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Ciência & Saúde Coletiva

ISSN: 1413-8123
cecilia@claves.fiocruz.br
Associação Brasileira de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva
Brasil

Langdon, Esther Jean


Os diálogos da antropologia com a saúde: contribuições para as políticas públicas
Ciência & Saúde Coletiva, vol. 19, núm. 4, junio-abril, 2014, pp. 1019-1029
Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Rio de Janeiro, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=63030543003

Como citar este artigo


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DOI: 10.1590/1413-81232014194.22302013 1019

ARTIGO ARTICLE
Os diálogos da antropologia com a saúde:
contribuições para as políticas públicas

The dialogues between anthropology and health:


contributions to public policies

Esther Jean Langdon 1

Abstract In order to examine the development of Resumo No intuito de examinar o desenvolvi-


anthropological paradigms and their dialogue mento dos paradigmas antropológicos e seu diálo-
with medicine, I divide the discussion into two go com a medicina, a discussão está organizada
general, but non-exclusive, approaches: one that segundo dois eixos gerais, porém não exclusivos: o
focuses on health and disease as social and cultur- que enfoca a saúde e a doença como experiência e
al experience and construction, and another that construção sociocultural, e o que examina a saú-
examines health from an interactional and polit- de a partir de uma perspectiva interacional e po-
ical perspective. For the first approach, I focus on lítica. No primeiro eixo, privilegio as teorias es-
North American and French theories that find tadunidenses e francesas que encontram reflexo
resonance in the anthropological dialogue in Bra- no diálogo antropológico no Brasil. Para o último
zil. For the second political approach, the discus- eixo, o da política, a discussão parte do diálogo
sion originates in the dialogue among anthropol- entre antropólogos na América Latina que vêm
ogists in Latin America who have been develop- desenvolvendo modelos para contribuir com a in-
ing models to contribute to an interdisciplinary terdisciplinaridade necessária para as políticas e
approach necessary for health policies and inter- a intervenção na saúde. Os conceitos de práticas
vention in health. The concepts of practices in de autoatenção, intermedicalidade, entre outros,
self-care and intermedicality, among others, are são explorados por causa de sua contribuição na
explored due to their contribution in anthropol- antropologia para as políticas públicas em saúde.
ogy to public policies in health. These anthropol- Estes antropólogos vêm argumentando que as prá-
ogists have argued that health practices should be ticas de saúde precisam ser entendidas através das
understood through the notions of autonomy, noções de autonomia, coletividade, agência e prá-
collectivity, agency and praxis, as opposed to the xis, em oposição à perspectiva biomédica caracte-
notions of the biomedical perspective character- rizada como universalista, biologista, individua-
1
Programa de Pós- ized as being universalist, biological, individual- lista e a-histórica.
Graduação em ist and a-historical. Palavras-chave Antropologia da saúde, Práticas
Antropologia,
Key words Anthropology of health, Self-care de autoatenção, Autonomia, Políticas públicas,
Departamento de
Antropologia, Universidade practices, Autonomy, Public polices, Theory Teoria
Federal de Santa Catarina.
Cidade Universitária,
Trindade. 88.040-970
Florianópolis SC Brasil.
estherjeanbr@yahoo.com.br

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Introdução contribui para a compreensão da saúde/doença


como um processo amplo e contextual e fornece
Quais são os diálogos possíveis entre a antropo- subsídios para a constituição de políticas públi-
logia e a medicina? As antropologias médicas/da cas de saúde no Brasil.
doença e da saúde têm-se desenvolvido e conso- No intuito de traçar o desenvolvimento da
lidado como subespecialidades desde a década discussão conceitual através de um histórico bre-
de 1960. Porém, o diálogo entre a medicina e a ve e parcial, a discussão está organizada segundo
antropologia (e as ciências sociais em geral) não dois eixos gerais, porém não exclusivos: a saúde
tem sido fácil, nem sempre bem-sucedido, como como experiência e construção sociocultural, e a
apontado por análises recentes1,2. Como antro- saúde como política. No primeiro, privilegio as
póloga norte-americana radicada no Brasil há teorias originadas nos Estados Unidos e na Fran-
30 anos e pesquisadora da política de saúde indí- ça que encontram reflexo no diálogo antropoló-
gena, examino os paradigmas mais influentes e gico no Brasil. Para o último eixo, o da política, a
desafiadores para a discussão entre os dois cam- discussão parte do diálogo entre antropólogos,
pos. A análise realiza um balanço das contribui- principalmente da América Latina, que vêm de-
ções antropológicas para as políticas públicas na senvolvendo modelos para contribuir com a in-
compreensão de modelos de atenção e da pers- terdisciplinaridade necessária para as políticas e a
pectiva dos atores nos contextos locais. Não são ação em saúde. Estes antropólogos vêm argumen-
examinadas as teorias que enfocam a saúde sob tando que os processos de saúde e doença preci-
uma visão macro ou global, nem as que anali- sam ser entendidos através das noções de práti-
sam a relação entre fatores epidemiológicos e cas de autoatenção, intermedicalidade, autono-
práticas culturais de uma perspectiva biológica. mia, coletividade, agência e práxis em oposição à
Ambas as linhas de investigação têm importan- perspectiva biomédica caracterizada como uni-
tes contribuições. Porém, não fazem parte do es- versalista, biologista, individualista e a-histórica.
copo deste trabalho.
Fundamental na perspectiva antropológica é Saúde, etnomedicina e etnocentrismos
o deslocamento do olhar sobre o corpo das ciên-
cias médicas para o olhar sobre a construção social A discussão entre saúde e cultura não é nova na
e relacional do corpo e para as diversas formas antropologia, ainda que o tema como especialida-
através das quais os sistemas terapêuticos são de antropológica tenha emergido há menos de
acionados para produzir saberes sobre proces- quatro décadas atrás. No início do século XX, o
sos de saúde/doença. O enfoque no caráter rela- inglês W.H.R. Rivers3, médico e antropólogo, pes-
cional, na interação e nas múltiplas vozes que quisou a medicina das culturas não europeias, en-
integram o cenário social vincula-se a uma com- tão rotuladas como “primitivas”. Nos Estados
preensão das relações sociais ligadas ao processo Unidos, outro médico-antropólogo, Erwin Ackerk-
de saúde/doença como emergentes e dinâmicas. necht4, considerado fundador da antropologia
Ao mesmo tempo, a ênfase na perspectiva do médica, publicou vários artigos sobre a medicina
ator social e em sua capacidade de agência apon- primitiva a partir de uma perspectiva culturalista,
ta para o fato de que é a partir dos sujeitos e/ou argumentando que as ideias e práticas de saúde e
grupos sociais que são construídas as articula- doença estão relacionadas aos contextos culturais
ções entre os diferentes conceitos e práticas liga- no qual se encontram e não estão limitadas aos
dos à saúde/doença. processos biológicos. Os dois apontaram para as
A perspectiva da saúde como construção so- noções etiológicas como ponto de partida para
ciocultural, e não biológica, permite uma analise entender a lógica dos procedimentos diagnósticos
crítica de três aspectos do processo de saúde/do- e terapêuticos. Para eles, o tratamento seguia a ló-
ença que são relevantes para as políticas e os ser- gica das causas: doenças originadas por causas
viços em saúde: práticas terapêuticas, especialis- mágicas eram tratadas com terapias mágicas; aque-
tas em cura e a emergência de novas formas de las contraídas por causas naturais eram tratadas
atenção; dinâmicas envolvidas nas práticas de com terapias naturais. Pesquisas posteriores que
autoatenção em contextos etnográficos específi- acompanharam o caminho da busca da cura em
cos; e relações entre biomedicina e práticas lo- casos específicos de doenças, ou seja, a práxis do
cais. O objetivo antropológico de identificar as itinerário terapêutico, demostraram que a relação
formas de atenção à saúde de diferentes grupos entre a causa e o tratamento é mais complicada, e
indígenas e não indígenas, a partir de pesquisa que vários fatores intervêm na escolha das terapi-
qualitativa em distintos contextos etnográficos, as, não apenas as noções etiológicas.

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Os dois caracterizaram a “medicina primiti- cina e os médicos ocuparam-se com a saúde
va” como primariamente mágico-religiosa e qua- como um processo físico e objetivo.
litativamente diferente da “medicina científica”5, Esta perspectiva sobre a medicina primitiva
apartada da realidade empírica. Acknerknecht6 expressa naqueles trabalhos pioneiros esteve pre-
argumentou que as “práticas racionais” na me- sente na antropologia aplicada, que surgiu nos
dicina, embora eficazes do ponto de vista médi- Estados Unidos depois da Segunda Guerra Mun-
co, não resultaram de observação consciente. Tais dial. Esperava-se que os antropólogos participan-
práticas datam de uma época anterior, na qual tes de projetos de desenvolvimento em saúde na
foram descobertas intuitivamente, e o homem América Latina e em outras partes do mundo
primitivo praticava-as por força do hábito. Esta identificassem as crenças e outros aspectos cultu-
conclusão implica que o dito “primitivo” não per- rais que fundamentavam as práticas locais e que
cebe objetivamente a realidade empírica e que sua apresentavam obstáculos às tentativas de trans-
consciência está presa na sua cultura, a qual ope- formá-las em um comportamento mais saudá-
ra como um conjunto fixo de crenças e práticas. vel. Apesar da percepção relativista na antropolo-
Ackerknect rejeita o argumento de Malinowski7 gia de que as práticas de saúde estão integradas
de que o homem primitivo tem uma “ciência prá- na cultura, a biomedicina continuava sendo con-
tica” e reconhece a racionalidade de seus atos e siderada a ciência única para identificar, entender
também os limites de seu conhecimento. Por não e tratar as doenças. Seus princípios e conhecimen-
estudar a doença no seu contexto cotidiano, tos serviam como medidas para a avaliação da
Ackerknecht e Rivers ignoraram a dinâmica do eficácia das práticas de saúde de outras culturas9.
pragmatismo que caracteriza os esforços que as A cultura foi vista como um possível obstáculo à
pessoas fazem para resolver seus problemas de saúde - um conjunto homogêneo de crenças e
saúde8 e como as práticas terapêuticas reafirmam práticas que determinam o comportamento e que
a ontologia de um grupo, sem resultar sempre resiste a mudança. No Brasil e em outros países
em cura. da América Latina, esta posição foi considerada
Apesar de suas limitações, os dois estabelece- inadequada por não reconhecer como a estrutu-
ram a etnomedicina como objeto de pesquisa que ra socioeconômica determina a situação de saúde
precisa ser examinado dentro do seu contexto das populações subalternas10.
sociocultural. As práticas e as crenças sobre saú- Estes paradigmas que postulam uma relação
de fazem parte de um sistema lógico-conceitual e estática e determinante entre cultura e processos
estão ligadas aos outros aspectos da cultura e da de saúde e doença foram revistos no reconheci-
sociedade. Mas sem examinar a tomada de deci- mento da dinâmica entre representações e ação
sões no processo da doença, isto é, sem exami- social. Os enfoques na cultura e em crenças fo-
nar a articulação entre vários modelos de aten- ram substituídos pelas noções de prática, práxis,
ção durante o itinerário terapêutico trilhado em ação, interação, atividade, experiência, perfor-
casos específicos de doenças, as preocupações mance, e sua relação com o ator que realiza as
com os opostos binários, tais como natural/ ações agente, pessoa, eu, indivíduo, sujeito11. A
sobrenatural, magia/ciência, e medicina primiti- cultura não é mais essencializada nem percebida
va/medicina moderna, obscurecem a dinâmica como se tivesse fronteiras claras e definidas num
cultural e a construção sociocultural da experi- território geográfico particular. A atribuição das
ência da doença. crenças como base da ignorância em saúde dos
As discussões sobre as práticas terapêuticas indígenas, classes populares e outros, é vista como
durante a primeira metade do século XX preocu- uma forma de etnocentrismo ocidental. Byron
param-se com as ideias sobre causas e ritos má- Good12 examina o status epistemológico da no-
gico-religiosos, sem pesquisar as questões liga- ção de “crença” no pensamento ocidental e an-
das à biomedicina. Os antropólogos não se inte- tropológico, no qual atribuímos “crenças” aos
ressavam em traçar um perfil da saúde dos gru- outros sistemas de saberes, mas não ao nosso.
pos ou examinar especificamente como as práti- Porém, a herança da cultura como um “conjunto
cas culturais e sociais interagem com questões de crenças fixas, homogêneas e integradas” con-
biológicas para determinar a sua situação de saú- tinua vigente e, em programas educacionais e
de. Predominou a tendência de manter a distân- campanhas de saúde, ela é frequentemente con-
cia entre os estudos de antropologia e os de bio- cebida como um obstáculo à modificação de
medicina. Os antropólogos ocuparam-se com as comportamentos e como um fator que dificulta
manifestações mágicas e religiosas da etnomedi- a comunicação13-15.

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A saúde como experiência transforma-se através da internalização simbóli-


e construção sociocultural ca do sujeito20. A doença e seus signos não são
universais. Ela é uma experiência construída cul-
O surgimento da análise simbólica nos Esta- turalmente através do contexto cultural, do pro-
dos Unidos, liderada por Clifford Geertz, Victor cesso de internalização simbólica do doente e do
Turner e David Schneider na década de 1960, teve feedback entre o sistema cultural e os estados psi-
um impacto importante na construção de con- cobiológicos21. A distinção entre disease, ou doen-
ceitos que vão além das representações simbóli- ça (da perspectiva biomédica), e illness, ou enfer-
cas, para incluir a ação e a natureza “emergente” midade (da perspectiva do doente), aponta para
da cultura através da interação social. Um im- a diversidade da experiência em que os processos
portante desdobramento foi a discussão de vári- de adoecer e curar-se fazem parte da realidade
os autores que propuseram conceituar a doença simbólica concebida como um “espaço mediador
como uma construção sociocultural. Na década do biocultural e do sociocultural”16.
de 1970, Arthur Kleinman, médico-psiquiatra e Vários autores adotaram a distinção entre
antropólogo, constrói um paradigma analítico disease e illness, para marcar as diferenças de pers-
centrado nos conceitos de “medicina como um pectiva entre o profissional de saúde e os leigos22,23.
sistema cultural” e “modelo do sistema de cuida- Os significados destes termos em inglês distin-
dos de saúde” (health care system model)16,17, para guem-se sutilmente, e sua tradução para o portu-
fins comparativos. As experiências das doenças, guês não é fácil. O conceito de doença (disease)
papéis sociais, práticas terapêuticas e instituições refere-se à anormalidade na estrutura e/ou no
relacionadas à saúde estão sistematicamente li- funcionamento dos órgãos e de seus sistemas, ou
gadas, e sua totalidade compõe “o sistema de saú- seja, a perspectiva do paradigma biomédico. Re-
de” construído culturalmente. Nesta abordagem, fere-se a um estado patológico reconhecido pela
o sistema biomédico torna-se também um siste- biomedicina, mas não necessariamente pelo paci-
ma cultural passível de análise antropológica ente. O conceito de enfermidade (illness) refere-se
como outros sistemas de saúde encontrados nas às percepções que o paciente tem para interpretar
diversas culturas. seu estado e atribuir seu significado. Este modelo,
Para a construção de um modelo para a com- ou seja, como o doente interpreta a sua experiên-
paração de sistemas médicos, Kleinman introduz cia, é altamente influenciado pelo contexto socio-
vários conceitos analíticos – modelo explicativo, cultural em que o enfermo se encontra; sua afli-
realidade clínica, o contraste disease/illness, tare- ção é reconhecida socialmente e não necessaria-
fas centrais adaptativas de cuidado, entre outros. mente está limitada ao corpo físico, mas pode
Partindo da noção de cultura como um sistema incluir as relações sociais e espirituais, não corres-
simbólico geertziano18, Kleinman é um dos pri- pondendo às síndromes biomédicas.
meiros a destacar que os conhecimentos biomé- Alan Young8 elabora um terceiro conceito, o
dicos devem ser relativizados, outorgando vali- de mal-estar ou sickness, que não se refere aos
dade aos saberes curativos não ocidentais17,19. Para modelos de percepção, mas ao processo socio-
ele, o sistema de saúde de um grupo tem três “are- cultural de interação e negociação ao longo do
nas”: o profissional; o popular, com seus especia- episódio. O episódio da doença não é um diag-
listas; e o leigo (ou familiar), espaços onde a inte- nóstico ou uma categoria, nem um modelo de
ração entre os atores acontece nas suas tentativas percepção, mas é um processo que emerge atra-
de cuidar da saúde, e que são fontes de diferentes vés das interações dos atores participantes ao
entendimentos. Num contexto clínico, os diferen- longo de sua duração24. Segundo a proposta de
tes atores têm diferentes “modelos explicativos”, Young25, sickness, ou mal-estar é um conceito
ou seja, diferentes percepções sobre a doença. abrangente para designar os eventos que envol-
O enfoque de Kleinman centra-se na situação vem enfermidade e/ou doença, e o autor direcio-
clínica e trata dos aspectos “micro” e locais, não na nosso olhar não para as categorias ou crenças
dos processos “macro”. Seguindo os interesses da estanques, mas para a construção sociocultural
antropologia simbólica sobre o papel do símbolo da legitimação da doença e das forças sociais
na vida humana, o processo simbólico torna-se operando em sua construção.
central na análise. A enfermidade é uma experiên- Estes termos foram altamente criticados por
cia psicossocial, na qual os processos simbólicos Michael Taussig26, por reificar a perspectiva bio-
formam a ponte entre a realidade social do con- médica sem reconhecer sua hegemonia. Segundo
texto e a realidade psicobiológica do paciente. ele, estes conceitos reforçam a hegemonia do
Como diria Suzanne Langer, a realidade externa modelo biomédico por não questionar a objeti-

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vidade e a neutralidade do conceito de disease (ou refletem a predominância da influência francesa
patologia) e reconhecer que sua existência tam- e também as preocupações nacionais com o ur-
bém é resultado de contingências históricas e con- banismo, crescimento, expansão do capitalismo
dições econômicas. Porém, este debate sobre ter- e modernidade. Assim, na década de 1980, o diá-
minologias recebeu pouca reflexão no Brasil27. O logo entre antropologia e psicanálise teve como
artigo de Young foi traduzido por Martin Novi- foco a relação entre indivíduo e sociedade duran-
on, da Universidade de Brasília, em 1978, mas te um período identificado como de expansão da
sua intenção de publicar a tradução deste artigo psicanálise e de uma “cultura psi” na classe média
numa coletânea com traduções de Good, Klein- intelectualizada do Rio de Janeiro33,34. Nas pes-
man, e outros, acabou sendo frustrada por ques- quisas realizadas nessa linha de trabalho, no cam-
tões financeiras envolvendo direitos autorais. po das sociedades complexas contemporâneas,
Good aprofunda as dimensões psicossociais foram abordados tópicos como vida urbana,
e culturais da experiência da enfermidade na sua modernização, individualismo e estigma, desvio,
discussão sobre o “mal do coração” entre as cultura da psicanálise, atendimento psiquiátrico
mulheres iranianas28. Num esforço de examinar em camadas populares, entre outros. O próprio
os discursos das mulheres sobre sua aflição Gilberto Velho escreveu sua tese de doutorado
“folk”, ou popular, que desafia um diagnóstico sobre o consumo de “tóxicos” nas classes médias
biomédico específico, Good propõe o conceito no Rio de Janeiro, com foco maior em questões
de “cadeia semântica” para referir-se ao significa- de individualismo e sociabilidade do que no tema
do subjetivo da enfermidade. Neste conceito, que das drogas propriamente35.
é construído a partir das discussões de Victor Nas discussões conceituais, destaca-se Luiz
Turner e outros sobre símbolos condensados29,30, Fernando Dias Duarte, com sua análise seminal
o significado da doença é constituído não como sobre a “doença dos nervos”, que se tornou uma
uma relação ostensiva entre os nomes das doen- referência clássica para os estudos antropológi-
ças e as entidades naturais das patologias, mas cos em saúde no Brasil36. A pesquisa foca nas
como uma “síndrome” de símbolos e experiênci- noções de perturbação, corpo e pessoa entre seg-
as que tipicamente “andam juntos”, para os mem- mentos das classes trabalhadoras urbanas. Du-
bros de uma sociedade. No caso das mulheres arte se vale explicitamente da tradição da socio-
iranianas, a situação feminina na sociedade, a logia francesa e é um crítico ativo do que consi-
opressão diária, as relações de gênero, e os valo- dera o “viés biológico” da antropologia médica
res associados com a fertilidade condensam dos Estados Unidos. Em vários artigos37-40, opõe-
numa experiência de aflição emocional que se se ao que define como “perspectiva empírico-cul-
expressa em crises de ansiedades e preocupações tural” sobre os processos e as experiências cor-
com as relações sociais. Neste sentido, toda do- porais. Ele propõe a noção de “perturbação”, que
ença tem sua caraterística individualizante e emer- define como uma experiência físico-moral que
gente, que depende do contexto sociocultural e escapa às racionalidades biomédica e psicológi-
da vida pessoal do indivíduo. ca, e é um conceito-chave para os estudos antro-
Enquanto os paradigmas acima refletem uma pológicos em saúde.
visão de interdependência entre as dimensões bi- O conceito de perturbação físico-moral de-
ológicas, psicológicas e culturais da doença, os senvolvido no Brasil enfatiza o social da experi-
brasileiros, influenciados em maior grau pelos ência corporal e da doença e ressalta a diferença
teóricos franceses, como Emile Durkheim e Mar- entre as perspectivas da biomedicina e da antro-
cel Mauss, focalizaram a relação da fabricação pologia40. Enquanto a biomedicina constrói a
social do corpo e a construção da pessoa. Ao doença a partir de uma ótica universal, individu-
longo da década de 1970, cresce o interesse pelos al e biológica, a antropologia enfatiza o aspecto
aspectos simbólicos do corpo, inspirado pelas relacional da doença e as diferenças na constru-
obras de Durkheim, Mauss, Mary Douglas, Tur- ção da pessoa em contextos sociais diferentes. O
ner, e Geertz31. Em 1979, os etnólogos do Museu conceito evita, também, a discussão menos frutí-
Nacional publicaram um artigo seminal em que fera sobre as diferenças semânticas entre disease,
propunham pensar o corpo como o paradigma illness and sickness, presente nos Estados Unidos.
central para a compreensão das sociedades e das Outra noção útil para distinguir a visão uni-
cosmologias ameríndias32. Este artigo marcou versalista e biológica da medicina é a de corpo-
profundamente os estudos em saúde indígena. reidade (embodiment), um conceito que enfatiza
Os paradigmas brasileiros dominantes so- a experiência corporal a partir da psicologia e da
bre corpo e saúde no campo da antropologia fenomenologia. A cultura atua sobre, ou emol-

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dura, o corpo, que é visto como o campo exis- cura e possibilitando mudanças físicas e/ou com-
tencial da cultura e a fonte criativa da experiên- portamentais51-53.
cia, e não um mero objeto biológico41-43. Porém, As discussões sobre eficácia estão relaciona-
o paradigma da corporeidade diferencia-se da das ao que é descrito como a crise da medicina
ênfase de Duarte, em que o biológico e o psicoló- oficial provocada pela hegemonia da visão bio-
gico são subordinados ao social. lógica e tecnológica, excluindo fatores sociais,
A narrativa apresenta-se na antropologia psicológicos ou espirituais que têm impacto na
como uma ferramenta analítica e metodológica experiência da doença e no processo terapêutico.
para os estudos que procuram entender a expe- Essas discussões permitem relativizar conceitu-
riência da doença, tanto no Brasil como no exte- almente as práticas religiosas e outras como pro-
rior42,44,45. Explorando a experiência da doença cessos simbólicos desenvolvidos pelos diversos
proposta por Good, Csordas e outros, as análi- grupos humanos para transformar e restaurar o
ses exploram a fenomenologia da dor crônica, estado do doente, sem rotulá-las como “crenças”
obesidade, epilepsia, síndromes mentais, nervos, ou “superstições”. Ressaltam o poder da ação sim-
câncer, etc. A bibliografia é bastante extensa e al- bólica na saúde humana, ou seja, no significado
gumas análises vão além da experiência subjetiva da ação para o doente, e questionam a visão da
para examinar como as narrativas também re- patologia como fenômeno universal e indepen-
velam os processos sociais relacionados com a dente do seu contexto social histórico.
doença e a dinâmica da busca da cura conhecida As discussões contemporâneas na antropo-
como itinerário terapêutico24. Um ponto central logia, mencionadas acima, são tentativas de con-
destas análises é a ideia de que a doença é uma ceituar os processos de saúde e doença onde o
experiência que gera narrativas que procuram dar biológico esteja articulado com o cultural54. A
sentido ao sofrimento e também ajudam as pes- doença não é um evento primariamente biológi-
soas a negociar as decisões. As narrativas são co, mas é concebida em primeiro lugar como um
relacionadas às noções corporais, etiológicas e processo vivido cujo significado é elaborado atra-
cosmológicas, e também refletem as relações so- vés dos contextos culturais e sociais, e, em segun-
ciais46. Uma doença gera várias narrativas, de- do lugar, como um evento biológico. A doença
pendendo do ponto de vista do ator/narrador não é um estado estático, mas um processo de
no itinerário terapêutico. Semelhante à famosa interação que requer interpretação e ação no meio
discussão de Geertz18 sobre como o rito fornece sociocultural, o que implica uma negociação de
o modelo “de” e “para” a realidade, as narrativas significados na busca da cura55.
sobre casos de doenças do passado fornecem os
modelos interpretativos para entender o proces- Saúde como política
so da doença em andamento24,41.
Um dos desafios levantados por Kleinman Durante a década de 1980, e principalmente
em sua construção do paradigma interpretativo nos anos 1990, inicia-se nos Estados Unidos a
sobre a medicina como sistema cultural trata da “antropologia médica crítica”56, visando analisar
questão da eficácia de práticas terapêuticas e reli- os processos de saúde como consequências da
giosas. Não é uma questão nova47-50, mas gerou globalização e de estruturas político-econômi-
novas reflexões a partir da distinção entre dois cas. É importante ressaltar que a visão crítica faz
termos em inglês, cure e heal. Estes têm diferen- parte da perspectiva “latina” décadas antes de a
ças sutis que não são captadas na tradução “cu- antropologia médica eurocêntrica incluir os con-
rar”, em português. O significado de heal abran- ceitos de poder e inequidade em seus modelos
ge mais do que as reações fisiológicas e a elimina- analíticos10. O desenvolvimento das ciências so-
ção dos sintomas. Além de ser um ato técnico ciais na América Latina está relacionado com os
isolado único, o processo terapêutico é um pro- contextos políticos e históricos particulares des-
cesso persuasivo que transforma a experiência. ta região e com sua posição nos processos de
Segundo o interesse fenomenológico do proces- expansão do industrialismo, do capitalismo e dos
so de doença, heal conota a cura integral ou ho- poderes mundiais. As ciências sociais emergiram
lista, e o termo refere-se à restauração do bem- e consolidaram-se no século XX preocupadas e
estar no sentido experiencial. Dentro da ótica da engajadas com as realidades sociais e econômi-
antropologia simbólica, os ritos de cura incluem cas de seus países.
mecanismos retóricos que transformam a expe- Dentro do campo da antropologia da saúde,
riência afetiva/cognitiva de doente para uma de as condições de saúde e as práticas das pessoas
bem-estar, estimulando processos endógenos de foram reconhecidas como resultantes dos pro-

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cessos hegemônicos e das forças de poder, não revisão do campo das pesquisas que estavam sen-
de práticas culturais ou da falta de conhecimen- do realizadas, Queiroz e Canesqui, ambos da
to. Esta perspectiva, inspirada pelos pensadores Unicamp, salientaram a necessidade de se desen-
marxistas como os da Escola de Frankfurt, Fou- volverem paradigmas capazes de analisar a su-
cault, Gramsci, e os mais atuais como Seppilli, bordinação ao modelo capitalista de processos
Bibeau, Fassim e Menéndez, é a base de seu enfo- sociais locais relacionados à saúde64,65. Com o
que metodológico para pesquisa e interpreta- movimento da saúde coletiva, antropólogos pre-
ção57-60. Seus interesses distanciam-se das inda- ocupados com as relações entre a biomedicina e
gações feitas pelos antropólogos que definiram as práticas locais de saúde procuraram desen-
seu papel como o de tradutores da cultura em volver paradigmas alternativos à abordagem bi-
projetos de saúde, e foram desenvolvidas junto à ológica e quantitativa dominante na saúde pú-
consolidação da saúde coletiva, à redemocrati- blica e em pesquisas epidemiológicas.
zação e à reforma sanitária. Com a implantação de programas de saúde
O período da transição para a democracia, orientados para populações específicas (mulher,
no final dos anos 1970 até a promulgação da família, indígena, etc.) e o aumento de financia-
nova Constituição Federal brasileira, em 1988, mento pelo Ministério da Saúde para a pesquisa
marca uma fase importante para os estudos an- em saúde nas últimas duas décadas, temos visto
tropológicos sobre saúde. Um dos projetos pre- um crescimento significativo das pesquisas an-
liminares mais relevantes para o desenvolvimen- tropológicas voltadas para o subsídio das políti-
to da antropologia da saúde abordou o tema cas públicas em saúde e para a contribuição à
dos hábitos alimentares e da ideologia em diver- realização dos princípios de acesso universal, con-
sos segmentos da população brasileira61. O foco trole social e humanização em comunidades es-
desse projeto foi direcionado para as representa- pecíficas.
ções culturais e a organização dos hábitos ali- Um exemplo das pesquisas em saúde volta-
mentares, analisados primeiramente a partir dos das para o subsídio das políticas públicas, mas
paradigmas do estruturalismo francês e da an- pouco reconhecido nas revisões da antropologia
tropologia simbólica, a fim de entender como as da saúde brasileira64-67, são as pesquisas em saú-
forças políticas e econômicas influenciavam as de indígena. A partir da Primeira Conferência
estratégias de subsistência. Foram realizados es- Nacional de Saúde Indígena, antropólogos enga-
tudos entre camponeses, comunidades de pesca- jaram-se na defesa dos direitos dos povos indí-
dores e trabalhadores da agricultura e da indús- genas à saúde e na defesa de uma antropologia
tria. Esta pesquisa estabeleceu a agenda de pes- participativa que procura subsidiar as políticas
quisa em saúde, delineada a partir de conceitos e públicas e uma atenção diferenciada que respeite
paradigmas contemporâneos, com poucas refe- os saberes e as práticas tradicionais68,69. Além dis-
rências aos discursos que circulavam na antro- so, para os problemas crônicos e críticos em saú-
pologia médica dos Estados Unidos. de, tais como “alcoolismo” e saúde mental, são
Até o final dos anos 1980, as pesquisas antro- propostos paradigmas processuais (tais como a
pológicas foram multiplicando-se, estimuladas alcoolização70) para analisá-los a partir de uma
pela criação de políticas públicas e pelo movi- perspectiva coletiva, vendo-os como resultados
mento brasileiro da reforma sanitária. Marcos de contextos históricos e da relação do grupo
Queiroz62 e Maria Andréa Loyola63, pesquisado- com a sociedade envolvente71,72, e não como pro-
res em saúde com doutorados realizados na In- blemas situados no corpo individual biológico.
glaterra e na França, respectivamente, voltaram Pode-se identificar três eixos relacionados ao
ao Brasil e foram incorporados a escolas de me- processo de saúde/doença dentro das pesquisas
dicina. A afiliação de Queiroz e Loyola a progra- que pretendem contribuir para um diálogo entre
mas de medicina social e saúde coletiva reflete saúde e política. O primeiro privilegia as relações
uma tendência interdisciplinar e uma preocupa- entre a biomedicina e as práticas de saúde locais,
ção com a política no incipiente campo de estu- especialmente entre as políticas de saúde e/ou in-
dos sobre saúde em antropologia. clusão empreendidas pelo Estado, e as formas
Em suma, muitos dos interesses antropoló- através das quais populações específicas dão res-
gicos na saúde foram sendo desenvolvidos em postas a estas mesmas políticas. O segundo en-
interação com a saúde coletiva e sua crítica sobre fatiza as práticas terapêuticas e os especialistas
o enfoque biologista, universalista e individua- em saúde locais, assim como a emergência de
lista da biomedicina. Ademais, houve uma re- novas formas de atenção à saúde. Já o terceiro
ceptividade maior às vertentes marxistas, e, numa compreende as dinâmicas envolvidas nas práti-

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cas de autoatenção empreendidas pelos sujeitos tais, dietética, normas de higiene pessoal e coleti-
em contextos etnográficos específicos, ressaltan- va, organização social, rituais, e assim por dian-
do as relações dessas práticas com processos so- te. O segundo nível, mais restrito, refere-se prin-
ciocosmológicos e vivenciais. cipalmente às estratégias, científicas e não cientí-
Estes eixos partem dos paradigmas que anali- ficas, de representação da doença e de práticas de
sam o processo de saúde/doença24 como social- cura e cuidados.
mente construído e contextual8,28, bem como a Menéndez75 defende que a pesquisa etnográfi-
premissa de que os diferentes sistemas médicos16 ca centrada nos sujeitos e grupos sociais revela a
possuem especificidades e estão em constante re- forma pela qual esses diferentes modelos de aten-
configuração e interlocução73,74. Também ressal- ção se articulam nos itinerários terapêuticos indi-
tam o caráter dinâmico e processual das práticas viduais, nos quais muitas vezes aparecem combi-
ligadas ao cuidado da saúde, bem como as ações nadas práticas terapêuticas e noções sobre saúde/
de articulação entre diferentes conhecimentos e doença que em outras instâncias são definidas
saberes, com o intuito de descrever e analisar as como antagônicas ou excludentes. Através dos
particularidades, as interações, as negociações e atores sociais, que se inserem em redes de trocas
os conflitos existentes nos processos sociais. de conhecimentos, constroem-se influências mú-
Tais eixos de análise têm como base a concei- tuas entre diferentes modelos de atenção à saúde.
tualização de “modelos de atenção à saúde” e Desta maneira, as práticas e as concepções a res-
“práticas de autoatenção”, elaborada por Eduar- peito de saúde/doença são construídas e recons-
do Menéndez60,75, para referir-se não somente às truídas num processo contínuo, dando lugar à
atividades de tipo biomédico, mas a todos os re- emergência de novos modelos de atenção.
cursos terapêuticos empregados na busca de pre- Resumindo, a autoatenção aponta para o re-
venção, tratamento, controle, alívio e/ou cura de conhecimento da autonomia e da criatividade da
uma determinada enfermidade75. O modelo mé- coletividade, principalmente da família, como o
dico hegemônico caracteriza-se por uma série de núcleo que articula os diferentes modelos de aten-
pressupostos: biologicismo, a-historicidade, a- ção ou cuidado da saúde75. Diferente do conceito
culturalidade, eficácia pragmática, orientação médico de “autocuidado”, o conceito de Menén-
curativa e medicalização dos padeceres. Este dez desloca a ação do profissional de saúde para
modelo identifica-se, assim, com a biomedicina os atores como coletividade. Enquanto o primei-
oficial. Os outros correspondem às práticas te- ro trata da adequação do paciente para incorpo-
rapêuticas populares e “alternativas”, que englo- rar os valores e as instruções da biomedicina, o
bam conhecimentos populares sobre saúde; et- segundo trata de sua autonomia na articulação
nomedicinas de grupos indígenas; práticas tera- dos recursos terapêuticos acessíveis, independente
pêuticas new age; grupos centrados na autoaju- de sua origem, e na criação de articulações novas.
da; práticas oriundas de outras tradições médi- Em minha análise sobre os itinerários tera-
cas acadêmicas; e assim por diante. pêuticos entre populações indígenas, argumento
As práticas de autoatenção são definidas por que o processo de articulação constrói o proces-
Menéndez como “as representações e as práticas so experiencial da doença para o grupo. Ver a
que a população utiliza no nível do sujeito e do doença como experiência implica entendê-la
grupo social para diagnosticar, explicar, atender, “como um processo subjetivo construído atra-
controlar, aliviar, aguentar, curar, solucionar ou vés de contextos socioculturais e vivenciado pe-
prevenir os processos que afetam sua saúde em los atores”76. O contexto sociocultural é relevan-
termos reais ou imaginários, sem a intervenção te para compreender tanto a definição da doença
direta, central e intencional de curadores profis- em si quanto a escolha das práticas de cura em-
sionais”75. O autor sublinha, portanto, o caráter pregadas. Desta maneira, a cosmologia de um
autônomo dessas práticas. Segundo Menéndez, grupo é também um fator na constituição dos
existem dois níveis nos quais as práticas de auto- itinerários de diagnóstico/tratamento. Meus ar-
atenção podem ser pensadas: o primeiro, mais gumentos apontam para como nos itinerários
amplo, está ligado a todas as formas de autoa- dos sujeitos constroem-se negociações entre ele-
tenção necessárias para assegurar a reprodução mentos provenientes de distintos sistemas tera-
biossocial dos sujeitos e grupos no nível dos mi- pêuticos e de diferentes cosmologias.
crogrupos, em especial do grupo doméstico. As- Nesta mesma linha, Bibeau54 demonstra que
sim, a autoatenção neste nível inclui não somente entre os Ngbandi do Zaire os nomes que desig-
o cuidado e a prevenção das enfermidades, mas nam os signos e sintomas durante um episódio
também usos de recursos corporais e ambien- de doença mudam segundo o contexto, e que o

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sistema ideacional de categorização das doenças Com base nessas premissas, os paradigmas
muda dentro do “sistema contextual” onde as atuais na antropologia da saúde procuram dar
pessoas procuram entender e curar a doença. conta das diversas formas através das quais os
Assim, o significado da doença é, simultanea- mais variados sistemas terapêuticos são aciona-
mente: uma experiência na vida do indivíduo e dos nos processos de saúde/doença. Procura-se
de seu grupo; uma ameaça à ordem e à boa saú- ressaltar aspectos como a interação e a relacio-
de; um conjunto de referências ao ambiente; e, às nalidade inerentes às práticas sociais. As práti-
vezes, uma ocasião de se conseguir acesso às rea- cas, os conceitos e as ações dos indivíduos que
lidades espirituais. compõem os grupos sociais articulam-se na or-
Os enfoques no local, no método etnográfico dem sociocosmológica, mas também se encon-
e na interação revelam a relação com fatores mais tram ligados à reelaboração de diferentes aspec-
amplos de ordem política, econômica, e ideoló- tos do social. O enfoque no caráter relacional e
gica73,74,77, sejam estas as hierarquias presentes nas múltiplas vozes que integram o cenário soci-
nos processos de comunicabilidade entre o pro- al vincula-se a uma compreensão das relações
fissional da saúde e a comunidade que ele aten- sociais ligadas ao processo de saúde/doença como
de14, ou as condicionantes inerentes à posição emergentes e dinâmicas. Ao mesmo tempo, a
socioeconômica do grupo que influem em sua ênfase na perspectiva do ator social e em sua ca-
saúde e em suas escolhas. As interações e práticas pacidade de agência79 aponta para o fato de que é
locais refletem os contextos mais globais, reve- a partir dos sujeitos e/ou grupos sociais que são
lando as relações de poder nas questões que di- construídas as articulações entre os diferentes
zem respeito à vida e à morte ou ameaçam o conceitos e práticas relacionados ao processo de
tecido social. As análises etnográficas ressaltam saúde/doença, sendo que muitas vezes essas arti-
como as intersecções e as articulações entre os culações se dão através de ações que recombi-
fatores de ordem macroestrutural e as formas nam elementos das mais variadas esferas e pro-
através das quais saúde/doença são pensadas duzem outros aspectos do social. Estes paradig-
localmente. Desta maneira, as análises conside- mas trazem para o campo da saúde coletiva e da
ram as especificidades dos sistemas médicos par- construção e execução das políticas públicas uma
ticulares como processos regionais, nacionais e visão da coletividade e, no social, o lugar da saú-
globais que transcendem o caráter local. de, reconhecendo os saberes plurais, a autono-
Outro conceito que procura ressaltar os as- mia dos atores, e os fatores globais que estão
pectos políticos, econômicos e ideológicos envol- presente nas situações locais.
vidos nas práticas e conhecimentos relacionados
à saúde e à doença expressa-se no termo de inter-
medicalidade. Este procura dar conta de contex-
tos caracterizados pela convivência de diversos
sistemas médicos distintos e estratégias de poder,
originando sistemas médicos “híbridos”73,74. A
noção de intermedicalidade analisa a realidade
social como sendo constituída por negociações
entre sujeitos politicamente ativos78, destacando
que nestas negociações todos os sujeitos envolvi-
dos são dotados de agência social.
Ambos os conceitos, intermedicalidade e prá-
ticas de autoatenção, mostram que, apesar da
sua contínua expansão, a biomedicina não su-
planta outras formas de conhecimento. Pelo con-
trário, ao mesmo tempo em que a biomedicina
se expande, as práticas de saúde populares e al- Agradecimentos
ternativas também florescem nos países da Amé-
rica Latina, bem como em outras partes do mun- Agradeço a meus colegas de pesquisa, particu-
do75. Desta maneira, as dinâmicas relacionadas à larmente à Isabel Santana de Rose e à Nadia Heusi
saúde/doença são caracterizadas por uma nego- Silveira, por sua colaboração na construção do
ciação entre diferentes práticas e formas de co- projeto “Práticas de Autoatenção, Redes, Itinerá-
nhecimento, sendo que, muitas vezes, neste pro- rios e Políticas Públicas”, que serve como base
cesso formam-se novas sínteses e hibridações. deste artigo.

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