma trêmula ao segurar a câmera fotográfica
e a dúvida entre qual botão apertar logo cedeu espaço para manuseios ousados
com o objeto técnico, inclusive na própria invenção de imagens com dispositivos
(ampliação e redução de imagens, focos nos ângulos, imagens em movimento)
percebidos pelos estudantes na interação com a câmera fotográfica.

Figura 4 – Estudante lendo em sala de aula

Fonte: Fotografado por Aquino.

Sousa: Essa foto ficou muito legal! Quem tirou? Parece foto de profis-
sional né?

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

Aquino: Fui eu! Achei legal tirar essa foto porque o menino tá lendo e a
maioria dos alunos só quer tá on-line no facebook e não liga pros estudos.
Freitas: Aqui na escola não tem acesso a computadores e muito menos
ao facebook.
Nascimento: Graças a Deus, porque senão a gente tinha de enfrentar fila,
porque se tivesse acesso ao facebook todo mundo queria.
Aquino: É mesmo! Que bem dizer que você também não queria?
Nascimento: [Risos] Oh se não queria, principalmente se pudesse sair da
aula (Diário de Campo, agosto/2013).

A fotografia anterior mostra na rede de conversações das oficinas uma


visibilidade da técnica empregada na produção de imagem. O estudante conse-
gue relacionar os recursos técnicos fotográficos utilizado: proximidade, ângulo,
composição com a sua intenção no ato de produção fotográfica, o que é percebido
por alguns estudantes no coletivo. Além disso, esta circularidade entre imagem
e referentes desencadeia uma emoção de uma experiência com as tecnologias
digitais na escola.
Entendemos que a tecnologia por si só não efetiva a aprendizagem em
contextos de formação, pois pensar assim seria colocá-la numa dimensão tecno-
crática. Ressaltamos, porém, que a tecnologia pode desencadear emoções que
impulsionam uma nova relação com o conhecimento. Para Maturana, “A tecnolo-
gia é uma operação em conformidade com as coerências estruturais de diferentes
domínios de ações nas quais uma pessoa pode participar como ser humano”
(Maturana; Varela, 2001, p. 187).
Os discursos dos estudantes a partir desta fotografia ajudam a compor
uma realidade envolvente do sujeito e seu meio. A dinâmica das oficinas envolve
desde o momento em que os alunos interagem com os objetos técnicos até o
encontro com as fotografias em que tecem explicações sobre o que produziram.
Nas explicações temos o olhar para as imagens em um movimento de reinvenção
da escola.

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ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Figura 5 – Os três prêmios da escola

Fonte: Fotografado por Nascimento.

Oliveira: Eu não sei por que esse colégio ganhou 3 prêmios de qualidade,
mas talvez porque não falta professor nas salas.
Nascimento: A escola merece esse prêmio, quando as crianças do mundo
da literatura não têm roupa o pessoal da direção e os professores dão o
máximo jeito de conseguir as roupas. Você diz isso porque não passou 4
anos aqui nessa escola. Você tem pouco tempo aqui na escola, por isso
pensa assim.
Silva: Não é verdade. A gente não precisa só de roupa. Tem muita coisa
que precisa ser melhorado aqui. Essa escola é boa pra aqueles alunos
que participam das coisas que tem aqui: teatro, canto, violão, mas pra
gente não. Não tem nem computador! (Diário de campo, agosto/2013).

A dinâmica das oficinas envolve desde o momento em que os estudan-


tes interagem com os objetos técnicos até o encontro com as fotografias em
que tecem explicações sobre o que produziram. Nas explicações temos o olhar
para as imagens em um movimento de reinvenção da escola. O processo de
invenção de modos de perceber a escola compreende desde o momento em que
operam com a câmera, quando já encontram possibilidades de inventar relações

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Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

de aprendizagem na escola, a produção de cada estudante, suas decisões na


tomada das imagens e o que explica em um segundo momento, quando fala
sobre o que fez.

O OLHAR DO OBSERVADOR REINVENTANDO O APRENDER NA ESCOLA


Os estudantes observam o conjunto de imagens produzidas e se põem
a falar explicando o que emerge diante do olhar, agora em outro momento da
produção, o olhar sobre o fazer, configurando uma nova experiência.

Figura 6 – A imagem do caderno

Fonte: Fotografada por Aquino.

A imagem do caderno faz emergir diversos comentários por parte dos


colegas. Os estudantes olham a imagem exibida por um projetor de multimídia
e começam a tecer suas considerações. Este espaço de conversação das oficinas foi
se constituindo a partir da vivência dos alunos na escola, com destaque para as
circunstâncias de aprendizagem. Eis aqui algumas que surgem nesse momento
de análise das imagens.
Lima: O professor chega, passa o dever, a gente faz. Eu gosto de partici-
par das danças e do recreio, mas a maior parte do tempo aqui na escola
é na sala de aula.
Nascimento: O tempo todo a gente passa escrevendo e conversando.
O professor não quer que a gente converse não, diz que tem de fazer
silêncio pra escutar e aprender. Eu não gosto muito, mas acho que tem
que ser assim mesmo (Diário de campo, setembro/2013).

284
ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Ao mesmo tempo que os estudantes fazem análises das imagens, eles


começam a inventar outros cenários escolares. Para Kastrup (1999), o conceito
de invenção diz respeito a uma invenção de problemas, experiência de problema-
tização e não exatamente a um processo de solução de problemas já existentes.
Neste estudo, a aprendizagem inventiva está em sintonia com os espaços de
autoria dos estudantes. Sem estes espaços na escola os sujeitos tampouco conse-
guem inventar os seus mundos.
A fotografia nesta oficina foi fundamental para percebermos deslocamen-
tos da rotina de sala de aula, repleta de atividades exigidas pelos professores, para
outras mais lúdicas e interativas. Os estudantes trazem experiências em projetos
na escola nos quais gostam de participar, afirmam que, muitas vezes, são eles
os protagonistas. Sustentam, no entanto, argumentos da sala de aula como um
espaço fechado à autoria do sujeito no processo de aprendizagem. A fala durante
as leituras das imagens traz evidências de que vir para a escola é diferente de vir
para a sala de aula.

Figura 7 – Os violões do projeto Mais Educação

Fonte: Fotografada por Basílio.

Basílio: Esses violões são dos alunos que participam do Mais Educação. Só
pode participar quem recebe um papel da escola. Eu queria participar,
queria fazer aula de violão. Ano passado eu participei do Mais Educação.

285
Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

Vieira: Ano passado eu participei das atividades no Mais Educação. Parti-


cipei dos jogos, xadrez, dança e capoeira. Eu estudava de manhã e o Mais
Educação era de tarde. O Mais Educação é diferente da sala de aula porque
tem brincadeiras. Na sala de aula não podemos brincar, mas na aula de
Artes a gente pode (Diário de campo, setembro/2013).

O livro mostrou-se nas análises dos estudantes como um dos objetos mais
fotografados, numa referência de ser um elemento fundamental na aprendizagem
escolar. Abrimos um espaço nas conversações para a observação destas fotogra-
fias, para que os estudantes pudessem falar sobre as significâncias deste objeto,
o livro no processo de aprendizagem escolar. São considerações que divergem
da perspectiva que toma a imagem meramente como modo de representação
de uma realidade.

Figura 8 – O livro

Fonte: Fotografada por Aquino.

Pinheiro: No livro tem as matérias pra gente estudar. Quando tem prova
os professores mudam a gente de canto, só alguns que deixam pesquisar
do livro.

286
ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

Sousa: Todo mundo tem livro, o professor chega, pede para abrir o livro
e já diz a página. E aí a gente fica conversando sobre outras coisas, dando
risada e o professor manda a gente calar a boca e fazer o dever (Diário
de campo, setembro/2013).

Figura 9 – Objetos lúdicos matemáticos

Fonte: Fotografada por Vieira.

Nascimento: Era pra ser como as aulas de Artes com pintura, dobradu-
ras, origami, em Matemática não tem. As aulas de Matemática é dever,
dever, dever. Acabando dever é outro
Pinheiro: Uma aula bem legal de Matemática seria uma sem dever,
usando computador. A aula podia ser no pátio, ser mais divertida com
menos dever. Dava até pro professor trazer o quadro (Diário de campo,
setembro/2013).

Na experiência os estudantes fazem uma leitura dos objetos lúdicos mate-


máticos existentes na Biblioteca, mas afirmam que não manuseiam este material
na escola. Considerando os detalhes percebidos na fotografia pelos estudantes,
sugerimos uma invenção da Matemática na escola, como seria essa aula de Mate-
mática?

287
Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

As considerações deste aluno constroem reinvenções da aula de Matemá-


tica, ao mesmo tempo que incorporam ao cenário objetos como o quadro, num
entendimento de ser uma ferramenta indispensável ao processo de aprendizagem
na escola.

Figura 10 – Interagindo com a câmera

Fonte: Produção dos alunos.

Sousa: Foi bem legal, com a câmera tiramos fotos dos lugares da escola
e percebemos coisas que até então não tinha percebido. Foi interessante
por que as pessoas olhavam para a gente, me senti importante (risos).
Vieira: As pessoas olhavam para a gente com a câmera e perguntavam o
que a gente estava fazendo. Eu disse que tava participando de um projeto
de tirar foto (Diário de campo, setembro/2013).

Os estudantes, no final da oficina, avaliaram a própria experiência no


percurso com as produções de imagens. As suas falas remetem à condição dos
objetos técnicos numa articulação com a autoria, quando o sujeito aparece a
partir das próprias produções. E essa performance do estudante na produção
de imagens no operar com as câmeras ampliou os campos para os exercícios de
autoria.

288
ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

ANÁLISE DOS RESULTADOS


Uma experiência, seja ela qual for, é sempre um espaço de muitos campos
no fazer, entretanto entendemos que quando estamos implicados em conhecer
com mais profundidade alguns destes campos – aqui a autoria dos estudantes
no processo de aprendizagem – podemos nos apropriar de alguns processos
como forma de determos o olhar numa perspectiva da atenção, como explicita
Cláudia Freitas:
Como algo que se constrói durante, no processo, desde um elemento
desinterrupção, de hiato. Este elemento seria o problema, o elemento
que rouba a cena, que incita a pesquisa, que exige pesquisa, que monta
a possibilidade de invenção de outras perspectivas (2011, p. 34).

Na pesquisa recorremos a alguns processos como forma de traçarmos


explicações na experiência com os estudantes. Colocamos em prática ações
inventivas com imagens fotográficas sobre o aprender na escola. Com. isso,
nas análises das conversações no percurso das oficinas, dirigimos o olhar para
processos cognitivos: aprendizagem e autoria dos estudantes.
Faremos em seguida uma representação em Tabela, como forma de
melhor visualizarmos os processos apropriados nas coordenações de ações durante
as oficinas com imagens fotográficas. Por não se tratar de processos estáticos,
entretanto, a organização no texto desta Tabela aparece na tentativa de favore-
cer as compreensões daquilo que emerge como produções de sentidos da escola
pelos estudantes.

289
Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

Tabela 1 – Processos de aprendizagem e exercício de autoria na escola


Percurso Fotográfico
Processos de aprendizagem e exercício de autoria na escola.

Início do percurso Transformações no percurso


– Medo – temos no início da – Confiança – Valorização das produções,
Coordenação pesquisa um estranhamento vontade de fazer, o campo das oficinas
de com o fato de serem observados como transformação das relações afetivas e
no próprio fazer. das circunstâncias de produção inventiva do
Emoções
– Inadequação – Busca de conhecimento.
adaptação em relação a um – Aceitação do modo particular de perceber
modelo ideal de estudante. as coisas, a si mesmos, a escola.
– A aprendizagem entendida – A aprendizagem percebida como processo,
como captação de um mundo. acontecendo na experiência.
– Estudante se vê como alguém
que recebe passivamente as – Preferência pelas práticas e situações que
informações vindas de fora. favorecem o exercício da autonomia.
Ideias/entendi-
mentos – Fechamento – isolamento no – Aberturas – Produções dos sujeitos
individualismo e nas estratégias fazendo sentido no coletivo.
de competição que envolvem a – Imagens, fotografias e falas são reconhe-
educação. cidas pelo coletivo de estudantes na escola.
– Relação utilitária e substan- – Acoplamento tecnológico – estudantes –
cialista dos objetos fotográficos: objetos técnicos fotográficos: extrapola no
apropriação dos recursos técni- fazer inventivo com imagens.
cos como uso. – Sujeito autor/inventor: os estudantes
experimentam uma condição de autoria na
produção com os objetos técnicos.
Fonte: Autoria própria.

Assim, as observações expostas não ocorreram fragmentadas por etapa


da experiência (antes/durante/depois). Esta escolha refere-se à intenção de
darmos ênfase às recorrências nos processos investigados e às transformações que
podemos distinguir em ações recursivas, por exemplo, nos encontros para falar
diante de imagens produzidas. Vale destacar ainda que as formas de coordenar
estas ações não estão articulados com uma intenção em assegurar transformações
no modo de viver a aprendizagem na escola, mas nas possibilidades de transfor-
mações no encontro dos estudantes consigo mesmos e com as circunstâncias do
viver na escola, no próprio fazer das oficinas.

290
ESPAÇOS DE AUTORIA E LEGITIMAÇÃO DOS ESTUDANTES NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao término do estudo, situamos algumas considerações desta pesquisa-
-intervenção a partir das transformações dos sujeitos participantes, considerando
um pesquisador que, durante todo o processo do trabalho, foi experimentando
transformações, significando seu fazer e, com isso, inventando outros percursos
na pesquisa com os sujeitos pesquisados.
Percebemos o refazer-se no processo de conhecimento quando os estudan-
tes conversavam sobre os modos de aprender na escola por meio da fotografia. A
aprendizagem, antes entendida como uma captação de um mundo, como alguém
que recebe passivamente as informações vindas de fora, passa a ser percebida
como um processo, acontecendo na experiência. E aqui constatamos a preferência
dos estudantes pelas práticas que favorecem o exercício da autonomia.
O exercício de autoria com imagens fotográficas, a partir das explicações
que se faziam na linguagem, oportunizou desdobramentos para uma aprendiza-
gem na escola tecida na legitimação dos sujeitos. Durante o percurso fotográfico,
os estudantes foram produzindo e inventando territórios escolares com sentidos
para o aprender, objetos técnicos digitais, configuram na produção deles outros
territórios para atuarem.
No decorrer da pesquisa percebemos o prazer dos estudantes nas ativida-
des em que podem se colocar como autores no processo de conhecer, ao mesmo
tempo que apontam desejos de interagir com as tecnologias digitais. Tal circuns-
tância leva-nos a pensar em novos formatos para o aprender na escola, em que
as tecnologias sejam pensadas numa condição de autoria, como articuladoras de
uma educação conectada com o viver dos sujeitos.

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291
Kézia Viana Gonçalves – Karla Rosane do Amaral D emoly

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FREITAS, C. R. Corpos que não param: criança, TDAH e escola. 2011. Tese
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York: Springer Verlag, 2003.

292
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO
ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS
Remerson Russel Martins

A entrada na universidade é um importante ponto de mudança na vida


do estudante. Novos desafios lhe são apresentados, demandando competências
que vão além da dimensão cognitiva. A mudança do Ensino Médio para a uni-
versidade exige do estudante o uso de novas habilidades relacionadas ao estudo
e aprendizagem, à interação social mais madura e independente, ao desenvol-
vimento pessoal e vocacional de um senso de autoconceito, autoestima e iden-
tidade profissional (Santos; Noronha; Amaro, 2005). O estudante, no entanto,
pode encarar esses desafios sem a devida preparação.
Galvão, Câmara e Jordão (2012) afirmam que os estudantes entram na
universidade com hábitos de estudo e concepções sobre a aprendizagem que são
muitas vezes inadequados ao Ensino Superior. Estudantes que entram na uni-
versidade perpetuando uma estratégia de aprendizagem focada na memorização
de conteúdo, repetição mecânica de conceitos e no descarte do que foi estudado
após as avaliações, encontrará crescente dificuldade em manter-se motivado e
abarcar o conteúdo de todas as suas disciplinas.
Por sua vez, Gomes e Soares (2013) encontraram em uma amostra de
196 estudantes universitários uma correlação positiva entre habilidades sociais e
desempenho acadêmico. Diversas atividades no contexto acadêmico demandam
de o estudante interagir socialmente com outras pessoas, quer sejam seus colegas
de sala durante um seminário, a comunidade externa por meio de uma ação de
extensão ou na realização de uma entrevista na coleta de dados para uma pesqui-
sa. A capacidade do estudante em estabelecer relacionamentos interpessoais con-
tribui em parte para que este se sinta motivado e satisfeito com suas realizações.
Além deste ponto, uma maior quantidade de vínculos sociais também contribui
para a formação de uma rede de apoio social para o aluno. Este conseguirá mais
oportunidades de ajuda e suporte social na medida em que estabeleça vínculos

293
Remerson Russel Martin

mais fortes e estreitos. Nesta direção, Bolsoni-Silva et al. (2016) expressam que
um repertório de habilidades sociais deficiente foi preditor de depressão em uma
amostra de 128 universitários.
Em outra direção, pode-se observar uma correlação positiva entre apoio
social e o autoconceito do estudante (Matias; Martinelli, 2017), elemento este
que se opõe à depressão. Aspectos como autoconceito, autoeficácia, autoestima,
além da própria formação da identidade profissional, contribuem para melhores
níveis de saúde mental. O ambiente acadêmico, no entanto, é um espaço rico
em situações estressoras que podem contribuir para o sofrimento psíquico e
adoecimento mental do estudante (Lima et al., 2016). Cabe então perguntar-
-se como o estudante universitário reage a situações estressoras ou adversas na
universidade, desde os momentos iniciais de adaptação nos primeiros períodos,
passando pelo seu envolvimento em atividades extraclasse, como pesquisa, exten-
são e eventos acadêmicos, até a sua saída da faculdade. Dentro desse cenário,
este texto busca discutir as reações do estudante universitário diante de situações
adversas e estressoras vivenciadas no ambiente acadêmico.

ESTRESSE NA UNIVERSIDADE
O estresse pode ser definido como “um processo pelo qual a pessoa
percebe e responde a eventos que considera desafiadores ou ameaçadores”
(Straub, 2014, p. 84). Essa definição ressalta dois pontos importantes. Primeiro,
o papel da percepção ou da avaliação cognitiva acerca dos eventos vivenciados
pelo sujeito. Este ponto está em acordo com o modelo transacional do estresse
proposto por Lazarus e Folkman (1984). Neste modelo o estresse não pode ser
entendido apenas como uma relação entre o evento estressor e a resposta estres-
sora do sujeito. Intermediando esta relação há a avaliação cognitiva do sujeito
sobre como ele percebe tanto o evento quanto suas habilidades para lidar com
ele.
Assim, a percepção de um evento é seguida de uma avaliação primária,
que irá caracterizá-lo como irrelevante, positivo ou ameaçador/desafiador. Esta
avaliação primária do evento é seguida de outra, secundária, acerca das habili-
dades e opções de enfrentamento que o sujeito dispõe para lidar com o mesmo.
Desse modo, a percepção de um evento como irrelevante ou positivo para a vida

294
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

do sujeito não irá desencadear nenhuma reação de estresse. Do mesmo modo,


ainda que ele compreenda um evento como ameaçador, mas perceba que possui
recursos pessoais ou apoio social para lidar com este evento, não irá vivenciar
reações de estresse. Quando, porém, o sujeito percebe um evento desafiador ou
ameaçador, que lhe demanda recursos além do que ele pode empregar, então
ocorre o início do estresse. Há ainda uma outra etapa avaliativa neste processo,
a reavaliação dos recursos empregados. Enquanto o sujeito lida com o evento ele
acompanha continuamente o sucesso ou fracasso dos recursos utilizados.
Assim, diante de um professor que marca a apresentação de um seminá-
rio para a semana seguinte, o estudante pode avaliar este seminário como algo
irrelevante para ele, algo positivo que o ajudará ou como algo ameaçador. Ao
mesmo tempo, o estudante avalia a si mesmo – Serei capaz de me sair bem nesta
atividade? Dará tempo de estudar até próxima semana? Conseguirei falar para a turma
toda? A percepção do seminário como algo problemático, que está além ou no
limite de suas habilidades desencadeia o estresse no estudante. Com o passar dos
dias, enquanto ele emprega as estratégias escolhidas para lidar com esse semi-
nário – estudar em grupo, ensaiar suas falas, etc. – ele reavalia seu desempenho
nessas ações – O estudo em grupo está me ajudando? Estou melhorando a cada ensaio?
Essa reavaliação contínua colabora para que as duas primeiras etapas cognitivas
sejam reavaliadas também. Conforme ele perceba seu sucesso em lidar com o
seminário, este pode ir deixando de ser entendido como uma ameaça, além da
autoavaliação de suas habilidades pode ir melhorando e a reação de estresse ir
cedendo, porém o contrário também é válido.
A percepção de fracasso nas estratégias adotadas – Quanto mais estudo
e ensaio, mais confuso fico! – contribui para uma avaliação mais e mais negati-
va acerca do seminário e de sua capacidade de sobreviver a ele, acentuando
cada vez mais a reação de estresse. Nesta circunstância, a própria percepção do
estresse acentuando-se entra como um quarto elemento cognitivo que contribui
para diminuir a competência do estudante – Quanto mais estudo e ensaio, mais
confuso e estressado fico! Quanto mais estressado fico, mais difícil é estudar e ensaiar para
este bendito seminário! A avaliação cognitiva que o estudante faz, nestes termos,
origina uma espiral descendente de estresse.

295
Remerson Russel Martin

O segundo ponto da definição de Straub (2014) sobre o estresse refere-


-se ao evento que o desencadeia – o estressor. Este pode ser um desafio ou
uma ameaça, o que significa dizer que enquanto desafio o evento estressor não
se remete necessariamente à vivência de algum problema ou dificuldade do
estudante, mas pode ser encarado como uma chance de crescimento. Oportu-
nidades novas, buscadas ativamente pelo aluno, tais como a apresentação de
trabalhos em congressos, atendimento à comunidade em uma ação de extensão
ou mesmo a análise dos dados de um projeto de pesquisa, são percebidas como
momentos importantes de aprendizagem, pontos nodais de seu crescimento
pessoal, acadêmico e profissional. A importância atribuída a estas atividades
e a necessidade de domínio de novos conhecimentos e habilidades tornam
estes momentos da vida acadêmica desafios a serem superados. Esta separação,
contudo, entre desafio ou ameaça, é tênue. De um lado o estudante tem a cons-
ciência de que não tem todas as habilidades necessárias, mas encontra-se em um
contexto favorável em que poderá aprender – Estou diante de um desafio! – De
outro lado, diante da consciência de que ele tem limitações e encontra-se em
um contexto de desamparo, desfavorável à aprendizagem – Onde fui me meter? –
então o professor tem um papel importante para o modo como o estudante irá
encarar estas situações.
A presença do professor como figura capaz de acolher e guiar o estudante
favorece a percepção de que ele se encontra em um ambiente de aprendizagem,
em que suas limitações serão progressivamente superadas. De modo contrário,
Rios e Schraiber (2011) discorrem sobre professores onipotentes e professores
que anulam seus alunos. Estes autores trazem o relato de um estudante que
interpreta esta situação como “Eu acho que é assim porque a maior parte dos professores
não está compromissada de verdade em fazer os alunos aprenderem” (p.46).
Nesse sentido, a figura do professor pode contribuir para o ambiente
universitário ser visto pelo estudante como um espaço desafiador ou como um
local ameaçador. Ambas as circunstâncias serão caracterizadas como estressoras,
porém uma diferença importante é que o estresse vivenciado pela situação desa-
fiadora traz a possibilidade de crescimento. Esta possibilidade de crescimento
funciona como reforçador positivo, como ganho ao final da jornada, a superação
de cada situação estressora é seguida pela consciência de que algo de importante
foi aprendido, enquanto que o estudante que vivencia situações ameaçadoras

296
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

busca apenas sua sobrevivência. Superar a situação estressora funciona como


reforçador negativo: o ganho vivenciado foi apenas o de se livrar de um proble-
ma ou de reduzir seus danos, sem a consciência de que algo de importante foi
conquistado ou aprendido.
Desse modo, situações estressoras poderão ser encaradas como amea-
çadoras ou desafiadoras, dependendo da forma como são percebidas e de suas
consequências para a vida do sujeito. Experienciar uma situação que trará como
consequência o ganho ou a perda de algo para o sujeito, opondo-se à continui-
dade de sua vida como antes, é a vivência de uma situação adversa. Situações
adversas são eventos traumáticos ou estressores, do ponto de vista físico ou psi-
cológico, que trazem importantes mudanças na vida do sujeito (Carver, 1998).

RESPOSTAS À ADVERSIDADE NA UNIVERSIDADE


Os eventos do cotidiano acadêmico serão estressores ou não, dependen-
do de como o estudante interpreta cognitivamente estes eventos, dos recursos
disponíveis e das consequências para sua vida. E mesmo quando uma situação é
desencadeadora de estresse no aluno, a vivência dessa situação e de tudo o que
ela traz consigo tem desfechos bem diferentes. Assim, destaca-se pelo menos
quatro possíveis respostas do sujeito diante de situações adversas (Carver, 1998):
1) O sujeito piora progressivamente até seu fim.
2) O sujeito sobrevive, mas com sequelas e limitações em sua vida.
3) O sujeito retorna a sua vida nos mesmos termos de antes da adversidade.
4) O sujeito retorna a sua vida, mas apresentando qualidades e características
que o deixam mais forte do que antes.
Considerando a universidade como um ambiente estressor e adotando o
modelo de Carver (1998) para entender as reações do estudante a esse ambiente
adverso, pode-se lançar luz a alguns pontos. A piora progressiva do sujeito até
o seu fim pode ser entendido como o fim da vida acadêmica e neste sentido
Polydoro et al. (2005) destacam o papel do estresse percebido como um dos
elementos da evasão universitária. A evasão no Ensino Superior é um problema
multidimensional, abarcando aspectos relacionados ao estudante, à universidade
e a fatores externos. Entre os fatores relacionados ao estudante deve-se ressaltar
a avaliação cognitiva que este realiza acerca de sua própria vida universitária.

297
Remerson Russel Martin

O estudante reflete sobre o que a universidade lhe oferece e o que ela


lhe exige, sobre seu próprio rendimento em aproveitar o que é oferecido e seus
recursos em atender ao que é exigido, mas também sobre como seu percurso na
universidade até agora irá repercutir no seu futuro profissional e pessoal. O que
fazer então quando o estudante avalia que a universidade lhe oferece de menos
e exige demais? Ou quando ele entende que não será capaz de atender ao que os
professores esperam dele? E que todo o esforço empregado não se reverterá em
ganhos futuros? Quando o aluno compreende sua própria situação nestes termos
a evasão do Ensino Superior deixa de ser sinal de fracasso diante da adversidade.
É nessa perspectiva que Polydoro et al. (2005, p. 184) destacam a necessidade de
[…] dar voz ao estudante que, muitas vezes, percebe a evasão como um
recurso para atingir seu objetivo profissional e pessoal, o que direciona a
compreensão da evasão não como fracasso ou desperdício, mas como um
investimento na tentativa do estudante encontrar-se como participante
ativo de sua formação.

Experienciar situações adversas de tal forma que o balanço entre os custos


da vida universitária e seus benefícios não compensa para o estudante colabora
para o fim dessa vida. A evasão do estudante universitário é vista assim como
uma escolha deliberada, refletida, fruto do raciocínio acerca de sua própria situação.
Dentro do modelo de Lazarus e Folkman (1984), pode-se afirmar que a avaliação
primária do estudante aponta para a vivência de situações adversas, enquanto
que a sua avaliação secundária lhe mostra a ausência de recursos para lidar com
essas situações e manter-se na universidade, não se apresentando outra estratégia
de enfrentamento além da evasão em si.
A piora progressiva do estudante até o fim também pode ser entendida
como o fim da vida propriamente. Santa e Cantilino (2016) destacam que o
Brasil está entre os dez países com maiores taxas de suicídio. O suicídio é um
evento multicausal, influenciado por vários fatores, incluindo a ocorrência de
transtornos mentais, principalmente depressão – um dos transtornos mais pre-
valentes na universidade (Bolsoni-Silva et al., 2016), abuso de álcool e outras
drogas, problemas interpessoais e eventos estressores (Dutra, 2012; Franco et
al., 2017; Santa; Cantilino, 2016). Além disso, a passagem pela universidade
muitas vezes ocorre em paralelo a um momento de mudança importante na vida
do estudante, a passagem da adolescência para o início da vida adulta.

298
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

Essa mudança é importante pois “Deixar a família e entrar num ambien-


te não familiar com altos padrões acadêmicos pode causar depressão ou altos
níveis de angústia” (Dutra, 2012, p. 929), precipitando problemas mentais e de
adaptação. Lima et al. (2016) relacionam explicitamente o estresse no ambiente
universitário e o suicídio entre estudantes de Medicina. Enquanto que no Brasil
faltam dados precisos acerca do número de ocorrências de suicídios nas universi-
dades, há relatos de ideação suicida entre amostras de universitários pelo mundo
variando entre 14% e 23% (Franco et al., 2017, Santa; Cantilino, 2016). Situa-
ções adversas podem contribuir para o suicídio entre estudantes de forma direta
por meio da vivência de problemas ou eventos estressores que provocam reações
de extremo desespero e desesperança. Ou de forma indireta, quando situações
adversas auxiliam no desencadear de transtornos mentais ou de dependência
química. Estes problemas de saúde mental, por sua vez, favorecem o agravamen-
to de outros conflitos, diminuindo a eficácia das estratégias de enfrentamento
empregadas pelo estudante e aumentando suas dificuldades. Como em uma
grande bola de neve de problemas, cada situação adversa vivenciada pelo estu-
dante vai se somando em uma progressão geométrica de angústias e desespero.
A vivência da universidade como ambiente estressor, entretanto, também
pode levar à “sobrevivência” do estudante, permitindo que este conclua seu
curso, mas guarde algumas “sequelas”. Para compreender esta situação é neces-
sário introduzir os conceitos de homeostase, alostase e carga alostática.
Entre o evento estressor e a resposta ao estresse alguns teóricos propuse-
ram diferentes princípios acerca de como esta resposta será modulada. O conceito
mais tradicional nesse sentido é o termo homeostase, que remete às primeiras
décadas do século passado e fala sobre a tentativa do organismo em manter suas
condições basais de funcionamento (Sousa et al., 2015). Na década de 80, porém,
Peter Sterling destacava que o objetivo das respostas ao estresse não é manter o
equilíbrio interno do organismo como previa o conceito de homeostase, mas sim
garantir continuamente o ajuste do organismo às demandas do meio, mesmo
que este tenha de trabalhar em condições limites (Sterling, 2012).
Assim, ele introduz na discussão o conceito de alostase para se referir ao
processo antecipatório e autorregulatório de adaptação eficiente do organismo
às necessidades do meio. Posteriormente McEwen, na década de 90, vem a
complementar este conceito destacando que quando o meio ambiente impõe

299
Remerson Russel Martin

desafios físicos e/ou sociais de forma imprevisível ou contínua, indo além dos
limites habituais de intensidade, previsibilidade e duração, o organismo passa a
trabalhar em níveis fisiológicos, psicológicos e comportamentais mais elevados
(McEwen, 1998). Dessa forma pode-se afirmar que

quando um indivíduo encontra-se numa potencial ou real situação


desafiadora, previsível ou não, o hipotálamo, região basal do diencéfa-
lo, constituído por diferentes núcleos de controle visceral e hormonal,
ativa imediatamente dois dos principais sistemas de regulação alostáti-
ca: a divisão simpática do sistema nervoso autônomo (SNAs) e o eixo
hipotálamo-pituitária-adrenal (HPA). Ambos desencadeiam alterações
fisiológicas e comportamentais provendo meios para o indivíduo superar
o desafio (Sousa et al., 2005, p. 5).

Por sua vez, o SNA e o eixo HPA contribuem na modulação do sistema


imunológico (SI). A articulação destes três sistemas permite a regulação alostá-
tica do indivíduo ao seu ambiente.
Assim, o estudante não apenas vivencia de forma passiva as circunstâncias
estressoras da universidade, ele busca adaptar-se a elas, prevendo e ajustando-
-se às demandas já esperadas – a última semana de avaliação do semestre, por
exemplo – e às inesperadas também – provas surpresas, imprevistos na coleta de
dados de uma pesquisa ou na execução de uma ação de extensão. Essa adaptação
pode levá-lo a diminuir suas horas de sono, maior consumo de café e bebidas
energéticas, recorrer a estratégias de estudo mais mecânicas e superficiais e até
mesmo ao abandono de uma prova em favor de outra. Nessa situação, o estudan-
te se dispõe a “funcionar” em um ritmo mais acelerado, compatível com as neces-
sidades do momento, buscando o melhor resultado possível naquele semestre.
A manutenção da regulação alostática, porém, implica um custo ener-
gético para o organismo – carga alostática – quando este custo excede certos
limites – sobrecarga alostática, predispõe-se ao desenvolvimento de patologias
físicas e mentais (McEwen, 1998). Straub (2014) afirma que apenas a carga
alostática já é suficiente para

300
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

(…) redução na imunidade, níveis elevados de adrenalina, aumento na


gordura abdominal, menor tamanho e funcionamento do hipocampo
(levando a distúrbios no raciocínio e na memória) e superprodução de
interleucina-6 e outras citocinas proinflamatórias (p. 84-85).

Entre as patologias físicas, McEwen (1998) ressalta que as alterações no


funcionamento dos sistemas SNA, SI e eixo HPA contribuem para o aparecimen-
to de hipertensão, risco aumentado de acidente vascular encefálico, infarto agudo
do miocárdio, diabetes, doenças autoimunes, arteriosclerose e morte de células
nervosas. Dessa maneira, diante do conceito de carga alostática, a ideia de Carver
(1998) de que o sujeito pode sobreviver a uma adversidade, mas permanecer com
sequelas ganha mais clareza. O estudante busca adaptar-se às exigências da uni-
versidade, ele acelera seu ritmo de estudo, de trabalho, diminuindo suas horas de
sono, comendo enquanto caminha de um setor de aulas para outro. Ele faz isso
procurando o melhor resultado possível, o que abarca até seu futuro profissional,
mas ele não pode manter este ritmo acelerado indefinidamente sem consequ-
ências para seu corpo e mente. Ao longo dos pelo menos quatro anos de uma
Graduação, progressivamente mais exigentes, há a possibilidade de um acúmulo
cada vez mais intenso de carga alostática no estudante. Isso reflete-se em maior
facilidade em adoecer (Cohen et al., 2012; Esler, 2017), menor rendimento aca-
dêmico (Lima et al., 2016) e maior sofrimento psíquico (Padovani et al., 2014).
Neste cenário, tem-se um estudante que é continuamente mais exigido, mas que
inversamente mostra-se progressivamente menos capaz de responder ao que se
espera dele, o que resulta em perdas em sua saúde física e mental.
Por outro lado, há o estudante que consegue superar as situações adver-
sas, preservando sua saúde. O conceito de homeostase apresentado anteriormente
remete à tendência do organismo de manter constantes e equilibrados os estados
internos, regulando a química corporal em torno de um ponto fixo (Straub,
2014). Este conceito é útil para entender alguns mecanismos fisiológicos por
trás do estresse, mas também de modo figurado para compreender o percurso
de sujeitos que passam por situações adversas, preservando sua vida nos mesmos
termos.
No processo de homeostase, o eixo hipotálamo-hipófise-adrenal recebe
um input de informação do Sistema Nervoso Central (SNC), fazendo com que o
hipotálamo secrete o hormônio liberador de corticotropina (CRH). Este hormô-

301
Remerson Russel Martin

nio sinaliza para que a hipófise libere o hormônio adrenocorticotrófico (ACTH),


que por sua vez estimula a produção de corticosteroides pelo córtex adrenal
(Straub, 2014). Os corticosteroides ajudam no combate a inflamações, mobili-
zando recursos energéticos, promovendo a cura e contribuindo para que o orga-
nismo volte ao seu funcionamento normal de forma homeostática. Quando este
processo consegue se completar e o estressor – normalmente de curta duração ou
de intensidade de fraca a moderada – o organismo não apresenta perdas como
as descritas na carga alostática ou mesmo a necessidade de mobilizar recursos
extra como na alostase. De maneira semelhante é o estudante que relata diversas
situações estressoras durante a faculdade, mas que conseguiu passar por elas sem
abalos ou sequelas maiores. Mesmo momentos de maior estresse – um fim de
semestre em particular ou o período do Trabalho de Conclusão de Curso – foram
contrabalanceados por outros momentos de maior tranquilidade – a semana
após as provas ou mesmo o momento de férias – permitindo que o estudante
recupere o “fôlego”, restabeleça suas forças e volte ao seu nível “normal” de
funcionamento emocional e comportamental.
Até este ponto do texto discorreu-se sobre o estudante que não consegue
“sobreviver” à universidade, acerca daquele que passa por eventos adversos no
meio acadêmico, levando consigo sequelas, e a respeito do estudante que passa
pela universidade, experimenta situações estressoras, mas não é marcado por
elas. Há, porém, ainda uma quarta possibilidade de reação do sujeito diante
da adversidade. A possibilidade de o sujeito crescer e desenvolver qualidades
diante desse tipo de situação. Carver (1998) chama isso de thriving – que pode
ser entendido como prosperar diante da adversidade.
Carver (1998) apresenta pelos menos duas explicações diferentes para
entender este processo. A repetição de um evento intensamente estressor pode
levar à dessensibilização do sujeito como em um processo de imunização psi-
cológica. De modo semelhante, uma primeira contaminação com a catapora
protege o organismo contra esta doença, a dessensibilização do sujeito diante da
adversidade lhe confere resistência também. O evento estressor teria cada vez
menos força para desencadear a resposta de estresse no sujeito, permitindo que
este torne-se imune – ou parcialmente imune – a este tipo de problema. Um
aluno de um período mais adiantado mostra menos espanto com a quantidade
de matéria a estudar do que um calouro. A capacidade de alguns alunos irem

302
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

se habituando às exigências da universidade permite que eventos anteriormente


vistos como estressores passem a ser encarados como corriqueiros. Até mesmo
uma segunda ou terceira nota baixa nas disciplinas podem passar a ser vistas
como um problema menor, ou pelo menos não mais como o “fim do mundo”,
na medida em que o aluno vai se dessensibilizando para esses eventos e tendo
respostas emocionais e comportamentais cada vez menos extremas.
Uma segunda possibilidade explicativa remete à diminuição do tempo de
duração da resposta ao estressor. O tempo que o sujeito leva para se recuperar
diante de uma situação adversa vai progressivamente decaindo, revelando um
aprimoramento no seu potencial de recuperação. O evento estressor continuaria
sendo percebido como tal, mantendo a capacidade de afetar fortemente o sujeito,
mas este restabeleceria a homeostase do seu organismo mais rapidamente.
Após alguns “fracassos” o estudante desenvolveria estratégias melho-
res para administrar os problemas vivenciados na universidade. Por exemplo,
este seria o caso do estudante que, constatando a inadequação das estratégias
de estudo trazidas do Ensino Médio, procura e “descobre” técnicas e métodos
de estudo que o ajudam mais em seu momento atual. Os fracassos anteriores
– notas baixas ou reprovações nos primeiros semestres – o impulsionaram a
procurar e a aprender algo que desconhecia antes, ampliando seu repertório
cognitivo e comportamental. Segundo Galvão, Câmara e Jordão (2012, p. 633),
“os estudantes tendem a adaptar-se, o melhor possível, às exigências e oportu-
nidades que lhes são apresentadas». Quando esses estudantes desenvolvem um
processo de autorregulação de sua aprendizagem, identificando claramente para
si as características da matéria a ser estudada, o tipo de estratégia de estudo
empregada e o resultado obtido – tanto em termos de aprovação quanto de
compreensão e aprendizagem efetiva – eles tornam-se participantes mais ativos
de seu próprio processo de aprendizagem. Igue, Bariani e Milanesi (2008) esta-
belecem um comparativo entre alunos do primeiro ano e do quinto ano de um
curso de Psicologia afirmando:
Os resultados sugerem que cursar o primeiro ou último ano do curso
influiu nas vivências acadêmicas dos estudantes, de modo que, ao que
parece, o acúmulo de experiências percorridas pelos estudantes de 5º ano
e o conseqüente amadurecimento proporcionaram-lhes melhores hábitos
de estudo (p. 162)

303
Remerson Russel Martin

Estas duas explicações enfatizam pontos distintos. A primeira atribui


o crescimento do sujeito à mudança na forma como este vivencia o estressor.
Dentro do modelo de Lazarus e Folkman (1984), haveria crescimento no indi-
víduo ao aprimorar-se a avaliação primária dos eventos, reconceitualizando
situações antes vistas como catastróficas para uma visão mais adequada dos
problemas. Ou seja, os aspectos negativos da situação-problema vivenciada não
seriam superdimensionados, assim como os possíveis pontos positivos ou recur-
sos dessa situação também não seriam omitidos ou subestimados. A segunda
explicação foca no crescimento do sujeito como resultado da mudança na forma
de enfrentamento da adversidade.
A aprendizagem de estratégias de enfrentamento mais eficientes permite
que o evento estressor seja resolvido – estratégias focadas no problema – ou que
as reações desencadeadas pelo estressor sejam administradas – estratégias focadas
na emoção – ou ainda que uma rede de amigos e familiares seja mobilizada –
estratégias focadas no suporte social. A vivência anterior da adversidade possibi-
lita que o sujeito aprenda alternativas de enfrentamento melhores, diminuindo o
tempo de vivência do estresse. A avaliação secundária – acerca das capacidades
do sujeito em lidar com a situação-problema – além do processo de reavaliação
da solução adotada, conforme observam Lazarus e Folkman (1984), tornam-se
mais apurados. O sujeito consegue não só aprender melhores formas de lidar com
a adversidade, mas também reconhece essa melhora em si, contribuindo para que
o próprio potencial estressor da adversidade vivenciada possa ser minimizado.
Estas duas explicações iniciais de Carver (1998) focam-se em momentos dife-
rentes e não implicam exclusão mútua. Os dois processos podem ser vivenciados
e utilizados para explicar o processo de engrandecimento do sujeito diante da
adversidade. A vivência da adversidade, de situações profundamente estressoras,
pode contribuir para o crescimento do estudante ao permitir que este “desca-
tastrofize” estas situações, desenvolva melhores habilidades de enfrentamento e
aumente seu senso de autoeficácia. Carver (1998), contudo, adverte que pode ser
extremamente difícil avaliar quando a vivência de uma adversidade em particular
poderá envolver o crescimento do sujeito.
Em termos mais específicos este crescimento pode remeter-se ao ganho
que o sujeito experimenta em novas habilidades e conhecimentos, que poderão
ser utilizados em situações futuras, em um senso de maestria e de maior auto-

304
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

confiança ou no fortalecimento do vínculo com outras pessoas (Carver, 1998).


Assim, o crescimento do estudante pode ser representado tanto pelo ganho de
conhecimentos em sua área quanto pelo desenvolvimento de suas habilidades de
estudo, mas também por aumentar a autoconfiança e eficácia nas habilidades e
conhecimentos adquiridos, em sua capacidade de superar e buscar novas situa-
ções-problema – desafios – no meio acadêmico. Como argumentam Guerreiro-
-Casanova e Polydoro (2011):
Com um forte julgamento da autoeficácia na formação superior, o estu-
dante provavelmente consideraria uma tarefa complexa um desafio a ser
conquistado, e não algo a ser evitado, fato que pode contribuir para o seu
envolvimento e comprometimento na graduação (p. 62).

A postura do estudante, que apesar das situações de estresse vivenciadas


na universidade, busca novos desafios, demonstrando uma atitude proativa com
a Graduação, é compatível com a noção de um estudante que está crescendo
ao longo de sua formação. Além disso, do mesmo modo que a aquisição de
novas habilidades e conhecimentos podem contribuir para o desenvolvimento
do senso de autoconfiança e autoeficácia, estes também podem ser relacionados
ao fortalecimento dos vínculos interpessoais. Matias e Martinelli (2017, p. 27)
destacam que os estudantes com maior autoconceito, satisfação pessoal e auto-
estima também relatam maior percepção de apoio social afetivo e informacional,
além de relações sociais mais positivas. Neste caso, o crescimento do aluno não
diz respeito apenas à aquisição de conhecimentos e habilidades profissionais, mas
ao desenvolvimento de relacionamentos interpessoais mais próximos e intensos.
A vivência de situações adversas e extremamente estressoras pode favo-
recer a aproximação entre as pessoas (Carver, 1998). Aqueles estudantes que
diante desse tipo de situação se afastam ou são afastados de sua rede de apoio
social encontram menos suporte, oportunidades de obter ajuda ou trocas de
experiências, diminuindo as chances de receberem ajuda diretamente sobre a
situação adversa – estratégia de enfrentamento focada no problema – ou sobre
suas reações afetivas e comportamentais – estratégias de enfrentamento focadas
na emoção. Por outro lado, o estudante que se aproxima das pessoas a sua volta
no momento de dificuldade aumenta suas chances de receber ajuda – direta-
mente na resolução do problema ou indiretamente no suporte emocional. Esta
consequência tem um efeito reforçador sobre o comportamento de abertura

305
Remerson Russel Martin

e aproximação ao contato social, favorecendo o desenvolvimento de um novo


padrão de interação social. Coccia e Darling (2016) apontam para uma relação
significativa entre os estudantes universitários que relatam mais atividades sociais
– mesmo atividades sem vínculo com o meio acadêmico – e maior satisfação com
a vida com relatos de menores índices de estresse.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Investigar as relações do estudante com a universidade é muito impor-
tante. Há diversos aspectos que estão entremeados nesta relação: as políticas
públicas sobre a educação, o contexto político e econômico em que estudantes,
professores e a instituição universitária se inserem, aspectos mais locais relacio-
nados à história de vida e características individuais do estudante, a estrutura
do seu curso, etc. Diversos elementos contribuem para que a universidade seja
ao mesmo tempo um espaço de oportunidades, mas também de adversidades.
Em maior ou menor grau a academia será uma constante fonte de estresse ao
estudante (Coccia; Darling, 2016; Lima et al., 2016). O que irá colaborar para
que esse estresse seja visto como um desafio ou simples adversidade é sua conse-
quência sobre o estudante – seu crescimento ou sua deterioração. A partir daí há
necessidade de estudos sobre quais fatores contribuem para essas consequências.
Entender os efeitos negativos do estresse sobre a vida do estudante é
algo amplamente abordado pela literatura nacional e internacional. Seguindo,
porém, a linha proposta pela Psicologia Positiva (Seligman; Csikszentmihalyi,
2000), também há a necessidade de explorar de que forma situações adversas,
estressoras e a princípio negativas podem resultar no crescimento e amadureci-
mento deste estudante, para assim obter-se subsídios de como ajudar os alunos
que vivenciam tais situações em sua vida não apenas prevenindo os efeitos (psico)
patolólogicos, mas contribuindo para o seu fortalecimento diante da adversidade.
No que diz respeito às estratégias de estudo empregadas pelos alunos,
aqueles que orientam sua vida acadêmica pelo medo do fracasso e da reprovação
tendem a adotar métodos de estudo mais superficiais, focados na memorização
fragmentada e acúmulo de informações desordenadas (Galvão; Câmara; Jordão,
2012). Estes estudantes estão tentando administrar as situações estressoras, bus-
cando o menor prejuízo possível, mesmo que sua aprendizagem e formação no

306
ADVERSIDADES, ESTRESSE E ENFRENTAMENTO ENTRE ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS

longo prazo fiquem comprometidas. Por outro lado, aqueles que conseguem
crescer diante de todas as adversidades vivenciadas demonstram o desenvol-
vimento de habilidades importantes de aprendizagem, pois não só conseguem
superar os obstáculos, mas também se desenvolvem como sujeitos – estudante
e profissional. Assim, a necessidade de compreender como alguns estudantes
conseguem evoluir diante de situações adversas tem implicações importantes
para a sua aprendizagem.
Por último, os estudos sobre como as pessoas superam as situações de
adversidade têm mostrado um papel importante para a ideia de otimismo –
expectativas positivas sobre o futuro têm se relacionado positivamente com res-
postas mais adaptativas à adversidade, menores índices de estresse percebidos e
estratégias de enfrentamento mais eficientes (Carver; Scheier; Segerstrom, 2010).
Situações observadas pelo prisma de um otimismo realista – sem subestimar as
dificuldades, nem superestimar os recursos – têm maior potencial para gerar o
crescimento do sujeito que as vivenciam. Uma abordagem cognitiva sobre como
o estudante compreende a si mesmo, seus colegas e professores, a universidade
a sua volta, podem trazer mais luz acerca dos problemas e soluções buscados
neste terreno.

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309
OFICINANDO COM OS EXERGAMES:
Habitando Territórios ainda Pouco Explorados
Adilson Rocha Ferreira
Deise Juliana Francisco

Levando em consideração as primeiras experiências na criação de jogos


eletrônicos – realizadas exclusivamente em universidades – até os dias atuais,
podemos perceber que houve um percurso de cerca de 50 anos, tendo o processo
de popularização, consolidação e comercialização dos primeiros games, até então
desconhecidos pelo público e com uma dinâmica totalmente diferente da tele-
visão e do cinema, com os quais as pessoas estavam acostumadas àquela época.
Aos poucos, a produção de jogos eletrônicos vai deixando de lado o único
caráter acadêmico e começa a atingir cada vez mais o mercado, devido ao grande
interesse do público por essa nova mídia. A história mostra-nos que diversos
foram os tipos de jogos eletrônicos, baseados em plataformas diferenciadas.
Os consoles de videogame evoluíram, década à década, aumentando seu
poder de processamento gráfico, saindo de tons monocromáticos aos coloridos,
de 2D a 3D (Gularte, 2010). Segundo Luz (2010), as denominadas “gerações”
de videogames sempre foram consideradas uma maneira didática de separar as
máquinas e jogos por características e localizá-las cronologicamente. Desde as
primeiras experiências com jogos, a capacidade gráfica e de processamento foi o
divisor entre as gerações, separando jogos e consoles e, até mesmo, direcionando
a forma de sua publicidade.
Os videogames passaram, e ainda passam – pois esse processo é incessante
e inacabado – por evoluções e revoluções tecnológicas, desde os hardwares – con-
junto de aparatos eletrônicos, peças e equipamentos do produto que necessita
de processamento computacional – e softwares – parte lógica do dispositivo, a
qual possibilita a manipulação e direcionamento das atividades (Velloso, 2014).

311
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

Uma das mais radicais mudanças refere-se ao fato de como interagimos


com o jogo. Os primeiros controladores – joysticks – eram básicos, possuindo
apenas um simples botão de disparo e um padle de oito direções. Com o avanço
tecnológico, os controles foram aumentando as suas funções e, consequente-
mente, o número de botões e controladores. Com o advento da sétima geração
de jogos, entretanto, foi lançada uma nova forma de controlar as ações no jogo:
a partir de sensores, os movimentos eram captados e transferidos ao jogo para
controlar as ações lá realizadas. Surge assim uma nova categoria de jogos, os
popularmente chamados exergames (fusão de duas palavras inglesas – exercise e
games).
Dessa forma, a interação e as relações entre os seres humanos e os vide-
ogames foram se moldando até o ponto em que os próprios movimentos foram
usados para interagir com o jogo. Da mesma forma como o modo de jogar, as
relações entre seres humanos e videogames foram se modificando, produzindo,
assim, outras relações e produções de subjetividade.
O objetivo deste texto é discutir a viabilidade da introdução dos exergames
em oficinas terapêuticas, de modo a contribuir com outras formas de intervenção
e produção de subjetividade.

O FENÔMENO DO JOGO
A humanidade produz jogos desde os tempos mais remotos que temos
registrados (Coelho, 2011). O jogo, ou mesmo o ato de jogar, é tema de grandes
discussões atuais, inclusive aquelas que ainda se debruçam sobre sua história e
sua origem.
Considerado o “Pai da História”, epíteto conferido pelo orador romano
Cícero no século 1º a.C. (Heródoto, 2015), o historiador grego Heródoto foi
o responsável pela invenção da palavra história (historíaí – uma derivação do
termo histor), que significa “aquele que sabe”, aquele que conhece por meio de
“interrogações”, por “informar-se” a respeito de algo, daí “investigar”, como
expressa o verbo historéõ, do qual deriva esse substantivo. Heródoto, contudo,
foi o primeiro a criar um método histórico capaz de retratar e explicar a história
dos povos do seu tempo.

312
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

Os escritos de Heródoto não descrevem apenas as guerras travadas àquela


época, indo além do trabalho de um historiador. Sua narrativa espelha os seus
interesses pelos costumes dos povos, pela Geografia, pelas práticas religiosas, por
tudo que compõe e forma um povo, chegando a atingir o campo da Antropolo-
gia, visto que atua como um etnógrafo.
Tomaremos aqui como ponto de partida as histórias contadas por Heró-
doto, tendo suas obras denominadas Histórias. Em seu primeiro livro, Clio, Heró-
doto (2015) relata que em tempos remotos, cerca de 2.500 anos atrás, à época
em que Áthis, filho de Manes, era rei, houve uma forte escassez de alimentos em
toda a Lídia, e os lídios passaram todo esse tempo suportando a situação, sofren-
do e lutando por comida. Depois disso, a situação só se agravava e os lídios se
sentiram forçados a procurar uma solução extrema para aquela situação caótica.
Diversas ideias surgiram, umas não tão boas quanto outras.
De acordo com Heródoto, nesse momento, ocorre à imaginação uma
espécie de ritual que ocuparia os lídios: os jogos, em específico o jogo de dados
feitos de ossos (Figura 1). Assim, aproveitando a invenção, usaram-na como
remédio contra a fome e instituíram uma forma de governo: jogavam durante
um dia inteiro, para que não procurassem comida, e, no dia seguinte, interrom-
piam os jogos para se alimentar. Eles estariam tão imersos naquele jogo de dados,
num movimento produtivo, prazeroso e sedutor, que ignoravam o fato de não
ter com o que se alimentar. Em um dia comeriam, e no dia seguinte, jogariam.
Desse modo, conseguiram se manter nesse regime por 18 anos, sobrevivendo
à escassez de comida. Como, porém, o mal não cessava, o rei dividiu o reino da
Lídia ao meio e jogaram o grande jogo final: aqueles que vencessem ficariam,
em detrimento dos perdedores, que teriam de sair em busca de novas terras e
formas de sobrevivência (Heródoto, 2015).

313
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

Figura 1 – Jogos de dados de ossos feitos pelos lídios

Fonte: <https://goo.gl/vVC5NT>.

Johan Huizinga (1872-1945), professor e historiador holandês, debruçou-se


sobre um dos elementos fundamentais da cultura humana: o jogo. Para Huizinga
(2014), a vida cultural do homem emerge a partir do jogo por meio de um prin-
cípio ativo que constitui sua essência, o qual ele denomina de instinto do jogo.
A publicação do seu trabalho basilar em 1938, Homo Ludens: o jogo como elemento
da cultura, constitui-se como a primeira formulação de uma teoria social do jogo,
embora limitado pela Antropologia filosófica e histórica. A tese de Huizinga
rompeu radicalmente com as tentativas que o precederam de formalizar teorias
do jogo, as quais inventaram as atividades lúdicas nas culturas. Segundo o autor:
Há uma extraordinária divergência entre as numerosas tentativas de
definição biológica do jogo. Umas definem as origens e o fundamento
do jogo em termos de descarga de energia vital superabundante, outras,
como satisfação de certos “instintos de imitação”, ou ainda, simplesmente
como uma “necessidade” de distensão. Segundo uma teoria, o jogo cons-
titui uma preparação do jovem para as tarefas sérias que mais tarde a vida
exigirá; segundo outra, trata-se de um exercício de autocontrole indis-
pensável ao indivíduo. Outras veem o princípio do jogo como o impulso
inato para exercer uma certa faculdade, ou como o desejo de dominar
ou competir. Teorias há, ainda, que o consideram uma “ab-reação”, um
escape para impulsos prejudiciais, um restaurador de energia despendida
por uma atividade unilateral, ou “realização do desejo” ou uma ficção
destinada a preservar o sentimento do valor pessoal (2014, p. 4).

314
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

Com isso, podemos perceber que já existiam algumas teorias que ten-
tavam explicar o fenômeno do jogo, mas que não eram suficientes, haja vista
a amplitude do tema, de forma que cada autor tentou defini-lo a partir de sua
perspectiva particular e singular. Desse modo, não se tratava de pensar o jogo
como uma manifestação da cultura, e sim de afirmar o caráter lúdico da própria
cultura, afinal, para o autor, a cultura é estabelecida a partir das formas de jogo,
devido ao fato de os aspectos lúdicos se manifestarem na cultura (Telles, 2015).
Huizinga (2014) vai ao extremo ao considerar que, na verdade, o jogo é mais
antigo que a própria cultura, levando em consideração que esta pressupõe a
sociedade humana, pois, segundo ele:
Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os
cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-
-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-
-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e
gestos. Respeitam a regra que os proíbe morderem, ou pelo menos com
violência, a orelha do próximo. Fingem ficar zangados e, o que é mais
importante, eles, em tudo isto, experimentam evidentemente imenso
prazer e divertimento. Essas brincadeiras dos cachorrinhos constituem
apenas uma das formas mais simples de jogo entre os animais (Huizinga,
2014, p. 3).

Sendo assim, percebemos alguns elementos presentes no ato de jogar,


como as suas regras, a representação, o prazer e a diversão (Nakamura, 2015).
O jogo está cada vez mais presente no cotidiano. Dessa forma, cabe salientar
que a discussão sobre “o que é jogo” é amplamente estudada porque o jogo é
um elemento da cultura, parte de nós, agente de nossas funções, desde as mais
básicas às complexas, indo muito além do sentido da brincadeira.
Na visão de Huizinga (2014), “jogo” é uma palavra polissêmica, a qual
abrange diversos significados em todas as culturas do mundo, indo do sentido
lúdico ao laboral, passando por um sentido erótico e até um sentido de luta ou
conflito. Dessa forma, ele o define:
Devemos aqui tomar como ponto de partida a noção de jogo em sua
forma familiar, isto é, tal como é expressa pelas palavras mais comuns
na maior parte das línguas europeias modernas, com algumas variantes.
Parece-nos que essa noção pode ser razoavelmente bem definida nos
seguintes termos: o jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exer-

315
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

cida dentro de certos e determinados limites de tempo e espaço, segundo


regras livremente consentidas, mas absolutamente obrigatórias, dotado
de um fim em si mesmo, acompanhado de um sentimento de tensão e de
alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida cotidiana”. Assim
definida, a noção parece capaz de abranger tudo aquilo a que chama-
mos “jogo” entre os animais, as crianças e os adultos: jogos de força e
de destreza, jogos de sorte, de adivinhação, exibições de todo o gênero.
Pareceu-nos que a categoria jogo fosse suscetível de ser considerada um
dos elementos espirituais básicos da vida (Huizinga, 2014, p. 33-34).

Com essa abordagem, tem-se o jogo como uma atividade regulada,


voluntária, distinta do trabalho e, a partir dele, busca-se a possibilidade de trans-
formação da realidade em que o jogador se encontra, fugindo da confusão da vida
e da imperfeição do mundo para uma perfeição temporária e limitada, levando-o
a uma reflexão sobre a prática do jogo (Huizinga, 2014). A partir desse conceito
vemos muita semelhança com a história de Heródoto anteriormente relatada:
para fugir da escassez de comida e das tribulações decorrentes dela, os lídios
recorreram ao jogo como uma forma de “remédio” para aquela situação.
Jogar implica ir em busca de “algo que está em jogo”, que transcende
a finalidade fisiológica e biológica, o seu sentido, determinando, assim, a sua
carga múltipla e intensa de significados. “Mas reconhecer o jogo é, forçosamen-
te, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja qual for sua essência, não é material.
Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os limites da realidade física” (Huizinga,
2014, p. 6).
A busca pela compreensão de como o jogo afeta as relações dos seres
humanos remete-nos à noção em que o autor apresenta o “círculo mágico”, cons-
tatando que quando se está imerso em algum jogo, adentra-se nesse círculo e se
deixa para trás os problemas, aflições e preocupações do cotidiano, mergulhando
e imergindo cada vez mais em um universo de diversão.

O caráter especial e excepcional de um jogo é ilustrado de maneira


flagrante pelo ar de mistério em que frequentemente se envolve. (...)
Dentro do círculo mágico, as leis e costumes da vida cotidiana perdem
validade. Somos diferentes e fazemos coisas diferentes (2014, p. 15).

316
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

Embora seja um ambiente diferente do cotidiano, o que foi vivido dentro


do círculo mágico represente algo para aqueles que lá estiveram: envolve expe-
riências e significados a partir da interação com o jogo, carregando consigo
para fora do círculo mágico um dos inúmeros espaços da sua vida. Quando o
indivíduo entra no círculo mágico e interage com o que há lá dentro em termos
de diversão, desafios, tarefas, imaginação, criatividade, etc., ele carrega de volta
uma rica bagagem de vivências consigo. Na Figura 2 foi feita uma representação
gráfica de forma didática do círculo mágico.

Figura 2 – Representação gráfica do círculo mágico

Fonte: Elaborado pelos autores a partir dos conceitos de Huizinga (2014).

O entendimento da ideia do círculo mágico do jogo oferece-nos uma


visão de como o jogo pode ser associado em diversos contextos da sociedade: seja
no trabalho, na educação, na saúde, ou em qualquer outro espaço, o jogo trará
contribuições no processo das vivências, relacionando o universo lúdico com a
vida cotidiana. Mais do que um lugar de entretenimento, o círculo mágico pode
ser entendido como espaço propício de aprendizado, utilizando-se das experiên-
cias vividas no mundo da diversão de forma didático-pedagógica.

OFICINAS TERAPÊUTICAS
A fim de instituir ações para apoiar a busca pela autonomia dos usuários
dos serviços, com a Portaria GM nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, surgem as
oficinas terapêuticas, constituindo a principal forma de tratamento oferecido no
CAPS (Brasil, 2002). Essas oficinas são atividades desenvolvidas em grupos com
a presença e orientação de profissionais que têm vários objetivos, ou seja, oficinas

317
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

de alfabetização, geradoras de renda ou expressivas. Entre elas podemos destacar


o desenvolvimento das habilidades corporais por meio de oficinas terapêuticas
de expressão corporal (Brasil, 2004), destacando o que aqui denominamos como
uma reabilitação de corpo inteiro.
No paradigma da reabilitação psicossocial, a atenção deixa de ser posta
sobre a doença como objeto abstrato e natural, passando a ser focalizado o sujeito
da experiência da doença (Amarante, 2007). Com isso, as oficinas passam a se
constituir como instrumentos de enriquecimento dos sujeitos, de valorização
de suas potencialidades e subjetividades, de descobertas a partir de outras expe-
riências, ampliando as possibilidades coletivas e individuais de relacionamento
com o mundo.
Nos novos dispositivos da rede de atenção, a ênfase na particularida-
de de cada caso, o trabalho multiprofissional, a escuta e o respeito ao
louco e a invenção de novas estratégias de intervenção sobre o campo
social e clínico deram ensejo à recuperação do uso da atividade como
um valioso recurso no tratamento clínico e na reabilitação psicossocial
(Guerra, 2004, p. 24).

Assim, as oficinas proporcionam experiências que tendem a atuar no


processo de reabilitação de pessoas em circunstância de sofrimento no que se
refere a uma maior integração social, à manifestação e escuta de sentimentos
e problemas, ao desenvolvimento de suas potencialidades, enfim, ao exercício
coletivo da cidadania, de modo que os usuários sejam postos como atores princi-
pais de sua própria existência. Dessa forma, as oficinas procuram possibilitar aos
sujeitos a criação e recriação de laços de cuidado para consigo e com os outros
que estão ao seu redor, dando uma dimensão política e social à prática clínica.
Mais do que proporcionar o desenvolvimento de habilidades e potencia-
lidades, as oficinas visam a envolver os usuários em momentos de socialização,
quando os seus direitos de criar, opinar, escolher e se relacionar com o mundo e
os artefatos que os rodeiam são respeitados, criando e reinventado o cotidiano
da reabilitação psicossocial (Mendonça, 2005). Sendo assim, parece conveniente
afirmar que as oficinas produzem efeitos subjetivos e socializantes, descentra-
lizando as posições em cena e centrando nos sujeitos as ações do processo de
reabilitação psicossocial e não mais no transtorno, de modo a dar outra dimensão
ao cuidado na saúde mental.

318
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

OFICINANDO COM VIDEOGAMES


De acordo com Gee (2010), as tecnologias dão origem a determinados
efeitos – muito diferentes uns dos outros – em virtude dos contextos específicos
em que se inserem. Nesse sentido, as tecnologias podem se constituir em ferra-
mentas potenciais no campo da saúde mental, pois quando inseridas em oficinas,
além de construir outros modos de fazer o cuidado, criam diferentes experiências
de vida para pessoas em sofrimento psíquico devido à capacidade de convergên-
cia de mídias e atividades em grupo (Francisco; Axt; Maraschin, 2007).
Durante todo o processo evolutivo da humanidade, o homem sempre
buscou controlar as ações por meio de diferentes mecanismos, seja a partir dos
transportes, das máquinas mecânicas ou eletrônicas. Com os jogos eletrônicos
não foi diferente: na História, encontramos diversos tipos de dispositivos criados
para o entretenimento, cada um com suas especificidades.
Por videogames entendemos que são aqueles que além de possuírem
circuitos elétricos ligados diretamente à rede elétrica ou a baterias, possuem
um conjunto de instruções gravadas em memórias ou cartuchos, os quais são
processados por um microcomputador e controlados pelos jogadores, utilizando
para tal dispositivos como joysticks, volantes, pedais, mouses, teclado, botões e até
sensores que rastreiam os movimentos do nosso corpo – estenderemos a discussão
sobre este último mais à frente (Gularte, 2010).
Os videogames deixaram de ser considerados apenas artefatos de entre-
tenimento, chamando a atenção de pesquisadores e professores no que se refere
às suas potencialidades ao campo da educação. Segundo Kroeff e Baum (2017),
uma de suas características que faz com que os videogames sejam interessantes
à educação é o fato da interatividade produzida entre humano-máquina. Assim:

A interação se produz, principalmente, pela percepção de agência dos


jogadores, que definem a cada instante qual será o rumo do jogo, uma
vez que, sem sua ação, o jogo não acontece. Esse aspecto é visto como um
diferencial importante na medida em que os jogos se configuram como
ferramentas de aprendizagem e produção de significados nos contextos
culturais em que se inserem (2017, p. 105).

319
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

Por esses motivos e pela importância que os videogames estão adquirindo


na sociedade, pesquisadores do Brasil e do mundo estão desenvolvendo pesqui-
sas sob diferentes perspectivas que permitem compreender a relação entre jogo
digital e o homem, a partir de práticas e significados atribuídos a esse fascinante
artefato.
Assim, como para Kroeff e Baum (2017), parece-nos interessante a estra-
tégia de estudar os videogames a partir da perspectiva da pesquisa-interven-
ção, trazendo a discussão sobre a processualidade do jogar, tendo em vista que
estudos que utilizam metodologias que acompanham os processos operativos
utilizando o jogar como campo de investigação, seja de cognição ou relação,
ainda são escassos (Maraschin, 2011).
As oficinas com videogames surgem como uma das possibilidades da
pesquisa-intervenção, a qual não limita nossas discussões sobre a compreensão
do jogo, reduzindo-as ao produto final – o resultado das partidas. Nesse sentido,
o processo de jogar “com” diferentes pessoas, outros jogadores ou oficineiros,
crianças, jovens ou adultos, iniciantes ou experientes, é incluído no sentido de
acompanhamento de processos, como ideia da cartografia (Kroeff; Baum, 2017).
As relações entre saber e fazer são reconfiguradas, de modo que:
No “oficinar”, como forma de intervenção, buscamos colocar em primei-
ro plano um fazer compartilhado, que desestabiliza a relação tradicional
entre saber e fazer, uma vez que o conhecimento declarativo – do ensino
escolar – pode ser colocado entre parênteses, em relação às ações desem-
penhadas na oficina (Kroeff; Baum, 2017, p. 108, grifo nosso).

É nesse “fazer compartilhado” que as ações e interações ocorrem. Como


característica da oficina, a ampliação da experiência passa a constituir um terceiro
plano: o coletivo. Assim sendo, temos três planos que se conectam: o concreto –
no nosso caso, o CAPS, o digital – os exergames e o coletivo que emerge do encon-
tro e das relações processuais dos dois primeiros planos, instituído na oficina. É
dessa forma que, de acordo com Kroeff e Baum (2017), a oficina consolida-se
como forma privilegiada de acompanhar processos na pesquisa-intervenção.
É nesse panorama que as oficinas, ao criarem esse plano coletivo,
constituem-se como importantes instrumentos na pesquisa-intervenção. Dessa
forma, cabe frisar que:

320
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

A constituição desse campo coletivo propicia que, na interação entre os


jogadores, cada um participe compartilhando diferentes graus de know-
-how in loco, sem hierarquias preestabelecidas ou separação entre os mais
e os menos experientes (Kroeff; Baum, 2017, p. 109).

Para Kroeff e Baum (2007), os videogames atuam como evocadores de


um fazer-em-comum, tendo em vista que eles vão além de consumir as infor-
mações, sendo os verdadeiros roteiristas das histórias vividas nos jogos. Dessa
maneira, esse fazer-em-comum propicia o estabelecimento e a reconfiguração
de conexões entre os participantes da oficina, atuando também nas suas relações
consigo mesmo, as quais ampliam o espaço de experimentação de si e do mundo
a partir da interação com os videogames.
Quando algum participante está jogando, ele simultaneamente interage
com o mundo do jogo e experimenta a si mesmo habitando esse mundo.
Experimentando o fluxo de informações que vem do videogame, seja o
som ou as imagens, ao mesmo tempo se percebe imerso nele. A atenção
circula entre o videogame e uma atenção a si. Ao mesmo tempo em que
se concentra no processo de jogar, ele se percebe concentrado no processo
de criação, de jogo. É como se houvesse dois lados da mesma experiência:
o participante se percebe como parte de um processo e é capaz de se
surpreender com algumas coisas que fala, com sua forma de agir ou com
a ideia que deu e foi aceita e acabou vindo a compor aquela experiência
do jogo (Kroeff; Baum, 2017, p. 110).

Essa experimentação de si e do mundo dos jogadores também pode ser


acompanhada pelos oficineiros. Estando presentes nas oficinas, os eles também
participam do processo, mas não como um instrutor para obter uma melhor
performance, e sim como um norteador e instigador das relações lá produzidas.
Como bem salientam Kroeff e Baum (2017), a questão não é de evidenciar a
composição de um espaço homogêneo, mas ponderar que a hierarquização –
seja entre jogadores mais ou menos experientes ou entre jogadores e oficineiros
– não faz parte da essência da configuração das oficinas como instrumentos
metodológicos.
Como é possível perceber, os oficineiros atuam no acompanhamento das
experiências dos jogadores – protagonistas – com o jogo, os seus percursos, os
processos estabelecidos e os seus entraves durante as oficinas. Conversar com

321
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

os jogadores ou simplesmente observar as relações estabelecidas entre homem


e máquina são as principais funções dos oficineiros como participantes, colabo-
rando como coadjuvantes.
Maraschin e Filho (2017) analisaram as experiências de aprendizagem
a partir de oficinas realizadas no Jardim Botânico de Porto Alegre (RS) com o
jogo baseado em localização intitulado Um Dia no Jardim Botânico, desenvolvido
pelo Núcleo de Pesquisas em Ecologias e Políticas Cognitivas (Nucogs/UFRGS)
em parceria com a Fundação Zoobotânica do Estado do Rio Grande do Sul. Ao
fim, concluíram que a aprendizagem inventiva por meio de jogos baseados m
localização não se dá apenas pela interação entre o jogo e o território, mas pode
ser potencializada pela intervenção de outros atores, constituindo uma rede de
interações complexas, como foi o caso das oficinas.

EXERGAMES: OUTRAS POSSIBILIDADES SURGEM...


De acordo com Maraschin e Baum (2013, p. 254) “os jogos eletrônicos
dão testemunho do modo de operar cognitivo de nosso contemporâneo permea-
do por objetos técnicos”. Por muitas vezes, contudo, o ato de jogar videogame foi
repudiado e considerado um hábito nocivo à saúde, propiciando o aparecimento
de problemas de saúde, como obesidade e sedentarismo. No entendimento de
Sothern (2004), isso é devido à alta jornada de tempo em contato com jogos
eletrônicos e, por conseguinte, baixo nível de atividade física, de acordo com
as recomendações da World Health Organization (2010). Além disso, conforme
Papastergiou (2009) ressalta, os videogames também foram associados a diversos
tipos de problemas, tanto físicos como psicológicos.
Com a possibilidade, entretanto, de interação com os consoles dos jogos
por meio dos movimentos do corpo humano, essa visão vem sendo alterada. O
crescente avanço na área das Tecnologias Digitais da Informação e Comunicação
(TDIC), aliado à preocupação de fomentar a prática de atividade física durante
a utilização de jogos eletrônicos, fez surgir uma nova interface de games. Nessa
nova categoria dos jogos eletrônicos, os movimentos corpóreos são utilizados
para interagir e expandir os movimentos dos usuários com o videogame, o que
outrora não era possível, extrapolando o simples ato de apertar botões e mexer
alavancas do joystick. Utilizando os movimentos do corpo humano como meca-

322
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

nismo de interação com o jogo, aumenta-se o gasto calórico do usuário e a inte-


ratividade homem-máquina, tanto do ponto de vista físico quanto do cognitivo
(Suhonen et al., 2008).
A discussão sobre videogames que utilizam o movimento humano como
forma de interação com o jogo é relativamente recente e as expressões para
defini-los requerem ainda mais discussões. De acordo com Baracho et al. (2012),
ainda não há um consenso em relação à nomenclatura dessa classe de videogames,
no entanto neste trabalho será usado o termo exergames por ser o mais utilizado
na literatura (Vaghetti; Botelho, 2010).
Os exergames têm como característica principal a detecção do movimento
humano para interação dentro do jogo, associando à sua prática benefícios tanto
físicos quanto cognitivos (Oh; Yang, 2010). O movimento pode ser captado de
diversas maneiras, de acordo com a tentativa de conquistar diferentes públicos,
como tapetes (pads), plataformas (boards), controles (joysticks), câmeras e sensores.
Figura 3 – Diferentes formas de interagir com os exergames

Fonte: <https://goo.gl/Rjs3eh>.

Na indústria de jogos, o console Xbox® 360 com KinectTM destaca-se


pela ausência da necessidade de controle físico ou outros acessórios para comuni-
cação com o jogo, utilizando apenas um conjunto de sensores para rastreamento
dos jogadores. Desta forma, é considerado mais seguro contra acidentes e finan-

323
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

ceiramente mais acessível do que outros consoles de videogames – Playstation 3 e


Nintendo Wii, por exemplo – que requerem uma variedade de acessórios para
a interação com o game, assim sendo escolhido para ser utilizado neste estudo.

Figura 4 – Exergame no Xbox 360 com Kinect

Fonte: <https://goo.gl/W9UCTu>.

O dispositivo Kinect, inicialmente chamado de Projeto Natal, em menção


à capital do Estado brasileiro Rio Grande do Norte, foi idealizado e projetado
pelo brasileiro Alex Kipman, sendo considerado muito mais do que uma ferra-
menta para usar o corpo como controle de jogos. Ele possui um kit de sensores
de movimentos aliado a uma câmera de detecção 3D que reconhecem as movi-
mentações do corpo humano com muita precisão – abrangendo 48 pontos de
articulação – capaz de capturar os movimentos dos jogadores a fim de reproduzi-
-los dentro do jogo. Além disso, o dispositivo conta com um microfone capaz de
captar e isolar a fala dos jogadores do som ambiente, além de conseguir captar
comandos de voz. O Kinect permite que o jogador interaja com os videogames
sem a necessidade de portar ou manusear controles ou afins (Chang; Chen;
Huang, 2011).
Com o advento do Kinect, múltiplas são as formas de se jogar. Antes,
todos os jogos eram controlados por joysticks – com ou sem fio – de modo que
o único esforço físico era aquele exercido pela motricidade fina das mãos e dos

324
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

dedos. Agora, todo o corpo entra em cena. Jogos de carros são jogados como se o
jogador estivesse manipulando um volante, similarmente à realidade. Da mesma
forma acontece com jogos de luta, com empunhadura própria da modalidade, e
demais esportes, como golfe, futebol, vôlei, entre outros disponíveis.
A jogabilidade pode ser singleplayer ou multiplayer (até seis jogadores
simultaneamente), colaborativo ou competitivo, tornando o ato de jogar vide-
ogame uma prática saudável, uma vez que os benefícios psicológicos dos jogos
já conhecidos agora estão associados aos benefícios dos exercícios físicos dos
exergames. Um novo panorama surge, acompanhado de possibilidades e desafios
aos profissionais da educação e da saúde.
Segundo Leutwyler et al. (2014), pessoas em transtorno psíquico não se
engajam em programas de atividade física regulares, pois estes são desinteres-
santes e desmotivadores para esse público, necessitando assim de uma prática
adaptada às características específicas dessa população.
No âmbito da saúde mental, a instituição dos exergames em oficinas tera-
pêuticas ainda é um campo pouco explorado. Leutwyler et al. (2012, 2014)
e Anderson-Hanley et al. (2012) desenvolveram trabalhos que utilizaram os
exergames como forma de cuidado para idosos com esquizofrenia e crianças e
jovens com autismo, respectivamente. Ambos encontraram resultados positivos
e significativos no processo de reabilitação psicossocial, como melhoria nas capa-
cidades funcional e cognitiva dos sujeitos, além de proporcionarem uma prática
prazerosa e saudável às pessoas em sofrimento psíquico. Como já mencionado
anteriormente, contudo, há poucos estudos que investigaram a temática e os
resultados ainda são preliminares.

EXERGAMES E SAÚDE MENTAL:


Primeiras Aproximações
O material de análise que aqui utilizamos é advindo de cinco encontros
em um CAPS de Maceió: o primeiro realizado com os profissionais e a direção
do CAPS e os outros quatro realizados com os participantes. Desses quatro
encontros, o primeiro foi para apresentar a proposta do trabalho e convidá-los
a fazer parte do grupo que trabalharia junto nas oficinas com exergames. Ainda
neste encontro preparamos um jogo de plataforma chamado Twister para que

325
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

pudéssemos ver como eles lidavam com sua corporeidade a fim de traçar um
planejamento inicial das oficinas condizente aos participantes. Nos três encontros
seguintes foram realizadas as oficinas terapêuticas com os exergames.
Para análise, utilizamos como recursos as observações, os registros em
diários de campo e as próprias intervenções. Os dados aqui apresentados serão
dispostos e analisados por categorias a posteriori, as quais emergiram dos encon-
tros nas oficinas a partir da produção de processos da relação dos usuários com os
exergames. Para este momento, entretanto, apresentaremos apenas a categoria que
denominas de acoplamento. Nesta categoria discutiremos o que aconteceu com
as relações entre jogador e máquina e entre os próprios jogadores, a partir da
inserção dos exergames como forma potencializadora no processo de reabilitação
destas pessoas em sofrimento psíquico.
Na primeira oficina com os jogadores não utilizamos os exergames pro-
priamente ditos. Foi proposto o jogo Twister: um jogo de plataforma em que são
dispostos círculos coloridos no chão e uma roleta, a qual indica a cor do círculo
e o membro (mão direita ou esquerda; pé esquerdo ou direito) a ser colocado
na cor indicada. O objetivo principal do jogo é se manter o maior tempo pos-
sível sem cair, envolvendo, além da estratégia, as capacidades físicas do corpo
humano.
Logo que viram que a atividade não seria com os exergames, Benzema e
Sonic saíram do local, não sendo atraídos pelo Twister. Aos poucos os jogadores
foram entendendo a dinâmica do jogo e desenvolveram a atividade, uns com
mais facilidade, outros nem tanto. Goku, recente egresso de um manicômio, foi o
que mais sentiu dificuldade, talvez pelo excesso de peso e pela ausência do hábito
de praticar exercício físico. Henry, no entanto, mostrou um bom desempenho
na atividade, posto que muitas vezes ficou apoiado em quatro apoios sem cair.
A atividade nos mostrou que os usuários tinham diferentes níveis de condição
física, o que foi muito importante para podermos delinear as oficinas com os
exergames para que todos os jogadores pudessem usufruir daqueles momentos.
Na semana seguinte, ao chegar no CAPS, a terapeuta ocupacional
comentou que a oficina foi muito comentada durante a semana por se tratar de
práticas corporais – as quais eles não trabalhavam por falta de profissional habi-

326
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

litado – e que não era surpresa o fato do Benzema e do Sonic não participarem,
pois o mesmo acontecia nas outras atividades em que eles eram convidados a
participar.
Os exergames envolvem uma gama de jogos que diferem pelos universos
criados a partir dos jogos e, especificamente, pela amplitude de movimentos –
apenas movimentos com membros superiores, outros apenas com os membros
inferiores e ainda há aqueles que envolvem os movimentos dos membros supe-
riores e inferiores simultaneamente – requerida para interação com o game. Tendo
essa característica em vista, e a dificuldade que cada uma impõe, decidimos
introduzir os jogos de forma que a amplitude dos movimentos fosse aumentan-
do gradativamente, visando a que os jogadores fossem se familiarizando com a
máquina.
Antes mesmo da oficina, apresentamos aos jogadores um vídeo promo-
cional do jogo “Kinect Sports First Season”, o qual mostra a modalidade de jogos
digitais que eles usariam nas oficinas. Todos ficaram surpresos e riram bastante
devido ao fato de jogar sem o controle. Dois usuários fizeram comentários inte-
ressantes: “Bom né, faz exercício físico também” (Henry); “É bom pra emagre-
cer” (Goku). Assim, como aquela seria a primeira interação entre os jogadores
com os exergames, iniciamos com jogos que requerem poucos movimentos dos
membros superiores – boliche e boxe – mesmo ouvindo diversos pedidos para
jogar futebol. Naquele momento pensamos que não seria bom atender aquele
pedido, pois precisávamos nos adaptar gradualmente ao artefato tecnológico para
melhor desenvolver os futuros jogos que exigem mais movimentos do corpo.
A atividade começa e logo os primeiros produtos das interações apare-
cem:
Ao explicar e olhar no rosto de cada participante, deu para sentir que
tudo ali era novidade para eles, como constatado na primeira oficina.
Entusiasmo e surpresa me pareceram ser constantes naquele momento
(Diário de Campo do Oficineiro, dia 23 de fevereiro de 2017).

A relação com o jogo era uma novidade para eles. Como constatado em
conversa anterior, mesmo a grande maioria já tendo se relacionado antes com
algum tipo de jogo digital, nenhum deles relatou ter vivenciado alguma prática
com os exergames. Os jogadores movimentavam-se lentamente e com movimen-

327
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

tos robotizados, pois, mesmo vivenciando aquela experiência, eles ainda não
tinham a noção de como interagir com os jogos. Alguns interagiram com mais
facilidade que outros nos jogos e aí surge o primeiro aspecto interessante:
Em ambas as atividades do dia, chamou-me muito a atenção a forma
como os usuários se relacionaram durante a prática dos exergames. Ao
ver o colega que estava jogando passar por dificuldades, era comum os
outros participantes o ajudarem com dicas e frases encorajadoras. Ao ver
o sucesso de uma jogada, em especial os Strikes (quando todos os pinos
são derrubados) ou Knockouts (quando o pugilista é vencido), os usuários
comemoravam entre si, criando e mantendo uma atmosfera agradável
devido às relações que iam se estabelecendo naquele espaço (Diário de
Campo do Oficineiro, dia 23 de fevereiro de 2017).

Começavam a aparecer indícios de potencialidades que as TDICs propor-


cionam em atividades em grupo: a cooperação, a criação de uma comunidade
que se dedica a algo, um verdadeiro clã.
Ao mesmo tempo, porém, em que as relações interpessoais eram traba-
lhadas, as relações entre jogadores e máquina também foram explicitadas pelos
próprios jogadores:
Com relação à primeira experiência com os exergames, Chun-li em suas
palavras o definiu como “muito chique”, enquanto Goku salientou a
questão da corporeidade: “Eu já joguei outros jogos com controle, mas
esse aqui é diferente. É que nem tipo assim a pessoa joga e ao mesmo
tempo mexe com o corpo, o que é bom pra saúde”. Chun-li acrescentou:
“mexe com o corpo e mexe com a mente também”. Goku relatou que
se sentiu mais confiante jogando o exergame do que jogos com joystick,
sendo complementado por Chun-li que disse que o exergame ia além do
que um jogo com joystick iria (Diário de Campo do Oficineiro, dia 23 de
fevereiro de 2017).

Parece-nos interessante ressaltar a questão de como os jogadores se rela-


cionaram com os artefatos envolvidos nos jogos, como ocorreu esse acoplamento
homem-máquina.
Com o passar dos encontros, no entanto, outros aspectos parecem se
evidenciar, de modo que os processos estabelecidos nas oficinas fossem se modi-
ficando e mostrando nuances antes não percebidas. Assim, na segunda oficina
com os exergames, pôde-se observar:

328
OFICINANDO COM OS EXERGAMES

Outro aspecto percebido foi com relação à repetição do movimento


quando houve êxito. Quando o jogador conseguia rebater a bola vinda
do adversário, ele não tinha noção da direção em que a bola ia, apenas
repetia o movimento anterior, por falta de atenção ou apenas por auto-
mação do movimento exitoso (Diário de Campo do Oficineiro, dia 2 de
março de 2017).

Os movimentos ainda eram robotizados, mecanizados e automatizados,


levando em consideração os resultados das tentativas de sucesso na interação com
os jogos. O acoplamento ia se modulando à medida que os jogadores atuavam
nas partidas e era perceptível que, mesmo paulatinamente, as dificuldades iam
diminuindo ao longo da interação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste texto trouxemos alguns pontos para discussão que
achamos salutares. Desde o aparecimento do fenômeno do jogo, trazendo as
ideias de Heródoto, até o mundo digital de hoje em dia, a sociedade passou – e
ainda passa – por modificações em sua vida, quando o pensar, o agir e as formas
de relação são constantemente reconfiguradas.
No âmbito da saúde mental, parece-nos interessante considerar que, a
partir da relação de pessoas em sofrimento psíquico com o jogo, busca-se a pos-
sibilidade de transformação da realidade em que o jogador se encontra, de modo
que possa haver uma fuga – limitada e temporária – da “confusão” da vida e
da imperfeição do mundo para uma perfeição – também temporária e limitada,
levando-o a uma reflexão sobre a experiência e vivência que ocorreu com o jogo.
Com a introdução dos exergames em oficinas terapêuticas, vemos a possi-
bilidade de criar outras formas de fazer o cuidado, ressaltando esse processo de
interação de pessoas em sofrimento psíquico com os jogos digitais. Acreditamos,
então, que os exergames constituem-se em uma ferramenta potencial, pois une os
aspectos inerentes aos jogos digitais – desafios, narração, solução de problemas,
entre outros – aos benefícios físicos e psicológicos da atividade física gerada a
partir da interação homem-máquina.

329
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

Nesse sentido, cabe salientar que, quando abordamos sobre a prática


dos exergames em ambiente de saúde mental, não temos a intenção de fazer a
substituição dos trabalhos realizados pelos profissionais, mas sim proporcionar
vivências de experiências com os exergames que talvez possam contribuir para a
criação de dispositivos e metodologias alternativas, enriquecendo o trabalho que
se encontra em andamento.
Para que a instituição das TDICs seja feita de forma a trazer com a sua
prática benefícios às pessoas em processo de reabilitação psicossocial, há a neces-
sidade de se pensar sobre o planejamento das oficinas, observando aspectos como
espaço físico para sua realização e seleção dos jogos adequados ao público – e
estratégias pedagógicas de intervenção, conduzidas por profissionais qualifica-
dos, para que, assim, o potencial que os exergames carregam consigo possa ser
plenamente aproveitado.
Há, contudo, a necessidade de que mais experiências com os exergames
sejam constituídas, desenvolvidas e analisadas, de modo que haja produção de
experiências e esses, por sua vez, construam novos saberes e práticas em territó-
rios poucos habitados, mas com potencialidades a serem desenvolvidas.

REFERÊNCIAS
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Saúde Mental, v. 1, n. 1, p. 34-41, 2009.
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OFICINANDO COM OS EXERGAMES

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331
Adilson Rocha Ferreira – Deise Juliana Francisco

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332
NAS MALHAS DA UTOPIA PELOS CORREDORES
DOS SONHOS COTIDIANOS DA AMÉRICA LATINA
Ray Lima

O presente texto foi citado em “Construindo Cirandas com a Promo-


ção da Vida” e publicado inicialmente no blog <wwwcenopoesiadobrasil.blo-
gspot.com>. Agora resolvo disponibilizá-lo com pequenas atualizações para
esta importante publicação. Ele foi escrito quando construíamos a “Comunidad
de Aprendizaje Latinoamericana”, uma iniciativa de educação que envolvia 14
projetos sociais ligados à educação de 9 países da América Latina e Caribe, entre
eles o Programa Zumbi de Desenvolvimento das Aprendizagens, estabelecido
e do qual fui coordenador, no município de Aracati-CE. Todo esse processo foi
liderado inicialmente por Rosa María Torres, jornalista e educadora, ex-ministra
da Educação do Equador, e apoiado pelo IIPE-Buenos Aires e Fundação Kellogg.
Essa é, portanto, uma reflexão sobre os desafios de construir saberes, realidades
(virtuais ou não), mundos solidários a partir de redes, comunidades. O texto
trilha pela linguagem cenopoética, que pode nos ajudar a ir rompendo com as
carapaças dos sistemas fechados de saberes e códigos fechados, prontos e acaba-
dos, ampliando as possibilidades do diálogo e do nosso estar no mundo com o
outro. Enfim, apostar e investir em todas as estratégias que nos unem, libertam
e fortalecem como indivíduos e experiência coletiva. Quando discutimos SUS,
estamos discutindo a vida das pessoas em sua relação cotidiana com o mundo e
não apenas o que podemos fazer por elas no contexto do processo saúde/doença.
Até porque

“Toda doença é complexa


do nascedoro ao finzinho
porque nasce em ser complexo
não há reta nem convexo
não despreze um só caminho”

333
Ray Lima

Espero que com mais um texto estejamos contribuindo com a nossa


rede-roda aberta.
Um abraço,
Ray Lima

Pois é. O cotidiano. O danado do cotidiano nasce e morre, fixa e remove. O


cotidiano pai e padrasto. O que nos faz rei do enredo e súdito da história. O
que torna viva a lembrança do momento vivido e refém ou liberto da memória
no território do esquecimento. No cotidiano somos e não somos sujeitos
da História; inventamos e somos reinventados; somos dele sujeito e objeto.
Nele se instalam a vida e a morte; a ditadura e a democracia; o retrocesso e
a revolução. Nele o tempo dispara em ritmo veloz e também repousa. Não
temos tempo. O marco é zero. A vida estica e diminui. A vida é de todos e de
ninguém. Sorte ou desgraça? No cotidiano perdemo-nos de nós e, ao mesmo
tempo, podemos encontrar ou reconstruir nossa identidade. Consumimos e
somos consumidos no espaço. Sumimos de nós mesmos, da família que nos
espera e dos amigos, da vida particular e temporal para cair no buraco negro
dos negócios, no ócio ativo e tedioso da burocracia, da rotina das tarefas sem
prazer, da pragmática diária das obrigações obrigatórias. O cotidiano nos
diz ao acordarmos: Não sonhe, viva. Seja prático! Seja pragmático! Seja mais
objetivo! Parece mesmo que todos temos obrigação de viver, porém poucos
sabem como ou vivem o que sabem. E, por outro lado, uma minoria diz
que vive, finge que vive, pensa que manda na vida por meio de moedas, de
modelos, de paradigmas. Confunde vida com acumulação de capital e poder.
O cotidiano é um bem ou um mal determinante. Viver é preciso, navegar é
um meio, um canal para a vida. Viver é preciso, sonhar uma forma de buscar a
forma ideal de vida em sociedade. Viver é preciso, sobreviver não basta. Viver
é um direito de todos os vivos, sobreviver é empulhação com a vida. Viver, se
preciso for, morrer nunca, subviver jamais. Sim ao movimento constante da
vida. Não à morte dos movimentos vitais. Sim ao sentimento coletivo de paz e
de pertencimento à Terra, esse planeta abençoado pela vida. Não à morte dos
direitos fundamentais que assegurem a vida na Terra com dignidade. Vamos
movimentarmo-nos em rede. Pensar e agir em rede, em comunidade. Fora da
rede também e menos, dentro da rede bem mais. Vamos agitar os espíritos
em rede! Construir redes e pensar em comunidade! Cadê a rede? Já foi tecida?

334
NAS MALHAS DA UTOPIA PELOS CORREDORES DOS SONHOS COTIDIANOS DA AMÉRICA LATINA

Com que fio de memória? Está inteira? Só as beiras? Está puída? Rede beira
de estrada, rede lombo dos Andes. Rede que não só balança, que dança, que
tomba e levanta, que corre, que voa, que anda. Rede alpendre, que ainda
dependente de uma corda, de uma mão, de um pé, duma visão privilegiada,
de um sonho, de um clima menos adverso, que gera a satisfação do corpo
da vida por inteiro. “Cuidar do corpo para cuidar do mundo”, disse a sábia
labirinteira de Icapuí-CE-Brasil. Cuidar da alma que ainda não pena, para não
penar mais adiante. Espichar o espírito numa rede de sentir e pensar, deixá-la
flutuar no balanço da vida em memória viva. Correr com o tempo sem per-
mitir que se afaste ou passe impunemente pela gente. Ao passar pela calçada
a gente vê: a rede está armada. – Em que torno? – O contorno da corrente é
reforçado? – Quem armou? – Quem se deita, deita e dorme? – Dorme e sonha?
Ou não passa de uma simples armação? Se a rede é passatempo, passadio,
desafio,
movimento,
quem alcança?
quem balança? É da rede ter nós. É diferente dos trenós. Trenó desliza no
gelo. Na rede um novelo desliza no tear. Na mão da tecelã rios de lã vão roçar
pele a pele, rosto a rosto, vertendo suor noite adentro, a encharcar o encéfalo
da mulher. O barulho regular da engenhoca a costurar o pano de fundo da
rotina de pouco ganho dá o ritmo do tempo – na roça, na praia, na savana.
Também no deserto, nas capitais do capital; no sal, no gelo, no topo das mon-
tanhas, no sopé da vida. Por isso a rena é um ser igual às pampas. Ingênua,
quanto menos ganha mais trabalha para o natal dos deuses neoliberais.
Sabemos que o trabalho não cai do céu. Imagine se a rena se revoltasse com
Papai Noel? E se o sol de cá brigasse com o gelo de lá? Se o sol de cá dissolve
o gelo de lá? Esquentaria o tempo. Alteraria o clima dos mundos. Inundaria
a mente de muita gente. Mudaria a História. O nó da rede está em nós. O nó
da rede está em batalhas, reinventos e memórias. O nó da rede está em reves-
tir o tempo de malhas solidárias. Rede também é de quem está de passagem.
Em viagem, quem pensa e age, algo faz, algo tem, algo prova, algo provoca,
algo dão. Algo é. Alguma coisa. Alguém. Aqui está o nó dos fios de nós de
rede (de nos sabermos se somos, se damos para o mundo). Conectar pontos em

335
Ray Lima

desencontro, lados desencontrados. Confiar os fios de tecer ao artesão que liga


ponto a ponto, lado a lado. Mais que um legado, estratégia, obrigação. Outro
nó: provocar encontros de nós entre nós, entrepontos de pontuações a fio:
eu,
tu,
ele,
o mar,
o rio, nozes.
Alianças, redes, relações.
Diálogo entretecido de suavidade, de profunda conexão de reflexos desconexos
com reflexões de prazer. Valiosas ferramentas mentais, espírito-suspiro senão
piro! O que dizer além de sonhos e metais? Misturas de nomes, pronomes,
pessoas e coisas – ruins e boas. América, pátria grande e prostituída, o que te
faz dormir nas fronhas da insônia desses tempos? Serão dormências em tua
estrutura mental, em tua cultura política sem vergonha? Será desilusão com
que tu própria sonhas? Será a razão do teu desprazer em não poder sonhar
com tranquilidade, exercer propriamente o direito de sonhação? Será isto,
então, o que te encurrala na senzala dessa frágil filiação de fios a pavios, de
pavios a candeias em constantes incinerações do tempo, numa refiação sem-
fim? Rede mármore? Rede marfim? Rede macia de Jose y María Maya a bailar
sorrindo em ritmo de baião, salsa e merengue, de samba no pé; de drama, de
tango e candomblé. Quem sabe o que foi quer defender o que é. Rede ranchei-
ra de guardar nas cores de suas malhas a cultura andina, a postura maya. Rede
milonga, rumba crioula, Zumbi capoeira, vodu, candomblé. Nhanduí dan-
çando toré vai subindo a pé o Himalaia. Galeano não aceita esmolas, pega a
cachola, resiste, não desiste nem fica à sombra do som da castanhola. Imbrica-
-se nas serras dos sertões, pega o sol com a mão. E se lhe falta ar, respira pelo
fole do forró e, numa inspirada só, se enche de Gonzaga e Pandeiro Jacksonu-
trido de cultura de raiz a ser latinamente feliz. Gestos falam, afagam e ligam
leste a oeste, norte a sul, gente a gente, continente a continente. Gesto-ação,
gestação latina, latente leito de alimentar famintas gerações. Rede arco-íris,
espiroíris. Rede tela. Rede ótica. Rede geo, espécie rara de janela donde se vê a

336
NAS MALHAS DA UTOPIA PELOS CORREDORES DOS SONHOS COTIDIANOS DA AMÉRICA LATINA

foz do rio da corrente invisível do hemisfério da paz e da cidadania planetária,


onde se faz História, onde se vive, vislumbra-se o céu no inferno, a felicidade
espraia. Em rede salseia-se, sambeia-se, forrozeia-se, freveia-se.
De verão a inverno trabalha-se como se brinca. Recriar o tempo, despontuar a
linguagem da vida. Gerar mundos sem temer o infinitivo, gerando gerúndios,
outros sinais, outros acentos, outros juízos, outra justiça. Nova escrita para
novas leituras. Rede clima – costa fresca, costa amena, costa fria, costa quente;
costa rica,
costa pobre;
costa do mar (sem)fim,
costa do marfim.
Do outro lado do oceano houve um manco mano, Manco Kapac humano.
Além das fronteiras de mim choramingo imaginação, arriscando no olhar
muitas histórias vividas e não contadas sem minguar. Quem esteve aqui antes
de mim? Quem esteve lá? Como esteve? Quem hoje está, como está? O mapa
é uma rede de pontos isolados, pré-moldados: São Domingos. Barbados.
Porto Príncipe. China. Palestina. Colômbia de Cem Anos de Solidão y sus
ballenatos. Bolívia de coca e gás, de Evo e SUMAK KAWSAY, Quíchuas y
Aimarás? Peru – ruínas, não há mais? Oh, Amazônia ilegal! Equador fora da
linha em busca de constituir seu buen vivir. Uruguai de Galeano, Benedetti,
Mujica, candombe, tango de sepa... dale que podés más! Canadá. Angola.
Uganda. Eritreia. Nepal. Serra Leoa. Gana. Goa. Timor. Temor Leste. Terror
Norte. Argentina do tango ao Che, Borges e Macri. Brasil do SUS ao Cone
Sul. Brasil de Pedro a Cabral. De Zumbi a Jorge Velho. De Andradas, Moros,
Magalhães. Brasil de pau-brasil furado pelo besouro pré-capitalista da CIA das
Índias Ocidentais. Brasil de samba no pé, Garrincha e Pelé, Cartola e Chico
Buarque de Holanda. Brasil de ouro, café e canaviais que juntos com escravos
foram derretidos pela ganância dos europeus. Brasil da Revolução de 17, das
confederações dos cariris e do Equador. Brasil de Palmares e Canudos. Brasil
do golpe da maioridade às ditaduras chamadas de revolução. Brasil de Deus
e do Baixo Clero do Congresso Nacional e seus generais engravatados. Brasil
de Lampião e Sarney. Brasil que só nasceu uma vez, mas morre todos os dias.
Brasil teimoso que ainda morto suspira utopia. Brasil que teve diversas vezes
a bola do jogo e chutou para fora. Brasil de antes de agora. Brasil de Brasí-

337
Ray Lima

lia, de bananas e abacaxis. Brasil de Prestes que teve a coluna quebrada por
Vargas. Brasil de Lula a Temer. Brasil que nos provocou alegria e dores até de
cotovelo. Brasil enrolado em novelos de novelas intermináveis. Brasil de elites
e senzalas com seus chicotes midiáticos que nos fazem adoecidos de nascença,
contraindo torcicolo de tanto forçar a mira para fora a copiar os vícios do velho
continente e da América de Monroe e a esquecer de olhar para nossa alegria
interior e poder criativo.

INSENSATEZ OU HORROR?
AI, TORCICOLO!
AI, MINHA DOR!
NOSSA, QUE DOR!

Tanto sofrer a distância nos faz querer tecefiar um canal além do burocrático e
do maquiavélico; do caos previsível e imprevisível da latinidade; da razão kan-
tiana e do emotivo carnaval, do futebol. Marchar muito além do cotidiano da
unidade do insensível e difícil para a edificação da vida, erradicação do ataúde.
Revisualizar no mapa-múndi a América Latina. Um pingo de cor, um sopro de
vida no olhar sulamericano. Paulo Freire, Zumbi, Milton Santos, Josué, Darcy,
Assaré, ... sonhações que nos dão asas e criticidade. Brasil de sempre. Brasil da
gente.

Rede funda?
Rede rasa?
Rede limpa?
Rede imunda?
Rede chique ou ralé?
Rede artesanal para solteiros?
Rede para casais?
Rede solidária de aconchegar solitários?
Rede de todos sem demais?

338
NAS MALHAS DA UTOPIA PELOS CORREDORES DOS SONHOS COTIDIANOS DA AMÉRICA LATINA

Rede agulha que alinhava, cose e fura; costura e rasga para cerzir em cores os
vieses com linha igual. Rede: nem calmaria nem calma. Rede tecida por várias
mãos estendidas num sobressalto de almas acossadas:
pela ingerência de outros em nós;
pela não gerência de nós sobre nós;
pelos nós dados em nossa alma adoecida.
Rede de trabalhadores da utopia.
Rede do dia a dia, de todos os dias;
Rede nossa de balançar sonhos;
levitar o peso medonho do cotidiano;
dormitar os sonhos?
sacolejar os saberes da alegria,
levantar o ego;
reconstruir nossa alma roubada;
chicotear os instintos da vida lesada pelo laser do consumo;
dar razão ao prazer de nos recriarmos coletivamente sem coerção.

Agora que estava me acostumando a gostar de me ver, a querer olhar para


dentro de mim, não me deixam. De queixo caído todos se queixam da minha
alegria, da minha ousadia por me alimentar de utopia e sonhação.
Ray Lima
Icapuí-CE, 7 de novembro de 2017.

339
SOBRE OS AUTORES

Adilson Rocha Ferreira


Mestre em Educação da Universidade Federal de Alagoas. Especialista em
Mídias na Educação pela Universidade Federal de Alagoas. Graduado em
Educação Física, com Licenciatura pela mesma Universidade. Membro do
Grupo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Esporte. Docente de Educação
Física da Secretaria de Estado da Educação de Alagoas. Tem experiência na
área de Educação Física, com ênfase em Educação Física Escolar, atuando
principalmente nos seguintes temas: esporte, representações sociais, festival,
educação física e atividades lúdicas. adilson_cpm_al@hotmail.com

Bruno Layson Ferreira Leão


Graduando em Administração pela Universidade Federal Rural do Semi-
-Árido. Atuou como bolsista de extensão e pesquisa. Integrou como bolsista
o programa Rede de Oficinandos em Saúde Mental da mesma Universidade.
Foi estagiário do setor Administrativo-Financeiro do Núcleo de Educação
a Distância da Ufersa, assim como da Focar Consultoria, na qual atuou
prestando serviços administrativos para o desenvolvimento de projetos de
certificação em ISO e normatizações. umleaum@gmail.com

Carlos Alberto Baum da Silva


Doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do
Sul. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela mesma Universidade
e graduado em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Atual-
mente é professor substituto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
atuando principalmente nos seguintes temas: video games, aprendizagem,
enação e oficinas. baum.psico@gmail.com

Clara Costa Oliveira


Pós-doutora pela Universidade do Minho/Portugal. Doutora em Filosofia da
Educação pela Universidade do Minho. Mestre em Epistemologia e Filosofia
do Conhecimento pela Universidade Católica Portuguesa – Braga. Graduada

341
e Licenciada em Filosofia pela mesma Universidade. Atualmente é docente
da Universidade do Minho. Tem experiência na área de Educação, atuando
principalmente nos seguintes temas: auto-organização, educação permanente
e comunitária. claracol@ie.uminho.pt

Cláudia Rodrigues de Freitas


Pós-doutora no campo da Educação Especial pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul e doutora em Educação pela mesma universidade, na linha
de pesquisa Educação Especial e Processos Inclusivos. Possui Formação em
Psicopedagogia pela Escuela Psicopedagógica de Buenos Aires – EPsiBA –
em Curso de Formación en Psicopedagogia Clínica. Professora na Faculdade
de Educação da UFRGS, integra o Programa de Pós-Graduação em Educação
e é tutora e professora em Educação na Residência Integrada Multiprofissio-
nal em Saúde Mental Coletiva. freitascrd@gmail.com

Cleci Maraschin
Pós-Doutora pela Universidade de Wisconsin-Madison. Doutora em Educa-
ção pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Graduada e licencia-
da em Psicologia também pela UFRGS. Professora titular da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, integra o corpo docente dos Programas de
Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e em Informática na
Educação. cleci.maraschin@gmail.com

Danielle Celi dos Santos Scholz


Mestre em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Espe-
cialização em Práticas Pedagógicas em Serviço de Saúde pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. Enfermeira do Centro de Atenção Psicossocial
Infanto-Juvenil Arco-íris pela Fundação Municipal de Saúde de Canoas.
dani.scholz@hotmail.com

Deise Juliana Francisco


Doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul. Possui formação na área das Ciências Humanas e Tecnolo-
gias Digitais. Atualmente é professora Associada I da Universidade Federal
de Alagoas, estando lotada no Centro de Educação. É membro do Comitê de

342
SOBRE OS AUTORES

Ética em Pesquisa da Ufal. Integra o quadro docente do Programa de Pós-


-Graduação em Educação da mesma universidade e o Programa de Pós-Gra-
duação Interdisciplinar em Cognição, Tecnologias e Instituições da Ufersa.
Tem experiência na área de Psicologia e Educação, atuando principalmente
nos seguintes temas: saúde mental, processo de subjetivação, tecnologias
digitais, informática na educação. deisej@gmail.com

Felipe Gustsack
Doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e
mestre em Educação pela mesma universidade. Graduado em Letras Por-
tuguês/Inglês e Literaturas pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
de Santa Cruz do Sul, na qual é docente vinculado ao Departamento de
Educação. Tem experiência nas áreas de Educação, Linguagem e Coope-
ração com ênfase na Pesquisa em Educação, atuando principalmente nos
seguintes temas: educação e linguagem, alfabetização, educação coopera-
tiva, educação e movimentos sociais, discurso, tecnologias de informação
e comunicação, a escola e seu entorno, formação de professores e educação
básica. fegus@unisc.br

Francisco Milton Mendes Neto


Pós-doutor pelo Instituto de Robótica y TIC da Universitat de València.
Doutor em Engenharia Elétrica, na área de Processamento da Informação,
pela Universidade Federal de Campina Grande/PB. Professor associado na
Universidade Federal Rural do Semi-Árido, integrando o corpo docente dos
Programas de Pós-Graduação em Ciência da Computação, Cognição, Tecno-
logias e Instituições (Interdisciplinar) e Pós-Ensino (Multidisciplinar/Ensino).
Atua principalmente nos seguintes temas: ensino a distância, aprendizagem
ubíqua, engenharia do conhecimento, gestão do conhecimento e sistemas
multiagente. miltonmendes@ufersa.edu.br

Gerciane Maria da Costa Oliveira


Doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará, mestre em Socio-
logia pela mesma instituição. Atualmente é professora-adjunta do Departa-
mento de Agrotecnologia e Ciências Sociais da Universidade Federal Rural
do Semi-Árido, na qual participa do Conselho de Curso de Licenciatura em

343
Educação do Campo, do Núcleo Docente Estruturante (NDE) e do Comitê
de Graduação. Membro permanente do corpo docente do Mestrado Acadê-
mico Interdisciplinar em Cognição, Tecnologia e Instituições. Tem experiên-
cia na área de Ciências Sociais, com ênfase em Sociologia da Arte, atuando
principalmente nos seguintes temas: arte-educação, sociologia da cultura e
da arte. gerciane.oliveira@ufersa.edu.br

Isaura Marques de Souza Uhmann


Doutoranda em Engenharia da Construção Civil na Universidade Federal do
Paraná. Mestre em Engenharia da Construção Civil pela mesma universida-
de. Especialista em Gerenciamento de Obras pela Universidade Tecnológica
Federal do Paraná. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Pontifícia
Universidade Católica do Paraná. Tem experiência na área de Arquitetura
Escolar. Atua como coordenadora de projetos na Secretaria de Estado da
Educação do Paraná. isaura.uhmann@gmail.com

Jadiel Lima
Natural de Icapuí-CE, a criação foi entre a beira de praia e as rodas de arte
popular de rua, acompanhando, nos braços do seu pai Ray e da sua mãe
Regina, as atividades culturais do município, onde também esteve sempre
muito atuante o Movimento Escambo Livre de Rua. Participa do grupo
cenopoético Pintou Melodia na Poesia, desenvolvendo, junto a Ray Lima,
Johnson Soares e Jair Soares, intervenções, espetáculos e vivências de diá-
logos em diversos ambientes. Como jornalista, vem atuando no apoio a
projetos dentro da Educação Popular em Saúde. No campo dos quadrinhos,
textos e ilustrações, expõe trabalhos no Facebook (fb.com/jadielilustra), no
Instagram (@jadielilustra) e público no blog amarebicho.wordpress.com.
emaildojadiel@gmail.com

Junio Santos
Ator na Universidade Popular de Arte e Ciência. Brincante no Centro
Volante de Assessoria Teatral. Brincante no Movimento Escambo e nas ruas
do mundo. Integra o Movimento Escambo Livre de Rua e participa de ações
de promoção da saúde mental. É colaborador do Programa Rede de Ofi-
cinandos na Saúde Mental da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
juniosantosteatro@hotmail.com

344
SOBRE OS AUTORES

Judson da Cruz Gurgel


Doutor em Administração pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná,
mestre em Administração pela Universidade Potiguar, com especialização em
Gestão de Empresas pela Universidade Potiguar e em Administração de Sis-
temas da Qualidade pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Graduado em Administração pela Universidade do Estado do Rio Grande
do Norte. Atualmente é professor-adjunto da Universidade Federal Rural
do Semi-Árido. Pesquisador com foco em Marketing, Gestão Estratégica e
Serviços. judsongurgel@ufersa.edu.br

Karla Rosane do Amaral Demoly


Doutora em Informática na Educação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, com Doutorado-Sanduíche na École des Hautes Études
en Sciences Sociales EHESS – Paris. Mestre em Educação. Graduada em
Pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora
Associada I na Universidade Federal Rural do Semi-Árido, na qual coor-
dena o Programa Rede de Oficinandos na Saúde Mental: tecnologias da
informação e da comunicação, promovendo cuidado, formação e reinser-
ção social em ambientes de saúde mental, e o Programa de Pós-Gradua-
ção Acadêmico Interdisciplinar em Cognição, Tecnologias e Instituições.
karla.demoly@ufersa.edu.br

Kézia Viana Gonçalves


Mestre em Ambiente, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal
Rural do Semi-Árido. Integrante da Equipe Pedagógica da Ufersa. Espe-
cialista em Gestão Escolar pela Universidade do Estado de Santa Catarina.
Tem experiência docente no Ensino Superior no Plano Nacional de Formação
de Professores – Parfor – e no Núcleo de Educação a Distância da Ufersa.
kezia@ufersa.edu.br

Laís Vargas Ramm


Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do
Rio Grande do Sul. Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de
Pelotas, na qual atuou como bolsista de extensão no Tecsol (Núcleo Inter-

345
disciplinar de Estudos e Extensão em Tecnologias Sociais e Economia Soli-
dária). Atua nas áreas de economia solidária, movimentos sociais e educação.
laisramm@gmail.com

Larissa Nogueira de Morais


Graduada em Direito pela Universidade Federal Rural do Semi-Árido, foi
bolsista do Programa Rede de Oficinandos na Saúde Mental da Ufersa.
larissangr@hotmail.com

Laura Pozzana
Pós-doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro. Doutora em Psicologia pela mesma uni-
versidade. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal Fluminense na
área de concentração Subjetividade e Clínica. Atua principalmente com os
seguintes temas: sistema Rio aberto, corpo, arte, clínica e deficiência visual.
laura.pozzana@gmail.com

Lúcia Campos Pellanda


Doutora em Ciências da Saúde (Cardiologia) pela Fundação Universitária
de Cardiologia. Atualmente é reitora da Universidade Federal de Ciências
da Saúde de Porto Alegre. Tem experiência na área de Medicina, com ênfase
em Cardiologia Pediátrica, atuando principalmente nos seguintes temas:
prevenção primária, cardiologia pediátrica, prevenção da aterosclerose e infla-
mação, e na área de Pesquisa Clínica, com ênfase em Medicina Baseada em
Evidências e Metodologia Científica, Ensino Médico, Ensino da Medicina
Baseada em Evidências, Knowledge translation research e educação para a
saúde. lupellanda@gmail.com

Marcos Silva dos Santos


Mestre em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará. Graduado
em Enfermagem pela Faculdade Metropolitana da Grande Fortaleza. Tem
experiência na área de Enfermagem, atuando principalmente nos seguintes
temas: Epidemiologia e Estatística nos Serviços de Saúde, Saúde Pública,
Saúde Coletiva, Docência em cursos de formação técnica ministrando
as disciplinas de: Anatomia e Fisiologia Humana, Microbiologia, Saúde

346
SOBRE OS AUTORES

Mental, Legislação e Ética dos Profissionais de Enfermagem, Organização


do Processo de Trabalho em Enfermagem, Administração em Enfermagem.
enfermagemmarcos@hotmail.com

Maria Aridenise Macena Fontenelle


Doutora em Engenharia de Produção pela Universidade Federal de Santa
Catarina. Mestre em Engenharia de Produção pela mesma instituição. Gra-
duação em Engenharia Civil pela Universidade de Fortaleza. Especialista em
Educação Continuada a Distância pela Universidade de Brasília. Atualmente
é docente no Departamento de Ciências Ambientais e Tecnológicas da Uni-
versidade Federal Rural do Semi-Árido. Vice-coordenadora do Programa de
Extensão Rede de Oficinandos na Saúde Mental e docente colaboradora do
Programa de Pós-Graduação em Cognição, Tecnologias e Instituições da
Universidade Federal Rural do Semi-Árido. aridenise@ufersa.edu.br

Maria de Fátima de Lima das Chagas


Doutoranda em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul. Mestre
em Ambiente, Tecnologia e Sociedade pela Universidade Federal Rural do
Semi-Árido. Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Integra os grupos de pesquisa Linguagens, Cognição e
Tecnologias (Ufersa) e Grupo de Ações e Investigações Autopoiéticas – Gaia
(Unisc). É professora do Núcleo de Tecnologia Educacional Municipal de
Mossoró. fatima.aee@gmail.com

Maria do Carmo Duarte Freitas


Pós-doutora em Educação pela Universidade de Málaga. Doutora em Enge-
nharia de Produção pela Universidade Federal de Santa Catarina. Premia-
da no 27o. Prêmio Paranaense de Ciência e Tecnologia 2013 – Categoria
Pesquisadora-Extensionista. Professora associada da Universidade Federal do
Paraná, integrando o quadro de docentes dos Programas de Pós-Graduação
em Ciência, Gestão e Tecnologia da Informação e em Engenharia e Cons-
trução Civil. Pesquisa sobre o desenvolvimento de Tecnologias, Produtos e
Serviços Inovadores e Criativos, Engenharia e Gestão do Conhecimento e da
Informação, Teorias e Aplicações do Lean Thinking – Lean Office, Educação

347
Corporativa, Gestão por competências (e-Rubrica) e Gestão da Tecnologia
na Educação. É colaboradora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre o
Terceiro Setor – Nits. carmemk2@gmail.com

Max Silva de Oliveira


Graduado em Administração de Empresas pela Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Bolsista do Programa Rede de Oficinandos na Saúde Mental
da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. maxvsgilgamesh2@yahoo.com.br

Mylena Carla Almeida Tenório


Mestranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Alagoas, na linha de pesquisa Educação e Inclusão
de Pessoas com Deficiência ou Sofrimento Psíquico. Especialização em Edu-
cação Especial e Inclusiva pelo Instituto Superior de Educação de Pesqueira.
Tem experiência na área de educação, atuando principalmente com acom-
panhamento pedagógico e mediação de crianças com autismo, bem como
em orientação de professores quanto ao processo de inclusão. Os principais
interesses de estudos estão ligados a: educação inclusiva, autismo, tecnolo-
gias educacionais; saúde mental do professor. mylena_dayvid@hotmail.com

Nize Maria Campos Pellanda


Realizou Estágio Sênior de pesquisa na Universidade do Minho, na qual
está desenvolvendo uma plataforma digital para sujeitos diagnosticados
com Transtornos do Espectro Autista (TEA), baseada em pressupostos da
complexidade sob a supervisão da doutora. Lia Oliveira. Pós-doutora em
Educação pela Universidade do Minho, doutora em Educação pela Univer-
sidade Federal do Rio Grande do Sul, com Doutorado-Sanduíche na Miami
University – Oxford, Miami, EUA. Graduada em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul. É professora na Universidade de Santa Cruz
do Sul, integrando o corpo docente dos Programas de Pós-Graduação em
Educação e em Letras. Coordena o Grupo de Ações e Investigações Auto-
poiéticas – Gaia – cujo eixo de convergência é Educação e Complexidade.
nizepe@uol.com.br

348
SOBRE OS AUTORES

Niqueli Streck Machado


Doutoranda em Educação no Programa de Pós-Graduação em Educação
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Mestre em Educação pela
Universidade de Santa Cruz do Sul. Graduada em Pedagogia pela Uni-
versidade Luterana do Brasil. Professora de Educação Infantil da Escola
Educar-se, na Universidade de Santa Cruz do Sul. Tem experiência na área
de educação, com ênfase nos temas: infância, educação e pesquisa com
crianças. niqueli@unisc.br

Rafael de Almeida Rodrigues


Mestrando em Ciência da Computação pela Universidade Federal Rural do
Semi-Árido e graduado em Ciências da Computação pela mesma universi-
dade. Integra o Núcleo Tecnológico de Engenharia de Software – NTES – e
participa do Programa de Extensão Rede de Oficinandos na Saúde Mental
da Universidade Federal Rural do Semi-Árido. Tem experiência nos seguintes
temas: tecnologias, adaptação dinâmica em jogos digitais e saúde mental.
rafael_allx@hotmail.com

Raimunda Hermelinda Maia Macena


Doutora em Ciências Médicas e pós-doutora em saúde coletiva pela Uni-
versidade Federal do Ceará. Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade
de Fortaleza. Graduada em Enfermagem pela Universidade Estadual do
Ceará. Docente-adjunta IV da Universidade Federal do Ceará. Coordena o
grupo de pesquisa Promoção da Saúde em Populações Vulneráveis e pesquisa
nas linhas de avaliação do processo saúde-doença em grupos socialmente
vulneráveis, estudo das estratégias interdisciplinares em promoção e pre-
venção em saúde, e violência, processo saúde-doença e promoção da saúde.
lindamacena@gmail.com

Ramiro de Vasconcelos dos Santos Júnior


Mestrando do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cognição,
Tecnologias e Instituições da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
Graduado em Ciência da Computação pela mesma universidade. Atuou
como bolsista de iniciação científica (Pivic) no Núcleo Tecnológico de Enge-
nharia de Software – NTES – Universidade Federal Rural do Semi-Árido

349
e como bolsista do Programa Rede de Oficinandos na Saúde Mental. Tem
experiência na área de Ciência da Computação, atuando principalmente nos
seguintes temas: saúde mental, cognição, jogos digitais, jogos e ciência da
computação. Possui curso técnico em Tecnologia da Informação com ênfase
em Redes de Computadores pelo Instituto Metrópole Digital, um projeto em
parceria entre a Universidade Federal do Rio Grande do Norte e a Universi-
dade Federal Rural do Semi-Árido. ramirojunior@outlook.com

Ray Lima
Cenopoeta. Educador e ator da Universidade Popular de Arte e Ciência.
Integra ações de formação em Educação Popular em Saúde, projetos vin-
culados ao Ministério da Saúde. É colaborador do Programa Rede de Ofi-
cinandos na Saúde Mental da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
Graduado em Língua e Literaturas de Língua Portuguesa pela Uerj e espe-
cialista em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde pela Unicamp-SP. Fun-
dador do Movimento Escambo Popular Escambo Livre de Rua e do Grupo
Pintou Melodia na Poesia. Atualmente é coordenador estadual do curso de
Aperfeiçoamento em Educação Popular em Saúde EDPOPSUS-CE, professor
visitante da Escola Estadual de Saúde do Estado do Ceará-ESPSCE e colabo-
rador do Espaço Ekobé-Uece. limafeliz@gmail.com

Remerson Russel Martins


Doutor, mestre e graduado em Psicologia pela Universidade Federal do Rio
Grande do Norte. Professor do curso de Medicina da Universidade Federal
Rural do Semi-Árido e do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em
Cognição, Tecnologias e Instituições. Atua como pesquisador no campo da
avaliação psicológica aplicada à saúde e à educação. remerson@ufersa.edu.br

Ricardo Lugon Arantes


Médico psiquiatra infantil graduado pela Universidade Federal do Espírito
Santo com Residência Médica no Instituto Municipal Philippe Pinel/RJ.
Atua na área de Saúde Mental da Infância e Adolescência no contexto
das instituições públicas. Mestre em Educação pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul. Professor na Faculdade de Psicologia da IENH.
ricardolugon@terra.com.br

350
SOBRE OS AUTORES

Ulissea de Oliveira Duarte


Mestranda do Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Cognição,
Tecnologias e Instituições da Universidade Federal Rural do Semi-Árido.
Graduada em Direito pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte.
Especialista em Direito Processual pela Universidade da Amazônia. Advo-
gada. Atualmente é professora substituta da Universidade Federal Rural do
Semi-Árido. ulissea.duarte@unp.br
Virgínia Kastrup
Pós-doutora pelo Centre National de la Recherche Scientifique – Paris – e
pelo Conservatoire National des Arts et Métiers, Paris. Doutora em Psi-
cologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Mestre
em Psicologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente
é professora titular na UFRJ. Tem experiência na área de Psicologia, com
ênfase em Psicologia Cognitiva, atuando principalmente nos seguintes temas:
cognição, invenção, produção da subjetividade, aprendizagem, atenção, arte
e deficiência visual. virginia.kastrup@gmail.com
Washington Sales do Monte
Doutorando em Ciência da Propriedade Intelectual pela Universidade
Federal de Sergipe. Mestre em Ambiente, Tecnologia e Sociedade pela Uni-
versidade Federal Rural do Semi-Árido. Graduado em Marketing. Especia-
lista em Consultoria Empresarial e Docência do Ensino Superior, ambos pela
Universidade Potiguar. Professor na Faculdade do Vale do Jaguaribe. Atua
nos seguintes temas: Comunicação 2.0, TIC nas práticas educacionais do
Ensino Superior, jogos digitais em saúde mental e gamificação de processos.
wsalesmkt@gmail.com
Yákara Vasconcelos Pereira
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Pernambuco.
Atualmente é professora-adjunta do Departamento de Mídias Digitais da
Universidade Federal da Paraíba e professora permanente do Programa de
Pós-Graduação em Cognição, Tecnologias e Instituições da Universidade
Federal Rural do Semi-Árido. Pesquisa principalmente os seguintes temas:
empreendedorismo internacional, competição, processo de formação das
estratégias, liderança, mudança estratégica, marketing, turismo e hotelaria.
yakara@ufersa.edu.br

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